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Discussões sobre as relações entre Brasil e Portugal e sua influência na história da construção de Brasília.
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1
Portugal, Brasil, Brasília: notas sobre estratégias.
Antonio Carlos Carpintero1
Resumo: Este texto compara condições, gerais e técnicas, disponíveis, no final do século
XV, para as navegações portuguesas e espanholas, com aquelas, no final do século XVIII,
que levaram a localização da nova capital do Brasil pelos republicanos, identificando
algumas semelhanças de objetivos e estratégias.
Abstracts: This issue compares general and technical conditions available on late
fourteenth century for the portuguese and spanish navigations, with these, on late
eigtheeenth, that set the location of the new capital of Brazil by republicans, exposing some
likeness of targets and strategies.
A Constituição da recém instalada república determinou, em 1891, a
transferência da capital para o planalto central do Brasil. Luiz Cruls comandou a
expedição que localizou e demarcou o quadrilátero dentro do qual viria, futuramente,
ser construída a cidade e instalado o distrito sede da federação. A capital no interior do
país era, naquele momento, condição de defesa e segurança do governo contra os
ataques militares. A tecnologia bélica da época considerava o bombardeio pela
artilharia, pelos canhões, embarcados em navios ou carregados em terra. No interior a
ameaça vinha apenas pelos de terra mais fáceis de conter.
Esta, contudo, não era a única razão para a determinação constitucional. A
navegação era o principal meio de transporte intercontinental. Considerava-se que o
Brasil era povoado apenas na costa e a área central do planalto Brasileiro pouco
povoada, despertava cobiças externas sobre nosso território. As cidades brasileiras
estavam no litoral, ou próximas dele: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza,
Belém, mesmo São Paulo, com o porto de Santos. As excessões, Manaus e Cuiabá, em
áreas interiores, tinham acesso por navegação fluvial. A planície Amazônica e as
encostas contíguas dos planaltos Brasileiro e das Guianas, quase vazias de populações
brancas, com potenciais riquezas, despertava interesses.
No final do século XV, europeus, principalmente portugueses e espanhóis
chegaram ao continente em busca de riquezas, novas terras para agricultura, minérios,
1 - Antonio Carlos Carpintero é professor da UnB-FAU. Nasceu em Marília-SP, 1945. Viveu e estudou
até o segundo grau em Campinas-SP. Diplomou-se em arquitetura pela UnB – Brasília-DF, em 1970,
com mestrado, 1991, e doutorado, 1998, na USP – São Paulo-SP. Foi Prefeito de Porto Velho-RO e
atuou, como arquiteto, urbanista, pesquisador e professor universitário, em Cuiabá-MT, São Paulo-
SP e em Vitória-ES.
2
plantas, se impuseram aos povos que aí viviam. Para isto se valeram dos recursos de que
dispunham então: naturais, humanos e tecnológicos como a construção de naves, as
técnicas de navegação, bússolas, astrolábios, os armamentos de pólvora para curta e
longa distância, assim como o conhecimento dos mares e de territórios até então
supostamente desconhecidos. Para tirar das condições naturais o melhor proveito
econômico, político e social, se valeram de estratégias que pressupunham o melhor uso
das técnicas da época.
Segundo o historiador português Jorge Couto, os interesses estratégicos dos
portugueses concentravam-se no caminho marítimo para as Índias. Diz ele que
... “a última década do século XV foi ... caracterizada pela intensa competição luso-castelhana
para obter a primazia no delineamento de uma rota marítima para o Oriente” (COUTO:121).
Dispunham, para isso, de técnicas de construção de embarcações apropriadas,
de navegação guiada pelos astros, o conhecimento dos ventos e das correntes marítimas.
Mas tinham objetivos que íam além da simples exploração de possibilidades. Couto
afirma:
(...) Em síntese, as variáveis geopolíticas, diplomáticas, econômicas e técnicas referidas apontam
incisivamente no sentido de que “o afastamento da frota para Ocidente estaria no plano da imperial
Coroa”,2 pelo que Cabral terá recebido instruções reservadas de D. Manuel I para. “... no decurso
da sua viagem para o Índico, explorar a região oeste do Atlântico Sul3 com o objetivo de encontrar
o prolongamento Austral do continente visitado por Colombo, Caboto e Duarte Pacheco, a fim de
aí estabelecer uma escala destinada a apoiar o funcionamento da rota do Cabo.” (COUTO:182).
O ‘afastamento para o ocidente’ proposto pelo rei tinha uma razão importante
no quadro da navegação do século XV: as correntes marinhas que, se bem aproveitadas,
aumentam as velocidades de deslocamento das naus.
No oceano Atlântico, uma delas, denominada Sul-Equatorial, corre ao longo da
linha do equador, no sentido leste-oeste, ou seja, da África para a América. Na altura do
cabo São Roque, ela se bifurca para noroeste, até a Venezuela, e para sudoeste,
margeando o litoral brasileiro. A rota noroeste favoreceu a viagem de Vicente Pinzón.4
A outra nos importa mais diretamente. Recebe o nome de corrente do Brasil e
acompanha a costa brasileira de nordeste para sudoeste seguindo o litoral, até pouco ao
2 - Nota do original - (230, p.28. COUTO:182) - Manuel Nunes Dias, “O descobrimento do Brasil:
tratados bilaterais e a partilha do Mar Oceano”, in Studia (Lisboa), 25(1968).
