18
ZILLES, Urbano. O problema do conhecimento de Deus. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. II CAMINHOS RACIONAIS 1- O argumento ontológico Desde Kant, o argumento a priori de S. Anselmo de Cantuária (1033 - 1109) é chamado ontológico. Trata-se do argumento exposto nos primeiros capítulos do Proslogion, no qual procurou "encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os outros seres precisam dele para existirem e serem bons" (Proêmio). Conclui o segundo capítulo com o célebre argumento: 18 "Mas o ser do qual não é possível pensar nada maior, não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há- outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, o ser do qual não é possível pensar nada maior, existisse somente na inteligência, esse mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que certamente, é absurdo. Logo, o ser do qual não se pode pensar nada maior existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade" (Proslogion, 2). Segundo Kant (1724 - 1804), esta é uma prova ontológica que tenta provar a existência de Deus mediante a análise de sua essência ou definição. Opõe-se à prova cosmológica ou a contingentia mundi. O espaço, no qual a razão se move, é a fé. Diz Anselmo: "Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender" (Proslogion, I). Todo o livro de S. Anselmo é uma invocação a Deus: "Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro; pois sequer posso procurar-te, se não me ensinas a maneira, nem encontrar-te, se não te mostrares" (Proslogion, I). O problema, todavia, consiste em saber se tal ser do qual não é possível pensar nada maior existe mesmo, ou seja, não apenas dentro do pensamento de cada homem, mas como realidade fora da inteligência. Anselmo de Cantuária não parte de uma experiência externa, mas do próprio conceito de Deus. Como pensar em Deus sem pensar em um existente? A alma experimenta a atração de Deus, mas o sente como algo perdido. Tem uma visão implícita dele. Anselmo passa do implícito ao explícito. Parte, pois, de um dado de fé e procura, exclusivamente através da razão, provar que o dado de fé compreende a verdade. Tal dado é a crença do cristão na existência de Deus e trata de um ser tal que não se pode conceber nada maior do que ele. Tal existência indiscutível exige logicamente que Deus exista na realidade. Esta é sua prova. A prova 19 realiza-se através da comparação entre o ser pensado e o ser real, tornando o segundo maior que o primeiro. Força a passagem da ordem lógica para a ontológica. Anselmo examina o problema do ser do qual não é possível pensar nada maior. Se este apenas existisse na inteligência, poderia pensar-se outro existente não só na inteligência mas também na realidade. Nesse caso este seria maior (mais perfeito) que o primeiro. A argumentação de Anselmo baseia-se nos seguintes pressupostos: a) uma noção de Deus fornecida pela fé; b) a convicção de que existir no pensamento já é verdadeiramente existir; c) a exigência lógica de que a existência da noção de Deus no pensamento determine que se afirme sua existência na realidade; d) o que existe na realidade é maior ou mais perfeito do que o que existe só no intelecto; e) negar que aquilo de que não se pode pensar nada de maior exista na realidade, significa contradizer-se. No Proslogion Anselmo parte de uma reflexão religiosa sobre o Salmo 13: "Diz o insensato no seu coração: Deus não existe". Diz Anselmo que o insensato, ao dizer que não há Deus, compreende aquilo que diz. Por isso, se lhe dissermos que Deus é um ser do qual não é possível pensar nada maior também compreenderá. Deus está, pois, na

(4.2) ZILLES, Urbano. O Problema Do Conhecimento de Deus

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O Problema Do Conhecimento de Deus

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  • ZILLES, Urbano. O problema do conhecimento de Deus. Porto Alegre:

    EDIPUCRS, 1997.

    II CAMINHOS RACIONAIS

    1- O argumento ontolgico Desde Kant, o argumento a priori de S. Anselmo de Canturia

    (1033 - 1109) chamado ontolgico. Trata-se do argumento exposto nos

    primeiros captulos do Proslogion, no qual procurou "encontrar um

    nico argumento que, vlido em si e por si, sem nenhum outro,

    permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele o

    bem supremo, no necessitando de coisa alguma, quando, ao contrrio,

    todos os outros seres precisam dele para existirem e serem bons"

    (Promio). Conclui o segundo captulo com o clebre argumento:

    18 "Mas o ser do qual no possvel pensar nada maior, no pode

    existir somente na inteligncia. Se, pois, existisse apenas na inteligncia,

    poder-se-ia pensar que h- outro ser existente tambm na realidade; e

    que seria maior. Se, portanto, o ser do qual no possvel pensar nada

    maior, existisse somente na inteligncia, esse mesmo ser, do qual no se

    pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual possvel, ao

    contrrio, pensar algo maior: o que certamente, absurdo. Logo, o ser

    do qual no se pode pensar nada maior existe, sem dvida, na

    inteligncia e na realidade" (Proslogion, 2).

    Segundo Kant (1724 - 1804), esta uma prova ontolgica que

    tenta provar a existncia de Deus mediante a anlise de sua essncia ou

    definio. Ope-se prova cosmolgica ou a contingentia mundi. O

    espao, no qual a razo se move, a f. Diz Anselmo:

    "Com efeito, no busco compreender para crer, mas creio para

    compreender. Efetivamente creio, porque, se no cresse, no conseguiria

    compreender" (Proslogion, I). Todo o livro de S. Anselmo uma

    invocao a Deus: "Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que

    te procuro; pois sequer posso procurar-te, se no me ensinas a maneira,

    nem encontrar-te, se no te mostrares" (Proslogion, I). O problema,

    todavia, consiste em saber se tal ser do qual no possvel pensar nada

    maior existe mesmo, ou seja, no apenas dentro do pensamento de cada

    homem, mas como realidade fora da inteligncia.

    Anselmo de Canturia no parte de uma experincia externa, mas

    do prprio conceito de Deus. Como pensar em Deus sem pensar em um

    existente? A alma experimenta a atrao de Deus, mas o sente como

    algo perdido. Tem uma viso implcita dele. Anselmo passa do implcito

    ao explcito. Parte, pois, de um dado de f e procura, exclusivamente

    atravs da razo, provar que o dado de f compreende a verdade. Tal

    dado a crena do cristo na existncia de Deus e trata de um ser tal que

    no se pode conceber nada maior do que ele. Tal existncia indiscutvel

    exige logicamente que Deus exista na realidade. Esta sua prova. A

    prova

    19 realiza-se atravs da comparao entre o ser pensado e o ser real,

    tornando o segundo maior que o primeiro. Fora a passagem da ordem

    lgica para a ontolgica.

    Anselmo examina o problema do ser do qual no possvel

    pensar nada maior. Se este apenas existisse na inteligncia, poderia

    pensar-se outro existente no s na inteligncia mas tambm na

    realidade. Nesse caso este seria maior (mais perfeito) que o primeiro. A

    argumentao de Anselmo baseia-se nos seguintes pressupostos: a) uma

    noo de Deus fornecida pela f; b) a convico de que existir no

    pensamento j verdadeiramente existir; c) a exigncia lgica de que a

    existncia da noo de Deus no pensamento determine que se afirme sua

    existncia na realidade; d) o que existe na realidade maior ou mais

    perfeito do que o que existe s no intelecto; e) negar que aquilo de que

    no se pode pensar nada de maior exista na realidade, significa

    contradizer-se.

    No Proslogion Anselmo parte de uma reflexo religiosa sobre o

    Salmo 13: "Diz o insensato no seu corao: Deus no existe". Diz

    Anselmo que o insensato, ao dizer que no h Deus, compreende aquilo

    que diz. Por isso, se lhe dissermos que Deus um ser do qual no

    possvel pensar nada maior tambm compreender. Deus est, pois, na

  • compreenso do insensato, embora negue que Deus exista na realidade.

    Ora, se Deus apenas existisse no pensamento, tambm podemos pensar

    que existe na realidade. E isso algo maior. Mas isso contradiz a idia

    de que Deus um ser do qual no possvel pensar nada maior.

    Portanto, Deus que existe no pensamento tem que existir tambm na

    realidade.

    Pergunta-se: necessrio crer, para que a prova seja vlida?

    certo que o descrente no aceita o argumento anselmiano. Como ,

    ento, possvel que uma argumentao, inteligvel de per si a todo o

    esprito, no seja compreendida pelo descrente? Pode excluir-se a

    experincia emprica no processo do conhecimento humano como se

    tenta no caso da prova ontolgica? Para Anselmo, a idia do

    insupervel, do infinito, constitui uma experincia real de Deus. Mas o

    conceito de Deus como um ser necessrio e absolutamente perfeito no

    se pode concluir a priori, ou seja, sem

    20 recurso experincia emprica, a necessidade de sua existncia. O

    argumento ontolgico de Anselmo (Descartes, Leibniz e outros),

    excluindo o caminho da experincia pessoal e do mundo, pressupe um

    indiscutvel realismo conceitual.

    Max Scheler adverte contra um duplo preconceito de natureza

    filosfica em relao s chamadas provas da existncia de Deus: a)

    considerar como real e vlido s o que se baseia na experincia

    (sensvel). Tudo que se experimenta anteriormente deve ser dado. Alm

    disso, o conceito de experincia no deve ser reduzido simplesmente

    experincia sensvel ou emprica. Sabemos que aquilo que nos dado

    infinitamente mais rico que aquilo que captamos na experincia

    sensvel; b) reduzir todo o verdadeiro conhecimento aos limites do

    conhecimento demonstrvel. Se todo o juzo exige uma justificativa, isto

    no significa que essa deva ser sempre uma demonstrao rigorosa e

    exata (Vom Ewigen im Menschen, p.250).

    At hoje o argumento ontolgico um tema central da Filosofia.

    No decurso do tempo, esta prova anselmiana separa pensadores que a

    afirmam ou negam, de um ou de outro modo. Todos os pensadores

    medievais que, como S. Boaventura, admitem a iluminao intelectual,

    no pem em dvida a validade do argumento. Mas o monge Gaunilo,

    contemporneo de S. Anselmo, em seu Lber pr insipiente, j objetou

    que a existncia de Deus no pensamento no tem como corolrio sua

    existncia fora do mesmo. De acordo com Gaunilo, posso pensar a

    existncia de ilhas perdidas no oceano, cobertas de riquezas, sem que

    disso se conclua que existem na realidade.

