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Antonio Jeová SantosJuiz de Direito em São Paulo – Aposentado

DANO MORALINDENIZÁVEL

6.a EDIÇÃOrevista, atualizada e ampliada

2016

Santos-Dano Moral Indenizavel-6ed.indb 3 11/02/2016 17:40:02

Capítulo I

A CONSTITUIÇÃO E O DANO MORAL

Sumário: 1. O princípio neminem laedere na Constituição – 2. Preâmbulo da Constituição – 3. Doutrina dos direitos fundamentais – 4. A dignidade da pessoa humana como princípio fundamental na Constituição – 5. O homem como eixo central do direito e especialmente da Constituição Federal – o rito de passagem do patrimonialismo ao personalismo – 5.1. Não mais o homem enquanto produtor de renda – 5.2. O personalismo no Código Civil de 2002 – 6. Por que indenizar o dano moral – 6.1. Privação do bem-estar produzido pelo dano – 6.2. Função do dinheiro nas satisfações morais – 6.3. Um ato reprovável não pode ficar sem sanção – 7. Fundamento constitucional da proteção à pessoa – 8. O inciso X do art. 5.º da Constituição – 9. Tratados que versam sobre direitos humanos – 10. Mais além do pretium doloris.

1. O PRINCÍPIO NEMINEM LAEDERE NA CONSTITUIÇÃO

Remonta a Ulpiano a elaboração dos três grandes pilares em que o direito encontra-se assentado até hoje. Em Latim, Ulpiano mencionou que Juris praeceptum sunt haec: honestum vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. São princípios que, de par à conceituação de justiça, por-que em seu definir estará sempre presente o atribuir a cada um aquilo que é seu, contêm norma de intenso caráter moral, como o viver honestamente. A vulneração a essa regra pode ter como resultado algumas sanções no âmbito da consciência do sujeito que não norteia seus atos pelo viver de forma honesta. De forma reflexa, também pode ser jurídica, desde que o desonesto seja agente do poder público e cometa atos de improbidade e o ladrão que, com seus atos de rapinagem, comete o delito tipificado no art. 155, do Código Penal, cuja pena varia de 1 a 4 anos de reclusão, além do pagamento de multa.

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O alterum non laedere, concebido pelo gênio romano, infenso às abs-trações filosóficas, mas perene no elaborar regras para o bom viver do cotidiano, constitui todo o direito de danos, tanto na fase antiga como mo-derna. Viver na época atual, em que os conflitos na sociedade se sucedem, é algo que necessita da mais ampla proteção do direito. Porque o homem deve viver honestamente, a consequência direta é que não prejudique seus semelhantes. Quando ocorre o contrário, existe conduta imprópria, ilícita. O não causar dano a outrem surge do dever de fazer justiça, pois quem lesiona algo ou alguém, priva este último de alguma coisa, tira-lhe o que antes se aproveitava, seja porque estava em seu próprio ser (honra, intimi-dade, vida privada), seja em seu patrimônio material.

Em pelo menos cinco oportunidades, de forma direta, a Constituição se refere a danos e suas consequências. No art. 21, inciso XXIII, alínea c, relata que a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência da culpa. No § 6.º, do art. 37, ao versar sobre a responsabilidade objetiva do Estado, estatui que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. No capítulo reservado ao Estado de Defesa e ao Estado de Sítio, existe a regra de que a ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipó-tese de calamidade pública, fará com que a União responda pelos danos e custos deles decorrentes (art. 136, § 1.º, inciso II). Já no art. 216, § 4.º, versando sobre a Cultura, a Carta Magna exprime que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. E no § 3.º, do art. 225, vem expresso que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a san-ções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Mas é no art. 5.º que a Constituição garante o neminem laedere, ao expor sobre a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Considerados como direitos da personalidade, porque inatos, intransferíveis e imprescritíveis, ditos direitos dão origem a todos os outros direitos públicos subjetivos. Alarga-se a regra de não prejudicar terceiros em todos os 77 incisos do art. 5.º, repontando sem-pre a proteção do ser humano e os meios postos à disposição de qualquer pessoa (seja física ou jurídica, maior ou menor, brasileira ou estrangeira, etc.), para a efetiva garantia contra atos de terceiros, sejam particulares ou advindos do Poder Público.

