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Biblioteca Cora CoralinaUnidade de Internação do Recanto das Emas (Unire)

[ ]Uma adolescente perguntou a MV Bill: “Como você, que nasceu e cresceu na Cidade de Deus, escapou de

seguir o mesmo caminho desses meninos?” Sem hesitar, ele respondeu: “Devo isso à minha mãe, que

soube colocar bons livros em minhas mãos.”

entativa de homicídio!” “Homicídio!” “Homicídio... Dois!” “Ten-tativa!” “Roubo... Com arma de fogo!” “Tráfico de drogas!” “Homicídio!” “Tráfico de drogas!”

A rapidez e a espontaneidade das respostas surpreendem. Sentados em meio círculo, na biblioteca da Unidade de Internação do Recanto das Emas (Unire), os oito jovens não dão sinal de constrangimento ao relatar os motivos que os levaram, ainda menores, a cumprir medida socioeducativa em regime fechado. Com idades entre dezoito e vinte anos apenas, que ausências tão fortes teriam carregado em suas vidas até chegar naquele lugar cercado de grades e muros altos?

Alex Pereira Barbosa, morador da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, que nos anos 1990 chamou a atenção do mundo pelos índices de violên-cia, sabe muito bem a resposta. Alex também ficou famoso, mas com o nome que adotou para expressar a sua arte: MV Bill, união do apelido de infância com as iniciais de Mensageiro da Verdade, como era chamado por evangélicos da comunidade dominada pelo tráfico.

Janelas para

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o futuro

“Quando caí na unidade é que peguei o hábito de ler. Me ajudou muito mesmo”,

conta um dos internos

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Rapper, escritor, ativista social, MV Bill é autor, com Celso Athayde, do premiado documentário e do livro Falcão – Meninos do Tráfico, que contam a trágica história de dezessete crianças a serviço do poder paralelo do crime enraizado em comunidades ignoradas pelo poder público. Lançado em 2006, o filme virou sucesso de público e tema de debates em todo o país, muitas vezes com a presença do rapper.

Brasília fez parte dessa rota. Em um debate sobre políticas para a ju-ventude com jovens da periferia convidados para assistir ao filme, uma adolescente perguntou a MV Bill: “Como você, que nasceu e cresceu na Cidade de Deus, escapou de seguir o mesmo caminho desses meninos?” Sem hesitar, ele respondeu: “Devo isso à minha mãe, que soube colocar bons livros em minhas mãos.”

“Renovadora e reveladora do mundo/A humanidade se renova no teu ventre”, diz, em Mãe, a poetisa goiana Cora Coralina, que trocava cartas e admirações com o escritor Carlos Drummond de Andrade e publicou o primeiro livro aos 76 anos de idade. Como MV Bill, ela tinha uma resposta, e a deixava aflorar em seus poemas. “É a promessa./ ... / A mulher é a terra — / terra de semear”, reflete, em Ainda não.

Assim como o rapper, a escritora também usou pseudônimo. Na certidão de nascimento registrada em 1889, no cartório da histórica Cidade de Goiás, a autora do elogiado Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais ganhou dos pais o extenso nome de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Nas livrarias, Aninha, como era chamada na intimidade, é Cora Coralina – nome escolhido pelos internos para batizar a 44ª unidade do projeto Bibliotecas do Saber.

A poetisa, que enxergava o mundo com uma solidária delicadeza e viveu 96 anos, teria ficado feliz com a homenagem. Seus versos revelam uma forte aposta no poder dos jovens. Em Mascarados, ela os convida a semear “com idealismo as sementes vivas da Paz e da Justiça”. A eles, dedicou o poema Ofertas de Aninha (aos moços), para lhes dizer: “Creio na solidariedade hu-mana./Creio na superação dos erros/e angústias do presente./Acredito nos moços./Exalto sua confiança,/generosidade e idealismo.”

Se estivesse presente na inauguração da biblioteca, em 13 de maio de 2009, Cora Coralina se aproximaria dos internos e declamaria o seu Ofertas de Aninha para eles, olhos nos olhos. E no final recitaria Assim eu vejo a vida, para pedir que levassem com eles o recado: “A vida tem duas faces:/positiva e negativa./O passado foi duro,/mas deixou o seu legado”. Tentando, quem sabe, descobrir a tal fase positiva, C. R.*, dezenove anos, busca refúgio nas prateleiras repletas de títulos que desconhecia até co-meçar a frequentar aquele espaço.

