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Estudos de Religião, v. 26, n. 42, 15-31, jan./jun. 2012 • ISSN Impresso: 0103-801X – Eletrônico: 2176-1078 Hermenêutica da recepção: textos bíblicos nas fronteiras da cultura e no longo tempo Paulo Augusto de Souza Nogueira* Resumo Este artigo propõe uma abordagem da hermenêutica da recepção da Bíblia a partir de questões e conceitos de Jorge Luis Borges, Mikhail Bakhtin e Iuri Lotman. Os textos bíblicos, como os demais textos das religiões, sendo dotados de densidade estrutural poética, constituem-se em redes de textos com potencial de apropriação e recriação na história e em diferentes culturas. Estes textos tornam-se textos da cultura em virtude de sua complexidade estrutural, o que os torna mais aptos a processos de recriação de sentido nas mais distantes temporalidades e nos contextos culturais mais periféricos. Esta proposta é examinada na interpretação de um conto de Júlio Cortázar (El Apo- calipsis de Solentiname). Ao final, apresentamos sugestões para uma maior articulação da hermenêutica da recepção na área acadêmica dos estudos bíblicos. Palavras-chave: Hermenêutica da recepção; semiótica da cultura; conceito de texto; polissemia; dialogismo; interpretação bíblica. Hermeneutics: biblical texts on the borders of culture and in the long time Abstract This paper analyses the Hermeneutic of the Reception through the work of Jorge Luis Borges, Mikhail Bakhtin and Iuri Lotman. Biblical texts, like those of other religions, are endowed with poetic structural density and form text networks with the potential for being appropriated and recreated in history and in different cultures. These texts become texts of culture due to their structural complexity, making them more capable of recreating the processes of meaning in the most distant temporalities and in the most different cultural contexts. This proposal is examined in the interpretation of a narrative by Julio Cortázar (El Apocalipsis de Solentiname). Finally, we offer suggestions for the hermeneutics of reception’s greater articulation in academic biblical studies. Keywords: Hermeneutic of reception, semiotics of culture, concept of text, polysemy, dialogism, biblical interpretation. * Doutor em Teologia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha. Professor de Literatura Bíblica da Pós-Graduação em Ciências da Religião e da Faculdade de Teologia da Univer- sidade Metodista de São Paulo (Umesp).

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  • Estudos de Religio, v. 26, n. 42, 15-31, jan./jun. 2012 ISSN Impresso: 0103-801X Eletrnico: 2176-1078

    Hermenutica da recepo: textos bblicos nas fronteiras da cultura e no longo tempo

    Paulo Augusto de Souza Nogueira*

    ResumoEste artigo prope uma abordagem da hermenutica da recepo da Bblia a partir de questes e conceitos de Jorge Luis Borges, Mikhail Bakhtin e Iuri Lotman. Os textos bblicos, como os demais textos das religies, sendo dotados de densidade estrutural potica, constituem-se em redes de textos com potencial de apropriao e recriao na histria e em diferentes culturas. Estes textos tornam-se textos da cultura em virtude de sua complexidade estrutural, o que os torna mais aptos a processos de recriao de sentido nas mais distantes temporalidades e nos contextos culturais mais perifricos. Esta proposta examinada na interpretao de um conto de Jlio Cortzar (El Apo-calipsis de Solentiname). Ao final, apresentamos sugestes para uma maior articulao da hermenutica da recepo na rea acadmica dos estudos bblicos.Palavras-chave: Hermenutica da recepo; semitica da cultura; conceito de texto; polissemia; dialogismo; interpretao bblica.

    Hermeneutics: biblical texts on the borders of culture and in the long time

    AbstractThis paper analyses the Hermeneutic of the Reception through the work of Jorge Luis Borges, Mikhail Bakhtin and Iuri Lotman. Biblical texts, like those of other religions, are endowed with poetic structural density and form text networks with the potential for being appropriated and recreated in history and in different cultures. These texts become texts of culture due to their structural complexity, making them more capable of recreating the processes of meaning in the most distant temporalities and in the most different cultural contexts. This proposal is examined in the interpretation of a narrative by Julio Cortzar (El Apocalipsis de Solentiname). Finally, we offer suggestions for the hermeneutics of receptions greater articulation in academic biblical studies.Keywords: Hermeneutic of reception, semiotics of culture, concept of text, polysemy, dialogism, biblical interpretation.

    * Doutor em Teologia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha. Professor de Literatura Bblica da Ps-Graduao em Cincias da Religio e da Faculdade de Teologia da Univer-sidade Metodista de So Paulo (Umesp).

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    Hermenutica: textos bblicos en las fronteras de la cultura y en el largo tiempo

    ResumenEn este artculo se propone una aproximacin a la hermenutica de la recepcin de los temas bblicos y los conceptos de Jorge Luis Borges, Mikhail Bakhtin y Iuri Lotman. Los textos bblicos, al igual que otros textos de las religiones, en cuanto dotados de densidad estructural potica, se constituyen en redes de textos con potencial de apropiacin y recreacin en la historia e en diferentes culturas. Estos textos se tornan textos de la cultura debido a su complejidad estructural, lo que los torna ms aptos a procesos de recreacin de sentido en las ms distantes temporalidades e en los contextos culturales ms perifricos. Esta propuesta es sometida a examen en la interpretacin de un cuento de Julio Cortzar (El Apocalipsis de Solentiname). Al final, presentamos sugerencias para una mayor articulacin da la hermenutica de la recepcin en la rea acadmica de los estudios bblicos. Palabras clave: Hermenutica de la recepcin; semitica de la cultura; concepto de texto; polisemia; dialogismo; interpretacin bblica.

