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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS

    A FORMA DO MEIO

    Livro e Narrao na obra de Joo Guimares Rosa

    Clara Maria Abreu Rowland

    DOUTORAMENTO EM

    ESTUDOS LITERRIOS LITERATURA COMPARADA

    2009

  • Universidade de Lisboa

    Faculdade de Letras

    Programa em Estudos Comparatistas

    A FORMA DO MEIO

    Livro e Narrao na obra de Joo Guimares Rosa

    Clara Maria Abreu Rowland

    Tese orientada por

    Professor Doutor Manuel Gusmo

    e

    Professor Doutor Abel Barros Baptista

    Doutoramento em

    Estudos Literrios Literatura Comparada

    2009

  • O senhor v aonde o serto? Beira dele, meio dele?...

    Grande Serto: Veredas

  • Paul Klee, Ad Marginem. 1930. Kunstmuseum Basel.

  • ndice

    Resumo 1

    Abstract 2

    Agradecimentos 3

    Introduo

    5

    PARTE I Indesfechos

    Captulo 1 O resto que falta 20

    Captulo 2 Terrvel simetria

    73

    PARTE II O livro pode valer pelo muito que nele no deveu caber

    Captulo 3 Circuito 130

    Captulo 4 Livro 154

    Captulo 5 Indicaes de Leitura

    191

    PARTE III S se pode entrar no mato at ao meio dele

    Captulo 6 Aqui eu podia pr ponto 230

    Captulo 7 Mais longe do que o fim; mais perto

    274

    Referncias bibliogrficas 321

  • Resumo

    Este trabalho prope uma leitura da obra de Guimares Rosa de Corpo de Baile

    (1956) at Estas Estrias (1969), construda sobre a articulao entre duas dimenses, o

    livro e a narrao. Interroga-se o modo como estes textos colocam em relao, na

    tenso entre escrita e oralidade que est na sua base, a representao do acto narrativo e

    a reflexo sobre a construo do livro em funo de um questionamento da forma e da

    legibilidade. Descreve-se a resposta que a organizao dos livros de Rosa oferece a

    problemas de representao e referncia, atravs de uma ateno ao paratexto e

    edio, e discute-se a releitura e a parbase como figuras da problematizao da leitura.

    Palavras-chave

    Livro

    Narrao

    Releitura

    Parbase

    Joo Guimares Rosa

    1

  • Abstract

    This work offers a reading of Guimares Rosa's work, from Corpo de Baile

    (1956) to Estas Estrias (1969), built upon the articulation of two dimensions: book and

    narration. It questions how these texts link, through the tension between writing and

    oral speech that is central to them, the representation of the narrative act and the

    reflection on the construction of the book based on a questioning of form and legibility.

    It describes the answer provided by the organization of Rosas books to problems of

    representation and reference, by analysing their paratext and how they were edited, and

    discusses rereading and parabasis as elements of the questioning of reading.

    Key words

    Book

    Narration

    Rereading

    Parabasis

    Joo Guimares Rosa

    2

  • Agradecimentos

    O senhor j sabe: viver etctera...

    Esta tese confunde-se tanto com o tempo que passou desde que comeou a ser pensada, e com os anos da sua elaborao, que difcil escolher, em muitos casos, entre diferentes razes para agradecer. Esta tese no teria comeado a ser pensada sem as extraordinrias aulas e o exemplo do professor Manuel Gusmo, a quem agradeo a disponibilidade e a ateno durante todo este tempo. Esta tese no existiria sem a confiana e a generosidade do professor Abel Barros Baptista. A frase anterior quis dizer vrias coisas ao longo destes anos, mas nunca foi to literal como nesta fase final. Por isso, mas tambm pela partilha e por tudo o que tenho aprendido, s posso agradecer. Ao professor Herb Marks quero agradecer as lies de leitura, o encorajamento e tudo o que me tem ensinado sobre a conjugao do adjectivo literrio com um modo de vida. Esta tese tambm se confunde com a experincia de ensino no Departamento de Literaturas Romnicas da Faculdade de Letras. Aos professores e colegas que me tm feito sentir em casa queria agradecer a conversa e o apoio. Agradeo em particular a Teresa Amado, Joo Dionsio, ngela Fernandes (por muitas destas razes) e Vania Chaves. Muitas das obsesses que por aqui passam passaram tambm pelas aulas de Literatura Brasileira e Literatura Comparada (e talvez algumas mais): s posso agradecer aos alunos que as foram partilhando o entusiasmo com que, para minha surpresa, foram respondendo. O lugar desta tese o Centro de Estudos Comparatistas (e o Programa, claro). Sem os colegas, no faria sentido. professora Helena Buescu quero agradecer ainda o apoio constante ao longo destes anos. No Brasil esta tese contou com o apoio, directo e indirecto, de Llia Parreira Duarte, de Milton Ohata, de Jos Miguel Wisnik e Laura Vinci. Sem a Luz e o Caio no haveria Brasil. Ao Instituto de Estudos Brasileiros e ao Arquivo Guimares Rosa devo agradecer a hospitalidade e a disponibilizao de materiais. Companhia de Navegao do Rio So Francisco, a viagem no Santa Dorotia.

    3

  • Nos Estados Unidos passei duas temporadas como visiting scholar: agradeo Orlanda Azevedo a experincia na Universidade de Berkeley e a Richard Gordon e Lcia Costigan, da Ohio State University, a generosidade com que nos receberam em Columbus.

    Esta tese contou com uma Bolsa de Doutoramento da Fundao para a Cincia e Tecnologia, essencial para o seu desenvolvimento. Agradeo profundamente aos servios interbibliotecrios da Ohio State University.

    minha me, alm de tudo, tenho de agradecer o facto de me ter ensinado a querer ler o Grande Serto. Ao meu pai por me ter dado rgua e compasso para l ir. E ao Pit, que por aqui tambm passou. Sem a companhia na travessia, nada disto faria sentido: Brbara Vallera, Clara Riso, Filipa Ribeiro do Rosrio, Francisco Frazo, Francisco Rosa, Joo Ribeirete, Jussara, Orlanda, Z Maria. Mas tambm Nuno Matos, Arianna Pieri e, apoio nos ltimos tempos, Ariane e Riccardo. Mas esta tese para o Marco, que veio ter comigo.

    4

  • Introduo

    5

  • Introduo

    Experience has shown that it is by no means difficult for philosophy to begin. Far from it. It begins with nothing, and consequently can always begin. But the difficulty, both with philosophy and for philosophers, is to stop. This difficulty is obviated in my philosophy; for if any one believes that when I stop now, I really stop, he proves himself lacking in the speculative insight. For I do not stop now, I stopped at the time when I began.

    Sren Kierkegaard, Either/Or

    Divulgo: que as coisas comeam deveras por detrs, do que h, recurso; quando no remate acontecem, esto j desaparecidas.

    Antiperiplia

    I

    Num ensaio em que interroga as relaes entre literatura e filosofia a partir de

    Grande Serto: Veredas, Benedito Nunes anunciava deste modo o seu programa de

    abordagem interdisciplinar: Tudo o que vai ser exposto acerca dessa obra tem o

    carcter de reflexo sobre uma forma (Nunes 1983b: 205). Comeo por arriscar que

    tambm esse o ponto de partida deste trabalho, tendo em conta que o que aqui se

    procurar identificar o modo como na obra de Guimares Rosa se reflecte sobre a

    6

  • fico a partir da sua relao com uma forma. Essa identificao, porm, no ser feita

    no sentido de uma forma que represente uma instncia de questionamento de ideias

    que so problemas do e para o pensamento, como prope Benedito Nunes (idem:

    ibidem): o que aqui se procurar uma ideia de forma que responda ao questionamento

    da legibilidade que os livros de Guimares Rosa insistentemente pem em cena. A

    forma no ser, assim, entendida como veculo de problemas o problema a forma,

    porque nela que se questiona a inteligibilidade da representao. Como princpio de

    organizao da aco, a forma a questo da fico rosiana, no sentido em que

    perante a imposio de uma estruturao entre incio, meio e fim, para retomar a

    configurao aristotlica da questo, que narrativa e mundo se colocam em relao; e o

    que os textos que aqui analisaremos parecem demonstrar que o problema no tanto o

    de uma oposio entre as duas dimenses a fico que d forma ao mundo, como

    comum dizer-se, por exemplo, a propsito da noo de closure mas o modo como

    ambas se colocam em tenso com uma ideia de forma (orientao e estruturao) e lhe

    parecem resistir. O mundo movente, como sugere o ttulo do ensaio de Jos Carlos

    Garbuglio, tambm imagem do texto rosiano: ler a forma no concluda desse mundo

    (ou seja o modo como o mundo se furta forma) a legibilidade paradoxal que a fico

    de Guimares Rosa parece perseguir, atravs da forma e contra ela. A interrogao

    dessa legibilidade do informe ser construda sobre a articulao de duas dimenses, o

    livro e a narrao, considerando o modo como os textos de Rosa colocam em relao,

    na tenso entre escrita e oralidade que est na sua base, a representao do acto

    narrativo, vinculada figura do contador de histrias, e a acentuao da materialidade

    do livro, dando particular ateno aos pontos de contaminao entre as duas ordens (o

    dilogo que se faz inscrio, o livro que encena uma situao de presena). uma

    passagem que importante esclarecer desde j: se a oposio em causa no , como

    7

  • tentarei demonstrar, uma oposio entre mundo e fico, e sim uma oposio entre

    mundo ou fico e a forma como condio de legibilidade, essencial concentrar a

    ateno nas figuras dessa oposio, que ganharo corpo na encenao de gestos de

    performao, no sentido com que Rosa usar o termo e que veremos em detalhe na

    primeira parte deste trabalho os momentos em que o mundo e as histrias so postos

    em tenso com a materialidade de um suporte que lhes d forma. Por esta razo que se

    prope, no ttulo, uma relao entre livro e narrao, e no entre livro e histria, por

    exemplo: como veremos nas encenaes do acto narrativo que a obra de Rosa

    insistentemente oferecer, a tenso com a forma constri-se numa tenso entre os

    ouvintes e o narrador, corpo da histria, que pe em causa a sua delimitao e bloqueia,

    no sentido em que retm, a sua plena transmisso. A narrao o momento em que a

    histria sem formato, para usar uma expresso que reencontraremos, pode ser

    percebida como forma atravs do corpo do contador; mas ser percebida como lacunar,

    incompleta, movente, pelos seus destinatrios, que procuraro impor-lhe, em nome da

    forma, um final. ento na tenso entre a performao da histria e a imposio de uma

    forma que a delimite que a legibilidade do informe como resistncia forma se constri.