    Anselmo respondeu a Gaunilo, no Lber apologticas, que a

    transio da "existncia no pensamento" para a "existncia na realidade"

    no logicamente necessria, nem possvel, a menos que se trate do ser

    do qual no possvel pensar nada maior, ou seja, que o argumento

    ontolgico s seria vlido para o ser supremo. S a idia de Deus

    implica necessariamente a existncia, enquanto o conceito de cada outra

    coisa, por perfeita que seja, no implica

    21 necessariamente a sua existncia, como por exemplo, da ilha, pois

    no se trata do ser perfeitssimo.

    22

    2 - As vias de Toms de Aquino

    O ponto de partida de todas as vias de Toms de Aquino, para

    aproximar-se de Deus, reside no concreto existencial da ordem sensvel.

    Que Deus existe no constitui evidncia para o homem, uma vez que lhe

    escapa o sentido do puro ser. Para saber algo sobre Deus, necessrio

    passar pela mediao dos entes, v-los como efeito de uma causa, ao

    final de cujo processo Deus aparece como ser transcendente, causa

    eficiente, exemplar e final. A metafsica tomista um desenvolvimento

    do senso comum, porque filosofia do ser. A Teologia natural de Toms

    de Aquino elabora um conceito de Deus baseado na inteligncia

    espontnea da pessoa ou no seu senso comum, ou seja, responde s

    perguntas prprias do homem a respeito de Deus.

    Toms aplica sua razo para obter uma compreenso dos mistrios

    da f. telogo. Que instrumento seria necessrio para tal

    compreenso? Uma filosofia. Mas no qualquer filosofia e, sim, uma

    filosofia com fundamentos slidos. Escolheu bem seu filsofo e o

  • reinterpretou. Escolheu Aristteles no para criar uma simples moda

    intelectual ou uma revoluo intelectual. O que interessava a Toms era

    a verdade das coisas. Encontra esse interesse pela verdade no

    aristotelismo.

    26

    Toms de Aquino distingue dois tipos de provas: a partir da causa

    ou a partir do efeito. Quando se trata da existncia de Deus torna-se

    impossvel o primeiro tipo como j objetara a Anselmo. Toms de

    Aquino est convencido de que o segundo tipo permite atingir seu

    objetivo. Por isso, no caso da existncia de Deus, deve-se partir dos

    efeitos. Contudo, reconhece que, no caso da existncia de Deus, no h

    igualdade entre efeito e causa, porque o efeito finito e a causa infinita.

    Por isso, segundo ele, no se obtm um conhecimento pleno da causa (S.

    Th. I, q. 2, a.2, obj. 3, ad 3). Toms de Aquino afirma:

    "H duas espcies de demonstrao. Uma, pela causa, pelo porqu

    das coisas, a qual se apia simplesmente nas causas primeiras. Outra,

    pelo efeito, que chamado a posteriori, embora se baseie no que

    primeiro para ns; quando um efeito nos mais manifesto que a sua

    causa, por ele chegamos ao conhecimento desta. Ora, podemos

    demonstrar a existncia -da causa prpria de um efeito, sempre que este

    nos mais conhecido que aquela; porque, dependendo os efeitos da

    causa, a existncia deles supe necessariamente a pr-existncia desta.

    Por onde, no nos sendo evidente, a existncia de Deus demonstrvel

    pelos efeitos que conhecemos" (S. Th. I, 2, 2).

    O ncleo central da prova tomista est no conceito de contingente.

    Nos seres, que se encontram nossa disposio, descobrimos uma

    quntupla insuficincia: a) esto compostos de potncia e ato (primeira

    via); b) de essncia e existncia, isto , seu ser causado (segunda via);

    c) de matria e forma, isto , so corruptveis (terceira via); d) de quod e

    de ex quo ou ex esse e quod est (quarta via); e) de substncia e acidente

    (quinta via). A doutrina de Toms diz o seguinte:

    27 "A verdade sobre Deus, investigada pela razo, s a atingem

    poucos, com muito tempo e mescla de muitos erros; agora bem, do co-

    nhecimento desta verdade depende toda a salvao do homem, que est

    em Deus; assim, para que a salvao chegasse ao homem mais

    conveniente e certamente, foi necessrio que fossem instrudos pela

    revelao divina" (S. Th. I, l, l).

    As tradicionais provas cosmolgicas da existncia de Deus, que

    partem da experincia do contingente e se fundamentam no princpio da

    causalidade (eficiente e final) eram suficientes nos tempos pr-

    modernos. As cinco vias de Toms de Aquino tentam mostrar que o

    primeiro impulso ao vir-a-ser no pode ser dado ao mundo pelo prprio

    mundo (l via); que as causas segundas nunca so a causa total de

    determinado efeito ou nunca so a causa do ser (2 via); que o que nasce

    e morre no causa da existncia prpria (3 via); que o imperfeito

    procede do perfeito (4a via); que a ordem das coisas no foi estabelecida

    por ns (5a via). Com esses argumentos, chega necessidade da

    existncia de um motor imvel, de uma causa primeira, de um Ser

    necessrio, de uma perfeio absoluta e de um ordenador supremo.

    A primeira viu de acesso a Deus fundamenta-se na constatao de

    que, no universo, existe movimento. Diz Toms de Aquino:

    "A primeira via e a mais manifesta a procedente do movimento;

    pois certo e verificado pelos sentidos que alguns seres so movidos

    neste mundo. Ora, todo o movido movido por outro (...). Se, portanto,

    o motor tambm se move, necessrio que seja movido por outro, e este

    por outro. Ora, no se pode assim proceder ale o infinito (...). Logo,

    necessrio chegar a um primeiro motor, por nenhum outro movido, ao

    qual todos do o nome de Deus" (S. Th. I, 2, 3).

    28 Esta primeira via parte do movimento para chegar ao motor

    imvel. Baseado em Aristteles, Toms de Aquino supe que todo o

    movimento tem uma causa, a qual deve ser exterior ao prprio ser que

    est em movimento, pois no se pode admitir que uma mesma coisa

    possa ser ela mesma a coisa movida e o princpio motor que a faz

    movimentar-se. Por outro lado, o prprio motor deve ser movido por um

    outro, este por um terceiro, etc. Nessas condies necessrio admitir

    ou que a srie de motores infinita e no existe um primeiro termo ou

  • que a srie finita e seu termo Deus.

    Esta prova, que se pode achar em Aristteles (Met. II, 2), funda-se

    no princpio de que impossvel remontar ao infinito na srie das causas

    materiais e das causas eficientes ou das causas finais ou das

    conseqncias. Portanto, deve haver, em cada srie, um primeiro

    princpio do qual depende a srie toda.

    A segunda via tambm se baseia em Aristteles e diz respeito

    idia de causa em geral. Parte das causas segundas para chegar causa

    primeira. Toms de Aquino escreve:

    "Descobrimos que h certa ordem de causas eficientes nos seres

    sensveis; no concebemos, porm, nem possvel que uma coisa seja

    causa eficiente de si prpria, pois seria anterior a si mesma, o que no

    pode ser. Mas impossvel, nas causas eficientes, proceder-se at o

    infinito (...). Logo, necessrio admitir uma causa eficiente primeira,

    qual todos do o nome de Deus" (S. Th. I, 2, 3).

    O raciocnio simples. Todas as coisas ou so causas ou so

    efeitos, no se podendo conceber que alguma coisa seja causa de si

    mesma. Neste caso, ela seria causa e efeito ao mesmo tempo, sendo

    assim anterior e posterior, o que seria absurdo. Por outro

    29 lado, toda a causa, por sua vez, deve ter sido causada por outra e

    esta por uma terceira e assim por diante. Deve admitir-se uma primeira

    causa no-causada. Deus, ou aceitar uma srie infinita e no explicar a

    causalidade.

    A terceira via refere-se aos conceitos de necessidade e

    possibilidade. Parte do ser contingente ao Ser necessrio. Toms de

    Aquino escreve:

    "A terceira via considera o ser possvel ou contingente e o

    necessrio e pode formular-se assim. Na natureza encontramos coisas

    que podem existir ou no existir, pois vemos seres que se produzem e

    seres que se destroem, e, portanto, h possibilidade de que existam e de

    que no existam. Agora bem, impossvel que os seres de tal condio

    tenham existido sempre, j que o que tem possibilidade de no ser, teve

    um tempo em que no foi. Se, pois, todas as coisas tm a possibilidade

    de no ser, houve um tempo em que nenhuma existia. Mas, se isto

    verdade, tambm agora no deveria existir coisa alguma, porque o que

    no existe no comea a existir, a no ser em virtude do que j existe e,

    portanto, se nada existia, foi impossvel que comeasse a existir alguma

    coisa e, em conseqncia, agora no haveria nada, coisa evidentemente

    falsa. Por isso nem todos os seres so contingentes ou possveis, mas

    forosamente entre eles h um que necessrio. Mas o ser necessrio ou

    tem a razo de sua necessidade em si mesmo ou no a tem. Se sua

    necessidade depende de outro, como no possvel, conforme vimos ao

    tratar das causas eficientes, aceitar uma srie indefinida de coisas

    necessrias, foroso que exista algo que seja necessrio por si mesmo

    e que no lenha fora de si a causa de sua necessidade, mas seja causa de

    necessidade dos demais, ao qual todos chamam Deus" (S. Th. I, 2, 3).

    30 Todos os seres esto em permanente transformao, alguns

    gerados, outros se corrompendo e deixando de existir. Ora, poder ou no

    existir no uma existncia necessria e sim contingente, j que aquilo

    que necessrio no precisa de causa para existir. Assim o possvel no

    teria em si razo suficiente de existncia e, se, nas coisas houvesse

    apenas o possvel, no haveria nada. Para que o possvel exista,

    necessrio, portanto, que algo o faa existir. Em outras palavras, se

    alguma coisa contingente existe, porque participa do necessrio

    absoluto, ou seja, Deus.

    A quarta via tomista de ndole platnica. Baseia-se nos graus

    hierrquicos de perfeio observados nas coisas.

