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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA EM ESTUDOS COMPARATISTAS
A FORMA DO MEIO
Livro e Narrao na obra de Joo Guimares Rosa
Clara Maria Abreu Rowland
DOUTORAMENTO EM
ESTUDOS LITERRIOS LITERATURA COMPARADA
2009
Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Programa em Estudos Comparatistas
A FORMA DO MEIO
Livro e Narrao na obra de Joo Guimares Rosa
Clara Maria Abreu Rowland
Tese orientada por
Professor Doutor Manuel Gusmo
e
Professor Doutor Abel Barros Baptista
Doutoramento em
Estudos Literrios Literatura Comparada
2009
O senhor v aonde o serto? Beira dele, meio dele?...
Grande Serto: Veredas
Paul Klee, Ad Marginem. 1930. Kunstmuseum Basel.
ndice
Resumo 1
Abstract 2
Agradecimentos 3
Introduo
5
PARTE I Indesfechos
Captulo 1 O resto que falta 20
Captulo 2 Terrvel simetria
73
PARTE II O livro pode valer pelo muito que nele no deveu caber
Captulo 3 Circuito 130
Captulo 4 Livro 154
Captulo 5 Indicaes de Leitura
191
PARTE III S se pode entrar no mato at ao meio dele
Captulo 6 Aqui eu podia pr ponto 230
Captulo 7 Mais longe do que o fim; mais perto
274
Referncias bibliogrficas 321
Resumo
Este trabalho prope uma leitura da obra de Guimares Rosa de Corpo de Baile
(1956) at Estas Estrias (1969), construda sobre a articulao entre duas dimenses, o
livro e a narrao. Interroga-se o modo como estes textos colocam em relao, na
tenso entre escrita e oralidade que est na sua base, a representao do acto narrativo e
a reflexo sobre a construo do livro em funo de um questionamento da forma e da
legibilidade. Descreve-se a resposta que a organizao dos livros de Rosa oferece a
problemas de representao e referncia, atravs de uma ateno ao paratexto e
edio, e discute-se a releitura e a parbase como figuras da problematizao da leitura.
Palavras-chave
Livro
Narrao
Releitura
Parbase
Joo Guimares Rosa
1
Abstract
This work offers a reading of Guimares Rosa's work, from Corpo de Baile
(1956) to Estas Estrias (1969), built upon the articulation of two dimensions: book and
narration. It questions how these texts link, through the tension between writing and
oral speech that is central to them, the representation of the narrative act and the
reflection on the construction of the book based on a questioning of form and legibility.
It describes the answer provided by the organization of Rosas books to problems of
representation and reference, by analysing their paratext and how they were edited, and
discusses rereading and parabasis as elements of the questioning of reading.
Key words
Book
Narration
Rereading
Parabasis
Joo Guimares Rosa
2
Agradecimentos
O senhor j sabe: viver etctera...
