22
Entre o discurso do “Acampamento Terra Livre” e a (ex)(in)clusão social, o (per)curso identitário dos povos indígenas Between the Acampamento Terra Livre discourse and the social (ex) (in)clusion, the identity path of the indigenous people Vania Maria Lescano Guerra * Maria Francisca Valiente ** RESUMO: O objetivo deste artigo é problematizar o processo de constituição identitária dos indígenas a partir do discurso do "Documento Final do Acampamento Terra Livre 2011 - pelo direito à vida e à mãe Terra". Para tanto, analisamos como são construídas as representações sociais de exclusão que constituem o discurso do documento oficial sobre os indígenas, a partir da perspectiva discursiva e do processo de referenciação linguística, com base na interpretação de regularidades enunciativas que nos possibilitem rastrear, pela materialidade linguística, os efeitos de sentido possíveis, as formações discursivas e os interdiscursos que perpassam o discurso do movimento indígena "Acampamento Terra Livre" (ATL). A fundamentação teórica transdisciplinar proposta neste trabalho, pela articulação entre a Análise do Discurso (PÊCHEUX, 2002; CORACINI, 2011; AUTHIER-REVUZ; 1998, ORLANDI, 2099) e a perspectiva ancorada no método arqueogenealógico (FOUCAULT, 2007), é imprescindível para que possamos problematizar as relações entre a linguagem, o sujeito e as relações de poder em um contexto mais amplo, na medida em que a interpretação se dá na tensão entre estrutura e acontecimento. Vozes discordantes e concordantes perpassam esse discurso, a partir de momentos de identificação que incluem e excluem o sujeito em pauta, num ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the process of the indigenous identity construction from the discourse of the Acampamento Terra Livre 2011 final document - the right to life and the Mother Earth. To do so, we analyzed how social representations of exclusion are constructed which constitute the discourse of the official document on indigenous, from the discursive and the linguistic referencing process perspectives, based on the interpretation of enunciative regularities that allow us to track, through the linguistic materiality, the effects of possible sense, the discursive formations and the interdiscourse which pervade the discourse of the indigenous movement Acampamento Terra Livre (ATL). The transdisciplinary theoretical framework proposed in this paper, articulating the Discourse Analysis (PÊCHEUX, 2002; CORACINI, 2011; AUTHIER-Revuz, 1998; Orlandi, 2009) and the perspective based on the archaeology method (Foucault, 2007), is essential to make possible to discuss the relationships between language, the subject and the power relations in a wider context, given that the interpretation is the tension between structure and happening. Discordant and concordant voices permeate that discourse, from moments of identification that include and exclude the subject at hand, in a paradoxical and multifaceted identity movement. * Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP de Araraquara (SP), com pós-doutorado pelo IEL/UNICAMP. Atua no Programa de Pós-graduação em Letras da UFMS. ** Formada em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/Unidade de Nova Andradina. Atua na área de pesquisa em Análide de Discurso de linha Francesa. Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Unidade de Três Lagoas.

26455-109154-1-PB

Embed Size (px)

DESCRIPTION

m

Citation preview

  • Entre o discurso do Acampamento Terra Livre e a (ex)(in)cluso social, o (per)curso identitrio dos povos indgenas

    Between the Acampamento Terra Livre discourse and the social (ex) (in)clusion, the

    identity path of the indigenous people

    Vania Maria Lescano Guerra*

    Maria Francisca Valiente**

    RESUMO: O objetivo deste artigo

    problematizar o processo de constituio

    identitria dos indgenas a partir do discurso

    do "Documento Final do Acampamento

    Terra Livre 2011 - pelo direito vida e me

    Terra". Para tanto, analisamos como so

    construdas as representaes sociais de

    excluso que constituem o discurso do

    documento oficial sobre os indgenas, a partir

    da perspectiva discursiva e do processo de

    referenciao lingustica, com base na

    interpretao de regularidades enunciativas

    que nos possibilitem rastrear, pela

    materialidade lingustica, os efeitos de

    sentido possveis, as formaes discursivas e

    os interdiscursos que perpassam o discurso

    do movimento indgena "Acampamento

    Terra Livre" (ATL). A fundamentao

    terica transdisciplinar proposta neste

    trabalho, pela articulao entre a Anlise do

    Discurso (PCHEUX, 2002; CORACINI,

    2011; AUTHIER-REVUZ; 1998,

    ORLANDI, 2099) e a perspectiva ancorada

    no mtodo arqueogenealgico (FOUCAULT,

    2007), imprescindvel para que possamos

    problematizar as relaes entre a linguagem,

    o sujeito e as relaes de poder em um

    contexto mais amplo, na medida em que a

    interpretao se d na tenso entre estrutura e

    acontecimento. Vozes discordantes e

    concordantes perpassam esse discurso, a

    partir de momentos de identificao que

    incluem e excluem o sujeito em pauta, num

    ABSTRACT: The purpose of this article is

    to discuss the process of the indigenous

    identity construction from the discourse of

    the Acampamento Terra Livre 2011 final

    document - the right to life and the Mother

    Earth. To do so, we analyzed how social

    representations of exclusion are constructed

    which constitute the discourse of the official

    document on indigenous, from the discursive

    and the linguistic referencing process

    perspectives, based on the interpretation of

    enunciative regularities that allow us to track,

    through the linguistic materiality, the effects

    of possible sense, the discursive formations

    and the interdiscourse which pervade the

    discourse of the indigenous movement

    Acampamento Terra Livre (ATL). The

    transdisciplinary theoretical framework

    proposed in this paper, articulating the

    Discourse Analysis (PCHEUX, 2002;

    CORACINI, 2011; AUTHIER-Revuz, 1998;

    Orlandi, 2009) and the perspective based on

    the archaeology method (Foucault, 2007), is

    essential to make possible to discuss the

    relationships between language, the subject

    and the power relations in a wider context,

    given that the interpretation is the tension

    between structure and happening. Discordant

    and concordant voices permeate that

    discourse, from moments of identification

    that include and exclude the subject at hand,

    in a paradoxical and multifaceted identity

    movement.

    * Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Doutora em Lingustica e Lngua

    Portuguesa pela UNESP de Araraquara (SP), com ps-doutorado pelo IEL/UNICAMP. Atua no Programa de

    Ps-graduao em Letras da UFMS. **

    Formada em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/Unidade de Nova Andradina. Atua na

    rea de pesquisa em Anlide de Discurso de linha Francesa. Mestre em Estudos Lingusticos pela Universidade

    Federal de Mato Grosso do Sul/ Unidade de Trs Lagoas.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 87

    movimento identitrio paradoxal e

    multifacetado.

    PALAVRAS-CHAVE: Terra. Indgenas.

    Excluso Cocial. Representaes.

    KEYWORDS: Earth. Indigenous people.

    Social exclusion. Representations.

    1. Consideraes introdutrias

    reconhecendo mais a vida em tudo aquilo que tenha

    histria e que no seja apenas teatro, que se faz justia a

    esse conceito de vida. Pois a partir da histria, no da

    natureza [...] que preciso finalmente circunscrever o

    domnio da vida. Assim nasce para o filsofo a tarefa

    (Aufgabe) de compreender toda a vida natural a partir dessa

    vida, de mais vasta extenso, que aquela da histria

    (DERRIDA, 2002, p. 32).

    O objetivo deste artigo problematizar o processo de constituio identitria dos

    indgenas a partir do discurso do "Documento Final do Acampamento Terra Livre 2011 - pelo

    direito vida e me Terra". Para tanto, analisamos como so construdas as representaes

    sociais de excluso que constituem o discurso do documento oficial sobre os indgenas, a

    partir da perspectiva discursiva e do processo de referenciao lingustica, com base na

    interpretao de regularidades enunciativas que nos possibilitem rastrear, pela materialidade

    lingustica, os efeitos de sentido possveis, as formaes discursivas e os interdiscursos que

    perpassam o discurso do movimento indgena "Acampamento Terra Livre" (ATL).