Quando violado o dever genérico de não lesar o próximo ocorre, para o ofensor, um outro dever que, como se fosse o reverso da medalha,

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pode ser moral ou jurídico, obriga-o a indenizar. Se essa violação atinge a vítima, causando menoscabo no espírito ou detrimento no patrimônio, estar-se-á diante do dano moral e da lesão patrimonial, respectivamente. O ofendido pode dar a resposta traduzida no anseio de ser ressarcido pelo mal que o agravou.

A forma como o mal causado pode ser reposto, seja a título sanciona-tório ou compensatório, é dada por outras regras de direito.

É a responsabilidade civil. Responder, de forma simples, significa dar conta a outro dos atos cometidos. O responder, o indenizar, a responsabi-lidade civil, exsurgem quando existe o cometimento de uma ilicitude. O ato repudiado é contrário ao direito. O agente ofensor atua com dolo ou culpa. Ninguém deve causar dano a outrem. Mas se houver uma causa justificadora do ilícito, como a legítima defesa e o estado de necessidade, abrandada estará a responsabilidade civil.

O ideal é que a reparação ocorra in natura, com a reposição da coisa lesionada ao estado anterior. Esta seria a maneira adequada de ressarcimen-to. Em tema de direitos personalíssimos, tal não ocorre. Impossível haver a reparação da perda de uma vida ou da honra vergastada. O pagamento de uma soma em dinheiro, nestes casos, serve apenas para compensar o mal infligido, porque não há retorno ao statu quo ante.

O ressarcimento em dinheiro constitui a forma tradicional de indeni-zação. Quando a reparação é integral (quase sempre impossível nos casos em que houver ofensa a direitos da personalidade), satisfaz o credor, co-locando fim, em definitivo, à demanda que lhe deu origem. No caso de indenização por dano moral, o pagamento em dinheiro serve apenas como lenitivo. A perda de um braço, por exemplo, ainda que seja sofisticada a prótese que substitua o membro, jamais colocará fim ao padecimento e diminuição do ofendido. Este, com o montante em dinheiro, poderá ter alguns prazeres compensatórios, como a possibilidade de se dedicar a uma atividade de lazer antes impossível pela falta de dinheiro.

2. PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO

O crescimento e hipertrofia do direito público se verificaram no Sécu-lo XX, em face do aumento e consciência dos direitos fundamentais, ante-riormente chamados direitos individuais. Teve, como consequência lógica, a sua penetração em vários pontos do direito privado. O ingresso do Estado na economia, vislumbrado no dirigismo contratual que torna maleável o aforismo pacta sunt servanda, desde o ponto de vista ideológico com a so-

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cialização da economia, mais avizinha o Direito Constitucional do Direito Civil. Nossa Constituição, tão extensa, não fugiu à regra. É nela, na Carta Magna, que se encontram e se imbricam, os princípios básicos de todos os outros ramos do Direito. Os grandes lineamentos do ordenamento jurídico são ali estabelecidos, devendo as outras matérias de Direito adequarem-se à Constituição para que a norma não seja tida como inconstitucional ou, se anterior à nossa Constituição de 1988, não tenha sido objeto de recepção, tácita ou expressa.

Necessário, assim, perpassar a natureza jurídica do preâmbulo da Constituição, porque ele é um elemento básico e decisivo na interpretação das demais normas constitucionais, principalmente no que toca à dignida-de humana, ponto que faz desembocar o agravo moral se acaso desatendi-do o respeito a essa dignidade.

É o preâmbulo parte integrante da Constituição? O que ali vem elen-cado serve para que o intérprete busque o real significado do espírito que norteou o constituinte quando da elaboração da Magna Carta, ou funciona como se fosse algo isolado que não deve ser considerado pelo intérprete?