    As abordagens interpretativas da esttica da recepo aplicadas lei-tura da Bblia no so novas e fazem parte, cada vez mais, do conjunto de abordagens acadmicas estabelecidas dos estudos bblicos. Quando falamos de esttica da recepo stricto sensu referimo-nos teoria que tem origem nas reflexes da hermenutica filosfica de Gadamer e das abordagens da teoria da literatura de Jauss e Iser. Estas so conhecidas da comunidade acadmica e no precisamos apresent-las aqui1. Neste artigo eu gostaria de pedir li-cena ao leitor para usar a expresso hermenutica da recepo no sentido lato e referir-me a ela a partir de autores no cannicos. Nossos interlocutores sero Jorge Luis Borges, Mikhail Bakhtin e Iuri Lotman. A leitura dos dois ltimos em conjunto parece ser mais justificada, afinal ambos eram contemporneos, russos e trabalharam com teoria da literatura e semitica. Mas entendo que Borges nos oferece as questes mais adequadas para uma leitura dos tericos russos, que, por sua vez, nos permitiro abordar o tema da hermenutica da recepo em relao Bblia. Antes de eu iniciar a incurso nos textos de nossos autores, necessrio definir minimamente o que entendo como recepo e como pretendo estender este conceito at a interpretao bblica. Recepo, no sentido lato e pouco tcnico pretendido por este ensaio, o processo de leitura de textos ou de smbolos originados de textos, por parte de leitores de perodos distanciados na histria do tempo de redao dos

    1 Ver captulo de Jos Adriano Filho Esttica da Recepo e Hermenutica Bblica. In: Linguagens da Religio: Perspectivas, Mtodos e Conceitos Centrais, organizado por Paulo Nogueira, So Paulo: Paulinas, 2012.

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    textos, de forma que estas leituras paream atuais, ou melhor, como se os textos tivessem sido produzidos para estes leitores segundos. Tambm en-tendo como parte de nosso conceito lato de recepo o pressuposto de que o processo de leitura atualizada de textos do passado distante origina-se de propriedades inerentes aos prprios textos. Ou seja, a recepo aqui entendida de forma dupla: como potencialidade do texto para releituras e como processo de apropriao e atualizao do leitor distante no tempo.

    O ensaio de Borges, Pierre Menard, autor de Quixote (BORGES, 2009, p. 846), uma resenha literria de um crtico que teve acesso s cartas de um prolfico autor de Nimes, nos anos 1930. Nosso narrador resenhista comea seu texto refutando resenhas supostamente injustas de crticos da poca e elencando, aps exame do arquivo pessoal de Menard e de conversas com ele, uma enorme lista de textos dos mais diversos gneros. Menard teria sido autor de obras tcnicas, de poesia, de tratados, de prefcios, realizou tradues, entre outros gneros. Mas no nenhuma destas obras que o torna digno da resenha de nosso autor. Menard props-se uma das tarefas mais difceis que se pode imaginar: escrever o Quixote. No outro Quixote, mas o Quixote. No tratava tampouco de copiar o Quixote, mas de escrever, palavra por palavra, linha por linha, o Quixote de Miguel de Cervantes. Seu mtodo era complexo: aprender o espanhol do sculo XVII, recuperar a f catlica, guerrear contras os mouros ou contra o turco, esquecer a histria da Europa entre 1602 e 1918, ou seja: ser Miguel de Cervantes. Mas Menard era ousado e achou que este mtodo era fcil demais e assim o descartou. Apesar de ter aprendido bem o espanhol do tempo de Cervantes, props-se, sendo Pierre Menard, a chegar ao Quixote, por meio das experincias de Pierre Menard. Este autor no considera o contexto de Cervantes, mas, na verdade, este desdm indica um novo sentido da novela histrica. Na comparao de ambas as obras, nosso crtico chega concluso: El texto de Cervantes y el de Menard son verbalmente idnticos, pero el segundo es casi infinitamente ms rico. (Ms ambiguo, dirn sus detractores; pero la ambigedad es una riqueza.) (BORGES, 2009, p.846). Permitam-me fazer uma longa citao do texto. Vejamos como o autor da crtica compara ambas as obras em uma passagem especfica:

    Es una revelacin cotejar el Don Quijote de Menard con el de Cervantes. ste, por ejemplo, escribi (Don Quijote, primera parte, captulo IX):[] la verdad, cuya madre es la historia, mula del tiempo, deposito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.Redactada en el siglo XVII, redactada por el ingenio lego Cervantes, esta enu-meracin es un mero elogio retrico de la historia. Menard, en cambio, escribe:

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    [] la verdad, cuya madre es la historia, mula del tiempo, deposito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.La historia, madre de la verdad; la idea es asombrosa. Menard, contemporneo de William James, no define la historia como una indagacin de la realidad sino

    su origen. La verdad histrica, para el, no es lo que sucedi; es lo que juzgamos que sucedi. Las clusulas finales ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir son descaradamente pragmticas. Tambin es vvido el contraste de los estilos. El estilo arcaizante de Menard extranjero al fin adolece de al-guna afectacin. No as el del precursor, que maneja con desenfado el espaol corriente de su poca. (BORGES, 2009, p. 846-847).