    Assim se percebe que o livro venha a ser o ponto central deste percurso: na

    representao de situaes de narrativa oral, a fico de Rosa acentua precisamente a

    resistncia do suporte transmisso, e nesse sentido aproxima a caracterizao da

    narrao de problemas associados escrita e ao livro. A narrao imagem de uma

    tenso relacional (reteno e desejo de completude) a que o livro, enquanto ideia de

    totalidade numa forma material, d corpo; e o que aqui se entrev que, contrariamente

    ao que muitas vezes se sugere, a recriao em Rosa de um mundo de contadores de

    histrias no se oferece apenas como compensao de uma cultura da presena que a

    modernizao destruiu, nem como regresso a uma oralidade arcaica. Nos exemplos que

    8

  • veremos a narrao encena atravs da acentuao do corpo uma resistncia que

    prpria da escrita: a representao da oralidade dirige-se para uma legibilidade diferida

    que o livro de Guimares Rosa encenar e o valor performativo dessa legibilidade

    assenta por inteiro na tenso com os limites da forma. A hiptese de que parto, assim,

    a de que possvel articular o tratamento reflexivo da narrao, em Guimares Rosa,

    com o questionamento do livro como figura de uma totalidade concluda e apreensvel,

    e que nessa articulao o que se d a ver uma resistncia forma que, ao pr em causa

    a imposio de limites (fim, comeo, margem), ir revelar-se tambm resistncia

    leitura. A conjugao entre narrao e livro, acentuando a dimenso do transporte a

    escrita como transporte de uma oralidade encenada, o livro como suporte da estria

    apresenta-se deste modo como o lugar privilegiado de uma interrogao que ter na

    materialidade do suporte (corpo do narrador, visibilidade da letra, livro material) o seu

    campo de tenso. A partir deste quadro, ento possvel colocar a hiptese de um

    trabalho sobre a forma do livro que procure superar os seus limites a partir do seu

    interior, impondo uma dupla temporalidade sua construo material: linear, de um

    lado, e recursiva, do outro, devolvendo insistentemente o leitor ao que no livro no se

    fez legvel, orientando o acto de leitura para a paradoxal legibilidade do que no tem

    formato. esse o projecto que aqui se desenvolve e sero essas as dimenses que

    determinam os dois primeiros movimentos deste trabalho; na interrogao do modo

    como o livro resiste forma imps-se, porm, um terceiro movimento, consequncia

    desta primeira articulao. Antes de justificar a sua posio, torna-se necessrio um

    pequeno desvio que articule, a partir do ttulo deste trabalho, livro e narrao com a

    ideia de uma forma do meio.

    9

  • II

    Na sequncia central do conto Cara-de-Bronze, de Corpo de Baile, a narrativa

    interrompe-se com a seguinte indicao de leitura:

    Estria custosa, que no tem nome; dessarte, destarte. Ser que nem o bicho larvim, que j est comendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas, como na adivinha s se pode entrar no mato at ao meio dele. Assim, esta estria. (I 688).1

    Importante por diferentes motivos no percurso deste trabalho, o excerto

    exemplar de uma dificuldade intrnseca desta obra: antes mesmo de entrarmos em

    interpretaes mais substanciais das implicaes de uma suposio como esta para a

    relao entre incio, meio e fim (o todo edificado da obra), a adivinha coloca um

    problema determinante para qualquer tentativa de leitura da fico de Guimares Rosa,

    ao encenar a passagem de uma suposta descrio do mundo (o mato, o bicho larvim),

    para um comentrio sobre a linguagem. A adivinha assenta num desvio: de uma

    pergunta sobre o mato at onde se pode entrar? desloca-se, sem transio, para um

    jogo entre expresses at ao ponto em que se comea a sair. O problema reside na

    brusca transio entre os dois verbos, contguos numa relao que pe em causa

    precisamente o terceiro termo que os define. E o problema desse terceiro termo ser

    aquele a que se tentar dar resposta ao longo destas pginas, e para o qual se orientar o

    questionamento da legibilidade do informe que aqui se prope. Se a adivinha interroga

    at que ponto se pode entrar no mato, o texto de Rosa parece perguntar incessantemente

    em que ponto se sabe que se comeou a sair ou, por outras palavras, em que ponto a

    forma se fez forma. A resposta a esta pergunta, desdobrada por todos os livros de Rosa,

    1 Todas as citaes da obra de Guimares Rosa, excepto quando indicado, sero feitas a partir

    dos dois volumes da Fico Completa (Rosa 1994), indicando-se apenas o volume e a pgina.

    10

  • passar necessariamente pela ideia de um diferimento, que ganhar corpo na figura,

    decisiva para este trabalho, da releitura. Na relao entre entrar e sair, o meio revela-se

    o ponto elusivo e diferido em torno do qual o texto se articula. Como se diz em Grande

    Serto: Veredas: Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas

    vai dar na outra banda num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que

    primeiro se pensou. Viver nem no muito perigoso? (II 28).

    Comear (e terminar) por um enigma, que necessariamente obscurece, por agora,

    qualquer ideia de estrutura, uma estratgia bem rosiana: no entanto, o enigma serve-

    me para destacar um problema de leitura para o qual muitos dos esquemas recorrentes

    na recepo de Rosa no parecem oferecer resposta. Trata-se de um problema de

    reflexividade, ou do modo como, na obra de Guimares Rosa, comentrio do mundo e

    comentrio das estratgias de representao so continuamente sobrepostos,

    constituindo um n reflexivo de difcil orientao. O anacoluto que o enigma sugere

    disso exemplo: atravs de um vazio conceptual o centro que passamos de uma

    ordem supostamente mimtica para a forma da enunciao, a aco de sair ganhando

    ento o sentido de uma passagem (sem regresso) do mundo linguagem. O meio o

    espao da sobreposio entre estas duas ordens: referncia e auto-referencialidade

    coincidem, por momentos, nessa suspenso que se faz fronteira.

    Parece-me ser esse o ponto de chegada possvel de um trabalho que procure

    interrogar a ideia de legibilidade em Guimares Rosa: o que ope uma forma concluda

    e delimitada a uma construo orientada para um centro que, furtando-se a uma fixao,

    desestabiliza os pontos de entrada e de sada, introduzindo na forma a sua

    transformao. No limite, poderamos dizer que este trabalho pode ser entendido, em

    todos os seus momentos, como um esforo de leitura de uma das sequncias mais

    conhecidas da obra rosiana: Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que

    11

  • clareiam a sala. Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a

    gente no meio da travessia. (II 46). O que tentarei demonstrar que numa passagem

    como esta se concentram e tornam visveis os principais problemas da potica rosiana:

    na construo de uma dimenso intervalar e diferida a travessia que no se soube ver a

    tempo a prpria ideia de forma estruturada que posta em questo a partir de uma

    ideia de centro que, vindo depois, faz da forma uma forma movente. Nesta imagem

    encontramos no s a resistncia que o carcter elusivo de um meio em trnsito oferece

    a uma legibilidade do mundo, mas tambm o ponto de tenso de uma construo da

    forma do livro em Guimares Rosa.

    O lugar de articulao destas questes questionamento da forma, reflexividade,

    centro ser a parbase de Corpo de Baile e o modo como permite ler, de forma mais

    abrangente, o trabalho sobre a suspenso intervalar que os dois exemplos de Grande

    Serto: Veredas j acentuavam. A parbase tambm o eixo explcito da relao entre

    livro e narrao (a forma do meio). Momento de suspenso da aco da Comdia

    Antiga, em que o coro avana para o proscnio e fala directamente aos espectadores em

    nome do autor, a parbase ocupava o centro da estrutura da pea. Extradramtica e

    perturbadora da iluso ficcional, auto-referencial e intertextual, um intervalo que

    interrompe e ameaa a fico contra a qual se define. Rosa incorpora a parbase, como

    veremos em detalhe, atravs da duplicao dos ndices de Corpo de Baile, identificando

    trs das sete novelas, no segundo, como parbases. O leitor verifica, nesse momento,

    que esses trs contos ocupavam efectivamente o lugar da parbase na estrutura do livro,

    situando-se, como suspenses peridicas na sua materialidade, no intervalo entre os

    restantes. Tal como comemos por ver no exemplo anterior, o meio do livro revela-se

    depois, na sada, na figura de um ndice de releitura que relana o livro em direco a si

    prprio a partir do seu limite. Ao tradutor italiano Rosa escrever que a classificao

    12

  • deriva de se ocuparem, os trs textos, de expresses de arte: a parbase de Corpo de

    Baile, deste modo, apresenta-se como momento reflexivo de explicitao potica nele

    a fico reflecte sobre a fico e a sua transmisso e como elemento da construo do

    livro, abrindo um intervalo, um centro, indissoluvelmente ligado margem do livro que

    o indica e identifica o ndice. atravs da parbase que encontraremos a imagem do

    livro rosiano: a de uma solicitao crtica que ameaa a ideia de um livro como unidade

    estruturada em princpio e fim para no mesmo gesto reafirmar na releitura a construo

    de um livro que se alimenta do seu centro. Nesta conjugao de questionamento

    metaliterrio e investimento numa forma desviante de livro a parbase prope-se como

    figura determinante para a fico de Rosa, e o que aqui se far tom-la como figura da

    interrogao da forma.

    III

    O percurso que esta tese prope determina-se assim na articulao dos dois

    pontos anteriores. O seu movimento ir, podemos arriscar, do fim ao meio: da negao

    do fim como questionamento da forma construo de um intervalo para o qual a

    legibilidade do informe se orienta. A forma do livro, instituindo a releitura, ser o ponto

    de passagem.

