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A FEITICEIRA Jules Michelet INTRODUÇÃO Sprenger diz (antes de 1500): "Deve-se dizer a heresia das feiticeiras, e não dos feiticeiros; estes têm pouca importância". E um outro autor, sob o reinado de Luís XIII: "Para um feiticeiro, existem dez mil feiticeiras". "A Natureza as fez feiticeiras." - É o gênio próprio à mulher e seu temperamento. Ela nasceu Fada. Pela volta regular da exaltação, ela é Sibila. Pelo amor, ela é Mágica. Pela sua fineza, sua malícia (muitas vezes fantástica e benfazeja), ela é Feiticeira, e faz a sorte ou, pelo menos, adormece, engana os males. Todos os povos primitivos tiveram um mesmo princípio; nós os vemos através das Viagens. O homem caça e combate. A mulher imagina, sonha; ela é mãe dos sonhos e dos deuses. Ela é vidente em certos dias; ela tem a asa infinita do desejo e do sonho. Para melhor contar o tempo, ela observa o céu. Mas a terra não tem menos o seu coração. Seus olhos se baixam para as flores amorosas, ela mesma uma flor, e aprende a conhecê-las intimamente. Como mulher, ela lhes pergunta como curar aqueles que ama. Singelo e comovedor começo das religiões e das ciências. Depois, tudo se dividirá; ver- se-á o homem especial, jogral, astrólogo ou profeta, nigromante, sacerdote, médico. Mas a princípio a mulher é tudo. Uma religião forte e viva, como o foi o paganismo grego, começa com a sibila e termina com a feiticeira. A primeira, formosa donzela, o embalou em plena luz do dia e lhe deu encanto e esplendor. Mais tarde, abatido, enfermo, nas sombras da Idade Média, nos landes e nos bosques, ele foi protegido pela feiticeira, que com sua piedade o alimentou, fê-lo viver. Assim, para as religiões, a mulher é mãe, terna protetora e nutriz fiel. Os deuses são como os homens: nascem e morrem em seu seio. Mas quanto lhe custa sua fidelidade! Reinos, magos da Pérsia, encantadora Circe! Sublime Circe! Que tem sido de vós? E que bárbara transformação! Aquela que do trono do Oriente ensinou as virtudes das plantas e a viagem das estrelas; aquela que, ao trípode de Delfos, iluminada pelo deus da Luz, dizia orações ao mundo de joelhos - é essa, mil anos depois, que é caçada como uma besta selvagem, perseguida pelos campos, desonrada, apedrejada, colocada nas chamas da fogueira! Mas o clero não tem muitas fogueiras, nem o povo bastante injúrias, o menino muitas pedras para atirar contra a infortunada. O poeta (também um menino) atira-lhe outra pedra, mais cruel ainda para uma mulher. Ele supõe, gratuitamente, que ela sempre fora feia e velha. A palavra "feiticeira" imagina-se as horrorosas velhas de Macbeth. Mas os cruéis processos a que se submeteram ensinam o contrário: muitas morreram precisamente por que eram jovens e belas.

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A FEITICEIRA

Jules Michelet

INTRODUÇÃO

Sprenger diz (antes de 1500): "Deve-se dizer a heresia das feiticeiras, e não dos feiticeiros; estes têm pouca importância". E um outro autor, sob o reinado de Luís XIII: "Para um feiticeiro, existem dez mil feiticeiras".

"A Natureza as fez feiticeiras." - É o gênio próprio à mulher e seu temperamento. Ela nasceu Fada. Pela volta regular da exaltação, ela é Sibila. Pelo amor, ela é Mágica. Pela sua fineza, sua malícia (muitas vezes fantástica e benfazeja), ela é Feiticeira, e faz a sorte ou, pelo menos, adormece, engana os males.

Todos os povos primitivos tiveram um mesmo princípio; nós os vemos através das Viagens. O homem caça e combate. A mulher imagina, sonha; ela é mãe dos sonhos e dos deuses. Ela é vidente em certos dias; ela tem a asa infinita do desejo e do sonho. Para melhor contar o tempo, ela observa o céu. Mas a terra não tem menos o seu coração. Seus olhos se baixam para as flores amorosas, ela mesma uma flor, e aprende a conhecê-las intimamente. Como mulher, ela lhes pergunta como curar aqueles que ama.

Singelo e comovedor começo das religiões e das ciências. Depois, tudo se dividirá; ver-se-á o homem especial, jogral, astrólogo ou profeta, nigromante, sacerdote, médico. Mas a princípio a mulher é tudo.

Uma religião forte e viva, como o foi o paganismo grego, começa com a sibila e termina com a feiticeira. A primeira, formosa donzela, o embalou em plena luz do dia e lhe deu encanto e esplendor. Mais tarde, abatido, enfermo, nas sombras da Idade Média, nos landes e nos bosques, ele foi protegido pela feiticeira, que com sua piedade o alimentou, fê-lo viver. Assim, para as religiões, a mulher é mãe, terna protetora e nutriz fiel. Os deuses são como os homens: nascem e morrem em seu seio.

Mas quanto lhe custa sua fidelidade! Reinos, magos da Pérsia, encantadora Circe! Sublime Circe! Que tem sido de vós? E que bárbara transformação! Aquela que do trono do Oriente ensinou as virtudes das plantas e a viagem das estrelas; aquela que, ao trípode de Delfos, iluminada pelo deus da Luz, dizia orações ao mundo de joelhos - é essa, mil anos depois, que é caçada como uma besta selvagem, perseguida pelos campos, desonrada, apedrejada, colocada nas chamas da fogueira!

Mas o clero não tem muitas fogueiras, nem o povo bastante injúrias, o menino muitas pedras para atirar contra a infortunada. O poeta (também um menino) atira-lhe outra pedra, mais cruel ainda para uma mulher. Ele supõe, gratuitamente, que ela sempre fora feia e velha. A palavra "feiticeira" imagina-se as horrorosas velhas de Macbeth. Mas os cruéis processos a que se submeteram ensinam o contrário: muitas morreram precisamente por que eram jovens e belas.

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A sibila predizia a sorte; a feiticeira, o fato. É a grande, a verdadeira diferença. Ela evoca, conjura, opera, por assim dizer, o destino. Não é a antiga Cassandra que via tão bem o futuro, o deplorava, o aguardava. A feiticeira acredita neste futuro. Mais que Circe, mais que Medéia, ela tem à mão a varinha da virtude natural, e por guia e irmã a Natureza. Ela já tem as feições do Prometeu moderno. Nela começa a indústria, sobretudo a indústria soberana que cura, que conforta o homem. Ao contrário de Sibila, que parecia olhar a aurora, ela olha o poente, mas justamente o poente sóbrio dá, muito antes que a aurora (como acontece aos picos dos Alpes), uma alvorada antecipada do dia.

O sacerdote entrevê bem que o perigo, o inimigo, a rivalidade temível está naquela que ele finge desprezar, está na sacerdotisa da Natureza. Dos deuses antigos, ela concebe os deuses. Ao lado do Satã do passado, pode-se ver despontar nela o Satã do futuro.

O único médico do povo, durante mil anos, foi a feiticeira. Os imperadores, os reis, os papas, os mais ricos barões tinham alguns médicos em Salerne; os mouros, os judeus, mais a massa de todo o Estado, e pode-se dizer do mundo, não consultavam senão a Saga ou Sage-femme. Se ela não conseguia curar, era então injuriada, chamam-na de feiticeira. Mas geralmente, por um respeito mesclado de temor, chamavam-na de "boa mulher" ou “bela mulher" (bella donna), o mesmo nome que se dava à fada.

Sucedeu-lhe o que aconteceu à sua planta favorita, a beladona, e aos outros venenos salutares que ela empregava e que foram o antídoto dos grandes males da Idade Média. O menino, a gente ignorante, maldisse essas sombrias flores sem conhecê-las. Essas flores espantavam com suas cores duvidosas. E ante elas ele recua, se afasta. São, não obstante, as consoladoras (solenáceas), que, discretamente administradas, têm curado tantas vezes, têm adormecido tantos males.

Encontrareis as feiticeiras nos lugares mais sinistros, isolados, mal afamados, nos casebres, nas ruínas. Todavia, esta é uma semelhança que têm com aquela que as espe-rava. Onde poderia ela ter vivido senão nos landes selvagens, a infortunada a quem perseguíamos de tal modo, a maldita, a proscrita, a envenenadora que curava, salvava; a noiva do Diabo e do Mal encarnado, que tem feito tanto bem, nas palavras de um grande médico do Renascimento. Quando Paracelso, em Bâle, em 1527, queimou toda a medicina, declarou que não sabia nada senão o que havia aprendido com as feiticeiras.

Isto valia uma recompensa. Elas a tinham. Pagavam-nas com torturas, com fogueiras. Criavam-se suplícios para elas; idealizavam muitas dores. Eram julgadas em massa e condenadas apenas por uma palavra. Jamais houve prodigalidade de vidas humanas igual a esta. Sem falar da Espanha, terra clássica das fogueiras, onde o mouro e o judeu jamais andavam sem a feiticeira, queimaram-se sete mil em Treves; não sei quanto em Tollouse; em Gênova, quinhentas em três meses (1513); oitocentas em Wurtzburg, em apenas um dia; mil e quinhentas em Bamberg. Fernando II, o Devoto, cruel imperador da Guerra dos Trinta Anos, foi obrigado a vigiar os bons bispos. Eles teriam, ao que parece, a boa intenção de purificar pelo fogo todos os seus bons vassalos. Encontro na, lista de Wurtzburg um feiticeiro de onze anos, que estava na escola e uma feiticeira de quinze; em Bayonne, duas de dezessete, condenavelmente bonitas.

Notai que, em certas épocas, o ódio mata quem ele quer. A inveja das mulheres, as concupiscências dos homens apoderam-se de uma arma tão cômoda. Fulana é rica? ... Feiticeira. Beltrana é formosa?... Feiticeira.

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Nós veremos Murgui, uma pequena mendiga, que, com esta pedra terrível, marcou com sua morte a fronte de uma grande dama, muito bela, a castelã de Lancinena.

As acusadas, sempre que podem, antecipam a tortura e se matam. Remy, o excelente juiz de Lorraine, que queimou oitocentas feiticeiras, leva vantagem neste terror. "Minha justiça é tão boa", diz ele, "que dezesseis, que foram julgadas outro dia, não quiseram esperar - e se enforcaram antes."

No longo caminho da minha história, nos trinta anos que já tenho consagrado a ela, esta horrível literatura de feitiçaria me tem passado, repassado frequentemente pelas mãos. Tenho examinado, em primeiro lugar, os manuais de inquisição, a estupidez dos dominicanos (Fouets, Marteaus, Fourmilières, Fustigations, Lanternes, etc., são os títulos de seus livros). Depois, tenho lido os parlamentares, os juízes leigos que sucedem àqueles monges, os desprezam e, no entanto, não são menos idiotas. Sobre isto, digo alguma coisa em outro local. Aqui, uma só observação, a de que de 1300 a 1600, e ainda depois, a justiça é a mesma. Salvo um pequeno entreato no Parlamento de Paris, é sempre e por toda parte a mesma ferocidade de bobagens. Os talentos não servem aqui para nada. O inteligente De Lancre, magistrado bordelês do reinado de Henrique IV, grande avançado em política, rebaixa-se ao nível de um Nider, de um Sprenger, dos monges imbecis do século XV, ao começar a tratar de feitiçaria.

A gente é apanhada de espanto ao ver os tempos tão diversos, os homens de cultura diferente não poderem avançar mais um passo. Depois, compreende-se muito bem por que uns e outros foram detidos, diremos mais, cegados, irremediavelmente embriagados e bestificados pelo veneno de seu princípio. Este princípio é o dogma da injustiça fundamental: "Todos perdidos por um só, não só punidos, mas dignos de sê-lo, depravados e pervertidos de antemão, mortos perante Deus antes mesmo de nascer. O menino que mama é já um condenado".

Quem disse isto? Todos, até Bossuet. Um médico importante de Roma, Spina, Maitre du Sacre Palais, formula cristalinamente esta pergunta: "Por que Deus permite a morte dos inocentes? Ele o faz justamente. Porque se eles não morrem por causa dos pecados que cometem, morrem todos os dias pelo pecado original". (De strigibus. pág. 9.)

Desta enormidade derivam duas coisas, em justiça e em lógica. O juiz está sempre seguro de seu acerto; o acusado é sempre culpado, e, se ele se defende, é mais culpado ainda. A justiça não tem que suar muito, quebrar a cabeça para distinguir o verdadeiro do falso. Em tudo, parte-se de uma opinião preconcebida. O lógico, o escolástico não tem que fazer a análise da alma humana, de dar conta das nuanças por que ela passa, de sua comple-xidade, de suas lutas interiores e de seus conflitos. Ele não tem necessidade, como nós, de explicar como essa alma, gradualmente, pôde tornar-se viciosa. Oh! Como ele riria se pudesse compreender as sutilezas, as investigações deste estudo. E com que graça abanaria as soberbas orelhas, com as quais a sua cabeça é adornada.

Quando se trata sobretudo do pacto diabólico, pacto pavoroso, onde pela pequena vantagem de um dia 'Se vende a alma às torturas eternas’, nós procuraríamos buscar o caminho maldito, a espantosa escala de infelicidades e crimes que a terão feito descer até este ponto. Nosso homem sabe bem a que se ater. Para ele, a alma e o diabo nasceram um para o outro, se bem que, na primeira tentativa, por um capricho, por um desejo vago, por uma idéia fantástica, lança-se de um golpe a alma a esta horrível extremidade.

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Não vejo tampouco que os nossos modernos tenham indagado muito da cronologia moral da feitiçaria. Eles se apegam nas relações da Idade Média com a Antiguidade. Relações reais, mas falhas, e de pouca importância. Nem a velha mágica, nem a vidente celta ou germânica são ainda a verdadeira feiticeira. As inocentes Sabasies (de Bacchus Sabasius), do pequeno sabá rural que perdurou na Idade Média, não são de modo algum a Missa Negra do século XIV, o grande desafio solene a Jesus. Essas terríveis concepções não chegarão para a longa fileira da tradição. Elas brotarão do horror dos tempos.

De quando data a feiticeira? Respondo sem hesitar: "Dos tempos do desespero".

Do desespero profundo que fez o mundo da Igreja. E digo ainda sem hesitar: "A feiticeira é seu crime".

Não me detenho de forma alguma às suas melífluas explicações que fingem atenuar o horror. Fraca, ágil era a criatura, branda às tentações. Ela foi induzida ao mal pela concupiscência. Ah! Na miséria, a fome desses tempos não é o que podia perturbar até o furor diabólico. Se a mulher amorosa, ciumenta e abandonada, se o menino expulso pela madrasta, se a mãe golpeada por seu filho (velhas personagens de lendas), se eles têm podido ser tentados, invocar o mau espírito, isso tudo nada tem a ver com a feiticeira. De que estas pobres criaturas chamem a Satã, não se conclui que ele as aceite. Eles estão longe ainda, bem longe de serem maduras para ele. Elas não têm o ódio de Deus.

Para compreender melhor tudo isso, lede os registros execráveis que nos restam da Inquisição, não os extratos de Liorente, de Lamothe-Langon, etc., mas o que temos dos registros originais de Toulouse. Lede na sua vulgaridade, na sua sombria secura, tão pavorosamente selvagem. Ao fim de quaisquer páginas, 'Sentimo-nos enregelados’. Um frio cruel nos toma. A morte, a morte, a morte, é isso que sentimos em cada linha. Encontramo-nos já em um ataúde ou em uma pequena choça de pedra dentro de um muro bolorento. Os mais felizes são aqueles que morrem. O horror é a vida no in-pace. É esta palavra que volta sem cessar, como um sino de abominação que tocamos e retocamos, para desolar os mortos vivos.

Enquanto mecânica de destruição, de achatamento, cruel prensa para quebrar a alma. A cada volta do parafuso, já quase sem respirar, ela salta da máquina e cai num mundo desconhecido.

À sua aparição, a feiticeira não tem pai, nem mãe, nem filhos, nem esposo, nem família. É um monstro, um aerólito, vindo não se sabe de onde. Quem teria a ousadia, grande Deus, de aproximar-se dela?

Onde se encontra ela? Em lugares impossíveis, na floresta de espinhos, no lande, onde o espinho, o cardo emaranhado não permitem passagem. À noite, sob qualquer dólmen. Se 'Se a encontra aí, ela está isolada pelo horror comum; ela tem à volta como que um círculo de fogo’.

Quem a faz chorar então? É uma mulher ainda. Até mesmo esta vida terrível oprime e põe em tensão sua força de mulher, a eletricidade feminina. Ei-la dotada de duas faculdades:

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O iluminismo da loucura lúcida, que, segundo seus graus, é poesia, segunda vista, penetração perfurante, a palavra ingênua e astuciosa, a faculdade sobretudo de crer-se em todas as suas mentiras. Dom ignorado do feiticeiro homem. Com ele nada teria começado.

Desta faculdade deriva uma outra, o sublime poder da concepção solitária, a partenogênese que os nossos fisiólogos reconhecem agora nas fêmeas de numerosas espécies para a fecundidade dos corpos, e que não é menos segura para as concepções do espírito.

Sozinha, ela concebe e pare. O quê? Um ser igual a ela, tão semelhante a ela que não se pode distinguir.

Filho do ódio, concebido do amor. Pois que sem o amor não cremos em nada. A mãe, assustada com sua própria concepção, sente-se tão bem, se compraz de tal modo neste ídolo, que o coloca a todo instante sobre o altar, honra-o, imola-o, e se dá como vítima e viva hóstia. Ela mesma muitas vezes o dirá ao seu juiz: "Não temo mais que uma coisa: sofrer muito pouco por ele". (Lancre.).

