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cadernos metrópole 19 pp. 15-25 1 0 sem. 2008 O futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza Milton Santos Nota introdutória Em outubro de 1995, aconteceu em São Paulo o seminário internacional “O Futuro das Megacidades”, promovido pela Compa- nhia Souza Cruz, integrando a linha insti- tucional do projeto Desafios Brasileiros. O seminário contou com a presença de pesqui- sadores e gestores urbanos nacionais e in- ternacionais e foi organizado em sessões de debates que trataram de dualidades: poder e pobreza, prover e operar, geoeconomia e geopolítica. A síntese de seus resultados, ou a “Carta de São Paulo”, foi encaminhada co- mo contribuição às atividades preparatórias à II Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, Habitat II, reali- zada em 1996. O professor Milton Santos foi o pales- trante principal da sessão de debates sobre a dualidade entre poder e pobreza, além de ter debatido nas demais sessões. As trans- crições dessa participação permaneceram inéditas. Considerando a importância de ca- da fala, de cada linha escrita, de cada posi- cionamento de autoria do professor Milton Santos, recebidos como preciosidades quan- do tornados públicos, os Cadernos Metrópo- les têm o privilégio de resgatar e divulgar a palestra e os debates dessa sessão. Nesse resgate, foram mantidas na íntegra as falas do professor Milton Santos, conforme as transcrições, e sintetizadas as participações dos debatedores.

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Milton Santos

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  • cadernos metrpole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008

    O futuro das megacidades:dualidade entre o poder e a pobreza

    Milton Santos

    Nota introdutria

    Em outubro de 1995, aconteceu em So Paulo o seminrio internacional O Futuro das Megacidades, promovido pela Compa-nhia Souza Cruz, integrando a linha insti-tucional do projeto Desafios Brasileiros. O seminrio contou com a presena de pesqui-sadores e gestores urbanos nacionais e in-ternacionais e foi organizado em sesses de debates que trataram de dualidades: poder e pobreza, prover e operar, geoeconomia e geopoltica. A sntese de seus resultados, ou a Carta de So Paulo, foi encaminhada co-mo contribuio s atividades preparatrias II Conferncia das Naes Unidas sobre Assentamentos Humanos, Habitat II, reali-zada em 1996.

    O professor Milton Santos foi o pales-trante principal da sesso de debates sobre a dualidade entre poder e pobreza, alm de ter debatido nas demais sesses. As trans-cries dessa participao permaneceram inditas. Considerando a importncia de ca-da fala, de cada linha escrita, de cada posi-cionamento de autoria do professor Milton Santos, recebidos como preciosidades quan-do tornados pblicos, os Cadernos Metrpo-les tm o privilgio de resgatar e divulgar a palestra e os debates dessa sesso. Nesse resgate, foram mantidas na ntegra as falas do professor Milton Santos, conforme as transcries, e sintetizadas as participaes dos debatedores.

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    A palestra e a sesso de debates

    Professor Milton Santos

    A primeira coisa que vou tentar (no sei se vou conseguir) definir a pobreza, j que essa palavra usada de maneira muito extensiva, como se o mundo no houvesse mudado. Ora, desde que a Segunda Guerra terminou, refiro-me sobretudo aos pases de Terceiro Mundo, ns tivemos pelo menos trs tipos de pobreza diferentes e trs defi-nies de pobreza.

    Primeiro era uma pobreza acidental, residual. Freqentemente estacional, inters-ticial, uma pobreza sem vasos comunican-tes. Uma pobreza vista como desadaptao aos processos de mudanas ou inadaptao entre condies naturais e condies so-ciais. Nem a cidade, nem o territrio, nem a prpria sociedade urbana ento eram movidos exclusiva ou majoritariamente por driving forces, compreendidos pelo proces-so de racionalizao.

    No vou dizer que vivamos numa eco-nomia natural, mas o artificial era de algu-ma maneira comandado pelo natural, o que tem repercusses diferentes do oposto repercusses do ponto de vista econmico, social e cultural. E a soluo dos problemas era privada, local, freqentemente assisten-cialista; a pobreza sendo considerada como um acidente natural ou um acidente social. Mas ento podamos falar dos pobres inclu-dos, porque havia uma preocupao moral em relao a eles.