    O resenhista nos surpreende com a citao de textos exatamente idnti-cos, um do Quixote de Cervantes, outro do Quixote de Menard. Mas ressalta que se o tom de Cervantes era retrico, o de Menard contm uma filosofia da histria. As diferenas manifestam-se tambm no estilo. E o que em Menard soaria desvantajoso seu estilo estrangeiro, algo afetado -lhe imputado como um mrito, afinal Cervantes era fluente no espanhol de seu tempo. Estas consideraes so feitas sobre textos idnticos! Borges quer nos provocar uma reflexo sobre a linguagem e sobre a arte como releitu-ras (ou reescrituras) no tempo. No final da resenha crtica, o autor nos faz um ltimo elogio de Menard: Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido mediante una tcnica nueva el arte detenido y rudimentario de la lectura: la tcnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones errneas (BOR-GES, 2009, p. 847).

    Na verdade, esta a tcnica do prprio Borges em seu texto: atribuir o Quixote a Menard, em princpios do sculo XX. Estaria a uma nova forma de ler? Ou a prpria forma de ler? Borges, ou melhor, o autor da resenha, considera a ambiguidade uma riqueza. Mas como? No bastam as ambiguidades inerentes a todos os textos? E agora as encontraremos em escrituras e leituras do mesmo texto? Como um texto pode ser um mero elogio histrico e, 300 anos depois, ser uma filosofia da histria? E se ousssemos tirar conse-quncias tericas deste exerccio de Borges, que implicaes ela teria para a leitura? Talvez o exerccio que Borges nos prope, no limite do fantstico e do absurdo, possa nos mostrar que a leitura de textos na histria , de fato, constituda mais por estes elementos absurdos do que o que admitem nossas hermenuticas e nossas prticas tradicionais. Esta resenha da obra de Menard lana-nos questes importantes s quais buscaremos aproximaes neste ensaio: Como pode um texto, sendo sempre idntico a si mesmo, ser outro texto no processo de leitura? H algo no texto que o torna potencialmente

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    outro texto? Pode um texto ser virtualmente outro texto? H no ato de ler um processo de ler, nas mesmas letras, outros sentidos? E como?

    Provocados por Borges, faremos uma breve incurso nos dois tericos russos guiados por uma resposta hipottica: o texto virtualmente muitos textos, e esta virtualidade do texto ativada pelo leitor. No texto, o que o torna virtualmente outro sua estrutura; no leitor, o que o torna o descobridor destas camadas de texto potencial a distncia. Quanto mais formalmente complexo um texto e quanto mais distante estiver o leitor, mais o texto ser texto-outro sendo texto-em-si-mesmo.

    *.*.*.*Levantadas as questes centrais para nosso estudo neste ensaio, gosta-

    ria de abordar o segundo autor de nossa anlise: Mikhail Bakhtin. Sua obra despertou o maior interesse entre os estudiosos de literatura e das cincias da linguagem a partir dos anos 1970. So muitos os tratamentos tcnicos que a obra bakhtiniana vem recebendo. Nosso interesse aqui muito mais modesto. Abordaremos algumas ideias de Bakhtin em relao s perguntas que levantamos acima, analisando apenas um de seus artigos. Trata-se de um artigo de apenas sete pginas, que consta do adendo de Esttica da criao verbal (BAKHTIN, 2006 p. 259-266). Estamos falando do artigo que Bakhtin escreveu para a uma revista russa, intitulado Os estudos literrios hoje. Resposta a uma Pergunta da Revista Novi Mir, publicado em 1970. Este artigo, apesar de pequeno e despretensioso, traz reflexes de um Bakhtin maduro, que indagado sobre o que h de relevante nos estudos literrios da Rssia dos anos 1970, escreve sobre o que est para ser feito, sobre algo que est em germe em sua obra. A primeira colocao que Bakhtin faz que os es-tudos literrios necessitam esclarecer a relao entre literatura e histria da cultura. Esta uma nfase de toda a sua obra: a literatura indissocivel da histria e dos processos sociais; no isenta dos processos histrico-sociais. At aqui todos os historiadores e estudiosos de literatura podem concordar. At mesmos os exegetas! Mas em Bakhtin, o que parece consensual e simples reserva surpresas. Em seguida ele diz que: as correntes poderosas e profundas da cultura (particularmente as de baixo, populares) que efetivamente determinam a criao dos escritores, continuam aguardando serem descobertas, e s vezes permanecem totalmente desconhecidas dos pesquisadores (BAKHTIN, 2003, p.263; grifo nosso).

    Notem que destaquei parte da primeira frase em itlico. Aqui comea-mos a vislumbrar o ponto de contato proposto por Bakhtin de relao entre histria e literatura. No se trata de qualquer abordagem da histria; alis, isso j vinha sendo feito nos estudos de literatura. Ele est nos propondo uma

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    abordagem totalmente nova da literatura e da histria: o estudo da literatura no grande tempo. Delimitar o estudo dos textos ao seu tempo de produo seria uma espcie de abordagem mope. As grandes obras, aquelas que tm razes profundas na cultura popular, so preparadas por sculos. E a obra s ganha seu sentido verdadeiro quando ela mesma adentra neste grande tempo. Resumindo: uma grande obra, ou seja, obra ancorada nas tradies populares, comea a ser gestada antes de sua redao (na mitologia, no folclore, na tradio oral, nas festas populares); e o autor, sintonizado com estes estratos da cultura produz a obra artstica que, sendo assim dotada de riqueza e profundidade, precisa tambm do distanciamento temporal para ser apreciada em toda a sua profundidade. Bakhtin nos oferece um exemplo precioso ao falar das obras de Shakespeare. Quando criadas elas estavam ao mesmo tempo enraizadas nos temas profundos da sociedade (em especial na cultura carnavalesca, to preciosa a Bakhtin), mas tambm se encontra-vam presas em seu tempo. S o grande tempo poderia libert-la para a sua plenitude. Desta forma, s ns podemos estudar em plenitude os gregos da Antiguidade. Nosso Shakespeare mais rico que o de seu prprio tempo. Bakhtin est falando aqui do dialogismo, mas num nvel superior, o dialogismo entre temporalidades. Somente com a ajuda da distncia temporal, de uma sociedade que interpreta o texto literrio de outra sociedade distante, que ambas as culturas entram em dilogo. Citamos aqui Bakhtin:

    No campo da cultura, a distncia a alavanca mais poderosa da compreenso. A

    cultura do outro s se revela com plenitude e profundidade (mas no em toda a plenitude, porque viro outras culturas que a vero e compreendero ainda mais) aos olhos de outra cultura [] entre eles comea uma espcie de dilogo que supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas. Colocamos para a cultura do outro questes que ela mesma no se colocava. (BAKHTIN, 2006 p. 266).