3 - Nota do original - (231:136. COUTO:182) - Cfr. Damião Peres, O descobrimento do Brasil por
Pedro Álvares Cabral. Antecedentes e Intencionalidade. Porto-Rio de Janeiro, 1949.
4 - Ver a propósito: ESPÍNOLA, Rodolfo. 2001. Vicente Pinzón e a descoberta do Brasil. Rio de
Janeiro-RJ, TopBooks.
3
sul de Porto Seguro,5 quando muda seu curso para leste, em direção a África,
acompanhando, ligeiramente pelo norte, o trópico de Capricórnio. Ao encontrar o litoral
africano, na altura de Angola e da Namíbia, inflete novamente para norte, agora com o
nome de corrente de Benguela até que, no Golfo da Guiné, toma novamente o curso
para oeste retornando a corrente Sul Equatorial. Isso conforma um círculo de correntes
em sentido anti-horário pelo Atlântico Sul, entre o equador e o trópico de Capricórnio,
entre a América e a África. A mudança de rumo na costa brasileira, se dá pelo confronto
com uma corrente polar, fria, denominada das Malvinas, que sobe pela costa argentina,
uruguaia e brasileira, em sentido nordeste e explica o nome do cabo Frio.6
No Atlântico norte a corrente das Canárias, bordeja a costa africana desde o
Marrocos até o Senegal e prossegue em direção sudoeste até encontrar a corrente
Equatorial e conformando grosseiramente um círculo no sentido horário.
A ordem real para Cabral afastar-se da costa africana significava o máximo
aproveitamento destas correntes para atingir o cabo da Boa Esperança7. As viagens de
Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, contornando proximamente o continente africano,
implicava navegar contra a corrente de Benguela, o que limitava a velocidade de
navegação.
O aproveitamento do círculo de correntes em sentido horário, conduz com mais
facilidade ao cabo da Boa Esperança se a navegação afastar-se do litoral africano e
aproximar-se da costa brasileira. O estabelecimento de uma escala, como Porto Seguro,
na altura dos 16º27’S, perto do ponto de inflexão para leste das correntes, era um apoio
importante para esta viagem. A viagem para as Índias ficava mais fácil.
Alguns dos principais historiadores brasileiros contemporâneos, como Boris
Fausto e Carlos Guilherme Mota mencionam, ao falar das razões das navegações
ibéricas, o astrolábio, instrumento de medição de altura ou ângulos verticais dos astros.
Este instrumento permite uma determinação precisa de latitudes mas é inútil para
longitudes. Disto resulta, entre os europeus dos séculos XV, XVI e XVII, o uso da
latitude, os paralelos, como principal definição de localização, com o consequente uso
de expressões como além do equador, ou no trópico de Capricórnio assim como a
definição de lugares apenas pela latitude sobre o litoral. A definição por léguas –
5 - Porto Seguro está nas coordenadas 16º27’S e 37º03’W Gr.
6 - O cabo Frio está nas coordenadas 23º00’S, e 41º58’W Gr.
7 - O cabo da Boa Esperança está nos 34º25’S.
4
medida linear – do tratado de Tordesillas, com todas as incertezas que pairam sobre sua
interpretação é, talvez, o resultado mais evidente dessa insuficiência técnica. A bússola,
já então conhecida era coadjuvante, já que indica somente direções e sentidos. Seu uso
combinado com o astrolábio permitia apens alguma aproximação na definição de
longitudes, por triangulação, já que não se podia ainda contar com cálculos algébricos.
Nas discussões que antecederam a bula Intercœtera, de 1492, e o tratado de
1494, as divisões propostas eram feitas por paralelos, ou seja, por latitudes.8 Do mesmo
modo as divisões das capitanias hereditárias criadas era feita por latitudes, apesar de
medidas por léguas na costa.
O continente americano já era de alguma forma conhecido, como reconhece o
mesmo Jorge Couto, quando fala do prolongamento austral do continente visitado por
Colombo. Ao menos Colombo já havia visitado o continente antes de Cabral. Outros
autores sustentam, indiretamente, esta tese quando se referem a uma intencionalidade
no ‘descobrimento’ ou achamento’. Gavin Menzies, (2002), levanta uma hipótese no
mínimo intrigante.
Sustenta que, na terceira década do século XV, os chineses haviam feito
navegações por toda a parte do globo, inclusive o sul da América, a costa hoje
brasileira, uruguaia, argentina e chilena. Destas navegações, feita por astros9 com
medições precisas de latitudes e longitudes, resultaram mapas, cujos remanescentes
chegaram as mãos de portugueses e, possivelmente, de espanhóis, o que produziu
efeitos na geopolítica na época dos ‘descobrimentos’. Neste caso estavam em disputa
territórios conhecidos.
O continente sul americano pode ser grosseiramente compreendido como uma
grande planície, sobre a qual se elevam os Andes, na borda ocidental, ao longo da costa
do oceano Pacífico, e dois planaltos, o Brasileiro, conformando o lado oriental, do
oceano Atlântico, e o das Guianas, menor e mais ao norte aproximando-se das últimas
elevações dos Andes venezuelanos.10 Grandes rios correm por essas planícies por entre
as elevações: O Orenoco, entre o planalto das Guianas e os Andes, com sua foz, em
8 - Sobre o assunto ver COUTO, obra citada.