    Depois vem uma outra fase, que coin-cide com a transio entre esse primeiro momento e o atual, fase em que o Terceiro

    Mundo buscava equivocadamente imitar o Primeiro Mundo. E a pobreza aparece como a doena da civilizao, produzida, dizem alguns, com o processo econmico; dizem outros, pelo processo econmico, no qual, ao que havia at ento, se agregam o com-ponente consumo, o componente circula-o, o componente informao, que no eram presentes na fase anterior, e se es-tabelece uma pobreza relativa. Relativa em relao ao desejvel, assim como em relao a outros. E a comea a grande farra dos ndices de pobreza. As pessoas incumbidas de estudar a pobreza se deleitavam com a apresentao de ndices. Os mais bem-aven-turados corriam o mundo catando ndices de pobreza para exibir, para sua promoo nas suas Faculdades.

    Nesse perodo, que o segundo da nos-sa periodizao, os governos se preocupa-vam ainda com a pobreza, porque era feio ter pobres. Quantos de ns escondamos dos visitantes as favelas e os sinais de pobreza? E as sociedades nacionais? Quando eu falo em sociedades nacionais e esta uma pala-vra usada de maneira abusiva com freqn-cia , nas lideranas polticas, econmicas e intelectuais, no papel dos intelectuais e eu vou insistir nisto , refiro-me a algo muito importante quando se discute a questo da pobreza, pois eles esto implicados nessa busca de solues, que nessa fase eram en-to vistas como solues de Estado.

    Talvez vocs se lembrem de Josu de Castro, grande pernambucano, que desco-briu ao mesmo tempo a fome e o consumo. Foi o primeiro especialista, evidentemente que tinha que ser um gegrafo, a descobrir essa noo que iria revolucionar o entendi-mento do processo histrico na metade do sculo XX.

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    A fome era localizada. No era essa fo-me generalizada que h hoje. E os pobres co-mearam a ser chamados de marginais. Eles no eram includos, eles no eram excludos. Havia uma vergonha de se ter pobres, e os especialistas os chamavam de marginais, com o protesto de alguns, que por isso mes-mo no eram escutados porque a comea o momento em que, para ser escutado, o in-telectual tem que estar de acordo com quem manda, de uma forma ou de outra.

    A ns chegamos fase atual, que a da pobreza estrutural-globalizada. Fase na qual h uma produo globalizada da po-breza. Uma produo cientfica da pobreza, com ajuda desses chamados intelectuais.

    De modo que a pobreza passa a ser vista como tambm um resultado de um sistema de ao deliberado. Para retomar Weber, interpretado por Habermas e tam-bm por muita gente mais, uma produo voluntria da pobreza uma deciso de criar a pobreza, resultado de um fenmeno que novo e para o qual no se tem chamado suficientemente a ateno. a primeira vez na Histria da humanidade que a diviso do trabalho administrada. Nos fios histricos anteriores, a diviso do trabalho existia, mas como resultado do livre jogo do mercado. Agora no. Agora a diviso do trabalho administrada, produzida cientificamente, imposta atravs dos meios de difuso do co-nhecimento e das idias e aceita de maneira praticamente autoritria, numa fase em que tanto se fala em democracia como soluo nica para todos os povos.

    Isso cria uma pobreza pervasiva, ge-neralizada, permanente, global. E isso que nos interessa hoje. Essa pobreza atual resultado de um planejamento centraliza-do; da convergncia de causas em diversos

    nveis. So vasos comunicantes que temos diante de ns hoje. E a pobreza vista co-mo algo racional. Quantas vezes ouvimos no rdio ou na televiso e lemos nos jor-nais, os nossos homens pblicos, com apoio de tantos economistas inclusive daqueles que so inteligentes, porque existem alguns inteligentes , explicando a racionalidade da pobreza para legitim-Ia.

    A pobreza atual o resultado necess-rio do presente processo da chamada glo-balizao, porque globalizao todavia no existe. No existe seno como fbula e como perversidade. Voltaremos a isto.