“Aqui tem bons livros, a questão é procurar o certo”, diz ele. Nascido em Santa Maria, uma das regiões administrativas que cercam o festejado “quadradinho” do Plano Piloto, tão perto, mas tão longe do olhar dos três poderes da República, ele nunca havia frequentado uma biblioteca. “Só li um livro, antes [de ser apreendido], e assim mesmo na internet”, revela.

“Quando caí na unidade é que peguei o hábito de ler. Até queria agrade-cer quem fundou o projeto [a biblioteca], me ajudou muito mesmo”, conta C. R. Prestes a cruzar de volta os portões de ferro, ele vai levar na bagagem sementes recolhidas em histórias como Capitães de Areia, do consagrado escritor Jorge Amado, e o diploma do ensino médio, que terminou lá dentro.

O romance do autor baiano que ficou famoso com sucessos como Dona Flor e seus dois maridos fez o jovem enxergar o próprio entorno. “O livro fala de um grupo de moleques de doze, treze anos que viviam na rua pra vigiar as casas e roubar. Pra mim eles eram é caixa baixa mesmo.” A gíria do meio social de C. R. mostra que a capital do país tem também os seus capitães de areia. “Caixa baixa”, explica, “são os moleques pequenos que usam droga, roubam e saem correndo, arrancando bolsa das pessoas”.

Ao contar o que ficou dessa leitura, ele vai direto ao ponto que retrata como um dos “capitães” preencheu uma ausência vital em sua vida. “O mo-leque bateu na casa da mulher que iam roubar e disse que não tinha onde ficar. Aí ela cuidou dele, deu amor, tratou como filho. Na real, ele queria ficar, porque nunca teve aquele carinho, nunca tinha ganhado beijo antes de dormir. Mas seria uma traição e ele foi embora.”

Os livros revolvem a realidade e os sentimentos dos internos. Com vinte anos de idade e dois de internação, por homicídio, I. P.* descreve o livro O estudante, de Adelaide Carrara, um dos mais requisitados na biblioteca. “É uma história triste”, resume. “Ele começou a se drogar, aí foi largando a escola. O pai não conseguiu tirar ele dessa vida. E ele foi ficando cada vez mais violento”, reflete o interno, de Planaltina, que sonha com uma “vida sem esses riscos” quando ganhar a liberdade.

Quem faz um poema abre uma janela.Respira, tu que estás numa celaabafada,esse ar que entra por ela.

(Emergência, Mário Quintana)

‘A vida tem duas faces:/positiva e negativa./O passado foi duro,/mas deixou o seu legado’. Tentando, quem sabe, descobrir a tal fase positi-va, C. R.*, deze-nove anos, busca refúgio nas prate-leiras repletas de títulos”

* Em respeito ao Estatuto da Criança edo Adolescente (ECA), os jovens entrevistados são citados por iniciais fictícias, para evitar a identificação.

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A leitura permite que os internos façam uma reflexão de tudo o que aconteceu em suas vidas. “Isso faz a diferença em todo o processo dentro de uma unidade de internação”, pondera o diretor Maurício José Gomes Leitão. Professor de matemática, desde 2006 no comando da Unire, ele comemora “o êxito que é ter um projeto desses” no sistema socioeducativo. “A biblioteca é uma ferramenta para levar os jovens a uma mudança de perspectivas, a um mundo que estava tão distante deles.”

“A leitura ajuda muito a gente no aprendizado, na hora de fazer uma carta pra juíza e pra nossa família”, confirma B. F.*, dezenove anos. Apreendido por roubo, o adolescente nascido no Paranoá já escreveu até para o juiz da Vara da Infância e da Juventude pedindo para sair. “Ajuda até pra gente aprender a falar melhor, é bom pra forma de pensar”, completa V. H.*, de vinte anos. Filho de maranhenses, o jovem nascido em Ceilândia conta com os livros para “ocupar a mente” enquanto não sai para recomeçar a vida.