    A questo indgena no Brasil tem sido consideravelmente debatida no momento atual

    tanto no meio miditico como acadmico. Com a Constituio de 1988, o ndio passa a ter seu

    direito diferena cultural reconhecido com sua cultura, costumes, lnguas, crenas e

    tradies e, portanto, busca se inserir na sociedade por meio de polticas indigenistas que

    incluem aes no que se refere sade, educao, assistncia social e ao meio ambiente,

    assim como tambm o desenvolvimento da sociedade indgena e seu direito terra. Essas

    questes carregam uma historicidade que perpassa os tempos constituindo, por meio da

    memria discursiva, o imaginrio em relao a esse grupo marcado pelo preconceito e pela

    excluso social desde a poca da colonizao e que condiciona o momento atual. Tome-se

    como exemplo a tentativa das comunidades indgenas em estabelecer um dilogo com a

    sociedade nacional e o Estado, que uma questo histrica e vem ocorrendo desde a

    colonizao portuguesa em decorrncia da ocupao de suas terras.

    Contudo, a partir da dcada de 70, delineia-se um novo quadro no que diz respeito s

    questes indgenas no Brasil pela unio de diferentes povos que comeam a se organizar

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 88

    politicamente em defesa de seus direitos, sobretudo em relao terra. Essa unio pouco a

    pouco foi se consolidando por meio de Assembleias Indgenas e pelo apoio de algumas

    organizaes indigenistas como o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), o ATL e a

    Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (APIB) constituindo o Movimento Indgena do

    Brasil (MIB).

    Nesse contexto, o MIB foi-se estabilizando entre a represso e a resistncia, o que lhe

    permitiu obter certa visibilidade por parte do poder pblico, bem como o apoio de algumas

    instituies, ainda que sob a tica e a voz do Estado. Um marco decisivo no protagonismo

    indgena foi a Constituio de 1988, que instituiu o indgena como cidado de direito, dando a

    este o direito de conduzir sua prpria histria em defesa de seus direitos. Na

    contemporaneidade, com a criao do Movimento Indgena ATL, em 2004, a partir do

    domnio da memria, um novo campo enunciativo surgiu trazendo novas configuraes

    prtica discursiva indgena, tendo em vista que agora o ATL que se faz ouvir via discurso

    oficial.

    Em princpio, conjectura-se que as relaes de dependncia e submisso que oprimiam

    as comunidades indgenas no perodo do colonialismo foram reconfiguradas na perspectiva

    ps-colonial por discursos outros que desafiam o poder da sociedade hegemnica por meio de

    um contra posicionamento que refuta os pontos de vista e as crenas da cultura dominante,

    por isso, orgulhosamente desafiador (ANZALDU, 2005, p. 705). Isto pode ser observado

    se analisarmos os diferentes movimentos, entidades nogovernamentais e ONGs que se

    uniram causa indgena. Nessa perspectiva, a emergncia do movimento indgena pela

    articulao entre essas diferentes instncias em prol dos direitos e interesses dos indgenas se

    apresenta como uma forma de reao contra o Estado. Considera-se, o ATL como um

    movimento de resistncia, que toma posio, que se apropria do discurso e do direito de falar

    em oposio ao governo, constituindo-se pela linguagem por meio do trabalho simblico em

    que suas crenas, valores e seu mundo significam e so representados.

    Estudar as representaes sociais de excluso construdas via discurso oficial implica

    abordar a subjetividade do indgena por sua constituio filosfica e poltica, haja vista que se

    trata de observar como o ndio se representa, como representa o outro - o branco - alm de

    estabelecer uma relao tensa entre as representaes construdas sobre esses povos no

    decorrer da histria e suas prprias experincias de resistncia. Dos descobridores aos

    contemporneos, as comunidades indgenas foram sempre concebidas por uma tica social

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 89

    incapaz de acolher a diferena, a alteridade. Diferentes representaes sociais foram

    construdas sobre os ndios no decorrer dos tempos que ora os apresentava como brbaros,

    selvagens, primitivos, silvcolas, ora como inocentes ou bons selvagens ou at mesmo o

    anti-heri. Essa no aceitao dos europeus ao outro, ao diferente afetou diretamente as

    comunidades indgenas que tiveram que criar novos esquemas e novas estratgias de convvio

    com esses personagens. Estratgias essas que ainda continuam a ser utilizadas na atualidade,

    embora sob uma nova configurao medida que a luta pela terra se faz poltica.

    Outro ponto a ser desconstrudo em relao s comunidades indgenas refere-se

    concepo homognea, folclrica e genrica de ndio, uma vez que de acordo com o senso do

    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) de 20101 se trata de um total de 305

    etnias que somam 896,9 mil indgenas e 274 lnguas e dialetos sendo falados, dezenas de

    aldeias e diferentes territrios em todo o pas, o que mostra a grande diversidade desses povos

    conforme enfatiza Grupioni (1995, p.19) ao argumentar que os ndios no so apenas

    diversos entre ns, so tambm diversos entre si. Dada a natureza desse estudo, e

    considerando as particularidades do ATL como movimento de resistncia, formado por

    lideranas indgenas, representantes do CIMI, e entidades de apoio causa indgena, a

    abordagem ser feita considerando o movimento em si, uma vez que no possvel abordar

    todas as etnias e suas particularidades. Entretanto, no h dvida de que h diversidade de

    povos e de culturas. Ao lado dessas questes, ainda h a posio ambgua do Estado que

    oscila entre o protecionismo indgena, ao conceber os diferentes povos pela tica da

    homogeneizao em nome de uma identidade nacional, e uma posio de descaso e abandono

    com essas populaes colocando-as como empecilhos ao progresso.

    Considerando que as condies de emergncia do discurso do ATL no se deram

    aleatoriamente, mas so o reflexo de um jogo de foras na memria que permite ser repetido,

    sabido, esquecido, transformado (FOUCAULT, 2008, p. 28), que propomos algumas

    perguntas de pesquisa para melhor entender sua emergncia e dirigir nosso foco de anlise:

    Que condies materiais de existncia histrica propiciaram o surgimento desse discurso e

    no outro, enquanto acontecimento? Levando-se em considerao a irrupo deste, com quais

    discursos ele provoca rupturas e que configurao assume na atualidade? Que fatos histricos

    e sociais sua volta envolveram-se em sua irrupo? Em busca de respostas a tais

    1 Informao disponvel em: http://paulosuess.blogspot.com.br/2012/08/novos-resultados-do-censo-do-ibge.html.

    Acesso em: 03/11/2012 s 13h 38min.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 90

    questionamentos, trabalhamos com a hiptese de que no documento citado, elaborado em

    Braslia por mais de 700 lideranas indgenas, se faa ouvir, no discurso, a voz do indgena

    como resistncia, como sujeito de seu discurso que cobra, denuncia e reivindica seu lugar no

    espao social. Reivindicao essa que se ope ao discurso do Estado e ao discurso da Lei

    que, muitas vezes, optam pelo silenciamento quando se trata de questes envolvendo as

    sociedades indgenas.

    Aps fazer um estudo tanto em mbito global como local sobre as diferentes temticas

    que envolvem a questo indgena de modo geral, verificamos que ainda so raras as pesquisas

    que problematizam a questo indgena levando-se em considerao a unio desses povos, suas

    organizaes, lideranas, essa nova estratgia de luta dos povos indgenas que gira em torno

    do Movimento Indgena. Assim sendo, esta pesquisa justifica-se por problematizar a

    constituio da identidade indgena, no s a partir do olhar do outro, de uma etnia ou de uma

    lngua, mas por meio das mltiplas vozes que configuram a populao indgena em nvel

    nacional, uma vez que so as vozes de inmeros povos, lideranas indgenas e organizaes

    que ecoam no documento via discurso oficial e que constitui a prtica discursiva do sujeito

    indgena.