Esta tese confunde-se tanto com o tempo que passou desde que comeou a ser pensada, e com os anos da sua elaborao, que difcil escolher, em muitos casos, entre diferentes razes para agradecer. Esta tese no teria comeado a ser pensada sem as extraordinrias aulas e o exemplo do professor Manuel Gusmo, a quem agradeo a disponibilidade e a ateno durante todo este tempo. Esta tese no existiria sem a confiana e a generosidade do professor Abel Barros Baptista. A frase anterior quis dizer vrias coisas ao longo destes anos, mas nunca foi to literal como nesta fase final. Por isso, mas tambm pela partilha e por tudo o que tenho aprendido, s posso agradecer. Ao professor Herb Marks quero agradecer as lies de leitura, o encorajamento e tudo o que me tem ensinado sobre a conjugao do adjectivo literrio com um modo de vida. Esta tese tambm se confunde com a experincia de ensino no Departamento de Literaturas Romnicas da Faculdade de Letras. Aos professores e colegas que me tm feito sentir em casa queria agradecer a conversa e o apoio. Agradeo em particular a Teresa Amado, Joo Dionsio, ngela Fernandes (por muitas destas razes) e Vania Chaves. Muitas das obsesses que por aqui passam passaram tambm pelas aulas de Literatura Brasileira e Literatura Comparada (e talvez algumas mais): s posso agradecer aos alunos que as foram partilhando o entusiasmo com que, para minha surpresa, foram respondendo. O lugar desta tese o Centro de Estudos Comparatistas (e o Programa, claro). Sem os colegas, no faria sentido. professora Helena Buescu quero agradecer ainda o apoio constante ao longo destes anos. No Brasil esta tese contou com o apoio, directo e indirecto, de Llia Parreira Duarte, de Milton Ohata, de Jos Miguel Wisnik e Laura Vinci. Sem a Luz e o Caio no haveria Brasil. Ao Instituto de Estudos Brasileiros e ao Arquivo Guimares Rosa devo agradecer a hospitalidade e a disponibilizao de materiais. Companhia de Navegao do Rio So Francisco, a viagem no Santa Dorotia.
3
Nos Estados Unidos passei duas temporadas como visiting scholar: agradeo Orlanda Azevedo a experincia na Universidade de Berkeley e a Richard Gordon e Lcia Costigan, da Ohio State University, a generosidade com que nos receberam em Columbus.
Esta tese contou com uma Bolsa de Doutoramento da Fundao para a Cincia e Tecnologia, essencial para o seu desenvolvimento. Agradeo profundamente aos servios interbibliotecrios da Ohio State University.
minha me, alm de tudo, tenho de agradecer o facto de me ter ensinado a querer ler o Grande Serto. Ao meu pai por me ter dado rgua e compasso para l ir. E ao Pit, que por aqui tambm passou. Sem a companhia na travessia, nada disto faria sentido: Brbara Vallera, Clara Riso, Filipa Ribeiro do Rosrio, Francisco Frazo, Francisco Rosa, Joo Ribeirete, Jussara, Orlanda, Z Maria. Mas tambm Nuno Matos, Arianna Pieri e, apoio nos ltimos tempos, Ariane e Riccardo. Mas esta tese para o Marco, que veio ter comigo.
4
Introduo
5
Introduo
Experience has shown that it is by no means difficult for philosophy to begin. Far from it. It begins with nothing, and consequently can always begin. But the difficulty, both with philosophy and for philosophers, is to stop. This difficulty is obviated in my philosophy; for if any one believes that when I stop now, I really stop, he proves himself lacking in the speculative insight. For I do not stop now, I stopped at the time when I began.
Sren Kierkegaard, Either/Or
Divulgo: que as coisas comeam deveras por detrs, do que h, recurso; quando no remate acontecem, esto j desaparecidas.