Seja como for, o preâmbulo da Constituição não pode ser ignorado por quem pretende verificar a pessoa em sua integralidade. O estudo do dano moral e, por consequência, do dano à pessoa (à luz da Constituição) não pode prescindir do preâmbulo. É lá que o constituinte resolveu arrolar todo um programa que visa a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

O traço essencial dos dizeres do preâmbulo é o destinatário certo. De um lado, o Estado brasileiro que deve assegurar o bem-estar social. De outro, em verdadeiro bifrontismo, a própria pessoa; o ser humano em toda a sua plenitude. Apenas o ser humano, seja sozinho, seja quando se reúne com outras pessoas em associações, pode vislumbrar e avaliar o caráter opressivo ou não de seus direitos individuais e procurar o bem-estar.

Conquanto não seja declaração cogente de normas e princípios a in-tegrar o direito positivo constitucional, não deixa o preâmbulo de ser uma expressão em que o constituinte, de maneira solene, formula o programa que vai permear todo o texto constitucional. O propósito do constituinte é posto à calva e tem um certo substrato jurídico, do qual o intérprete deve se servir. O preâmbulo aponta rumos. O que ali vem descrito é o anelo de quem elaborou a Constituição. Por isso, o que vem afirmado deve ser acompanhado por todos. Do contrário, o preâmbulo seria inútil, inócuo e não necessitaria constar nos pórticos das Constituições modernas. Os princípios diretivos – embora não sejam preceptivos – dominam todo o

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arcabouço e o sistema constitucional. Essa parte introdutória é regra que mostra os fins a que a Nação se propõe a alcançar. É a pedra de toque, utili-zada quando emergem dúvidas e está conforme a interpretação e prática da Constituição, conforme o ensinamento de Bidart Campos, visto no Manual de Derecho Constitucional, Tomo I, p. 317.

Serve o preâmbulo para deixar clara a fonte de onde promanou todo o texto constitucional: os “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte”. Em seguida, traça a finalidade da reu-nião, qual seja, “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça ...” Depois, é invo-cada a proteção de Deus, fonte derradeira da justiça e da razão. Por último, aduz sobre a promulgação, que obriga a todos, impondo o seu cumprimen-to.

O disposto no preâmbulo não pode encontrar contradição no corpo da Constituição. As causas, natureza e objetivos da Assembleia Nacional Constituinte mostram a ideia política existente à época da elaboração da Constituição e são elementos básicos de interpretação, porque não con-sistem em simples formulação teórica do constituinte, despida de obje-tivos a serem alcançados. Conquanto não tenha valor de direito positivo, o preâmbulo assume importância vital para o intérprete, porque introduz os elementos causais que vão direcionar o trabalho de interpretação e de integração do texto constitucional.

O preâmbulo da Constituição da República dá logo uma demonstra-ção completa da pretensão do constituinte: o personalismo, em oposição ao exacerbado patrimonialismo. Aqui, vale o ser humano como ente único e não intercambiável.

O preâmbulo rompe com as concepções antiquadas que permeou os ordenamentos jurídicos das Nações do Ocidente que, fulcrados em um patrimonialismo exacerbado, conheciam o ser humano apenas enquanto produtor de riquezas.

3. DOUTRINA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Um dos grandes conceitos da Ilustração inglesa é o liberalismo que, segundo Johanes Hirschberger (Breve História de la Filosofia, p. 203), colocou em seu programa os direitos inalienáveis do homem à liberdade, como os havia defendido Locke, como uma qualidade do direito natural. Estas ideias se propagaram e conquistaram o continente por meio de Mon-

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tesquieu, Voltaire e Rousseau e passaram à América, até entrar, por fim, em quase todas as constituições modernas, nos chamados direitos fundamen-tais do homem. Neste sentido, a Ilustração inglesa teve influência de forma totalmente positiva.

A Ilustração francesa é de uma modalidade distinta. É negativa, fria, hipercrítica, atrabiliária, vaidosa e orgulhosa. Luta contra o autoritário re-gime político da época, contra a autoridade dogmática da Igreja e contra a superstição da metafísica. O exemplo contrário é Voltaire, o grande gênio das letras francesas e o grande paladino francês da razão, da tolerância e dos direitos do homem, da liberdade, igualdade e fraternidade.

