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Entre o discurso do Acampamento Terra Livre e a (ex)(in)cluso social, o (per)curso identitrio dos povos indgenas
Between the Acampamento Terra Livre discourse and the social (ex) (in)clusion, the
identity path of the indigenous people
Vania Maria Lescano Guerra*
Maria Francisca Valiente**
RESUMO: O objetivo deste artigo
problematizar o processo de constituio
identitria dos indgenas a partir do discurso
do "Documento Final do Acampamento
Terra Livre 2011 - pelo direito vida e me
Terra". Para tanto, analisamos como so
construdas as representaes sociais de
excluso que constituem o discurso do
documento oficial sobre os indgenas, a partir
da perspectiva discursiva e do processo de
referenciao lingustica, com base na
interpretao de regularidades enunciativas
que nos possibilitem rastrear, pela
materialidade lingustica, os efeitos de
sentido possveis, as formaes discursivas e
os interdiscursos que perpassam o discurso
do movimento indgena "Acampamento
Terra Livre" (ATL). A fundamentao
terica transdisciplinar proposta neste
trabalho, pela articulao entre a Anlise do
Discurso (PCHEUX, 2002; CORACINI,
2011; AUTHIER-REVUZ; 1998,
ORLANDI, 2099) e a perspectiva ancorada
no mtodo arqueogenealgico (FOUCAULT,
2007), imprescindvel para que possamos
problematizar as relaes entre a linguagem,
o sujeito e as relaes de poder em um
contexto mais amplo, na medida em que a
interpretao se d na tenso entre estrutura e
acontecimento. Vozes discordantes e
concordantes perpassam esse discurso, a
partir de momentos de identificao que
incluem e excluem o sujeito em pauta, num
ABSTRACT: The purpose of this article is
to discuss the process of the indigenous
identity construction from the discourse of
the Acampamento Terra Livre 2011 final
document - the right to life and the Mother
Earth. To do so, we analyzed how social
representations of exclusion are constructed
which constitute the discourse of the official
document on indigenous, from the discursive
and the linguistic referencing process
perspectives, based on the interpretation of
enunciative regularities that allow us to track,
through the linguistic materiality, the effects
of possible sense, the discursive formations
and the interdiscourse which pervade the
discourse of the indigenous movement
Acampamento Terra Livre (ATL). The
transdisciplinary theoretical framework
proposed in this paper, articulating the
Discourse Analysis (PCHEUX, 2002;
CORACINI, 2011; AUTHIER-Revuz, 1998;
Orlandi, 2009) and the perspective based on
the archaeology method (Foucault, 2007), is
essential to make possible to discuss the
relationships between language, the subject
and the power relations in a wider context,
given that the interpretation is the tension
between structure and happening. Discordant
and concordant voices permeate that
discourse, from moments of identification
that include and exclude the subject at hand,
in a paradoxical and multifaceted identity
movement.
* Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Doutora em Lingustica e Lngua
Portuguesa pela UNESP de Araraquara (SP), com ps-doutorado pelo IEL/UNICAMP. Atua no Programa de
Ps-graduao em Letras da UFMS. **
Formada em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/Unidade de Nova Andradina. Atua na
rea de pesquisa em Anlide de Discurso de linha Francesa. Mestre em Estudos Lingusticos pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul/ Unidade de Trs Lagoas.
DOMNIOS DE LINGU@GEM
(http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799
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movimento identitrio paradoxal e
multifacetado.
PALAVRAS-CHAVE: Terra. Indgenas.
Excluso Cocial. Representaes.
KEYWORDS: Earth. Indigenous people.
Social exclusion. Representations.
1. Consideraes introdutrias
reconhecendo mais a vida em tudo aquilo que tenha
histria e que no seja apenas teatro, que se faz justia a
esse conceito de vida. Pois a partir da histria, no da
natureza [...] que preciso finalmente circunscrever o
domnio da vida. Assim nasce para o filsofo a tarefa
(Aufgabe) de compreender toda a vida natural a partir dessa
vida, de mais vasta extenso, que aquela da histria
(DERRIDA, 2002, p. 32).
O objetivo deste artigo problematizar o processo de constituio identitria dos
indgenas a partir do discurso do "Documento Final do Acampamento Terra Livre 2011 - pelo
direito vida e me Terra". Para tanto, analisamos como so construdas as representaes
sociais de excluso que constituem o discurso do documento oficial sobre os indgenas, a
partir da perspectiva discursiva e do processo de referenciao lingustica, com base na
interpretao de regularidades enunciativas que nos possibilitem rastrear, pela materialidade
lingustica, os efeitos de sentido possveis, as formaes discursivas e os interdiscursos que
perpassam o discurso do movimento indgena "Acampamento Terra Livre" (ATL).
A questo indgena no Brasil tem sido consideravelmente debatida no momento atual
tanto no meio miditico como acadmico. Com a Constituio de 1988, o ndio passa a ter seu
direito diferena cultural reconhecido com sua cultura, costumes, lnguas, crenas e
tradies e, portanto, busca se inserir na sociedade por meio de polticas indigenistas que
incluem aes no que se refere sade, educao, assistncia social e ao meio ambiente,
assim como tambm o desenvolvimento da sociedade indgena e seu direito terra. Essas
questes carregam uma historicidade que perpassa os tempos constituindo, por meio da
memria discursiva, o imaginrio em relao a esse grupo marcado pelo preconceito e pela
excluso social desde a poca da colonizao e que condiciona o momento atual. Tome-se
como exemplo a tentativa das comunidades indgenas em estabelecer um dilogo com a
sociedade nacional e o Estado, que uma questo histrica e vem ocorrendo desde a
colonizao portuguesa em decorrncia da ocupao de suas terras.
Contudo, a partir da dcada de 70, delineia-se um novo quadro no que diz respeito s
questes indgenas no Brasil pela unio de diferentes povos que comeam a se organizar
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politicamente em defesa de seus direitos, sobretudo em relao terra. Essa unio pouco a
pouco foi se consolidando por meio de Assembleias Indgenas e pelo apoio de algumas
organizaes indigenistas como o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), o ATL e a
Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (APIB) constituindo o Movimento Indgena do
Brasil (MIB).
