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INTRODUÇÃO

Este livro procura ser algo semelhante a um diário ou à crônica de uma longa e apaixonante viagem que come-çou com Jesus de Nazaré, na Galileia, quando ele convidou alguns homens e mulheres a segui-lo, a colocar-se em mar-cha. Desde então foi incorporando numerosos viajantes ao longo do tempo e do espaço. É uma viagem que começou, que sabe qual é sua meta e que até agora não se deteve.

Creio que a metáfora da viagem se aplica perfeita-mente ao conteúdo do qual aqui nos ocupamos, que é a história da Igreja.

Como em toda viagem, e em especial uma tão extensa e que envolve tantas pessoas, tantos lugares e circunstâncias, também existe muito para contar. Muitíssimo. E nunca, por mais minucioso que seja, nenhum relato pode abranger tudo isso. Nem mesmo este. É só uma primeira tentativa de tornar conhecidas algumas das vicissitudes e vivências pró-prias e alheias: as que pessoalmente protagonizamos, as que nos contaram, aquelas cujos testemunhos temos visto, as que ninguém nos contou mas se conservaram na memória coletiva, as que escutamos contar que outros contaram.

Com esta exceção faço meu primeiro esclarecimento para os leitores. Este texto não esgota os fatos, processos,

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personagens e estruturas do passado. Foi necessário e impe-rioso selecionar alguns; talvez nem sempre os mais conhecidos e de maior repercussão, mas sim os que consideramos que podiam contribuir com algo significativo para quem quer co-nhecer mais sobre este tema. Neste sentido, e seguindo com a metáfora escolhida, podemos pensar que nestes tempos de tecnologia digital aqueles que não têm câmera fotográfica própria costumam receber numerosos CDs com as fotogra-fias que muitos companheiros de viagem fizeram. Algumas estão repetidas várias vezes, porque ninguém soube escolher a tomada do monumento mais clássica, a paisagem mais boni-ta ou o personagem mais típico, mas outras aparecem só uma vez. Somente a alguém ocorreu registrar algo que os outros viajantes talvez nem mesmo levaram em consideração. Quase sempre essa escolha cinge-se de características próprias.

Em meu caso particular, frequentemente dediquei horas a tirar fotografias detalhadas de documentos histó-ricos que aos olhos de outras pessoas são, simplesmente, papéis velhos. O que para um geólogo pode ser uma mara-vilha da natureza, para a pessoa não entendida não é mais que uma pedra sem valor; muitos se aborrecem nos museus de arte, enquanto os especialistas e entendidos analisam pinturas ou esculturas que a um simples olhar “são todas iguais”. Com tudo isto quero advertir o leitor de que neste livro não está toda a história da Igreja. E aquilo que está nem sempre foi captado em sua totalidade, mas só em um aspecto, o qual pessoalmente me atraiu ou acreditei podia ser de interesse para a maior quantidade dos destinatários.

Desde já, a seleção também aqui tem a ver com mi-nhas próprias características. Sou mulher, leiga e mãe de família. Profissionalmente, docente e históriadora. Concor-do com a pessoa e com o ensinamento de Jesus e procuro

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INTRODUÇÃO

viver minha fé cristã no seio da Igreja católica. Nasci, cres-ci, vivo e espero continuar vivendo em Córdoba, cidade do interior da Argentina. E, embora seja proveniente de uma família de imigrantes, sinto-me e me compreendo parte da grande pátria latino-americana. Indubitavelmente tudo isto influiu no momento de selecionar aquilo que queria compartilhar com os leitores. É honroso dizer-lhes que é um olhar, mas não o único.

Procurei ater-me aos critérios científicos de minha disciplina e manter uma visão de conjunto, o mais objetiva e imparcial possível. Mas nem mesmo pude prescindir de algo de paixão, porque a história é, antes de mais nada, vida, vida de homens e mulheres como nós, e a vida sempre é apaixonante. E, como sou uma pessoa crente, para mim a história da Igreja é, sobretudo, o lugar por excelência para experimentar a vida e a ação de Deus no meio de seu povo. Na vida humana, na vida das pessoas, das comunidades, do mundo, Deus se revela, se nos faz próximo, nos fala, nos convida a viver nele. Isso me fascina, me entusiasma e me comove; e pode ter feito que em alguns momentos minha própria subjetividade tenha se colado no texto.