    A pobreza vista como algo racional, no mximo vista como pobreza inerente s dores do parto de um mundo prometido e que no chega nunca. A pobreza conside-rada como nos nossos tempos e, des-graadamente, tambm na academia como fenmeno natural, no importa o discurso. Ateno, o discurso da academia tem que ser lido e relido hoje. Porque uma coisa o discurso, outra coisa so as premissas con-ceituais que eles estabelecem. No devemos nos equivocar com discursos que parecem generosos, mas que na realidade so cheios da pior perversidade, isto , que, no fim, ex-cluem o seu uso, a sua utilizao quando dos estudos empricos, por conseguinte, quando da possibilidade de aplicao prtica.

    Ora, essa naturalizao da pobreza que estamos assistindo hoje, ela politicamente produzida pelo governo global, porque h um governo global. No podemos esconder essa realidade. E h a colaborao conscien-te de governos nacionais e h a colaborao dos intelectuais contratados para legitimar essa naturalizao.

    E agora chegamos fase da Histria na qual os pobres j no so includos, j no

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    so marginais, eles so excludos e, toda-via, no nos preocupamos suficientemente com eles, porque a pobreza natural. o resultado de uma racionalidade que presi-de construo desse cachorro que busca morder a sua cauda, que o mercado glo-bal. Algo que se justifica a si prprio, cuja motivao ele prprio, cuja finalidade no existe. Perguntem desse governo glo-bal, dos seus representantes nos governos nacionais. O que o mercado global? No sabero defini-lo ou no podero defini-lo, o que vem dar no mesmo quando no se quer estabelecer um dilogo.

    Ora, assim como o territrio de cada pas hoje o territrio nacional da economia internacional, a pobreza hoje a pobreza nacional da ordem internacional. Houve uma pergunta aqui que abriu o debate: a rela-o entre uma poltica neoliberal, no plano nacional, e a possibilidade de uma poltica social, no plano municipal. E aqui, ateno, porque a palavra poltica pblica aparece agora na boca de centenas dos chamados experts. Isso no poltica social. Uma coisa poltica social, outra coisa poltica p-blica. Poltica pblica so fragmentaes, apresentao de pedacinhos de solues que fazem efeito diante das cmaras e que do a impresso de que quem recebe os resul-tados dessa coisa est sendo atendido. Mas essas fragmentaes so exatamente para escapar poltica social, que se entende no bojo de uma poltica, isto , de um projeto de nao.

    Ora, o que acontece que raro o pas hoje que tem um projeto de nao, que pressupe um elenco coerente com as demais polticas. No h mais possibilidade de apresentar esse projeto, e eu sei que se diz que no vale a pena. No vale a pena

    porque o mundo se globalizou, h as redes, h todo um discurso semi-alfabetizado, mas com muito sucesso, que fala em rede, que fala em tecnologias, que enche a boca com as novidades tecnolgicas para evitar exata-mente o discurso, o discurso competente.

    Todo esse discurso em que se baseia a globalizao, tal como hoje ela se d, como uma fatalidade, vem como se jamais o mun-do soubesse o que fazer com as tcnicas. No faz parte da histria do mundo, no faz parte da histria das tcnicas saber o que se pode fazer delas. As tcnicas somente o so enquanto sociotcnicas, isto , no h tc-nicas que comandem sozinhas o processo. Ento, o fundamental, e talvez cheguemos at l, vermos como essas chamadas tec-nologias do presente esto construindo um mundo de excludos, que comporta desde as pessoas at as empresas excludas, as insti-tuies excludas. E que produzem, como ja-mais, milhes de pobres tranqilamente. H que se insistir nisso: que parece como uma fatalidade, como se se estivesse voltando quela teoria que foi vigente nos anos 60, 70, do technological fics, discutida at ento, e agora no se fala mais nessa palavra. Mas o que ns estamos assistindo exatamente um regresso vergonhoso, por isso silencio-so, a essa tica do technological fics, que de-liciava os cientistas em suas Faculdades e os seus debates destinados s suas promoes. Mas, ao mesmo tempo, essa globalizao, tal como se d hoje, ela consagra a morte da esperana, a morte da generosidade. A par-tir do momento em que o ponto de partida fechado, esse technological fics.

    Por exemplo, a palavra flexibiliza-o, pode haver uma pior chantagem se-mntica? Onde que est a flexibilizao? Nunca o mundo foi to pouco flexvel; to

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    rigidamente comandado na sua atividade econmica e poltica. Fala-se em desregu-lao, mas essa desregulao produzida por normas. Ento as palavras tm que ser utilizadas com extremo cuidado, e a leitura dos autores tem que ser feita com cuidado ainda maior.