    De acordo com Bakhtin, o texto do passado s profundo se estiver enraizado em uma historicidade que lhe anterior e na cultura popular. Trata--se de um primeiro momento de dialogismo e de distanciamento. Da mesma forma, esta obra s ser compreendida em dilogo com outra cultura, em outra temporalidade. Esta nfase de Bakhtin no longo tempo fundamenta a ideia da literatura como relao social. a cultura como produo da sociedade que est em jogo e no o gnio ou talento do artista. O tempo da sociedade mais longo que o tempo da vida do autor. O texto literrio do passado s pode ser lido com profundidade em nosso tempo (revelando tambm profundidades do tempo dele, que eram ocultas a seus leitores no

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    passado) se levantarmos as nossas questes (BAKHTIN, 2006 p. 266). Este o nosso dilogo entre o nosso tempo e o tempo do autor. uma forma de descobrirmos mais sobre aquele tempo e, por meio dele, saber mais profundamente sobre o nosso prprio tempo.

    *.*.*.*

    Passemos agora a nosso terceiro autor, Iuri Lotman. Ele nos oferecer conceitos e instrumentos tericos para a compreenso dos motivos pelos quais as obras tm potencial de reinterpretao na histria2. Lotman, como Bakhtin, estava interessado inicialmente na interpretao da obra literria. Mas enquanto o primeiro encontrava no romance a forma mais plena de dialogismo, o segundo entendia que a poesia era a forma literria mais do-tada de polissemia.

    Um conceito fundamental na obra de Iuri Lotman o conceito de texto (LOTMAN, 2007, p.13-26; LOTMAN, 1993, p. 15-20). Texto, aqui, enten-dido como unidade de informao. Neste sentido, um poema, um salmo, mas tambm uma imagem ou um ritual podem ser entendidos como textos. O fato de eles serem entendidos como unidade de informao tira-lhes a aura romntica de sentidos transcendentes e faz com que possam ser analisados como informao no sistema da cultura. Os textos, segundo Lotman, tm fundamentalmente trs funes: a primeira transmitir informao. Este objetivo cumprido principalmente pelos textos de carter mais tcnico, portanto mais monossmicos. Num manual tcnico de qualquer tipo as ins-trues devem ser compreendidas claramente e no interpretadas de forma complexa. A eficincia desta funo do texto determinada pela manuteno de um cdigo comum entre emissor e receptor e sua eficincia mxima s possvel de ser alcanada em linguagens artificiais. Afinal, mesmo um manual de instrues de uso de uma mquina pode ser mal interpretado. Segundo Lotman, h certa resistncia da linguagem humana em cumprir esta funo. A segunda funo do texto a de criar novas mensagens, ou seja, produzir novos textos. Isto visto como um problema nas teorias de informaes tradicionais. Elas consideravam que quaisquer alteraes na mensagem en-viada de A para B deveriam ser entendidas como rudos, ou seja, distores na comunicao. Estes rudos atrapalhariam o processo e impediriam que a mensagem emitida por A fosse decodificada com perfeio na recepo

    2 Para uma apresentao de conceitos centrais de Lotman como texto, cultura e semio-sfera na relao com as Cincias da Religio, ver Religio como texto: contribuies da semitica da cultura em NOGUEIRA, 2012. Para as obras de Lotman ver a bibliografia de referncia ao final deste artigo.

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    de B. Contudo, para Lotman, no isso o que acontece na comunicao humana. Toda mensagem que entra em contato com um cdigo diferente do da emisso torna-se outro texto, e isso o que acontece na cultura o tempo todo. Os cdigos do receptor B no so idnticos aos do emissor A. Quem recebe uma mensagem tem questes, pressupostos, conhecimentos, interesses diferentes dos do emissor. Em consequncia disso, o texto que ele decodifica diferente do emitido. Se o ideal de texto na primeira funo o manual tcnico de instrues, ou melhor, a linguagem artificial de um computador, o texto ideal no segundo caso o texto potico, artstico e religioso. Textos complexamente estruturados, ao entrar em contato com seus interlocutores, sejam pessoas ou outros textos, tm o poder de serem transformados em textos diferentes, de gerar novas mensagens. neles que se encontra o maior grau de polissemia. A polissemia pode ser ainda maior se este texto for dotado de sincretismo estrutural. A terceira funo do tex-to a de preservar a informao por meio de memria. Memria no texto da cultura no preservao de informao pura e simples. Como o texto complexo e entra em contato com diferentes temporalidades, a memria da cultura tambm um dispositivo multiforme. Neste processo, os textos da cultura so smbolos densos que concentram informao, permitindo que todas as leituras que so feitas desses sejam potencialmente presentes e, portanto, possam ser reativadas e reinterpretadas por leitores de outras temporalidades. Neste ponto, em especial, a abordagem de Lotman parece--nos prxima de Bakhtin.