Sabeis vós a primeira manifestação da criança? É uma espantosa gargalhada. Não há criatura mais alegre sobre sua livre campina, longe dos calabouços da Espanha e dos claustros de Toulouse. Seu in-pace não é nada menos que o mundo inteiro. Ele vai, vem, passeia. Sua é a floresta sem limites. Seu o lande de longínquos horizontes. Sua a terra toda. A feiticeira o disse ternamente: "Meu Robin", do nome daquele valente proscrito, o alegre Robin Hood, que vive sob a verde folhagem. Gosta de chamá-lo também de Verdelet, Folibois, Vertbois. São os lugares favoritos do travesso. Apenas ouve um silvo e já começa a fazer as suas travessuras.

O que espanta é que do primeiro golpe a feiticeira criou verdadeiramente um ser. Ele tem todos os semblantes da realidade. Tem-se visto, ouvido esse ser. E qualquer um pode descrevê-lo.

Olhai, ao contrário, a impotência da Igreja para engendrar. Como seus anjos são pálidos, diáfanos.

Mesmo nos demônios que tomou aos rabinos, sórdida legião de resmungões, ela procurou um realismo de terror, mas não encontrou. Estas figuras são grotescas, mais que terríveis; elas são flutuantes e cômicas.

Vede, agora, Satã: este sai do seio em chamas da feiticeira, vivo, armado e todo brandido.

Apesar do medo que sentíamos dele, deve-se confessar que, sem ele, morreríamos de monotonia. Dos flagelos ‘Que ferem esses tempos, o aborrecimento é ainda o pior...’ Quando ensaiamos fazer falar as Três Pessoas ao mesmo tempo, como Milton teve essa idéia, o aborrecimento alcança o sublime. De uma a outra, é um sim eterno. Dos anjos aos santos, o mesmo sim. Aqueles, em suas lendas, muito gentis no começo, têm todos um ar de parentesco insípido, entre eles, e com Jesus. Todos primos. Deus nos guarda de viver em um país onde todo rosto humano, de semelhança desoladora, tenha aquela igualdade adocicada do convento ou da sacristia.

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Ao contrário, este alegre, o filho da feiticeira, sabe dar a réplica. Ele responde a Jesus. Eu estou seguro de que ele não se aborrece, acabrunhado como está da insipidez de seus santos.

Aqueles bem-amados, os filhos da casa, mexem- se pouco, contemplam, agradam. Eles esperam esperando, seguros de que eles terão sua parte de escolhidos. O pouco de atividade que têm se concentra no círculo apertado da imitação (esta palavra é toda a Idade Média). Ele, o bastardo maldito, cuja parte não é senão o castigo, não se cansa de esperar. E ele vai procurar, sem jamais descansar. Ele se agita, da terra ao céu. Ele é muito curioso, escava, penetra, sonda e mete o nariz em tudo. Da Consummatum est ele se ri, dizendo sempre: "Mais longe. Para a frente".

De resto, ele não está desgostoso. Toma todas as repulsas; o que o céu atira, ele recolhe. Por exemplo, a Igreja atirou a Natureza, como impura e suspeita. Satã a agarra e a adorna. Bem mais, ele a explora e a utiliza, faz brotar dela as artes, aceitando o título com que se quer desonrá-lo: Príncipe do Mundo.

Temos dito com imprudência: "Infelizes os que riem". Isso é dar a Satã a parte mais bela, o monopólio do riso, e proclamá-lo como um ser alegre, jovial, ilivertido. Dizemos mais, necessário. Porque o riso é, uma função essencial de nossa natureza. Como levar a vida se não podemos rir, pelo menos entre nossas dores?

A Igreja, que não vê na vida mais que uma provação, se guarda de prolongá-la. Sua medicina é a resignação, a espera, a esperança da morte. Vasto campo para Satã. Eis a medicina, o curandeiro dos vivos; bem mais, o consolador, pois tem a bondade de nos mostrar os mortos, de evocar as sombras de nossos amados defuntos.

Outra coisa que a Igreja repele é a lógica, a livre razão, e outra coisa ainda que o outro avidamente agarra.

A Igreja havia construído a cal e a cimento um pequeno in-pace, estreito, com a abóbada bem baixa, iluminada apenas por uma fresta. A isto chamou Escola. Aqui se soltavam alguns tosquiados e se lhes dizia: "Estão livres". Todos ali viriam a ser aleijados. Trezentos, quatrocentos anos confirmam a paralisia. E o ponto de Abailard é justamente o de Occam.

Esta coisa graciosa é que vai buscar ali a origem do Renascimento. Ele teve lugar, mas como? Pela empresa satânica dos que furaram a abóbada, pelos esforços dos condenados que queriam ver o céu. Ele teve lugar também longe da escola e das letras; na escola silvestre, onde Satã ensinou à feiticeira e ao pastor.

Ensino arriscado, mas que, mesmo com seus riscos, exaltava o amor curioso, o desejo desenfreado de ver e saber. Lá começarão as más ciências: a farmácia com seus venenos, a execrável anatomia. O pastor; espião das estrelas, observando o céu, trouxe de lá suas receitas culpadas, seus ensaios sobre os animais. A feiticeira trouxe do cemitério vizinho um corpo roubado, e pela primeira vez, ao risco da fogueira, pôde-se contemplar esse milagre de Deus, “que se escondia parvamente, em lugar de compreendê-lo" (como diz bem M. Serres).

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O único médico admitido ali por Satã, Paracelso, viu uma terceira personagem que às vezes se deslizava na assembléia sinistra e que representava a cirurgia. Era o cirurgião daqueles tempos de bondade, o carrasco, o homem de mão ousada, que manejava oportunamente o ferro, que quebrava os ossos e sabia juntar novamente, que matava e às vezes salvava.

A universidade criminal da feiticeira, do pastor, do carrasco, em seus ensaios que foram um sacrilégio, deu em alento a uma outra, forçou o seu concorrente a estudar, porque todos queriam viver. Tudo havia sido da feiticeira; e dava-se sempre as costas ao médico. A Igreja teve que sofrer e tolerar esses crimes e confessar que há bons venenos (Grillandus). Forçada e constrangida, ela permite as dissecações públicas. Em 1306, o italiano Mondino abre e disseca uma mulher; e outra em 1315. Revelação sagrada, descobrimento de um mundo (maior que o de Cristóvão Colombo). Os idiotas se estremecem, uivam. E os sábios prostram-se de joelhos.

Com tais vitórias, Satã está muito seguro de viver. E jamais a Igreja, por si só, poderia tê-lo destruído. As fogueiras não faziam nada, senão certa política.

Dividiu-se habilmente o reino de Satã: contra sua filha, sua esposa, a feiticeira, se armou seu filho, a medicina.

A Igreja, que odiava profundamente o médico, não lhe deixou fundar o monopólio de sua arte com a extinção da feiticeira, declarando no século XIV que se a mulher ousa curar sem haver estudado, ela é realmente uma feiticeira e deve morrer.

Mas como estudaria ela publicamente? Imaginai a cena grotesca, horrível, que teria lugar se a pobre selvagem se arriscasse a entrar para a Escola. Que festa, que gaiatice. Aos fogos de Santa Joana, queimavam-se os gatos encadeados. Que espetáculo divertido não teria sido a feiticeira substituindo o gato.

Ver-se-á mais adiante a decadência de Satã. Lamentável narrativa. Nós o veremos pacífico, transformado em um bom velho. Nós o roubamos, o pisamos, até o ponto em que das duas máscaras que tinha no sabá, a mais suja é tomada por Tartufo.

Seu espírito está em toda parte. Mas ele mesmo, sua pessoa, perdeu-o todo ao perder a feiticeira. Os feiticeiros não foram senão maçadores.

Agora que se precipitou de tal modo o seu fim, sabe-se bem o que aconteceu? Não seria ele um ator necessário, uma peça indispensável da grande máquina religiosa, hoje um pouco desarranjada? Todo organismo que funciona bem é duplo, tem dois lados. A vida não se realiza de outro modo. É um certo balanceamento de duas forças, opostas, simétricas, mas diferentes; a inferior faz contrapeso, responde à outra. A superior se impacienta e quer suprimi-la. Sem razão.

Quando Colbert (1672) destitui Satã sem muita consideração, proibindo aos juízes de receber os processos de feitiçaria, o tenaz Parlamento normando, na sua boa lógica normanda, mostra o alcance perigoso de uma tal decisão. O Diabo não é menos que um dogma que depende de todos os demais. Tocar o eterno vencido não é tocar o eterno vencedor? Duvidar dos atos do primeiro é a mesma coisa que duvidar dos atos do

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segundo, dos milagres que fez precisamente para combater o Diabo. As colunas do céu têm seu pé no abismo. O insensato que move esta base infernal pode gretar o Paraíso.

Colbert, porém, não escuta. Tem tanto que fazer... Mas o Diabo talvez ouviu, e isto o consola muito. Nos pequenos trabalhos em que agora ganha a vida (o espiritismo ou mesas giratórias) ele se resigna, acreditando que pelo menos ele não morre só.

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A passagem que começa em “Olhai, ai contrário, a impotência da Igreja...” não constava da edição original. (N. do A.)

Livro Primeiro

Capítulo um

A MORTE DOS DEUSES

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Certos autores afirmam que algum tempo antes do triunfo do cristianismo, uma voz misteriosa se fazia ouvir nas costas do mar Egeu, dizendo: "O grande Pã está morto”.

O antigo deus da Natureza morrera. Grande alegria. Acreditava-se que, estando morta a Natureza, também o estaria a tentação. Atormentada há tanto tempo pela tempestade, finalmente a alma humana iria repousar.

Tratar-se-ia simplesmente do fim do antigo culto, de sua queda, do eclipse das velhas formas religiosas? Absolutamente. Consultando-se os primeiros documentos cristãos, nota-se a cada linha a esperança de que a Natureza vá desaparecer. A vida cessa: finalmente, aproxima-se o fim do mundo. Assim fora concebido pelos deuses da vida, que durante muito tempo prolongaram a ilusão. Tudo se desmoronava, se despedaçava no abismo. O Todo se transformava em Nada: "O grande Pã está morto".

O fato de os deuses morrerem não era novidade. Inclusive, a base de inúmeros cultos antigos é exatamente a idéia da morte dos deuses. Osíris morreu, Adônis também. É bem verdade que para ressuscitar depois. No próprio teatro – cujos dramas eram sempre representados em comemoração às festas dos deuses; Ésquilo, falando através de Prometeu, deixa perfeitamente claro que um dia eles deverão morrer. De que forma? Submissos aos Titãs, vencidos pelas antigas forças da Natureza.

Aqui, entretanto, trata-se de outra coisa. Tanto nos menores detalhes como em sua totalidade, tanto no passado como no futuro, os primeiros cristãos sempre amaldiçoaram a Natureza. Eles a condenavam inteiramente, acreditando que o mal estivesse nela encarnado, chegando mesmo a ver o demônio em uma simples flor. Mais cedo ou mais tarde, surgem então os anjos que outrora arruinaram as cidades do mar Morto, que dominaram, dobraram a vaidade humana como se dobra um véu, livrando enfim os santos de sua longa tentação.

O Evangelho diz: "O dia se aproxima". Os padres dizem: "É chegada a hora". A queda do império e a invasão dos bárbaros deram esperança a Santo Agostinho de que ele fosse continuar sua vida na Cidade de Deus.

Mas como esse mundo é duro de morrer! Com que obstinação ele luta para viver! Como Ezequiel, ele procura conseguir um prazo, uma maneira de fazer com que girem mais lentamente os ponteiros do grande relógio do tempo. Muito bem, seja. Até o ano 1000. Mas, após, nem um dia passará!

Será que é verdade, como foi tantas vezes enfatizado, que os velhos deuses morreriam aborrecidos consigo mesmos, cansados de viver? Que, desencorajados, eles iriam pedir sua própria demissão? Que o cristianismo não tinha feito mais do que pesar sobre seus próprios ombros?

Esses deuses são mostrados em Roma, são mostrados no Capitólio, onde jamais seriam admitidos senão pela pressuposição de sua morte, quer dizer, acabando com o poder local que possuíam, apagando suas raízes geográficas, fazendo com que cessassem seus domínios específicos sobre tais nações. Para recebê-los, é bem verdade, Roma os destituíra de todo o poder, através de uma operação que visava obscurecê-los. Esses grandes deuses se transformaram, na vida oficial, em meros funcionários do império romano. Em sua decadência, essa aristocracia do Olimpo não conseguiu levar consigo a

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infinidade de deuses provincianos, os inúmeros deuses ainda em vigor na imensidão dos campos, dos bosques, das montanhas, das fontes, intimamente ligados à vida das províncias. Esses deuses, habitantes do coração das florestas, senhores das águas sonoras e profundas, não puderam ser expulsos.

E quem diz isso? A própria Igreja. Ela cai em enorme contradição. Na verdade, ao proclamar sua morte, ela se revolta contra suas vidas. Através dos séculos, pela ameaçadora voz de seus concílios, ela os intima a morrer... Ora, ora! Então eles ainda continuam vivos?

"Eles são uns demônios..." Bem, então eles estão vivos. Não se conseguindo êxito, deixa-se que a ingenuidade do povo os enfeite e se encarregue de disfarçá-los. Pela tradição, eles são batizados, se incorporam à Igreja. Mas, pelo menos, eles são convertidos? Ainda não. Sorrateiramente eles subsistem em sua própria natureza pagã.

Onde estão eles? No deserto, na chameça, na floresta? Sim, mas principalmente dentro das próprias casas. Ali, nos íntimos recantos do lar, a mulher os guarda, os esconde até no próprio leito. Eles possuem ali o que existe de melhor no mundo, melhor mesmo que o próprio templo: o lar.

Jamais houve revolução tão violenta quanto a de Teodósio. Entretanto, não existe na Antiguidade qualquer sinal de proibição a algum culto. Em sua heróica pureza, os persas adoradores do fogo podem ter ultrajado os deuses da época, mas os deixaram subsistir. Eles favoreceram muito aos judeus, protegendo-os e empregando-os. Filha da luz, a Grécia zombava desses deuses tenebrosos, esses pançudos Cabiras. Todavia, tolerou-os, se bem que os tenha adotado como trabalhadores, que os tenha transformado em Vulcano. Em sua majestade, Roma acolheu não somente os etruscos, mas também os rústicos deuses do velho camponês italiano. Ela só perseguia os druidas, por julgá-los perigosos à segurança do império.

Vitorioso, o cristianismo acreditava poder matar o inimigo. Através da proibição da lógica, e pelo extermínio material dos filósofos, que foram massacrados em Valens, o cristianismo cortou as ligações da escola, evacuou o templo, destruiu seus símbolos. A nova ordem estabelecida poderia ser favorável à família, desde que o pai se portasse como São José, desde que a mãe se mostrasse tão sublime educadora como aquela que criara moralmente o Menino Jesus. Fecundo caminho, logo abandonado pela ambição de uma grande e estéril pureza.

Dessa forma, o cristianismo penetrou pelo solitário caminho do celibato, combatido em vão pelas leis dos imperadores, e acabou lançando-se à vida monástica.

Mas o homem estava sozinho no deserto? Não. O demônio o acompanhava, com todas as suas tentações. Fora em vão: era preciso distrair as sociedades existentes nas cidades solitárias. Temos conhecimento dessas sombrias vilas de monges estabelecidas em Tebaida. Sabemos que espírito turbulento, selvagem, encorajou suas sangrentas invasões à Alexandria. Eles se diziam perturbados, possuídos pelo demônio, e na verdade não mentiam.

Um enorme vazio se fez no mundo. Quem o ocupava? O demônio, diziam os cristãos, sempre e em todos os lugares o demônio: “Ubique daemon”.

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Como todos os povos, também a Grécia tivera seus casos de pessoas endemoniadas, possuídas pelos espíritos. Nessas narrativas, entretanto, a semelhança era somente exterior, pois aqui não se tratava de qualquer espírito, mas do filho das trevas e do abismo, de um ideal de perversão. Desde então, vê-se vagar por todos os lados essas pobres figuras que se odeiam, que têm horror de si mesmas. Com efeito, pensai bem como deve ser terrível sentir-se ao mesmo tempo duas pessoas, ter fé nesse outro, esse hóspede cruel que vai e vem, anda junto conosco, nos faz vagar por onde ele bem quer, pelos desertos, pelos abismos. A magreza resulta de uma crescente debilidade. E quanto mais este miserável corpo é fraco, mais agitado pelo demônio. A mulher, sobretudo, é habitada, perturbada por esses tiranos, que a revestem de uma aura infernal, atormentam seu coração, conduzindo-a ao pecado, ao desespero.

E, infelizmente, não somos somente nós. É toda a natureza que se torna demoníaca. E se o Diabo já existe em uma flor, o que não dizer de uma floresta sombria! A luz que se acreditava ser tão pura é agora habitada pelos seres da noite. O céu se enche de demônios... que blasfêmia! Em que se transformou a estrela da manhã, cuja cintilação mais de uma vez iluminou Sócrates, Arquimedes, Platão? Em um diabo. No grande Lúcifer. No crepúsculo, é a diabólica Vênus que nos leva em tentação através de sua doce e voluptuosa luminosidade.

Não me espanta que essa sociedade tenha-se tornado terrível, furiosa. Indignada por se sentir tão fraca em face dos demônios, ela os perseguia por toda parte. Primeiro nos templos, nos altares do antigo culto, depois nos sacrifícios pagãos, pois o hábito poderia fazer com que ela se reunisse em torno dos antigos deuses. E porque a família? Porque o império é um império de monges.

Deuses antigos, procurai vossos sepulcros. Deuses do amor, da vida, da luz, cessai de brilhar! Colocai o capuz do monge. Virgens, sede religiosas! Esposas, abandonai vossos esposos, ou - se permanecerem em casa, transformai-vos para eles em frias irmãs.