    A ignorncia fundamental. O mundo de hoje cria, cada dia, novos ignorantes e es-sa que a beleza do mundo de hoje. Por-que essa ignorncia, bendita, que permite a vontade de descobrir. Como na cidade, o que bendito hoje ter pobres, porque s os pobres podem descobrir. Os pobres, os migrantes. Os ricos e os bem-dotados, ceva-dos no seu conforto, acostumados s idias que mantm esse conforto, no podem pen-sar, porque pensar mudar.

    Mas voltemos ao nosso esquema. Tudo isso conduz ao reino da necessidade, ento no tem jeito. Entre as coisas sobre as quais a gente tambm tem que tomar cuidado, fa-lando da tal cidade e da pobreza na cidade, est a questo da cidade global. Que histria essa?

    Cidade global a questo da cidade global comporta duas vises: a viso dos que querem que todas fiquem globais, quer dizer, que se preparem as cidades para que elas atendam aos reclamos de algumas em-presas (quanto menor o nmero, melhor) e de alguns atores (quanto menos numero-sos, melhor); a outra viso vai ver que no h cidade global que no seja cidade nacio-nal e local, sobretudo no Terceiro Mundo. Porque s as cidades nacionais, j antes na-cionais, puderam se tornar cidades globais. S as cidades antes industriais puderam se tornar cidades de servios, que o caso de So Paulo. De tal maneira que continuar fa-lando impunemente em metrpole global

    pouco. Eu creio que a gente pode usar a pa-lavra, com todo cuidado, isto , a metrpo-le global, aquela que participa diretamente ou como rel na produo dos fluxos, que tenha uma viso global e que, por conse-guinte, participe da produo do mercado global, etc.

    Mas, se eu no considerar a questo nacional e a questo local, eu no vou mais alm de ser aquele que estuda a cidade para entregar a um nmero limitado de atores. Ora, o encantamento atual com as tcnicas de ponta! at feio dizer que no se sabe usar (como que chama essa coisa?) o cor-reio eletrnico, que enche as faculdades do lixo bibliogrfico, porque uma das grandes utilizaes do correio eletrnico trazer aquelas montanhas de bibliografias inutili-zveis, s vezes totalmente inteis.

    E a negligncia com o fator territorial?Eu esqueci de dizer que eu sou um

    ge grafo, por conseguinte, eu me preocupo com territrio. E acredito que nesta fase atual da vida no mundo, o territrio passou a ser algo extraordinariamente fundamen-tal, exatamente por isso, porque as aes dos homens se tornaram extremamente necessitadas de uma intencionalidade preci-sa. Quanto mais precisa a intencionalidade, a inteno e a possibilidade de transformar a inteno em fato, tanto maior a produti-vidade. Mas, para isso, preciso que os lu-gares sejam dotados dos objetos suscetveis de atribuir a essa inteno a factibilidade que promove a rentabilidade, a produtivi-dade, a competitividade esse conjunto de palavres que pronunciado mesmo dian-te da nossa senhora me, e que devia ser proibido.

    Ora, esse fator territorial, o fato de ele ser negligenciado, nos conduz exatamente

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    ao oposto do que a gente queria fazer. Como que eu trato a cidade sem consi-derar que aquilo um territrio? Uma boa parte dos enfoques da pobreza urbana sim-plesmente negligencia o territrio, quando o territrio certamente um dos elementos fundamentais do entendimento da pobreza e do entendimento da economia urbana. O que , qual o produto metropolitano da globalizao? Esse produto o que eu cha-maria involuo metropolitana. A involu-o metropolitana um fenmeno paralelo globalizao, uma filha da globalizao. No se trata da involuo urbana de que falaram os nossos colegas McGee e Arms-trong, nos anos 60. No se trata de rurali-zao da cidade, porque no mais questo de rurais na cidade, como se falava h trinta anos atrs.