    A primeira parte da tese, intitulada Indesfechos, prope, nos dois captulos que a

    compem, uma leitura das representaes da narrao na fico de Guimares Rosa. A

    veremos como a relao entre narrador, histria e interlocutor ser configurada como

    uma relao de resistncia, no sentido, como dizamos, de uma reteno, de uma

    configurao, por negao, de um sentido incompleto ou associado a uma falta, lacuna

    ou abertura constitutiva; mas tambm de uma tenso entre os elementos em dilogo que

    13

  • ter a sua manifestao mais forte nos textos em que Rosa recorre frmula do dilogo

    oculto. A reflexo en abme sobre a narrao em Guimares Rosa parece contrapor a

    ordem resistente do narrador que no permite o aniquilamento da histria num

    esgotamento do sentido que a plena transmisso, e a concluso, realizariam; e o

    movimento da leitura, em que ouvintes e leitores procuram impor atravs da

    determinao de um fechamento uma forma que delimite a histria. no encontro

    destas duas foras que se d aquilo a que chamei questionamento da forma e que parece

    funcionar, na obra de Rosa, no sentido de uma inscrio do segredo numa materialidade

    persistente. Essa resistncia construda, como j sugeri, atravs de uma acentuao do

    corpo como lugar da histria; e o que se decide nesse gesto uma coincidncia, na

    tenso agonstica que destaquei, entre tentativa de imposio de uma concluso e uma

    ideia de morte. A morte a interrupo, nestes textos, que termina aquilo que no pode

    razoavelmente terminar. Este movimento ser caracterizado de duas formas: no

    primeiro captulo, a partir de trs exemplos significativos (episdios de Uma Estria de

    Amor e Grande Serto: Veredas e o conto Pirlimpsiquice, de Primeiras Estrias);

    no segundo, numa proposta de leitura de Meu Tio o Iauaret como encenao

    extrema, na obra de Guimares Rosa, da narrao como acto de resistncia que resulta,

    perante a tentativa de eliminao do suporte, numa queda na ilegibilidade.

    O passo seguinte desta interrogao estabelece no trabalho sobre o livro, como

    figura de uma totalidade organizada e estruturada que a fico desestrutura, a forma

    dessa tenso. Na construo do livro rosiano procurarei identificar a resistncia que a

    histria ope ao livro, ou ideia de livro, ou seja a resistncia que a ideia de fico

    definida na primeira parte introduz no seio do prprio livro: a articulao entre livro e

    narrao o lugar da forma como problema. Neste movimento define-se tambm de

    forma mais clara o lugar deste trabalho. Nos livros de Rosa reconhece-se a insistente

    14

  • encenao de uma forma plenamente delimitada que contra os seus limites se abre como

    lugar de uma comunicao resistente em que se problematiza a referncia. E, no

    entanto, o problema do livro um problema ausente da fortuna crtica rosiana. Se

    exceptuarmos leituras individuais de livros em que a questo se impe, como por

    exemplo Tutamia, so surpreendentemente poucas as leituras que interrogam de forma

    transversal o papel do investimento sobre a forma do livro em Guimares Rosa, e

    sobretudo que o procuram relacionar com outros aspectos da sua recepo2. A questo

    do livro permite, porm, um questionamento integrado das tenses estruturadoras da

    obra de Guimares Rosa que articule diferentes leituras sem que se esgote em nenhuma

    delas: nesse sentido, o que me proponho nesta tese ler os livros de Rosa, acreditando

    que a partir deles possvel pensar uma ideia de literatura.

    Assim, a leitura que desenvolvo na segunda parte, intitulada O livro pode valer

    pelo muito que nele no deveu caber e dividida por trs captulos, interroga a dupla

    temporalidade em que a tenso da forma ganha corpo no livro rosiano: a linearidade do

    livro como forma estruturada e unificada e o prolongamento do livro, alm do seu

    limite, num movimento regressivo em direco ao seu centro. Essa interrogao faz-se

    em dois momentos. No primeiro, identifica-se uma constante dos livros de Rosa depois

    de Sagarana3: a construo de uma forma estrutural de desdobramento que pe em

    2 Se, por um lado, evidente que a recepo crtica rosiana constitui hoje um corpus

    excessivamente vasto e disperso para que no se coloque sob suspeita qualquer tentativa de generalizao, tambm verdade que certas tendncias se tm delineado de forma muito precisa. Num ensaio publicado em 2004, Willi Bolle dividia os estudos sobre Grande Serto: Veredas em cinco grandes grupos 1) lingusticos e estilsticos; 2) anlises de estrutura, composio e gnero; 3) crtica gentica; 4) interpretaes esotricas, mitolgicas e metafsicas e 5) interpretaes sociolgicas, histricas ou polticas para sublinhar que as ltimas duas tendncias acabaram polarizando o debate em torno da obra (20), movimento visvel sobretudo, a partir do final dos anos noventa. Trata-se de uma classificao meramente indicativa que pode fazer sentido, no entanto, para uma viso de conjunto da fortuna crtica.

    3 Sagarana, livro que antecede de dez anos a publicao de Corpo de Baile em 1956, ficar fora do mbito deste trabalho, apesar de muitas das questes que aqui se levantam poderem numa releitura a partir dos livros posteriores iluminar a sua leitura. Este trabalho toma como possveis limites para a escolha e coeso do corpus a construo de Corpo de Baile (1956) e Tutamia (1967), a partir do comum tratamento do livro que a, e nos livros que medeiam, se identificar. As questes principais que aqui se trataro passam pela identificao de movimentos reflexivos; como afirma Suzi Sperber, s a partir de

    15

  • causa a noo de margem, atravs da acentuao e multiplicao da dimenso

    paratextual e do trabalho sobre a ilustrao. Num segundo momento desenvolve-se uma

    leitura, a partir dos elementos de composio do livro, dos dois casos extremos de

    problematizao da forma que apresentam a figura de um ndice de releitura: Corpo

    de Baile e Tutamia. A comparao entre os dois, ideia inicial deste projecto, permite-

    nos introduzir um elemento decisivo para o questionamento da legibilidade que aqui

    est em causa: nos exemplos da primeira parte, a imposio de um limite fazia coincidir

    morte e interrupo; no ndice de releitura, ao contrrio, o livro prolonga-se, negando a

    sua delimitao, em nome de uma legibilidade diferida, como tentarei demonstrar,

    figura ltima da leitura da forma. nesse trao que se far mais explcita a relao da

    forma com o tempo: inscrita na materialidade do suporte, a desestabilizao que a

    histria produz no livro uma desestabilizao que no anula o limite contra o qual se

    constri, e nesse sentido o movimento que o livro origina um movimento regressivo,

    que devolve, atravs da figura da parbase, o leitor de volta ao centro do livro, intervalo

    crtico onde a forma se suspende e revela. Neste gesto decide-se a configurao do livro

    como errata, forma em transformao, e a identificao dos dois plos desse

    movimento, que se desenvolver na parte final desta tese: a releitura e a parbase.

    Assim, na terceira parte, intitulada S se pode entrar no mato at ao meio dele,

    o primeiro captulo identifica trs movimentos desta desestabilizao regressiva do livro

    a partir de Grande Serto: Veredas: a revelao pstuma como figura da negao da

    closure; a interrupo central que questiona a forma sem a destruir, parbase do

    romance; e, por ltimo, o movimento retroactivo da releitura na representao da carta

    atrasada de Nhorinh como figura en abme deste questionamento da legibilidade. A

    construo do livro analisada a partir de Tutamia a articulada com a construo do

    Corpo de Baile que ida e volta, travessia, [se] convertem em problemas metalingusticos (Sperber 1982: 113).

    16

  • romance, interrogando em particular a dimenso temporal da repetio e a funo do

    reconhecimento como figura estrutural do questionamento da forma. O segundo e

    ltimo captulo identifica em Cara-de-Bronze o ponto de fuga dos movimentos que

    aqui se descreveram. Parbase da parbase, como argumentarei, toda a sua construo

    encena uma resistncia da forma em torno de um centro que se furta representao. O

    texto cruza a definio de uma aprendizagem potica, e do fazer do prprio texto, com

    um questionamento da experincia literria e dos seus efeitos a partir de uma

    multiplicao de formas que delimitam, enquanto ponto de atraco, a ideia de poesia

    como ncleo ao mesmo tempo vital e irrepresentvel. Texto central na obra de Rosa,

    nele se encontraro as linhas que definem reflexivamente a ideia de representao que

    est em causa nesta fico, fazendo da tenso com os limites da forma o ponto de

    superao de uma ideia de morte. Cara-de-Bronze, assim, encerra o movimento de

    uma leitura contra a forma em torno da suspenso da parbase: s se pode entrar no

    mato at ao meio dele.

    Uma ltima nota a esta apresentao do caminho a percorrer. Se a estrutura do

    trabalho a que aqui se apresentou, falta dizer algo sobre o procedimento de leitura: o

    trabalho de subverso da forma que est aqui em causa identificado, essencialmente,

    atravs de episdios e passagens mnimas que reflectem (ou invertem) movimentos

    maiores dos textos em anlise. Apenas dois dos textos aqui considerados sero lidos

    como totalidade: Meu Tio o Iauaret e Cara-de-Bronze, os dois extremos desta

    interrogao da forma, o primeiro encenando o colapso do texto perante o seu limite

    violento e o segundo construindo regressivamente alm do fim o espao irrepresentvel

    da forma do centro. Todas as outras passagens iro fazer-se atravs da considerao de

    elementos marginais, tanto no sentido, literal, que faz do paratexto do livro o lugar da

    sua subverso e relanamento, quanto em sentido figurado: pequenos episdios ou

    17

  • personagens aparentemente secundrias, na economia dos textos ou na recepo crtica,

    que introduzem neste trabalho uma segunda narrativa, que s na leitura se poder

    acompanhar, e que faz de personagens como Joana Xaviel, o Guegue, Nhorinh ou

    Aristeu mendigos, prostitutas e bobos a quem o texto reserva escassos pargrafos as

    fissuras decisivas de uma resistncia forma. Tentarei aqui mostrar que so essas as

    veredas que permitem a leitura da forma do serto.

    18

  • I. Indesfechos

    Nada em rigor tem comeo e coisa alguma tem fim, j que tudo se passa em ponto numa bola; e o espao o avesso de um silncio onde o mundo d suas voltas.

    A Estria do Homem do Pinguelo

    El otro tigre, el que no est en el verso J. L. Borges

    19

  • 1

    O resto que falta

    1. faltava a segunda parte?

    Escrevi metade. Isto : como que podia saber que era metade, se eu no tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?!

    Grande Serto: Veredas

    Durante os preparativos para a festa que d o subttulo novela Uma Estria de

    Amor, segunda de Corpo de Baile, o protagonista Manuelzo descansa num catre

    atrs de parede, quase encostado na cozinha (I 562), onde as mulheres, reunidas,

    contam histrias na noite da vspera. Organizada por Manuelzo, a festa destinada

    consagrao de uma igreja vai representar, ao mesmo tempo, a fundao de um lugar

    a Samarra e o ponto crtico do percurso, e da constituio do nome, do seu fundador; a

    noite antes da festa um dos momentos em que a personagem se debate entre a posio

    de poder que neste momento ocupa e o questionamento da realidade desse mesmo

    poder, sendo a preparao vivida em movimentos contrastantes que ora atestam controlo

    20

  • ora colocam Manuelzo na posio daquele que foi sendo levado, e levado, pelo

    movimento da festa (ou da vida). Nessa oscilao, a ritualidade funde-se com uma

    problematizao da morte, incio e fim reunidos na ciclicidade da festa de fundao.