O leitor compreenderá, assim que começar a andar pelas páginas, que nesta viagem, como em toda viagem, produziram-se mudanças, contratempos e auxílios. Em algumas épocas se caminhava a pé, em outras a cavalo, de carro, de barco ou de avião, e sabemos que todos es-ses meios são bons e úteis, levam felizmente ao destino no tempo desejado; mas também sabemos que às vezes os pés se enchem de bolhas, as cavalgaduras se cansam, os automóveis esquentam, o mar embravece e dificulta a na-vegação, as tormentas atrasam os voos. Tudo isso sucedeu ao longo desta travessia de mais de dois mil anos que é a

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história da Igreja. Mas o importante é que, embora tenha havido necessidade de demorar ou de mudar o meio de transporte, a viagem continua.

O conteúdo deste livro tem um caráter eminentemen-te descritivo. Voluntariamente optamos por esta modalidade para permitir que os leitores se encontrem com o passado da comunidade eclesial, e depois elaborem suas próprias interpretações, valorizações e posições. Para aqueles que se interessarem por aprofundar alguns ou todos os temas, oferecemos-lhes uma bibliografia que, nos termos da metáfo-ra, em alguns casos equivaleria aos folhetos, mapas e guias de viagem, com sua própria seleção de informação e imagens; e em outros aos álbuns com as fotografias que outros autores tomaram segundo seus próprios interesses. A intenção é aju-dar a que cada um encontre aquilo que mais lhe interesse e possa aprofundá-lo se assim o desejar.

Um tema não menor que também desejo esclarecer aos leitores é o relativo aos modelos ou definições de Igreja. Existem numerosas maneiras de explicar e de entender essa realidade ao mesmo tempo humana e divina, e ao longo do tempo se preferiram umas ou outras. Somaram-se algumas que se mostravam mais apropriadas às linguagens e men-talidades de cada época e deixaram de ser usadas as que já não diziam nada aos homens de um tempo determinado. Todas as metáforas e todos os símbolos utilizados são valio-sos e importantes porque refletem algum aspecto da vida e da missão da comunidade eclesial. Quanto às definições, nenhuma esgota o significado profundo desse mistério.

Neste texto entendemos principalmente a Igreja como o povo de Deus, com o conjunto de homens e mulheres que ao longo do tempo procuraram viver sua fé em Jesus de Na-zaré, receber seus ensinamentos, colocá-los em prática para

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a construção de seu Reino e compartilhá-los com outros de diversas maneiras. Em outras palavras, é a comunidade dos crentes, o diverso e multiforme conjunto de pessoas que compartilham a fé, superando todas as diferenças que pos-sam ter em relação à maneira de entendê-la e vivê-la.

Estamos conscientes também da dimensão institucio-nal da Igreja, que ao longo do tempo foi se configurando de uma certa forma em sua interação com o mundo, ado-tando costumes, linguagens, ideias e práticas próprios de cada época e cada lugar, deixando sua própria marca na vida e na cultura dos povos e das pessoas. Ambos os aspec-tos, em tensão e complementaridade permanentes, foram objeto de nossa observação neste relato.

Em toda viagem existem alguns pontos que não po-dem deixar de ser visitados ou de se levar em consideração. São aqueles que são característicos e constituem o essencial da área pela qual se transita ou que se visita. Se fôssemos a uma ilha do Caribe, não deveríamos deixar de ir à praia; se viajássemos por Paris, a torre Eiffel seria um ponto do qual não deveríamos prescindir. Na grande viagem da his-tória da Igreja, também existem alguns pontos-chave, a partir dos quais se deve olhar todo o panorama. Por isso, no primeiro capítulo sugerimos três temas a partir dos quais refletir cada capítulo ou trecho da história: a palavra de Deus, a ação missionária e a opção pelos pobres.