Mas tudo isso será possível? Quem terá um sopro tão forte capaz de apagar de um só golpe a ardente lâmpada divina? Esta temerária tentativa de piedade, fazer milagres estranhos, monstruosos. Culpados, tremei!

Várias vezes, durante a Idade Média, voltará à baila a sombria história da Noiva de Corinto. Contada inicialmente por Phlégon, o alforriado, iremos reencontrá-la no século XII, no século XVI, sempre significando a profunda censura, a indomável reclamação da Natureza.

Um jovem de Atenas vai a Corinto, à casa daquele que lhe prometera a filha. Ele continuava sendo pagão e não sabia que a família para a qual iria entrar acabara de se tornar cristã. Ele chega bem tarde a Corinto. Todos já 'Se haviam recolhido, menos a mãe de sua noiva, que o recebe, lhe dá de comer e depois o leva a dormir. Ele morre de cansaço. Quando começa a ressonar, uma figura entra no quarto: é uma jovem, toda coberta por um véu branco, com uma faixa negra e dourada circundando a fronte. Ela o vê e, surpresa, levanta sua branca mão:

"Será que já sou tão estrangeira nesta casa?... Ai de mim, pobre reclusa... Mas tenho vergonha, partirei. Repousa".

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"Fica, bela jovem", diz o rapaz, "aqui estão Ceres, Baco, e, com tua presença, também o Amor! Não tenhas medo, não fiques assim tão pálida!"

"Ah, quem me dera gozar ainda momentos de alegria! Mas em virtude de promessa feita por minha mãe doente, a juventude e a vida foram-me para sempre condenadas. Os deuses me abandonaram. Agora, os sacrifícios são feitos somente com vítimas humanas.”

"Mas, como, 'Serás tu? Tu, minha noiva amada, que me foi prometida desde a infância? Os votos de nossos pais nos ligam para sempre, sob a bênção do céu! Ó virgem! Sê minha!"

“Não, meu amigo. Não possuirás a mim, mas à minha irmã mais nova. Se eu chorar em minha fria prisão, tu, nos braços dela, pensa em mim, em mim que me consumo e não penso senão em ti; em mim, que a terra vai recobrir."

“Não, eu reconheço este ardor: é a chama do matrimônio. Tu virás comigo à casa de meu pai. Fica, minha bem-amada."

Como presente de núpcias, ele lhe oferece um cálice dourado. Ela lhe oferta sua corrente, mas, em lugar do cálice, prefere uma mecha dos cabelos do jovem.

É a hora dos espíritos. Ela sorve com seus lábios pálidos o vinho cor de sangue. Em seguida, ele avidamente esvazia seu cálice. Embora com o coração fraquejando, ela ainda resiste. Mas ele se desespera e se lança chorando sobre o leito. Ela se aproxima e diz:

"Ah, como tua dor me maltrata! Mas se tu me tocas, como me sentirás gelada! Branca como a neve, fria como gelo, ai de mim, eis como é tua noiva...”

"Vem", diz o jovem, "eu te reanimarei! Quando tu abandonares o túmulo..."

Suspiros e beijos são trocados.

"Não vês como ardo?"

O amor os aproxima, os une. As lágrimas se misturam ao prazer. Ela bebe, excitada, o fogo em sua boca. O sangue congelado transforma-se em ardor amoroso, mas o coração não bate mais em seu peito.

Entretanto, a mãe espreitava, escutava tudo. Doces promessas, gemidos de dor e volúpia.

"Silêncio!", diz a jovem, "o galo está cantando! Até amanhã, à noite!"

Depois, adeuses, beijos e mais beijos.

A mãe entra, indignada, e depara com a filha. O jovem procura protegê-la, abraçando-a. Mas ela se liberta de seus braços, levanta-se e se dirige à mãe.

“Ó minha mãe, tu invejas minha felicidade, tu expulsaste para aquele lugar sem vida. Não estás satisfeita em me ter enrolado na mortalha e tão depressa me conduzido ao túmulo? Mas uma força levantou a pedra. Belas palavras vossos padres resmungaram sobre minha

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tumba! Que fazem o sal e a água, onde arde a juventude? A terra não esfria o amor! Vós prometestes; eu venho reclamar meu amado..."

"Infelizmente, meu amigo, é preciso que morras. Tu desfalecerás, tu esfriarás aqui. Tenho comigo teus cabelos, amanhã eles estarão brancos...”

"Mãe, uma derradeira súplica! Abre meu negro cárcere, faze uma fogueira, e que os amantes tenham o repouso das chamas. Que cintilem as faíscas e se avermelhe a cinza! Nós caminharemos para junto de nossos antigos deuses."

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[1] Deus dos vulcões, do fogo, das indústrias, das artes metalúrgicas. (N.do T.)

[2] Deserto egípcio, refúgio dos primeiros eremitas cristãos (N. do T.)

[3] “O demônio está solto.” (N.do T.)

[4] Suprimi aqui um termo chocante. Goethe, embora tão elegante em seu estilo, não teve tanto cuidado. Ele prejudicou a maravilhosa história, profanando o grego com uma horrível idéia eslava. No momento em que os noivos choram, ele transforma a jovem em um vampiro. Ela vem porque tem sede de sangue, para sugar seu coração. E ele lhe faz dizer esta coisa revoltante: «Ele secou, passarei a outros: a jovem raça sucumbirá ao meu furor".

A Idade Média conservava grotescamente essa tradição para que as pessoas tivessem medo da diabólica Vênus. Um jovem colocou, imprudentemente, um anel no dedo da estátua da deusa. Ela aperta o dedo com a aliança, e a guarda como noiva. À noite, ela surge no leito do jovem para reclamar seus direitos. Para se desembaraçar da diabólica esposa, ele se exorciza. Encontraremos a mesma história nas canções medievais, embora confusamente aplicada à Virgem. Lutero também retoma a antiga história, mas de uma maneira bastante grosseira, fazendo-o sentir o odor do cadáver.

O espanhol DeI Rio a transporta da Grécia para a Bélgica. A noiva morre pouco antes das núpcias. Ouvem-se toques fúnebres. O noivo, desesperado, erra pelos campos. Ele ouve um gemido. É ela mesma, que vaga pela charneca...

"Tu não vês quem me conduz?”', diz ela.

" Não.”

Mas ele a segura fortemente, não a deixando escapar, e a leva com ele. Aí, a história se arrisca a tornar-se muito tocante. 'Dei Rio, esse frio pesquisador, desce o pano:

“Levantado o véu, encontra-se uma bucha na pele de um cadáver".

Ainda que tão pouco sensível, este julgamento nos restitui, contudo, a primitiva história.

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Após ele, a insensibilidade dos outros narradores fez de tudo com a história. Mas ela é inútil, porque nosso tempo começa e a noiva triunfou. A Natureza enterrada retorna, não mais furtivamente, mas agora na qualidade de dona da casa. (N. do A.)

Capítulo dois

POR QUE A IDADE MÉDIA SE DESESPEROU

"Sede como os recém-nascidos. Sede ainda como as crianças, pela inocência do coração, pela paz, pelo esquecimento das disputas, serenos, sob a mão de Jesus."

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Este é o amável conselho que a Igreja dá a este mundo tão violento, logo após sua grande queda. Ou então diz: "Vulcões, cinzas, lavas, reverdejai. Campos queimados, cobri-vos de flores".

Uma coisa prometera, é verdade, a paz que recomeça: todas as escolas haviam acabado, a estrada da lógica fora abandonada. Um método infinitamente simples dispensava o raciocínio, e dava a todos o cômodo hábito de se copiar sempre. Se o credo era obscuro, a vida estava toda traçada em função da lenda. A primeira e a última palavra eram sempre a mesma: "Imitação".

"lmitai, tudo irá bem. Repeti e copiai." Mas estava ali o caminho da verdadeira infância, que vivifica o coração do homem, que o faz reencontrar suas fecundas origens? A priori, não o vejo neste mundo, que faz da infância mero atributo da velhice, da debilidade, da impotência. O que é esta literatura quando comparada aos sublimes monumentos dos gregos e dos judeus? Mesmo diante do gênio romano. Na verdade, ela é exatamente igual à decadência literária que teve lugar na índia. do bramanismo ao budismo: palavras rebuscadas e sem sentido, após os textos da mais elevada inspiração. Os livros copiam os livros, as igrejas copiam as igrejas. E, não podendo copiar, acabam roubando umas das outras. Os mármores saqueados em Ravena ornam Aix-la-Chapelle. Assim é toda a sociedade. Tanto o bispo que manda em uma cidade quanto o bárbaro que manda em outra, todos copiam os magistrados romanos. Nossos monges, que acreditávamos tão originais, não fazem mais em seus mosteiros do que "recolocar em vigor a casa de campo", como bem o disse Chateaubriand. Eles não tinham a mínima idéia de fundar uma nova sociedade, nem de renovar a antiga. Meros imitadores dos monges orientais, eles queriam antes de tudo que seus servidores fossem eles próprios simples monges lavradores, um povo estéril, enfim. Mas apesar deles, a família se restabeleceu e restabeleceu o mundo.

Quando se vê que esses anciões vão envelhecendo tão depressa, quando, em um século, passamos do sábio monge São Benedito ao pedantismo de Benedito d'Ania-ne, sentimos que essas pessoas desconheciam completamente a grande criação popular que florescia sobre as ruínas: naturalmente refiro-me à vida dos santos. Os monges a escreviam, o povo a representava. Esta jovem árvore podia lançar suas flores e frutos através das ruínas romanas convertidas em mosteiros, mas não o fez. Ela possuía uma profunda raiz no solo, o povo a semeou ali e a família a cultivou e todos dela se utilizaram: homens, mulheres e crianças. A vida precária e inquieta daqueles tempos violentos tornara essas pobres tribos imaginativas, crédulas de seus próprios sonhos, que as confortavam. Estranhos sonhos, povoados de milagres, de encantadoras e extravagantes loucuras.

Essas famílias, isoladas na floresta, nas montanhas (como ainda se vê no Tirol, nos Alpes), ao descerem, uma vez por semana, não se esqueciam de suas alucinações. Um menino viu isto, uma mulher sonhou aquilo. Uma divindade completamente nova surgia. A história corria pelos campos como um lamento, grosseiramente rimada. Ela era cantada à noite, sob os carvalhos, próximo às fontes. O padre, que vinha aos domingos rezar a missa na capela do bosque, encontrava esse estranho canto já em todas as bocas e dizia: "Apesar de tudo, é uma bela história, edificante... Ela honra a Igreja. "Vox populi, vox Dei”. Mas como eles a aprenderam? Eram mostradas então testemunhas irrecusáveis: a árvore, a pedra, que viram a aparição, o milagre. O que dizer de tudo isso?

Transportada à abadia, a lenda encontrará um monge desocupado, e que nada sabe além de escrever, um curioso que acredita em tudo, em todas essas coisas maravilhosas. Ele escreve a história, enfeitando-a com sua retórica vulgar, mudando um pouco seu sentido. Mas finalmente ela está consignada e consagrada,

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é lida no refeitório e logo na igreja. Copiada, recopiada, acrescida de ornamentos muitas vezes grotescos, ela irá de século em século, até que finalmente tome seu lugar entre as Lendas Douradas.

Quando ainda hoje se lêem essas histórias, quando ouvimos essas singelas melodias em que os camponeses puseram corpo e alma, não se pode desconhecer sua esperança, e a gente se compadece de seus destinos.

Eles haviam tomado ao pé da letra o conselho da Igreja: "Sede como os recém-nascidos". Só que o aplicaram da maneira como pelo menos era concebido pelo pensamento primitivo. Da mesma maneira que o cristianismo tinha medo, odiava a Natureza, os camponeses a amavam, acreditavam que ela fosse inocente, chegavam mesmo a santificá-la, misturando-a com a lenda.

Os animais que a Bíblia severamente denominou de "chifrudos", que o monge escorraçava, temendo ali encontrar demônios, participam dessas belas histórias da maneira mais tocante, como, por exemplo, a corça que aquece e consola Genevieve da Bélgica.

Mesmo fora das lendas, na existência comum, os humildes amigos do lar, os corajosos ajudantes do trabalho cotidiano, permanecem na estima do homem. Eles conquistam seu direito. Eles têm suas festas. Se na imensa bondade de Deus há lugar para os humildes, se parece existir uma certa piedade, por que - diz o povo dos campos -, por que meu asno não poderá entrar na igreja? Sem dúvida, ele tem seus defeitos, mas fora disso não vejo nada que o possa impedir. Ele é um rude trabalhador, tem a cabeça dura, é indócil, obstinado... enfim, é igitalzinho a mim...

Surgem daí festas admiráveis, as mais belas da Idade Média... dos Inocentes, dos Loucos, do Asno. É o próprio povo que na Festa do Asno arrasta a imagem do animal e a apresenta diante do altar, disforme, ridículo, humilhado! É um espetáculo emocionante. Conduzido por Baal, ele entra solenemente para testemunhar, entre a Sibila e Virgílio.[1]

Se outrora ele se revoltava contra Baal era porque ele via diante dele o gáudio da antiga lei. Mas agora a lei se extinguira, e o mundo da graça parecia abrir totalmente suas portas para os humildes, para os simples. Assim acreditava o povo, em sua simplicidade. Vem daí a bela canção onde se fala ao asno, como se se estivesse falando consigo mesmo:

De joelhos, e diga Amém!

Bem alimentado de erva e feno,

Abandone as velhas coisas e siga!

..............................................................

o novo destrói o velho!

A verdade faz a sombra fugir,

A luz expulsa a noite![2]

Que audácia! Então era isso que na verdade vocês queriam, seus inconformados, quando se lhes dizia para serem como as crianças? Oferecia-se leite. Vocês bebiam

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vinho. Suavemente, vocês eram puxados pela rédea através dos estreitos caminhos. Afáveis, tímidos, vocês hesitavam em avançar. E de repente, o freio é quebrado... apressadamente, vocês os atravessam de um só salto.

Oh, que imprudência cometemos ao deixar que tivessem seus santos, que aparamentassem o altar, ornando-os, enchendo-o de flores! Eis que agora conse-guimos entender. E o que vemos é a antiga heresia condenada pela Igreja, a inocência da natureza, e, Deus me perdoe, uma nova heresia que está se formando: a independência do homem.

Escutai e obedecei:

É proibido inventar, criar. Nada de lendas, de novos santos. Já possuímos o bastante. É proibido inovar o culto com novos cantos. A inspiração está proibida. Os mártires que forem descobertos deverão ficar em seus sepulcros, à espera de serem reconhecidos pela Igreja. É proibido aos clérigos e aos monges darem aos colonos, aos servos, a tonsura que os liberta.

Eis o espírito estreito, pusilânime, da Igreja Carolíngia. Ela se contradiz, se nega, e na verdade ela está dizendo aos fiéis: "Sede velhos".

Que bela mentira! Então é isso? E nos disseram para sermos jovens! Ah, o padre não representa mais o povo! Inicia-se, então, um imenso divórcio, um enorme abismo que os separa. Príncipe e senhor, o padre cantará em uma capela de ouro na língua dos senhores do grande império, que não mais existe. Nós, essa pobre e desordenada multidão, perdemos a língua do homem, a única que é entendida por Deus. Só nos resta agora mugir e balir, junto com o inocente companheiro que não nos desdenha, que no inverno nos aquece no estábulo e nos cobre com sua lã. Viveremos com os mudos e também seremos mudos.

Na verdade, temos pouca necessidade de ir à Igreja. Entretanto, ela não nos considera desonerados. Ela exige que se volte a escutar o que não mais entendemos.

Desde então, um imenso e pesado nevoeiro envolveu este mundo, por um longo e tenebroso período de quase mil anos. Durante dez séculos inteiros um torpor des-conhecido das gerações anteriores dominou a Idade Média, inclusive considerando-se os últimos tempos, colocando-a em um estado letárgico, entre a vigília e o sono, sob o reinado de um fenômeno desolador, intolerável: a tediosa convulsão que ficou conhecida como o grande cochilo.

Que o infatigável sino soe às horas costumeiras, nós bocejamos. Que o fanhoso canto continue a ser ouvido no velho latim, nós bocejamos. Tudo está previsto. Nada de novo se espera deste mundo. As coisas serão sempre as mesmas. A certeza do aborrecimento de amanhã e a perspectiva dos dias, dos anos de aborrecimento que irão se seguir nos fazem perder o gosto pela vida. Do cérebro ao estômago, do estômago à boca, a automática e fatal convulsão vai irremediavelmente apertando o cerco. Terrível doença que a devota Bretanha reconhece, é bem verdade que a atribuindo à malícia do diabo. Ele se esconde no bosque, dizem os camponeses bretões, e canta suas canções vespertinas e todos os outros ofícios para aquele que passa, conduzindo seus animais, fazendo-o bocejar até que morra. [3]

Ser velho é ser fraco. Quando somos ameaçados pelos sarracenos, pelos normandos, o que nos acontecerá se o povo permanecer velho? Carlos Magno chora, a Igreja chora. Ela reconhece que as relíquias dos santos não conseguem

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proteger o altar contra esses bárbaros endemoniados. Não será preciso libertar agora as forças do jovem e indócil gigante que se queria paralisar? Eis o contraditório movimento que floresceu durante o século IX. O povo é contido e preparado para reagir. Nesse momento, acredita-se nele, clama-se por ele. Com sua ajuda, apressadamente, constroem-se barricadas, abrigos que irão deter os bárbaros e proteger os padres e os santos fugidos de suas igrejas.

Apesar de proibida pelo imperador, é construída uma torre na montanha e o fugitivo ali chega. "Pelo amor de Deus, recebei ao menos minha mulher e meus filhos. Eu acamparei com meus animais nos arredores." A torre lhe dá confiança e ele se sente forte. Ela o obriga, razão pela qual ele a defende e protege seu protetor.