    Como rito colectivo, esta atrai a povoao e em particular um rol de cantadores e

    contadores, inscrevendo no texto a multiplicidade de vozes ligadas tradio popular

    que iro tecer a complexidade polifnica da novela. A cena da vspera, quando as

    histrias encaixadas ganham abertamente o primeiro plano, o momento em que a

    dimenso reflexiva do conto se torna mais explcita: se, de acordo com a

    correspondncia de Guimares Rosa com o tradutor italiano, o tema de Uma Estria de

    Amor so as estrias, suas origens, seu poder (Rosa 2003a: 91) ou as estrias

    (fico) (idem: 93)1, neste episdio que se deve procurar uma definio de fico, por

    um lado, e da dinmica daquilo a que nos textos de Rosa se chamar narrao, num

    movimento de mise en abme que me interessa aqui explorar. Figura determinante desta

    representao ser a personagem Joana Xaviel, contadora que, tendo vindo para a festa,

    estava agora na cozinha ensinando as estrias (I 562).

    A sucesso de narrativas, pautada pelas reflexes em discurso indirecto livre de

    Manuelzo e por intervenes da narradora no vo entre duas estrias (I 562), parece

    constituir-se como fluxo contnuo, articulado pela frmula o seguinte este (I 563),

    que levar, pginas adiante, o protagonista a perguntar se Joana Xaviel no terminava

    nunca de acabar aquelas estrias? (I 570). Entrecortadas pelo fluxo das reflexes de

    Manuelzo, as histrias contadas parecem comentar o modo como se articulam numa

    sequncia apenas aparentemente interrompida, em que as delimitaes se esbatem e 1 Rosa justifica a incluso deste texto, no segundo ndice de Corpo de Baile, na parbase do

    livro, do seguinte modo: Uma Estria de Amor : trata das estrias, sua origem, seu poder. Os contos folclricos como encerrando verdades sob forma de parbolas ou smbolos, e realmente contendo uma revelao. O papel, quase sacerdotal, dos contadores de estrias. (...) A formidvel carga de estmulo normativo capaz de desencadear-se de uma contada estria, marca o final da novela e confere-lhe o verdadeiro sentido. (Rosa 2003a: 91-92). Sobre a classificao parbase e as suas implicaes, ver a segunda parte deste trabalho.

    21

  • confundem, numa progresso potencialmente infinita: era uma vez uma vaca Vitria:

    caiu no buraco e comea outra estria... e era uma vez uma vaca Tereza: saiu do

    buraco e a estria era a mesma... (I 573-574). Nessa sequncia entrar, porm, uma

    histria desigual das outras, que coloca explicitamente o problema da sua interrupo

    e ter amplo destaque ao longo da sequncia nocturna de Manuelzo sem no entanto

    quebrar a srie que integra: trata-se da histria da Destemida, variao rosiana da

    histria do Vaqueiro que no mentia2, sobre a ascenso sem queda de uma mulher

    terrvel que parece comprazer-se em provocar o mal3. A histria conclui-se deste modo:

    A estria se acabava a, de-repentemente, com o mal no tendo castigo, a Destemida graduada de rica, subida por si, na vantagem, s triunfncias. Todos que ouviam, estranhavam muito: estria desigual das outras, danada de diversa. Mas essa estria estava errada, no era toda! Ah, ela tinha de ter outra parte faltava a segunda parte? A Joana Xaviel dizia que no, que assim era que sabia, no havia doutra maneira. Mentira dela? A ver que sabia o resto, mas se esquecendo, escondendo. Mas uma segunda parte, o final tinha de ter! Um dia, se apertasse com a Joana Xaviel, brava, agatanhal, e ela teria que discorrer o faltante. Ou, ento, se vero ela no soubesse, competia se mandar enviados com paga, por a fundo, todo longe, pelos ocos e veredas do mundo Gerais, 2 Sandra Vasconcelos (1997) e Cleusa Passos (2000) traam um mapa dessa genealogia,

    verificando a forma desviante da histria de Joana Xaviel, que pode ser agrupada ao (...) ncleo de narrativas, de origem muito antiga, cujo paradigma a Estria do Vaqueiro Que No Mentia, tambm conhecida como Estria do Boi Leio, ou Quirino, Vaqueiro do Rei. Seja em sua verso como conto popular, seja como tema do Entremeio de Reisado e Bumba-meu-boi, o Vaqueiro que no mentia circulou em diferentes regies do pas e seu motivo central pode ser rastreado at suas origens europias, especialmente peninsulares. (Vasconcelos 1997: 111-112).

    3 Na progresso malfica da Destemida pode reconhecer-se a caracterizao de um mal solto por si que em Grande Serto: Veredas se fixar sobretudo na figura de Hermgenes, mas que tem uma representao encaixada e exemplar na narrao do caso de Maria Mutema por Je Bexiguento (II 145-148). A relao entre os dois episdios pode interessar-nos por duas ordens de motivos. Em primeiro lugar, temos no episdio do romance a representao de um narrador, definido como contador de casos, que no parece compreender a histria que conta (cf. a afirmao anterior de Bexiguento sobre a separao do Bem e do Mal, contrariada pelo caso que contar), permitindo interrogar, tal como aqui, a relao entre as histrias e os seus intrpretes; em segundo lugar, no episdio de Joana Xaviel, interrogao referida de Manuelzo sobre a continuidade da narrao ir seguir-se a pergunta: O padre no esbarrava de rezar no quarto, no se adormecia? (I 570). A relao entre a infinitude da histria e a infinitude da reza pode ser colocada tambm a propsito do episdio de Maria Mutema, na cena, comentada por Rosemary Arrojo, da entrada de Maria Mutema na igreja durante o Salve-Rainha, sendo que a recusa em interromper a reza por parte do padre (Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salve-rainha orao que no se pode partir em meio em desde que de joelhos comeada, tem de ter suas palavras seguidas at ao tresfim. Mas o missionrio retomou a fraseao, s que com a voz demudada, isso se viu., II 146) provocar a associao da pecadora Maria Mutema reza em curso, sendo deste modo saudada, prefigurando a inverso final da assassina em santa (Arrojo 1993: 181).

    22

  • caando para se indagar cada uma das velhas pessoas que conservavam as estrias. Quem inventou o formado, quem por to primeiro descobriu o vulto de idia das estrias? Mas, ainda que nem no se achasse mais a outra parte, a gente podia, carecia de nela acreditar, mesmo assim sem ouvir, sem ver, sem saber. S essa parte que era importante. (I 565).

    A recepo da histria caracterizada, indiferenciadamente, como colectiva e

    individual. Tecida nas reflexes de Manuelzo, a ausncia de uma delimitao entre a

    sua reaco e a reaco de todos que ouviam aqui determinante: se, por um lado, se

    trata de uma representao do conflito da personagem, claro que estamos perante uma

    problematizao geral da narrativa e dos seus efeitos, centrada precisamente sobre o

    problema da concluso. Ao contrrio das outras histrias referidas, que parecem oscilar

    entre uma completude prpria e a articulao num contnuo que permanentemente as

    relana sem pr em causa a sua forma, esta histria provoca uma reaco porque

    sentida como incompleta, interrompida e nesse sentido o problema que levanta ser

    sempre o do seu prolongamento. O que com esta histria se abre , pois, a questo que

    determina a tenso central de Uma Estria de Amor: a que ope o seu ncleo temtico

    (o episdio do riacho que secou como erro no processo de fundao e figurao da

    morte) s histrias como paradigma de superao da descontinuidade4. A histria de

    Joana Xaviel , nesse sentido, o ponto de maior tenso entre interrupo e continuidade.

    Nas palavras do conto: Chegava na hora, a estria alumiava e se acabava. Saa por fim

    fundo, deixava um buraco. Ah, ento, a estria ficava pronta, rastro como o de se ouvir

    uma missa cantada. (I 573).

    4 As principais leituras de Uma Estria de Amor assinalam a importncia do episdio do

    riacho para a construo da novela: esse erro de fundao (a construo da casa sobre um rio que subitamente seca) o que a festa poder corrigir no modo como articula, nas histrias, imagens de uma superao do limite temporal: o reconhecimento da permanncia do riachinho para alm da sua extino ir fazer-se, na histria final de Camilo, com a referncia ao riacho que nunca seca (I 609). Para uma leitura detalhada do episdio e do seu desenvolvimento cf. Vasconcelos 1997: 57-75 e Miyazaki 1996: 191-198.

    23

  • 1.1

    Conforme destacou Sandra Vasconcelos na primeira leitura dedicada

    exclusivamente a Uma Estria de Amor (Vasconcelos 1997), a estrutura do conto

    gravita em torno da relao entre duas personagens aparentemente laterais que se

    articularo com o percurso do protagonista: as duas figuras de contadores, Joana Xaviel

    e o Velho Camilo, que, atravs de duas histrias, a histria da Destemida e a Dcima

    do Boi e do Cavalo, pautariam os dois pontos, mnimo e mximo, da evoluo de

    Manuelzo5. Podemos adiantar a hiptese de a novela se construir inteiramente sobre a

    conjugao de verses de narrativa representadas pelo par o amor do ttulo sendo o

    espao de uma teorizao das possibilidades narrativas que eles representam ou, como

    se diz em Grande Serto: Veredas a propsito de todo amor, uma espcie de

    comparao (II 104)6. Este seria, por definio, o momento negativo desse percurso,

    traduzindo para Manuelzo a inquietao de um mundo desordenado7, ou de uma

    libertao da Lei que a figura feminina ousadamente representaria8, nos dois casos

    provocando uma violenta rejeio por parte do protagonista, estendida ao estranhar de

    todos os que ouviam, em nome de uma manuteno da ordem procurada ao longo de

    todo o texto. possvel pensar esse estranhamento em termos da descrio aristotlica

    (Retrica, II 8 e 9; 2006: 184-189) da indignao [to nemesan] como sentimento de dor

    perante uma fortuna (alheia) imerecida: a indignao e a piedade, seu directo oposto, 5 Cf. tambm T. Myiazaki: a estria de Joana Xaviel prepara criticamente a de Camilo, de que

    o espelho em negativo. (Myiazaki 1996: 19). 6 O ponto culminante da narrativa de Camilo seria, neste sentido, o seu reconhecimento por

    Joana Xaviel enquanto contador: Joana Xaviel de certo chorava. Essa estria ela no sabia, e nunca tinha escutado. Essa estria ela no contava. O velho Camilo que amava. Estria! (I 611).