Por último, é necessário dizer que essa viagem que já supera os dois mil anos admite variadas formas de inte-gração e de participação. Os viajantes podem somar-se em diferentes momentos e de maneiras também diversas. Po-dem se limitar a escutar e compartilhar as experiências de outras pessoas, podem participar em alguns trechos ou po-dem somar-se a ele de maneira definitiva. Os lugares que

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ocuparão e as experiências que compartilharão também serão diversas. Mas algo é certo: nunca viajarão sozinhos e, unidos ao resto dos passageiros, não perderão facilmente o rumo ou, em todo caso, sempre poderão voltar ao ca-minho. Sempre haverá praças disponíveis; é questão de se colocar em marcha.

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A. Alguns pressupostos e indicações básicos antes de começar o caminho

É frequente quando se organiza uma viagem, sobre-tudo, se realizada em grupo, fazer uma reunião prévia na qual se dão as indicações gerais, antecipam-se algumas questões e se prepara os viajantes para a experiência que estão para viver. Algo semelhante procuramos oferecer agora com estes conceitos básicos de história da Igreja.

É comum ao apresentar um texto de qualquer disciplina começar com uma definição. Ainda que seja muito elementar, é necessário situar a pessoa que se dispõe a penetrar neste contexto de novos conceitos, ideias, relações e interpretações que constituem cada área de conhecimento.

No caso da história da Igreja, podemos dizer que se trata de uma tarefa relativamente simples, pois é uma ma-téria na qual o vocabulário técnico específico não é muito abundante e os conceitos de uso frequente são também de uso cotidiano. Não obstante, ao longo dos anos não cessaram os debates entre os especialistas a respeito das seguintes questões:

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Trata-se de um ramo da ciência histórica ou da ciência teológica? De qual perspectiva teórico-metodológica deve ser abordado?

As posições são variadas, e os argumentos também. A realidade nos indica que os especialistas em história da Igreja provêm tanto do campo da história quanto do cam-po da teologia, e até o momento os debates não chegaram a nenhuma conclusão definitiva. A que se deverá isto? Veja-mos a ideia-chave que está na raiz da diferença de opiniões.

Se o leitor é crente cristão sabe, tanto por sua própria experiência de vida quanto por tê-lo aprendido na forma-ção cristã básica, que a Igreja possui um duplo princípio e é, ao mesmo tempo, uma instituição humana e divina. Enquanto instituição humana, pode ser estudada da perspectiva de diversas ciências sociais: sociologia, antropo-logia, história, psicologia etc. Enquanto instituição divina, seu conhecimento é próprio da teologia; concretamente, do ramo denominado eclesiologia.

Levando em consideração essa “dualidade” caracte-rística da Igreja, podemos entender o seguinte: a discussão obedece a que o objeto de estudo da história da Igreja, que é a Igreja mesma, provém do campo da teologia. É evi-dente também que a história não estuda todos os aspectos da vida dessa instituição, mas somente seu passado, isto é, o desenvolvimento sofrido ao longo do tempo desde seus inícios até o presente. Este aspecto constitui o campo de estudo da ciência histórica. Segundo qual seja a prioridade dos investigadores e para onde dirijam seu olhar será in-cluída em um ou em outro campo do conhecimento.

De todas as maneiras, esse debate não deve necessaria-mente encerrar-se em uma resposta única; pelo contrário,

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deve levar a enriquecer o estudo com as perspectivas de análise de ambas as disciplinas – e de outras mais que até agora têm participado da discussão em menor escala.

Chegados a este ponto podemos tentar uma primeira definição, que é de caráter elementar e poderá enriquecer--se mais adiante conforme progrida a leitura dos próximos capítulos. A história da Igreja é o conhecimento científico e sistemático da origem, da expansão e do desenvolvimen-to – isto é, do realizar-se no tempo – da Igreja, atendendo tanto à vida intraeclesial quanto a suas relações com as so-ciedades e as culturas nas quais se insere e se desenvolve.

É preciso ter presente que ao dizer “Igreja” nos referimos ao povo de Deus, às comunidades de homens e mulheres que ao longo do tempo procuraram viver sua fé em Jesus de Nazaré, acolher seus ensinamentos, colocá-los em prática para a construção de seu Reino e compartilhá--los com outros de diversas maneiras, chegando a constituir uma instituição de características complexas que subsiste até nossos dias, ainda que com mudanças lógicas que foram se operando ao longo do tempo.