Nesse contexto, o MIB foi-se estabilizando entre a represso e a resistncia, o que lhe
permitiu obter certa visibilidade por parte do poder pblico, bem como o apoio de algumas
instituies, ainda que sob a tica e a voz do Estado. Um marco decisivo no protagonismo
indgena foi a Constituio de 1988, que instituiu o indgena como cidado de direito, dando a
este o direito de conduzir sua prpria histria em defesa de seus direitos. Na
contemporaneidade, com a criao do Movimento Indgena ATL, em 2004, a partir do
domnio da memria, um novo campo enunciativo surgiu trazendo novas configuraes
prtica discursiva indgena, tendo em vista que agora o ATL que se faz ouvir via discurso
oficial.
Em princpio, conjectura-se que as relaes de dependncia e submisso que oprimiam
as comunidades indgenas no perodo do colonialismo foram reconfiguradas na perspectiva
ps-colonial por discursos outros que desafiam o poder da sociedade hegemnica por meio de
um contra posicionamento que refuta os pontos de vista e as crenas da cultura dominante,
por isso, orgulhosamente desafiador (ANZALDU, 2005, p. 705). Isto pode ser observado
se analisarmos os diferentes movimentos, entidades nogovernamentais e ONGs que se
uniram causa indgena. Nessa perspectiva, a emergncia do movimento indgena pela
articulao entre essas diferentes instncias em prol dos direitos e interesses dos indgenas se
apresenta como uma forma de reao contra o Estado. Considera-se, o ATL como um
movimento de resistncia, que toma posio, que se apropria do discurso e do direito de falar
em oposio ao governo, constituindo-se pela linguagem por meio do trabalho simblico em
que suas crenas, valores e seu mundo significam e so representados.
Estudar as representaes sociais de excluso construdas via discurso oficial implica
abordar a subjetividade do indgena por sua constituio filosfica e poltica, haja vista que se
trata de observar como o ndio se representa, como representa o outro - o branco - alm de
estabelecer uma relao tensa entre as representaes construdas sobre esses povos no
decorrer da histria e suas prprias experincias de resistncia. Dos descobridores aos
contemporneos, as comunidades indgenas foram sempre concebidas por uma tica social
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incapaz de acolher a diferena, a alteridade. Diferentes representaes sociais foram
construdas sobre os ndios no decorrer dos tempos que ora os apresentava como brbaros,
selvagens, primitivos, silvcolas, ora como inocentes ou bons selvagens ou at mesmo o
anti-heri. Essa no aceitao dos europeus ao outro, ao diferente afetou diretamente as
comunidades indgenas que tiveram que criar novos esquemas e novas estratgias de convvio
com esses personagens. Estratgias essas que ainda continuam a ser utilizadas na atualidade,
embora sob uma nova configurao medida que a luta pela terra se faz poltica.
Outro ponto a ser desconstrudo em relao s comunidades indgenas refere-se
concepo homognea, folclrica e genrica de ndio, uma vez que de acordo com o senso do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) de 20101 se trata de um total de 305
etnias que somam 896,9 mil indgenas e 274 lnguas e dialetos sendo falados, dezenas de
aldeias e diferentes territrios em todo o pas, o que mostra a grande diversidade desses povos
conforme enfatiza Grupioni (1995, p.19) ao argumentar que os ndios no so apenas
diversos entre ns, so tambm diversos entre si. Dada a natureza desse estudo, e
considerando as particularidades do ATL como movimento de resistncia, formado por
lideranas indgenas, representantes do CIMI, e entidades de apoio causa indgena, a
abordagem ser feita considerando o movimento em si, uma vez que no possvel abordar
todas as etnias e suas particularidades. Entretanto, no h dvida de que h diversidade de
povos e de culturas. Ao lado dessas questes, ainda h a posio ambgua do Estado que
oscila entre o protecionismo indgena, ao conceber os diferentes povos pela tica da
homogeneizao em nome de uma identidade nacional, e uma posio de descaso e abandono
com essas populaes colocando-as como empecilhos ao progresso.
Considerando que as condies de emergncia do discurso do ATL no se deram
aleatoriamente, mas so o reflexo de um jogo de foras na memria que permite ser repetido,
sabido, esquecido, transformado (FOUCAULT, 2008, p. 28), que propomos algumas
perguntas de pesquisa para melhor entender sua emergncia e dirigir nosso foco de anlise:
Que condies materiais de existncia histrica propiciaram o surgimento desse discurso e
no outro, enquanto acontecimento? Levando-se em considerao a irrupo deste, com quais
discursos ele provoca rupturas e que configurao assume na atualidade? Que fatos histricos
e sociais sua volta envolveram-se em sua irrupo? Em busca de respostas a tais
1 Informao disponvel em: http://paulosuess.blogspot.com.br/2012/08/novos-resultados-do-censo-do-ibge.html.
Acesso em: 03/11/2012 s 13h 38min.
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questionamentos, trabalhamos com a hiptese de que no documento citado, elaborado em
Braslia por mais de 700 lideranas indgenas, se faa ouvir, no discurso, a voz do indgena
como resistncia, como sujeito de seu discurso que cobra, denuncia e reivindica seu lugar no
espao social. Reivindicao essa que se ope ao discurso do Estado e ao discurso da Lei
que, muitas vezes, optam pelo silenciamento quando se trata de questes envolvendo as
sociedades indgenas.
Aps fazer um estudo tanto em mbito global como local sobre as diferentes temticas
que envolvem a questo indgena de modo geral, verificamos que ainda so raras as pesquisas
que problematizam a questo indgena levando-se em considerao a unio desses povos, suas
organizaes, lideranas, essa nova estratgia de luta dos povos indgenas que gira em torno
do Movimento Indgena. Assim sendo, esta pesquisa justifica-se por problematizar a
constituio da identidade indgena, no s a partir do olhar do outro, de uma etnia ou de uma
lngua, mas por meio das mltiplas vozes que configuram a populao indgena em nvel
nacional, uma vez que so as vozes de inmeros povos, lideranas indgenas e organizaes
que ecoam no documento via discurso oficial e que constitui a prtica discursiva do sujeito
indgena.