    7 Cf. Sandra Vasconcelos: Nesse universo, no h remisso e nada se recompe, o que faz dessa histria uma epifania negativa, pois o que se revela para os ouvintes um mundo de cabea para baixo, um mundo desconjuntado em que tudo est fora do lugar. (Vasconcelos 1997: 114).

    8 Cf. Cleusa Passos: Inconformado com a falta de castigo para o mal que oculta o impossvel fascnio pela nora, reprimido em nome de regras simblicas que impedem o incesto, Manuelzo rejeita essa narrativa danada de diversa, cujo termo excede os limites da Lei... (Passos 2000: 179).

    24

  • partilham o pressuposto de uma ordem em que os homens so recompensados de forma

    proporcional ao seu valor9, questo directamente colocada ao longo de Uma Estria de

    Amor no modo como se pesa riqueza e merecimento10. Uma falha nessa distribuio

    suscitaria nos homens de bom carcter o desejo de ver a queda do indivduo

    indevidamente beneficiado. A histria da Destemida, fechando-se numa interrupo que

    suscita e deixa em aberto a justa indignao dos ouvintes, recusar-se-ia, neste sentido,

    como exemplo de conto de aco moral, ao afirmar o triunfo da personagem vil, o

    mal no tendo castigo, invertendo deste modo a moral implcita do conto popular

    (Vasconcelos 1997: 115). E a percepo desse desvio, repare-se, depende

    exclusivamente da inconformidade com o universo das histrias a que supostamente

    esta pertence a histria da Destemida , antes de mais, desigual das outras, danada de

    diversa.

    No entanto, importante sublinhar que o sentimento de indignao justa,

    mais do que resposta a uma lio sobre a ordem do mundo, aqui sentido como efeito

    indissoluvelmente ligado a uma estrutura, identificada pelos ouvintes como incompleta:

    a falta de um sentido de fechamento que destaca esta histria, isolando-a do quadro da

    sequncia narrativa em que se encontra e que interrompe. Como diz Barbara Herrnstein

    Smith no incio do seu estudo sobre Poetic Closure, the sense of closure is a function

    of the perception of structure (Smith 1968: 4). Assim, no apenas o exemplo da

    histria a ser sentido como errado, nem os identificveis desvios, no curso da narrao,

    em relao a outras variantes da histria tradicional que parece estar por trs desta.

    9 Indignation, like pity, is moralistic; it translates good fortune into reward, just as pity

    translates bad fortune into punishment, and the distress in each case arises from the consequent discrepancy between this perceived external reward or punishment, and an assumption about the internal character of the one who undergoes it. Pity and righteous indignation share the pressuposition that nature itself should be governed by an order in accordance with the standards of human justice (Burger 1971: 129); cf. tambm Leon Golden, Aristotle on the Pleasure of Comedy (Golden 1992).

    10 E tambm no modo como a oposio Joana Xaviel/Camilo articula o par indignao/piedade no progressivo reconhecimento, por parte de Manuelzo, do Velho Camilo como seu igual. Para o questionamento do valor social em Uma Estria de Amor cf. Miyazaki 1996: 164-171.

    25

  • Aquilo que aqui desperta o escndalo o facto de nada se seguir concluso desigual

    apresentada pela contadora, que passa ento a representar um limite insustentvel, como

    alis parece sugerir o facto de a estranheza da histria se apresentar inicialmente como

    reparvel atravs de um movimento de adio (uma segunda parte). A ausncia dessa

    continuao passa para primeiro plano: o vazio institudo pelo final de Joana Xaviel

    ocupa o lugar de uma resoluo, de um movimento de inverso de fortuna, de um

    completamento, afectando constitutivamente a aco. E esse vazio constitui-se como

    trao singularizante da histria no quadro das outras contadas na mesma cena. Recorde-

    se, como tem sido sublinhado desde o ensaio pioneiro de Cavalcanti Proena (1958: 25),

    que Joana Xaviel ir introduzir tambm o contraponto tradicional ao desenvolvimento

    do motivo da donzela guerreira em Grande Serto: Veredas, lanando um jogo

    citacional que ter implicaes determinantes na construo do segredo no romance

    rosiano. Na narrao, momentos antes, da histria de Dom Varo, em aberto contraste

    com a recriao complexa de Grande Serto, temos um exemplo de closure comentada:

    A Rainha ensinava ao filho seguidos trs estratagemas, astcia por fazer Dom Varo esclarecer o sexo pertencido. Quando sucedia esse final, o Prncipe e a Moa se casavam, nessas glrias, tudo dava acerto. (I 561). Quando sucedia esse final: o remate que, em Dom Varo, rene peripcia e

    reconhecimento numa conciliao final, que parece faltar histria de Joana Xaviel. O

    desenvolvimento que ser dado percepo do erro, transformado aqui em escndalo,

    interessa-nos por colocar em causa, imediatamente, o formado das estrias. Na

    reaco daqueles que ouvem a histria essa estria estava errada, no era toda! a

    passagem lgica do erro para a incompletude que constitui o ncleo do episdio, pois o

    erro antes de mais um erro de forma, em consequncia gerando um escndalo tico.

    Completar a histria apresenta-se, para aqueles que a ouvem, como o nico modo de

    completar a aco, que s parece existir no interior da histria. Fora da histria est o

    26

  • vazio: se a aco narrada incompleta, a sua continuao s se poder encontrar numa

    segunda parte que emende a interrupo. O erro ser, ento, um erro da histria que se

    traduz numa aco incompleta, faltante por aco daquele que a estrutura, do

    construtor de enredos, neste caso a contadora, que aparecer queles que a ouvem como

    figura do escndalo e do conflito. Se uma concluso, na sua mais simples e persistente

    definio, aquilo a que nada se segue, a recepo da histria de Joana Xaviel recusa o

    fim que Joana Xaviel oferece, pressupondo um movimento estrutural que faria desse

    fim o momento que antecede a inverso necessria: o meio, que separa primeira e

    segunda parte. Este fim que no fecha sentido como interrupo de algo que s na

    histria poderia continuar. Acabar impropriamente equivale a acabar de-

    repentemente, bruscamente, sem verdadeiramente acabar.

    1.2

    Percebe-se ento que todo o excerto esteja construdo sobre a oposio entre

    uma reaco histria que a sente como errada ou seja incompleta, interrompida e a

    nica defesa possvel por parte da contadora, uma defesa, alis, que reafirma a forma da

    histria: A Joana Xaviel dizia que no, que assim era que sabia, no havia doutra

    maneira. essa tenso que importa interrogar. A histria da Destemida um dos

    pontos, na obra de Rosa, em que a relao entre histria e narrador problematizada

    abertamente e caracterizada, de acordo com o que veremos, como relao de resistncia,

    colocando problemas a uma leitura excessivamente transparente da presena da

    narrativa tradicional nestes textos. Essa resistncia construda, no excerto, segundo

    dois eixos: por um lado, verifica-se uma descontinuidade entre a figura da contadora e o

    27

  • universo que supostamente representaria11, quebrando-se a relao metonmica entre o

    contador de histrias e o mapa de uma memria que lhe daria sentido; por outro, nessa

    manifestao particular de narrao o que posto em questo um problema de forma

    que reencontramos ao longo de toda a obra de Rosa: o problema de uma incompletude

    constitutiva em tenso com uma ideia de totalidade que se d por negao, sendo aqui

    os seus limites jogados contra uma ideia de histria que d o tema a Uma Estria de

    Amor.

    Pensando agora no primeiro desses eixos, repare-se que so postas em relao

    uma dimenso individual (o contador) e uma forma (a histria) que o atravessa mas no

    parece residir exclusivamente nele: os ocos e veredas do mundo Gerais e cada uma

    das velhas pessoas que conservavam as estrias, ltimo recurso da inquietao dos

    ouvintes, so as duas dimenses de que Joana Xaviel seria o prolongamento, enquanto

    meio de transmisso dotado de mobilidade, mas aos quais se ope a partir do momento

    em que a sua histria se caracteriza por uma forma escandalosa de desvio. Assim, este

    pequeno episdio comea por colocar a relao entre a manifestao especfica da

    histria contada por Joana Xaviel e a necessria mas no disponvel existncia da

    estria completa alm deste momento particular, que parece coincidir, aqui, com uma

    ideia de tradio (a histria desigual das outras), ou de memria colectiva. Percebe-

    se ento que o problema terico associado existncia das histrias, colocado no quadro

    das interrogaes da personagem de Manuelzo, seja a pergunta sobre quem inventou

    o formado, sendo o vulto de idia feito equivaler, desde j, em primeiro lugar a um

    plano ideal, e mais tarde a uma temporalidade anterior e inacessvel. O que

    importante, por agora, que o problema comea j a delinear-se como conflito e isso

    interessa-nos inicialmente mais do que a raiz do escndalo. O conflito entre 11 Veja-se, por exemplo, Sandra Vasconcelos: Joana Xaviel e Camilo so porta-vozes de um

    patrimnio coletivo, que preservam do esquecimento mediante a restaurao da fora mobilizadora e transformadora da palavra. (Vasconcelos 1997: 171).

    28

  • performance e recepo que aqui se materializa assinala claramente que a contadora que

    d forma histria determina a sua nica possvel manifestao a manifestao

    incompleta, errada, da histria quando o erro suscita a exigncia de uma forma

    completa inacessvel (tinha de ter outra parte).

    importante sublinhar que a invalidao do final de Joana Xaviel pelos seus

    ouvintes em nome de uma segunda parte parece orientar-se exclusivamente para a

    obteno de um novo fim, de uma concluso que permita fechar o escndalo da

    interrupo, e nesse sentido permite colocar os problemas associados noo de

    closure12 e ao que determina uma concluso adequada e apropriada13. Diz-se, a dada

    altura, no texto, a propsito da ascenso social de Manuelzo, que a Samarra era uma

    espcie de comeo de metade de terminar (I 546) estrutura em que, de acordo com

    Tieko Miyazaki, o aspecto inceptivo no de um novo tempo, mas de um fim

    (Miyazaki 1996: 159). O movimento que determina a novela , nos seus vrios planos, o

    da necessidade de um fim que retrospectivamente configure a coerncia do todo14, como

    a frase referida exemplarmente descreve, ao reler a articulao de tempos em nome

    dessa coerncia conclusiva. O mesmo movimento de desejo de fim projectado, no

    exemplo de Joana Xaviel, assentar na recusa de um outro fim, transformado pela

    exigncia de continuao apenas no ponto intermdio de uma aco que se deseja

    completa. O que aqui se destaca que essa invalidao os devolve ao meio, quele

    12 Ver, por exemplo, a caracterizao das dificuldades de uma sistematizao do sentido de

    closure na introduo ao estudo de Marianna Torgovnick, Closure in the novel (Torgovnick 1981: 3-19). 13 As I use the term, closure designates the process by which a novel reaches an adequate and

    appropriate conclusion or, at least, what the author hopes or believes is an adequate, appropriate conclusion. (Torgovnick 1981: 6).