Com doze anos de experiência no atendimento a infratores juvenis, o professor José Francisco Eloi conta que usa a biblioteca como um instru-mento de catarse. “É um espaço onde o menino se sente bem, por isso vou lá, é hora de tratar da educação.” O tamanho do desafio não tira o ânimo do educador, que define o trabalho na unidade como uma espécie de “seminário de prática do ECA”, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O número de adolescentes flagrados em infrações é crescente. Somente de 2014 a 2015 aumentou 29,5%, saltando de 6.724 para 8.705 registros, segundo a Secretaria de Segurança Pública e Paz Social de Brasília. “A in-cidência maior entre os que chegam até aqui é de furto e de roubo”, revela Maurício Leitão. Roubo, para a aplicação da lei, é quando se usa violência.

Sem a mesma sorte de MV Bill, que contou com os pais para não ser tragado pelo crime, a maioria chega até ali carregando um fardo invisível – a ausência do porto seguro familiar, agravada por fracassadas passagens em escolas que lhes deveriam garantir um ensino fundamental com a qua-lidade necessária para seguir adiante. Um dos resultados mais evidentes é a barreira na hora de compreender um texto ou uma fala.

C.R. tirou da estante o consagrado Vidas secas, de Graciliano Ramos, presença garantida na grade de atividades do ensino médio, mas esbarra na compreensão das palavras e não consegue terminar. Incentivado pelo professor Eloi, ele lembra o nome do cachorro, “a Baleia”, personagem importante na história do escritor alagoano sobre o drama secular da seca. “É difícil a fala, as palavras... Muito complicado de entender, mas vou con-tinuar”, promete.

Muitos acabam se rendendo ao bloqueio do vocabulário. “Quando não entendo uma palavra, eu me desinteresso, não pergunto”, confessa M. P.*, de dezenove anos de idade. Aluno do oitavo ano na unidade, ele pegou O leite derramado, de Chico Buarque, para ler, mas acha difícil resumir. “É muito complicado de dizer.” Ao lado dele, J. O.*, também com dezenove anos, conta que leu A cabana, um best seller de William P. Young.

O livro fez sucesso entre os colegas na roda, que começam a comentar a história, mas J. O. corta o assunto. “Não tenho muita paciência pra ler não”, diz. Na expectativa de deixar a unidade, o que ele quer mesmo é se concentrar no último período do ensino médio, para tentar um emprego lá fora. Para isso, no entanto, ele não abre mão de estudar na biblioteca. “Ajuda a gente.”

Depois de ler livros que “falam de superação”, S. N.*, dezenove anos, se convenceu de que é capaz de alcançar o objetivo traçado quando fez um curso de panificação na Unire – “montar um restaurante”. Ele havia aban-donado a escola na sexta série, “por problemas” que não gosta de relembrar, mas conseguiu chegar ao ensino médio lá dentro e quer tentar o Enem, de olho em uma vaga em gastronomia ou administração. “Se a pessoa quiser, consegue tudo.”

“É uma coisa de crescimento”, reforça W. S.*, de dezoito anos, apreendido por tráfico de drogas depois de “perder o rumo”, na Ceilândia. A cidade é a mais violenta do Distrito Federal e desde 2000 ocupa, disparado, o topo da série histórica de homicídios na capital, em números absolutos, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública. “O livro ajuda a gente a entender melhor a vida, até a conversar melhor”, reconhece o jovem.

“Dá para perceber claramente a mudança na postura deles e o próprio reconhecimento que têm dessa influência”, avalia Maurício Leitão. “Isso se reflete também na relação com os servidores e com os seus próprios pares.” A internação é a última etapa das medidas de atendimento aos adolescentes infratores. “O que traz o jovem para a Unire é a reincidência. Tem interno aqui que já registrou dez passagens”, diz o diretor. “Eles chegam para fina-lizar o processo e ficam, em média, um ano.”

É uma coisa de crescimento”, re-força W. S.*, de dezoito anos, apre-endido por tráfico de drogas depois de “perder o rumo”, na Ceilândia. “O livro ajuda a gente a entender melhor a vida, até a con-versar melhor”

Mudança de perspectiva

A couraça das palavrasProtege nosso silêncioE esconde aquilo que somos.