Do ponto de vista metodolgico, Foucault acrescenta as reflexes sobre as relaes de
poder/saber, sujeito e acontecimento discursivo exigindo que o analista do discurso o
arqueogenealogista considere os discursos na sua irrupo e no seu acaso, despojando-os
de toda e qualquer referncia a uma origem supostamente determinvel ou a qualquer sistema
de causalidade entre as palavras e as coisas (NAVARRO, 2011, p. 138). Trata-se de abordar
o enunciado por sua singularidade de acontecimento situado no campo de uma memria e
que, portanto, mantm relaes entre si, com outros grupos de enunciados e com fatos de
ordem cultural, social e histrica.
Em um segundo momento, cabe ao analista selecionar dentro de um arquivo
determinadas sries enunciativas buscando estabelecer as relaes que tais enunciaes
mantm entre si e, posteriormente, proceder ao recorte dessas sries enunciativas na tentativa
de averiguar os modos como essas discursividades produzem sentidos sobre um determinado
acontecimento discursivo. Como a questo fundamental para Foucault encontra-se justamente
em avaliar como determinados objetos de saber so construdos em uma determinada poca,
quais as formaes discursivas que do legitimidade a este objeto, consideramos o conceito de
formao discursiva como a noo norteadora dessa pesquisa tendo em vista que o objeto
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surge quando condies discursivas e no discursivas o produzem (ARAUJO, 2011, p.97).
Por meio do mtodo arqueogenealgico elaborado por Foucault, compreendemos que a
anlise das formaes discursivas implica considerar como um determinado objeto de saber
irrompe enquanto acontecimento, quais as transformaes que esse objeto sofre no decorrer
da histria em uma relao estreita com complexas relaes de poder.
Ao utilizar-se do termo dispositivo, Foucault aborda as relaes de poder/saber por
meio de um conjunto que articula o discursivo, o contexto scio-histrico, instituies, o dito
e no dito que influencia na subjetividade do sujeito e deixa emergir por meio da linguagem
os traos de identificao que permitem compreender a constituio identitria do sujeito que
, assim como o discurso, sempre hbrida, heterognea e mvel. De acordo com o autor,
algumas precaues metodolgicas se fazem pertinentes na anlise das relaes de poder e
devem ser orientadas para o campo da dominao (e no da soberania), para o mbito dos
operadores materiais, para o mbito das formas de sujeio, para o mbito das conexes e
utilizaes dos sistemas locais dessa sujeio e para o mbito, enfim, dos dispositivos de
saber (FOUCAULT, 2005, p. 40). Desse modo, a genealogia, de acordo com o historiador,
seria uma iniciativa que visa dessujeitar os saberes institudos historicamente contra a coero
de um discurso nico e objetivo, tornando-os capazes de oposio e de luta.
Para Foucault (2008), as regras que definem uma formao discursiva apresentam-se,
pois, por meio de um sistema de relaes entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e
estratgias de modo que tais elementos tendem a permitir a passagem da disperso para a
regularidade entre os enunciados. Uma anlise que leva em considerao os postulados do
historiador no que concerne noo de formao discursiva. Ela deve empreender a rdua
tarefa de diagnosticar as relaes existentes entre o poder e o saber, dando nfase
principalmente aos diferentes modos de subjetivao do ser humano por meio do discurso.
Nesse sentido, o corpus aqui analisado se constitui de um documento oficial denominado
Documento Final do Acampamento Terra Livre: pelo direito vida e me terra, retirado do
site do CIMI que foi elaborado aps inmeros debates entre lideranas indgenas na
Explanada dos Ministrios, em Braslia (DF), entre os dias 02 e 05 de maio de 2011, em que
representantes indgenas por meio do ATL se colocam em oposio ao governo2.
2 Este texto se insere na pesquisa financiada pelo CNPq, O processo identitrio do indgena de Mato Grosso do
Sul: anlise documental e miditica da luta pela terra (Processo 471597/2012-4), sob a coordenao de Vania Maria Lescano Guerra.
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O site do CIMI foi escolhido por sua natureza simblica e significativa, j que essa
instituio representa o marco inicial de unio entre as diversas instncias, organizaes,
entidades, lideranas tradicionais e representantes indgenas do pas que culminou na
concretizao do MIB, dentre eles, o ATL. Como espao divulgador do documento, o site
tomado como um suporte material que, sob uma ideologia, uma conjuntura dada, apresenta as
circunstncias em que o documento foi elaborado, as formas de adaptao desse gnero
discursivo relativamente mais complexo e as condies de produo na qual ele est inserido,
uma vez que os gneros so instituies de falas scio-historicamente definidas, sua
instabilidade grande, e eles no se deixam apreender em taxionomias compactas
(MAINGUENEAU, 2006, p.112). Dentre as temticas expostas no documento, destacam-se:
a) Terra: demarcao e desintruso; b) empreendimentos que impactam terras indgenas; c)
criminalizao de lideranas indgenas; d) reestruturao da Fundao Nacional do ndio
(FUNAI); e) Legislao Indigenista; f) sade indgena; g) educao indgena; h) Cdigo
Florestal; e i) reforma poltica. Considerando a abrangncia de temas e suas especificidades,
efetuamos alguns recortes no discurso do documento ATL, dentro de um campo maior que
constitui o corpus deste trabalho. Tais recortes foram realizados com base nas regularidades
de discursos, nas especificidades de sentidos e temas considerando os temas inicialmente
propostos de excluso.
A fundamentao terica transdisciplinar proposta neste trabalho3, pela articulao
entre a Anlise do Discurso (PCHEUX, 2002; CORACINI, 2011; AUTHIER-REVUZ;
1998, ORLANDI, 2009, entre outros) e a perspectiva ancorada no mtodo foucaultiano
arqueogenealgico (FOUCAULT, 2007), imprescindvel para que possamos problematizar
as relaes entre a linguagem, o sujeito e as relaes de poder em um contexto mais amplo, na
medida em que a interpretao se d na tenso entre estrutura e acontecimento. nessa regio
de tenso que os sentidos se formam, se (res)significam. Portanto, a anlise do campo
discursivo busca compreender o enunciado em sua singularidade de acontecimento
(FOUCAULT, 2008, p. 31,), procurando elucidar as condies de sua emergncia e
estabelecendo relaes com outros discursos. Para o autor, um enunciado sempre
acontecimento, uma vez que abre espao para sua inscrio na memria, j que suscetvel de
3 Parte integrante da dissertao defendida no Programa de Mestrado em Letras, da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, Discurso, Terra, Cidadania: aspectos da identidade indgena, com o apoio da CAPES (ver VALIENTE, 2013).