Várias doutrinas tentam explicar a existência dos direitos fundamen-tais. A doutrina francesa clássica, representada por Esmein, Barthélémy, Le Fur e Hauriou, considera que os direitos fundamentais são princípios inatos ao homem. São anteriores e posteriores ao Estado. Por isso, devem merecer proteção do ordenamento jurídico em que repousa a Nação. Fun-dados no contratualismo de Rousseau e nos jusnaturalistas, inspiradores da Revolução Francesa de 1789, consideram que, no plano estritamente jurídico, a declaração de direitos é inócua.

A dogmática jurídica alemã, exposta por Gerber, Laband, Merkel, Mayer e Giese, considera os direitos fundamentais como limites que o poder estatal antepõe ao próprio Estado. Os direitos públicos subjetivos são simples efeitos do que contém o direito objetivo. O Estado deve se abster de ter qualquer ingerência na órbita da liberdade individual. Neste ponto, Xifras Heras (Curso de Derecho Constitucional, vol. 1, p. 337) se opõe, afirmando que o erro fundamental desse último conceito se estriba em confundir liberdade e direito. A liberdade é um dos bens supremos da pessoa humana, é a faculdade de eleição entre comportamentos juridica-mente possíveis e, como tal, constitui um pressuposto essencial de todos os direitos subjetivos e é tutelada por todos eles, porém não se confunde nem com o objeto (bem tutelado) nem com o conteúdo (conjunto de comporta-mentos juridicamente possíveis) de nenhum direito concreto.

Os direitos fundamentais devem ser concebidos enquanto instrumen-tos ou meios de transformação que são entregues ao ser humano em defesa de sua personalidade. A pessoa humana, de par a seus atributos fundamen-tais, tais como a liberdade, a dignidade pessoal, a vida, etc., é superior e preexiste ao Estado. Contra quem a personalidade do homem deve ser defendida? Contra outros seres humanos e contra o Estado.

O constitucionalismo moderno tem denominado a parte da Carta Magna que trata das liberdades fundamentais de dogmática em oposição à parte orgânica. As declarações, os direitos e garantias, tal como visto neste capítulo, integram a parte dogmática. Nela, “encontra-se consagrado o em-

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basamento filosófico-jurídico fundamental que sustenta o resto do plexo normativo”, segundo Facorro e Vittadini Andrés em Leciones de Derecho Constitucional, p. 15. Na Constituição Nacional pode-se afirmar que os arts. 1.º ao 14 são o lado dogmático. A parte orgânica é aquela que dita a estrutura dos poderes, seja na órbita federal, estadual, municipal e distri-tal. A estrutura tripartida de poder, em que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário assumem posições delimitadas, mas interagem entre eles, cada um assumindo certa parcela de poder que seria peculiar do outro, compõe a parte dogmática da Constituição.

Na melhor explicitação de Camilo Velazquez Turbay (Derecho Cons-titucional, p. 215), as Constituições dos distintos países contêm dois tipos de normas: umas se referem aos direitos das pessoas, ao tipo de relações das pessoas com o Estado, com a sociedade e as relações interpessoais, que constituem o espírito do regime político constitucional, sua filosofia, sua razão de ser, sua essência; estas integram a parte dogmática da Constitui-ção; e outras se ocupam na organização do Estado, na escolha dos titulares da função governante, em seus foros, em suas competências, nas relações entre os distintos órgãos do Estado. Esta vem a ser, o que já foi afirmado mais acima, como sendo a parte orgânica da Constituição.

Ocorre que, entre um tipo e outro de normas existem outras de tipo intermédio, que consultam critérios de organização do poder público ao mesmo tempo em que definem a natureza da liberdade, dos direitos e as garantias da pessoa humana. Nesta categoria são encontrados o tipo de Estado e a forma de governo, os fins do Estado, a organização interna das competências, o conceito de soberania, o critério da legalidade e a situação do Estado no concerto internacional. As normas que tratam de tão relevan-tes temas são consideradas integrantes da parte dogmática da Constituição.

Neste capítulo interessará a análise do veio dogmático, porque a Constituição de 1988, de forma límpida, disciplinou largamente sobre os direitos e garantias fundamentais, tratando os direitos da personalidade na trilha dos ensinamentos de Zanobini, Biscaretti de Ruffia e Xifras Heras, que agrupam esses direitos como sendo direitos públicos subjetivos.