    O que se d hoje com a produo do que estou chamando de meio tcnico, cien-tfico e informacional a ocupao perif-rica do territrio, as possibilidades novas de instalao de uma fazenda moderna disper-sa, de uma indstria dispersa, da fbrica dis-persa; e a chamada desindustrializao, isto , as indstrias que deixam a cidade porque a cidade materialmente velha. Nesse pe-rodo, as cidades envelhecem muito mais depressa, exatamente porque a tecnologia no se cansa de criar novas solues. E no mundo da competitividade, a morte social das formas materiais e sociais se precipita com uma velocidade nunca alcanada; isto , as cidades se tornam envelhecidas com muita rapidez, a tal ponto que se pode dizer que hoje o terreno de eleio para difuso do grande capital no a cidade, o campo. O campo, por conseguinte, torna-se o lugar da racionalidade. E as cidades no aceitam completamente a racionalidade.

    Essa a chave, creio, da discusso da pobreza. Por qu? Porque a cidade de onde, de um lado, as indstrias fogem (e fogem porque podem se instalar em outra parte, conduzindo os empregos), de outro lado, as cidades recriam a sua economia e se tornam mais fortes, como o caso de So Paulo. A partir do fato de ser uma metrpo-le informacional, mas que concentra os em-pregos diretivos, em um nmero reduzido de pessoas, abre-se um vasto campo para uma enorme quantidade de emprego que se situa exatamente nas partes envelhecidas das cidades. Se a cidade fosse toda ela nova, no haveria lugar para os pobres. S h porque ela se tornou envelhecida e, por conseguin-te, no utilizvel pelas atividades hegemni-cas. So as atividades no-hegemnicas ou hegemonizadas que vo se instalar nessa parte velha, ou melhor, envelhecida. No di-go velha, mas envelhecida.

    Se bem que esse envelhecimento mo-ral. Se bem que ele depende da poltica, no da tcnica. O que envelhece a cidade no a tcnica, a poltica, isto , a maneira como a cidade utilizada. E essa utilizao da cidade no depende apenas da globalizao, porque a globalizao s entra nos pases pela mo dos governos nacionais. Nunca o Estado foi to necessrio para realizar a diviso inter-nacional do trabalho como hoje, porque os vetores fundamentais da globalizao no tm forma de se exercer plenamente, exceto pela informao e se o Estado lhe abre as portas atravs de acordos freqentemente esprios, realizados fora do pas, mas que tm repercusses dentro do pas, entre elas a produo da pobreza. Isso tambm vli-do para o Primeiro Mundo.

    Todos os tipos de capital podem se ins-talar na cidade. Todos os tipos de trabalho

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    tambm se instalam na cidade. E por isso que a cidade resiste globalizao. O campo no pode resistir. A cidade no tem outra forma, no tem outro remdio, se no o de resistir globalizao. E a vale a pena at agradecer aos generais, que governaram, porque a produo de pobres que eles co-mearam tornou-se um dado fundamental dessa descoberta possvel do futuro na cida-de, isto , a presena de imigrantes.

    O imigrante no tem hbitos, ele traz hbitos que no se adaptam realidade. Ele obrigado a pensar, e ns outros que somos velhos moradores urbanos estamos acostumados cidade; por conseguinte, o nosso pensamento sobre eIa freqente-mente pobre.

    No sei se o IBGE j decidiu suprimir aquela classificao, curiosssima, dos imi-grantes que tinham mais de dez anos, dos imigrantes que tinham menos de dez anos, como se fossem estpidos. Porque imigrante era estpido... No! O imigrante, o pobre, que descobre a cidade, porque ele obriga-do a conviver com ela segundo normas que estabelecem todos os dias. Enquanto que ns outros, das classes mdias, das classes abastadas, estabelecemos normas perma-nentes, que comeam inclusive na maneira como nossos bairros so organizados.

    Ento, o que eu queria dizer : se, de um lado, ns temos esse autoritarismo da globalizao, essa indeciso de governos centrais de instalar uma democracia no pas, essa no-aceitao do debate, que prprio do homem poltico, de um pas on-de muito rala a vontade de produzir um projeto nacional, a sorte que haja pobres. Sorte nossa, de todos ns. Num mundo on-de a informao pode se tornar comunica-o: a comunicao vem de baixo pra cima,

    a informao que vem de cima pra baixo. A informao, ela transporta os vetores da racionalidade, do pragmatismo, ela exclui a emoo e, por conseguinte, ela retarda a produo das idias; enquanto que a comu-nicao resulta das temporalidades diversas, mltiplas, que marcam a existncia de cada um de ns. Quanto mais diversas as tem-poralidades prticas dos indivduos, quanto mais diferentes eles forem, tanto maior a riqueza da produo de idias sobre a vida num lugar.