    Do ponto de vista metodolgico, Foucault acrescenta as reflexes sobre as relaes de

    poder/saber, sujeito e acontecimento discursivo exigindo que o analista do discurso o

    arqueogenealogista considere os discursos na sua irrupo e no seu acaso, despojando-os

    de toda e qualquer referncia a uma origem supostamente determinvel ou a qualquer sistema

    de causalidade entre as palavras e as coisas (NAVARRO, 2011, p. 138). Trata-se de abordar

    o enunciado por sua singularidade de acontecimento situado no campo de uma memria e

    que, portanto, mantm relaes entre si, com outros grupos de enunciados e com fatos de

    ordem cultural, social e histrica.

    Em um segundo momento, cabe ao analista selecionar dentro de um arquivo

    determinadas sries enunciativas buscando estabelecer as relaes que tais enunciaes

    mantm entre si e, posteriormente, proceder ao recorte dessas sries enunciativas na tentativa

    de averiguar os modos como essas discursividades produzem sentidos sobre um determinado

    acontecimento discursivo. Como a questo fundamental para Foucault encontra-se justamente

    em avaliar como determinados objetos de saber so construdos em uma determinada poca,

    quais as formaes discursivas que do legitimidade a este objeto, consideramos o conceito de

    formao discursiva como a noo norteadora dessa pesquisa tendo em vista que o objeto

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 91

    surge quando condies discursivas e no discursivas o produzem (ARAUJO, 2011, p.97).

    Por meio do mtodo arqueogenealgico elaborado por Foucault, compreendemos que a

    anlise das formaes discursivas implica considerar como um determinado objeto de saber

    irrompe enquanto acontecimento, quais as transformaes que esse objeto sofre no decorrer

    da histria em uma relao estreita com complexas relaes de poder.

    Ao utilizar-se do termo dispositivo, Foucault aborda as relaes de poder/saber por

    meio de um conjunto que articula o discursivo, o contexto scio-histrico, instituies, o dito

    e no dito que influencia na subjetividade do sujeito e deixa emergir por meio da linguagem

    os traos de identificao que permitem compreender a constituio identitria do sujeito que

    , assim como o discurso, sempre hbrida, heterognea e mvel. De acordo com o autor,

    algumas precaues metodolgicas se fazem pertinentes na anlise das relaes de poder e

    devem ser orientadas para o campo da dominao (e no da soberania), para o mbito dos

    operadores materiais, para o mbito das formas de sujeio, para o mbito das conexes e

    utilizaes dos sistemas locais dessa sujeio e para o mbito, enfim, dos dispositivos de

    saber (FOUCAULT, 2005, p. 40). Desse modo, a genealogia, de acordo com o historiador,

    seria uma iniciativa que visa dessujeitar os saberes institudos historicamente contra a coero

    de um discurso nico e objetivo, tornando-os capazes de oposio e de luta.

    Para Foucault (2008), as regras que definem uma formao discursiva apresentam-se,

    pois, por meio de um sistema de relaes entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e

    estratgias de modo que tais elementos tendem a permitir a passagem da disperso para a

    regularidade entre os enunciados. Uma anlise que leva em considerao os postulados do

    historiador no que concerne noo de formao discursiva. Ela deve empreender a rdua

    tarefa de diagnosticar as relaes existentes entre o poder e o saber, dando nfase

    principalmente aos diferentes modos de subjetivao do ser humano por meio do discurso.

    Nesse sentido, o corpus aqui analisado se constitui de um documento oficial denominado

    Documento Final do Acampamento Terra Livre: pelo direito vida e me terra, retirado do

    site do CIMI que foi elaborado aps inmeros debates entre lideranas indgenas na

    Explanada dos Ministrios, em Braslia (DF), entre os dias 02 e 05 de maio de 2011, em que

    representantes indgenas por meio do ATL se colocam em oposio ao governo2.

    2 Este texto se insere na pesquisa financiada pelo CNPq, O processo identitrio do indgena de Mato Grosso do

    Sul: anlise documental e miditica da luta pela terra (Processo 471597/2012-4), sob a coordenao de Vania Maria Lescano Guerra.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 92

    O site do CIMI foi escolhido por sua natureza simblica e significativa, j que essa

    instituio representa o marco inicial de unio entre as diversas instncias, organizaes,

    entidades, lideranas tradicionais e representantes indgenas do pas que culminou na

    concretizao do MIB, dentre eles, o ATL. Como espao divulgador do documento, o site

    tomado como um suporte material que, sob uma ideologia, uma conjuntura dada, apresenta as

    circunstncias em que o documento foi elaborado, as formas de adaptao desse gnero

    discursivo relativamente mais complexo e as condies de produo na qual ele est inserido,

    uma vez que os gneros so instituies de falas scio-historicamente definidas, sua

    instabilidade grande, e eles no se deixam apreender em taxionomias compactas

    (MAINGUENEAU, 2006, p.112). Dentre as temticas expostas no documento, destacam-se:

    a) Terra: demarcao e desintruso; b) empreendimentos que impactam terras indgenas; c)

    criminalizao de lideranas indgenas; d) reestruturao da Fundao Nacional do ndio

    (FUNAI); e) Legislao Indigenista; f) sade indgena; g) educao indgena; h) Cdigo

    Florestal; e i) reforma poltica. Considerando a abrangncia de temas e suas especificidades,

    efetuamos alguns recortes no discurso do documento ATL, dentro de um campo maior que

    constitui o corpus deste trabalho. Tais recortes foram realizados com base nas regularidades

    de discursos, nas especificidades de sentidos e temas considerando os temas inicialmente

    propostos de excluso.

    A fundamentao terica transdisciplinar proposta neste trabalho3, pela articulao

    entre a Anlise do Discurso (PCHEUX, 2002; CORACINI, 2011; AUTHIER-REVUZ;

    1998, ORLANDI, 2009, entre outros) e a perspectiva ancorada no mtodo foucaultiano

    arqueogenealgico (FOUCAULT, 2007), imprescindvel para que possamos problematizar

    as relaes entre a linguagem, o sujeito e as relaes de poder em um contexto mais amplo, na

    medida em que a interpretao se d na tenso entre estrutura e acontecimento. nessa regio

    de tenso que os sentidos se formam, se (res)significam. Portanto, a anlise do campo

    discursivo busca compreender o enunciado em sua singularidade de acontecimento

    (FOUCAULT, 2008, p. 31,), procurando elucidar as condies de sua emergncia e

    estabelecendo relaes com outros discursos. Para o autor, um enunciado sempre

    acontecimento, uma vez que abre espao para sua inscrio na memria, j que suscetvel de

    3 Parte integrante da dissertao defendida no Programa de Mestrado em Letras, da Universidade Federal de

    Mato Grosso do Sul, Discurso, Terra, Cidadania: aspectos da identidade indgena, com o apoio da CAPES (ver VALIENTE, 2013).

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 93

    repetio, transformao e reativao, sobretudo porque est ligado ao interdiscurso, ou seja,

    a outros enunciados que vieram antes e depois dele ou, no dizer de Orlandi (2009, p. 30):

    aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.