Os direitos da personalidade, na afirmação de Xifras Heras (Curso de Derecho Constitucional, p. 341), têm por objeto os elementos constitutivos da personalidade do sujeito, tomado em seus múltiplos aspectos, seja físi-co, moral, individual e social. Referem-se, em primeiro lugar, ao ser mes-mo do homem: seu corpo e seus membros, como também suas convicções e suas afeições, seu pudor e seu sentido estético, sua intimidade, sua honra, as peculiaridades de sua personagem física e moral.

Os direitos personalíssimos são, também, chamados direitos da per-sonalidade, porque considerados como “prerrogativas de conteúdo extra-

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patrimonial, inalienáveis, perpétuos e oponíveis erga omnes, que corres-pondem a toda pessoa por sua condição de tal, desde antes do nascimento e até depois de sua morte, e das que não podem ser privadas pela ação do Estado nem de outros particulares porque isso implicaria deterioração da personalidade”, é o que mostra Júlio Rivera na página 7 da sua apreciada obra Instituciones de Derecho Civil.

E, de igual modo, outros tantos valores estritamente pessoais, enquan-to correspondentes ao sujeito mesmo, que não podem ser separados de sua pessoa, muito menos serem diminuídos ou mutilados.

Ao tratar especificamente no inciso X, do art. 5.º, sobre alguns dos di-reitos personalíssimos, tais como a vida privada, intimidade, imagem e hon-ra, afirmando sobre a inviolabilidade desses direitos e clamando por indeni-zação contra quem os vulnere, explicitou a Constituição sobre o dano moral, de sorte que lançou uma pá de cal sobre qualquer tendência que vise a ape-quenar o ressarcimento dessa lesão. Hoje, não é mais aceitável afirmar que a indenização do dano moral consiste em prostituir a dor com dinheiro, muito menos argumentar que a impossibilidade de o Direito tutelar essa espécie de dano reside na falta de quantificação exata do valor do ressarcimento.

Afinada pelas legislações modernas, a Constituição de 1988 conside-rou que ao lado dos bens patrimoniais, outros existem que merecem igual proteção. Garantidos na Constituição, nas leis penais e civis, o direito à honra, à vida privada, à intimidade, à imagem, à saúde, à integridade cor-poral, aos afetos, à família, etc., qualquer lesão a um desses direitos que não deixam de ser emanação do ser humano enquanto pessoa, constitui prejuízo que deve ser reparado.

O direito deve colocar instrumentos à disposição de quem sofreu vio-lação para não permitir nenhuma intromissão indevida ou injusta à pessoa. A consciência de cidadania e de dignidade pessoal conduzem a uma mais forte autoestima e preservação dos valores que emergem do ser mesmo do homem. Não é necessário que a lesão a uma dessas particularidades da pessoa repercuta no patrimônio para que exista a possibilidade de repara-ção. Vai longe o entendimento na direção de que somente o dano moral, que reflete em bens materiais, é que seria alvo de indenização. Agora, cada bem ou interesse lesionado, é objeto de uma indenização própria. Se o ato lesivo causou um dano físico que impediu o profissional liberal de exercer suas atividades por um mês, além de o ofensor ter de pagar por esse dano patrimonial a título de lucros cessantes, também arcará com a perturbação anímica (típico dano moral) que o profissional sofreu. A perda da vida causa um dano moral, em princípio. Porém, se o falecido sustentava a fa-mília ou se era criança, mas havia a possibilidade de, mais tarde, ajudar os pais, é nítido o prejuízo material aos familiares. Neste caso, a indenização

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é dupla. Portanto, cada bem lesionado é uma entidade própria e merece integral reparação.