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repetio, transformao e reativao, sobretudo porque est ligado ao interdiscurso, ou seja,
a outros enunciados que vieram antes e depois dele ou, no dizer de Orlandi (2009, p. 30):
aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.
2. Contextualizando a pesquisa: acontecimento e estrutura
Problematizar o discurso implica considerar, entre outras coisas, os sujeitos e a
situao em que esse discurso foi produzido, ou seja, as condies de produo (ORLANDI,
2009) que serviram de base para os processos discursivos e que remetem exterioridade,
histria e ao social. Trazer as condies de produo no tarefa fcil, uma vez que na
articulao entre a lngua, o contexto scio-histrico e a memria discursiva que o discurso
adquire sentido. Orlandi (2009, p. 40) enfatiza que as condies de produo implicam o que
material (a lngua sujeita a equvoco e a historicidade), o que institucional (a formao
social, em sua ordem) e o mecanismo imaginrio.
pelo jogo imaginrio (ORLANDI, 2009) que os sujeitos produzem uma determinada
imagem de si, do outro e do referente, mecanismo que pode se tornar ainda mais complexo
quando o sujeito inverter esse jogo para a imagem que ele considera que o interlocutor tem
dele, a que ele cogita que o interlocutor tem do referente e assim por diante. Tais
consideraes so pertinentes, na medida em que tudo isso contribui significativamente para a
constituio das condies de produo de um discurso, em especial o discurso do ATL. As
condies de produo que envolve o documento do ATL mostram que a luta pela terra se
tornou uma questo poltica - porque carrega consigo a questo de como nos representamos e
como representamos os outros; traz a tenso e o confronto entre os saberes historicamente
constitudos sobre esses povos e as narrativas de si (AUTOR, 2010). Saberes esses registrados
em cartas, documentos e em polticas indigenistas institudas pelo Estado desde os tempos
coloniais e que marcam as relaes tensas e conflituosas entre indgenas, Estado e a sociedade
acional. Dessa maneira, ao inscrever-se na histria por meio do discurso, o sujeito significa
seu dizer a partir de condies especficas, determinadas de um lado, pela lngua e, de outro,
pelo mundo, pela sua experincia, por fatos que reclamam sentidos, e tambm por sua
memria discursiva (ORLANDI, 2009, p. 53) em que o discurso se faz estrutura e
acontecimento, na medida em que traz em sua constituio um contexto mais amplo em que o
social, o histrico e o ideolgico se imbricam.
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Logo, o imaginrio social construdo sobre os indgenas no decorrer dos tempos est
relacionado maneira como se estabeleceram as relaes sociais historicamente, assim como
as formas pelas quais as relaes sociais se investiram de relaes de poder. Ao abordar as
condies de produo do ATL, convm destacar a historicidade que constitui o movimento e
que, juntamente com a memria e com a formao discursiva do movimento, constitui novos
sentidos prtica discursiva indgena, sobretudo, a partir da concretizao do MIB, que
culminou em uma das maiores mobilizaes indgenas ocorridas no Brasil em nvel nacional-
o ATL- como resultado da situao de conflito entre o Estado e as comunidades indgenas.
Neste sentido, que destacamos a dcada de 2000 como um marco decisivo do MIB, ao expor
o desafio enfrentado pelas populaes indgenas, na tentativa de estabelecer um dilogo com
o Estado, desafio este mostrado, sobretudo, na comemorao dos 500 anos de descobrimento
do Brasil e que revelou, segundo Baniwa (2006, p. 80): as dificuldades dos povos indgenas
de lidarem com a complexa lgica burocrtica da Administrao Pblica e da (ir)
racionalidade poltica e ideolgica do Estado, que no consegue tratar os povos indgenas
como portadores de culturas particulares.
Paralelamente comemorao oficial do descobrimento do Brasil, preparada para
acontecer em Porto Seguro com a presena dos presidentes Fernando Henrique Cardoso
(Brasil) e Jorge Sampaio (Portugal), aconteceu tambm uma manifestao dos povos
indgenas na cidade de Coroa Vermelha, no Estado da Bahia, na "I Conferncia dos Povos e
Organizaes Indgenas do Brasil" em que diversos povos se organizaram em uma passeata
cujo lema era O Brasil que a gente quer so Outros 5004". Vieram povos de todos os
estados do pas configurando este como um dos momentos mais importantes para o MIB, uma
vez que reforou o protagonismo indgena na luta por seus direitos. Esta uma das primeiras
mobilizaes em nvel nacional dos povos indgenas.
A principal meta dessa passeata era chegar a Porto Seguro e protestar contra o
Presidente da Repblica que teve como meta enaltecer a identidade nacional em pleno sculo
XXI, desconsiderando os novos rumos da Constituio Federal em que se reconhece a
pluralidade de povos existentes em todo Brasil (PACHECO, 2005). Em virtude do descaso do
governo de Fernando Henrique Cardoso com as questes indgenas, foi apresentado na
Conferncia um documento com uma srie de reivindicaes direcionadas ao governo federal.
4 Ver http://www.pineb.ffch.ufba.br/downloads/1242404195Documento%20Final_Outros%20500.pdf. Acesso
em 10/05/2012 s 10h 32min.
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Datado do dia 21 de abril de 2000, o documento exigia a revogao do Decreto n 1.775, de
1996, que dispe sobre a demarcao de terras indgenas e a aprovao do Projeto de Lei
2.057, de 19915, que trata do Estatuto das Sociedades Indgenas. O movimento foi contido
pela tropa de choque da Polcia Militar6. Por outro lado, em comemorao aos 500 anos do
Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso, acompanhado do presidente de Portugal -
Jorge Sampaio - e de um grupo de 200 convidados especiais, plantava uma muda de pau-
brasil, segundo Pacheco (2005). Esse contexto marca os primeiros contornos do ATL que
veio a se firmar em 2004 como uma forma de reao dos indgenas ao poder dominante.
Memrias de um passado so recuperadas aqui sob a configurao de uma excluso, uma
apartao social entre a sociedade e as comunidades indgenas. Trata-se de um confronto
poltico que traz em sua temporalidade elementos contraditrios e antagnicos (ndio/branco;
sociedade minoria) no como um jogo meramente oposto, mas que pressupe um jogo de
foras sob o choque do acontecimento e abre espao para novas estratgias de subjetivao.