    2. Contextualizando a pesquisa: acontecimento e estrutura

    Problematizar o discurso implica considerar, entre outras coisas, os sujeitos e a

    situao em que esse discurso foi produzido, ou seja, as condies de produo (ORLANDI,

    2009) que serviram de base para os processos discursivos e que remetem exterioridade,

    histria e ao social. Trazer as condies de produo no tarefa fcil, uma vez que na

    articulao entre a lngua, o contexto scio-histrico e a memria discursiva que o discurso

    adquire sentido. Orlandi (2009, p. 40) enfatiza que as condies de produo implicam o que

    material (a lngua sujeita a equvoco e a historicidade), o que institucional (a formao

    social, em sua ordem) e o mecanismo imaginrio.

    pelo jogo imaginrio (ORLANDI, 2009) que os sujeitos produzem uma determinada

    imagem de si, do outro e do referente, mecanismo que pode se tornar ainda mais complexo

    quando o sujeito inverter esse jogo para a imagem que ele considera que o interlocutor tem

    dele, a que ele cogita que o interlocutor tem do referente e assim por diante. Tais

    consideraes so pertinentes, na medida em que tudo isso contribui significativamente para a

    constituio das condies de produo de um discurso, em especial o discurso do ATL. As

    condies de produo que envolve o documento do ATL mostram que a luta pela terra se

    tornou uma questo poltica - porque carrega consigo a questo de como nos representamos e

    como representamos os outros; traz a tenso e o confronto entre os saberes historicamente

    constitudos sobre esses povos e as narrativas de si (AUTOR, 2010). Saberes esses registrados

    em cartas, documentos e em polticas indigenistas institudas pelo Estado desde os tempos

    coloniais e que marcam as relaes tensas e conflituosas entre indgenas, Estado e a sociedade

    acional. Dessa maneira, ao inscrever-se na histria por meio do discurso, o sujeito significa

    seu dizer a partir de condies especficas, determinadas de um lado, pela lngua e, de outro,

    pelo mundo, pela sua experincia, por fatos que reclamam sentidos, e tambm por sua

    memria discursiva (ORLANDI, 2009, p. 53) em que o discurso se faz estrutura e

    acontecimento, na medida em que traz em sua constituio um contexto mais amplo em que o

    social, o histrico e o ideolgico se imbricam.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 94

    Logo, o imaginrio social construdo sobre os indgenas no decorrer dos tempos est

    relacionado maneira como se estabeleceram as relaes sociais historicamente, assim como

    as formas pelas quais as relaes sociais se investiram de relaes de poder. Ao abordar as

    condies de produo do ATL, convm destacar a historicidade que constitui o movimento e

    que, juntamente com a memria e com a formao discursiva do movimento, constitui novos

    sentidos prtica discursiva indgena, sobretudo, a partir da concretizao do MIB, que

    culminou em uma das maiores mobilizaes indgenas ocorridas no Brasil em nvel nacional-

    o ATL- como resultado da situao de conflito entre o Estado e as comunidades indgenas.

    Neste sentido, que destacamos a dcada de 2000 como um marco decisivo do MIB, ao expor

    o desafio enfrentado pelas populaes indgenas, na tentativa de estabelecer um dilogo com

    o Estado, desafio este mostrado, sobretudo, na comemorao dos 500 anos de descobrimento

    do Brasil e que revelou, segundo Baniwa (2006, p. 80): as dificuldades dos povos indgenas

    de lidarem com a complexa lgica burocrtica da Administrao Pblica e da (ir)

    racionalidade poltica e ideolgica do Estado, que no consegue tratar os povos indgenas

    como portadores de culturas particulares.

    Paralelamente comemorao oficial do descobrimento do Brasil, preparada para

    acontecer em Porto Seguro com a presena dos presidentes Fernando Henrique Cardoso

    (Brasil) e Jorge Sampaio (Portugal), aconteceu tambm uma manifestao dos povos

    indgenas na cidade de Coroa Vermelha, no Estado da Bahia, na "I Conferncia dos Povos e

    Organizaes Indgenas do Brasil" em que diversos povos se organizaram em uma passeata

    cujo lema era O Brasil que a gente quer so Outros 5004". Vieram povos de todos os

    estados do pas configurando este como um dos momentos mais importantes para o MIB, uma

    vez que reforou o protagonismo indgena na luta por seus direitos. Esta uma das primeiras

    mobilizaes em nvel nacional dos povos indgenas.

    A principal meta dessa passeata era chegar a Porto Seguro e protestar contra o

    Presidente da Repblica que teve como meta enaltecer a identidade nacional em pleno sculo

    XXI, desconsiderando os novos rumos da Constituio Federal em que se reconhece a

    pluralidade de povos existentes em todo Brasil (PACHECO, 2005). Em virtude do descaso do

    governo de Fernando Henrique Cardoso com as questes indgenas, foi apresentado na

    Conferncia um documento com uma srie de reivindicaes direcionadas ao governo federal.

    4 Ver http://www.pineb.ffch.ufba.br/downloads/1242404195Documento%20Final_Outros%20500.pdf. Acesso

    em 10/05/2012 s 10h 32min.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 95

    Datado do dia 21 de abril de 2000, o documento exigia a revogao do Decreto n 1.775, de

    1996, que dispe sobre a demarcao de terras indgenas e a aprovao do Projeto de Lei

    2.057, de 19915, que trata do Estatuto das Sociedades Indgenas. O movimento foi contido

    pela tropa de choque da Polcia Militar6. Por outro lado, em comemorao aos 500 anos do

    Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso, acompanhado do presidente de Portugal -

    Jorge Sampaio - e de um grupo de 200 convidados especiais, plantava uma muda de pau-

    brasil, segundo Pacheco (2005). Esse contexto marca os primeiros contornos do ATL que

    veio a se firmar em 2004 como uma forma de reao dos indgenas ao poder dominante.

    Memrias de um passado so recuperadas aqui sob a configurao de uma excluso, uma

    apartao social entre a sociedade e as comunidades indgenas. Trata-se de um confronto

    poltico que traz em sua temporalidade elementos contraditrios e antagnicos (ndio/branco;

    sociedade minoria) no como um jogo meramente oposto, mas que pressupe um jogo de

    foras sob o choque do acontecimento e abre espao para novas estratgias de subjetivao.

    O embate cultural entre ATL e Estado tende a gerar formas de identidades especficas

    legitimadora e de resistncia -, j que implica sempre em outros sistemas simblicos e,

    portanto, tal processo permanece na sua incompletude. No caso das comunidades indgenas, a

    reencenao do passado, de suas tradies, de sua cultura (especialmente no que concerne

    me terra), de seus valores simblicos traz em seu bojo outras temporalidades culturais que se

    apresentam na forma de conflitos sociais, excluso, segregao. Opor-se simbolizao

    preparada pelo Estado em comemorao aos 500 anos do Brasil, mostra um rompimento com

    a concepo homognea da comunidade imaginada da Nao, uma reao ao outro.

    Pacheco (2005) afirma que os povos, organizaes e entidades indgenas reavivaram o

    Movimento Indgena ao apoiar o candidato Lus Incio Lula da Silva visto como a melhor

    opo para mudanas na poltica indigenista do pas. A Secretaria Nacional de Movimentos

    Populares do Partido dos Trabalhadores (PT) organizou um comit de campanha constitudo

    por lideranas indgenas que estavam vinculados a vrias instituies como o CIMI e a

    FUNAI. Com a chegada de Lula ao poder, o comit indgena se manteve com o objetivo de

    contribuir no processo de transio do governo conseguindo, assim, alcanar algumas

    conquistas, dentre elas, a criao de uma nova equipe para dirigir a FUNAI. Contudo, nessa

    nova gesto da FUNAI, no houve nenhum apoio efetivo do governo para com o rgo. Em

    5 Projeto de Lei que se encontra em tramitao no Congresso Nacional.

    6 Ver: http://www.proyanomami.org.br/frame1/conferencia.htm. Acesso em 10/05/2012.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 96

    decorrncia disso, os grandes empresrios, juntamente com senadores e deputados comearam

    uma campanha de desestabilizao dessa gesto, o que culminou, segundo Pacheco (2005, p.