Conspirou contra o desenvolvimento da dogmática civil do dano mo-ral o argumento segundo o qual este dano jamais poderia ser indenizado, porque a vítima nunca seria reconduzida ao estado em que se encontrava antes da lesão, porque o dinheiro não serve para substituir um bem que não pode ser estimado em valor pecuniário. Para circundar essa questão, foi adotado o princípio de que existe uma indenização por equivalência. Para isso, o dinheiro é servível. A reparação é incompleta e aproximada. O dinheiro outorga à vítima bens que compensem o dano produzido. A impossibilidade de reparação que contenha exatidão matemática, não pode servir como argumento para impedir a reparação do dano moral, porque o ofensor seria beneficiado, em detrimento de um dos pilares do direito que é exatamente o non laedere. Qualquer prejuízo que seja causado a um terceiro deve ser reparado.

Tanto os bens patrimoniais, como aqueles intrínsecos à pessoa, pro-duzem satisfações íntimas. Possuí-los sem ruptura, sem quebrantos e sem interferência interna que atrapalhe o usufruir desses bens – sejam patri-moniais ou personalíssimos – é, como dizia Locke, possuir as coisas que produzem prazer, é a felicidade. Toda supressão de um bem, porque retira a possibilidade de a pessoa usufruí-lo, constitui um menoscabo motivado pela insatisfação que causa a privação do bem. Essa insatisfação ou me-noscabo, tanto de matiz patrimonial, como espiritual, recebe ampla prote-ção do ordenamento jurídico nacional.

4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO

Logo no art. 1.º, ao estatuir sobre os Princípios Fundamentais que ha-verão de reger todo o texto constitucional, colhe-se que “a República Fede-rativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana;IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.”

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Ao interesse do tema sobressai a dignidade da pessoa humana, por ser a vulneração a essa dignidade fonte que supre o direito de danos. A toda hora, a qualquer momento, a dignidade do ser humano é malferida. Seja nos pequenos gestos de discriminação, seja no seio familiar, onde sempre surgem momentos de intensa turbação, a afronta à dignidade enseja e dá azo a diversas causas de dano moral. Consentânea com a moderna visão da pessoa humana, enquanto eixo principal do direito, a justiça e a dignidade do homem são colocadas como valores fundantes na Constituição. Deles e de uma perfeita compreensão do que vêm a significar, é que são assentados os outros direitos que o Direito tem de resguardar.

Não se pode perder de mira, no entanto, que a dignidade humana é vista na Constituição como princípio fundamental. Este, na concepção do Prof. José Cretella Júnior, “é termo análogo, isto é, suscetível de inúmeros sentidos, todos, porém, ligados pelo menos por um ponto de contato comum. Princípio é, antes de tudo, ponto de partida. Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas, que condicionam todas as estru-turações subsequentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces, os funda-mentos da ciência” (Comentários à Constituição 1988, vol. I, pp. 128 e 129).

A dignidade há de ser considerada como grandeza, honestidade, de-coro e virtude. Digna é a pessoa decente, conveniente e merecedora. A magnitude da dignidade mostra a aquisição de atributo espiritual e social, tendo em vista que o pensamento do cristianismo toma a dignidade do fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. “Nisso reside, na importância da dignidade do homem, participação criada do Ser Divino. O homem é um ser que é, em si e em sua projeção, um sujeito de direitos em um âmbito irredutível de autonomia e liberdade, e ao mesmo tempo, possui uma dimensão social que não é fruto de um pacto da história, senão que lhe corresponde por sua natureza. Todos os demais interesses perso-nalíssimos (honra, intimidade, igualdade, identidade, etc.) se vertebram a partir da essencial dignidade de todo ser humano”, ensinam Bosch e Zava-la, Resarcimiento Derecho de Danõs 2c, p. 36.

A dignidade do homem guarda incomensurável e necessário conteúdo ético. A proibição da tortura, por exemplo, tem como função proteger essa dignidade. Proibida a vingança privada e, até, interesses egoísticos de au-toridades, a Constituição também desconsidera qualquer causa que traga o opróbrio à pessoa. A segurança pessoal de quem estiver preso e a proteção à liberdade de locomoção são formas de se evitar que a dignidade pereça.

Ela pressupõe a existência de outros direitos. Sem ela não há como o ser humano desenvolver-se em plenitude e atingir a situação de bem-estar social. Até para viver em sociedade, sem aquele plexo de dignidade, não há como haver essa interação. Quando a Constituição protege interesses

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