9 - A medição de longitude era feita, pelos chineses, pela medição de tempo de eclipses da lua
relacionada a passagem de determinadas estrelas pelo meridiano local comparado a feita em um
observatório na China. Na Europa, a determinação de longitudes se deu apenas no século XVIII. Ver
a propósito: MENZIES:481-92; Apêndice 4, A determinação de longitudes pelos chineses.
10 - Ver a propósito: CRULS:166-72.
5
delta, imediatamente ao sul da península de Paria, onde Colombo pisara em sua quarta e
última viagem; o Amazonas entre o planalto Brasileiro e o das Guianas, com sua ampla
e complexa foz sobre a linha do Equador, se estendendo desde os 48º até os 50º W
Gr.;11 e o Paraguai12, entre os Andes e o planalto Brasileiro, fluindo pelo rio Paraná,
para o amplo estuário do rio da Prata, entre os 35ºS e 55º W Gr., na borda do mar, e os
36º20’S e os 56º 50’ W Gr. ao fundo, onde se localiza a cidade de Buenos Aires13.
Cabeceiras de alguns rios da bacia Platina e Amazônica14 estão muito próximas entre si,
a beira da região inundável no centro do continente, o Pantanal ou Chaco, o que permite
compreender o mito da ilha Brasil definindo o planalto Brasileiro.
O tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 entre os reis Católicos de uma
Espanha recém unificada sob os cetros de Aragão e de Castela, respectivamente
Fernando e Isabel, e João II, rei de Portugal e chanceler da Ordem de Cristo,
estabeleceu, para separar terras a pertencerem aos respectivos reinos
... uma raia ou linha direita de pólo a pólo, a saber do pólo árctico ao pólo antárctico, que é de
norte a sul. A qual raia ou linha se haja de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e setenta
léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente, por graus ou por outra maneira como
melhor e mais prestes se possa dar ... (Tratado de Tordesilhas)
Há controvérsias sobre o significado real deste acordo ou seja, da localização
desta raia ou linha de polo a polo. Sem entrar em pormenores temos, de um lado, Jorge
Couto, que afirma
(A linha a)... 370 léguas, ... proporcionou a Portugal ... a faixa territorial brasileira compreendida
entre a baía de Maracanã15 (na costa oriental do Pará) e a Cananéia (na costa paulista).
(COUTO:146).
e, de outro Paulo Bertran dizendo
Pelo meridiano de 48º35’25” da linha de Tordesilhas ... como nos mostram com precisão os mapas
do Serviço Cartográfico do Exército. (BERTRAN:153-4.)
A versão mais favorável aos interesses de Castela é a do historiador português
enquanto o Serviço Cartográfico do Exército Brasileiro adota a interpretação, divulgada
11 - O rio Amazonas nasce nos Andes ao sul do Peru aos cerca de 15ºS e 73ºW Gr., e corre para norte até
as proximidades dos 5ºS e 76ºW Gr., quando toma o curso geral Oeste-Leste, até a foz. Seus
afluentes da margem direita, sul, mais propriamente, separam os Andes do planalto Brasileiro. O rio
Madeira com seus formadores, o Guaporé especialmente, contornam o extremo ocidental deste
altiplano.
12 - O rio Paraguai nasce na encosta sudoeste do planalto Brasileiro e corre de norte a sul a planície
inundável do Pantanal - ou Chaco.
13 - Buenos Aires se localiza aos 35º20’S e 58º25’W Gr.
14 - o rio Jauru, afluente do Paraguai, e o rio Guaporé, formador do rio Madeira, nascem a 30km de
distância um do outro e correm paralelos por cerca de 100km em direção sul até que o Guaporé
descreva uma curva e siga para noroeste, constituindo hoje, fronteira entre Brasil e Bolívia.
15 - A barra da baía de Maracanã está aos 0o37’S e 47º30’W Gr.
6
oficialmente no Brasil, que se identifica aos interesses de nossos colonizadores e que
parece ser, de fato, a mais próxima de uma real intenção dos soberanos em 1494.
Estudando a viagem de Vicente Pinzón ao continente sulamericano, Espínola,
apoiado em Harisse, aponta em um mapa (ESPÍNOLA:44.)16 seis alternativas diferentes
para a longitude da linha divisória resultante do tratado de Tordesilhas, cada uma
atribuída a uma fonte diferente. No texto, se refere apenas a duas: o planisfério de
Cantino,17 de 1502, a que atribui a longitude de 40º30’W Gr.; e um mapa de Diogo
Ribeiro, de 1529, que traça a linha aos 49º40’W Gr. No mapa, constam ainda, quatro
outras marcações: a de Oviedo, 1543, aos 45º17’W Gr.; a de Ferrer, 1523 (?), 45º37’ W
Gr.; a de Enciso, 1518, 45º30’ W Gr.; e a de The Badajoz Experts, 1504, aos 46º30’ W
Gr. Encontramos ainda a versão de Gabriel Soares de Souza que diz:
... fazendo baliza na ilha de Cabo Verde,18 de barlavento mais ocidental, que se entende a de Santo
Antão, e contando dela vinte e um graus e meio equinociais de dezessete léguas e meia de cada
grau, e lançada daqui uma linha meridiana de norte-sul, que ficassem as terras e ilhas por descobrir
para a parte do Oriente, da Coroa de Portugal; ... (SOUZA, 1587:37).