    8), na exonerao do presidente da FUNAI - Eduardo Almeida e sua equipe. Descontentes

    com a poltica indigenista instaurada no pas pelo governo, os indgenas organizaram, em

    2003, em Manaus, o primeiro Frum Permanente, lanando uma campanha nacional e

    internacional em defesa dos direitos dos povos indgenas cujo lema era Terra, Justia e

    Autonomia. Foram trs dias de intensa discusso, apresentao de propostas e

    reivindicaes. Em protesto poltica indigenista7 do presidente Lula, os indgenas

    queimaram o documento apresentado pelo candidato na poca da campanha eleitoral o qual

    afirmava o compromisso com os povos indgenas.

    O governo ento decidiu criar uma Mesa de Dilogo com os povos indgenas que

    funcionava por meio da Secretaria Geral da Presidncia e reunia lideranas indgenas ligadas

    s organizaes, bem como lideranas tradicionais. Entretanto, esta ao tambm fracassou e,

    mesmo assim, o movimento indgena continuou a se articular abrindo um espao propcio

    para a criao do ATL. No dia 15 de abril de 2004, levantou-se em meio ao gramado da

    Esplanada dos Ministrios, em Braslia o primeiro ATL. Esta ao tinha por objetivo cobrar a

    imediata homologao da terra indgena "Raposa do Sol" em Roraima8, bem como evitar

    retrocessos na Constituio Federal.

    O I ATL realizou-se entre os dias 15 e 19 de abril de 2004 e apresentou-se como a

    mais importante mobilizao indgena ocorrida em contexto nacional passando a se repetir

    nos anos subsequentes. Hoje se encontra em sua VIII edio. E para melhor entendermos

    como o ATL se tornou uma das maiores mobilizaes indgenas do pas, convm apontar as

    condies de emergncia das sete edies que sucederam ao primeiro ATL criado em 2004.

    No ano de 2005, aconteceu a II9 Edio do ATL que contou com a participao de mais de

    800 lideranas de 89 povos que se deslocaram de vrias regies do pas. A meta principal era

    concretizar a aliana feita em 2004 com os diferentes povos, organizaes e entidades

    indigenistas em defesa de seus direitos. Dentre as principais reivindicaes do movimento

    destacam-se os processos de regularizao de terras indgenas, os projetos de lei e as

    propostas de emenda Constituio no Congresso Nacional. Tais propostas que representam

    7Disponvel em: http://pib.socioambiental.org/c/noticias?id=10175. Acesso em 15/05/2012.

    8Disponvel em: http://pib.socioambiental.org/es/noticias?id=11683. Acesso em 19/04/2012.

    9Ver: http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1152&Itemid=2. Acesso em

    19/04/2012.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 97

    uma ameaa aos direitos indgenas e a criao do Conselho Nacional de Poltica Indigenista

    (CNPI).

    Uma conquista muito importante desse acampamento foi a criao da APIB que veio

    fortalecer a unio dos povos indgenas e a articulao entre as diferentes regies e

    organizaes indgenas do pas. Desde ento, a APIB, juntamente com o Frum de Defesa dos

    Direitos Indgenas (FDDI), tornou-se a principal organizadora dos acampamentos posteriores.

    Atualmente, em sua oitava edio, o discurso do ATL 2011 traz marcas especficas de seu

    tempo no que concerne aos adventos da globalizao, do sistema capitalista e da devastao

    ambiental sobre suas terras. Por outro lado, tambm recorre aos seus valores culturais ao

    conceber a Terra como Me, lugar de abrigo, proteo.

    3. O (per)curso do processo identitrio: (des)estabilizando (dis)cursos e fronteiras

    Analisamos aqui como so construdas as representaes sociais de excluso que

    constituem o documento oficial sobre o indgena, a partir da perspectiva discursiva e do

    processo de referenciao lingustica (PCHEUX, 2002). Interessa-nos rastrear as formaes

    discursivas, os interdiscursos e os efeitos de sentido possveis que perpassam o discurso do

    ATL. Na problematizao do discurso do ATL possvel verificar uma lacuna existente entre

    os direitos assegurados na Constituio e sua real efetivao. Vem tona a condio do

    indgena como excludo, marginalizado j que, como afirma Arajo (2006, p. 76) na prtica,

    os ndios ainda esto distantes at mesmo do gozo pleno dos direitos a eles j garantidos, o

    que acaba gerando inmeros conflitos sociais. Trazemos para este artigo, apenas um recorte,

    excerto que denominamos R 4, por questes metodolgicas de pesquisa e ordem de

    aparecimento, a saber:

    R4- Considerando o atual quadro de violao dos nossos direitos que se agrava

    dia a dia sob o olhar omisso e a conivncia do Estado brasileiro, viemos de

    pblico manifestar a nossa indignao e repdio pela morosidade e descaso com

    que esto sendo tratadas as polticas pblicas que tratam dos nossos interesses e

    aspiraes. Reiteramos a nossa vontade de continuar unidos na diversidade e de

    lutar acima das nossas diferenas pela garantia dos nossos direitos assegurados

    pela Constituio Federal de 1988 e leis internacionais de proteo e promoo

    dos direitos indgenas como a Conveno 169 da Organizao Internacional do

    Trabalho (OIT) e a Declarao das Naes Unidas sobre os direitos dos Povos

    Indgenas.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 98

    Ao apropriar-se do discurso jurdico, o enunciador (res)significa o discurso do outro

    no interior de seu prprio discurso com o objetivo de estabelecer um lugar de autoridade para

    dialogar com o poder dominante, j que o discurso jurdico fala por si s, reconhecido no

    meio social. Assim, enunciar a partir dos direitos garantidos na Constituio uma estratgia

    discursiva que coloca o ATL em condies de exigir, de se defender e de se manifestar em

    prol de seus direitos. Por outro lado, denunciar a violao implica mobilizar outros sentidos

    fora da legalidade social cujos efeitos trazem o transgredir, violar algo j estabelecido como

    norma. Enunciar contra uma esfera de poder, contestar a esfera jurdica em sua prpria ordem,

    inscreve o enunciador em uma posio conflituosa do no controle de si ao trazer em sua voz

    a voz do outro que o constitui (CORACINI, 2011).

    Por meio do discurso do ATL, o enunciador deixa emergir em seu dizer a

    exterioridade que o constitui e que remete a fragmentos discursivos que falam antes, em outro

    lugar, em contextos histricos anteriores e que perpassam seu dizer por meio da formao

    discursiva da legislao: Direitos; polticas pblicas; Constituio Federal de 1988;

    leis internacionais de proteo e promoo dos direitos indgenas; Conveno 169 da

    OIT; e Declarao das Naes Unidas sobre os direitos dos Povos Indgenas. No entanto,

    isso ocorre sob novas configuraes, uma vez que, se por um lado a lei institui o indgena

    como cidado de direito por meio de variados atos constitucionais, tambm na prpria lei

    que se exerce o lugar da separao, da excluso, j que marca uma distncia considervel

    entre teoria e prtica (ORLANDI, 2009).