O embate cultural entre ATL e Estado tende a gerar formas de identidades especficas
legitimadora e de resistncia -, j que implica sempre em outros sistemas simblicos e,
portanto, tal processo permanece na sua incompletude. No caso das comunidades indgenas, a
reencenao do passado, de suas tradies, de sua cultura (especialmente no que concerne
me terra), de seus valores simblicos traz em seu bojo outras temporalidades culturais que se
apresentam na forma de conflitos sociais, excluso, segregao. Opor-se simbolizao
preparada pelo Estado em comemorao aos 500 anos do Brasil, mostra um rompimento com
a concepo homognea da comunidade imaginada da Nao, uma reao ao outro.
Pacheco (2005) afirma que os povos, organizaes e entidades indgenas reavivaram o
Movimento Indgena ao apoiar o candidato Lus Incio Lula da Silva visto como a melhor
opo para mudanas na poltica indigenista do pas. A Secretaria Nacional de Movimentos
Populares do Partido dos Trabalhadores (PT) organizou um comit de campanha constitudo
por lideranas indgenas que estavam vinculados a vrias instituies como o CIMI e a
FUNAI. Com a chegada de Lula ao poder, o comit indgena se manteve com o objetivo de
contribuir no processo de transio do governo conseguindo, assim, alcanar algumas
conquistas, dentre elas, a criao de uma nova equipe para dirigir a FUNAI. Contudo, nessa
nova gesto da FUNAI, no houve nenhum apoio efetivo do governo para com o rgo. Em
5 Projeto de Lei que se encontra em tramitao no Congresso Nacional.
6 Ver: http://www.proyanomami.org.br/frame1/conferencia.htm. Acesso em 10/05/2012.
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decorrncia disso, os grandes empresrios, juntamente com senadores e deputados comearam
uma campanha de desestabilizao dessa gesto, o que culminou, segundo Pacheco (2005, p.
8), na exonerao do presidente da FUNAI - Eduardo Almeida e sua equipe. Descontentes
com a poltica indigenista instaurada no pas pelo governo, os indgenas organizaram, em
2003, em Manaus, o primeiro Frum Permanente, lanando uma campanha nacional e
internacional em defesa dos direitos dos povos indgenas cujo lema era Terra, Justia e
Autonomia. Foram trs dias de intensa discusso, apresentao de propostas e
reivindicaes. Em protesto poltica indigenista7 do presidente Lula, os indgenas
queimaram o documento apresentado pelo candidato na poca da campanha eleitoral o qual
afirmava o compromisso com os povos indgenas.
O governo ento decidiu criar uma Mesa de Dilogo com os povos indgenas que
funcionava por meio da Secretaria Geral da Presidncia e reunia lideranas indgenas ligadas
s organizaes, bem como lideranas tradicionais. Entretanto, esta ao tambm fracassou e,
mesmo assim, o movimento indgena continuou a se articular abrindo um espao propcio
para a criao do ATL. No dia 15 de abril de 2004, levantou-se em meio ao gramado da
Esplanada dos Ministrios, em Braslia o primeiro ATL. Esta ao tinha por objetivo cobrar a
imediata homologao da terra indgena "Raposa do Sol" em Roraima8, bem como evitar
retrocessos na Constituio Federal.
O I ATL realizou-se entre os dias 15 e 19 de abril de 2004 e apresentou-se como a
mais importante mobilizao indgena ocorrida em contexto nacional passando a se repetir
nos anos subsequentes. Hoje se encontra em sua VIII edio. E para melhor entendermos
como o ATL se tornou uma das maiores mobilizaes indgenas do pas, convm apontar as
condies de emergncia das sete edies que sucederam ao primeiro ATL criado em 2004.
No ano de 2005, aconteceu a II9 Edio do ATL que contou com a participao de mais de
800 lideranas de 89 povos que se deslocaram de vrias regies do pas. A meta principal era
concretizar a aliana feita em 2004 com os diferentes povos, organizaes e entidades
indigenistas em defesa de seus direitos. Dentre as principais reivindicaes do movimento
destacam-se os processos de regularizao de terras indgenas, os projetos de lei e as
propostas de emenda Constituio no Congresso Nacional. Tais propostas que representam
7Disponvel em: http://pib.socioambiental.org/c/noticias?id=10175. Acesso em 15/05/2012.
8Disponvel em: http://pib.socioambiental.org/es/noticias?id=11683. Acesso em 19/04/2012.
9Ver: http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1152&Itemid=2. Acesso em
19/04/2012.
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uma ameaa aos direitos indgenas e a criao do Conselho Nacional de Poltica Indigenista
(CNPI).
Uma conquista muito importante desse acampamento foi a criao da APIB que veio
fortalecer a unio dos povos indgenas e a articulao entre as diferentes regies e
organizaes indgenas do pas. Desde ento, a APIB, juntamente com o Frum de Defesa dos
Direitos Indgenas (FDDI), tornou-se a principal organizadora dos acampamentos posteriores.
Atualmente, em sua oitava edio, o discurso do ATL 2011 traz marcas especficas de seu
tempo no que concerne aos adventos da globalizao, do sistema capitalista e da devastao
ambiental sobre suas terras. Por outro lado, tambm recorre aos seus valores culturais ao
conceber a Terra como Me, lugar de abrigo, proteo.