    Toms de Aquino afirma:

    "Assim, nelas (nas coisas) se encontram em proporo maior e

    menor o bem, a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora,

    o mais e o menos se dizem atributos enquanto se aproximam de um

    mximo, diversamente; assim, o mais clido o que mais se aproxima

    do maximamente clido. H, portanto, algo verdadeirssimo, timo e

    nobilssimo e, por conseqente, maximamente ser; pois as coisas

    maximamente verdadeiras so maximamente seres, como diz o Filsofo.

    Ora,o que maximamente tal, em um gnero, causa de tudo o que esse

  • gnero compreende; assim o fogo, maximamente clido, causa de

    todos os clidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, h um ser, causa

    do ser, e da bondade, e de qualquer perfeio em tudo quanto existe, c

    chama-se Deus" (S. Th. I, 2, 3).

    Toms de Aquino parte dos graus de perfeio ao absolutamente

    perfeito. H graus de bondade, na verdade, na nobreza e

    31 nas outras perfeies deste gnero. O mais ou menos, implicados

    na noo de grau, pressupem um termo de comparao que seja

    absoluto. Dever existir, portanto, uma verdade e um bem em si: Deus.

    A quinta via fundamenta-se na ordem das coisas.

    Toms de Aquino diz:

    "Pois vemos que algumas (coisas), como os corpos naturais,

    carentes de conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui

    de operarem sempre ou frequentemente do mesmo modo, para

    conseguirem o que timo: donde resulta que chega ao fim, no pelo

    acaso, mas pela inteno. Mas, os seres sem conhecimento no tendem

    ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e inteligente, como

    a seta, pelo arqueiro. Logo, h um ser inteligente, pelo qual todas as

    coisas naturais se ordenam ao fim, e a que chamamos Deus" (S. Th. I, 2,

    3).

    Toms de Aquino parte da ordem do cosmo ao supremo

    Ordenador. Conforme o finalismo aristotlico, todas as operaes dos

    corpos materiais tenderiam a um fim, mesmo quando desprovidos da

    conscincia disso. A regularidade com que alcanam seu fim mostraria

    que eles no esto movidos pelo acaso: h regularidade intencional e

    desejada. Uma vez que aqueles corpos esto privados de conhecimentos,

    pode concluir-se que h uma inteligncia primeira, ordenadora da

    finalidade das coisas. Essa inteligncia soberana Deus. 32

    III CAMINHOS NO-RACIONAIS

    2 - O pragmatismo

    O tradicionalismo e o fidesmo no foram a nica reao anti-

    intelectualista e antimetafsica do sculo XIX. Tambm o pragmatismo

    rejeita tanto a via racional quanto a tradio como caminhos vlidos de

    acesso a Deus. Ainda que teoricamente no se possa demonstrar sua

    existncia, deve admitir-se a mesma, segundo o pragmatismo, uma vez

    que Deus uma necessidade para a vida prtica do homem, tanto

    individual como socialmente considerado, pois a crena em Deus til e

    necessria para sua conduta e ao.

    O termo pragmatismo foi introduzido na filosofia, em 1898,

    atravs de W. James, referindo-se doutrina exposta por Charles

    Sanders Peirce (1839-1914) em seu ensaio Como tornar claras as

    nossas idias (1878). Mais tarde o prprio Peirce justificou a inveno

    do termo para a teoria de "uma concepo, isto , o significado racional

    de uma palavra ou de outra expresso, consiste exclusivamente no seu

    alcance concebvel sobre a conduta da vida". Peirce o fundador do

    pragmatismo americano e seus principais representantes so William

    James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952).

    O pragmatismo deriva da tradio clssica do empirismo ingls.

    Para este, pode-se considerar verdadeira uma determinada proposio,

    desde que se possa encontrar na experincia os elementos de que resulta

    e desde que esses estejam relacionados entre si do mesmo modo que na

    experincia. Esta , nessa perspectiva, uma acumulao e o registro de

    dados e, ao mesmo tempo, a sua organizao. Assim o empirismo

    clssico baseava-se, em princpio, na experincia passada, tornando-se

    um patrimnio que podia ser inventariado e sistematizado de forma total

    e definitiva. Para o pragmatismo, ao contrrio, abertura para o futuro,

    pois tenta fundamentai" uma previso. A anlise da experincia

    previso do possvel desenvolvimento. Uma verdade tal por ser

    suscetvel de um uso qualquer no futuro. Toda a verdade uma regra de

    ao, uma norma para a conduta futura.

    44

    Um conceito sem qualquer conseqncia prtica, sem nada significar

    para nosso agir, para nossas expectativas e nossas possveis reaes, na

    verdade, nada significa. Dentro dessa perspectiva, pode considerar-se

  • verdadeira a f em Deus, se ela for til para a vida prtica.

    Uma das caractersticas do pragmatismo americano considerar o

    conhecimento no como uma funo independente mas vinculado ao

    processo concreto da vida. Conhecimento e cincia esto a servio da

    vida; so o instrumento mais importante do qual o homem dispe para

    adaptar-se a uma circunstncia natural e social e obter sucesso no

    confronto com as dificuldades e com os problemas da vida diria. Idias,

    hipteses e teorias so como instrumentos para realizar os fins da vida

    concreta. Com sua teoria da verdade, os pragmatistas tentam definir no

    a verdade in abstracto, independentemente do processo do

    conhecimento, mas como se verifica no processo vivo da experincia.

    W. James mantm a prioridade da experincia religiosa com

    relao qual secundria toda a explicao conceituai. Entende a

    religio como "os sentimentos, atos e experincias do homem individual

    enquanto tal (...) na medida em que se sabem em relao com algum

    poder divino, qualquer que seja a forma concreta em que possam

    conceb-lo", como disse em suas Gifford Lectures, publicadas sob o

    ttulo The varieties of religious experi-ence (Nova Iorque, 1902). Para

    ele, o fundamento da religio no a razo, mas a f; o sentimento, e as

    outras experincias particulares como a orao, conversaes com o

    invisvel, etc. Em seu opsculo A vontade de crer (1897), James j apela

    s "razes do corao" (Pascal) para fundar o princpio da influncia

    decisiva da vontade, do desejo e do sentimento no processo de formao

    de nossas crenas. L onde a percepo intelectual no mais atinge, os

    cientistas aventuram hipteses para procurar a verdade. Mas s as

    hipteses vivas podem lograr xito. Por isso James admite a le-

    gitimidade de inclinar-se, por motivos passionais ou prticos, por uma

    opo genuna que, por sua natureza, no possa ser decidida no campo

    racional. Quem deve decidir nossas crenas nossa vontade.

    45

    Na sua obra principal. As variedades da experincia religiosa,

    James estuda o fenmeno religioso como psiclogo desde a perspectiva

    empirista. Segundo ele, a experincia religiosa se oferece ao nosso

    conhecimento atravs de uma anlise da conscincia. E esta define-se

    pela prpria corrente contnua (stream ofconsci-ousness), na qual os

    diversos estados se fundem num todo fluido. James desenvolve uma

    anlise introspectiva. Assim, sua teoria sobre a experincia religiosa no

    passa de um imanentismo subjeti-vista ou, se quisermos, desemboca

    num pantesmo mstico.

    Coerente com o princpio pragmtico de que a verdade

    instrumental, James admite que o critrio supremo de uma crena no

    sua origem, sua doutrina, mas a maneira em que repercute sobre tudo.

    Desse modo, para conhecer a verdade, deve perguntar-se: a que

    conseqncias prticas conduz? Qual seu valor real para configurar a

    vida pessoal? Referindo-se concretamente ao tema de Deus, James diz

    que a Deus no se conhece, no se compreende, mas necessita-se dele

    como sustentador, como suporte moral, como amigo ou como objeto de

    amor. Quando Deus resulta til, a conscincia religiosa no mais

    formula perguntas, pois o objetivo de todas as religies no Deus mas

    a vida, uma vida sempre mais rica. Segundo ele, o que move

    fundamentalmente a religio o amor vida. Mas James reconhece que

    toda a religio autntica deve ter alguma espcie de metafsica. Portanto

    essa pode ser defendida como elemento necessrio da experincia reli-

    giosa, embora no possa servir de base para uma teologia natural.

    Segundo Charles S. Peirce, a crena uma norma para a ao, que

    tende essencialmente a estabelecer um hbito. Da segue "que as

    diferentes crenas se distinguem de acordo com as diversas modalidades

    de ao s quais do lugar".

    John Dewey toma seus conceitos da Biologia, da Psicologia e da

    Sociologia. Como os diferentes rgos do corpo se adaptam para

    enfrentar o meio ambiente, a finalidade do pensamento no adquirir

    novos conhecimentos do mundo, mas um controle sobre o mesmo para

    nele viver. Para isso, as idias so instrumentos.

    46

    Em outras palavras, a Filosofia no deve indagar princpios absolutos,

    mas antes tem uma funo prtica. Dewey admite uma atitude religiosa

    que um sentido das possibilidades da existncia e uma devoo causa

    de tais possibilidades. Distingue essas atitudes das religies e dos credos

  • e dispe-se a reabilitar a palavra Deus, despindo-a de suas conotaes

    metafsicas tradicionais e de idias sobrenaturais. A funo de uma f

    religiosa unir os homens num sentimento de comunidade de esforos e

    de destino. Nesse sentido, a idia de Deus pode ajudar a unificar

    interesses e energias e estimular aes.

    Em sntese, para o pragmatismo, a verdade de Deus no depende

    de argumentaes metafsicas, abstratas e pouco convincentes. Busca

    uma religio mstica, que procura a salvao no interior do prprio

    homem. A piedade mstica funda-se na experincia da vida insacivel,

    na doao ao infinito. O mstico tenta dominar a vida dos afetos e da

    vontade no xtase beatfico. Vive da renncia. Por isso o mstico tem

    outra concepo de Deus. O Deus da piedade mstica o Deus oculto

    (Deus absconditus), o mistrio absoluto. No este o Deus que James

    assim descreve: "No se conhece a Deus, no se o compreende, mas

    precisa-se dele"? A meta de toda a religio, nessa perspectiva, vida,

    mais vida.