Escapa às nossas possibilidades estudar a ação de Deus no meio de seu povo, ou as maneiras como sua gra-ça operou e opera nos corações. Porém, se desejamos ter uma visão crente da história, podemos vislumbrá-la atra-vés de seus efeitos ou resultados na vida das comunidades cristãs. Somente o aspecto “humano” da Igreja pode ser abordado a partir dessa disciplina. Serão objeto de estudo desse ramo do conhecimento o surgimento das comunida-des cristãs, suas formas de organização, as relações dentro delas e com o seu entorno, sua expansão, as formas nas quais as pessoas viveram suas relações consigo mesmas, com o mundo e com Deus, as manifestações de sua vida

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espiritual, os modos com que adotaram a prática do amor mútuo e dos valores do Reino expressos no Evangelho, as dificuldades, as limitações e os pecados que marcaram a vida dos cristãos das diferentes épocas.

Também é preciso ter claro que ao se falar de “história” – tanto no âmbito eclesial quanto no secular – faz-se referência a dois conceitos diferentes: por uma parte aos acontecimentos, fatos e processos que acontecem no tempo; por outra parte à ciência que estuda tais acontecimentos em forma sistemática e metódica. Ambos os conceitos se empregam, em geral, ape-lando ao contexto para sua diferenciação. Essa prática comum no ensinamento da história se aplicar-se-á também neste texto.

Como se obtêm os conhecimentos próprios da história da Igreja?

Como toda ciência, a história da Igreja obtém seus conhecimentos de maneira metódica, submete-os à verifi-cação, estabelece relações entre eles e os organiza para que possam ser compreendidos e transmitidos.

Os passos da investigação seriam aproximadamente os seguintes:

� Detectar e formular problemas ou interrogações rela-tivos à vida das comunidades cristãs em um tempo e um lugar determinados.

� Elaborar tentativas de explicação (hipóteses).

� Buscar informação em diversas fontes (eclesiais ou ex-traeclesiais) para comprovar a veracidade da hipótese proposta.

� Elaborar afirmações gerais e objetivas que depois possam ser analisadas e interpretadas a partir da pers-pectiva de várias ciências humanas e teológicas.

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Em alguns casos pode-se trabalhar sem elaborar hi-póteses, quando se trata de investigações interpretativas etnográficas ou se aplicam modelos exploratórios.

Quais são as fontes da história da Igreja?

Para obter conhecimento a respeito do passado, os his-tóriadores analisam os testemunhos, isto é, os indícios das atividades humanas realizadas no passado, e os convertem em fontes, ou seja, “lugares” de onde obter a informação.

As fontes para conhecer a história da Igreja são de diversos tipos. Segundo o suporte ou material podem ser:

� Escritas: são tanto os documentos oficiais como os pri-vados. Entre os primeiros podem ser citadas as atas judiciais, documentação oficial de origem eclesiástica e civil, legislação, entre outras. Entre os segundos, cartas, diários íntimos, testemunhos etc. Também se incluem como fontes escritas as obras literárias “da época”, que são as que foram escritas durante o pe-ríodo estudado1.

� Orais: essas fontes estão constituídas pelas tradições que se foram passando de geração para geração a res-peito de diferentes aspectos da vida da comunidade cristã e, sobretudo, pelos testemunhos ou relatos de algumas pessoas. Em parte também a liturgia é uma fonte histórica oral.

�Materiais ou arqueológicas: são aqueles objetos mate-riais antigos que nos informam sobre alguns aspectos

1 No caso da história da Igreja Antiga destacam-se como fontes históricas escritas os textos neotestamentários, ainda que não tenham sido escritos com essa intenção ex-pressa. Também se destaca como fonte para esta etapa a obra clássica de Eusébio de Cesareia História eclesiástica, escrita a pedido do imperador Constantino, o Grande, na primeira metade do século IV, que por muito tempo foi quase a única obra geral especificamente dedicada a reconstruir o passado do cristianismo e, portanto, refe-rência e consulta quase obrigatória para os estudiosos do tema.