Antigamente, os pequenos, famintos, se entregavam aos grandes como escravos. Mas agora é diferente: ele se entrega como vassalo, o que significa ser bravo e valente.

Ele se entrega e dessa forma se protege, mas ele se reserva, não renunciando a seus princípios. "Eu irei mais longe, a terra é grande. Como os outros, também eu posso construir minha torre lá embaixo... Se a defendi daqui de fora é sinal de que a possa defender estando lá dentro."

Esta é a nobre origem do mundo feudal. O homem da torre recebia os vassalos e lhes dizia: "Você poderá partir quando quiser; eu o ajudarei, se for preciso. De tal maneira que, se você atrapalhar, chegarei mesmo a descer de meu cavalo para ajudá-lo". Pelo menos, assim se procedia inicialmente.

Mas um dia, o que aconteceu? Será que minha vista se turvou? O senhor do vale cavalga por sua terra, delimitando-a por meio de marcos intransponíveis e até através de invisíveis limites. "O que está acontecendo? Não compreendo." É então que se diz que a propriedade está cercada. Através de portas e ferrolhos, o senhor a mantém fechada, assim na terra como no céu.

Mas é inacreditável! Em virtude de que direito esse vassalo (vale dizer, esse valente) será de agora em diante prisioneiro desses limites? Dir-se-á então que vassalo pode também significar escravo.

Da mesma forma, a palavra servo, que às vezes tem a conotação de servidor (muitas vezes um alto servidor, um conde ou um príncipe do império), significará para os fracos um escravo, um miserável que não tem onde cair.

Por este mísero motivo eles são caçados. Entretanto, lá embaixo, em sua terra, existe um homem que sustenta ser a terra livre, uma dádiva, um feudo do sol. Ele assenta-se sobre um dos marcos da propriedade, ajeita calmamente seu barrete, e vê passar o senhor, vê passar o imperador. "Segue teu caminho, imperador, passa. Tu estás protegido em teu cavalo e eu o estou ainda mais, assentado aqui, neste marco. Tu passarás, eu não, porque eu sou a Liberdade."

Mas eu não tenho coragem de dizer no que se transformou este homem. O ar ficou pesado à sua volta e ele tem cada vez mais dificuldade em respirar. Parece que ele está encantado. Ele não pode mais se mover, ele está como que paralisado. Seus animais também enfraquecem, como se estivessem amaldiçoados. Seus servidores morrem de fome, 'Sua terra não produz mais nada. Ela é saqueada pelos espíritos noturnos.

Entretanto, ele persiste: "Pobre homem que é rei em sua casa".

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Mas não se permite que ele permaneça ali. Ele é acusado e deve responder no tribunal do império. Ele vai, como um espectro do velho mundo, que ninguém mais conhece. "Quem é este?", perguntam os jovens. "Como, ele não é senhor nem servo? Mas então ele não é nada?"

"Quem sou eu? Eu sou aquele que construiu a primeira torre, aquele que vos defendeu, aquele que, deixando bravamente a torre, foi ao encontro dos pagãos normandos... Mais do que isso, eu represei as águas do rio para tomar a terra fértil. Como Deus, que a tirou das águas, eu criei a própria terra. Quem agora ousa expulsar-me dela?"

"Não, meu amigo", diz o vizinho, "tu não serás expulso. Tu cultivarás esta terra... mas, como tu não crês. .. Lembra-te, meu bom homem, com que pressa tu tomaste como esposa, há cinqüenta anos, a jovem serva de meu pai, Jacqueline ? .. Lembra-te do provérbio: "Quem cruza com minha galinha é meu galo". Tu estás em meu poleiro. Desce e lança fora a espada... De agora em diante tu és meu servo."

Não existe nada de invenção nesta terrível história. Várias vezes ela se repetiu na Idade Média. Oh, que cruel adaga o feriu! Eu a abreviei, suprimi várias coisas, por-que, cada vez que a recordamos, o mesmo aço, a mesma ponta aguda atravessa também o coração.

Um desses homens, sob tão grande ofensa, foi tomado de um tal furor que não encontrou uma única palavra para dizer. Este foi traído como Rolando. Todo o seu sangue subiu, chegando à garganta... Seus olhos arregalados, sua boca muda, sua figura terrivelmente expressiva fizeram com que toda a assembléia estremecesse... Eles recuaram... Mas ele estava morto... Suas veias haviam estourado... De suas artérias o rubro sangue espirrava exatamente na fonte de seus assassinos. [4]

A incerteza de sua condição, a terrível possibilidade de o homem livre tornar-se vassalo, o vassalo, servo, e o servo, escravo, foi o terror da Idade Média e a razão de seu desespero. Não existiam meios de escapar. Porque quem dava um passo em falso estava perdido. Ele era procurado como uma caça selvagem, feito escravo ou morto. A terra viscosa prende o pé, segura o caminhante. O ar contagioso o enfraquece pouco a pouco, tornando-o um semimorto, abobalhado, um animal, uma coisa que não vale um vintém.

De uma maneira geral, esses são os traços exteriores da miséria da Idade Média, que fizeram com que ela se entregasse ao Diabo. Vejamos agora o interior desses hábitos e pesquisemos seu âmago.

[1] É o ritual de Rouen. A Sibila era coroada, seguida dos judeus, dos infiéis, de Moisés, dos profetas, de Nabucodonosor, etc. Várias vezes através dos séculos a Igreja tentou proibir as grandes festas populares. Mas só o conseguiu com o advento do espírito moderno. (N. do A.)

[2] "Vetustatem novitas/ Umbram fugat claritas,/ Noctem lux eliminat." (N. do A.)

[3] Um ilustre bretão, um dos últimos homens da Idade Média, na inútil viagem que fez para tentar transformar o pensamento de Roma, recebeu ali incríveis ofertas.“O que tu desejas?", perguntou-lhe o papa.

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“Somente uma coisa: ser dispensado do breviário... Ele me faz morrer de tédio." (N. do A.)

[4] Tal fato aconteceu com o Conde d'Avesnes, quando sua terra foi declarada um simples feudo e ele um simples vassalo do Conde de Hainaut. (N. do A.)

Capítulo três

O PEQUENO DEMONIO DO LAR

Os primeiros séculos da Idade Média, quando foram criadas as lendas, assemelham-se a um sonho. Nos lares dos camponeses, todos submissos à Igreja, onde reinava uma doce calma (as lendas o testemunham), supunha-se, naturalmente, existir uma grande inocência. Ao que parece, era o reino do Bom Deus. Entretanto, as

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Penitências, onde são apontados os mais simples pecados, registram estranhas ocorrências, raras mesmo sob o reinado de Satã.

Os responsáveis por isso foram a total ignorância e a habitação em comum, que misturava os parentes mais próximos. Ao que parece, só vagamente eles conheciam nossa moral. A deles, apesar das proibições, assemelhava-se à dos patriarcas, à das classes privilegiadas da Antiguidade, que via como libertinagem o casamento com pessoas estranhas ao clã, só o permitindo entre as pessoas da própria família. Aliadas, as famílias formavam uma grande tribo. Não ousando espalhar suas habitações através dos desertos que os rodeavam, não cultivando além das cercanias de um palácio merovíngio ou de um mosteiro, eles se abrigavam todas as noites com seus animais como em uma imensa colméia. Surgem daí inconvenientes semelhantes ao do antigo ergostullum, local onde se juntavam os escravos para serem castigados. Várias dessas comunidades sobreviveram à Idade Média. O senhor pouco ligava para o que ali acontecia. Para ele, essa tribo era constituída por uma só família, uma massa humana "que se deita e se levanta junta, comendo do mesmo pão, na mesma vasilha".

O descaso era tanto que a mulher era bem pouco protegida. Ela era inferiorizada dentro da ascendência da família. Enquanto a Virgem - a mulher ideal se tornava cada vez mais forte através dos séculos, a mulher real, cotidiana, valia bem pouco para essa massa ignorante, essa mistura de homem e animal. Terrível fatalidade de um estado de coisas que só se transforma quando foram separadas as habitações, quando se tomou bastante coragem para se viver separadamente formando-se pequenos povoados, onde se podia cultivar um pouco mais longe as terras férteis, construindo-se as primeiras e toscas cabanas nas clareiras das florestas. A verdadeira família nasceu com o desmembramento do lar coletivo.

Ao construir seu ninho, o pássaro estava se construindo a si mesmo. A partir de então, eles não eram mais simples objetos, mas almas... A mulher nascera.

É um momento enternecedor: ei-la em sua casa. Enfim, a pobre criatura já pode ser pura e santa. Ela pode meditar sobre as coisas e sonhar enquanto tece, sozinha, o pensamento solto pela floresta. Enquanto o vento do inverno assovia lá fora, aqui dentro, nesta humilde cabana, em contrapartida, há silêncio. Ela possui certos recantos misteriosos onde a mulher deposita seus sonhos.

Ela agora possui alguma coisa. E se interessa por ela. A roca, a cama, a arca. É tudo, diz a velha canção[1]. A mesa é composta por um banco, ou duas toscas banquetas... pobres móveis! Mas a casa tem uma alma por mobília. O fogo a torna mais agradável, o ramo bento protege o leito, onde, às vezes, é também colocado um buquê de margaridas. Sentada em sua porta, a dama deste palácio tece, enquanto vigia algumas cabras.

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Não se é ainda rico o bastante para se possuir uma vaca, mas se Deus abençoar a casa isto ainda acontecerá. A floresta, algum alimento, abelhas nos bosques; eis a vida. O trigo ainda é pouco cultivado, não havendo o mínimo de segurança para uma colheita a longo prazo... Entretanto, esta vida humilde é mais tranqüila para a mulher, pois ela trabalha pouco. Cansa-se menos do que se cansará na época da grande agricultura. Ela tem mais tempo, também. Mas não a julguem pela grosseira literatura das canções de Natal, pelo riso abobalhado ou pela licenciosidade dos contos que serão feitos mais tarde. Ela é solitária, sem vizinhos. A malsinada vida das escuras vilas enclausuradas, a mútua espionagem, o miserável disse-me-disse, nada disto começou. Ainda não existem os velhos que vêm tentar as jovens à tardinha, quando escurece sobre a estreita rua, cochichando em seus ouvidos, dizendo que elas os fazem morrer de amor. Esta mulher não tem outros amigos, a não ser seus sonhos, nem outros pensamentos, a não ser seus animais ou as árvores da floresta.

Eles lhe falam. E nós sabemos sobre o quê. Eles despertam nela as histórias que lhes contava sua mãe e sua avó, histórias antigas que, durante os séculos, passaram de mulher para mulher. É a inocente lembrança dos velhos espíritos da província, a tocante religião da família, que na habitação comum, com sua barulhenta e confusa mistura, teve sem dúvida pouca força, mas que agora retoma e freqüenta assiduamente a solitária casa.

Misterioso e fascinante mundo habitado por fadas, duendes, propício à alma feminina. Desde que desapareceram as lendas dos santos, surgiu entre as mulheres esta lenda mais antiga e mais poética, que começa a compartilhar de suas vidas, ali estabelecendo seu secreto reinado. Ela é o único tesouro da mulher, que a guarda com carinho, pois também a fada é uma mulher que embeleza o fantástico espelho onde se mira, embevecida.

E quem eram as fadas? Pelo que se diz, elas foram outrora rainhas da Gália, bizarras, orgulhosas. Com a chegada de Cristo e dos apóstolos elas se tornaram insolentes, tratando-os com desprezo. Nessa época, na Bretanha, elas dançavam furiosamente, e foram condenadas a viver até o dia do juízo. Muitas foram reduzidas ao tamanho de um coelho, de um rato. Exemplo disso eram as kowrig-gwans (fadas anãs), que à noite atraíam as pessoas com suas danças encantadas ao redor dos velhos mosteiros. Ou, ainda, a bela Rainha Mab, que construiu uma carruagem real em uma casca de noz. Geralmente, elas eram voluntariosas, muitas vezes mal-humoradas. Mas como se alegrar, quando se tinha tão triste destino? Por menores que elas fossem, elas possuíam um coração, tinham necessidade de ser amadas. Boas ou más, elas habitavam sempre o mundo encantado da fantasia. Quando nascia uma criança, elas desciam pela chaminé, ofertando-lhe seus favores e traçando seu destino. Elas gostavam das boas tecelãs, e elas mesmas teciam divinamente. É comum a expressão: "Tecer como uma fada".

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Despidos dos ridículos ornamentos acrescentados mais tarde por seus derradeiros escribas, os contos de fada são o próprio coração do povo. Eles são o marco de uma época poética, situada entre o grosseiro comunismo da primitiva villa e a liberdade de um tempo em que uma burguesia nascente produziu nossas canções mais maliciosas.

Esses contos possuem uma parte histórica, onde freqüentemente são mencionadas as grandes privações (nos ogres, etc.). Mas quase sempre eles se situam em um plano bem mais fantástico do que a realidade histórica, voando ao lado do Pássaro azul. Sempre dentro de uma atmosfera de eterna poesia, preenchem nossa imaginação, sempre os mesmos, narrando a imutável história de amor.

O desejo do miserável de respirar, de repousar, de encontrar um tesouro que pusesse fim às suas misérias aqui retoma várias vezes. E quase sempre, por uma nobre aspiração, este tesouro é também uma alma, um tesouro de amor que adormece (A bela adormecida no bosque). Mas muitas vezes a encantadora figura acaba escondida sob uma máscara em virtude de fatal encantamento. Vem daí a tocante trilogia, o admirável crescendo de História de Rapunzel, Pele de Asno e A Bela e a Fera. Não se deixa de lado o amor. Em meio a esses terríveis perigos, ele consegue prosseguir, sempre em busca da beleza escondida. O último destes contos consegue alcançar uma aura sublime, e acredito que ninguém jamais o conseguiu ler sem chorar.

Uma paixão sincera, real, está ali contida: o amor infeliz, sem esperança, que muitas vezes a natureza cruel coloca entre pobres almas de condições diversas; a dor da camponesa de não poder tornar-se bela para ser amada pelo cavalheiro; os suspiros contidos do servo quando, ao longo do campo, vê passar em seu branco corcel, com a velocidade de um corisco, a bela e adorável castelã. É, como no Oriente, o melancólico idílio do amor impossível entre o rouxinol e a rosa. Entretanto, às vezes existe uma diferença: tanto o pássaro como a flor são belos, inclusive idênticos em suas belezas. Mas aqui o ser inferior humildemente se confessa: "Eu sou feio, eu sou um monstro!" Que dor!... Ao mesmo tempo, com mais firmeza que no Oriente, possuído por uma heróica vontade, por um imenso desejo, ele consegue livrar-se de sua terrível máscara e surge em toda a po-tencialidade de seu ser. Seu amor é tão grande, que ele consegue ser amado: o monstro se transforma em um belo jovem.

Existe em tudo isso uma atmosfera de infinita ternura. Esta alma encantada não pensa somente em si, ela se ocupa também em salvar toda a natureza e toda a sociedade. Todas as vítimas de então se transformam em seus protegidos: o menino desprezado por sua ma-drasta, o irmão mais novo maltratado pelo primogênito, etc. Ela estende sua compaixão até a dona do castelo, lamentando-se por ela estar nas mãos de tão feroz barão (Barba-Azul). Ela se comove com os animais e os consola por estarem ainda sob a forma de bestas. Isto passará, é preciso ter paciência. Um dia, suas almas cativas terão novamente asas, serão livres, serão amadas. Esta é a mensagem de

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Pele de asno e de outros contos semelhantes. Nota-se perfeitamente que ali existe um coração de mulher. O rude camponês é bastante duro com seus animais. Mas a mulher não os vê como bestas, e sim como crianças. Tudo é humano, tudo tem alma. Oh, amável encantamento! Humildemente, e se acreditando tão feia, ela oferece sua beleza e seu charme a toda a natureza.

Será que é tão rude essa pequena mulher do servo, cuja sonhadora imaginação se alimenta de tudo isso? Já disse que ela cuida da casa, tece enquanto vigia seus animais, vai à floresta apanhar lenha. Por enquanto, ela ainda não faz os trabalhos mais pesados, ela ainda não se transformou na rude camponesa que fará mais tarde a plantação do trigo. Da mesma forma, ela não se assemelha à burguesa pesadona e desocupada sobre a qual nossos avós fizeram tantos contos maliciosos. Ela é insegura, tímida, doce, e sente-se sob a proteção de Deus. Destacando-se entre as montanhas. Ela vê o negro e ameaçador castelo, de onde pode desabar sobre a casa uma infinidade de males. Ela crê em seu marido e o respeita. Embora servo lá fora, próximo dela ele é senhor. Ela lhe reserva as melhores coisas e não deixa que nada lhe falte. Ela é pequena e esbelta, como as santas das igrejas. A escassa amamentação daqueles tempos produzia criaturas delicadas, e nessas toscas casas a vida era frágil: existiam numerosos casos de mortalidade infantil. Estas pálidas rosas não possuíam mais do que suas próprias forças. É daí que surgirá mais tarde a dança epilética do século XIV. Entretanto, agora, no século XII, dois tipos de fraqueza habitam o corpo destas donzelas: à noite, o sonambulismo; durante o dia, o estado sonhador, a imaginação vaga e o choro fácil.

Esta mulher, embora inocente, tem, entretanto, como já dissemos, um segredo que ela jamais revela à Igreja.

Ela guarda em seu coração a lembrança, a compaixão pelos antigos deuses, agora prisioneiros de sua condição de espíritos [2]. Por serem espíritos, não vamos acreditar que fossem isentos de sofrimento. Habitando as pedras, os carvalhos, eles são bem infelizes durante o inverno. Eles ficam à espreita, dançando ao redor das casas. São vistos nos estábulos, aquecendo-se entre os animais. Não havendo mais objeto de adoração, nem vítimas para o sacrifício, eles às vezes congelam o leite. A dona de casa, econômica, não deixa o marido privado de sua cota, mas, diminui sua própria parte e, à noite, deixa um pouco de creme.