    Sob influncia do pragmatismo. Hans Vaihinger (1852-1933)

    chega concluso de que os sistemas e as solues metafsicas no

    passam de fices. Segundo ele, o homem no se satisfazendo com a

    sensao bruta, cria fices (liberdade, imortalidade. Deus, etc), que so

    teis na vida prtica porque lhe do a impresso de satisfazer suas

    exigncias mais profundas. Os homens agem como se as fices por eles

    criadas fossem realidade. Este o tema de sua obra principal Die

    Plulosophie des Als-Ob (1911), ou seja, a filosofia do como se. Nesta

    perspectiva, as verdades filosficas, cientficas e religiosas, como a

    existncia de Deus, so fices ilusrias, mas teis para a vida. Vivemos

    ou trabalhamos como se Deus existisse, como se nos desse

    mandamentos e recompensasse nossas boas obras, como se fssemos

    livres e imortais: "A verdade a utilidade maior do erro; e este uma

    fico intil".

    47

    Sem dvida, a realidade religiosa complexa. O pragmatismo s

    v um aspecto dessa realidade. Experincia e reflexo so inseparveis.

    Sem a experincia, a reflexo religiosa vazia. A reflexo alimenta-se

    da experincia. Mas a experincia religiosa, sem a reflexo, cega. A

    experincia exige a reflexo crtica e esclarecedora. A teoria pragmatista

    da verdade no respeita a distino terica importante da verdade em si

    e do procedimento de constat-la. ou seja, como se chega a reconhec-

    la. No se pode confundir a verdade com o conhecimento da mesma.

    Alm disso, acresce a falta de clareza dos pragmatistas quanto ao

    mtodo de verificar a verdade, vista unilateralmente de maneira

    emprica, reduzindo-a, como o campo do discurso significativo, quilo

    que dado na experincia ou controlvel pela mesma. Com isso

    excluem todo o tipo de conhecimento a priori ou essencial que no seja

    do tipo analtico. Conforme seu procedimento, no h princpios

    metafsicos com cujo auxlio se pudesse superar a experincia e

    reconhecer o supra-sensvel, nem normas morais absolutas que

    permitam verificar o que bom e mau independentemente daquilo que

    se deseja e se considera pessoalmente como bom. Isso tem como

    conseqncia um relativismo tico, tanto na ordem social como na

    ordem do Estado.

    A tese do pragmatismo pode resumir-se: "No se conhece a Deus,

    no se o compreende, mas precisa-se Dele". Esta posio , sem dvida,

    perigosa. Pode ser tambm o ponto de vista de poderosos ou a atitude

    ctica de intelectuais. O princpio pragmatista tem, outrossim, conotao

    comercial, sendo verdadeiro o que obtiver sucesso. E difcil de aplicao

    e praticamente intil. Se a f em Deus deve verificar-se na prtica,

    contudo no apenas prxis.

    3 - O modernismo

    Desde fins do sculo XIX, especialmente em comeos do sculo

    XX, desenvolveram-se determinadas correntes filosficas, que levam o

    nome de filosofias da imanncia. So filosofias que s buscam o mundo

    real na conscincia.

    48

    Trata-se de um imanentismo intemperante ou radical, o qual afirma que

    a existncia de Deus depende, ontologicamente falando, de minhas

  • exigncias, sentimentos e necessidades. Tudo que existe deve ser

    imediatamente dado a um sujeito, no conhecimento, sem nenhum

    intermedirio. Qualificam-se essas filosofias de imanentistas por

    sustentarem a primazia da experincia religiosa interna sobre o

    conhecimento discursivo. Embora essas filosofias, em parte, se

    inspirassem nas exigncias da filosofia da ao de Blondel, ele mesmo

    sempre ficou estranho ao movimento.

    Por modernismo entende-se, pois, um movimento de idias que se

    desenvolve entre muitos pensadores catlicos, no sculo passado e em

    comeo deste sculo, com o fim de conciliar a verdade da f tradicional

    com os princpios do pensamento moderno. Aparece como uma

    aspirao de renovar a Igreja, embora seus fundamentos so estritamente

    filosficos; apresenta-se como um movimento doutrinai, tentando uma

    reinterpretao global do Cristianismo, na qual desaparecem o

    sobrenatural e a realidade divina. Principais representantes do

    modernismo so Luciano La-berthonire (1860-1932) e Alfredo Loisy

    (1857-1940).

    Pode resumir-se a doutrina modernista nas seguintes proposies:

    a) Deus revela-se imediatamente, sem intermedirio, conscincia do

    homem. Laberthonire diz que "se o homem deseja possuir Deus e ser

    Deus. Deus j se deu a ele. Eis como na prpria natureza podem ser

    encontradas e se encontram as exigncias do sobrenatural" (Essais de

    philosophie religieuse, 1903, p. 171); b) Deus antes de tudo um

    princpio de ao, e a experincia religiosa, sobretudo, uma experincia

    prtica; c) os dogmas nada mais so do que a expresso simblica e

    imperfeita, porque relativa s circunstncias histricas do tempo em que

    so formulados; d) a Bblia deve ser estudada como um documento

    histrico da humanidade. Nada mais.

    Laberthonire queria substituir o intelectualismo abstrato por uma

    doutrina que abrangesse as aspiraes do corao e as atividades da

    vida. Opunha a filosofia grega, que v em Deus uma idia suprema e

    exterior, filosofia crist, que contempla Deus

    49

    como ao suprema e imanente no esprito do homem. A verdade

    sobrenatural da revelao no tem valor para o homem se este no a

    recria em si mesmo. O sobrenatural a "unio ntima de Deus com o

    homem, a prolongao da vida divina na vida humana". A partir do

    subjetivismo do pensamento moderno, as teses modernistas sustentam

    que a experincia o princpio inspirador direto na concepo do

    religioso e da f. Quer dizer, o modernismo religioso nega o valor

    objetivo da divindade, quando afirma que Deus nasce de um sentimento

    interno, de maneira que no existem provas racionais convincentes que

    justificam a existncia de Deus.

    Alfredo Loisy, sacerdote, excomungado em 1908, considerado o

    pai do modernismo catlico: "O Evangelho no entrou no mundo - diz

    ele - como uma doutrina absoluta e incondicional, resumida em uma

    verdade nica e imutvel, mas como uma f viva, concreta e complexa",

    da mesma maneira que "a verdade no entra feita em nosso crebro, mas se faz lentamente e

    jamais podemos afirmar que seja completa. O esprito humano est

    constantemente afanando-se e a verdade no mais imutvel que o

    prprio homem. A verdade evolui com ele e nele c por ele: isso no

    impede ser verdade para ele, antes, precisamente, a condio sem a

    qual no seria verdade" (LEvangile et 1'glisc. 1902, p. 87).

    Numa palavra, segundo Laberthonire, sacerdote oratoriano, por

    muitos considerado predecessor do existencialismo. o objetivo da

    verdade filosfica no pode ser uma verdade abstrata, mas uma verdade

    vivida, da mesma forma que a f no algo simplesmente dado, que est

    a, para ser divulgado pela pura inteligncia, mas algo que se faz. As

    formulaes externas da crena devem ser consideradas desde a

    experincia, e sua verdade deve ser vivida desde a mesma experincia.

    Ao aceitar incondicionalmente o princpio da imanncia, base do

    pensamento moderno, opera-se dentro do modernismo uma

    50

    mudana radical da prpria noo de verdade, de religio e de revelao.

    Pode afirmar-se. at. que o modernismo deriva do movimento da

    Reforma Luterana, enquanto esta separou a f individual do "obsquio

    autoridade hierrquica". A verso leiga deste princpio encontrar-se-ia,

    sem question-lo, no subjetivismo gnosiolgico kantiano e no idealismo

  • transcendental de Fichte, Schellins e Hegel, por um lado: e, por outro,

    no irracionalismo fidesta de Ja-cobi, Fries e Schleiermacher. Mas a

    fonte mais direta e mais prxima, em que se inspira o movimento

    modernista, encontra-se na teoria do fidesmo simblico, defendido por

    A. Sabatier (1839-1901), com todo o ardor, opinio segundo a qual os

    dogmas so meros smbolos da vida moral e religiosa, ao mesmo tempo

    em que a reduo da f ao instinto subjetivo o nico resultado lgico

    do princpio da Reforma.

    As razes do sentimentalisno (ou agnosticismo radical), segundo o

    qual nosso conhecimento de Deus provm de uma espcie de sentimento

    ou de uma afeio, mas nunca atravs da razo discursiva, remontam ao

    escocs Th. Teid (1796), Maine de Biran (1776-1824). com sua teologia

    da vida do esprito: F. H. Jacobi (1743-1819), que distingue razo em

    oposio ao entendimento; Schleiermacher, com sua tese do sentimento

    de dependncia e de admirao; A.B. Ritschl, que fala do sentimento

    como sentido comum e R. Otto (1869-1937), que examina o racional e o

    no-racional na idia de Deus mediante a anlise do conceito de numi-

    noso.

    Como Schleiermacher, tambm Jorge Tyrell (1861-1909) coloca a

    essncia da religio no sentimento de dependncia do Absoluto. Atravs

    deste sentimento entramos em contato com Deus e tomamos conscincia

    de sua existncia. A inteligncia tenta traduzir em representaes

    conceituais essa experincia do Absoluto. Mas esses conceitos apenas

    chegam a ser "aproximaes da verdade; so puros smbolos da

    realidade religiosa".

    No programa dos modernistas, publicado pelo sacerdote italiano

    Ernesto Buonaiuti (1881-1946). de forma annima, em resposta

    encclica Pascendi domini gregis (1907) de Pio X, pode

    51

    ler-se textualmente que para "provar a existncia de Deus, de nada

    servem as demonstraes da metafsica medieval"; hoje. ao contrrio,

    "as que conduzem a um sentido especial das realidades supra-sensveis

    so as exigncias de nossa vida moral e a experincia do divino que se

    efetua nas profundidades mais obscuras de nossa conscincia". A f

    religiosa no seno "a necessidade instintiva... que nasce

    espontaneamente e se desenvolve independentemente de toda a

    preparao cientfica": e termina dizendo que "o modernismo no se

    ope tradio catlica, seno s interpretao esco-lstica da mesma,

    interpretao superada pelo mtodo crtico da conscincia moderna".