    Ora, e a h uma enorme vantagem pa-ra a cidade de Terceiro Mundo em relao cidade de Primeiro Mundo. Por vrias ra-zes. Uma dessas razes que as distncias entre as pessoas muito maior, em toda na-tureza, a distncia econmica e, sobretudo, a distncia cultural, que vem da impossibi-lidade de ser moderno. Essa impossibilida-de de ser moderno constitui um trunfo na produo do desconhecimento orientado ao futuro.

    Para terminar... (eu no posso mais desenvolver essa idia porque o meu tempo se esgota), mas eu tenho que dizer uma coi-sa: um equvoco querer definir um mundo a partir do princpio da realidade. Esse equ-voco, ele sempre existiu, e vou explicar por que. O mundo se define como realidade e possibilidade. Se eu no vejo o mundo co-mo realidade e como possibilidade ao mes-mo tempo, eu no estou me libertando do reino da necessidade. O reino da liberdade s possvel quando eu juntar a definio das duas coisas. Isso muito mais necess-rio hoje porque chegamos ao primeiro mo-mento da histria da civilizao tcnica no qual as tcnicas podem ser outra coisa alm de dominadores do homem. No primeiro momento, por enquanto, no so, porque

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    a organizao para a qual elas esto traba-lhando no permite. Mas elas esto a para permitir, para ensejar essa possibilidade, uma libertao do homem.

    Um exemplo: a indstria aeronutica. Na indstria aeronutica, todos so arte-sos. Quer dizer, a relao do homem com a mquina, do piloto com o avio, ou do indi-vduo que est na torre de comando, uma relao direta com a mquina que ele coman-da, no momento preciso. Muito diferente do que acontecia no mundo industrial. S que para realizar, num pas de pobres, para tor-nar factveis as enormes possibilidades que o mundo oferece, o melhor lugar a cidade, porque nela todos esto juntos. E o fato de estarem juntos cria um novo patamar, quer dizer, uma transformao quase ideolgica do homem urbano, a partir dessas situaes de cara a cara, dessa convivialidade fora-da, e que produtora de conflitos, mas que obriga a uma discusso cotidiana a respeito do que presente e do que futuro. a uti-lizao das possibilidades existentes que ns temos que conhecer para poder fazer delas outra coisa, para torn-las factveis. E antes de torn-las factveis, preciso produzir as idias.

    um equvoco fazer o que se est fa-zendo hoje. Essa condenao de idias, que so praticamente proibidas. H praticamen-te uma proibio de pensar, neste mundo de hoje. H um pensamento subordinado, e temos que romper com essa suposta exi-gncia dos que comandam o mundo. Ora, a primeira coisa pensar, repensar a me-trpole, repens-la a partir do mundo como ele , do mundo como ele pode ser, como ele poder ser, como ele ser. H rebeldia da metrpole em aceitar a globalizao, e se mostra em 40, 60, 20 mil casos concretos.

    Parece-me que fundamental, se ns que-remos construir um sistema de pensamento que seja suscetvel de se tornar um sistema de ao.

    Eu peo desculpas por j ter passado um minuto do tempo que me foi dado, e fi-co disposio para perguntas.

    Debates

    Nos debates, foram ressaltadas a proprie-dade da abordagem, a preciso da anlise e a validade dos questionamentos quanto perversidade da globalizao. Mais que per-guntas, os debatedores firmaram posies, algumas das quais foram respondidas ou criticadas posteriormente pelo palestrante.

    Retorna-se, ento, a palavra ao pales-trante, em seus comentrios aos debatedo-res, buscando resgatar a fala destes, s quais o Professor Milton Santos faz referncia.

    Professor Milton Santos

    Bom, eu peo mais do que dez minutos, porque do contrrio no posso responder. Comeo dizendo o seguinte: a luz me alum-brou. Essa a palavra que ns usamos no Nordeste. Eu tenho medo de que tenha tam-bm queimado meu crebro [risos]. Porque eu no entendi certas questes. Nas minhas viagens pela Amrica Latina, s no Mxico pediram para eu traduzir. Tenho a impres-so de que o Mrio Kriegger no entendeu o meu portugus. E eu tenho medo de no ter entendido seu espanhol. Ento, a minha interveno pode padecer dessa coisa.