(Silêncio e Palavra, Thiago de Mello)

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260 261Segundo o diretor, o hábito de ler permite que os internos façam uma reflexão sobre

suas vidas: “Isso faz toda a diferença”

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“A leitura ajuda na hora de fazer uma carta pra juíza, pra família”, diz um dos

internos. E outro completa: “Ajuda a falar melhor, é bom pra forma de pensar”

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Antes de encaminhar o infrator para uma das sete unidades de internação de Brasília, o juiz da Vara da Infância e da Juventude pode determinar o aten-dimento em regime aberto, com medidas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade, ou em semiliberdade. Neste último, ele fica em uma casa socioeducativa, na comunidade, e passa o fim de semana com a família.

A medida é fixada de acordo com a gravidade do ato e o contexto familiar e social. O juiz tem 24 horas para definir, esclarece a diretora de Interna-ção e coordenadora do Sistema Socioeducatico da Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude, Tatiana Soares. “A lei determina parâmetros para garantir os direitos dos jovens.”

A proposta é especializar os procedimentos e o primeiro passo é traçar o perfil dos que chegam. Todos, segundo Tatiana, devem ser separados de acordo com os atos cometidos, idade, compleição física. “O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê o desenvolvimento das medidas respeitando-se esses dados.” Os cuidados fazem parte da missão de oferecer aos infratores a oportu-nidade de virar o jogo para o “lado positivo da vida”, como queria Cora Coralina.

A escritora partiu deste mundo, em 1985, sem imaginar que aquela década marcaria o início de uma escalada perversa de violência no país. Somente com uso de armas de fogo, como as apreendidas com jovens que chegam à Unire, o número de homicídios disparou de 8.710, em 1980, para 44.861, em 2014 – um aumento brutal de 415%, com 967.851 vidas perdidas, em 34 anos.

No mesmo período, a população cresceu apenas 65%, compara o pes-quisador Julio Jacobo Waiselfisz, no Mapa da Violência 2016, um profundo estudo sobre os impactos das armas de fogo no crescimento da violência. Baseada em dados do Subsistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS), IBGE e Ministério da Justiça, a pesquisa destina-se a apoiar políticas públicas de prevenção.

Entre essas políticas, Jacobo cita o Estatuto do Desarmamento. “Muito se argumenta a favor e contra. Mas a fria realidade dos números é incon-

testável.” O Mapa mostra que a política de desarmar a população anulou a tendência de aumento dos homicídios nos primeiros anos da lei, aprovada em 2003. “O impacto foi uma queda de 15,4% em mortes por armas de fogo no país”, comprova Jacobo.

Mas o pesquisador alerta: “Só isso é insuficiente. É preciso mais medi-das”. E há pressa. O recado vem nas entrelinhas de estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), em 2016. Entre os 2,9 milhões de habitantes de Brasília, 24,1% – cerca de 700 mil – são jovens de 14 a 29 anos, e a maioria mora nas cidades em situações mais graves de vulnerabilidade. O Varjão lidera, com 36%.

Embora reconheça o impacto da pobreza no aumento da criminalidade, a antropóloga Alba Zaluar não a considera determinante. “É preciso buscar as razões da violência além da simplificação da estrutura de classes, consi-derando que há segmentos e particularidades em cada uma.” Especialista em violência juvenil, ela defende que antes de se iniciar qualquer projeto de prevenção é preciso refazer as redes de solidariedade locais.

“Os códigos de conduta local e a articulação da vizinhança têm grande poder de controle social”, afirma Alba. Na Europa, estudos apontam que “a exclusão, vista de forma ampla, é geradora de violência”, compara. A esca-lada de homicídios reforça a urgência do controle. O alerta dispara quando a taxa de assassinatos por cem mil habitantes se aproxima de dez. A partir daí, é epidemia de violência, avisa a Organização Mundial de Saúde (OMS).

No DF, o sinal vermelho aponta 25,6 em 2014, só com uso de arma de fogo (mais que o dobro do limite). No mesmo ano, o Brasil registrou 21,1, contra zero – isso mesmo, zero! – no Japão, Islândia, Luxemburgo, Escócia e Inglaterra. Nos países que se orgulham de zerar as taxas, os números re-sultam de pesados investimentos em educação básica, formação profissional e atenção preventiva à infância e à juventude.