    Mas o que torna o texto algo to polissmico e capaz de gerar novas mensagens? Para Lotman, o texto da cultura constitudo por assimetria semitica e por dupla codificao. Ele assimtrico porque sempre precisa de um interlocutor, seja no dilogo dos hemisfrios cerebrais do monlogo do indivduo at os complexos processos de dilogo a que so submetidos os textos na sociedade. E o texto tambm se constitui em algo sincrtico. Ele , no mnimo, duplamente codificado: na lngua natural e tambm na lngua da cultura (no sistema religioso, jurdico, artstico, social etc.). A ln-gua natural emulada pelos sistemas da cultura, de forma que temos o que Lotman chama de sistemas modalizantes de segundo grau, ou seja, sistemas da cultura que do forma ao que amorfo, da mesma forma que a lngua natural organiza em mundo humano a natureza. O texto tambm sincrtico ao ser composto por diferentes tipos de cdigos. Um ritual composto por gestos e palavras; um poema composto do sistema fontico, de rimas, de ritmos, de semntica, imagens provenientes de metforas etc.; um filme composto por imagens em movimento, msica, palavras (se legendado, por palavras escritas). Ou seja, os textos da cultura so compostos por estruturas

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    de organizao sgnicas que entram em frico umas com as outras desesta-bilizando o sentido estabelecido e permitindo novas formas de estruturao e de gerao de sentido. A transio no texto do sentido de um subcdigo ao outro (digamos, do texto imagem, ou vice e versa) requer processos dinmicos de traduo que potencializam a criao de novas mensagens. No dizer de Lotman,

    o texto se apresenta diante de ns no como a realizao de uma mensagem em uma nica linguagem qualquer, mas como um complexo dispositivo que guarda cdigos variados, capaz de transformar as mensagens recebidas e de gerar novas mensagens, tornando-se um gerador informacional que possui caractersticas de uma pessoa com um intelecto altamente desenvolvido. (LOTMAN, 1996, p. 84).

    Podemos, desta forma, situar em um extremo as formas mais abstratas e precisas da linguagem, como a matemtica ou as metalinguagens da cincia, e do outro, as formas hbridas e polissmicas da arte e da religio, que so as que potencialmente podem gerar mais sentidos e, portanto, novos textos. Quanto mais preciso, mas vazio de sentido; quanto mais ambguo, maior o potencial de interpretao.

    Segundo a proposta de Lotman, um texto s pode existir no contato com um interlocutor. Estes interlocutores podem ser textos de outras cul-turas ou mesmo o leitor, entendido como um texto. Estes, ao entrarem em contato com um dado texto ou com uma cultura (entendida aqui como uma grande rede de textos), o desestabilizam e provocam nele exploso de novos sentidos. Nesta perspectiva, quanto mais estranhos e distantes os textos que entram em contato com um texto previamente dado, mais ele se desestabiliza e produz novos sentidos. O estranhamento, seja por diferena em relao ao sistema da cultura, seja por distancia temporal dele, fator de provocao de transformao do texto. As mudanas ocorridas com a criao de novos textos so percebidas como desfiguraes. A cultura tem que assimilar estes novos textos por meio de tradues. Quando elas no acontecem, o sistema textual (e a cultura um grande sistema de textos estruturados hierarquica-mente) se rompe. Da a importncia das metalinguagens que ajudam a criar dilogo e senso de unidade entre os fragmentos da cultura. Este aspecto da desestabilizao da cultura na criao de novas mensagens (decorrente do encontro com textos estranhos mesma) remete-nos ao fato de a ambiva-lncia ser um elemento que favorece a criao de textos e a dinamizao da cultura. por isso que Lotman insiste que os processos culturais e histricos so imprevisveis. No sabemos como ser a cultura no futuro. As variveis na cultura so imensas, seu dinamismo no pode ser captado pelas teorias.

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    Estes conceitos de Bakhtin e de Lotman permitem-nos pensar a recep-o da Bblia de forma muito apropriada ao nosso objeto: o texto bblico em processo de reinterpretao na cultura. No caso de Bakhtin, a distncia no tempo destacada; no de Lotman, a distncia do sistema da cultura. Ambos os autores originaram suas investigaes no estudo da literatura e, em especial, no romance e na poesia russa. Esta preocupao com o texto e com as transformaes da cultura no texto literrio favorecem a relao com os estudos bblicos. Mas estes autores pouco dizem sobre o texto bblico ou sobre a narrativa religiosa. Cabe a ns tentar aproximar os textos religiosos aos textos poticos e estticos. Entendemos que os textos religiosos, no caso, os mitos, os ritos, em suas vrias manifestaes (oraes, liturgias, narrativas sagradas, sobrevivncias de ncleos mtico-religiosos na arte), partilham da densidade estrutural do texto potico e esttico advogada por eles. Tambm propomos que Bakhtin e Lotman fornecem hipteses sobre a linguagem e a cultura que podem ser relacionadas nossa definio de trabalho de recep-o como potencialidade do texto para releituras e como processo de apro-priao e atualizao do leitor distante no tempo. A potencialidade inerente ao texto artstico e religioso advm de sua codificao hbrida e complexa, de sua estrutura dialgica e do potencial de memria que tm estes textos imaginativos e criativos da cultura. Por outro lado, o leitor, em contato com textos cheios de relaes e sentidos em potencial, tornando-se um interlocu-tor deles, tem o poder de atualizar os textos na histria e descobrir sentidos latentes no texto que, na distncia histrica, podem ser mais bem visualizados. Podemos, assim, concluir provisoriamente que os textos bblicos, como os demais textos das religies, sendo dotados de densidade estrutural potica constituem-se em redes de textos para apropriao e recriao na histria e em diferentes culturas. Estes textos tornam-se textos da cultura exatamente por serem recriados nas mais diferentes temporalidades e nos contextos culturais mais perifricos.