Isso levaria a admissão de uma longitude ainda mais favorável ao reino de
Castela, nos cerca de 46º52’W Gr. Entretanto, mesmo se contradizendo sem o perceber,
ele prossegue no mesmo parágrafo:
... fica o Estado do Brasil da dita Coroa, qual se começa além da ponta do rio das Amazonas da
banda de este,19 pela terra dos charybas, donde se principia o norte desta província, e indo
correndo esta linha pelo sertão dela ao sul parte o Brasil e conquistas dele além da baía de São
Matías, por quarenta e cinco graus pouco mais ou menos, distantes da linha equinocial, e
altura do pólo antártico, e por esta conta tem de costa mil e cinquenta léguas, como pelas cartas se
pode ver segundo a opinião de Pero Nunes,20 que nesta arte atinou melhor que todos os de seu
tempo. ... (SOUZA, 1587:37)
Adotando uma linha na altura do golfo de San Matías, e atribuindo a ela os
quarenta e cinco graus pouco mais ou menos, Souza se refere a latitude com razoavel
acerto. De fato o, atual, golfo de San Matías no litoral da Argentina, se localiza entre os
41ºS e os 42ºS, de latitudes, e dos 63ºW Gr. aos 65ºW Gr., de longitudes, em seu
fundo21. A linha de 63ºW Gr. próxima da definição dos 45º S pouco mais ou menos, da
16 - HARISSE, Henry. The discovery of North América. Mencionado em ESPÍNOLA:295.
17 - O planisfério de Cantino é descrito em Espínola (:43-4) como elaborado por um cartógrafo
português, não identificado, por encomenda de um espião italiano, Alberto Cantino, que o remeteu
ao duque de Ferrara, Hércules de Este.
18 - Nota do original: (09) – O acordo aqui descrito é o conhecido Tratado de Tordesilhas, assim
denominado por ter sido assinado na povoação castelhana de Tordesillas, a 7 de junho de 1494, pelos
reis de Portugal e Castela.
19 - Nota do original: (10) - Em Varnhagem (1851 e 1879), “banda de oeste”.
20 - Nota do original: (11) - Em Varnhagem (1851 e 1879), “Pedro Nunes”.
21 - O fundo do golfo de San Matías está entre os 40º48’S e os 42º16’S em uma linha quase reta, aos
aproximadamente 65º06’ W Gr. Os 42º04’S estão no extremo norte da península Valdés, província
de Chubut, Argentina. O paralelo dos 42ºS divide as províncias argentinas de Rio Negro e Chubut.
7
descrição de Gabriel Soares de Souza, cruza a costa norte da América do Sul na
península de Pária, hoje na Venezuela. Este meridiano está a mais de 16º diferente do
admitido por ele próprio.
Considerando o fato do autor ter escrito seu Tratado Descritivo em 1587,
portanto na vigencia da união das coroas portuguesa e espanhola, sem fusão de Estados,
pode-se hoje admitir a hipótese do erro decorrer de interesses da corte de Lisboa.
Contudo, a contradição do autor, evidencia o erro de longitudes. E mostra,
principalmente, um interesse no domínio das embocaduras do Amazonas e do Prata,
para o contrôle da ilha Brasil, o planalto Brasileiro. Tratava-se da ocupação pelo
contorno da ‘ilha’, para posterior subida ao altiplano.
A cidade de São Vicente foi fundada em 1532 por Martim Afonso de Souza
por ordem real, para marcar a posição portuguesa na costa já disputada pelos
castelhanos. Situa-se cerca aos 23º58’07”S e 43º23’16”W Gr, em uma ilha com o
mesmo nome, a 15km do sopé da serra que eleva uma parte importante da porção
meridional do planalto Brasileiro. A ilha, na baía de Santos, é cercada de uma planície
costeira com cerca de 15 quilômetros de largura, com canais navegáveis até o sopé da
serra do Mar, ou de Paranapiacaba. Por esta serra subia, desde antes da chegada dos
europeus, um caminho ou trilha indígena que recebeu, neste trecho o nome de Caminho
do Mar, e dava acesso a um extenso planalto inclinado para oeste, para o interior, para
além da linha demarcada em Tordesillas. Assim, este planalto tinha em sua borda mais
ou menos proxima ao mar suas maiores elevações. No trecho próximo a São Vicente,
estas elevações tem o nome de serra do Mar. Os conquistadores lusos tinham uma
noção, embora imprecisa, da proximidade da extremidade sul no litoral da raia de
Tordesilhas.
Cerca de 80km em direção nordeste, no altiplano, a 20km em linha reta da
costa, nasce um curso d’água que corre pelo planalto bordejando suas elevações ao
longo do litoral, para oeste-sudoeste. Ao chegar em seu ponto mais próximo de São
Vicente, cerca de 60km em linha reta, na altura do trópico de Capricórnio, já como um
rio, muda seu curso para oeste e depois noroeste e vai desaguar no rio Paraná, a mais de
1.000km de distância. Este rio, o Tietê, foi no século XVII rota importante dos maiores
exploradores do planalto Brasileiro, os bandeirantes.
8
No no altiplano entre o alto da serra e o trecho deste rio mais perto de São
Vicente, haviam aldeamentos de populações autóctones, indígenas, que tinham
caminhos de subida da serra além de outros. Foi neste altiplano, as vezes denominado
planalto de Piratininga, que se instalaram alguns dos sítiosque vieram a ser importantes
colônias de europeus: Santo André da Borda do Campo, em 1553, e São Paulo, em
1554.