    A primeira interveno de Pio X contra o modernismo foi o

    decreto do Santo Ofcio Lamentabili sane exitu (1907), que reuniu, em

    75 artigos, os novos erros. Depois seguiu a condenao solene com a

    encclica Pascendi e, por fim, o motu prprio Sacro-nun Antistetuin

    (1910), no qual se publica a frmula do juramento anti-modernista

    exigido obrigatoriamente de todo o clero catlico at o concilio

    Vaticano II. Nele jurava-se que "a existncia de Deus no s pode ser

    conhecida, mas demonstrada com certeza" (DS 3538). Na encclica

    Pascendi (DS 3475-3500), qualifica-se o modernismo no simplesmente

    de heresia, mas de "compndio de todas as heresias", enquanto nega a

    prpria garantia da ortodoxia representada pelo magistrio eclesistico.

    Por sua profisso de subjetivismo, relativismo individual absoluto, que

    eleva a critrio nico o sentimento privado de cada um, no qual no s

    se resolve a convico sobre o Ser supremo, mas at o contedo e o

    sentido dos prprios dogmas, o modernismo, declara que a encclica de

    Pio X, desemboca no agnosticismo absoluto e termina, por fim, no

    atesmo.

    Segundo a crtica do papa Pio X, os principais erros do

    modernismo so: contm o agnosticismo; segundo o princpio da

    imanncia vital, a f se situa em certo sentimento ntimo o qual nasce da

    indigncia do divino; a f do crente tem a mesma origem que a f

    religiosa comum; a revelao tem sua origem no mesmo sentimento

    religioso, vinculada essencialmente f, pois se Deus

    52

    causa e objeto da f, a revelao tambm vem de Deus e versa sobre

    Deus; a elaborao intelectual ajuda a clarear esse sentimento religioso,

    embora pr-racional, nascido do escuro da subconscincia; os dogmas

    constituem o contedo dessas representaes mentais ou da elaborao

    intelectual da f.

  • 4 - A experincia religiosa

    Em reao ao racionalismo do sculo XIX, outro grupo de autores,

    chamados filsofos da religio e da conscincia, protestantes em sua

    origem, defenderam a prioridade da experincia religiosa, com respeito

    qual secundria toda a explicao conceitual. Deus no pode ser

    objeto imediato de nenhuma faculdade cognoscitiva do homem, mas da

    experincia vivida. Segundo eles, a conscincia religiosa sente uma

    secreta repugnncia ante qualquer intento de provar a existncia de

    Deus.

    Kant havia elevado a experincia religiosa a critrio absoluto e

    independente do pensamento objetivo, com a separao entre razo

    terica e razo prtica. F. Heinrich Jacobi e J. F. Fries e, sobretudo, o

    discpulo de Fries, que passaria posteridade como o mais importante

    filsofo da religio do sculo XIX, F.D.E. Schleiermacher, neste ponto

    seguiram Kant. Como no se conhece o real, mediante o pensamento,

    mas s atravs do sentimento, que apreenso imediata da verdade,

    Deus no pode ser objeto do saber, mas s certeza indemonstrvel da f.

    Esta f algo nico e insolvel. um puro sentimento, de absoluta

    dependncia do Absoluto. Por isso a nica prova vlida da existncia de

    Deus o sentimento religioso e a experincia do divino.

    Na linha de Jacobi. Fries e Schleiermacher, caminha o pensamento

    de Rudolf Otto (1869-1937), o qual interpreta a experincia religiosa

    como categoria a priori que consiste no sentimento do sagrado como

    irrupo do transcendente em nossa vida cotidiana. A palavra santo,

    para R. Otto, a palavra chave de toda a religio. Tem uma significao

    no-racional, ou seja, no pode ser pensada conceitualmente.

    53

    Para esta significao fundamental do santo emprega o termo numinoso.

    Com a palavra sagrado (santo), R. Otto mostra que a religio se compe

    de elementos racionais e no-racionais. Tematiza o ncleo no-racional

    mais profundo para mostrar que Deus no se explica totalmente atravs

    de seus atributos racionais. O adjetivo santo (sagrado) tem a funo de

    sugerir sua natureza supra-racional.

    A experincia do sagrado como conseqncia do contato com o

    numinoso, "o totalmente outro", percebe-se como mistrio tremendwn e

    como mistrio fascinans. O mistrio aquilo que excede o pensamento,

    o que o qualitativamente diferente. Quer dizer, o homem sente-se

    diante de uma realidade, cuja presena se lhe impe, sem poder aplicar-

    lhe nenhuma das categorias cognos-citivas racionais. Diante dessa

    realidade misteriosa, tem uma reao de ser incapaz de apreend-la

    conceitualmente. O tremendum aponta para o temor e terror

    experimentados diante da majestade da presena numinosa; o fascinans

    indica a atrao cativadora exercida pelo ser numinoso que evoca o

    amor.

    R. Otto quer recuperar todo o aspecto no-racional ou pr-racional

    da religio, atravs da anlise da experincia. Afirma que no domnio da

    pura racionalidade "encontra-se uma profundeza escura que escapa, no

    aos nossos sentimentos, mas aos nossos conceitos e por isto ns

    chamamos de no-racional" (O sagrado, p.62). Diz que "a religio faz

    parte desse domnio, terra incgnita para a razo" (Ibidem, p.64).

    Na descrio do sentimentalismo perante o numinoso, quer superar

    o "sentimento de absoluta dependncia" de Schleiermacher, mostrando

    que se trata de um sentimento nico, sui generis, que no pode ser

    considerado evoluo de sentimentos naturais. O sentimento do

    numinoso, segundo ele, deve ser relacionado com a "faculdade de

    divinizao", uma "faculdade que permite conhecer e reconhecer

    genuinamente o santo em sua manifestao": "A verdadeira divinizao nada tem a ver com as leis naturais. Dc falo, o

    seu relacionamento com as leis naturais no problema para cia. Ela no

    busca saber como produzido o fato, o evento, ou qualquer outra coisa,

    ou como uma pessoa tornou-se o que ; ela se preocupa com a

    significao e se o fato um sinal do sagrado" (O sagrado, p.141).

    54

    R. Otto tem o mrito de ter chamado ateno para o inefvel ou

    indizvel do sagrado como categoria religiosa a priori e do no-racional

    na idia do divino e sua relao com o racional.

    Pensadores catlicos como Romano Guardini, J. Guitton, J. B.

  • Lotz e M. Ndoncelle tambm falaram da experincia religiosa. Mas seu

    Deus no o Absoluto ou o infinito da escola liberal, que sequer

    pessoa, nem conscincia, nem criador do mundo. Referem-se ao Deus

    cristo, cuja verdade certamente vivida antes de ser conhecida no

    sentido de que as provas no engendram a verdade de Deus, mas ao

    contrrio, a experincia que engendra a verdade para a qual as provas

    apenas so meios de justificar reflexivamente a f.

    Guardini diz que "a experincia religiosa no s uma percepo

    que encontra seu desenvolvimento e sua plenitude em uma forma ou

    outra de conhecimento, mas que um encontro no sentido pleno da

    palavra" e "s a experincia religiosa consegue que a demonstrao se

    ponha em marcha, que acerte a direo a seguir" (Religion und

    Offenbarung, Wrzburg, Werkbund, 1958, p.58).

    H pouco tempo atrs, o jornalista francs Andr Frossard

    publicou um livro com o ttulo Deus existe: eu o encontrei, relatando a

    experincia pessoal de seu encontro interior com Deus. Na introduo,

    Frossard afirma: "Este livro no conta como vim ao catolicismo e sim

    como eu no ia a ele quando nele me encontrei. No o relato de uma

    evoluo intelectual; a relao de evento fortuito, algo assim como o

    relatrio de um acidente de trnsito" (p. 12). Frossard tem conscincia

    de no poder dar "as razes psicolgicas, imediatas ou remotas (...)

    porque tais razes no existiram" (p. 12). Conclui o livrinho: "No

    escrevo para me contar mas para dar testemunho, e meu testemunho

    exige que tambm isto seja dito" (p. 166).

    55

    certo que uma experincia interior pessoal de um indivduo pode

    ser um testemunho impressionante e, sem dvida, pode convidar outros

    f. No queremos aqui discutir o contedo de tal experincia, pois

    pode crer-se autenticamente em Deus sem provas racionais. Mas tal

    relato expe-se a ser interpretado como identificao da experincia

    humana com a realidade de Deus. Trata-se de experincias que podem

    ser testemunhadas, mas no demonstradas. Por isso algum poderia

    objetar: "Deus no existe porque eu no o encontrei".

    56

    IV CAMINHOS NO EXCLUSIVAMENTE RACIONAIS

    2 - Experincia consciente de Deus

    Diferente do ontologismo a afirmao do conhecimento imediato

    de Deus mediante uma experincia consciente da presena divina nas

    criaturas ou na alma.

    S. Agostinho (430), cujo ponto de partida o fato da indu-

    bitabilidade do eu. afirma que a existncia de Deus no se prova pela

    razo discursiva, e tampouco assunto da f cega. Deus aparece

    demonstrado na prpria estrutura da alma, possuidora da f. A

    experincia ntima do homem, no do homem racional, mas concreto,

    existencial, dramaticamente dividido dentro de si, constitui o centro da

    reflexo agostiniana. Este ser ntimo, como as prprias coisas,

    contingente e, por isso mesmo, no pode ser o fundamento ntimo da

    verdade imutvel.

    61

    As verdades necessrias so sinal e transcendncia da verdade

    com respeito razo, e reflexo, nos homens, da verdade eterna que nos

    permite contemplar a verdade.

    A verdade algo superior a todos os homens e da qual participam

    todas as verdades particulares que conhecemos. No a inteligncia

    humana que descobre a verdade, mas o princpio da verdade ilumina, de

    alguma maneira, nossa inteligncia para que percebamos, de modo

    misterioso, a verdade mesma, imutvel e eterna: Deus. Assim, em todo o

    conhecimento humano, em toda a verdade, conhecemos a verdade

    absoluta, isto , o prprio Deus, mas no um Deus qualquer, idia ou

    princpio filosfico, mas o Deus revelado. Por isso S. Agostinho v a

    salvao no num mtodo racional universal, mas numa abertura do

    homem inteiro realidade total. Em outras palavras, a essncia do

    esprito humano mais do que pura razo, porque a certeza existencial

    ltima se baseia, no no cogito, mas no creio, embora no se trate de um

    irracionalismo mas de uma f racionalmente justificada.