    Na sequncia deste nosso ensaio discutiremos nossa hiptese de herme-nutica da recepo em um texto concreto. Nosso objetivo no apresentar uma interpretao completa do texto escolhido, mas evidenciar, para fins do nosso debate, como acontece a recepo de um texto bblico numa cultura distante dele, na temporalidade e no sistema da cultura. El Apocalipsis de Solentiname, de Julio Cortzar (CORTZAR, 2010, p. 164-169), um conto no qual ele relata sua visita ao arquiplago de Solentiname, Nicargua, na dcada de 1970. Trataremos este conto como fico, ainda que Cortzar tenha efetivamente visitado este lugar. Cortzar, aqui, um personagem que

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    narra em primeira pessoa sua visita e sua experincia. Passemos a uma breve apresentao do enredo do conto.

    A) A chegada e o encontroCortzar chega a San Jos da Costa Rica, onde se encontra com amigos

    e entrevistado pela imprensa local. Depois recebido por Ernesto Cardinal, o religioso e poeta que organizou a comunidade de camponeses e artistas nas ilhas de Solentiname. Ernesto veio receber o visitante e acompanh-lo no restante do trajeto. Desse encontro o visitante diz: Siempre me conmueve que alguien como Ernesto venga a verme y a buscarme (Ibid., p.164).

    B) Inicia-se a viagem de San Jos para SolentinameEsta viagem feita em um aviozinho chamado Piper Aztec. O per-

    sonagem brinca com este nome, que ser siempre un enigma para mi, e fantasia que El azteca nos llevaba derecho a la pirmide del sacrificio. Eles fazem uma parada na casa do poeta Jos Coronel Urtreche e tiram uma foto do grupo com uma cmera Polaroid. O efeito da imagem que se forma no papel chama a ateno de Cortzar: un papelito celeste que poco a poco y maravillosamente y polaroid se va llenando de imgenes paulatinas, primero ectoplasmas inquietantes y poco a poco una nariz, un pelo crespo, la sonrisa de Ernesto E de forma brincalhona se pergunta: Por que no llenar-se con Napolen a Caballo? (Ibid., p.165).

    C) A chegada a SolentinameEles chegam noite e de cara Cortzar afirma deparar-se com as

    famosas pinturas feitas pelos camponeses de Solentiname. H nfase na experincia do ver. Por duas vezes diz: vi las pinturas en un rincn. E des-creve a arte desses camponeses: una vez ms la visin primera del mundo, la mirada limpia del que describe su entorno como un mundo de alabanza.

    D) A missaNo dia seguinte, um domingo, eles vo missa. O tema da pregao

    a priso de Jesus, que o personagem assim comenta:

    un tema que la gente de Solentiname trataba como se hablaran de ellos mismos, de la amenaza de que les cayeran en la noche o en pleno da, esa vida en per-manente incertidumbre de las islas y de la tierra firme, y de toda Nicaragua y

    no solamente de toda Nicaragua, sino de casi toda Amrica Latina, vida rodeada de miedo y de muerte. (CORTZAR, 2010, 166).

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    O conto comea a criar as relaes entre um texto do passado, a narrativa da priso de Jesus, com a histria de Nicargua, e no s desta, mas de toda a Amrica Latina submetida violncia dos regimes militares. Texto e imagem da realidade, imagem dos quadros e imagem da realidade comeam lentamen-te a se interpenetrar. O micro (o texto bblico, Solentiname, Nicargua) e o macrocosmo (Amrica Latina) iniciam seu estranho jogo de correspondncias.

    E) Ver e fotografar quadrosA obsesso pelos quadros o toma novamente. Ele vai sala onde eles

    esto: fui a la sala de la comunidad y empec a mirarlos a la luz delirante de medioda Comea a fotografa-los, na correspondncia: um quadro para cada pose fotogrfica e cada quadro tomando todo o visor. E enfatiza: fotografiando con cuidado. H uma nfase no registro visual dos quadros. Primeiro na observao deles na noite da chegada, agora no cuidadoso re-gistro fotogrfico luz do meio-dia.

    F) O retorno a ParisCortzar (personagem) retorna a Paris, passando por San Jos e por

    La Havana. Observa que volta ao tempo da vida burguesa, ao tempo do relgio, ao tempo do Merci monsieur, bonjour madame, los comits, los cines, el vino tinto, y Claudine, los cuartetos de Mozart, y Claudine. Este retorno a Paris descrito como um retorno a outro recorte da realidade, a outro mundo.

    G) A viso das imagens noite, sEle quer mostrar as imagens para sua namorada, Claudine, quando ela

    chegar, noite. Para isso prepara uma sequncia de slides numa carretilha. E comea a ver as imagens, sozinho. Mas algo inesperado acontece. As imagens no aparecem na tela na ordem estabelecida, mas as de Solentiname vm primeiro. Ele v a criana, a missa, mas uma transfigurao demona-ca de imagens acontece diante dele. Ele tem vises de horror e de morte, cuerpos tendidos de boca arriba, sua mo perde o controle sobre o boto que passa as imagens, elas ganham autonomia e se transformam diante dele. Novamente tudo se relaciona com tudo. Solentiname transforma-se num microcosmo de toda a Amrica Latina. Ele tem vises de morte em Corrientes, e em San Martn, e outros lugares do continente. V imagens de tortura e a imagem borrada de Roque Dalton (poeta e jornalista salva-dorenho morto em 1975, pelo seu prprio grupo revolucionrio, acusado de colaborao com a CIA): aunque la foto era borrosa yo sent y supe que el muchacho era Roque Dalton, y entonces si apret el botn como si

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    con eso pudiera salvarlo de la infamia de esa muerte. Ele tenta fugir das imagens apertando, em vo, o boto.