Entre a planície costeira e o planalto de Piratininga haviam, a época da chegada
dos europeus, caminhos indígenas, que acabaram por ser absorvidos pelos
colonizadores, dos quais parecem ser os mais utilizados na época, o caminho dos Índios
e o de Piaçaguera, conforme descreve Gonçalves. (1998:31-41)
As localidades de Cananeia, aos 25º01’S e 47º35’ W Gr., e Iguape, aos 24º42’S
e 47º33’W Gr., se situam em um braço de mar, quase uma laguna, com o nome de Mar
Pequeno, que separado do oceano Atlântico pela ilha Comprida, no litoral sul do estado
de São Paulo. Iguape, mais ao norte perto da foz do rio Ribeira de Iguape e Cananeia,
mais ao sul em uma ilha com seu nome. Iguape ficava, originariamente, em uma
restinga entre uma curva do rio e o Mar Pequeno. A foz do rio, ficava então diretamente
no oceano, junto a abertura norte do Mar Pequeno, cerca de 15km este nordeste de
Iguape. Nesta época a navegação chegava a cidade de Registro, aos 24º30’S e 47º50’W
Gr., cerca de 100km rio acima. Em meados do século XIX, foi aberto um canal de
ligação entre o rio Ribeira de Iguape e o Mar pequeno, o Valo Grande, para encurtar o
percurso em pouco mais de 10km. Resultou no assoreamento do rio e a extinção da
navegação.
O rio Ribeira de Iguape forma-se da confluência de tres rios: o rio Ribeira, o
rio Jacupiranga e o rio Pariquera-Açu. O vale do Ribeira, atravessa a Serra do Mar. Nas
nascentes está muito proximo das cabeceiras do rio Itararé, que flui para o
Paranapanema e para o Paraná.
O rio Paranapanema nasce no município de Capão Bonito-SP, aos 24°17'S e
48°16'W Gr., e corre quase exatamente no sentido leste oeste, até a foz, no rio Paraná.
Após receber, por sua margem esquerda, sul, o rio Itararé, faz a divisa dos estados de
São Paulo e Paraná. Próxima a sua foz ficava a missáo jesuítica do Guairá, de índios
Guarani, destruída pelos bandeirantes paulistas no século XVII.
9
O meridiano de Tordesilhas, definido pelo Serviço Geográfico do Exército nos
48º35’25” W Gr., passa a pouco mais de 100km a oeste da barra do Valo Grande22, do
rio Ribeira de Iguape. Segundo a versão de Jorge Couto, 47º30’W Gr., está a pouco
mais de 6km a leste da mesma barra. A foz original do rio está cerca de 10km a leste
deste marco.
O porto de São Francisco do Sul, aos 26º14’S e 48º38’W Gr., se localiza na
ilha de São Francisco, no litoral norte do estado de Santa Catarina. A cidade está a beira
na baía de Babitonga que faz parte de um complexo de ilhas rios e canais que acessam o
interior, até cerca de 30km, semelhantes aos de São Vicente, chegando também, ao pé
da serra: o rio Palmital, o Cubatão do Norte, nas proximidades da cidade catarinense de
Joinville. A cidade de Guaruva-SC marca o pé da serra e o ultimo trecho navegável do
rio Palmital. Dista 25km do mar em linha reta, e 30 do porto de São Francisco do Sul a
sudeste. Do ponto tomado como as coordenadas de do lugar até a linha de Tordesilhas
adotada pelo Serviço Geográfico do Exército a distância é de 4,3km a oeste do
meridiano. Ficando pois este porto no limite da divisão deo mundo entre Castela e
Portugal, em território supostamente castelhano. Gonçalves nos dá conta que o
adelantado Cabeza de Vaca, vindo do reino de Castela, em 1542, para governar o
território platino em sua sede na cidade de Assunção (hoje Paraguai), desembarcou na
região de São Francisco do Sul, para dirigir-se a seus domínios.
O rio Iguaçú nasce cerca de 100km a nordeste de São Francisco do Sul, da
junção de dois pequenos rios, o Iraí e o Atuba, na região metropolitana de Curitiba, aos
25o29’S e 49º11’23”W Gr., corre cerca de 900km até desaguar no rio Paraná, na triplice
fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Temos assim, na costa meridional brasileira, três pontos estratégicos para a
colonização europeia no século XVI: São Vicente, Cananeia e São Francisco. Todos
eles em baías que permitiam o estabelecimento de portos. Todos eles em estuários ou
lagunas nas proximidades de rios em planícies que chegavam ao sopé da serra, da
elevação do planalto. Todos eles tinham, no altiplano próximo, nascentes de rios de
grande porte que corriam (correm) para o interior. Principalmente, todos estavam
próximos ao meridiano definido no tratado de Tordesilhas, ainda que não se soubesse
muito bem sua precisa localização.
22 - Wikipedia. Verbetes: rio Ribeira e rio Ribeira de Iguape. Acessados em 12 de Março de 2011.
IBGE. Carta do Brasil ao Milionésimo, folhas SG 22 – Curitiba, 1998; e SG 23 – Iguape, 1998.
10
Deve-se observar que desses rios, o Tietê corre para noroeste, apontando para o
centro do continente, ou para o centro do planalto Brasileiro, enquanto os outros dois, o
Paranapanema e o Iguaçu, fluem quase em linha reta para oeste acessando diretamente o
território guaraní, a região do Guairá.