    O real manifestado por meio da materialidade lingustica, as condies scio-

    histricas em que o discurso produzido determinam a razo para aquilo que o sujeito diz,

    estabelecendo uma fronteira entre si e o outro (GUERRA, 2010). No discurso do ATL, temos

    a representao do sujeito indgena enquanto marginalizado, inserido num contexto scio-

    histrico de violao de seus direitos que emana efeitos de sentidos de terem seus direitos

    desrespeitados, violentados constantemente pelo Estado. Ao falar em nome do ATL, o

    enunciador passa a ocupar diferentes posies e a assumir o papel de diferentes sujeitos

    (FOUCAULT, 2008, p. 105). Ele fala em nome de toda a comunidade indgena: Situa-se,

    assim, entre formaes discursivas contraditrias, as do ATL e as da legislao, ao utilizar-se

    dos pronomes possessivos nossos direitos, nossa indignao, nossos interesses que, de

    acordo com Fiorin (1996, p. 61), expressam uma relao de apropriao entre uma pessoa (o

    possuidor) e uma coisa(o possudo). Revela-se por meio do discurso o espao conflituoso

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 99

    no qual o indgena est inserido: de um lado encontra-se a voz oficial (constituio federal

    de 1988, leis internacionais de proteo e promoo dos direitos indgenas, Conveno

    de 169 da OIT,declarao das Naes Unidas) e de outro, a voz do movimento indgena

    (diversidade, povos indgenas). Revelam-se sentidos outros e outros que constituem a

    identidade do sujeito a partir de momentos de identificao (CORACINI, 2003) que

    incluem e excluem o sujeito, respectivamente. Nessa direo, observamos no discurso do

    ATL uma ruptura significativa de sentidos que desloca a legitimidade da legislao em

    decorrncia da no efetivao dos direitos indgenas, embora eles existam discursiva e

    constitucionalmente.

    Ao tomar para si o discurso da legislao, o enunciador assinala entre as suas palavras

    a presena estrangeira de palavras marcadas como pertencendo a um outro discurso, um

    discurso desenha nele mesmo o traado relacionado a uma 'interdiscursividade representada'

    de uma fronteira interior/exterior (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 193). Delimitam-se, assim,

    as fronteiras existentes entre si e o outro que coloca em lados opostos um e outro. Pelo jogo

    imaginrio, o sujeito enuncia a partir da representao imaginria que tem do outro, da

    legislao como um fator negativo por meio da qual se operam as aes de excluso do

    indgena. Toma posio em referncia quilo que imagina ser a representao que o outro tem

    dele. No que concerne Conveno 169 da OIT, Arajo (2006, p.60) destaca que vrios

    pontos da conveno ainda no possuem respaldo no Estado, especialmente, no que diz

    respeito a obrigao de o governo consultar os povos indgenas toda vez que sejam

    examinadas medidas legislativas e administrativas suscetveis de afet-los diretamente,

    sendo notrio o desrespeito para com as comunidades indgenas.

    A legislao produz uma situao de conflito social entre as comunidades indgenas e

    o Estado j que a interdiscursividade presente no discurso do ATL revela as contradies

    existentes entre o que est estabelecido na lei e o que de fato ocorre na prtica, no meio social.

    Em posio de defesa viemos de pblico manifestar nossa indignao o enunciador do

    discurso do ATL revela o descaso com que seus direitos so tratados pelo Estado que o coloca

    margem dos valores simblicos da sociedade hegemnica. A excluso se d a partir dos

    valores e experincias do outro ao se estabelecer fronteiras entre um e outro; a separao se d

    na prpria constituio, uma vez que o sujeito se constitui por meio de uma identidade de

    resistncia e precisa lutar para garantir os direitos assegurados na legislao. Traz, por meio

    da memria discursiva e dos interdiscursos, a representao do direito como fator causal da

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 100

    excluso, a ausncia de cidadania. H um deslocamento significativo no prprio sentido da

    lei j que no discurso do ATL a lei est perdendo seu estatuto de legalidade e passa a assumir

    um sentido negativo que inverte as relaes de poder entre ATL e Estado. Ainda pela

    materialidade lingustica do enunciado denunciamos a articulao existente entre o

    judicirio, rgos de segurana e interesses privados, fazendeiros, sobretudo, para

    criminalizar lderes indgenas depreendemos, por meio do verbo "denunciamos, efeitos de

    sentido de acusar, revelar, delatar (FERREIRA, 2010, p. 226) a relao existente entre

    instncias de poder que deveriam proteger os direitos assegurados na Constituio.

    Ao se situar em um contexto de cobrana, de denncia contra o Estado, o enunciador

    do ATL filia-se a redes de memria que remetem s inmeras tentativas das comunidades

    indgenas de dialogar com o Estado. Traz em um contexto imediato as circunstncias

    primeiras em que o discurso do ATL 2011 foi produzido em meio tentativa das lideranas

    indgenas de serem recebidas pela presidenta Dilma Rousseff para tratar de questes que

    afetam diretamente as comunidades indgenas, dentre elas, a demarcao de terras indgenas e

    a criminalizao de lideranas indgenas. Em sua VIII edio, o ATL abordou temas variados

    como o direito terra, consentimento e grandes empreendimentos em terras indgenas,

    aprovao do novo estatuto do ndio, entre outros. Em um contexto amplo situamos o discurso

    do ATL em condies scio histricas determinadas que se filiam a redes de memria

    cristalizadas no meio social que concebem o indgena como aquele que ocupa o lugar do

    colonizado, do submisso ao sistema dominante, aquele que incomoda e perturba a ordem

    social. Inicialmente, com a chegada dos portugueses, o indgena era considerado como aquele

    que apresentava deficincias que precisavam ser corrigidas, pois confrontavam as complexas

    lgicas da cultura ocidental: europeia, branca, crist, individualista.

    Essa tenso entre os indgenas e o poder dominante vem marcando historicamente a

    relao entre essas duas instncias desde o perodo colonial por meio de polticas que vo

    desde a assimilao, integrao e tutela para a instituio do indgena como cidado de

    direito. Embora, sempre houvesse uma resistncia por parte do indgena aos jogos de poder

    advindos da sociedade hegemnica, foi precisamente a partir da dcada de setenta que houve

    uma virada significativa na questo indgena e um novo discurso passou a circular em torno

    da cultura e do territrio. Novos aparatos de poder passam a discutir a questo indgena no

    contexto nacional, especialmente, a Igreja Catlica e o CIMI que buscavam a aprovao do

    EI, bem como tambm as Assembleias Indgenas e as organizaes nogovernamentais

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 101

    (ONGs) passam a fazer parte dessa luta. A organizao poltica das comunidades indgenas e

    a intensa atuao de entidades civis de apoio causa indgena, bem como entidades

    constitudas pelos prprios ndios culminaram na Constituio Federal de 1988 por meio da

    qual os direitos indgenas passam a ser reconhecidos, considerando a diversidade de povos e a

    especificidade cultural dos ndios.

    Emergem nesse contexto as condies de produo do discurso do ATL que reitera

    nossa concepo de discurso enquanto estrutura e acontecimento, respectivamente, inscrito na

    lngua e na histria e filiado a redes de memria (ORLANDI, 2009; PCHEUX, 2002). O

    enunciador do ATL deixa emergir a referncia s dcadas em que se esperou uma atitude

    consistente por parte do governo em meio ao descaso com que so tratadas as questes que

    envolvem as comunidades indgenas e os constantes protestos em frente ao Palcio do

    Planalto, na tentativa de serem recebidos por um representante do Estado.

    possvel apreender as prprias condies de emergncia que deram origem ao ATL

    e que trazem tona os inmeros conflitos entre essas duas instncias ATL e Estado.

    Conflitos esses que ficam mais latente a partir do ano 2000, quando o ento presidente

    Fernando Henrique Cardoso, em plena comemorao oficial dos quinhentos anos do

    descobrimento do Brasil, desconsiderou os novos rumos da Constituio Federal que

    reconhece a pluralidade de povos existentes no Brasil em detrimento de uma identidade

    nacional. Comeam a se delinear os primeiros contornos de uma manifestao que, no ano de

    2004, pela falta de apoio do ento presidente Luiz Incio Lula da Silva ao rgo da FUNAI,

    culminou no I ATL. Como todo movimento, o mesmo apresenta, em sua essncia, conforme

    Castells (2001, p. 95) germes de resistncia social.