    O personagem tem nusea, um sentimento de estar diante do horror e da morte. Ele vai ao banheiro, no est certo se vomita. Quando volta sala ali est Claudine vento os slides e comenta: Que bonitas te salieron. Claudine v as pinturas de Solentiname, no as imagens, o jogo dos contr-rios entre o paraso e o inferno. Ironicamente, ele deseja perguntar se ela viu Napolen a Caballo.

    O apocalipse de Solentiname um verdadeiro texto apocalptico, em dois nveis, um mais superficial e outro mais profundo. No nvel de superfcie, o autor nos apresenta seu texto como uma pardia de apocalipse. Isso ns j percebemos no ttulo do conto. Mas tambm pode ser percebido em algumas pistas que ele deixa no caminho. Por exemplo, ao mostrar irritao com as entrevistas em San Jos, Cortzar comenta: la ltima entrevista me la darn en las puertas del infierno. Tambm nesta direo que lemos a meno ao sair para caminhar em San Jos, a las siete, e apresentao de Ernesto como um anjo-guia. De fato o texto apresenta-se como releitura bblica quando insere o texto bblico no jogo de referncias entre o micro e o macrocosmo. O texto da priso de Jesus seria um texto sobre a ilha, sobre a Nicargua, sobre o continente todo. Estas pistas atingem um pice quando na viso, noite em Paris, ele v el auto negro con cuatro tipos apuntando a la vereda, como uma espcie de quatro cavaleiros do apocalipse latino-americanos.

    Esta apenas uma forma de releitura do apocalipse no texto. Estas pistas so provocaes, colocam-nos em sintonia com a releitura proposta, porm o texto bblico tambm evocado num nvel mais profundo; sua estrutura entra em contato com outra textualidade que lhe , a princpio, es-tranha e com a qual constituir um novo texto. Entendo que este nvel mais profundo encontra-se na subverso das formas cotidianas da temporalidade e de percepo; elas estruturam a realidade a seu modo. H uma alternncia de luzes e formas distintas de olhar os quadros. H aqui um jogo de revelaes: aps a missa, com luz do meio-dia, e depois noite, com imagens borradas. So duas formas distintas de apreenso do mundo que desafiam a percepo cotidiana do real. O mesmo jogo d-se com diferentes temporalidades: existe o tempo de Paris, o tempo do relgio de pulseira, o tempo burgus, de dar bom-dia, de ir ao concerto, de se encontrar a companheira, mas h tambm um tempo do olhar, tempo do olhar onrico, que difere do tempo cronolgico. Ele j indicado no primeiro contato com os quadros em Solentiname: nos fuimos dormir casi en seguida pero antes vi las pinturas en un rincn e nos bamos quedando dormidos pero yo segu todava ojeando los cuadritos en un rincn. E em Paris, novamente, noite: anocheca y yo estaba solo.

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    A viso-revelao que ele tem noite, na qual o tempo cotidiano suspenso, enquadrada por duas vises: os quadros luz do dia, em Solentiname, e depois quando eles so vistos nos slides por Claudine. As vises so apresen-tadas numa tenso entre imagens paradisacas e imagens demonacas. Primeiro, as imagens paradisacas de Solentiname nos quadros dos camponeses (una vez ms la visin primera del mundo, la mirada limpia del que describe su entorno como un mundo de alabanza), depois, ao projetar estas imagens, v o mundo que as complementa por oposio, as imagens de morte e tortura na Amrica Latina. Elas esto, ao mesmo tempo, imbricadas e em franca opo-sio uma outra. A estas oposies soma-se a relao parte-todo. O texto realmente entra no jogo de linguagem apocalptico ao subverter totalmente o conceito de temporalidade, de realidade e de apreenso desta. Ao contrrio de interpretaes que entendem o tempo dos apocalipses como um tempo linear na histria, o texto de Cortzar nos apresenta tempo e realidade em complexidade, como elementos entrelaados em um labirinto. Suas vises da realidade do continente latino-americano s podem acontecer num processo de viso da imagem-revelao, no tempo mtico e potico. Podemos notar este jogo com o tempo tanto no gnero fingido do relato, como uma espcie de nota de viagem, como no fato de que ele data e localiza o texto em San Jos, La Havana, abril de 1976, ou seja, no roteiro que ele apresenta de retorno a Paris, mas que, assim apresentado, seria antes da chegada a Paris! Seria um tempo antes do tempo? Ou o tempo do sonho? Ou ento o tempo potico, tempo de criao do texto? Os detalhes biogrficos do autor e de sua viagem Nicargua no so de importncia aqui, ficam submetidos fico. ela quem d as regras para a compreenso da narrativa. E algum tem dvida de que ela d conta e muito bem da realidade?