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do passado: objetos litúrgicos, ornamentos, móveis etc. Também se incluem neste grupo os edifícios, com tudo o que está neles (placas recordatórias, estátuas, vitrais etc.), motivo por que alguns chamam essas fontes de “monumentais”. As fontes audiovisuais ou gráficas (fitas de vídeo ou de áudio, fotografias etc.). podem incluir-se neste grupo, embora alguns autores as considerem como uma classe distinta2.

Segundo sua procedência, podem ser fontes eclesiais (as que se produziram dentro do mesmo âmbito eclesial) ou extraeclesiais (as que se produziram fora do âmbito eclesial, mas contêm informação relevante sobre a vida das pessoas e comunidades cristãs). Cada tipo de fonte oferece uma classe diferente de informação e, geralmente, procura-se usá-las de maneira complementar. Segundo as épocas e os lugares que se estudem pode-se priorizar umas ou outras.

Como se divide a história da Igreja?

A periodização é importante e muito útil para estudar a história. Para facilitar a compreensão, os históriadores dividiram a história da humanidade em períodos ou ciclos. Existem quatro grandes períodos chamados idades históri-cas: antiga, média, moderna e contemporânea, delimitados por grandes acontecimentos que, em seu momento, foram de suma transcendência.

Essas cisões ou divisões são só convencionais, o tempo possui um devir permanente que não se detém nem muda bruscamente, e as transformações sempre acontecem ao

2 Como resulta óbvio, as fontes de tipo audiovisual e todas as que impliquem o uso de novas tecnologias são de uso quase exclusivo para o conhecimento da história da Igreja contemporânea.

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longo de um lapso de tempo mais ou menos prolongado. É fácil supor que a vida cotidiana das pessoas comuns não terá mudado muito em 1453 (uma das datas que se consi-deram iniciais da Idade Moderna) com respeito a 1452, embora desde alguns anos antes e até algum tempo depois tenha se produzido uma série de acontecimentos políticos, científicos, econômicos, culturais, sociais e religiosos que, no decorrer do tempo, determinaram mudanças importantes. Mas esse processo durou cerca de um século. As datas surgem da necessidade de estabelecer os limites em alguma parte. Por outro lado, os acontecimentos que os históriadores esco-lheram para marcar os limites temporais de cada etapa têm a ver fundamentalmente com sua própria cultura, a europeia, e referem-se a acontecimentos significativos ocorridos no Velho Mundo, que, seguramente, nada significaram para os povos originários da América, da África ou da Oceania.

Pois bem, a história da Igreja não pode nunca ser en-tendida separada da história da humanidade em geral, mas é parte dela. A Igreja está formada por homens que vivem sua vida em um tempo determinado, com as características próprias de sua cultura, e que procuram orientar segundo os valores do Reino o mundo ao qual pertencem. Por isso se aceita para a história da Igreja a periodização tradicio-nal e se a utiliza como própria, embora nem mesmo todos os fatos assinalados como marcos sejam particularmente válidos no âmbito eclesial.

Assim é que falamos também da história da Igreja an-tiga, medieval, moderna e contemporânea, cujos períodos coincidem com os da história secular. Não sucede assim com a antiguidade, pois na história secular o limite inicial está marcado pelo aparecimento da escrita (aproxima-damente uns 6.000 anos antes do nascimento de Cristo),

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enquanto para a história da Igreja corresponde ao século I da era cristã, época da pregação, da morte e da ressurreição de Jesus, da formação dos primeiros grupos de discípulos e da organização das primeiras comunidades.

É preciso ter presente também que tanto na história secular quanto na eclesiástica os períodos podem subdivi-dir-se em etapas menores para maior compreensão e mais facilidade em seu estudo.

Neste livro de história da Igreja adotaremos a divisão cronológica baseada na periodização tradicional.

*Para recordar:

Idade Antiga: desde o aparecimento da escrita (6.000 a.C. aproximadamente) até a queda do Império Romano do Ocidente diante da invasão dos povos germanos [dos bárbaros] (476 d.C.).