Estes tres locais são apontados por Gonçalves (1998:09-10) como pontos de
entrada para o interior do continente, a ‘porta aberta para o sertão’. Estas três entradas
convergem, segundo o autor, para um único caminho, o Peabirú, que atingiria o império
Inca, passando pelo território Guarani. Por este, ou outros caminhos, o autor lista
diversos grupos entrando ou saindo por esses portos: Aleixo Garcia, em 1522-23, saindo
de São Francisco; Pero Lobo, em 1531, de Cananeia; Diogo Nunes, em 1539, de
Piratininga-São Vicente; Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, adelantado do Rio da Prata, em
1542, de São Francisco do Sul; o Padre Leonardo Nunes, em 1549, de Cananeia; o
próprio Pe. Manuel da Nóbrega, em 1553, de São Vicente, para fundar a aldeia de
Maniçoba, 50 léguas (260km) terra adentro; além de diversos outros indo ou vindo do
Paraguai. (GONÇALVES:11).
Pode-se observar que, destes três pontos, São Vicente teve um tratamento
diferenciado pela coroa portuguesa. Foi ali que determinou a Martim Afonso construir
um primeiro assentamento oficial. O que chama a atenção é o fato de estar o lugar aos
23°58'16"S,23 portanto, 0o32’, cerca de 27km, em linha reta, ao sul do Trópico de
Capricórnio. É um porto excepcional24, de muito facil localização com o instrumental da
época, com possibilidades de chegar ao alto do planalto com relativa facilidade, uma
vez que ali já existiam caminhos indígenas subindo a serra e, finalmente, no altiplano de
Piratininga, as cabeceiras de uma rio, o Tietê, que corria em direção ao centro do
planalto, tudo isso, a apenas 0o5’, cerca de 9km, ao sul do trópico.25 Uma cidade neste
altiplano, por uma característica sua, a de inclinar-se para dentro, teria condições de
acessar todo o interior. O domínio de sua borda mais elevada permitiria sua ocupação. O
planalto seria melhor dominado partindo de seu ponto mais alto.
A ênfase na mudança da Capital reflete bem o período inicial da República. Ela
significou, além do mais, um rompimento com o Império e um predomínio, no caso, dos
23 - Tomado na praia.
24 - A cidade de Santos, fundada alguns anos depois, no outro lado da mesma ilha de São Vicente, abriga
hoje um dos maiores portos brasileiros.
25 - Tomamos para referência de medidas a foz atual do rio Tamanduateí no Tietê.
11
militares positivistas que disputavam com os liberais, especialmente civis, o comando
da República.26 A transferência da capital para o interior configurava espacialmente a
centralização proposta pelos positivistas. Representava, por outro lado, uma decisão
militar de ocupação do território nacional a partir das terras altas, no centro do planalto
Brasileiro.
Floriano Peixoto, eleito vice presidente, pelo Congresso Nacional que resultou
da assembléia Constituinte, alçado a presidência pela renúncia do Marechal Deodoro da
Fonseca, decidiu, imediatamente, dar prosseguimento a determinação preconizada.
Assim, o ministro das Obras Públicas, Antão Gonçalves de Faria, em 17 de maio de
1892, mandou ao dr. Luiz Cruls, diretor do Observatório Nacional, as seguintes
instruções:
Em observância à disposição do artigo 3º da Constituição Federal, e para dar cumprimento
à resolução do Congresso Nacional que consignou na lei do orçamento em vigor a destinada à
exploração do planalto central da República e demarcação da área que tem de ser ocupada pela
futura capital dos Estados Unidos do Brasil, é nesta data nomeada a Comissão encarregada de tais
trabalhos, cuja direção é confiada ao vosso conhecido zêlo e provada competência.
No desempenho de tão importante missão deveis proceder aos estudos indispensáveis ao
conhecimento da po0sição astronômica da área a demarcar, da orografia, hidrografia, condições
cdlimatológicas e higiênicas, natureza do terreno, quantidade e qualidade das águas, que devem ser
utilizadas para abastecimento, materiais de construção, riqueza florestal, etc. da região explorada e
tudo mais que diretamente se ligue ao assunto que constitui o objeto de vossa missão. (CRULS:65)
A missão de Cruls era materializar a determinação. Os constituintes de 1891
haviam dado tão grande importância ao assunto, que alçaram a mudança da capital a um
dos elementos constitutivos da Nação já que colocaram a matéria no terceiro artigo da
Carta Magna, precedido somente pelos que definem o Estado Brasileiro e seu território.
Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a
República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e
indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.
Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutro
constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução
ao disposto no artigo seguinte.
Art 3º - Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400
quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabeIecer-se a futura
Capital federal.
Parágrafo único - Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a constituir um
Estado.27
26 - Cf. FAUSTO: 243-260;
e também MOTA: 549-602.
27 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao91.htm; Acessado em 28 março
2011.).
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Cruls, estava consciente de sua responsabilidade, e iniciou seu trabalho pelo
estabelecimento de seus pressupostos históricos para só então passar a interpretação do
terceiro artigo da Carta Magna. Ele introduz seu Relatório dizendo:
Quando, em maio de 1892, o governo mandou nos chamar, a fim de nos confiar a missão de
explorar o planalto central do Brasil e nele demarcar a área que, ..., deve ser reservada ao futuro
Distrito Federal, e aí ser oportunamente mudada a nova capital da União, não nos iludimos a
respeito da magnitude do assunto, e ao mesmo tempo da responsabilidade que ia pesar sôbre nós
perante o país inteiro, aceitando tão honrosa quanto espinhosa tarefa.