    Segundo nossa leitura, o relato de Cortzar profundamente apoca-lptico. Ele v na realidade o que s o visionrio, na produo de um texto potico e visionrio, pode ver. Nas imagens paradisacas esto implicadas e, ao mesmo tempo opostas, as imagens demonacas, como num trptico de Hyeronimus Bosch. Na suspenso do tempo cotidiano emerge uma temporali-dade do sonho e da viso, e com ela uma compreenso profunda da realidade. disso que tratavam os apocalipses antigos, em especial o Apocalipse de Joo. No modo apocalptico de apreenso do mundo, que se d por meio de linguagem densa (metafrica, imagtica, mtica), a realidade profunda de violncia e morte do passado e do presente pode ser apreendida e transfor-mada em texto na cultura. Esta fundamentao dos apocalipses no mundo imagtico e mtico e em seu modo visionrio e onrico de mediao os enraza profundamente na cultura popular. Os textos apocalpticos so tambm h-bridos em sua estrutura. So constitudos por imagens, metforas, alegorias,

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    citaes da escritura. E na histria da leitura dos textos somaram-se outras formas de codificao: comentrios alegricos medievais, crenas milenaris-tas, iluminuras de manuscritos, vises derivadas de seus textos, entre outras. Todas estas releituras retomam os sentidos potenciais do texto apocalptico e os revivem luz das questes que lhe propem. E todas estas releituras tornam-se parte do texto e de sua memria na histria. Por isso, ao lidar com um texto complexamente estruturado como o Apocalipse, o conto de Cortzar pode desvelar potica e visionariamente a realidade latino-americana.

    Neste exerccio, buscamos observar como dois textos colocados em con-tato um com o outro o Apocalipse de Joo e a realidade latino-americana sob as ditaduras dos anos 1970 produziram um novo texto, denso, potico. Este ativa a memria do texto apocalptico do passado, entra em relao simbitica com ele, deforma-o, mas tambm o revive, desperta sentidos que estavam latentes. O texto de Cortzar uma releitura apocalptica do mundo, pois a partir da periferia do sistema cultural, ativa o potencial de sentido criando frices nas estruturas do texto apocalptico, gerando assim um novo texto de grande polissemia. Tambm esperamos poder ter apontado para o fato de que a distncia temporal entre os textos o do Apocalipse de Joo e o de Cortzar um elemento propiciador de dialogismo entre am-bos. Ambos os textos, o Apocalipse de Joo e o Apocalipse de Solentiname, enriqueceram-se mutuamente. O Apocalipse de Joo, escrito em tempos de sofrimento, de ameaas e de violncia no primeiro sculo, estruturado com metforas e imagens que evocam esta violncia, beneficiado pelo encontro com o Apocalipse nicaraguense: este ltimo foi capaz de reavivar camadas de sentido empoeiradas e ocultadas pelas interpretaes dogmticas e estticas. E o Apocalipse de Solentiname foi dotado de poder e capacidade de projetar imagens poderosas para a interpretao da realidade latino-americana.

    *.*.*.*

    Gostaria de concluir este ensaio propondo algumas questes para a continuidade dos estudos de hermenutica da recepo. Se forem corretos os nossos pressupostos tericos de que os textos bblicos so estruturados de forma complexa, eles deteriam um poder de gerao de mensagens na cultura maior que o de simples transmisso de informao e seriam mais afeitos segunda funo do texto apontada por Lotman: a criao de novos textos. Tentamos destacar este aspecto aproximando os textos bblicos dos textos poticos, com os quais os textos bblicos compartilham polissemia e complexidade estrutural. Como consequncia, a interpretao bblica que busca apenas o resgate de supostos sentidos originais no estaria fazendo

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    justia complexidade estrutural das fontes com que lidam. E de fato isto acontece como parte da corrente de interpretao da exegese histrico-crtica que, aps o estudo dos elementos literrios e histricos do texto, e uma vez levantado seu sentido original, no se interessa pelas formas como o texto bblico reinterpretado na histria subsequente. como se o texto tivesse alcanado seu sentido pleno no tempo de sua redao. Se nossa hiptese interpretativa estiver correta, o exegeta teria dificuldades para justificar os motivos que o levam a restringir a anlise do texto ao passado. Parece-me que o contrrio correto. O trabalho do exegeta apenas se inicia no estudo da composio do texto: o sentido pleno do texto ainda est para se revelar, em diferentes momentos, em dilogo com outros textos. Depois do estudo da gnese do texto, ele deve persegui-lo em sua histria de releituras e em sua atividade incessante de criao de novos textos na cultura. Se adotarmos os pressupostos de Lotman (da distncia cultural) e de Bakhtin (de distncia na temporalidade), o perfil de nossa rea de estudos deveria ser o de crtica da cultura e das interpretaes, de observar o texto bblico gerando sentido nos limites de sua linguagem e de sua historicidade. A considerao deste alcance do texto bblico como texto na cultura e na histria deveria nos obri-gar a redimensionar o papel da exegese, de lhe ampliar os horizontes, de nos tirar da zona de conforto dos limites do cannico e do tempo de redao. Tambm entendo que a segmentao da hermenutica da recepo como um mtodo alternativo e literrio no ajuda muito na renovao de nossa rea de estudos. Se o texto uma entidade viva e dinmica que cria novos textos na cultura e na histria, este fato deve, de alguma forma, nos confrontar com a necessidade de reformulao das abordagens metodolgicas e tericas da rea. Entendemos que a discusso em torno de uma hermenutica da recepo, seja na perspectiva da esttica da recepo de Jauss e Iser, seja na do mitologismo de Meletinski e de Frye3, ou dos autores e conceitos que propus aqui, no um exerccio de metodologia complementar para exegeses contextuais, mas uma atividade fundamental que deve reorganizar toda a rea dos estudos bblicos e seu alcance como disciplina humanstica, teolgica e das Cincias da Religio. Talvez a partir desta reformulao o estudioso da Bblia incor-pore tambm aos seus temas de interesse e de formao a cultura visual, a histria da literatura, a potica, os estudos de cultura popular, entre outros.

    3 Ver MELETINSKI, 2001 e 2002; FRYE, 1990.

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    Submetido em: 23/4/2012

    Aceito em: 4/7/2012