Idade Média: desde o fim da Idade Antiga até a que-da do Império Romano do Oriente (Constantinopla) em poder dos turcos (1453) ou, segundo outros autores, até a chegada dos europeus à América (1492).

Idade Moderna: desde o fim da Idade Média até o começo da Revolução Francesa (1789).

Idade Contemporânea: desde o fim da Idade Moderna. A conclusão da Idade Contemporânea está em discussão. Alguns afirmam que ainda continua. A ampla maioria dos estudiosos coincide em afirmar que estamos assistindo a seu fim e ao começo de uma etapa nova, embora não haja acordo sobre qual seria o fato mais significativo para assi-nalar seu limite. No âmbito especificamente eclesial seria factível tomar como limite final a culminação do Concílio Vaticano II em 1965, mas ainda restaria resolver a questão relativa ao nome da nova época iniciada então.

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Por que conhecer a história da Igreja? É parte da formação básica de um cristão? Em que pode contribuir para uma pessoa não crente?

Várias poderiam ser as respostas a estas interrogações. Eis aqui algumas delas:

� É especialmente importante hoje devido a que se nos convida, desde a celebração do jubileu do ano 2000, a refletir sobre o passado, a fim de pedir perdão pelas culpas, assumindo os erros cometidos, e glorificar a Deus pelos acertos e pela santidade derramada sobre seu povo nestes anos.

� Permite-nos olhar para nós mesmos, conhecer nossa própria história e compreender como chegamos até aqui, como a Igreja de hoje chegou a ser o que é.

� Por ela poderemos reconhecer-nos como herdeiros de um passado comum com suas glórias e seus pecados. Também nos ensina a solidarizar-nos com os homens e mulheres de toda época e todo lugar em suas lutas por viver com dignidade, por superar as adversidades, por construir um mundo melhor, para além de suas crenças religiosas.

� Ajuda-nos a experimentar que a comunhão no único Espírito Santo “funda também diacronicamente uma comunhão dos ‘santos’ por força da qual os batizados de hoje se sentem unidos aos batizados de ontem e, tal como beneficiam do seus méritos e se alimentam de seu testemunho de santidade, sentem-se também no dever de assumir o eventual peso das suas culpas”3.

É preciso renunciar à ideia de que o estudo da história nos permite tirar lições para o presente de maneira direta, como se

3 Memória e reconciliação. A Igreja e as culpas do passado, item 4.2.

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se aplicasse uma fórmula matemática: “Sempre que se faz tal coisa acontece tal outra coisa”, pois estaríamos desconhecendo um fator de suma importância no momento de conhecer qual-quer atividade humana: “a liberdade de escolha”.

Mesmo que ninguém possa ignorar que das experi-ências vividas por nós mesmos ou por outros muitas vezes podemos extrair ensinamentos interessantes, anda que seja de forma indireta, tanto se somos crentes como se não o somos.

O que se requer para adentrar-se na história da Igreja?

Para ler e conhecer mais sobre essa disciplina se re-quer capacidade de compreensão. Isto é, despojar-nos de nossos próprios pontos de vista, atitudes, preconceitos e condicionamentos culturais, para colocar-nos no lugar de pessoas que tiveram muito em comum conosco, embora também tenham tido muito de diferente.

Deve-se procurar olhar a partir da perspectiva dos que viviam em outros tempos, outras culturas, outras realidades, e evitar os juízos de valor sobre os fatos e pessoas do passado.

Ao longo do estudo desta disciplina, será preciso ter presente que no âmbito da história da Igreja “a conexão entre passado e presente não está motivada somente pelos interesses atuais e pela comum pertença de todo serhumano à história e a suas mediações expressivas, mas se fundamenta também na ação unificante do Espírito de Deus e na iden-tidade permanente do princípio constitutivo da comunhão dos crentes, que é a revelação”4.

Uma vez propostas estas questões fundamentais, es-tamos em condições de iniciar este processo: adentrar-nos

4 Ibid., p. 67-68.

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no conhecimento dos fatos e dos processos do passado da instituição eclesial.