Exilados durante o dia, estes espíritos somente aparecem à noite, e sofrem terrivelmente com a ausência de claridade. À noite, ela se arrisca e, timidamente, com humildade, leva uma pequena tocha ao grande carvalho onde eles habitam, à misteriosa fonte cujo espelho, re-fletindo a chama, alegrará aquelas tristes criaturas.

Meu Deus, se os outros souberem! Seu marido é homem prudente e teme a Igreja. Certamente a espancará. O padre faz forte campanha contra eles, e os persegue por todos os lados. Bem que se poderia

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deixá-los habitar os carvalhos. Que mal eles poderiam fazer na floresta? Mas não: de concílio em concílio, eles são cada vez mais perseguidos. Algumas vezes, o padre chega a ir ao próprio carvalho e, através de orações e água benta, procura caçar esses espíritos.

Que seria deles, se não encontrassem nenhuma alma compadecida de seus sofrimentos? Mas ela existe, e os protege. Como boa cristã, ela lhes reserva um canto de seu coração. Somente a eles ela pode confiar os pequenos segredos de sua natureza, inocentes para a casta esposa em seu lar, mas que por isso mesmo certamente a Igreja irá reprovar. Eles são confidentes, são os confessores destes tocantes segredos da mulher. É Natal, mas ao mesmo tempo é também a antiga festa dos espíritos do norte, a festa da mais longa das noites.

Assim também, a vigília na noite de maio, quando a árvore se lamenta, como na fogueira de São João, a verdadeira festa da vida, das flores e dos jogos de amor. Aqueles que não têm filhos, sobretudo, têm o dever de amar estas festas, de acreditar nelas. Uma promessa à Virgem talvez não baste. Bem baixinho, ela se dirige a um velho gênio, um deus rústico adorado outrora, e que a igreja local teve a bondade de transformar em santo. Assim, o leito, o berço, os mais doces mistérios que habitam uma alma casta e amorosa, tudo isto é encontrado nos velhos deuses.

Os espíritos não são ingratos. Uma manhã, ela acorda e, sem que tenha feito nada, encontra tudo pronto em sua casa. Ela se sente perturbada e faz o sinal-da-cruz, mas não diz nada. Quando o homem sai, ela se interroga, mas em vão. É provável que seja um espírito. "Quem é ele? Como é? Ah, como gostaria de vê-lo! Mas não se diz que a gente morre quando vê um espírito?" Entretanto, o berço se move, balança sozinho... Ela se espanta e escuta uma voz baixa, doce, sussurrando dentro dela mesma: "Minha cara senhora, eu gosto de embalar vosso filho, porque também eu sou criança". Seu coração bate forte, mas logo se acalma. A inocência do menino absolve também esta alma, faz acreditar que ela seja boa, ao menos tolerada por Deus.

Desde então, já não se sente mais sozinha. Conhece bem aquela presença, e ele não se afasta mais dela. Ele se prende à barra de sua saia; ela escuta seu sussurro. Permanentemente, ele circula à sua volta e nota-se que não a pode deixar. Certo dia, inclusive, ela acredita que ele esteja no pote de manteiga. [3]

Que pena que ela não possa vê-lo, tocá-lo! Certo dia ao acender o fogo, ela subitamente acreditou vê-lo girando, ligeiro, no meio da faísca. De outra feita, sente sua falta e o procura em uma rosa. Embora pequeno, ele se esforça para possuí-la, para apropriar-se de sua pessoa e torna-se delicado, carregando-a de atenções.

Contudo, ele tem seus defeitos. Ele é muito rápido e audacioso, e se não o segurarmos ele talvez nos escape. Está sempre atento, observando, escutando tudo. Às vezes, repete de manhã aquela

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pequena palavra que ela disse baixinho, quase sussurrando, ao deitar-se, quando a luz já estava apagada.

Ela sabe que ele é indiscreto, curioso. Ela fica embaraçada por se sentir seguida por todos os lugares, se lamenta, embora goste. Às vezes, o expulsa, o ameaça, e, acreditando-se só, readquire rapidamente a confiança. Mas no momento ela se sente acariciada por um leve sopro, ou por uma asa de pássaro. Ele estava sob uma folha... Ele ri... Sua doce voz, atenciosa, demonstra bem o prazer que ele teve ao surpreender sua pudica senhora. Agora ela está irritada. Mas o malvado lhe diz: "Não, minha queridinha, não te zangues".

Ela se envergonha, não se atreve a dizer mais nada. Mas ele percebe então que ela o ama, e muito. Ela não tem escrúpulos, e o amará ainda durante muito tempo. À noite, ela acredita senti-lo em seu leito, avançando docemente. Ela tem medo, pede a Deus, abraça fortemente seu marido. O que ela pode fazer? Ela não tem coragem para contar tudo à Igreja. Ela o diz então a seu marido, que a princípio ri, não acredita. Ela confessa então um pouco mais, diz que este demônio é muito vivo, às vezes muito audacioso... "Ora, que importa! Ele é tão pequeno." Assim, ele mesmo a tranqüiliza.

Mas nós, que vimos melhor, devemos também ficar tranqüilos? Ela ainda é muito inocente. Ela teria de imitar a grande senhora do castelo, que, além de seu marido, possui vários amantes, inclusive seu pajem. Portanto, vamos reconhecer que a endiabrada figura já conseguiu um bom começo. É impossível possuir um pajem menos comprometedor do que este, que se esconde em uma rosa. E como aquele, também este se faz amante. Com mais impetuosidade do que qualquer outro, e assim tão pequeno, sub-repticiamente, ele se faz presente em todos os lugares.

Ele se introduz no próprio coração do marido, cortejando-o, e consegue dessa forma suas boas graças. Ele o ajuda no trabalho, cuida de seu jardim. À noite, como recompensa, também ele se aconchega na lareira. Escuta-se sua pequena voz como a dos grilos, mas ele quase não é visto, a menos que um fraco luar ilumine seu canto preferido. Então, vê-se - ou pelo menos se acredita ver - uma face graciosa, sutil. E eles lhe dizem: "Ah, meu pequeno, nós o vimos!"

A Igreja lhes diz que é preciso desconfiar desses espíritos, pois, embora parecendo inocentes, penetram sorrateiros nas casas e no fundo podem ser demônios. Entretanto, eles custam a crer em tal coisa. Seu pequeno porte o faz parecer inocente. Desde que ele apareceu, a família prosperou. Assim como a mulher, também o marido o conserva e talvez ainda com mais ardor. Ele percebe que essa endiabrada figura faz a felicidade do lar.

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[1] “Três passos do lado do banco,/ E três passos do lado da cama: ali./ Três passos do lado da arca,/ E três passos mais. Volte aqui." (N. do A.)

[2] Nada mais tocante do que esta felicidade. Apesar da perseguição realizada no século V, os camponeses conduziam, em toscos bonecos feitos de saco de farinha, os deuses das grandes religiões: Júpiter, Minerva, Vênus. Diana conservou-se indestrutível no âmago do germanismo. No século VIII, os deuses ainda são conduzidos em procissões. Em certas choupanas, são feitos sacrifícios, presságios. Em vão eles são ameaçados de morte. No século XII, Burchard de Worms, retomando sua defesa, atesta que eles são inofensivos. Em 1389, a Sorbonne ainda condena os resquícios do paganismo e, por volta de 1400, Gerson retoma esta obstinada superstição como coisa atual. (N. do A.)

[3] Este é um dos esconderijos favoritos do pequeno guloso. Os suíços, que conhecem seu gasto, ainda hoje o presenteiam c produtos derivados do leite. Segundo Shakespeare, eles beliscavam as mulheres que dormiam demais, até que acordassem. (N. do A.)

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Capítulo quatro

TENTAÇÕES

Tentei suprimir deste quadro o terrível peso do tempo, que o tornaria mais sombrio. Compreendo, principalmente, a insegurança da família rural, largada à sua própria sorte, a incerteza, o medo habitual do ultraje que poderia de um momento para outro descer dos castelos.

Duas coisas tornavam o regime feudal um inferno: de um lado, a extrema fixação - o homem preso à terra, a imigração impossível; do outro, a incerteza - o desconhecimento de sua própria condição.

Os historiadores otimistas, que tanto falam das rendas fixas, dos privilégios comprados, se esquecem das poucas garantias que essas coisas ofereciam. Devia-se pagar tudo ao senhor, mas ele ainda tinha o direito de exigir também a parte que coubesse ao servo. A isto se denomina direito de posse. Trabalha, trabalha, camponês! Enquanto estiveres no campo, os que moram lá em cima podem invadir tua casa e levar o que melhor lhes aprouver, "para o serviço do senhor".

Observai também este homem cujo trabalho é tão sombrio; como conserva a cabeça baixa!... Está sempre assim, com a testa franzida, o coração oprimido, como que esperando alguma notícia má.

Será que ele aguarda um mau presságio? Não, mas dois pensamentos o obcecam, dois estiletes perfuram simultaneamente seu coração. "Como encontrarei minha casa esta noite? Ah, se a terra revolvida me trouxesse um tesouro! Se o bom demônio nos desse, assim, a liberdade!"

Assegura-se que a este apelo (como o gênio etrusco que apareceu um dia sob o arado, em figura de criança) um anão, um gnomo saía às vezes da terra, erguia-se do solo e dizia ao camponês: "O que queres de mim?" Mas o pobre homem, acuado, não desejava mais nada. Empalidecia e persignava-se, e logo tudo desaparecia. E ele, arrependido, dizia-se: "Bobo como és, serás sempre infeliz". Aceito perfeitamente esse fato, mas acredito, por outro lado, que uma barreira de horror, intransponível, bloqueava esse homem. Absolutamente não penso como nos queriam fazer crer os monges que nos contaram casos de bruxaria - que o pacto com o demônio fosse somente uma leviandade dos apaixonados, dos ambiciosos. Consultado o bom senso, a natureza, percebe-se o contrário, que o camponês, pressionado pelos ultrajes e misérias de sua condição, reduzido ao desespero, também recorria a tais práticas.

Mas, segundo se dizia, essas grandes desgraças foram abrandadas na época de São Luís, que proibiu as guerras privadas entre os senhores. Na verdade, o que aconteceu foi justamente o contrário. Nos oitenta ou cem anos decorridos entre essa proibição e as guerras com os ingleses (1240-1340), os senhores, privados de seu divertimento habitual, o de

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incendiar e pilhar as terras e castelos vizinhos, foram terríveis com seus vassalos. Para estes, esta paz foi uma guerra, um verdadeiro inferno.

As arbitrariedades praticadas pelos edesiastas, pelos monges fazem estremecer as páginas do Diário de Eudes Rigault[1]. É o repugnante quadro de um excesso desenfreado, bárbaro. As autoridades monásticas se lançavam sobretudo sobre os conventos de mulheres. O austero Rigault, arcebispo de Rouen e confessor do rei, fez ele mesmo uma pesquisa sobre a situação da Normandia. Cada noite visitava um mosteiro. Em todos encontrou monges vivendo a grande vida feudal, armados, bêbados, duelistas, perseguidores furiosos de toda a cultura; e com eles, em convivência permanente, as religiosas sempre engravidadas.

Eis a Igreja. Como seriam os senhores leigos? Como seria o interior destas negras torres que, vistas de baixo, causavam tanto medo? Embora baseadas na imaginação, duas histórias - O Barba-Azul e Griselda - referem-se ao assunto. Como se comportaria com seus vassalos, seus servos o carrasco que maltratava a família do camponês?

Só o saberemos mais tarde, no século XV, através do único deles que foi condenado: Gilles de Retz, o raptor de crianças.

Em O cabeça de touro, de Walter Scott, os senhores de melodramas e romances nada são diante desta terrível realidade! Também Ivanhoé é uma criação inexpressiva e artificial. O autor não ousou abordar a imunda realidade do celibato no templo e no castelo. Recebiam-se poucas mulheres, pois eram bocas inúteis. Os romances de cavalaria deturpam a verdade. Observa-se que muitas vezes a literatura mostra exatamente o inverso dos costumes. Exemplo disso é o enfadonho teatro de éclogas à Florian [2] nos anos do Terror.

Os alojamentos desses castelos, dos que ainda podem ser vistos, nos dizem mais do que todos os livros. Homens de armas, pajens, valentes, amontoados à noite rob duas baixas abóbadas e durante o dia presos às ameias, nos terraços estreitos, dominados pelo tédio mais desolador, não respiravam, não viviam senão de suas escapadas até lá embaixo. Agora, não mais para guerrear em terras vizinhas, mas para a caça. E caça ao homem, humilhando, enchendo de insultos e ultrajes as famílias dos servos. O próprio senhor sabia muito bem que não conseguiria tranqüilizar esses homens sem mulheres se não os deixasse livres por momentos. Respeitava-se ao pé da letra o dogma da Idade Média, a terrível idéia de um inferno onde Deus se utilizava das almas perversas para torturar as almas menos culpadas, que lhes eram entregues como brinquedos. O homem sentia a ausência de Deus. Cada saque demonstrava que este reino era de Satanás, que era a ele que se deveria recorrer.

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Todos riem e brincam lá em cima. "Os servos eram muito feios." Não se trata de beleza. O prazer consistia no espancamento, na humilhação. Ainda no século XVII, as grandes damas riam a valer ao escutarem o Duque de Lorraine contar como seus homens penetravam nas aldeias tranqüilas, possuindo e atormentando todas as mulheres, inclusive as velhas.

Como se pode imaginar, os ultrajes eram dirigidos, sobretudo, às famílias que se encontravam em uma posição de certo destaque entre os servos, as famílias de servos administradores que já no século XII encontramos na direção das aldeias. A nobreza as odiava. Não lhes era perdoado o fato de começarem a possuir uma certa dignidade moral. Não se admitia que suas mulheres, que suas filhas fossem honestas e ajuizadas. Elas não tinham o direito de ser respeitadas. Sua honra não lhes pertencia.

"Escravas do corpo", era a cruel expressão que lhes era lançada em pleno rosto.

No futuro, não se acreditará facilmente que, entre os cristãos, a lei tenha sido o que ela jamais fez nem mesmo durante a antiga escravidão: que ela tenha estabelecido expressamente - como um direito - o mais sangrento ultraje que poderia se abater sobre o homem.

Tanto ao senhor eclesiástico, como ao senhor leigo, é concedido este imundo direito. Numa paróquia próxima a Bourges, o cura, na qualidade de senhor, reclamava expressamente os primeiros favores da noiva, mas o que que queria na realidade era vender ao marido a própria virgindade de sua mulher.

Acreditou-se, muito erroneamente, que este ultraje na mera formalidade, nunca concretizada. Porém o preço indicado em certas regiões, para se obter esta dispensa, ultrapassava em muito as posses de quase todos os camponeses.

Na Escócia, por exemplo, exigiam-se "muitas vacas", um preço naturalmente impossível. Logo, a pobre jovem estava à mercê dos senhores. Aliás, os Fors du Béarn dizem expressamente que este direito era considerado natural: "O primogênito do camponês é considerado o filho do senhor, porque ele pode ser uma de suas obras".

Mesmo não mencionando isto diretamente, a verdade é que todos os costumes feudais exigiam que a noiva subisse ao castelo, levando "as iguarias do casamento". Era odioso ver essa pobre criatura aventurar-se nas mãos desta corja de celibatários impudentes e depravados.

Quase podemos ver a cena humilhante: o jovem esposo conduz sua esposa ao castelo. Podemos imaginar o riso dos cavaleiros, a zombaria dos pajens sobre esses desafortunados. A presença da castelã os deterá? Absolutamente. A mulher, que os romances fazem crer tão delicada [3], na verdade comandava os homens na ausência do marido,

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julgava, castigava, ordenava as torturas, dirigia a própria vontade do marido. Não era nada terna esta mulher, sobretudo para uma serva que parecia ser bonita. Possuindo publicamente, segundo os costumes da época, seu cavaleiro e seu pajem, ela não se incomodava em lhes autorizar o uso das liberdades que deveriam pertencer somente a seu marido.

Portanto, ela não se oporá à farsa, à zombaria que se faz a respeito deste homem temeroso que quer resgatar sua mulher. Comercia-se primeiramente com ele, ri-se das torturas do "camponês avarento"; procura-se arrancar dele até o último centavo. Por que toda esta obsti-nação? Será por ele estar corretamente vestido, ou por ser honesto, ordeiro e com prestígio na aldeia? Por quê? É simplesmente porque sua mulher é alegre, casta, pura. Porque ela o ama, tem medo e chora. Seus belos olhos pedem clemência.

O desgraçado oferece em vão tudo o que possui, inclusive o dote. Mas é muito pouco. Então, ele se irrita com este injusto rigor.

"Meu vizinho nada pagou", diz ele.

“Como ousas discutir?", lhe respondem.

Aos urros, a multidão se precipita sobre ele, que é empurrado, derrubado. Seu pobre corpo é espancado com bastões, com vassouras, enquanto o povo grita:

”Vilão ciumento! Acaba com essa cara de enterro; não queremos tua mulher, ela te será devolvida esta noite, e, para tua honra, grávida! Agradece, portanto, ascendeste à nobreza. Teu filho será um barão!"

Todos se encontram nas janelas, apreciando a grotesca figura deste morto em trajes de núpcias... Estrondosas gargalhadas o acompanham, e a canalha barulhenta, inclusive o mais insignificante de seus integrantes, persegue o cornudo. [4]"

Este homem estaria perdido se não contasse com o demônio. Ele retorna só para sua triste casa. Estará vazia? Não, ele encontra companhia. Na lareira está Satanás.