... os membros da Constituinte, ..., inspiraram-se nos trabalhos anteriores e já antigos de estadistas
nacionais de grande nomeada, sobre o magno assunto da mudança da capital do Brasil, para algum
ponto no interior do território. ...
A Comisão não podia desconhecer, pois, as bases históricas em que se assentava êste projeto sob
pena de desvirtuar o pensamento do legislador. ... (CRULS:49-50).
Cruls considera aqui o já então clássico artigo publicado em 1808 no jornal Correio
Braziliense,
O Rio de Janeiro não possui nenhuma das qualidades que se requerem na cidade que se destina a
ser a capital do Império do Brasil;
... os cortesãos ... se iriam estabelecer em um país do interior, central e imediato às cabeceiras dos
grandes rios, edificariam ali a nova cidade ..., e lançariam assim os fundamentos do ... império, ....
Êste ponto central se acha nas cabeceiras do famoso rio S.Francisco. Em suas vizinhanças estão as
vertentes de caudalosos rios, que se dirigem ao norte e ao sul, ao nordeste e ao sueste, ...
(CRULS:59-60)
Menciona também em seu histórico, o registro feito pelo Dr. Alexandre José de Melo
Morais, sobre instruções ministradas aos deputados de São Paulo, em 182128, entre as
quais uma que diz:
Parece-nos também muito útil que se levante uma cidade central, no interior do Brasil, para
assento da côrte ou da regência que poderá ser na latitude, pouco mais ou menos de 15 graus,
em sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável. Desse modo fica a côrte ou
regência livre de qualquer “assalto” e “surpresa” extrema, e se chama para as províncias
centrais o excesso da povoação vadia das cidades marítimas e mercantis. Desta côrte central
dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar para que se
comuniquem e circulem com toda a prontidão as ordens do govêrno e se “favoreça” por elas o
comércio interno do vasto Império do Brasil. (CRULS:61-2)
Refere-se ainda ao Visconde de Porto Seguro que, em 1834, dissera:
“E a primeira lição que devemos colhêr é a de, já em tempo de paz atendermos mais aos meios de
resistência que deve oferecer êste importante pôrto, do qual permita Deus que seja “quanto antes”
retirada a capital do Império tão “vulnerável”, aí na fronteira e tão “exposta” a ser ameaçada
de um bombardeio e sofrê-lo com grande prejuízo de seus proprietários, “qualquer inimigo”
superior no mar, que se proponha a arrancar do govêrno, pela ameaça, comissões em que não
poderia se pensar se o mesmo govêrno “aí” se não achasse.
E isto quando a própria Providência concedeu ao Brasil uma paragem mais central, “mais
segura” mais sã e própria a ligar entre si os três grandes vales do Amazonas, do Prata e do
São Francisco, nos elevados chapadões, de ares puros, “águas boas e até de abundantes mármores,
vizinho ao triângulo formado pelas três lagoas Formosa, Feia e Mestre de Armas, das quais
manam águas para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata ... . 29 (CRULS:62.)
E continua pouco adiante:
28 - Cruls se refere aqui a História do Brasil-Reino e Brasil-Império de Dr. Alexandre José de Melo
Morais, pagina 85 parágrafo 9, capítulo II, com o título Negócios do Brasil.
29 - Cruls se refere aqui a História Geral do Brasil, do Visconde de Porto Seguro, 1834; tomo II, pág
814.
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“na extensão que acabo de percorrer há, porém, outra região não menos apropriada à
colonização européia, ... constituindo assim o núcleo que reúne entre si as três conchas ou
bacias fluviais do país.
Refiro-me a bela região situada no triângulo formado pelas três lagoas - Formosa, Feia e Mestre de
Armas, com chapadões elevados a mais de 1.000 metros, como nesta paragem requer, para a
melhoria do clima, a menor latitude, favorecidos com algumas serras mais altas da banda do norte,
que não só os protegem de alguns ventos menos frescos dêste lado, como lhes fornecerão,
mediante a conveniente despesa, os necessários mananciais.30 (CRULS:62-3.)
O próprio Cruls prossegue indicando preliminarmente duas áreas:
São dois chapadões de fácila acesso qualquer dos quais prestaria assento a uma povoação, desde
logo com a perspectiva de poder estender-se até mais de um milhão de almas.
Qualquer deles fica acima de 1.000 metros sobre o mar, em solo firme, seco de fáceis escoantes
e oferece à vista, de um lado ao menos, horizontes muito dilatados.
É o primeiro denominado por alguns – o da Gordura, perto de quatro léguas ao O.N.O. da
Formosa, na paragem onde a um tiro de fuzil se vêem, umas das outras as cabeceiras dos ribeirôes
Santa Rita, vertente do rio São Francisco pelo rio Prêto, Bandeirinha, vertente do Amazonas pelo
Paraná e Tocantins, e Sítio Novo, vertente do Prata, pelo São Bartolomeu e grande Paraná. 31
... encontra-se logo adiante obra de légua e meia ao N.O. outra localidade ainda mais alta e muito
superior a esta ... (CRULS:63-4)
Os negritos nas citações são meus. Nos textos de estadistas do Império
levantados por Cruls para apoiar sua decisão, são recorrentes as temáticas de defesa da
capital, e a da centralidade para atingir as ‘diversas províncias e portos de mar’ vias
fluviais, interligadas por estradas de ferro ou por estradas, bem como a localização
próxima as três lagoas, ou a serra dos Pirineus. A lógica que preside tais condições são
as próprias de sua época. A capital no litoral é vulnerável ao bombardeio das marinhas.