Convido você, leitor, a iniciarmos juntos esse caminho.

B. Para olhar a história da Igreja a partir de alguns pontos-chave...

Este livro se propõe tornar conhecidos alguns fatos e pessoas do passado da Igreja apressadamente alinhavados em um relato mais ou menos consistente. Porém, para além desse objetivo, procura favorecer que as pessoas, sobretudo, as comunidades que procuram seguir Jesus e compartilhar sua mensagem hoje encontrem um espaço para refletir, per-guntar, interrogar-se, aprender e projetar. À maneira e com as limitações e possibilidades de nosso tempo.

A experiência de tantos homens e mulheres e a ação permanente e amorosa do Espírito no meio de seu povo são uma riqueza que herdamos e da qual podemos dispor como membros da mesma família.

Mesmo que não seja válido julgar as ações de outras pessoas em outros tempos e contextos nem usar nossos próprios critérios para valorizar o passado, a Igreja foi sem-pre uma comunidade de fiéis que escutam a palavra de Deus, recebem-na em sua própria vida e a compartilham com todos, em especial com os mais pobres, oprimidos e ignorados. Ou pelo menos procuram fazê-lo.

Esses parâmetros podem converter-se em critérios orientadores em um processo de aprofundamento e refle-xão da história comum do povo de Deus.

As perguntas que apresentamos a seguir indicam para essa direção. Algumas respostas poderão ser encontradas nas páginas adiante, outras será preciso buscá-las em outras

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fontes e algumas mais irão provir do exercício da autor-reflexão. O importante é continuar propondo perguntas e buscando respostas, continuar olhando o caminho per-corrido e, enquanto vamos caminhando, contemplar o que fica adiante de nós.

A Palavra de Deus

Ao longo de cada uma das etapas da história da Igre-ja, a comunidade de discípulos de Jesus escutou, meditou, acolheu em si e procurou viver esta palavra que Deus lhe dirigiu. Às vezes se mostrou receptiva, criativa, aberta; em outras oportunidades foi mais reticente, literal e estrita no momento de a interpretar. Mas a Palavra – Jesus – tem acompanhado seu povo há mais de 2.000 anos, pois aquele que ama busca sempre os modos de comunicar-se e de se fazer entender.

Uma boa maneira de olhar a história da Igreja à luz da palavra de Deus consiste em se perguntar, ao terminar a leitura de cada capítulo:

� Conheciam os homens e mulheres crentes nessa épo-ca o que Deus havia ensinado ao povo de Israel e o que Jesus havia ensinado a seus discípulos?

� Como chegavam os cristãos dessa época à palavra de Deus?

� Se não a liam diretamente, havia outros meios pelos quais podiam conhecê-la? (pintura, escultura, músi-ca, tradição oral etc.).

� Que papel tinha a Sagrada Escritura na vida cotidiana e nas práticas especificamente “religiosas” das pessoas nesse tempo?

� Que conteúdos da Sagrada Escritura se ensinavam aos fiéis? Por quais meios?

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� Como se desenvolveram os estudos vinculados à Sa-grada Escritura em cada período histórico? Quem os realizou? Com que objetivo e de qual perspectiva?

� Em que situação nos encontramos hoje em todos esses aspectos? Como chegamos até aqui?

Referências bíblicas: Is 55,10-11; Jr 15,16; Mt 4,4; Mt 7,24-27; Lc 11,27-28; Hb 1,1

Os pobres, oprimidos e ignorados

Já há vários anos a Igreja, em particular na Améri-ca Latina, fala da “opção pelos pobres”. Por ocasião da Conferência Geral do Episcopado Latino-americano cele-brada em 2007 em Aparecida do Norte (Brasil), os bispos, citando o papa Bento XVI, sustentavam que essa opção tem sua raiz na fé em Cristo, “que se fez pobre por nós para enriquecer-nos com sua pobreza”. De modo que não é nenhuma novidade. O próprio Jesus, que veio para anunciar a Boa-nova a todos, deixou claro o papel prin-cipal dos pobres. Isso sucedeu quando se adjudicou a si mesmo o texto do profeta Isaías no qual disse que havia sido enviado para trazer a Boa-nova aos pobres, anunciar a libertação aos cativos e dar a vista aos cegos, dar a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor (Lc 4,18-19). Em suas atitudes cotidianas mostrou-se sempre interessa-do pelos enfermos, pelas crianças, pelas mulheres, pelos estrangeiros e por todos os que estavam à margem da so-ciedade de seu tempo.