    4. Palavras finais

    Espaos, territrios e lugares, cada um a seu modo

    demandam apropriaes do outro, produzem

    subjetivaes, metaforizam seus prprios sentidos,

    propem discursos sem parar. (NOLASCO, 2010,

    p. 124).

    Pensar a constituio identitria do sujeito indgena a partir das representaes de

    excluso levou-nos a considerar os inmeros conflitos sociais que envolvem a causa indgena,

    especialmente aqueles relacionados questo territorial. Ao analisar o discurso do movimento

    indgena ATL foi possvel observar como o discurso e as relaes de poder esto diretamente

    relacionadas, no se encontrando na exterioridade do discurso, mas apresentando-se como

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 102

    uma relao de foras entre o Estado e o ATL. Devidamente legitimado, o enunciador

    investido de um determinado poder. Trata-se do poder de falar, de tomar a palavra em nome

    de toda uma coletividade (populao indgena), utilizando-se do discurso para representar o

    mundo indgena com todas as suas peculiaridades, conflitos e crenas. Torna-se a situao de

    enunciao inseparvel das condies de produo que culminaram em seu acontecimento.

    Constatamos pela anlise que h, por meio do movimento indgena, uma resistncia coletiva

    contra o Estado. O movimento adquire fora na medida em que apresenta os povos indgenas,

    estrategicamente, por uma unicidade de posicionamento, como um todo homogneo em

    defesa dos direitos indgenas. A luta pela terra e pelos direitos garantidos na Constituio

    alcana outros sentidos. Desloca o imaginrio construdo socialmente sobre o indgena como

    brbaro, violento e situa sua luta no campo poltico. O ATL se apresenta como germes de

    resistncia social ao se posicionar contra o Estado, contra os adventos da globalizao e

    propor sentidos de denncia pela violao de seus direitos.

    No papel de liderana poltica, o enunciador traz em seu dizer as vozes das diferentes

    instncias que compem o movimento indgena, especialmente: o CIMI; a APIB; a OIT, com

    a Conveno 69; e os Direitos Humanos que funcionam como pontos de ancoragem das

    comunidades indgenas, a partir do fortalecimento da luta pelos direitos indgenas. Inserido

    em um contexto scio-histrico de estigmatizao social e desrespeito aos direitos indgenas,

    o discurso do ATL se caracteriza pela alteridade, o outro que o constitui e que configura a

    heterogeneidade constitutiva do discurso, a no-coincidncia do discurso consigo mesmo.

    Ao trazer em meio ao seu discurso dizeres do branco, o enunciador se coloca em posio de

    igualdade com o Estado, passando a (res)significar discursos outros dentro do prprio

    discurso indgena. Tal estratgia discursiva o coloca em condies de dialogar com o Estado,

    como seu adversrio, seu opositor.

    Considerando o espao mvel e instvel das formaes discursivas, constatamos por

    meio das anlises que o discurso do ATL perpassado por formaes discursivas

    heterogneas e, muitas vezes, contraditrias (ambiental, econmica, capitalista, sociolgica,

    poltica, blica). Essas formaes marcaram o lugar conflituoso e tenso a partir do qual o

    sujeito enuncia por meio de discursividades que negam os direitos indgenas em relao

    terra. Representam os indgenas como marginalizados, excludos do meio social e, sobretudo,

    remetem luta histrica dos povos indgenas em defesa da terra e as vrias tentativas de

    dilogo com o poder estatal.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 103

    Ligados s formaes discursivas os interdiscursos da lei, da guerra, do Estado e

    da ecologia, o discurso do movimento coloca-se em relao direta com a exterioridade, com a

    memria discursiva e com as condies em que esse discurso produzido. Esse discurso se d

    como acontecimento. O processo analtico aponta para os inmeros conflitos que vm desde a

    colonizao com as revoltas, massacres de milhes de indgenas, explorao da mo de obra

    indgena e que, nos dias atuais, (re)configuram-se em forma de assassinatos de lideranas

    indgenas, confrontos com fazendeiros, ameaas de pistoleiros e desrespeito aos direitos

    indgenas. O Estado permanece no imaginrio do enunciador do ATL como agente de

    dominao, descompromissado, desleal e conivente com os empreendimentos que causam

    prejuzos s comunidades indgenas. Trata-se de um Estado que busca normalizar uma

    identidade hegemnica desconsiderando todas as outras, ou seja, todos os povos que

    compem o Brasil.

    Na luta por reconhecimento social, em defesa de seus direitos e de seu prprio espao,

    as comunidades indgenas veem no ATL uma das alternativas de autodefesa e de resistncia

    contra o poder dominante. O discurso do ATL tomado, portanto, como um dispositivo de

    poder, estratgia de luta e de sobrevivncia das comunidades indgenas no meio social, j que

    por meio do discurso que o sujeito encontra brechas, falhas que lhe permitem marcar sua

    identidade como coletividade em oposio ao outro, o Estado. Constatamos pela anlise que o

    enunciador deixa perpassarem seu dizer diferentes representaes sobre o Estado: concebe-o

    como o indesejado, agente de dominao sobre os grupos minoritrios, descompromissado

    com os interesses das comunidades indgenas.

    Diante do exposto, verificamos que o discurso do ATL sobre a terra traz marcas de

    excluso social do indgena no que tange ao desejo de fazer-se ouvir pelo poder estatal, bem

    como no que se refere aos inmeros empreendimentos do PAC em terras indgenas. Pelo jogo

    imaginrio, temos no discurso do ATL a representao do Estado como invasor, indesejado,

    perturbador, descomprometido com a causa. No se trata apenas de se posicionar de forma

    contrria ao Estado, mas de uma negociao constante entre um e outro: uma guerra de

    posies. Nesse embate de fronteiras entre o ATL e Estado, a terra concebida como um

    lugar de confronto, de demarcao de fronteiras entre o Estado e o ATL como podemos

    verificar por meio de um jogo de oposies ndio/Estado; terra/latifndio; propriedade

    coletiva/propriedade privada; destruio da natureza/convvio harmonioso com a natureza. A

    luta pela terra remete a fatos similares que ocorreram no decorrer da histria entre os grupos

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 104

    tnicos e o poder dominante, contudo, adquire novas configuraes na atualidade, ao situar-se

    em uma dimenso poltica. Por outro lado, ao se posicionar como o outro do poder, o ATL

    oferece resistncia na forma de reivindicao, denncia, apelo ao Estado para que seus

    direitos sejam observados.

    O paradoxo que aqui se apresenta, entretanto, que se de um lado, possvel constatar

    que a voz do movimento ATL que d legitimidade para que o enunciador fale como tal; de

    outro, tambm possvel observar a voz do indgena presente no discurso do ATL, ao

    oferecer resistncia ao Estado sob a forma de uma contestao cultural, de uma mudana na

    base de conhecimentos, de modo a ultrapassar os limites da tradio e inserir-se em discursos

    como da Constituio Federal, do CIMI, do movimento ambientalista e engajar-se em uma

    guerra de posies entre ATL e Estado. Cabe-nos esclarecer, portanto, a confirmao de nossa

    hiptese de pesquisa de que a voz do indgena perpassa o discurso do ATL. A questo se

    torna complexa quando constatamos uma reescrita descentrada, diasprica das narrativas

    originrias no que concerne ao indgena, j que este no mais o indgena submisso ao poder

    dominante, mas que se organiza politicamente e estabelece novas estratgias de luta, de

    identificao em defesa de seus direitos.