    Eu no disse em nenhum momento que o Estado era forte. Seria uma estupidez. Eu

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    no posso ser acusado de tal estupidez. O que eu disse que ele era necessrio. E mos-trei por que. E ele , sobretudo, necessrio porque o produtor da geografia do mun-do contemporneo. Quer dizer, o mercado deixa ao Estado ainda a produo da geo-grafia o Estado ou o que est por cima do Estado.

    No caso, por exemplo, da reorganiza-o territorial da Espanha e de Portugal, em grande medida financiada por um governo supranacional, essa questo da renda m-dia, eu acho que a gente deveria analisar. Se a gente toma como ponto de partida o espao, o territrio, com a carga de cincia, tecnologia que prpria do territrio mo-dernizado, na Argentina, no Brasil, na Ve-nezuela, na Colmbia, no Mxico, para no falar de outros pases, a renda mdia maior no est na grande cidade e no pode estar. Porque as cidades que so criadas a partir da modernizao agrcola tm uma deman-da de classe mdia. Se a gente estudar o que se passa nesses pases todos, que foi o que eu fiz, a gente v que h uma atrao maior dos pobres pelas grandes cidades, enquanto que as classes mdias, letradas, no estou dizendo cultas, vo cidade mdia do inte-rior, como exigncia da globalizao. Exata-mente! Eles vm da globalizao, que exige que se gaste mais dinheiro ainda com as universidades. Quando se fala nas elevadas propores de gastos com a Universidade, faz-se o uso indevido das estatsticas. Por-que o que se devia dizer que no Brasil no se pagam impostos. Ento fica muito eleva-do o percentual de recursos que se destina Universidade. Mas como que ns vamos construir um pas sem um ente capaz de pensar, de escolher realmente entre circuns-tncias cuja apreciao difcil?

    Prazer em rev-lo, Jordi Borja. mui-to grato a um professor rever um antigo aluno, sobretudo quando ele chega aos p-ramos que alcanou, mas, sobretudo, por-que ele trouxe um dado fundamental para o nosso debate. Quando falava l na Sorbone, quando voc era aluno, estvamos cansa-dos: vamos introduzir no estudo da cidade outros parmetros, que no o economicis-mo. O economicismo leva a dois impasses. O primeiro impasse o da subservincia ao mandamento tcnico. Isto , a imposio ao reino da necessidade. E o segundo que o economicismo acaba por dar um srio valor aos nmeros e s sries estatsticas. Ora, eu no sei o que fazer com as sries estatsti-cas. O que que eu fao? O que eu fao com as sries estatsticas enfeitar o meu texto.

    Quando eu sugeri trs momentos da produo da pobreza, para mostrar que no se pode comparar um com o outro. Por conseguinte, dizer agora que tem gente menos pobre do que antes, o que que eu estou dizendo? Nada! Mas estou enfeitando com uma srie estatstica, que parece legiti-mar o meu dito, quando na realidade aque-le mesmo nmero tem um valor diferente em cada momento histrico. Esse momento histrico tem que ver com as formas poss-veis dessa co-presena, dessa convivialidade, dessa produo do vertical e do horizontal.

    Eu acho que por a que a gente deve-ria reexaminar a questo do territrio. O que o setor vertical, portador do pragmtico, portador do vetor da modernidade, porta-dor da ordem cuja obedincia indispen-svel; e o horizontal, que o indivduo no seu tamanho, na sua grandeza, na sua fora, na sua capacidade de futuro, junto com ou-tros, produzindo com isso o que Jordi Borja acaba de falar. Que, sobretudo, possvel,

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    atravs de coisas que no tinham o mesmo valor no perodo histrico anterior, como a imagem, que tem esse poder agregativo. A produo da nova Barcelona a produo de uma imagem que tem um papel econmico fundamental, como tem sobre as pequenas e grandes cidades, como tem neste perodo da globalizao, e que pode ser explorado do ponto de vista do planejamento. Como vocs fizeram, criando a imagem, evidente-mente que no s a imagem, produzindo os objetos tcnicos indispensveis realizao, de um lado, do que vertical, mas, do outro lado, do que horizontal, a cultura. Por-que, chegando a Barcelona, cada qual sabe quanto vai pagar por aquela distribuio de cultura, que o Jordi Borja ampliou na cidade quando ajudava a dirigi-Ia.