Mas logo a pobre mulher volta, pálida e desfigurada. Infelizmente, em que estado! De joelhos pede-lhe perdão. Então ele dá expansão à sua dor... Enlaçando-a, chora, soluça, urra, fazendo estremecer a casa.

Com ela, entretanto, volta Deus. Apesar de todas as humilhações, ela se mantém pura, inocente, santa. Satanás nada conseguirá neste dia. O pacto ainda não amadureceu.

Nossos ridículos romances medievais, nossos absurdos contos supõem que tanto nesta injúria como em todas aquelas que se seguirão a mulher está a favor dos que a ultrajam e contra seu marido. Eles nos querem fazer acreditar que, tratada brutalmente e prostrada por sucessivas gestações, ela se sente feliz e satisfeita. Como isto é falso!

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Sem dúvida, ela poderia ser seduzida pela condição social, pelas boas maneiras, pela elegância. Mas isso não a interessava. Aquele que se deixasse levar por sentimentos mais elevados, que amasse uma serva, seria objeto de zombaria. Do capelão ao copeiro, e mesmo os valetes, todos acreditavam honrá-la pelo ultraje. O mais insignificante pajem acreditava-se grande senhor, se temperasse o amor com insolência e pancadas.

Um dia, na ausência do marido, após ter sido maltratada, a pobre mulher levanta seus longos cabelos, chora e diz em voz alta:

"De que serve fazer votos para estes desgraçados santos de madeira? Serão eles surdos? Serão tão velhos?... Por que não possuo um espírito protetor, forte, poderoso (mesmo perverso, não importa)? Sei que os santos de pedra estão na porta da igreja. Que fazem lá? Por que não estão em seu verdadeiro lugar, no castelo, fazendo desaparecer, queimando estes pecadores? . . Oh, quem poderá dar-me força, poder? Eu me daria em troca... Infelizmente, o que eu posso oferecer? Nada me resta... Desgraçado corpo, desgraçada alma em cinzas! Por que não possuo um espírito forte e poderoso, em lugar deste pequeno zombador que não me serve de nada? "

"Oh, minha gentil senhora!", diz o espírito. "Eu sou pequeno por vossa culpa e não posso crescer... E, aliás, mesmo se eu fosse grande vós não me teríeis querido, vós teríeis feito com que eu fosse perseguido pelos vossos padres e vossa água benta... Mas, se vós quiserdes, eu serei poderoso... os espíritos não são grandes ou pequenos, fortes ou fracos, senhora; se quisermos, o menor deles pode tornar-se gigante... Como? Nada é mais simples. Para um espírito tornar-se gigante, basta fazer-lhe uma doação. Qual?.. Uma bela alma de mulher. . . "

"Oh, perverso, quem és tu, então? O que esperas com isso?"

"Bem, eu espero que vós vos entregueis todos os dias... Vós vos credes melhor que a dama lá de cima? Ela entregou sua alma a seu marido, a seu amante, e ainda é capaz de dá-la integralmente a seu pajem, que é uma criança, um tolo... Eu sou muito mais que vosso pajem: eu sou mais que um simples servidor... Quantas vezes já não vos servi? Não precisais enrubescer-se, não vos aborreçais... Deixai-me dizer apenas que eu estou à vossa volta e talvez já esteja dentro de vós. Se assim não fosse, como poderia eu reconhecer vossos pensamentos, até mesmo aqueles que vós tentais esconder de vós mesma? Quem sou eu? Sou uma pequena alma, que fala abertamente, sem cerimônia. Somos inseparáveis. Sabeis há quanto tempo estou convosco?... Há mil anos. Eu pertenci à vossa mãe, à mãe de vossa mãe, a vossos antepassados... Eu sou o gênio do lar."

"Tu me tentas", diz ela, "mas o que podes fazer?"

"Bem, eu farei com que vosso marido fique rico, com que vós vos torneis poderosa, temida..."

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"Mas onde estou?... Então tu és o demônio dos tesouros escondidos?..."

"Por que me chamar de demônio, se minha obra é justa, piedosa? Deus não pode estar em toda parte, não pode trabalhar sempre. Algumas vezes ele gosta de repousar e deixa que nós, os outros gênios, façamos as pequenas obras, remediemos as distrações da Providência, os esquecimentos da justiça... Vosso marido é um exemplo disso... Pobre trabalhador esforçado, que se mata e nada ganha... Deus ainda não teve tempo de pensar nisso... Embora sendo eu um pouco ciumento, eu amo a quem me hospeda. Eu o lamento. Ele não resistirá muito mais, acabará sucumbindo. Ele morrerá como seus filhos, que já estão mortos de miséria. Neste inverno ele esteve doente... Que acontecerá no próximo?”

Então, ela colocou seu rosto entre as mãos e chorou durante várias horas. Quando não tinha mais lágrimas (embora seu coração ainda batesse fortemente), ele disse:

"Eu não quero nada... só vos peço que o salvemos".

Ela nada prometeu, mas a partir deste momento passou a pertencer-lhe.

[1] Publicado no século XIX, um pouco antes do presente trabalho. (N. do T.)

[2] Jean-Pierre Claris de Florian, fabulista francês (1755-1794).(N.do T.)

[3] Este tipo de delicadeza aparecia, por exemplo, no tratamento que estas mulheres dispensavam ao poeta Jean de Meung, autor do Roman de la rose (por volta de 1300). (N. do A.)

[4] Nada mais divertido que nossos velhos contos; no entanto, eram pouco variados. Exploravam apenas três temas: o desespero do cornudo, os gritos do espancado, a careta do enforcado. Na verdade, os três representavam um só personagem: o humilde, o fraco; e para ultrajá-Io era oferecida toda garantia. (N. do A.)

Capítulo cinco

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A POSSE

Fase terrível foi a Idade do Ouro, isto é, os duros tempos do advento do ouro. Passa-se o ano de 1300, sob o reino do belo soberano que se podia batizar de rei de ouro ou de ferro, que não se manifestava nunca; um grande rei que parecia trazer em si um demônio mudo, mas com braços fortes o bastante para queimar o tempo, longos o suficiente para chegar a Roma e com luvas de ferro fazer o primeiro agravo ao papa.

O ouro tornara-se então o grande papa, o grande deus. E com toda a razão. O movimento começara na Europa, através das cruzadas, e a única riqueza que se prezava era aquela que fosse móvel, que pudesse circular: a das trocas rápidas. Para assegurar as investidas fora de seus domínios, o rei necessitava de ouro. O exército do ouro, o exército do fisco, expande-se então por todo o país. Ainda sonhando com as maravilhas de Oriente, o senhor deseja possuir armas de Damasco, tapetes, condimentos, cavalos de raça.

E para obter tudo isso necessita de ouro. Quando o servo lhe traz seu trigo, ele o rejeita: "Isto não me basta, eu quero ouro".

O mundo se transformou a partir desse dia. Até então, apesar de tudo, ainda havia uma relativa segurança para o pagamento dos impostos. Um ano ruim, outro melhor, a renda dependia do comportamento da natureza e das proporções da colheita. Se o senhor dissesse: "É pouco", respondia-se: "Mas, senhor, Deus não nos deu mais.."

Mas o ouro, infelizmente, onde encontrá-lo? Não dispomos de um exército para tirá-lo das vilas de Flandres. Onde cavaremos a terra para encontrar seu tesouro? Ah, se fôssemos guiados pelo espírito dos tesouros escondidos! [1]

Enquanto todos se desesperam, a mulher, mais esperta, já está sentada, sobre suas sacas de trigo, na aldeia vizinha. Ela está sozinha, enquanto os outros continuam deliberando na vila. E mesmo quando eles chegam, todos se dirigem a ela, atraídos não sei por que mágico poder. Ninguém regateia seus preços. Sua renda é levada pelo marido, em moeda sonante, para ser entregue junto ao olmo feudal.

"É incrível, ela está possuída pelo demônio", dizem todos. Eles riem; mas ela está séria, triste, tem medo.

À noite, reza em vão. Seu sono é agitado, perturbado por estranhos formigamentos. Ela tem alucinações. O espírito, tão pequeno e manso, parece ter-se tornado dominador. Ele investe. Ela fica inquieta, nervosa, quer levantar-se. Mas permanece deitada. E, gemendo, desa-bafa, diz para si mesma: "Não mais me pertenço".

"Eis aqui, enfim, um agricultor razoável, que paga adiantado", diz o senhor. "Tu me agradas, estou contente contigo. Sabes contar?"

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"Um pouco", diz o homem.

"Muito bem, tu contarás então, junto com todas essas pessoas. Aos sábados, sentado sob o olmo, recolherás todo o dinheiro, que deverá ser levado ao castelo no domingo, antes da missa."

Grande mudança! O coração da mulher bate forte quando vê, aos sábados, seu pobre marido - um simples servo - instalado como um pequeno senhor à sombra do castelo. O homem está ligeiramente aturdido. Mas, enfim, se acostuma, assume um aspecto sério. Não há mais do que zombar. O senhor quer que o respeitem. Quando subiu ao castelo e os invejosos fizeram menção de rir, de lhe pregar uma peça, o senhor disse: "Vejam esta ameia: a corda não pode ser vista, mas está pronta. O primeiro que tocar nesse homem, eu colocarei lá no alto, dependurado".

Estas palavras se propagam, são repetidas. E cria em torno deles uma atmosfera de terror. Eles são exageradamente reverenciados por todos. Mas, quando eles passam, as pessoas se afastam, se dispersam. Para evitá-los, toma-se o caminho oposto, desvia-se o olhar, abaixa-se a cabeça. Esta transformação os torna orgulhosos a princípio, mas logo os entristece. Eles vivem isolados na comuna. A mulher, mais viva, percebe muito bem o desprezo do castelo, o temeroso ódio dos servos. Ela sente-se entre dois perigos, em um terrível isolamento.

Conta com um único protetor, o senhor, ou melhor, o dinheiro que lhe é dado. Mas quantas insistências, quantas ameaças, quanto rigor para arrancar esse dinheiro, para estimular a lentidão do agricultor, vencer sua resistência em tirar alguma coisa de quem praticamente nada possui! O bom homem não fora feito para este trabalho. Ela o empurra, força-o a fazê-lo, dizendo-lhe: "Sê rude e, se necessário, bate, cruel. Do contrário, tu desrespeitarás o acordo, e então estaremos perdidos".

Esse tormento diurno não é nada comparado com os suplícios da noite. Ela perdeu o sono. Levanta-se, vai e vem, perambula pela casa. Tudo está calmo. E, no entanto, quanta coisa mudou nessa casa! Como perdeu sua calma, sua segurança, sua inocência! Que estará querendo este gato aqui em casa, que finge dormir e entreabre para mim seus olhos verdes? A cabra de longas barbas, discreto e sinistro ser, sabe bem mais do que diz. E esta vaca que a lua permite entrever no estábulo, por que me lança um tal olhar? Nada disso é normal.

Ela treme e vai se por ao lado do marido. "Homem feliz! Que sono profundo!... Quanto a mim, não consigo mais dormir, pão dormirei nunca mais!..." Ela se sente enfraquecida. E como sofre! Perto dela está o hóspede inoportuno, exigente, dominador. Trata-a sem condescendência; se ela o afasta um momento, pelo sinal-da-cruz ou alguma prece, ele volta sob outra forma. "Para trás, demônio, que pretendes? Sou uma alma cristã... Não, isto não te é permitido..."

Para vingar-se, ele assume então formas hediondas; escorrega viscoso como uma cobra sobre seu seio, dança como um sapo sobre seu ventre

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ou, como um morcego, com seu bico pontudo, deposita em sua boca amedrontada beijos asquerosos... O que quer ele? Esgotá-la, fazer com que, vencida, ela ceda e diga um sim. Mas ela ainda resiste. Ainda, obstinadamente, diz não. Ainda consegue enfrentar a cruel luta de todas as noites, o interminável martírio desse deprimente combate.

Até que ponto poderá um espírito tomar corpo? Serão reais suas investidas? Submetendo-se à invasão daquele que a está assediando, estaria ela cometendo um pecado carnal? Estaria incorrendo em verdadeiro adultério? Esta é a sutil tentação pela qual ele enfraquece e esgota sua resistência. “Não sendo eu mais do um sopro, uma fumaça, uma leve brisa (como afirmam muitos doutores), que temeis vós, tímida alma, e que importância tem tudo isto para vosso marido?"

Durante toda a Idade Média, o suplício das almas suscita uma série de questões que poderiam ser consideradas sem importância, de pura escolástica. Agitam, amedrontam, atormentam, traduzem-se em visões, algumas vezes em debates diabólicos, diálogos cruéis realizados no íntimo de cada pessoa. Por mais furioso que se apresen-tasse nas pessoas possuídas, o demônio permanece, todavia, como espírito, enquanto dura o Império Romano e mesmo, ainda, no século V, na época de São Martinho.

Quando da invasão dos bárbaros, ele se corporifica. Tanto é assim, que se diverte em quebrar a pedradas os sinos do convento de São Benedito. Cada vez mais se recorre ao Diabo para amedrontar os violentos saqueadores dos bens eclesiásticos. Propaga-se a idéia de que ele atormentará os pecadores, não apenas de alma para alma, mas corporalmente, em sua própria carne. E que eles sofrerão suplícios materiais, não com chamas imaginárias, mas através de dores mais terríveis do que as brasas, as grelhas e os espetos ardentes podem, na realidade, provocar.

A idéia dos diabos torturadores, que infligiam suplícios materiais às almas dos mortos, foi para a Igreja uma mina de ouro. Comprimidos pela dor, pela piedade, os vivos se perguntavam: "E se pudéssemos resgatar essas almas, de um mundo para o outro, aplicar-lhes os castigos que utilizamos na terra? Cluny, que desde sua criação (por volta do ano 900) tornou-se logo uma das ordens mais ricas, foi a ponte entre esses dois mundos.

Enquanto era o próprio Deus quem punia, quem fazia sentir o peso de sua mão ou golpeava com a espada do anjo (de acordo com a nobre forma antiga), havia menos horror; sua mão era severa, mão de um juiz, mas era também a mão de um pai. Ao golpear, o anjo permanecia puro e integro com sua espada, o que não acontece quando os executores são demônios imundos.

Eles não se parecem com o anjo que se afastou de Sodoma antes de destruí-la pelo fogo. Eles permanecem aí, e seu inferno assemelha-se a uma horrível Sodoma, onde esses espíritos, mais desonrados que

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pecadores, lhes são entregues. Eles gozam de um odioso prazer com as torturas que infligem.

As primitivas esculturas nas portas das igrejas ilustram esse ensinamento. Aí aprendemos a horrível lição das volúpias da dor. A pretexto de suplícios, os diabos submetiam suas vítimas aos caprichos mais odiosos. Concepção imoral (e profundamente culpável) de uma pretensa justiça que, favorecendo o pior, deixava imperar sua perversidade, oferecendo-lhe um brinquedo e corrompendo o próprio demônio.

Tempos cruéis! Podeis perceber o quanto o céu era negro e carregado, o quanto pesava sobre a cabeça do homem? Pobres crianças, desde cedo atormentadas por essas horríveis idéias, amedrontadas desde o berço! A pura e inocente virgem enlouquecida, martirizada por suas investidas. A mulher resistindo-lhe, mas por momentos sentindo-o dentro dela... Terrível sensação, semelhante àquela dos que sofrem de solitária... Sentindo uma vida dupla, distinguindo todos os movimentos, ora agitados, ora mansos, ondulantes, causando ainda maior perturbação, como se estivéssemos num mar agitado! Então, corre-se desesperadamente, horrorizado, desejando libertar-se de si mesmo, desejando morrer.

Mesmo nos momentos em que o demônio não investia contra a mulher, ela, que começava a ser invadida por ele, vagava prostrada pela melancolia. A partir de então, como uma fumaça imunda, ele penetrava irresistivelmente: não havia mais remédio. Príncipe dos espaços, das tempestades e, mais ainda, das tormentas interiores. É o que se encontra grosseiramente expresso no portal de Strasburgo. Na parte superior do coro, estão as Virgens loucas; e sua chefe, a mulher perversa que as lança no abismo, está prenhe do demônio e vomita de forma ignóbil, fazendo-o sair de dentro de suas saias sob uma negra e espessa nuvem de fumaça.

Esta gravidez é um cruel sinal da posse; é um suplicio e ao mesmo tempo um orgulho. De cabeça erguida, orgulhosa, a mulher de Strasburgo exibe seu ventre proeminente. Triunfante com sua gravidez, regozija-se por ser um monstro.

Ainda não é esta a mulher de que vamos falar. Mas ela já está grávida dele e de sua soberba, de seu novo destino. Ela não mais pertence à terra. Gorda e bela, ela desfila de cabeça erguida, cheia de impiedoso desdém. Provoca ao mesmo tempo medo, ódio e admiração.

A nossa aldeã diz com sua atitude e seu olhar: "Eu deveria ser a dama! A impudica, a preguiçosa, que fez ela lá em cima, entre todos esses homens, na ausência do marido?" A rivalidade surge. A aldeia, que a detesta, exulta. "Se a castelã é uma baronesa, então esta é uma rainha.. mais que uma rainha, nem ousamos dizer o quê..." Ela possui uma beleza terrível, fantástica, uma mistura de orgulho e de dor. O próprio demônio brilha em seus olhos.

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Ele a possui, mas não totalmente. Ela ainda consegue ser fiel a si mesma. Não pertence nem ao demônio nem a Deus. O demônio pode muito bem invadi-Ia, circular sub-repticiamente dentro dela; mas não dominando sua vontade é como se não a possuísse. Embora possuída pelo Diabo, ela ainda não lhe pertence. Algumas vezes, ele a submete a horríveis sevícias, mas nada consegue. Ele introduz uma brasa em seu seio, em seu ventre, em suas entranhas. Ela se revolta, se contorce, mas ainda encontra forças para dizer:

"Não carrasco, permanecerei fiel a mim mesma".