3. O (per)curso do processo identitrio: (des)estabilizando (dis)cursos e fronteiras
Analisamos aqui como so construdas as representaes sociais de excluso que
constituem o documento oficial sobre o indgena, a partir da perspectiva discursiva e do
processo de referenciao lingustica (PCHEUX, 2002). Interessa-nos rastrear as formaes
discursivas, os interdiscursos e os efeitos de sentido possveis que perpassam o discurso do
ATL. Na problematizao do discurso do ATL possvel verificar uma lacuna existente entre
os direitos assegurados na Constituio e sua real efetivao. Vem tona a condio do
indgena como excludo, marginalizado j que, como afirma Arajo (2006, p. 76) na prtica,
os ndios ainda esto distantes at mesmo do gozo pleno dos direitos a eles j garantidos, o
que acaba gerando inmeros conflitos sociais. Trazemos para este artigo, apenas um recorte,
excerto que denominamos R 4, por questes metodolgicas de pesquisa e ordem de
aparecimento, a saber:
R4- Considerando o atual quadro de violao dos nossos direitos que se agrava
dia a dia sob o olhar omisso e a conivncia do Estado brasileiro, viemos de
pblico manifestar a nossa indignao e repdio pela morosidade e descaso com
que esto sendo tratadas as polticas pblicas que tratam dos nossos interesses e
aspiraes. Reiteramos a nossa vontade de continuar unidos na diversidade e de
lutar acima das nossas diferenas pela garantia dos nossos direitos assegurados
pela Constituio Federal de 1988 e leis internacionais de proteo e promoo
dos direitos indgenas como a Conveno 169 da Organizao Internacional do
Trabalho (OIT) e a Declarao das Naes Unidas sobre os direitos dos Povos
Indgenas.
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Ao apropriar-se do discurso jurdico, o enunciador (res)significa o discurso do outro
no interior de seu prprio discurso com o objetivo de estabelecer um lugar de autoridade para
dialogar com o poder dominante, j que o discurso jurdico fala por si s, reconhecido no
meio social. Assim, enunciar a partir dos direitos garantidos na Constituio uma estratgia
discursiva que coloca o ATL em condies de exigir, de se defender e de se manifestar em
prol de seus direitos. Por outro lado, denunciar a violao implica mobilizar outros sentidos
fora da legalidade social cujos efeitos trazem o transgredir, violar algo j estabelecido como
norma. Enunciar contra uma esfera de poder, contestar a esfera jurdica em sua prpria ordem,
inscreve o enunciador em uma posio conflituosa do no controle de si ao trazer em sua voz
a voz do outro que o constitui (CORACINI, 2011).
Por meio do discurso do ATL, o enunciador deixa emergir em seu dizer a
exterioridade que o constitui e que remete a fragmentos discursivos que falam antes, em outro
lugar, em contextos histricos anteriores e que perpassam seu dizer por meio da formao
discursiva da legislao: Direitos; polticas pblicas; Constituio Federal de 1988;
leis internacionais de proteo e promoo dos direitos indgenas; Conveno 169 da
OIT; e Declarao das Naes Unidas sobre os direitos dos Povos Indgenas. No entanto,
isso ocorre sob novas configuraes, uma vez que, se por um lado a lei institui o indgena
como cidado de direito por meio de variados atos constitucionais, tambm na prpria lei
que se exerce o lugar da separao, da excluso, j que marca uma distncia considervel
entre teoria e prtica (ORLANDI, 2009).
O real manifestado por meio da materialidade lingustica, as condies scio-
histricas em que o discurso produzido determinam a razo para aquilo que o sujeito diz,
estabelecendo uma fronteira entre si e o outro (GUERRA, 2010). No discurso do ATL, temos
a representao do sujeito indgena enquanto marginalizado, inserido num contexto scio-
histrico de violao de seus direitos que emana efeitos de sentidos de terem seus direitos
desrespeitados, violentados constantemente pelo Estado. Ao falar em nome do ATL, o
enunciador passa a ocupar diferentes posies e a assumir o papel de diferentes sujeitos
(FOUCAULT, 2008, p. 105). Ele fala em nome de toda a comunidade indgena: Situa-se,
assim, entre formaes discursivas contraditrias, as do ATL e as da legislao, ao utilizar-se
dos pronomes possessivos nossos direitos, nossa indignao, nossos interesses que, de
acordo com Fiorin (1996, p. 61), expressam uma relao de apropriao entre uma pessoa (o
possuidor) e uma coisa(o possudo). Revela-se por meio do discurso o espao conflituoso
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no qual o indgena est inserido: de um lado encontra-se a voz oficial (constituio federal
de 1988, leis internacionais de proteo e promoo dos direitos indgenas, Conveno
de 169 da OIT,declarao das Naes Unidas) e de outro, a voz do movimento indgena
(diversidade, povos indgenas). Revelam-se sentidos outros e outros que constituem a
identidade do sujeito a partir de momentos de identificao (CORACINI, 2003) que
incluem e excluem o sujeito, respectivamente. Nessa direo, observamos no discurso do
ATL uma ruptura significativa de sentidos que desloca a legitimidade da legislao em
decorrncia da no efetivao dos direitos indgenas, embora eles existam discursiva e
constitucionalmente.
Ao tomar para si o discurso da legislao, o enunciador assinala entre as suas palavras
a presena estrangeira de palavras marcadas como pertencendo a um outro discurso, um
discurso desenha nele mesmo o traado relacionado a uma 'interdiscursividade representada'
de uma fronteira interior/exterior (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 193). Delimitam-se, assim,
as fronteiras existentes entre si e o outro que coloca em lados opostos um e outro. Pelo jogo
imaginrio, o sujeito enuncia a partir da representao imaginria que tem do outro, da
legislao como um fator negativo por meio da qual se operam as aes de excluso do
indgena. Toma posio em referncia quilo que imagina ser a representao que o outro tem
dele. No que concerne Conveno 169 da OIT, Arajo (2006, p.60) destaca que vrios
pontos da conveno ainda no possuem respaldo no Estado, especialmente, no que diz
respeito a obrigao de o governo consultar os povos indgenas toda vez que sejam
examinadas medidas legislativas e administrativas suscetveis de afet-los diretamente,
sendo notrio o desrespeito para com as comunidades indgenas.
A legislao produz uma situao de conflito social entre as comunidades indgenas e
o Estado j que a interdiscursividade presente no discurso do ATL revela as contradies
existentes entre o que est estabelecido na lei e o que de fato ocorre na prtica, no meio social.