    Emergem, nesse contexto, identidades que se opem e que remetem identidade

    legitimadora do Estado, do jurdico como regularizador/normatizador da vida social com o

    poder de estabelecer as bases que iro regular o padro de vida da dita normalidade; e, de

    outro, uma identidade de resistncia caracterizada por posies desvalorizadas, estigmatizadas

    pelo poder dominante. Enfim, apresentam-se aqui, complexas e mltiplas relaes de poder

    entre as instncias envolvidas e que marcam o lugar de conflito em que se movimentam o

    Estado e o ATL a partir de interesses opostos. Vozes discordantes e concordantes perpassam

    esse discurso, a partir de momentos de identificao que incluem e excluem o sujeito em

    pauta, num movimento identitrio paradoxal e multifacetado.

    Referncias

    ACAMPAMENTO TERRA LIVRE COMEA NO MATO GROSSO DO SUL. Braslia,

    tera-feira, 27 de julho de 2010. Disponvel em: http://blogapib.blogspot.com.br/2010/07/7-

    acampamento-terra-livre-sera-em-mato.html. Acesso em 11/04/2012.

    ACAMPAMENTO TERRA LIVRE DE 2006. Braslia, Explanada dos Ministrios, 4 de Mai.

    2006. Disponvel em:

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 105

    http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1152&Itemid=2. Acesso

    em 19/04/2012.

    ANZALDU, G. La conscincia de La mestiza/Rumo a uma nova conscincia. In: Revista

    de Estudos femininos. V.3, Florianpolis, Sept/ dec, 2005. Disponvel em:

    http://dx.doi.org/101590/50104 -026x2005000300015. Acesso em: 14/11/2012.

    APIB instala Comisso Nacional Permanente em Braslia, segunda-feira, 25 de Mai. 2009.

    Disponvel em: http://blogapib.blogspot.com/2009/05/apib-instala-comisso-nacional.html. Acesso

    em: 23/04/2012.

    ARAJO, A. V. Povos indgenas e a lei dos brancos: o direito diferena. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e

    Diversidade; LACED/ Museu Nacional, 2006.

    ARAJO, I. L. Formao discursiva como conceito chave para a arqueogenealogia de

    Foucault. In: BARONAS, Roberto Leiser (org.). Anlise de discurso: apontamentos para

    uma histria da noo-conceito de formao discursiva. 2 ed. So Carlos: Pedro e Joo

    Editores, 2011, p. 93-108.

    AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as no-coincidncias do dizer. Trad. Eni Puccinelli

    Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

    BANIWA, G. dos S. L. O ndio Brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos indgenas

    no Brasil de hoje. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada,

    Alfabetizao e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

    BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia:

    Senado Federal, secretaria- Geral da Mesa, 2003. 221 p.

    CASTELLS, M. O poder da identidade: a era da informao: economia. Sociedade e

    cultura. Traduo Klauss Brandini Gerhardt. So Paulo: Paz e Terra S A, 2001.

    CONSELHO INDIGENISTA MISSIONRIO. Disponvel em: http://www.cimi.org.br/site/pt-

    br/?system=paginas&conteudo_id=5685&action=read. Acesso em 02/03/2012 s 10h 14min.

    CORACINI, M. J. Identidade e discurso: (des) construindo subjetividades. Campinas/

    Chapec: Editora Unicamp/Argos, 2003.

    ______. Aspectos metodolgicos e anlise de discurso: migrantes em situao de rua, entre a

    hos (ti) pitalidade e a anulao de si. In: TFOUNI, L. V.; MONTE, D. M.; SERRAT, P. C.

    (orgs.). A anlise de discurso e suas interfaces. So Carlos: Pedro & Joo Editores, 2011.

    DERRIDA, J. Torres de babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG,

    2002.

    DOCUMENTO FINAL DO IV ACAMPAMENTO TERRA LIVRE. Braslia, de 16 a 19 de

    abril de 2007. Disponvel em:

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 106

    http://www.fase.org.br/v2/admin/anexos/acervo/17_070419_acampamento_terra_livre_documento_fin

    al.pdf. Acesso em 05/04/2012.

    DOCUMENTO FINAL DO V ACAMPAMENTO TERRA LIVRE. Braslia, de 15 a 17 de

    abril de 2008. Disponvel em:

    http://www.coiab.com.br/coiab.php?dest=show&back=noticia&id=69&tipo=N&pagina=49. Acesso

    em 06/04/2012.

    DOCUMENTO FINAL DO VI ACAMPAMENTO TERRA LIVRE. Braslia, de 4 a 8 de

    Maio de 2009. Disponvel em: http://www.pineb.ffch.ufba.br/downloads/1242560132Documento%20Final%20Acampamento%20Te

    rra%20Livre.pdf. Acesso em 10/04/2012.

    FERREIRA, A. B. de H. Dicionrio da lngua portuguesa. 8 ed. Curitiba: Positivo, 2010.

    FIORIN, J. L. As astcias da enunciao: as categorias de pessoa, espao e tempo. So

    Paulo: tica, 1996, 318 p.

    FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collge de France. Trad. Maria

    Emantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    ______ (1988). Histria da sexualidade I: a vontade de saber. Traduo de Maria T.

    Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

    ______. Arqueologia do saber. Traduo de Luiz Felipe B. Neves, 7 ed. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 2008.

    FUNDAO NACIONAL DO NDIO. Disponvel em:

    http://blogdafunai.blogspot.com.br/p/atividades-culturais.html. Acesso em 10/04/2012.

    GRUPIONI, L. D. B. Educao e diversidade. In: SILVA, A. L.; GRUPIONI, L. D. B.

    (orgs.). A temtica indgena na escola: novos subsdios para professores de 1 e 2 graus.

    Braslia: MEC/MARI/UNESCO, 1995, p. 15-23

    [Autor]. O Indgena de Mato Grosso do Sul: prticas identitrias e culturais. So Carlos:

    Pedro & Joo Editores, 2010.

    MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciao. Curitiba: Criar, 2006.

    NAVARRO, P. Anlise do discurso ao lado da lngua, da imagem e da histria. In:

    BARONAS, R. L.; MIOTELLO, V. Anlise de discurso: teorizaes e mtodos. So Carlos:

    Pedro; Joo Editores, 2011, p. 135-160.

    NOLASCO, E. C. Babel local. Lugares da midas culturas. Campo Grande: Life, 2010.

    O SPI. Disponvel em: http://www.funai.gov.br/quem/historia/spi.htm. Acesso em 13/04/2012.

  • DOMNIOS DE LINGU@GEM

    (http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem) - v. 8, n. 3 (ago./dez. 2014) - ISSN 1980-5799

    Vania Maria Lescano Guerra, Maria Francisca Valiente; p. 86-107. 107

    ORLANDI, E. P. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. 8ed, Campinas: Pontes,

    2009.

    PACHECO, R. A. S. A dinmica das mobilizaes sociais indgenas e os novos desafios para

    o direito. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Vol. n . 43, 2005.

    PCHEUX, M. Estrutura ou acontecimento. Traduo Eni P. Orlandi, 3 ed. Campinas:

    Pontes, 2002.

    RIBEIRO, D. Mestio que bom. Rio de Janeiro: Revan, 1995.

    VALIENTE, M. F. Terra, cidadania e excluso: aspectos da configurao identitrias do

    indgena. 2013. 126 p. Dissertao (Mestrado em Letras). Universidade Federal de Mato

    Grosso do Sul. Campus de Trs Lagoas, MS.

    Artigo recebido em: 03.05.2014

    Artigo aprovado em: 10.07.2014