  • A argumentao agostiniana sobre Deus tem sido amplamente

    desenvolvida por Descartes, Bossuet, Fenelon, Malebran-che. Leibniz,

    Kant, P. Gratry, Lachelier e Lavelle. S. Boaventura (1221-1274),

    agostiniano, telogo e mstico, fundador da Escola Franciscana e

    continuador da obra do mestre Alexandre de Hales (1170-1245),

    considera o racionalismo aristotlico incompatvel com a tradio

    filosfica crist. A razo, atribuindo-se uma falsa e equvoca autonomia,

    pretende descobrir a verdade por suas prprias foras. Ao contrrio,

    pensa S. Boaventura, a existncia de Deus evidente para a alma, no

    como um conhecimento explcito e claro - se assim fosse, no haveria

    ateus - mediante a reflexo sobre si mesma. Neste sentido, as provas so

    mais um itinerrio ou etapas na ascenso da alma para Deus e os

    silogismos so antes alguns exerccios do intelecto que razes evidentes.

    O Deus de S. Boaventura no , por isso, um princpio abstrato,

    resultante de um exerccio mental, mas o Deus da experincia religiosa e

    crist, que se manifestou no interior do homem.

    62

    A razo no um obstculo, mas pode chegar a demonstrar que

    existe Deus. Para o homem, todavia, no interessa provar a Deus mas

    v-lo, experiment-lo. Por isso conclui S. Boaventura, a Filosofia no

    tenta satisfazer curiosidades intelectuais, mas salvar o homem. Se a

    existncia de Deus necessita ser demonstrada, no porque carea de

    evidncia intrnseca, mas por defeito de nossa mente, da mesma maneira

    que, se o homem nega a Deus, os motivos pelos quais realiza tal ao

    tem sua base na prpria psicologia do homem.

    De maneira anloga, Blaise Pascal inicia um enrgico processo

    contra o excessivo racionalismo. Seus Pensamentos so uma das obras

    mais importantes da literatura universal. Voltaire disse que "o primeiro

    livro escrito por um gnio da prosa", apesar de ser um gnio, um louco

    sublime. Pela crtica, Pascal foi visto como um romntico. Pascal

    distingue o esprito, a razo, isto , o pensamento raciocinante, o

    "esprito geomtrico" cartesiano, e o sentimento, o instinto, o sentir

    intuitivo. O sentimento no sentimentalismo, mas corao, porque

    conhecemos a verdade no somente mediante a razo, mas tambm pelo

    corao (Pensamentos, no 282), conscientes de que esta certeza da f

    no certeza irracional. Por isso, no segue o fidesmo. nem o

    subjetivismo religioso (sentimentalismo). A f fundamenta-se

    racionalmente, porque, se a razo no pode demonstrar racionalmente a

    existncia de Deus, deve submeter-se revelao. Para ele, uma razo

    que se choque com os princpios da razo absurda, assim como uma

    religio que se explique em sua totalidade racionalmente nada tem de

    sobrenatural.

    O Deus de Pascal o "Deus de Abrao, de Isaac e Jac", ou seja, o

    Deus cristo, o Deus de Jesus Cristo. No se preocupa com provas de

    Deus mas com as provas de Jesus Cristo, entre outras razes, porque as

    provas racionais "so insuficientes". De nada serve conhecer a Deus sem

    am-lo. A lgica da razo deve ser acompanhada da lgica do corao.

    A razo deve seguir as regras do mtodo geomtrico (Descartes), mas

    este mtodo no permite alcanar a Deus diretamente. A lgica do

    corao o resultado de uma integrao da universalidade racional

    dentro da f pessoal.

    63

    Se tivssemos que definir Pascal com poucas palavras, diramos

    que o homem do pthos, das vivncias profundas, interessado nas

    questes insolveis. Estava convencido de que a certeza do saber no

    coincide com a certeza da vida, porque o pensamento claro e distinto

    levar-nos- certeza intelectual, mas no segurana existencial. Junto

    ao raciocnio devemos colocar o sentimento; junto razo discursiva, o

    conhecimento intuitivo.

    Tambm o Padre Auguste Joseph Alphonse Gratry (1805-1872),

    agostiniano e pascaliano, em sua viso de Deus, hostil especulao

    abstrata, porque o mtodo dedutivo no o nico caminho para se

    chegar a Deus.

    Entre as obras do famoso pensador destaca-se De la con-naissance

    cie Dieu (2 vol. Paris. 1853), um dos melhores livros filosficos sobre

    Deus que j se escreveu. Formado na Escola Politcnica, antes de

    ordenado sacerdote, Gratry usa o procedimento dialtico e consistente

    do clculo infinitesimal para elevar-se do finito ao infinito a partir de um

  • impulso da razo. Segundo o padre Gratry, as coisas nos induzem a

    elevar-nos a Deus, dada a radical insuficincia do homem que no

    encontra seu fundamento no mundo.

    O conhecimento de Deus, segundo ele, funda-se numa dimenso

    especial da alma humana. O homem tem trs faculdades: uma primria

    ou o sentido e duas secundrias: a inteligncia e a vontade. O sentido o

    centro da pessoa humana e trplice; a) o sentido externo, pelo qual

    sinto a realidade prpria do corpo e do mundo; b) o sentido ntimo, pelo

    qual sinto a prpria alma e a dos semelhantes; c) o sentido divino, que

    o sentido do infinito, pelo qual a alma sente a Deus, o encontra e o intui

    no fundo de si. Este sentido divino, superior inteligncia, converte-se

    em pressuposto necessrio do conhecimento de Deus. Para Gratry, no

    se deveria falar de demonstrao mas mostrao de Deus, porque

    atravs do sentido se d um contato com Deus, pois a alma percebe sua

    imagem refletida. H, assim, entre o homem e Deus uma relao pri-

    mria (anterior a todo o conhecimento) e radical, pois o homem tem seu

    fundamento no prprio Deus.

    64

    O ateu , para Gratry, o homem privado deste sentido divino e, por

    isso. literalmente, um insensato, como dizem S. Agostinho e S.

    Anselmo. A arrogncia e a sensualidade so as causas deste

    desconhecimento de Deus que . antes de tudo, desconhecimento de si

    mesmo. Pela sensualidade, o homem pe tudo nas coisas e afasta-se de

    Deus: a soberba faz com que se ponha todo o fundamento no prprio

    homem, extinguindo o sentido divino. Ao penetrar no fundo de si

    mesmo, o homem encontra, junto fraqueza, o ponto de apoio que o faz

    ser e viver. Este fundamento no o mundo, que nos toca pela

    superfcie, mas Deus.

    A filosofia da religio do Cardeal John Henry Newman (1801-90)

    tambm se situa na linha intuicionista, agostiniana. Numa primeira

    aproximao, aparece como um agnstico radical. Anti-intelectualista

    convencido, apresenta-se em tom moderado no An Essay in Aid of a

    Grammar ofAssent (1870). Em contrapartida, nos Parochial and Plain

    Serinons e nos University Sermons. expressa-se em veementes

    afirmaes anti-racionalistas. Se, para Kant, Deus era uma idia, para

    Newman Deus uma presena, isto . uma realidade pessoal que se

    revela na conscincia fiel.

    Quando o Cardeal Newman distingue entre assentimento nocional

    e assentimento real, apenas d primazia aos fatos, lgica das realidades

    existenciais, frente a todo o racionalismo abstrato. Por isso, no captulo

    IV de An Essay in Aid of a Grammar of Assem, reproduz o texto de

    algumas cartas publicadas no The Times. Para Newman. as provas s

    so eficazes para quem cultiva as razes do corao e, no fundo, s

    confirmam a f que se tem: "Quem de vs se ps a demonstrar a existncia cie Deus? Quem de vs

    no creu nesta existncia antes de demonstr-la? De fato. os argumentos

    no servem a no ser para torn-la mais slida, mais confivel a certeza

    dos que j tm f... As provas seguiro a nossa f. As provas so antes o

    prmio que o fundamento da t" (Parochial and Plain Sermons VI.

    XXIII).

    65

    Newman foi considerado um precursor, sob muitos aspectos, dos

    movimentos existenciais, personalistas e fenomenolgicos, sobretudo

    enquanto considera a "possibilidade de uma instituio rigorosamente

    intelectual do vivido concreto".

    3 - Experincia de nossas vivncias

    No faltam autores que tentam aproximar-se da existncia de Deus

    desde a anlise de certas experincias humanas "privilegiadas" nas

    quais, de algum modo, se capta a percepo do absoluto. No fundo,

    situam-se numa linha atualizada de S. Agostinho.

    J. Marechal (1878-1944), por exemplo, afirma a existncia de

    Deus desde o dinamismo intelectual do conhecimento objetivo. A meta

    fundamental de Marechal mediar a metafsica clssica, atravs do

    mtodo transcendental, como o formulara Kant. Entende a metafsica

    como a cincia humana do absoluto. Quer mostrar que, superando Kant.

    a afirmao ontolgica justa, porque o homem, em sua prpria

    estrutura, metafsico, ou seja, a afirmao ontolgica condio de

  • possibilidade do processo de objetivao. Segundo Manfredo Arajo de

    Oliveira, o mtodo de Marechal consta de trs passos fundamentais: "a) Abstraindo do valor ontolgico dos objetos, uma anlise reflexiva

    tem a tarefa de detectar elementos e relaes que constituem o objeto

    como tal: b) tal anlise nos vai conduzir, em primeiro lugar, a uma

    afirmao absoluta do objeto como postulado prtico; c) por fim. o

    estabelecimento do valor objetivo absoluto cio objeto afirmado atravs

    da deduo transcendental da afirmao ontolgica (noumenal, no

    sentido de Kant). como necessidade terica e isto significa, para

    Marechal, superar Kant base dos prprios princpios de seu mtodo"

    (p.77).