    Eu vou me referir a Cndido Malta. Eu apreciei tambm as sugestes do meu cole-ga, amigo e companheiro por vrios lugares, o Cndido Malta. O tempo curto, eu vou ser respeitoso da vontade de almoo que parece ser dominante. S tem um problema que, alis, me foi causado pelo Dr. Krieger. Olha, os mercados regionais, eles conduzem a aumentar a globalizao. Ento, eles no so soluo para a globalizao. Eles so um instrumento. Eles fazem parte do processo. Ento temos que ir para outro lugar. Isso uma coisa. A outra coisa , quando o Malta fala do aspecto positivo do neoliberalismo, eu vou redargir perguntando se no um sistema. um sistema, um sistema que fun ciona. Ento eu prefiro trabalhar com um sistema, em vez de trabalhar com a sua ma nifestao.

    E essa resposta vlida para Janice, que parte de premissa filosfica, que exa-tamente a que eu no quero utilizar. A ps-modernidade uma grande palavra, uma v

    palavra. Porque ela leva a um tratamento adjetivo da realidade. Eu prefiro um subs-tantivo, eu quero tratar a ps-modernidade como um perodo histrico, que eu tenho que ver como um sistema temporal, isto , onde um certo nmero de aes, em siste-ma, podem dar-se sobre um certo nmero de objetos que tambm existem em sistema. Tenho que estudar, se eu quero conhecer a totalidade da questo. Se no, eu vou ficar trabalhando com pedacinhos e elogiando os autores desses pedacinhos. No me interes-sa isso.

    Ora, a dra. Janice no est aqui para ou-vir a resposta. Tambm no vou dar. Eu vou deixar, e ela vai ter que ler os meus livros agora, e est terminado. Muito obrigado!

    Palavras finais

    Num mundo onde tudo complexo, cada vez que eu busco simplificar, e decido ex-primir pela simplificao, estou falhando no meu dever de explicar o detalhe, dizia Cndido. No sei se ele disse essa palavra, que eu penso que foi dita tambm por v-rios poetas, inclusive Schiller. A partir de minha idade, a gente pode ser um pouqui-nho pedante. Ento, Deus o detalhe, e sem detalhe o pensamento no explicitado de maneira a ser eficaz.

    A produo e reproduo das metfo-ras que ns ouvimos, a quantidade de me-tforas em todas as reunies a que vamos so embelezadoras do texto, mas no so instrutivas, no tm eficcia poltica.

    A eficcia poltica da idia o fato de que ela representativa do real e pode ser utilizada para rever o real, porque o real

  • o futuro das megacidades: dualidade entre o poder e a pobreza

    cadernos metrpole 19 pp. 15-25 10 sem. 2008

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    no existe, o que existe a minha idia, e a minha idia que formula o real.

    Reunies como esta me ensinam que a grande virtude do intelectual saber estar s. a nica coisa que nos cabe. Pouco im-porta o aplauso, alis, o aplauso freqen-temente perigoso. Ficar s a forma de ganhar a fora, de se manter ntegro e de multiplicar o esforo para entender.

    Sei que a mdia pode ser interessante, porque o alimento do homem de faculda-de no estou falando do intelectual a citao, a reproduo do que ele escreve ou diz. Mas esse warning indispensvel. E por isso que o intelectual tambm no assina manifestos. O intelectual tem a sua

    idia, ele no vai fazer acordo para assinar manifestos. Ele tem que ficar sozinho mes-mo, que a minha posio irrecorrvel.

    Dito isso, eu s posso agradecer por ter estado aqui. Porque ouvi tanta coisa interes-sante, tantas experincias ilustres, aprendi tanto, e creio ter aprendido a escrever, em-bora no o tenha feito ainda. Prometo faz-lo, que o meu dever. A nao j gastou muito para me formar, ento eu penso que o pagamento dessa dvida s pode ser fei-to assim. E agradeo aos que organizaram esta reunio, porque permitiram o cotejo de idias to interessantes e que podem ser frteis, e o que eu sinceramente desejo que elas sejam.