    14 Talvez o momento, na obra de Rosa, em que a necessidade de um fim mais claramente ligada ideia de uma legibilidade retrospectiva seja a seguinte passagem de Grande Serto: Veredas: O inferno um sem-fim que no se pode ver. Mas a gente quer Cu porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. (I 44).

    29

  • middest 15 em que Frank Kermode, com uma frase de Sir Philip Sidney, situa o desejo

    humano da fico como forma de configurao da totalidade.

    A totalidade projectada a partir da negao da histria contada como totalidade,

    porm, ter necessariamente que se propor como imaterial: percebe-se ento que se

    diga, sobre as quadras cantadas na festa, que as quadras viviam em redor da gente, suas

    pessoas, sem se poder pegar, mas que nunca morriam, como as das estrias (I 561).

    Sem se poder pegar: a totalidade que a segunda parte reconfiguraria tem de se situar em

    tenso com a histria material de Joana Xaviel, por recusar o limite por ela oferecido e

    representado. Toda a tenso da problematizao da figura do contador passa por aqui: o

    escndalo parece materializar-se numa forma faltante, intrinsecamente fragmentria,

    por completar, mas que ter de ser completada contra a contadora como representao

    fsica da materializao da histria. em nome de uma totalidade imaterial que a forma

    da histria invalidada e a forma escandalosa e lacunar que gera a totalidade da

    histria. O lugar dessa passagem o final de Joana Xaviel transformado em espcie de

    comeo de metade de terminar, em meio orientado para um outro fim. O movimento,

    porm, age ainda e apenas sobre a histria que preciso corrigir, completando-a, e

    sobre a narradora que a constitui. nessa tenso que surge, neste excerto, a questo da

    violncia do desejo.

    1.3

    histria contada, por necessidade estrutural, tem de corresponder uma segunda

    parte, e esta necessidade o motor, nos ouvintes, de um movimento violento: apertar

    com o contador, exercer violncia sobre ele a sua primeira projeco, que se fixa,

    15 Men in the middest make considerable imaginative investment in coherent patterns which, by

    the provision of an end, make possible a satisfying consonance with the origins and with the middle. That is why the image of the end can never be permanently falsified. (Kermode 2000: 17).

    30

  • imediatamente, sobre o corpo: se apertasse com a Joana Xaviel, brava, agatanhal (I

    565). O leitor est preparado para isso, neste ponto do texto, pelo modo como a

    descrio da personagem prepara o tema da transformao do narrador pela histria em

    Uma Estria de Amor. Joana Xaviel, que aparece no texto, ao contrrio do Velho

    Camilo, como figura j formada e definida na sua profisso, tem essa definio

    precisamente na disponibilidade para a metamorfose. A contaminao entre histria e

    narrador ser clara atravs da recorrncia, para Joana e Camilo, de um lxico que

    directamente evoque essa disponibilidade. O Velho Camilo, na sua vez, parece sado

    em outro Velho Camilo, sobremente (I 602); Joana Xaviel, ao contar, sofria uma

    transformao semelhante: virava outra e uma valia, que ningum governava,

    tomava conta dela, s tantas (I 561). outra das marcas da relao complexa da

    histria com o contador: se a forma da histria depende do seu narrador, o narrador

    fisicamente transformado pela histria. Esta transformao, mais uma vez, parece

    dependente de uma situao de presena, que a cena em anlise, no entanto,

    complexifica.

    O ponto de partida para a caracterizao da figura do contador ser ento o da

    aco da palavra sobre o corpo. Do ponto de vista dos efeitos, repare-se no entanto que

    Uma Estria de Amor encena essa aco de forma indirecta: Sandra Vasconcelos

    sublinhou a importncia do som, no texto, no quadro da contraposio entre arcaico e

    moderno que est na base do seu argumento. Diz-se em Puras Misturas: No seu

    resgate de um universo mais arcaico, que se perdeu na paisagem moderna, o narrador

    recupera tambm a experincia dos sentidos, fazendo da escuta um outro modo de

    olhar. (Vasconcelos 1997: 56). A pergunta que se coloca ser, ento, a de uma possvel

    equivalncia entre escuta e olhar para a construo de uma situao de presena. A cena

    em anlise, a esse respeito, abertamente questiona essa suposta presena: como referi

    31

  • inicialmente, a longa sequncia da narrao de Joana Xaviel construda, em discurso

    indirecto livre, a partir de uma focalizao sobre a figura de Manuelzo, deitado no

    catre num quarto adjacente cozinha. O protagonista figurado no em voyeur, mas

    numa situao paralela: ouve, sem ser visto, as histrias e as vozes da cozinha. Antes de

    sabermos que a mulher est efectivamente do outro lado da parede, a contar, e que

    Manuelzo se encontra na posio descrita, temos uma apresentao geral das histrias

    e da narradora Como as compridas estrias, de verdade, de reis e donos de suas

    fazendas (...) as estrias contadas, na cozinha, antes de se ir dormir, por uma mulher (I

    561) subitamente particularizada num evento especfico Se somava que a Joana

    Xaviel tinha vindo para a festa (I 562). Essa primeira projeco da figura, que no a

    reconhece ainda como prxima, comea j por descrev-la transformada no momento da

    narrao: tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara demudava,

    desatava os traos, antecipava as belezas, ficava semblante (I 562). A partir da, o

    longo relato vai cruzar o fluxo do pensamento de Manuelzo com as palavras que

    chegam da cozinha, a voz cruzando-se por duas vezes com o relato dessa transformao.

    H um ponto em que a questo se torna determinante:

    Joana Xaviel demonstrava uma dureza por dentro, uma inclinao brava. Quando garrava a falar as estrias, desde o alumeio da lamparina, a gente recebia um desavisado de iluso, ela se remoando beleza, aos repentes, um endemnio de jeito por formosura. Aquela mulher, mulher, morando de ningum no querer, por essas chapadas, por a, sem dono, em cafuas. Pegava a contar estrias gerava torto encanto. A gente chega se arreitava, concebia calor de se ir com ela, de se abraar. As coisas que um figura, por fastio, quando se est deitado em catre, e que, seno, no meio dos outros, em p, sobejavam at vergonha! De dia, com sol, sem ela contando estria nenhuma, quem v que algum possua perseveranas de olhar para Joana Xaviel como mulher assaz? (I 565-6).

    Sem ela contando estria nenhuma: o torto encanto de Joana Xaviel, objecto

    de desejo do devaneio do protagonista, mais uma vez, no reside nela, e sim na

    32

  • interaco entre ela e a histria. Vimos que sem narrador no haveria histria num

    certo sentido, sabemos agora que sem histria, sem a aco da histria sobre o corpo,

    no h desejo, ou no h mesmo o corpo que gera o desejo, como a recorrncia de

    imagens de alteridade parece sugerir. A palavra age sobre o corpo, tornando-o

    disponvel para um desejo que se esvai na ausncia da palavra; uma dimenso indirecta

    parece sobrepor-se metamorfose visual que as palavras implicam e a audio

    secreta, o voyeurismo auditivo, o trao mais marcante dessa posio. Repare-se que a

    aco da metamorfose apenas projectada, e que o desejo pela forma transformada

    afirmado como possvel apenas em situao de negao: As coisas que um figura, por

    fastio, quando se est deitado em catre, e que, seno, no meio dos outros, em p,

    sobejavam at vergonha! Manuelzo descrito como desejando o objecto de uma

    transformao visual pela narrao apenas no momento em que no pode ver. E o que a

    descrio constri uma transformao visual assente numa interaco entre corpo e

    palavra vedada descrio, obliquamente representada na situao de devaneio cego.

    Deste modo, o texto constri uma transformao intrinsecamente vinculada a um verbal

    ausente. Se a palavra age tornando-se visvel no corpo, qual o estatuto desta percepo

    indirecta da transformao, precisamente no texto de Rosa em que parece ser mais

    explcita uma tematizao da presena? Podemos arriscar que os problemas mais

    difceis da leitura de Corpo de Baile se situam nesta esfera; deste paradoxo que se

    ocuparo, num sentido geral, as narrativas que compem o livro, desde as cantigas de

    Aristeu em Campo Geral at aos dilogos nocturnos de Buriti: o da representao

    textual e diferida de um valor performativo aparentemente vinculado a situaes de

    presena ou dilogo. O episdio de Joana Xaviel d corpo tenso entre oralidade e

    escrita que est na base do projecto rosiano. Como sublinha Susana Lages a propsito

    de Grande Serto: Veredas:

    33

  • H portanto um plano tico uma moral da forma que determina como certos contedos ou temas mticos se articulam no texto. (...) A fala de Riobaldo, porm, enquanto fala, oralidade, diz tambm da sua impossibilidade de abranger a vida em seu contnuo fluir e mesmo de capturar o instante primordial das origens. Mas a fala de Riobaldo no uma fala: um texto escrito que encena uma situao de fala. O que h um efeito de oralidade e uma aura mtico-sacral obtidos atravs de um manejo extremamente apurado da linguagem em seus diferentes planos (...). (Lages 2002: 74).

    A escolha da representao cega e indirecta da metamorfose atravs do devaneio

    dominado pelo som parece-me indicar de forma explcita a complexidade da situao de

    narrao aqui encenada, servindo de modelo para a problematizao geral da narrativa

    em presena nestes textos. Tal como acontece nas narrativas que repetem a estrutura do

    dilogo oculto de Grande Serto: Veredas, tambm aqui nos encontramos perante o tipo

    de dissoluo de dicotomias que Davi Arricucci Jr. descreveu como o ressurgimento

    do romance de dentro da tradio pica ou de uma nebulosa potica primeira, indistinta

    matriz original da poesia, rumo individuao da forma do romance de aprendizagem

    ou formao (Arrigucci 1994: 20). Estamos perante uma tenso entre formas

    aparentemente opostas: formas ligadas ao universo da narrativa tradicional, tal como o

    caracterizou Benjamin no ensaio sobre Leskov, e as formas identificveis com o

    universo isolado do romance que, ainda segundo Benjamin, se lhes contrape:

    What differentiates the novel from all other forms of prose literature the fairy tale, the legend, even the novella is that it neither comes from oral tradition nor goes into it. This distinguishes it from storytelling in particular. The storyteller stakes what he tells from experience his own or that reported by others. And he in turn makes it the experience of those who are listening to his tale. The novelist has isolated himself. (Benjamin 1992: 87).