    66

    Em um artigo publicado, em 1931. no qual comentava a posio

    de Le Roy, Marechal havia observado, j, que "se h uma verdade para a qual tudo em ns convirja, uma verdade que

    vivamos inclusive antes de conhec-la e que nos conatural atai ponto

    que possamos perceb-la com certeza antes de submet-la ao controle da

    prova de nossos conceitos, no h dvida de que essa verdade c a

    relativa existncia de Deus. A empresa apologlica de Lc Roy. seja o

    que forem as provas exclusivamente racionais, de nenhuma maneira

    parece condenada ao fracasso. Absolutamente falando, uma prova que

    inclusse elementos morais e que se apoiasse nas experincias

    progressivas de boa vontade em atitudes de busca; uma prova que fosse,

    segundo a acertada expresso do autor, o traado de um itinerrio mais

    que uma deduo terica, poderia levar afirmao necessria, e de

    modo algum ambgua, de Deus" (Le problme de Dieu d'aprs. M.

    Edouard Le Roy. NRT. 1931).

    Marechal dedicou os melhores esforos de sua pesquisa a expor a

    famosa tese do dinamismo do ato e da analogia: "Eu parto - afirma - de uma experincia transcendental, singular por

    natureza, universal por encontrar-se em todos. O dinamismo ento revela

    a limitao do ato. afirmada desde o comeo, revelada pela explicitao:

    experincia da limitao do objeto".

    67

    O mtodo de Marechal parte da considerao do prprio

    pensamento humano e observa que estamos colocados no absoluto. Em

    ltima anlise, a subjetividade se entende a partir da referncia do ente

    absoluto, portanto, a partir de Deus. Mas isso comporta o risco de

    cairmos no antropomorfismo, tornando-se difcil no cair no risco de

    que Deus no se pode reduzir ao humano. Neste caso h o perigo do

    pantesmo de tipo hegeliano.

    Maurice Blondel (1861-1949) parte da convico de que a

    Filosofia no conhecimento puro e abstrato, mas "aspirao infinita,

    impulso para a mais alta das vidas, amizade com a sabedoria, pelo

    prprio sentimento da impotncia humana para realizar o ideal do

    sbio", porque sempre se pode observar uma desproporo entre o

    impulso do querer e da ao, entre a vontade querente e a vontade

    querida. A interrogao filosfica surge na e desde a ao. O homem

    encontra-se na situao de ator - intuio antecipadora do

    existencialismo - porque no pode deixar de comprometer-se na ao. O

    mero fato de afirmar o nada constitui uma afirmao do ser: "Aqueles

    que negam os nihilistas e os pessimistas manifestam a grandeza do que

    desejam". A afirmao do absoluto descoberta na ontolgica

    deficincia de nosso ser, porque "no momento em que parece que

    chegamos a Deus com o pensamento, foge-nos, a no ser que o

    busquemos e captemos na ao. Quando nos detentos, no o

    encontramos; quando nos movemos, a est. Pensar a Deus numa ao".

    Deus brota do dinamismo interior da mente e da vida (Uaction, I: Le

    problme des causes secondes et le pur agir. Paris, F. Alcan, 1936, p.ll e

    34).

    Max Scheler (1874-1928), profundamente influenciado por E.

    Husserl e fiel a seu ponto de partida fenomenolgico, afastou-se sempre

    de um intelectualismo exagerado. Situa sua reflexo sobre a religio no

    horizonte da tica e da teoria dos valores. A partir da elabora tanto sua

    concepo de Deus como do fenmeno humano da religio. O agir

    moral a realizao de um valor. O que um valor? Os valores so

    qualidades materiais e enquanto tais tm sempre um contedo. Mas

    enquanto qualidades no existem em si mesmos. Existem nas coisas e

    objetos que se revelam como portadores de valor.

    68

    Os valores constituem uma ordem prpria de qualidades puras e ideais,

    diferente da ordem do ser. Trata-se de uma ordem hierarquicamente

    organizada. Para realizar-se o valor, necessita de um portador e,

  • enquanto qualidade, os valores so independentes nele. Nesta ordem,

    uma distino fundamental entre valores pessoais e valores das coisas.

    No centro desta ordem esto os valores do santo e do no-santo. Na

    hierarquia dos valores, os mais altos fundamentam os mais baixos.

    Assim, para Scheler, todos os valores encontram sua fundamentao no

    valor Supremo, em Deus como pessoa. Enquanto pessoa infinita, o

    supremo valor. Entusiasta seguidor de S. Agostinho, de Pascal e

    admirador de Bergson, afirmou a intuio e a verdade do corao,

    embora com interpretaes muito pessoais. H intuies essenciais afirma que implicam um sentido intelectual direto: mas h outras que,

    sendo atos intencionais precisos, no implicam esse sentido intelectual.

    Conotam, no noes, mas valores. Qualidades, como o bem e o mal, o

    belo e o feio, etc., so essncias puras que carecem, sem dvida, de uma

    significao racional. Antes de racionaliz-las, o homem as

    experimenta. So anlogas, isto , derivam do corao e demonstram,

    em suma, uma intencionalidade emocional.

    Scheler distingue, pois, o conhecimento religioso do metafsico. O

    conhecimento religioso um conhecimento valorativo cujo fundamento

    se encontra no emocional, ou seja, em atos constitutivos da pessoa

    humana como amor. Como este um doar-se, justamente no Amor,

    Deus e homem se encontram. O amor constitui a essncia do valor

    supremo de Deus e, ao mesmo tempo, da pessoa humana. Assim, o

    caminho para Deus um ato de amor.

    Desta forma, Scheler situou Deus na "percepo emocional

    imediata". A Deus, como objeto da religio, fala-se no num

    conhecimento racional, mas em atos religiosos. Se partirmos da

    existncia dos atos religiosos no homem, teremos que perguntar no s

    por seu objeto, mas tambm por sua causa: "S uni ente real - afirma Scheler - com o carter essencial do divino,

    pode ser a causa da disposio religiosa do homem, isto , da disposio

    para a execuo real daquela classe de atos que no se podem encher

    com experincia finita e, sem dvida, exigem plenitude. O objeto dos

    atos religiosos . ao mesmo tempo, a causa de sua existncia" (Vom Ewi-

    gen in Menschen, I-II, 1921, 547).

    69

    Scheler termina dizendo: "Se nenhuma outra coisa provasse a

    existncia de Deus, a provaria a impossibilidade de derivar a disposio

    religiosa do homem de outra coisa que de Deus". O conhecimento de

    Deus o conhecimento, para ele, de uma presena, que no pode ser

    pensada a no ser como pessoa.

    Para Scheler, a pessoa existe essencialmente na execuo de atos

    intencionais. Entretanto, a pessoa no se confunde com a realizao

    desses atos. E a unidade de ser concreta de atos de essncia diversa. Por

    um lado. a pessoa no pode ser reduzida ao conjunto dos atos

    intencionais: por outro, dela no se deve fazer uma coisa substancial.

    Ela nada alm ou acima dos atos. Existe e se experimenta a si mesma

    nos atos como sendo essencialmente amor. Como pessoa finita. o

    homem aquele cuja determinao consiste em transcender-se na

    direo de Deus. O homem s se encontra a si mesmo neste movimento

    de autotranscendncia. Por isso torna-se impossvel entender o homem

    em profundidade sem esta referncia ao Absoluto, sem esta

    relacionalidade com Deus.

    O primeiro Scheler, cristo fervoroso, exerceu profunda influncia

    nos pensadores catlicos alemes da poca. Talvez, por isso, uma vez

    conhecida a desconcertante viragem de seus ltimos anos, aproximando-

    se de um "monismo vitalista", de uma concepo pantesta-

    evolucionista, choveram as crticas mais severas da parte de quem o

    havia admirado. Nesta fase final, o metafsico absorve o religioso e

    Deus despido de sua personalidade. O conhecimento religioso um

    conhecimento de Deus mediado pelo pr-"prio Deus. Embora diversas,

    metafsica e religio, so atividades complementares na vida humana. O

    Deus verdadeiro no to vazio e abstrato como o Deus da metafsica:

    tambm no to ntimo como o Deus da f pura. O conhecimento

    metafsico pode captar o carter pessoal de Deus, mas nunca atingir o

    cerne da pessoa de Deus, ou seja, o amor infinito. Este s o ato religioso

    atinge. Por isso. este o ato que mais humaniza o homem, enquanto

    realiza o encontro entre a pessoa infinita e a pessoa finita.

    70

    H. Bergson (1859-1941) evitou cair no "verbalismo das filosofias

  • intelectuais", consciente de que a imediatez com o real se consegue na

    intuio. A conceitualizao falseia a realidade. O pensamento atinge o

    externo, converte o contnuo em fragmentos, analisa e decompe:

    petrifica, numa palavra. A intuio, ao contrrio, instala-se no corao

    do real, permite o acesso ao centro do eu para onde no chega a reflexo

    subjetiva. Esta intuio-conscincia imediata, viso que apenas

    distingue o objeto, conhecimento que contato e ainda coincidncia -

    alm de ser inefvel, intuio de realidade e, inclusive, de realidades

    ltimas. Zubiri, em densa sntese verbal, disse que a filosofia de Bergon

    converte-se em "um esforo de intuio que comea por descobrir a

    realidade prpria do esprito, que nos faz delinear as distintas prolonga-

    es da durao e nos abre. finalmente, seu princpio e termo

    transcendente".

    Bergon afirma que o homem s se pode aproximar de Deus

    atravs da experincia. As provas metafsicas so to complicadas e to

    implicadas, to distintas da maneira de pensar do homem comum, que

    mui poucos creram nelas. Por isso deve falar-se de outras vias de

    aproximao do nico necessrio.

    Em As duas fontes pergunta:

    "Como no perceber que. se a filosofia obra da experincia e do

    raciocnio, deve seguir um mtodo inverso, interrogar a experincia

    sobre o que ela nos pode ensinar sobre um Ser transcendente tanto

    realidade sensvel como conscincia humana, e determinar ' ento a

    natureza de Deus raciocinando sobre o que a experincia tenha dito? A

    natureza de Deus aparecer assim nas prprias razes que se lenha para

    crer em sua existncia; esquivar-se- de deduzir sua existncia ou no-

    existncia a partir de uma concepo arbitrria de sua natureza" (p. 216).