Em posio de defesa viemos de pblico manifestar nossa indignao o enunciador do
discurso do ATL revela o descaso com que seus direitos so tratados pelo Estado que o coloca
margem dos valores simblicos da sociedade hegemnica. A excluso se d a partir dos
valores e experincias do outro ao se estabelecer fronteiras entre um e outro; a separao se d
na prpria constituio, uma vez que o sujeito se constitui por meio de uma identidade de
resistncia e precisa lutar para garantir os direitos assegurados na legislao. Traz, por meio
da memria discursiva e dos interdiscursos, a representao do direito como fator causal da
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excluso, a ausncia de cidadania. H um deslocamento significativo no prprio sentido da
lei j que no discurso do ATL a lei est perdendo seu estatuto de legalidade e passa a assumir
um sentido negativo que inverte as relaes de poder entre ATL e Estado. Ainda pela
materialidade lingustica do enunciado denunciamos a articulao existente entre o
judicirio, rgos de segurana e interesses privados, fazendeiros, sobretudo, para
criminalizar lderes indgenas depreendemos, por meio do verbo "denunciamos, efeitos de
sentido de acusar, revelar, delatar (FERREIRA, 2010, p. 226) a relao existente entre
instncias de poder que deveriam proteger os direitos assegurados na Constituio.
Ao se situar em um contexto de cobrana, de denncia contra o Estado, o enunciador
do ATL filia-se a redes de memria que remetem s inmeras tentativas das comunidades
indgenas de dialogar com o Estado. Traz em um contexto imediato as circunstncias
primeiras em que o discurso do ATL 2011 foi produzido em meio tentativa das lideranas
indgenas de serem recebidas pela presidenta Dilma Rousseff para tratar de questes que
afetam diretamente as comunidades indgenas, dentre elas, a demarcao de terras indgenas e
a criminalizao de lideranas indgenas. Em sua VIII edio, o ATL abordou temas variados
como o direito terra, consentimento e grandes empreendimentos em terras indgenas,
aprovao do novo estatuto do ndio, entre outros. Em um contexto amplo situamos o discurso
do ATL em condies scio histricas determinadas que se filiam a redes de memria
cristalizadas no meio social que concebem o indgena como aquele que ocupa o lugar do
colonizado, do submisso ao sistema dominante, aquele que incomoda e perturba a ordem
social. Inicialmente, com a chegada dos portugueses, o indgena era considerado como aquele
que apresentava deficincias que precisavam ser corrigidas, pois confrontavam as complexas
lgicas da cultura ocidental: europeia, branca, crist, individualista.
Essa tenso entre os indgenas e o poder dominante vem marcando historicamente a
relao entre essas duas instncias desde o perodo colonial por meio de polticas que vo
desde a assimilao, integrao e tutela para a instituio do indgena como cidado de
direito. Embora, sempre houvesse uma resistncia por parte do indgena aos jogos de poder
advindos da sociedade hegemnica, foi precisamente a partir da dcada de setenta que houve
uma virada significativa na questo indgena e um novo discurso passou a circular em torno
da cultura e do territrio. Novos aparatos de poder passam a discutir a questo indgena no
contexto nacional, especialmente, a Igreja Catlica e o CIMI que buscavam a aprovao do
EI, bem como tambm as Assembleias Indgenas e as organizaes nogovernamentais
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(ONGs) passam a fazer parte dessa luta. A organizao poltica das comunidades indgenas e
a intensa atuao de entidades civis de apoio causa indgena, bem como entidades
constitudas pelos prprios ndios culminaram na Constituio Federal de 1988 por meio da
qual os direitos indgenas passam a ser reconhecidos, considerando a diversidade de povos e a
especificidade cultural dos ndios.
Emergem nesse contexto as condies de produo do discurso do ATL que reitera
nossa concepo de discurso enquanto estrutura e acontecimento, respectivamente, inscrito na
lngua e na histria e filiado a redes de memria (ORLANDI, 2009; PCHEUX, 2002). O
enunciador do ATL deixa emergir a referncia s dcadas em que se esperou uma atitude
consistente por parte do governo em meio ao descaso com que so tratadas as questes que
envolvem as comunidades indgenas e os constantes protestos em frente ao Palcio do
Planalto, na tentativa de serem recebidos por um representante do Estado.
possvel apreender as prprias condies de emergncia que deram origem ao ATL
e que trazem tona os inmeros conflitos entre essas duas instncias ATL e Estado.
Conflitos esses que ficam mais latente a partir do ano 2000, quando o ento presidente
Fernando Henrique Cardoso, em plena comemorao oficial dos quinhentos anos do
descobrimento do Brasil, desconsiderou os novos rumos da Constituio Federal que
reconhece a pluralidade de povos existentes no Brasil em detrimento de uma identidade
nacional. Comeam a se delinear os primeiros contornos de uma manifestao que, no ano de
2004, pela falta de apoio do ento presidente Luiz Incio Lula da Silva ao rgo da FUNAI,
culminou no I ATL. Como todo movimento, o mesmo apresenta, em sua essncia, conforme
Castells (2001, p. 95) germes de resistncia social.
4. Palavras finais
Espaos, territrios e lugares, cada um a seu modo
demandam apropriaes do outro, produzem
subjetivaes, metaforizam seus prprios sentidos,
propem discursos sem parar. (NOLASCO, 2010,
p. 124).
Pensar a constituio identitria do sujeito indgena a partir das representaes de
excluso levou-nos a considerar os inmeros conflitos sociais que envolvem a causa indgena,
especialmente aqueles relacionados questo territorial. Ao analisar o discurso do movimento
indgena ATL foi possvel observar como o discurso e as relaes de poder esto diretamente
relacionadas, no se encontrando na exterioridade do discurso, mas apresentando-se como
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uma relao de foras entre o Estado e o ATL. Devidamente legitimado, o enunciador
investido de um determinado poder. Trata-se do poder de falar, de tomar a palavra em nome
de toda uma coletividade (populao indgena), utilizando-se do discurso para representar o
mundo indgena com todas as suas peculiaridades, conflitos e crenas. Torna-se a situao de
enunciao inseparvel das condies de produo que culminaram em seu acontecimento.
Constatamos pela anlise que h, por meio do movimento indgena, uma resistncia coletiva
contra o Estado. O movimento adquire fora na medida em que apresenta os povos indgenas,
estrategicamente, por uma unicidade de posicionamento, como um todo homogneo em
defesa dos direitos indgenas. A luta pela terra e pelos direitos garantidos na Constituio
alcana outros sentidos. Desloca o imaginrio construdo socialmente sobre o indgena como
brbaro, violento e situa sua luta no campo poltico. O ATL se apresenta como germes de
resistncia social ao se posicionar contra o Estado, contra os adventos da globalizao e
propor sentidos de denncia pela violao de seus direitos.