Onde não é assim, o custo maior recai na política de remendar as negli-gências. No Brasil, o atendimento aos infratores juvenis exige investimentos cada vez mais pesados em equipes de saúde física e mental, educação e outras especialidades. Para cumprir o ECA, a segurança interna da Unire é feita por atendentes de integração socioeducativa, como são chamados os profissionais de nível superior que ocuparam o lugar dos policiais. Com as novas normas, a polícia só atua do lado de fora dos muros.

Mas tanto o trabalho dos policiais como o das equipes internas, de acordo com a diretora de Internação, segue a sintonia com as gerências. “Todos os setores participam, dialogando na busca de possibilidades de um novo

V. H.* decidiu, depois de ler Falcão, meninos do tráfico na bi-blioteca, que não quer para si a dramática falta de futuro retratada com crueza por MV Bill: ‘Quero sair daqui e con-tinuar estudando, conseguir fazer o Enem, quero tentar’”

Jovens e vulneráveis

Seja bala, relógio,ou a lâmina colérica,é contudo uma ausênciao que esse homem leva.

(João Cabral de Melo Neto)

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mundo para eles”, explica Tatiana. A valorização da leitura é prioridade nesse esforço coletivo. “O projeto biblioteca é integrado com a escola. É muito rico, porque aproxima a equipe, motiva.”

A qualificação dos agentes e o incentivo que eles dão aos internos para que adotem o hábito de ler fazem a diferença no trabalho. Flagrado na Cei-lândia Norte ao participar do tráfico de drogas, V. H.* decidiu, depois de ler Falcão, Meninos do Tráfico na biblioteca, que não quer para si a dramática falta de futuro retratada com crueza por MV Bill.

A história real dos garotos marcados para matar ou morrer nas favelas cariocas ajudou o interno de dezoito anos de idade a traçar uma linha de corte entre o peso do passado e o sonho do presente e a enxergar novos ca-minhos. “Quero sair daqui e continuar estudando, conseguir fazer o Enem, quero tentar”, revela o adolescente.

“Houve um avanço”, comemora Eloi. “A gente conversa com facilidade, há uma paz.” As palavras apontadas pelos internos para significar o valor do espaço Cora Coralina contam um pouco dessa mudança. Com a mesma rapidez e espontaneidade da hora de revelar a infração cometida, os oito jovens resumem: “Sabedoria!” “Pensamento!” “Viagem!” “História!” “Li-berdade!” “Aprendizado!” “Viagem!” “Liberdade!”

“Minha trajetória na socioeducação começou no extinto Centro de Aten-dimento Juvenil Especializado, o CAJE. Para atrair os jovens usava jornais, revistas e livros com títulos interessantes. Mostrava que tudo ficaria mais fácil à medida que lessem mais e mais. Ao vir para a Unire, tive a imensa ajuda do projeto Bibliotecas do Saber, que nos doou mobiliário e acervo.

A parceria deu outros frutos, como os concursos literários, a Copa Gasol de Xadrez, o Chá com Letras. Como reflexo dessas ações temos melhorias no comportamento em aula e nas alas, no desempenho escolar, na convi-vência entre eles, na fluência verbal. Observamos o despertar deles para as poesias, letras da MPB e a leitura.

Não temos a pretensão de transformar nossos alunos em grandes leitores, mas sim tornar mais humana, respeitável e menos dolorida essa fase que deveria ser de puro encantamento na vida deles. A biblioteca mostra que é possível, sim, viajar e enxergar além das grades, se acreditarem num mundo melhor, tendo como passaporte o livro.”

A biblioteca mos-tra que é possí-vel, sim, viajar e enxergar além das grades, se acreditarem num mundo melhor, tendo como pas-saporte o livro”

“Depoimento – José Francisco Eloi, professor

Livros como passaporte

Novas possibilidades: “A biblioteca é uma ferramenta para levar os jovens a uma mudança de perspectivas”

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Com os livros vieram também atividades como a Copa de Xadrez:

despertar de novas habilidades