De modo que, desde sempre, os crentes souberam que estes tinham a atenção preferencial de Jesus. Mas as maneiras em que se assumiu essa prioridade do Evangelho ao longo dos séculos foram muito diversas.

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Por isso convidamos os leitores a se interrogar ao tér-mino de cada capítulo:

� Quem eram os pobres nessa época de maneira particular?

� Que espécie de opressões (raciais, culturais, de gêne-ro, religiosas, econômicas e outras) sofriam as pessoas nesse tempo?

� Quais as pessoas que viam ameaçada sua liberdade?

� Que mensagem tinha a Igreja para elas nesse contex-to determinado? Como a anunciou?

� Para quem e até que ponto o ensinamento da Igreja significou encontrar uma boa notícia de liberdade, como proclamava Jesus? Por quê?

� Que papel tiveram os pobres na Igreja nessa época (protagonistas ou atores secundários, membros ativos ou passivos, agentes ou destinatários do anúncio do Evangelho)?

� Como poderiam ser respondidas todas estas pergun-tas em nossa atual situação social e eclesial?

Referências bíblicas: Lc 4,18-19; Mc 1,29-39; Jo 8,1-11; Mc 12,41-44; Mt 19,13-15; Mc 5,21-42; Mc 7,24-37.

A missão evangelizadora

Desde o início de sua vida pública, Jesus escolheu alguns de seus seguidores para que estivessem com ele e para enviá-los a pregar. Importa dizer que, desde o começo, ser discípulo de Jesus, compartilhar sua vida e receber seu ensinamento implicava também compartilhar essa vida com outros. O próprio Jesus enviou seus discípulos em várias ocasiões a anunciar o Reino de Deus aos po-voados e cidades aonde ele devia ir, e em sua despedida os encarregou de ir por todo o mundo e fazer discípulos

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todos os povos, ensinando-lhes tudo o que ele lhes havia ensinado. Também os evangelhos dão testemunho de que as pessoas que se encontravam com Jesus se sentiam naturalmente impelidas a compartilhar sua experiência com outros, e o mesmo acontecia com os cristãos das primeiras comunidades.

Ao longo do tempo, os seguidores de Jesus conti-nuaram a fazê-lo conhecido e anunciaram a Boa Notícia. Graças a eles nós temos escutado seu convite a nos somar-mos a essa tarefa. Nem sempre todos na Igreja tiveram presente a importância desse labor e seu caráter universal e fundamental. Nem em todas as épocas se levou à realiza-ção com o mesmo entusiasmo, e, evidentemente, os meios, os agentes e os destinatários foram mudando também.

Ao finalizar cada capítulo deste livro seria útil in-terrogar-se:

� Como se entendia a missão nessa época?

� Quais os que a levavam à realização e a quem se dirigia?

� Quais eram o conteúdo e o objetivo do anúncio missionário?

� Que participação cabia aos diversos grupos de fiéis pertencentes à comunidade eclesial? E à comunidade como tal?

� Onde e de que maneira se levava à realização esse anúncio?

� O anúncio missionário tinha consequências políticas, sociais, econômicas, culturais ou de algum outro tipo, além das propriamente religiosas?

� Como leva à realização a Igreja de nosso tempo o mandato de anunciar a Boa Notícia de Jesus a todos os homens e a todos os povos?

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HISTÓRIA DA IGREJA

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� Que desafios apresenta hoje essa missão? Como são discernidos e assumidos nas comunidades cristãs?

Referências bíblicas: Mc 3,14; Mt 10,5-15; Lc 10,1-12; Mt 28,16-20; Jo 1,35-52; Jo 4,1-42; At 9,1-19; At 12,24–13,5; At 18,9-11; 1Cor 9,1-3.16-18.