    Isolamento e tradio oral, aqui, parecem convergir, paradoxalmente, numa

    forma de escrita que joga com representaes da oralidade. A reconstruo de efeitos de

    presena no incompatvel, antes se alimenta, de uma construo explicitamente

    34

  • assente sobre efeitos de distanciamento. A solido que caracteriza a cultura do romance

    ser ento o dado de partida para esta construo, distanciada e filtrada, de uma

    presena inacessvel e no entanto operativa. E no como compensao que esta tenso

    funcionar: o universo dos contadores aparece aqui como forma, podemos dizer, de uma

    construo verbal declaradamente indirecta revitalizada pela explorao de todas as

    potencialidades desse distanciamento. A encenao dramtica da situao de oralidade,

    quer, como veremos, atravs do dilogo oculto, quer, como neste caso, atravs de uma

    representao intrinsecamente distanciada de efeitos dependentes de situaes de

    presena, ser um dos pontos em que a obra de Rosa testa abertamente a sua potica.

    Recuperando uma expresso dos cadernos de Guimares Rosa no seu arquivo, trata-se

    da construo, atravs da escrita, de um texto em que nenhuma palavra morre (E15).

    1.4

    O corpo de Joana Xaviel, desejado na sua transformao, parece ento ser o

    primeiro lugar de fixao do desejo da segunda parte da histria. A violncia desse

    desejo tem uma direco especfica, que a imagem da caa materializa. Se a narradora

    no sabe interpretar ou validar a histria que conta; se a narradora s a sabe assim,

    decididamente vinculando forma e substncia, ser preciso vencer a resistncia do

    narrador, acedendo ao lugar da interaco entre narrador e histria, ou seja, ao corpo.

    Joana Xaviel, que tem fama, nos pargrafos anteriores, de furtar o que podia (I 565),

    d-nos uma das grandes figuraes na obra de Rosa da relao entre o contador e aquilo

    que conta. O corpo do contador, disponvel para a transformao pela histria,

    tambm o lugar da manifestao de algo que ultrapassa a situao de comunicao: o

    seu corpo, que d forma, tambm furta, tambm cala, tambm no diz. a primeira,

    seno a mais forte, representao do poder que encontramos nesta histria sobre a

    35

  • construo do domnio: o narrador pode esconder o que sabe, acendendo o desejo, e o

    nico lugar para procurar aquilo que o narrador no quer dizer ser o seu corpo,

    submetido a uma tortura que implicaria a entrega, a sujeio, a cessao da vontade que

    furta: a liquidao da resistncia do narrador. E a violncia sobre o corpo como primeira

    reaco figura do contador ser reflectida no outro movimento que em torno da

    entrada em cena de Joana Xaviel se cria: o que representa a contadora como objecto do

    desejo masculino desejo proibido ou no confessvel porque desejo abertamente

    desvalido. Desejo e violncia so ento os dois movimentos que tm origem na atraco

    pela histria, por uma dimenso imaterial da histria a que a novela, curiosamente, d o

    nome no ttulo, em que a estria de amor entre dois contadores tambm a histria do

    amor pela estria.

    Assim se compreende que a caracterizao de Joana Xaviel responda to

    directamente a uma descrio platnica do estrangeiro, modelo alis da contaminao

    do intrprete pela fico. Veja-se a famosa descrio da Repblica (398a), que, como

    diz Giorgio Agamben, viene spesso ripetut[a] quando si parla di arte senza che

    latteggiamento paradossale che trova in esso espressione sia, per questo, divenuto

    meno scandaloso per un orecchio moderno (Agamben 1994: 12):16

    Se chegasse nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus poemas, prosternvamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-amos que na nossa cidade no h homens dessa espcie, nem sequer lcito que existam, e mand-lo-amos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra sobre a cabea e de o termos coroado de grinaldas. (Plato 2001: 123-4). 16 No mesmo texto, Agamben liga a atitude paradoxal perante o imitador conscincia de um

    vnculo entre violncia e linguagem: Non si comprende, in particolare, il fondamento del tanto discusso ostracismo comminato da Platone ai poeti, se non lo si ricollega a una teoria dei rapporti fra linguaggio e violenza. Il suo presupposto la scoperta che il principio, che in Grecia era stato tenuto per vero fino al sorgere della Sofistica, secondo il quale il linguaggio escludeva da s ogni possibilit di violenza, non era pi valido, e che, anzi, luso della violenza era parte integrante del linguaggio poetico. Una volta fatta questa scoperta, era perfettamente congruente da parte di Platone stabilire che i generi (e perfino i ritmi e i metri) della poesia dovevano essere sorvegliati dai custodi dello stato. (Agamben 1994: 18).

    36

  • A Joana Xaviel est reservada a mesma atitude paradoxal: seduz e atrai,

    chamada para contar, mas no era querida nas casas (I 565). O seu mel, como o

    texto diz claramente, mel, mas mel de marimbondo! (I 564). Essa oscilao entre

    atraco e averso directamente vinculada a uma atribuio de poder, que reside no

    domnio verbal: dito que causava ruindades, que tem o poder de matar por feitio,

    distncia, s por mo de praga de dio (I 566). O seu poder de feiticeira da palavra

    obriga a Samarra a uma relao de compromisso com a figura marginal: a presena da

    mulher tolerada (momentaneamente) em nome das histrias que conta, sem que, no

    entanto, a figura seja colocada fora de suspeita. Joana Xaviel guarda aquilo que por

    todos desejado, de forma mais ou menos confessada: mas guarda essa riqueza no corpo,

    guarda sem plenamente oferecer, o que equivale a dizer que a furta, pois essa se fingia

    em todo passo, muito mentia, tramava, adulava (I 564). O desejo da histria o desejo

    do que esconde o corpo do narrador pulso hermenutica e ertica reunidas numa

    mesma repulsa.

    Para perceber as implicaes desta caracterizao, essencial a formulao

    oferecida por Rosa num dos textos de Estas Estrias que teve publicao mais recuada,

    antecedendo a exploso de 1956. Refiro-me ao conto-reportagem Com o Vaqueiro

    Mariano, forma estranha ao corpo ficcional da obra do autor onde porm se encontram,

    na tenso entre relato e construo ficcional que a se expe mais do que noutros

    lugares, alguns dos temas essenciais da narrao rosiana. Numa passagem em que a

    entrevista interrompida por uma suspenso crtica, oferece-se uma das

    problematizaes mais directas do enredamento de narrador, ouvinte e caso narrado

    num campo de foras inextricvel:

    37

  • Te aprendo ao fcil, Z Mariano, maior vaqueiro, sob vez de contador. A verdadeira parte, por quanto tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo poders transmitir-me. O que a laranjeira no ensina ao limoeiro e que um boi no consegue dizer a outro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que d trunfo tua voz e tento s tuas mos. Tambm as estrias no se desprendem apenas do narrador, sim o performam; narrar resistir. (II 779).

    A ideia de furto, que encontrmos associada a Joana Xaviel, mantm-se aqui,

    significativamente desprovida de conotaes morais: por ou contra a vontade do

    contador, h uma parte, a verdadeira parte, que no poder ser transmitida. Mais uma

    vez estamos alm, no foco do excerto, de uma situao de comunicao, dado que esta

    invalidada partida, o que no implica, porm, a inexistncia de uma tenso entre o que

    se transmite e o que no se transmite no impede, ou seja, que a narrao acontea, e

    cumpra a sua funo performativa, de um modo que ultrapassa a comunicao. O que

    mais curioso na relao entre este excerto e aquilo que nos ocupa que nos

    encontramos, outra vez, perante uma vinculao entre um elemento ausente e a sua

    necessria materializao. A verdadeira parte, que da ordem do no materializvel,

    ou do indizvel, no transmissvel, mas manifesta-se no corpo: Ipso o que acende

    melhor teus olhos, d trunfo tua voz e tento s tuas mos17. A relao entre histria e

    contador uma relao de contaminao, como alis previa a admonio platnica ao

    pretender defender em primeiro lugar o guardio dos efeitos da imitao18. S que o que

    o excerto identifica um efeito, digamos, residual. Aquilo que acende melhor um

    resto a que falta a transmissibilidade essa parte intransmissvel que age sobre o

    17 A relao desta caracterizao com a descrio da metamorfose em actor da personagem do

    Velho Camilo no final de Uma Estria de Amor evidente. Depois de, ao longo do conto, ser caracterizado como uma figura a quem a interpretao estava vedada, Camilo tem o seu momento, a sua vez, na narrao final da Dcima do Boi e do Cavalo, momento da revelao referida por Rosa a Bizzarri17: O Velho Camilo estava em p, no meio da roda. Ele tinha uma voz. Singular, que no se esperava, por isso muitos j acudiam, por ouvir (I 602). A voz alterada o contraponto que o velho desvalido oferece transformao em princesa que Joana Xaviel representava concretizando assim, nessa resposta, o amor do ttulo.

    18 Cf. Repblica, III, 395c (Plato 2001: 120). Para uma anlise da contaminao como modo de aco da fico em Plato, cf. Schaeffer 1999: 35-42.

    38

  • corpo, constituindo nele a parte que no se transmite pela narrao. Que esse resto,

    esse resduo, seja a parte verdadeira, coloca-nos perante a mesma hierarquia que o

    episdio de Joana Xaviel lanava a partir da importncia da segunda parte. A, s a

    parte em falta era a importante; aqui, o que se transmite precisamente a parte que

    no verdadeira.

    A analogia final, na concluso do excerto, regressa ao universo, prprio, da

    narrao de estrias, de que Mariano foi aproximado ao narrar as suas memrias sob

    vez de contador: tambm as estrias no se desprendem apenas do narrador, porm o

    performam. As estrias, ao serem contadas, desprendem-se do narrador o narrador

    o meio atravs do qual as histrias passam, ou do qual as histrias emanam; elas

    desprendem-se, mas no s: sim o performam. Ao performar o narrador (criar o

    narrador enquanto outro por aco do acto de contar), as histrias constituem nele no

    narrador, corpo material, olhos, voz e mos a verdadeira parte que no pode ser

    transmitida. Narrando, ento, o narrador resiste afirma-se e no se deixa aniquilar, no

    se deixa absorver pela histria, singularizando a sua narrao, no sentido em que no se

    dilui numa transmisso, motu proprio, da histria. Por outras palavras, a histria

    transmite-se sublinhando a sua natureza estruturalmente fragmentria e marcando o

    intransmissvel, e este intransmissvel o narrador, que assim resiste. O que aqui se

    torna descontnuo, como comemos por ver com o episdio de Uma Estria de

    Amor, a relao entre as histrias e a histria particular que pelo narrador contada,

    no sendo possvel uma coincidncia plena entre essa origem, ou tradio, e a histria

    que do contador se desprendeu. A marca dessa diferena, residual, o corpo do

    contador, parte irredutvel da histria que constitui narrando e parte integrante daquilo

    que se declara fragmento.