"Guarda-te!", ele retruca. "Eu te atingirei com uma cruel picada de víbora e te penetrarei com um tal golpe que depois partirás chorando, cortando os ares com teus gritos."

Na noite seguinte, ele não aparece. É domingo, e pela manhã o homem vai ao castelo. Volta completamente arrasado com as palavras do senhor: "As gotas de um riacho não podem acionar um moinho... Tu me trazes níquel por níquel e isto não adianta nada... Dentro de quinze dias partirei. O rei marchará contra Flandres e eu não possuo sequer um cavalo de batalha. O meu está mancando desde o torneio. Preciso de cem libras, trata de consegui-Ias".

"Mas onde encontrá-las, senhor?"

“Saqueia toda a aldeia, se quiseres. Dar-te-ei os homens de que precisares... Avisa aos camponeses que eles estarão perdidos se o dinheiro não vier, e tu serás o primeiro, serás um homem morto... Estou cansado de ti. Tens o coração mole como o de uma mulher. És um covarde, um preguiçoso. Perecerás, pagarás, por tua moleza e covardia. Vê, não existe razão para que eu te impeça de descer, para que eu te retenha aqui em casa. É domingo, e todos iriam rir à valer se lá de baixo te vissem pendurado nas ameias."

O infeliz relata tudo à sua mulher e, desesperado, prepara-se para morrer, recomenda sua alma a Deus. Ela também, temerosa, não consegue dormir. Que fazer? Ela se arrepende de ter mandado o espírito embora. "Ah, se ele voltasse!..." Pela manhã, quando seu marido se levanta, ela se lança ao leito, fatigada. Súbito, sente um peso enorme no peito, respira fundo, tenta recuperar o fôlego, parece que vai sufocar. O peso desloca-se para seu ventre e ao mesmo tempo ela sente que seus braços estão seguros por uma mão de aço... "Tu me desejaste... Eis-me aqui. Muito bem, minha rebelde, então finalmente possuo tua alma?"

"Mas, meu senhor, ela ainda é minha? Pobre do meu marido! Oh, vós o amáveis...Vós o dissestes...Vós prometestes..."

"Teu marido! Então esqueceste?... Estás certa de lhe teres sempre negado tua vontade?... Ah, a tua alma! Só por bondade a estou pedindo, pois eu já a possuo..."

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"Não, meu senhor", diz ela, ainda com certo orgulho, embora em situação tão difícil. "Não, meu senhor, minha alma ainda me pertence; a mim e a meu marido, pelo sacramento."

"Ah, incorrigível tola, tolinha! Mesmo sob ameaças, ainda resistes! Conheço cada vez mais tua alma, melhor que tu mesma. Dia a dia, acompanhei tuas primeiras resistências, tuas dores, teus desesperos! Percebi teu desencorajamento quando disseste em voz baixa: 'Para tudo há uma solução'. Percebi depois tuas resignações. Ficaste um pouco abatida e não gritaste muito... Se pedi tua alma é porque já a tinhas perdido... Agora, teu marido está em perigo... Que fazer? Tenho pena de ti... Já te possuo... mas quero mais, preciso que cedas pelo consentimento e pela vontade! Caso contrário, teu marido perecerá."

Dormindo, ela responde baixinho:

"Infelizmente, entrego meu corpo, minha carne miserável, apossai-vos dele para salvar meu pobre marido! Mas meu coração, não! Até hoje não o dei a ninguém, nem o posso dar".

Ela espera então, resignada... Ele lhe lança duas palavras: "Guarda-as, são tua salvação". Nesse momento ela treme, sente-se com horror penetrada por uma torrente de fogo, inundada por uma torrente de gelo.. Solta um grito terrível. Encontra-se nos braços de seu marido, espantado e inundado por suas lágrimas.

Ela desprende-se de forma violenta e levanta-se, temendo esquecer aquelas palavras tão importantes. Seu marido está aterrorizado. Sem se dar conta dele, ela lança para as muralhas um penetrante olhar de Medéia. Jamais esteve tão bela. Seus olhos negros estão claros como o luar e faíscam como o jato de um vulcão, que não se ousa encarar.

Ela se dirige diretamente à vila. Ela lembra que verde era a primeira palavra. Pendurado à porta de um comerciante, vê um vestido verde (cor do Príncipe do Mundo). Nesta o velho vestido resplandece como novo. Sem tomar maiores informações, ela prossegue. Vê-se diante da porta de um judeu. Bate fortemente. A porta é aberta com precaução. O pobre judeu estava sentado no chão, irremediavelmente triste.

"Meu amigo, preciso de 100 libras."

"Ah, senhora, como poderei arranjar-te este dinheiro? O bispo da vila, para obrigar-me a dizer onde estava meu ouro, arrancou-me os dentes [2]. Vê, minha boca está sangrando..."

"Eu sei, mas justamente vim buscar contigo os meios para destruir teu bispo."

Se o papa leva uma bofetada, o bispo já está liquidado. De onde surgiu esta frase? De Toledo. [3]

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Ele está de cabeça baixa. Ela fala, insinua... Possui toda uma alma e ainda por cima o Diabo. O quarto é assolado por um calor infernal. O homem também sente uma fonte de fogo.

"Senhora, senhora", disse ele, olhando-a de baixo, "mesmo assim, pobre e arruinado como estou, tenho uma reserva para alimentar meus filhos."

"Não te arrependerás, judeu... Vou te fazer um juramento... Receberás de volta, dentro de oito dias, de manhã bem cedo, o que vais me dar agora... Eu te asseguro, não só por esse juramento como por um ainda maior: Toledo.”

Um ano se passa. Ela está toda mudada. É toda de ouro. Todos se espantam com seu fascínio. É por todos admirada, obedecida. Por um milagre do Diabo, o judeu se torna generoso, concede empréstimos. Sozinha, ela sustenta o castelo com seu crédito na vila, conseguido através de cruéis extorsões. O vitorioso vestido verde anda para lá e para cá, cada vez mais novo e belo. Ela mesma exibe uma beleza triunfante e insolente. Um fato sobrenatural amedronta a todos: "Na sua idade ela ainda está crescendo!" Enquanto isso, uma novidade: o senhor retorna. A senhora, que há muito tempo não ousava descer do castelo, para não ver os de baixo, monta em seu cavalo branco. Cercada por todo mundo, ela vai ao encontro do marido, para saudá-lo.

Antes de qualquer coisa, ela diz: "Como vos esperei! Como pudestes deixar vossa fiel esposa abandonada, cheia de desejo, por tanto tempo!... Pois bem, eu não poderei vos receber se não me oferecerdes uma graça".

"Podeis pedir, ó minha bela", diz sorrindo o cavaleiro. "Mas depressa, pois estou ansioso para beijar-vos... Como estais bonita!"

Não sabemos o que ela disse, pois cochichou em seu ouvido. Antes de subir ao castelo, o senhor desceu do cavalo, diante da igreja da vila, e entrou. Sob o pórtico, em posição de destaque, viu uma dama que, embora não reconhecesse, saudou com entusiasmo. Com incomparável orgulho e se destacando entre as cabeças dos outros, ela se adornara com o sublime hennin, o triunfante chapéu do Diabo, assim chamado em virtude do duplo chifre que o ornava. Eclipsada, a verdadeira dama enrubesceu e passou despercebida. Depois, indignada e em voz baixa, disse:

"Eis aqui vossa serva! Tudo está mudado. Os asnos insultam os cavalos".

Na saída, tirando de sua cintura um punhal afiado, seu pajem favorito, ousadamente, de um só golpe, cortou o belo vestido verde na altura dos rins [4]. Ela pareceu desmaiar... A multidão estava perplexa. Mas tudo ficou claro quando viram que a mulher era perseguida por todos os homens do senhor... Rápidos e impiedosos, lançaram-se ao ataque.

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Ela fugiu, mas não tão rapidamente; já estava um pouco cansada. Não havia dado mais de vinte passos, quando parou. Tropeçou em uma pedra colocada por sua melhor amiga... Risos. De quatro, ela urra... Mas os pajens, impiedosos, fazem-na levantar-se, dando-lhe bordoadas. Os nobres e belos cães de caça ajudam, mordendo em suas partes mais sensíveis. Perdida, consegue finalmente chegar, acompanhada por esse terrível cortejo, à porta de sua casa. Fechada! Bate desesperadamente, com os pés e as mãos, gritando: "Meu amigo, rápido, rápido, abre, sou eu!" Ela estava estendida, como uma miserável coruja pregada à porta de uma fazenda. E, atingida em cheio pelos golpes, continuava lá... Parecia que lá dentro todos eram surdos. Estaria lá seu marido? Ou será que, rico e apavorado, estava com medo de que a multidão saqueasse sua casa?

Ela sofreu tantos ultrajes, recebeu tantos golpes, tantas bofetadas, que, não resistindo, desfaleceu. Nua, semimorta, o corpo sangrando, coberto somente por seus longos cabelos, lá estava ela, sobre a fria pedra da soleira da porta.

Do castelo, alguém grita: "Chega... não é necessário que ela morra. Deixem-na em paz". Ela se esconde, mas consegue perceber a grande festa no castelo. O senhor, entretanto, dizia, um pouco aturdido: "Lamento tudo isso". O castelão diz mansamente: "Se esta mulher é endemoniada, como se diz, o senhor deve, para o bem de seus fiéis vassalos, e de todo o país, entregá-la à Santa Igreja. É assustador o progresso que tem conseguido o demônio nos últimos tempos. Contra ele, só o fogo..." Um dominicano acrescenta: "Vossa Eminência falou muito bem. A bruxaria é uma heresia de mais alto grau. Como o herege, também o endemoniado deve ser queimado. Muitos dos nossos grandes padres não se fiam nem mesmo no fogo. Querem, sabiamente, que antes de tudo a alma seja longamente purificada pelos jejuns; que ela não seja queimada enquanto permanecer orgulhosa, para que não triunfe na fogueira. Se vossa piedade é tão grande, minha senhora, se vós sois tão caridosa, tão compreensiva, chegando mesmo a trabalhar por ela, deixando-a por alguns anos in-pace, em uma masmorra da qual só vós possuís a chave, vós poderíeis - pela constância de vosso castigo – ajudar sua alma, renegando o Diabo e entregando-a, humilde e docemente, nas mãos da Igreja".

[1] Os demônios perturbaram o mundo durante toda a Idade Média, mas Satanás não assumiu seu caráter definitivo antes do século XIII. Segundo M. A.Maury, "os pactos são raros antes dessa época". Concordo plenamente, pois como fazer um contato com alguém que ainda não existe? Nenhuma das partes estava amadurecida para o pacto. Para que a vontade chegue ao terrível extremo de ser vencida é preciso que a alma esteja desesperada. Não é o infeliz que se desespera; é o miserável, aquele que conhece perfeitamente sua condição, que sofre com sua miséria, por saber que ela não tem

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solução. Nesse sentido, o miserável, é o homem do século XIV, do qual se exige o impossível (rendas em dinheiro). Neste capítulo e nos seguintes eu descrevi as situações, os sentimentos, os progressos no desespero que podem levar ao terrível pacto e ao que é bem mais simples do que o pacto: o horrível estado de feiticeira. Nome difundido, mas fato raro então, fato que não era menos que um casamento, uma espécie de pontificado. Para facilidade de apresentação, eu dei um toque de ficção aos pormenores desta delicada análise. Mas o estilo pouco importa, o essencial é compreender que tais fatos não resultam da leviandade humana, da inconstância da natureza, das tentações fortuitas da concupisciência. Foi necessária a fatal pressão de uma idade de ferro, de uma época de atrozes necessidades, foi preciso que o próprio infemo se assemelhasse a um abrigo, a um asilo, em relação ao inferno daqui de baixo. (N. do A.)

[2] Era um método muito usado na época, para forçar os judeus a contribuírem. O Rei João Sem Terra recorreu muitas vezes a ele. (N. do A.)

[3] Toledo parece ter sido a cidade santa de de inumerávies feiticeiros da Espanha. Suas relações com os mouros, igualmente civilizados, e com os sábios judeus, então mestres da Espanha (como agentes do fisco real), propiciaram aos feiticeiros uma maior cultura, transformando Toledo em uma espécie de universidade. No século XIII Toledo foi cristianizada, transformada, reduzida à magia branca. (N. do A.)

[4] É o grande ultraje usado nestes tempos. Nas leis gaulesas e anglo-saxônicas ele é o castigo da impureza. Mais tarde, a mesma afronta é indignamente infligida às mulheres honestas, às burguesas orgulhosas que a nobreza quer humilhar. Sabemos da.armadilha em que o tirano Hagenbach fez cair as honradas damas da alta burguesia da Alsácia, provavelmente zombando de suas ricas indumentárias, todas de seda e ouro. O Senhor de Pacé, em Anjou, reclama sobre as mulheres belas (honestas) da vizinhança. Elas devem levar ao castelo quatro moedas, um chapéu de rosas e dançar com seus oficiais. Caso contrário, corriam o risco de sofrer uma afronta semelhante àquela de Hagenbach. (N. do A.)

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Capítulo seis

O PACTO

Falta somente a vítima. Sabia-se que o melhor presente que se lhe podia oferecer era introduzi-la no culto. Ela seria grata àquele que lhe tivesse feito essa dádiva, que a libertasse desse triste corpo em chagas.

Mas a presa pressentiu a vinda do caçador: mais tarde, ela seria retirada dali e permaneceria para sempre sob a laje. Ela cobriu-se com um farrapo que estava no estábulo, e como que tomou asas, pois, antes da meia-noite, já se encontrava a algumas léguas longe das es-tradas, em uma charneca abandonada, cheia de cactos e plantas espinhosas. Achava-se na orla de um bosque onde pôde, graças a um pálido luar, recolher algumas bolotas, que devorou como um animal. Séculos haviam transcorrido desde a véspera; ela estava metamorfoseada. A bela, a rainha da aldeia, não mais existia; sua alma, transformada, provocava mudanças até em suas atitudes. Ela estava acuada como um animal, agachada como um macaco.

Ela era agitada por pensamentos nada humanos, e escutava, ou pensava escutar, um pio de coruja, depois uma desagradável gargalhada. Ela sente medo, mas talvez seja um papagaio brincalhão, que modifica todas as vozes; deve ser mais uma de suas peças.

A gargalhada recomeça. De onde virão esses risos? Ela não vê nada. Dir-se-ia que eles vêm de um velho carvalho. Mas ela ouve distintamente:

"Ah! Ei-la enfim... Não vieste à toa. Se hão estivesses no auge do desespero, não terias vindo... Foi preciso, orgulhosa, que tivesses sido perseguida, levada a gritar, a pedir clemência, perdida, desabrigada,

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rejeitada pelo próprio marido. Onde estarias tu agora se, à noite, eu não tivesse feito a caridade de te mostrar o in-pace que preparavam para ti na torre? Vens a mim tarde, muito tarde, quando já te chamam 'a velha'... Jovem, não me davas atenção, a mim, o teu diabinho, que estava pronto para servir-te... Agora é a tua vez (se eu quiser) de servir-me, de beijar-me os pés.

"Desde teu nascimento foste minha, pela malícia que trazias, por teu diabólico encanto. Fui teu amante, teu marido, pois o outro te fechou a porta. Eu não faço isso. Recebo-te em meus domínios, em meus livres campos, em minhas florestas... E o que ganho com isso?

"Não é verdade que há muito tempo já estavas à minha disposição? Não foste invadida, possuída, dominada por minha chama? Mudei, transformei teu sangue. Não há uma só veia de teu corpo em que eu não circule. Tu mesma não podes saber até que ponto és minha esposa. Mas nossas núpcias ainda não se consumaram totalmente. Respeito os costumes, sou escrupuloso...Sejamos um para sempre!"

"Meu senhor, na situação em que me encontro, que poderia dizer? Oh! há muito tempo eu percebi muito bem que vós sois toda a minha vida. Maliciosamente, vós me acariciastes, a fim de me conquistar... Ontem, quando o cão de caça mordia minha desgraçada nudez, seu dente queimava... eu disse: 'É ele'. A noite, quando aquela Herodíade desonrou, escandalizou o banquete, alguém serviu de intermediário para que se prometesse meu sangue... Vós!"

"Sim, mas também fui eu que te salvei e te conduzi até aqui. Adivinhaste, eu fiz tudo isso. Eu te arruinei. E por quê? É que te desejo toda para mim. Na verdade, teu marido me aborrecia. Tu te esquivavas, regateavas. Minha maneira de agir é diferente. Tudo ou nada. Eis a razão por que eu te disciplinei, preparei, amadureci para mim... Essa é a minha sábia forma de agir. Eu não me aposso, como se poderia crer, de almas fracas, que se entregam facilmente. Quero as almas eleitas, em apetitoso estado de furor e desespero... Escuta, não posso esconder-te isso: tal como estás hoje, tu me agradas, estás cada vez mais bonita; tenho fome de ti.”

"Farei tudo que quiseres. Não sou desses maridos que dependem de sua mulher. Se quiseres ser rica, teu desejo será logo satisfeito. Se quiseres ser rainha, substituir Jeanne de Navarre, embora isso desagrade a muitos, eu o farei. E o rei não será atingido em seu orgulho e maldade! É mais honroso ser minha mulher. Mas, enfim, dize o que queres."

"Meu senhor, só quero fazer o mal."