    71

    Segundo Bergson. os profetas e os msticos cristos teste-

    munharam, com sua experincia, que h, no esprito humano, uma

    aspirao para algo transcendente a todo o lan, para um ponto final

    deste lan, que Deus. Situam a realidade de Deus na experincia

    humana. Bergson conta que "quando Pascal fala do Deus de Abrao, Deus de Isaac e Deus de Jac,

    no dos filsofos e dos sbios, o compreendo perfeitamente, porque no

    aprofundando as provas clssicas da existncia de Deus. as dos

    filsofos, dos sbios, que lenho chegado a Deus. Vejo agora como essas

    palavras podem confirmar, precisar uma convico j obtida. Mas tal

    convico no foi obtida atravs dessas provas. Quando eu era jovem,

    ensinava as provas da existncia de Deus. No se devem desprez-las.

    Eu no ensinava essas provas, como o fazem muitos, por provas que s

    tm um valor histrico e que s merecem ser conhecidas como referidas

    a determinados pensadores. Nunca foi este meu estado de alma. Agora

    pode conceber-se uma situao de esprito universitrio em que se

    poderia fazer peneirar, alm das provas de Deus, algo daquilo que

    dissera aos msticos... Porque, se o misticismo tal como eu disse, deve

    proporcionar o meio de abordar de algum modo, experimentalmente o

    problema de Deus" (Apud Chevalier J. Conversacion.es con Bergson.

    Madrid: Aguilar, 1960, p. 552).

    Fixando-se nos graus mais elevados da experincia religiosa,

    Bergson encontrou a chave da religiosidade mais pura no amor.

    72

    Para a experincia mstica, Deus o amor originrio. Segundo ele, tal

    concepo realiza-se, historicamente, de maneira mais plena no

    Cristianismo. Mas podem encontrar-se antecedentes, em quase todos os

    meios religiosos. Com a prevalncia do amor, as mediaes simblicas

    tornam-se mais sbrias e desinteressadas. A religio torna-se capaz de

    assumir um autntico humanismo. Deus manifesta-se como "fora de

    nossa fora". Bergson v a religio dinmica, ou seja, a religio continua

    o impulso criador da vida e tende a for mar a vida mais perfeita para o

    homem no impulso mstico.

    Esta viso bergsoniana de Deus, como fora vital criadora "vida,

    ao e liberdade incessantes", que experimentamos em ns mesmos,

    "quando atuamos livremente", foi taxada de "pantesmo evolucionista",

    de "monismo" e at de "atesmo larvado", acusaes contra as quais o

    prprio Bergson "teve que defender-se em vida.

    O mais importante continuador da obra de Bergson foi Eduardo Le

    Roy (1870-1954). Le Roy dedicou:se, de modo especial, a problemas

    gnoseolgicos e metafsicos. Como catlico praticamente, trata esses

    problemas na perspectiva religiosa. Entre suas obras destacam-se O

    pensamento intuitivo (2 volumes, 1929-30) e O problema de Deus

    (1929).

  • Segundo Le Roy. para chegar verdade religiosa preciso usar o

    pensamento intuitivo, o pensamento-ao, ou seja, a imediata

    experincia espiritual. As tradicionais provas da existncia de Deus so

    inoperantes. Deus. como qualquer outra realidade, no se pode

    demonstrar ou deduzir, mas apenas intuir. E a intuio de Deus a

    prpria experincia moral. Le Roy diz que a afirmao de Deus a

    afirmao da realidade moral como realidade autnoma, independente,

    irredutvel. A afirmao de Deus consiste, ento, na afirmao do

    primado da realidade moral. Neste sentido, viver significa crer em Deus;

    conhecer Deus significa tomar conscincia do que est implcito no ato

    de viver. Le Roy diz que s conhecemos Deus em ns mesmos e no

    mundo, nunca em si mesmo. Todo o pensamento "implica a afirmao

    de Deus". Deus meu pensamento ao qual sou interior. S temos

    experincia interna de Deus.

    73

    Gabriel Marcel (1889-1973) sempre rejeitou a denominao de

    filsofo existencialista, aceitando apenas, para seu pensamento, os

    termos de neo-socratismo ou de socratismo cristo. Empenhou-se em

    construir uma filosofia concreta, na qual a presena do transcendente

    aparecesse no prprio corao de nossa experincia humana. Deve haver

    uma experincia do transcendente, como tal, afirma Mareei. Por isso no

    nos aproximamos de Deus por dedues racionais, mas atravs das

    experincias totalizadoras: a fidelidade, a esperana e o amor. O

    conhecimento conceituai objetiva a Deus. de modo que o sujeito se

    mantm margem. Neste sentido, "quando falamos de Deus, no Deus

    de quem falamos" porque "Ele o incaracterizvel absoluto", no

    objeto, nem problema, mas ser pessoal, um Tu, uma pessoa. Deus

    mistrio. E o mistrio no conhecemos, mas reconhecemos ou

    rejeitamos.

    De acordo com a filosofia concreta de Mareei, ao descobrirmos

    que somos seres existentes, encarnados, participantes no ser,

    descobrimos, ao mesmo tempo, nossa participao no ser divino. Em

    uma palavra, a experincia de Deus surge no homem de uma busca

    originria do absoluto, de uma "exigncia de transcendncia". luz

    desta viso marceliana. as provas tradicionais sobre Deus devem ser

    revisadas. No convencem. Antes, so caminhos mais aparentes que

    reais.

    Na obra de diversos autores intitulada Experimentar Deus hoje.

    Leonardo Boff faz interessante distino entre experincia e vivncia.

    Diz: "Podemos dizer que experincia o modo como ns interiorizamos a

    realidade, como nos situamos no mundo e o mundo em ns. Experincia,

    assim entendida, deve pois ser distinguida da vivncia. A vivncia a

    situao psquica, as disposies dos sentimentos que a experincia

    produz na psique humana. So as emoes c valoraes que antecedem,

    acompanham ou seguem experincia dos objetos que se fazem

    presentes no interior da psique humana. Vivncia no sinnimo de

    experincia. E conseqncia e resultado da experincia na psique

    humana. Ela pertence ao lennemo total da experincia, mas este mais

    amplo e profundo do que aquele da vivncia" (p. 136).

    74

    Boff mostra que a experincia sempre feita dentro de um modelo

    prvio e de perguntas previamente colocadas. Conforme as perguntas,

    vm tambm as respostas. O modelo cientfico prvio j seleciona o que

    se deseja conhecer. Em outras palavras, s verificamos aquilo que

    procuramos, pois a objetividade cientfica inclui a subjetividade

    humana, as opes sociais e os interesses do grupo. A pergunta pelo

    sentido abrange a totalidade do fenmeno cientfico. Nesta perspectiva,

    quase no final do Tractatus logico-philosophicus. Ludwig Wittgenstein

    constata: "Mesmo quando tivermos respondido a todas as possveis

    questes cientficas, percebemos que nossos problemas vitais ainda nem

    sequer foram tocados" (6.52). A questo de Deus a questo do sentido

    da vida, da histria e do mundo.

    Boff pergunta: Como aparece Deus dentro do mundo oprimido da

    Amrica Latina? Responde que "Deus emerge como experincia no

    esforo gigantesco que se faz por todas as partes para arrancar o

    continente do atraso e da inumanidade. No processo de libertao

    efetivo, no engajamento para superar estruturas injustas a comear por

    aquelas estruturas mentais que nos impedem de acionar uma prxis

    modificadora das estruturas que geram desumanidade e destilam

  • opresso sobre grande parte da populao, a deve se verificar, no

    sentido etimolgico da palavra, deve se tornar e fazer verdade o

    significado originrio da palavra Deus" (p. 151). Na luta pela libertao

    comea a aparecer: "Aquilo que maior do que ns, que nos impulsiona

    como sede de justia, fome de solidariedade, angstia de fraternidade".

    Quando isso acontecer e nos sustentar emerge aquilo que chamamos

    Deus.

    75

    Deus emerge da radicalidade do mundo. Mas, tambm a viso

    apresentada por Boff sempre pressupe, de maneira explcita ou tcita, a

    f.

    Em sntese, as grandes tradies do pensamento filosfico, na

    histria da humanidade, de fato, originaram-se em tradies religiosas

    prvias. No seio dessas tradies, acontece um processo natural de

    racionalizao. Esse processo posteriormente se desenvolve fora dessas

    tradies. Como a religio, tambm a Filosofia procura responder

    mesma exigncia do homem: encontrar sentido para a existncia.

    Enquanto a Filosofia se desenvolve predominantemente na dimenso

    intelectual, a religio procura uma resposta integral, sem negligenciar

    certa dimenso intelectual. A Filosofia corre o perigo de perder o fundo

    comum com a religio. Por isso, paradoxalmente, a pretenso de dar

    solidez noo de Deus, fundamentando sua exigncia

    antropologicamente, transforma-se em humanismo radical. Este parece

    ser o caso tpico das chamadas provas da existncia de Deus.

    Hoje, a Filosofia pode tentar novos caminhos, aproveitando as

    lies da histria. Parte do homem-no-mundo, salientando os aspectos da

    experincia humana nos quais a existncia se mostra aberta para o

    Absoluto. Tal a exigncia, vivida em toda a afirmao, de um Ser

    necessrio, um primeiro fundamento, no qual a razo de ser supere a

    contingncia radical. A causalidade no mais identificada com as

    causas que a cincia investiga. De maneira anloga, parte-se da

    exigncia, percebida na conscincia, de um fim ltimo que d sentido

    ao e transcendncia humanas, respeitando a diferena de ordem do

    Absoluto e do mundo. Por isso a atribuio de propriedades do esprito

    ao Absoluto apresenta problemas. A abordagem do tema de Deus s

    poder ocorrer em nvel estritamente metafsico. Certos resultados da

    cincia, referentes ao dinamismo do universo, podem ser interessantes,

    mas pouco ou nada provam por ser de outra ordem. A f na existncia

    de Deus e a religio fundam-se na ordem metafsica.

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