    39

  • Verdadeira parte ou segunda parte, a situao de narrao caracterizada, nos

    dois casos, em funo de algo que no est presente e que no entanto localizvel, em

    tenso, na materialidade de um suporte vivo, o contador que no se deixa aniquilar. O

    impulso inicial dos ouvintes da histria de Joana Xaviel ganha agora um sentido mais

    preciso: a seduo da transformao, que atrai fisicamente, a seduo do que na

    histria no se transmite. O lugar da histria completa, ento, parece comear a

    perceber-se pela relao entre os dois excertos, ainda o narrador, mas o narrador no

    modo como corpo e histria se colocam em tenso a histria que o atravessa, o

    narrador que lhe resiste, no sentido em que atravs dela resiste, constituindo-se suporte

    de uma aco no transmissvel. Torturar o narrador, como se infere do episdio em

    anlise, o primeiro movimento de uma caa que pretende extrair parte da histria do

    lugar onde ela est precisamente por no estar: tentar fazer com que o narrador entregue

    ou confesse aquilo que por nenhum modo poder transmitir. Torturar o narrador o

    movimento da falta.

    1.5

    O excerto inicial, como vimos, faz acompanhar a deteco dessa falta de dois

    movimentos, de que este apenas o primeiro. Se insisto nele porque a passagem para

    o segundo movimento de procura, aquele que mais facilmente nos levaria a uma

    identificao plena das histrias de Uma Estria de Amor com a anterioridade de um

    repertrio tradicional, determinante para que se possa avaliar esta reaco

    incompletude. Repare-se que, se o primeiro passo apertar, brava, um corpo, o

    segundo ser marcado por um preo: a longa viagem dos enviados, para alm de

    implicar distncias incalculveis (por a fundo, todo longe), envolve sobretudo um

    40

  • custo: competia se mandar enviados com paga. Este elemento ganha relevncia se

    pensarmos que, no pargrafo seguinte, Manuelzo descreve a sua situao de ouvinte

    furtivo como uma posio passiva: Manuelzo aceitava de escutar as estrias e se

    ouvindo assim, de graa, estimava (I 565). Nesse sentido, os dois movimentos

    previstos pela necessidade de um final so movimentos (de recepo, ou de leitura)

    activos. A violncia de que falvamos talvez o seu trao mais marcante, por ser

    necessariamente uma violncia dirigida contra aquilo que se faz obstculo a uma

    completude do sentido o corpo presente, no seu primeiro momento. Antes, ento, de ir

    interrogar o tipo de presena que ganham as velhas pessoas, podemos pensar numa

    outra cena em que a procura obsessiva de um sentido ausente (e totalizante) localizada

    num corpo, eventualmente destrudo atravs de um apertar que, numa leitura famosa,

    Shoshana Felman liga operao interpretativa. Refiro-me ao final da novela The Turn

    of the Screw, de Henry James, onde a preceptora, narradora do manuscrito encaixado

    que constitui o corpo do texto, progressivamente se convence de uma relao entre a

    presena dos fantasmas que assombrariam a casa e a sua ocultao por parte das

    crianas (James 1999). Saber o que as crianas sabem e no dizem, desde o comeo da

    novela, equivale a provar a existncias dos fantasmas e nesse sentido que a

    ocultao, a negao da informao por parte das crianas, apenas refora a

    imaterialidade das suas suspeitas. Compreende-se, neste quadro, o caminho que leva a

    preceptora ao interrogatrio final da criana mais velha, o pequeno Miles, fazendo-o

    coincidir com uma cena de tortura em que a irredutibilidade do corpo silencioso da

    criana representa a ausncia de uma totalizao de sentido. Aos olhos da preceptora de

    James, obter a confisso e exorcizar o fantasma so aces absolutamente coincidentes,

    como o desfecho da novela ironicamente sublinhar. Para que se chegue a esse ponto,

    importante ter em conta que as crianas so, para a preceptora, detentoras de um (duplo)

    41

  • segredo que resolveria a ambiguidade instituda no texto. Nesse sentido, elas

    transformam-se, ao longo da narrativa, no lugar do conhecimento. Shoshana Felman

    associa essa construo, que levar, entre outras coisas, a uma ntida inverso da relao

    professor/aluno, descrio lacaniana do sujet suppos savoir19, como figura central

    da transferncia que, por efeito da suposio de conhecimento, se transforma

    necessariamente no objecto de amor. A essa fuso de desejo e amor, resultando na mais

    inevitvel das violncias, Felman d o nome de interpretao, especificamente

    entendida como completamento do sentido, preenchimento da falta ou da falha. E assim

    se chega famosa cena do interrogatrio, em que presso das perguntas da preceptora,

    que tenta compor o quadro da sua investigao, a criana apenas responde com o

    corpo, com um mal-estar fsico que identifica claramente o lugar daquilo que se procura

    obter e da sua resistncia. Inevitavelmente, perguntar equivale a apertar, agarrar

    (to grasp) a criana; inevitavelmente, o resultado desse apertar ser enfim um corpo

    esvaziado, dispossessed, inerte. Nas palavras de Felman: a child can be killed by the

    very act of understanding (Felman 2003: 205). Sobre essa equivalncia entre procura

    de um sentido e manifestao da violncia dir a autora:

    The comprehension (grasp, reach his mind) of the meaning the Other is presumed to know, which constitutes the ultimate aim of any act of reading, is thus conceived as a violent gesture of appropriation, a gesture of domination of the other. Reading, in other words, establishes itself as a relation not only to knowledge but equally to power: it consists not only of a search for meaning but also as a struggle to control it. Meaning itself thus unavoidably becomes the outcome of an act of violence. (idem: 207). 19 The children become, then, in the governesss eyes, endowed with the prestige of the

    subjects presumed to know. The reader will recall, however, that the subject presumed to know is what sustains, according to Lacan precisely the relationship of transference in psychoanalytical experience. (Felman 2003: 202). Podemos arriscar que essa estrutura determinante em vrios textos de Guimares Rosa: para alm da suposio de conhecimento que est na base da construo de A Terceira Margem do Rio, pode ser til pensar no modo como Cara-de-Bronze encena essa suposio na figura do Grivo, que comentarei no captulo final deste trabalho. Nesse sentido, importa ter em conta a descrio de Zizek, essencial para a operacionalidade de que se fala aqui: This knowledge is of course an illusion, but it is a necessary one: in the end only through this supposition of knowledge, can some real knowledge be produced. (Zizek 1989: 185).

    42

  • O efeito desse acto de violncia, na novela de James, , como se sabe, uma das

    mais explcitas representaes literrias daquilo a que se pode chamar um final aberto,

    ou um evento no interpretado20 cuja marca , precisamente, um corpo

    definitivamente esvaziado do sentido que supostamente deteria21. Interessa-me, ento,

    manter a partir daqui a ligao entre desejo de sentido, violncia e amor. No caso em

    anlise, esse n confusamente identificado pelo prprio Manuelzo na j referida

    oscilao entre repulsa e seduo em relao a Joana Xaviel. O ponto mais evidente ser

    o momento em que as figuras masculinas em relao s quais Manuelzo se est a

    projectar, o filho e o velho Camilo, so as duas relacionadas, no devaneio que a histria

    originou, com o desejo sexual por Joana Xaviel:

    E o velho Camilo? Com margens de oitenta anos, podia ainda como homem? Mas, mesmo sem ser por resposta do corpo, sem os fogos, diversas pessoas procediam a inocncia de gostar dela a me, mesma de Manuelzo, outros, at as crianas... Ensalmo nenhum; suo de malcia. Suas lbias... Mas o que algum ali tinha dado a entender: que o Adelo, prprio, alguma vez usava o selvagem do corpo dela! isso havia de poder ser? Manuelzo duvidava spero daquilo, depois se compunha para o descrer. (I 566).

    Desejo fsico e violncia, desejo da presena e desconfiana parecem ser ento

    os traos da caracterizao deste corpo como lugar moralmente proibido, socialmente

    inacessvel, mas irremediavelmente identificvel como o lugar daquilo que se deseja,

    contra a prpria vontade dissimuladora da contadora contra o outro e no seu corpo, tal

    como em The Turn of The Screw , no seu corpo como lugar material da presena da

    histria, ou como lugar que a histria constituiu como seu, intransmissvel. A reificao

    do corpo, implcita na suspeita em relao ao filho (usava o selvagem do corpo dela)

    apenas um dos passos necessrios para o desdobramento que est aqui a ser praticado 20 Para a funo do evento no interpretado em The Turn of the Screw ver o ensaio de Emma

    Kalafenos Not (yet) Knowning: Epistemological Effects of Deferred and Suppressed Information in Narrative, em particular as pginas 41-48 (Kalafenos 1999).

    21 Felman, no ensaio referido, avana para atribuir essa mesma procura violenta de sentido s leituras de The Turn of the Screw que procuram resolver a sua ambiguidade. (Felman 2003: 226-42).

    43

  • o que distingue uma Joana Xaviel com histria de uma Joana Xaviel sem histria, Joana

    Xaviel da outra ou outras em que se parece tornar por aco das histrias, o corpo do

    contador do prprio contador fora da aco da histria. nessa distino que se torna

    claro que, dissimulao presumida parte, Joana Xaviel pode efectivamente no saber a

    parte da histria que o seu corpo esconderia primeira de muitas figuras de narradores a

    quem escapa o significado de um contar que s neles materialmente pode residir.

    1.6

    Por outro lado, o texto exemplar na medida em que associa o escndalo da

    nemesis, ou seja o escndalo da abertura da forma, a um esforo arqueolgico: depois

    da hiptese da tortura, da subjugao do corpo que oferece resistncia para dele extrair

    o que falta, a reaco que o excerto encena abandona agora o corpo em nome do mapa.

    A suposta relao metonmica entre gerais e contador aqui explicitada, sob o signo da

    descontinuidade que apontei anteriormente.