Equidistante das províncias ela desenvolve o país equilibradamente. Colocando o centro
de poder no alto do planalto, nas nascentes dos rios, levará inevitavelmente a ocupação
do território pois a navegação é ainda naquela época um meio de deslocamento mais
fácil e barato. Colocando-se europeus, e seus descendentes, neste lugar são eles que
terão o controle do território nacional.
É, portanto, com base nessas premissas históricas que Cruls interpreta o artigo
terceiro da Constituição. Para isso estabelece como princípios. Primeiramente a
expressão planalto central.
Vejamos, em primeiro lugar, qual o sentido das palavras do art. 3º da Constituição, onde se
encontra a expressão planalto central do Brasil. É evidente que por planalto central se deve
entender a parte do planalto brasileiro mais central em relação ao centro do território, isto é, mais
próximo dêste. Esta é indubitasvelmente a única interpretação exata da expressão planalto central
que figura na Constituição. (CRULS:50)
30 - Cruls se refere aqui a uma Comunicação que o mesmo Visconde de Porto Seguro, dirigira “mais
recentemente”, ou seja posterior a 1834, ao Ministro das Obras Públicas.
A palavra despesa do texto tem aqui o significado de decarga, vazão do rio.
31 - Cruls era belga e escrevia em francês, daí certas incorreções de grafia: o córrego Bandeirinha corre
para o rio Paranã, não Paraná, o que dispensaria a designação grande Paraná. Da mesma forma,
grafa rio Paranoá, como Paranauá.
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Depois, especifica:
... o planalto brasileiro, cujas altitudes, segundo os geólogos mais autorizados, variam entre 300 e
1.000 metros ou superior a 1.000 metros. A única parte, porém, dêste planalto que nos interessa, é
evidentemente a mais elevada, portanto só trataremos daquela cuja altitude é de 1.000 ou acima de
1.000 metros. (CRULS:50)
Seleciona:
Este planalto ocupa grande parte dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, parte do estado de
Goiás, e estende-se sob forma de faixas estreitas, uma na Bahia, a leste do rio São Francisco, outra
ao oeste dêste mesmo rio, até os limites do estado de Goiás com os do Maranhão e do Piauí, outra
finalmente ao longo do litoral em direção ao sul, até o Rio Grande ...
... Das três faixas do planalto que acima mencionamos, duas há que por serem evidentemente
demais excênticas, não preenchem uma das mais importantes condições a que deve satisfazer a
região a demarcar, são: 1º aquela que se extende ao longo do litoral, em direção ao Rio Grande do
Sul; 2º aquela que se acha a leste do rio São Francisco. A terceira faixa, (...) se prolonga para o
norte, entre os vales do Tocantins e do São Francisco, mais central que as duas outras, ...
(CRULS:50-1)
Para concluir:
Deste planalto, porém, a única parte à qual cabe a denominação de central é aquela que se acha nas
proximidades dos Pireneus, no estado de Goiás, não somente por ser, na realidade a mais próxima
do centro do Brasil, como também, por se acharem aí as cabeceiras de alguns dos mais caudalosos
rios do sistema hidrográfico brasileiro, isto é, o Tocantins, o São Francisco e o Paraná.
(CRULS:51)
E, mais que concluir, avançar:
Não devemos nos limitar a considerar as condições atuais da questão, mas também as condições
futuras. Os grandes rios que nascem na região do planalto central do Brasil, e por um capricho
singular da natureza, têm suas cabeceiras, como que reunidas em um só ponto, estão na atualidade
e, infelizmente, incompletamente navegáveis, por achar-se o curso de suas águas obstruído em
muitos pontos. Devemos, porém, esperar que, com o correr dos tempos, raie o dia em que eles
virão a tornar-se navegáveis em todo o seu percurso; quando chegar êste dia, e que um sistema de
vias férreas ligar a nova capital com os grandes rios, cujas águas descem para o norte, para o sul, e
para o leste, então achar-se-á realizada a palavra profética do Visconde de Porto Seguro.
(CRULS:51-2)
Ficou assim determinada a região onde seria localizado o então futuro Distrito
Federal. No centro do planalto, nas terras altas, nascentes de três das maiores bacias
hidrográficas do Brasil, com o sentido de ocupar o planalto Brasileiro pelo topo.
Como resultado podemos ver que foi ocupada a encosta setentrional,
amazônica, do planalto. Os problemas de desmatamento da floresta tropical, no
Tocantins, no norte de Mato Grosso, no sul do Pará, e em Rondônia são a comprovação
insofismável do acerto desta política.
Cumpriu-se assim a política portuguesa que, no século XVI, localizou uma
cidade, São Paulo, também no alto do planalto, sob o trópico de Capricórnio, na
nascente de um rio, o Tietê, que apontava ao centro do planalto e ligada a um porto,
Santos, na mesma ilha de São Vicente, que garantia a comunicação e o suporte logístico
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da metrópole europeia. Desta cidade partiram as expedições que garantiram a ocupação
portuguesa do planalto Brasileiro até o rio Madeira e até a confluência dos rios Araguaia
e Tocantins, antes mesmo da celebração do tratado de Madri, em 1750.
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Brasília, 5 de abril de 2011
No prelo para publicação em: RILP. (Revista Internacional Lingua Portuguesa ???). – Cidades e Metrópoles. 2011. Lisboa, Portugal.