No papel de liderana poltica, o enunciador traz em seu dizer as vozes das diferentes
instncias que compem o movimento indgena, especialmente: o CIMI; a APIB; a OIT, com
a Conveno 69; e os Direitos Humanos que funcionam como pontos de ancoragem das
comunidades indgenas, a partir do fortalecimento da luta pelos direitos indgenas. Inserido
em um contexto scio-histrico de estigmatizao social e desrespeito aos direitos indgenas,
o discurso do ATL se caracteriza pela alteridade, o outro que o constitui e que configura a
heterogeneidade constitutiva do discurso, a no-coincidncia do discurso consigo mesmo.
Ao trazer em meio ao seu discurso dizeres do branco, o enunciador se coloca em posio de
igualdade com o Estado, passando a (res)significar discursos outros dentro do prprio
discurso indgena. Tal estratgia discursiva o coloca em condies de dialogar com o Estado,
como seu adversrio, seu opositor.
Considerando o espao mvel e instvel das formaes discursivas, constatamos por
meio das anlises que o discurso do ATL perpassado por formaes discursivas
heterogneas e, muitas vezes, contraditrias (ambiental, econmica, capitalista, sociolgica,
poltica, blica). Essas formaes marcaram o lugar conflituoso e tenso a partir do qual o
sujeito enuncia por meio de discursividades que negam os direitos indgenas em relao
terra. Representam os indgenas como marginalizados, excludos do meio social e, sobretudo,
remetem luta histrica dos povos indgenas em defesa da terra e as vrias tentativas de
dilogo com o poder estatal.
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Ligados s formaes discursivas os interdiscursos da lei, da guerra, do Estado e
da ecologia, o discurso do movimento coloca-se em relao direta com a exterioridade, com a
memria discursiva e com as condies em que esse discurso produzido. Esse discurso se d
como acontecimento. O processo analtico aponta para os inmeros conflitos que vm desde a
colonizao com as revoltas, massacres de milhes de indgenas, explorao da mo de obra
indgena e que, nos dias atuais, (re)configuram-se em forma de assassinatos de lideranas
indgenas, confrontos com fazendeiros, ameaas de pistoleiros e desrespeito aos direitos
indgenas. O Estado permanece no imaginrio do enunciador do ATL como agente de
dominao, descompromissado, desleal e conivente com os empreendimentos que causam
prejuzos s comunidades indgenas. Trata-se de um Estado que busca normalizar uma
identidade hegemnica desconsiderando todas as outras, ou seja, todos os povos que
compem o Brasil.
Na luta por reconhecimento social, em defesa de seus direitos e de seu prprio espao,
as comunidades indgenas veem no ATL uma das alternativas de autodefesa e de resistncia
contra o poder dominante. O discurso do ATL tomado, portanto, como um dispositivo de
poder, estratgia de luta e de sobrevivncia das comunidades indgenas no meio social, j que
por meio do discurso que o sujeito encontra brechas, falhas que lhe permitem marcar sua
identidade como coletividade em oposio ao outro, o Estado. Constatamos pela anlise que o
enunciador deixa perpassarem seu dizer diferentes representaes sobre o Estado: concebe-o
como o indesejado, agente de dominao sobre os grupos minoritrios, descompromissado
com os interesses das comunidades indgenas.
Diante do exposto, verificamos que o discurso do ATL sobre a terra traz marcas de
excluso social do indgena no que tange ao desejo de fazer-se ouvir pelo poder estatal, bem
como no que se refere aos inmeros empreendimentos do PAC em terras indgenas. Pelo jogo
imaginrio, temos no discurso do ATL a representao do Estado como invasor, indesejado,
perturbador, descomprometido com a causa. No se trata apenas de se posicionar de forma
contrria ao Estado, mas de uma negociao constante entre um e outro: uma guerra de
posies. Nesse embate de fronteiras entre o ATL e Estado, a terra concebida como um
lugar de confronto, de demarcao de fronteiras entre o Estado e o ATL como podemos
verificar por meio de um jogo de oposies ndio/Estado; terra/latifndio; propriedade
coletiva/propriedade privada; destruio da natureza/convvio harmonioso com a natureza. A
luta pela terra remete a fatos similares que ocorreram no decorrer da histria entre os grupos
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tnicos e o poder dominante, contudo, adquire novas configuraes na atualidade, ao situar-se
em uma dimenso poltica. Por outro lado, ao se posicionar como o outro do poder, o ATL
oferece resistncia na forma de reivindicao, denncia, apelo ao Estado para que seus
direitos sejam observados.
O paradoxo que aqui se apresenta, entretanto, que se de um lado, possvel constatar
que a voz do movimento ATL que d legitimidade para que o enunciador fale como tal; de
outro, tambm possvel observar a voz do indgena presente no discurso do ATL, ao
oferecer resistncia ao Estado sob a forma de uma contestao cultural, de uma mudana na
base de conhecimentos, de modo a ultrapassar os limites da tradio e inserir-se em discursos
como da Constituio Federal, do CIMI, do movimento ambientalista e engajar-se em uma
guerra de posies entre ATL e Estado. Cabe-nos esclarecer, portanto, a confirmao de nossa
hiptese de pesquisa de que a voz do indgena perpassa o discurso do ATL. A questo se
torna complexa quando constatamos uma reescrita descentrada, diasprica das narrativas
originrias no que concerne ao indgena, j que este no mais o indgena submisso ao poder
dominante, mas que se organiza politicamente e estabelece novas estratgias de luta, de
identificao em defesa de seus direitos.
Emergem, nesse contexto, identidades que se opem e que remetem identidade
legitimadora do Estado, do jurdico como regularizador/normatizador da vida social com o
poder de estabelecer as bases que iro regular o padro de vida da dita normalidade; e, de
outro, uma identidade de resistncia caracterizada por posies desvalorizadas, estigmatizadas
pelo poder dominante. Enfim, apresentam-se aqui, complexas e mltiplas relaes de poder
entre as instncias envolvidas e que marcam o lugar de conflito em que se movimentam o
Estado e o ATL a partir de interesses opostos. Vozes discordantes e concordantes perpassam
esse discurso, a partir de momentos de identificao que incluem e excluem o sujeito em
pauta, num movimento identitrio paradoxal e multifacetado.
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Artigo recebido em: 03.05.2014
Artigo aprovado em: 10.07.2014