"Encantadora, encantadora resposta!... Oh! Não é sem razão que eu te amo! Com efeito, isto contém tudo, todas as leis e todos os profetas. " Como fizeste uma boa escolha, a ti será dado, em acréscimo, todo o resto. Possuirás todos os meus segredos. Conhecerás a terra a fundo. O mundo se submeterá a ti, depositará ouro a teus pés... Mais ainda. Vê,

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minha esposa, aqui está o verdadeiro diamante que te ofereço, a vingança. Eu te conheço, espertalhona, até o teu mais íntimo desejo... Oh! Quando nossos corações se compreenderem totalmente... Nesse momento, terei conseguido a posse definitiva. Tua inimiga ajoelhar-se-á a teus pés, pedindo clemência e rezando, feliz em receber de volta a ofensa que te fez. Ela chorará... Sorrindo, tu dirás: 'Não', e ouvirás gritar: 'Morte e danação!...' Então, eu farei minha parte."

"Meu senhor, eu sou vossa serva... fui ingrata, é verdade, pois vós sempre me cumulastes de atenções. Eu vos pertenço, ó meu mestre, ó meu deus! E não quero outra coisa. Suaves são vossos prazeres. É agradável vos servir."

Nesse momento, ela se prostra em adoração. Ela lhe presta homenagens segundo as formas do tempo, que simbolizam o abandono total da vontade! Seu mestre, o Príncipe do Mundo, o Príncipe dos Ventos, por sua vez, é um impetuoso espírito. Ela recebe, então, em ordem inversa, os três sacramentos: batismo, ordem e ma-trimônio. Nesta nova Igreja, oposta à outra. tudo é feito ao contrário. Submissa, paciente, ela suporta a cruel iniciação, apoiada em uma palavra: "Vingança[1]!".

Muito antes que o raio infernal a abatesse, a deixasse inerte, ela se levantou, com um ar pavoroso, os olhos faiscando. Ao revê-la, a lua, que castamente havia se escondido por um momento, teve medo. Espantosamente inchada pelo infernal vapor de fogo e furor e – coisa nova - por não sei que espécie de desejo, ela tornou-se por um momento enorme, devido a esse excesso de plenitude, e dotada de uma terrível beleza. Ela olhou em volta... A natureza estava transformada. As árvores tinham língua, relatavam os fatos passados. As plantas eram medicinais; as mesmas plantas que ontem ela pisava com desprezo eram agora pessoas que falavam de medicina.

No dia seguinte, ela despertou sentindo-se em segurança, longe, bem longe de seus inimigos. Procuraram por ela e só encontraram alguns farrapos dispersos do fatal vestido verde. Teria ela, desesperada, se lançado à torrente? Teria sido levada viva pelo demônio? Não se sabia. De uma forma ou de outra, ela estaria perdida. Para a dama, foi um consolo não ter sido encontrada.

Ela estava tão transformada que as pessoas duvidavam do que estavam vendo. Os olhos não eram mais brilhantes como antigamente, mas possuíam uma luz muito estranha e lhe davam uma aparência pouco tranqüila. Ela própria temia causar medo. Não baixava os olhos, olhava de lado e podia muito bem perceber o efeito dessa sua atitude. Bronzeada de repente, dir-se-ia que havia passado muito tempo sob a chama, se queimando. Mas os que observavam melhor percebiam que a chama estava nela, que ela trazia em si uma impura e ardente fornalha. O traço flamejante com que Satanás a havia marcado permanecia nela. E como que através de uma lâmpada sinistra emitia

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um reflexo selvagem, perigosamente atraente. Tentava-se recuar, mas não se conseguia. Os sentidos eram agitados.

Ela se acha à entrada de uma dessas cavernas de trogloditas, numerosas em certas colinas do centro e do oeste. Eram províncias então selvagens, entre a região de Merlin e de Mélusine. Inúmeras charnecas testemunham ainda as antigas guerras e as eternas ruínas, terrores que impediam o país de se repovoar. Aí o Diabo sentia-se em sua casa. Seus poucos habitantes eram quase todos seus fervorosos devotos. Mesmo que sentisse alguma atração pela densa vegetação de Lorraine, os negros pinheirais do Jura, os sujos desertos de Burgos, suas preferências se dirigiam para as províncias do oeste...

Lá não era somente o pastor visionário, a satânica união da cabra e do bode, era uma conspiração ainda mais profunda com a natureza, uma maior penetração de drogas e venenos, de ligações misteriosas das quais não se descobriu a relação com Toledo, a universidade diabólica. . .

Começava o inverno. Desnudando as árvores, o vento havia amontoado folhas e galhos secos. Este cenário estava montado à entrada do triste abrigo. O bosque e a charneca estavam a um quarto de légua de algumas cidades.

"Eis teu domínio", disse-lhe a voz interior. "Hoje és mendiga, amanhã reinarás nessa região."

[1] Isto será explicado mais tarde. É preciso evitar os acréscimos pedantes que foram colocados no século XVII, os armamentos que os tolos emprestam a uma coisa tão terrível, pintando Satanás segundo suas próprias imagens (N. do A.)

Capítulo sete

O REI DOS MORTOS

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Ela não acreditou muito nessas promessas. Este lugar triste e solitário, sem Deus, os fortes e monótonos ventos do oeste, as lembranças impiedosas que a atormentavam nessa grande solidão, as inúmeras perdas e afrontas, a súbita e amarga viuvez, seu marido que a deixara na vergonha, tudo enfim a abatia. Joguete da sorte, ela se achava sem raízes, como a triste planta das charnecas que a brisa leva e traz, castiga e bate de forma cruel. Dir-se-ia um coral acinzentado, anguloso, cuja vida só se justificava em função de um sofrimento cada vez maior. E, além de tudo, é dominada pelo pequeno diabo. O povo diz, zombando: "É a noiva do vento".

Ela escarnece de si mesma. Mas surge uma voz do fundo daquela negra caverna: "Ignorante, insensata, não sabes o que estás dizendo... A planta que se revolve dessa maneira tem o direito de desprezar as heras oleosas e vulgares. Ela se revolve, mas completamente, levando tudo consigo, flores e sementes. Assemelha-te a ela. Sê tua raiz. E no próprio turbilhão tu ainda levarás flores, as nossas flores, da mesma maneira como aquela planta ressurge da poeira dos sepulcros e das cinzas dos vulcões. A primeira flor de Satanás eu te ofereço hoje, para que conheças meu primeiro nome, meu antigo poder. Eu fui o rei dos mortos. Oh! Como me caluniaram!... Eu, somente eu - e só por isso já merecia estar no altar -, posso fazê-las retomar à vida".

Penetrar o futuro, evocar o passado, antecipar, fazer voltar o tempo, que passa tão depressa, desdobrar o presente naquilo que foi e naquilo que será, tudo isso eram coisas proibidas na Idade Média. Mas em vão. Aqui, a Natureza é invencível, nada se ganhará com isso. Quem pensa assim é o homem. Ele não ficará mais preso a seu arado, os olhos baixos, com seu campo de visão limitado aos passos que dá atrás de seus bois.

Não, nós olharemos sempre para cima, cada vez mais alto, cada vez mais longe. Nós iremos cultivar penosamente esta terra, mas a esmagaremos com os pés dizendo sempre:

"Qual o mistério de tuas entranhas? Tu devolves o grão que te confiamos, mas não nos devolves esta semente humana, estes mortos amados, que te emprestamos. Os amigos, os amores que plantamos, não germinarão? Ah! se por uma hora, por um momento, eles retomassem!

"Logo também pertenceremos à terra desconhecida. onde eles já se encontram. Mas poderemos revê-las? Onde estão? Que fazem? É preciso que meus mortos estejam sob forte guarda para não me darem nenhum sinal! E eu, que fazer para que me ouçam? Como pode meu pai, que me amou desesperadamente, para quem fui único, não vir a mim?.. Oh, de ambos os lados servidão, cativeiro, mútua ignorância! Oh, sombria noite onde lutamos por um raio de luz!"

Outrora, estas idéias eternas sobre a natureza eram apenas melancólicas. Já na Idade Média, tornaram-se cruéis, amargas,

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enfraquecendo o coração. Parecia que a pretensão era de se esmagar a alma, tornando-a estreita e apertada como um ataúde. E a sepultura servil, entre as quatro ripas de pinheiro, é bem própria para isso. A mulher é perturbada por uma sensação de sufocamento. Aquele que é ali colocado retorna nos sonhos quase como uma sombra, leve e luminosa, como uma auréola. É um escravo torturado, miserável caça de um gato de garras infernais. É terrível a idéia de que meu pai, tão bondoso e amável, de que minha venerada mãe, sejam simples joguetes deste gato! Hoje você ri. Durante mil anos não se riu. Chorava-se amargamente. E, ainda hoje, não se pode escrever essas blasfêmias sem que o coração se irrite, sem que o papel e a pena não tremam de indignação!

Outra crueldade foi transferir a Festa dos Mortos da primavera para o mês de novembro. Em maio, como era de início, eles eram enterrados em meio a flores. Em março, para quando foi transferida logo depois, ela era comemorada junto com a do trabalho, com o alarido das andorinhas. A morte e a semente eram enterradas juntas, com a mesma esperança. Mas, infelizmente, em novembro, quando todos os trabalhos estão concluídos, a estação terminada há muito tempo, sombria, quando se retorna a casa, quando o homem volta a sentar-se junto à lareira e contempla à sua frente o lugar vazio para sempre... então o luto assume maiores proporções! Evidentemente, mesmo considerando esses momentos, já fúnebres per si, carentes dos favores da natureza, avaliou-se que os sofrimentos do homem ainda não eram suficientes...

Os mais calmos, os mais ocupados, embora distraídos pelas agitações da vida, passam por estranhos momentos. Na brumosa e sombria manhã, nas noites que descem tão depressa para nos envolver na escuridão, dez, vinte anos depois, não sei que fracas vozes chegam até seu coração: "Bom dia, amigo: somos nós... Então ainda estás vivo, trabalhas como sempre... Antes assim, não sofres muito por nos teres perdido e podes muito bem viver sem nós... Mas nós não podemos viver sem ti, nunca... As fileiras se fecham e o vazio desaparece. A casa que foi nossa está cheia e nós a abençoamos. Tudo vai bem, melhor mesmo que na época em que teu pai te carregava, no tempo em que tua neta te dizia: 'Vovô, carrega-me'. Mas estás chorando... Chega, adeus..."

Infelizmente, eles partiram; doce e pungente lamento. Justo? Não. Seria mil vezes melhor que eu me esquecesse de mim mesmo do que deles! E, no entanto, embora penosamente, somos obrigados a dizer que alguns de seus traços nos escaparam, são agora menos visíveis, e que - embora não totalmente apagados - seus semblantes estão corno que obscurecidos. Como é duro e amargo, corno é humilhante sentir-se tão fugidio, tão fraco, de5memoriado, ondulante corno a água. Perceber o passar do tempo e com ele perder o tesouro de dor que se esperava poder guardar para sempre! Suplico-vos, devolvei minha dor! Preciso imensamente dessa rica fonte de lágrimas... Dai novamente

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forma a essas esfinges tão queridas, eu vos peço... Se ao menos pudésseis fazer-me sonhar com elas à noite!

Muitos diziam isto em novembro... E, enquanto os sinos batiam, enquanto as folhas caíam em torrentes das árvores, eles deixavam a igreja, repetindo baixinho: "Sabes, vizinho, existe lá em cima uma mulher de quem se fala. bem e mal. Eu não ouso dizer nada. Mas ela domina este mundo aqui de baixo. Os mortos atendem ao seu chamado. Oh! se ela pudesse (sem pecado, é claro, sem aborrecer a Deus), oh, se ela pudesse trazer os meus mortos de volta!... Tu sabes, eu estou só, perdi tudo neste mundo. Mas ninguém sabe quem é esta mulher. Ela veio do céu ou do inferno? Não irei (mas ele morre de vontade de ir)... Não irei... Não quero arriscar minha alma. Aliás, este bosque é muito freqüentado. Vimos muitas vezes na charneca coisas que não podiam ser vistas... Tu sabes que a Jacqueline foi lá uma vez para procurar um dos seus carneiros? Pois bem, ela voltou louca de lá. Eu não irei".

Escondendo-se uns dos outros, muitos homens vão lá. Somente agora as mulheres ousam aventurar-se. Elas olham o perigoso caminho, interrogam aqueles que de lá voltam. A pitonisa não se parece com aquela que, a pedido de Saul, evocou Samuel. Ela não se deixa ver, mas ensina as palavras cabalísticas e as poderosas bebidas que permitirão que eles tenham visões em seus sonhos. Ah, quantas dores elas possuem! A própria avó, vacilante em seus oitenta anos, gostaria de rever seu neto. Por um supremo esforço, não sem remorsos de pe-car ao lado da tumba, ela aí se apega. O aspecto selvagem do lugar, a aspereza dos teixos, dos espinheiros, a brutal e negra beleza da implacável Prosérpina, tudo a agita. Trêmula e prosternada, lançada à terra, a pobre Telha chora e reza. Nenhuma resposta. Mas, quando ela fez menção de levantar-se um pouco, percebe que também o inferno chorou.

Simples mudança, uma reviravolta da natureza. Prosérpina enrubesce. Ela se revolta consigo mesma. "Alma degenerada", diz para si própria, "alma fraca! Tu, que vieste aqui com o firme propósito de só fazer o mal... É esta a lição do mestre? Ah, como ele irá rir!

"Mas, não... Não sou eu o grande pastor das sombras, para fazê-las ir e voltar, para abrir-lhes a porta dos sonhos? Ao pintar meu retrato, teu Dante esqueceu meus atributos. Colocando-me esta cauda inútil esquece que eu possuo o bastão pastoral de Osíris e a vara mágica que eu herdei de Mercúrio. Em vão acreditou-se que se pudesse construir uma muralha intransponível entre os dois mundos, pois possuo asas nos calcanhares e a ultrapassei voando. Embora caluniado, este monstro impiedoso caridosamente socorreu aqueles que choravam, consolou os amantes, as mães. Contrariando o novo Deus, ele teve piedade delas."

A Idade Média, com todos os seus escribas eclesiásticos, não evitou confessar as profundas transformações que se operaram no espírito

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popular. Infelizmente, torna-se claro que a partir daí a compaixão aparece do lado de Satanás. A própria Virgem, o ideal da graça, não responde às necessidades do coração. Muito menos a Igreja. A evocação dos mortos permanece expressamente proibida. Enquanto todos os livros continuam a se referir ou ao sujo demônio dos primeiros tempos ou ao demônio de garras, o carrasco da segunda época, Satanás mudou de figura para aqueles que não escrevem. Ele ainda se conserva como o velho Plutão, mas sua pálida e inexorável majestade concede aos mortos a possibilidade de retorno e aos vivos a possibilidade de rever os mortos. De quando em quando, Osíris, o pastor das almas, retoma para seu pai ou para seu avô. Dessa mudança decorrem várias outras. Falava-se abertamente sobre o inferno oficial, de caldeiras ferventes.

Até que ponto acreditava-se nisso? Seria possível conciliar as complacências deste inferno com a terrível tradição de um inferno de torturas? Uma idéia neutraliza a outra, sem apagá-la totalmente. Forma-se a esse respeito uma dupla idéia, um pouco vaga, que cada vez mais se aproxima do inferno de Virgílio. Grande alívio para o coração! Sobretudo para as pobres mulheres que este terrível dogma do suplício de seus mortos amados levava a ficarem mergulhadas em lágrimas, sem consolo. Toda sua vida não era mais que um lamento de dor.

A profetisa sonhava com as palavras do mestre quando ouviu um passo. O dia apenas começava (era depois do Natal, por volta do dia 1º. de janeiro). Na grama estalante e congelada, uma pequena mulher loura, trêmula, se aproxima. Ao chegar, desfalece, não pode respirar. Seu vestido negro é uma prova de sua viuvez.

Sobre o cortante olhar de Medéia. Imóvel e muda, ela, entretanto, diz tudo. Não existe mistério nessa pessoa temerosa. A outra diz em voz alta: "Não precisas tentar falar, pequena muda, pois não conseguirás. Eu direi tudo por ti... Pois bem, tu estás morrendo de amor!" Recuperando-se da emoção, ela junta as mãos e quase de joelhos se confessa. Ela sofria, chorava, rezava, na mais completa solidão. Mas essas festas de inverno, essas reuniões familiares, a felicidade mal disfarçada das mulheres que sem piedade ostentavam um amor legítimo fizeram com que o fogo voltasse ao seu coração... In-felizmente, que poderá ela fazer? Se ele pudesse voltar e consolá-la por um momento: “Daria em troca minha própria vida... que eu morra, mas que o veja ainda uma vez!"

"Volta para tua casa e fecha bem a porta. Cerra as cortinas para que ninguém te veja. Tira o luto e põe o teu vestido de núpcias. Coloca os talheres dele na mesa. Mas ele não virá. Cantarás a canção que ele fez para ti e que tantas vezes cantou. Mas ele não virá.

"Tirarás da arca e beijarás o último traje que ele usou. E dirás então: 'Pior para ti, se não vieres!' E, em seguida, bebendo esse vinho

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amargo, dormirás profundamente em teu leito de núpcias. Então, na certa, ele virá.”

A moça não se transformará em mulher se, na manhã seguinte, feliz e enternecida, não confessar baixinho, à sua melhor amiga, o milagre: "Não contes a ninguém, por favor... mas ele próprio me disse que se eu usar este vestido e dormir sem despertar, ele voltará todos os domingos".

Mas essa felicidade é perigosa. Que seria dessa imprudente se a Igreja viesse a saber que ela não é mais viúva, que, ressuscitado pelo amor, o espírito vem consolá-la?

Fato raro, o segredo é mantido. Todas se entendem, escondem um doce mistério. Quem não tem interesse nisso? Quem não perdeu alguém? Quem não chorou? Quem não vê, com alegria, construir-se uma porta entre esses dois mundos?

“Ó benfazeja feiticeira, Deusa das Trevas... Sede bem-vinda!"