Antiperiplia
I
Num ensaio em que interroga as relaes entre literatura e filosofia a partir de
Grande Serto: Veredas, Benedito Nunes anunciava deste modo o seu programa de
abordagem interdisciplinar: Tudo o que vai ser exposto acerca dessa obra tem o
carcter de reflexo sobre uma forma (Nunes 1983b: 205). Comeo por arriscar que
tambm esse o ponto de partida deste trabalho, tendo em conta que o que aqui se
procurar identificar o modo como na obra de Guimares Rosa se reflecte sobre a
6
fico a partir da sua relao com uma forma. Essa identificao, porm, no ser feita
no sentido de uma forma que represente uma instncia de questionamento de ideias
que so problemas do e para o pensamento, como prope Benedito Nunes (idem:
ibidem): o que aqui se procurar uma ideia de forma que responda ao questionamento
da legibilidade que os livros de Guimares Rosa insistentemente pem em cena. A
forma no ser, assim, entendida como veculo de problemas o problema a forma,
porque nela que se questiona a inteligibilidade da representao. Como princpio de
organizao da aco, a forma a questo da fico rosiana, no sentido em que
perante a imposio de uma estruturao entre incio, meio e fim, para retomar a
configurao aristotlica da questo, que narrativa e mundo se colocam em relao; e o
que os textos que aqui analisaremos parecem demonstrar que o problema no tanto o
de uma oposio entre as duas dimenses a fico que d forma ao mundo, como
comum dizer-se, por exemplo, a propsito da noo de closure mas o modo como
ambas se colocam em tenso com uma ideia de forma (orientao e estruturao) e lhe
parecem resistir. O mundo movente, como sugere o ttulo do ensaio de Jos Carlos
Garbuglio, tambm imagem do texto rosiano: ler a forma no concluda desse mundo
(ou seja o modo como o mundo se furta forma) a legibilidade paradoxal que a fico
de Guimares Rosa parece perseguir, atravs da forma e contra ela. A interrogao
dessa legibilidade do informe ser construda sobre a articulao de duas dimenses, o
livro e a narrao, considerando o modo como os textos de Rosa colocam em relao,
na tenso entre escrita e oralidade que est na sua base, a representao do acto
narrativo, vinculada figura do contador de histrias, e a acentuao da materialidade
do livro, dando particular ateno aos pontos de contaminao entre as duas ordens (o
dilogo que se faz inscrio, o livro que encena uma situao de presena). uma
passagem que importante esclarecer desde j: se a oposio em causa no , como
7
tentarei demonstrar, uma oposio entre mundo e fico, e sim uma oposio entre
mundo ou fico e a forma como condio de legibilidade, essencial concentrar a
ateno nas figuras dessa oposio, que ganharo corpo na encenao de gestos de
performao, no sentido com que Rosa usar o termo e que veremos em detalhe na
primeira parte deste trabalho os momentos em que o mundo e as histrias so postos
em tenso com a materialidade de um suporte que lhes d forma. Por esta razo que se
prope, no ttulo, uma relao entre livro e narrao, e no entre livro e histria, por
exemplo: como veremos nas encenaes do acto narrativo que a obra de Rosa
insistentemente oferecer, a tenso com a forma constri-se numa tenso entre os
ouvintes e o narrador, corpo da histria, que pe em causa a sua delimitao e bloqueia,
no sentido em que retm, a sua plena transmisso. A narrao o momento em que a
histria sem formato, para usar uma expresso que reencontraremos, pode ser
percebida como forma atravs do corpo do contador; mas ser percebida como lacunar,
incompleta, movente, pelos seus destinatrios, que procuraro impor-lhe, em nome da
forma, um final. ento na tenso entre a performao da histria e a imposio de uma
forma que a delimite que a legibilidade do informe como resistncia forma se constri.
Assim se percebe que o livro venha a ser o ponto central deste percurso: na
representao de situaes de narrativa oral, a fico de Rosa acentua precisamente a
resistncia do suporte transmisso, e nesse sentido aproxima a caracterizao da
narrao de problemas associados escrita e ao livro. A narrao imagem de uma
tenso relacional (reteno e desejo de completude) a que o livro, enquanto ideia de
totalidade numa forma material, d corpo; e o que aqui se entrev que, contrariamente
ao que muitas vezes se sugere, a recriao em Rosa de um mundo de contadores de
histrias no se oferece apenas como compensao de uma cultura da presena que a
modernizao destruiu, nem como regresso a uma oralidade arcaica. Nos exemplos que
8
veremos a narrao encena atravs da acentuao do corpo uma resistncia que
prpria da escrita: a representao da oralidade dirige-se para uma legibilidade diferida
que o livro de Guimares Rosa encenar e o valor performativo dessa legibilidade
assenta por inteiro na tenso com os limites da forma. A hiptese de que parto, assim,
a de que possvel articular o tratamento reflexivo da narrao, em Guimares Rosa,
com o questionamento do livro como figura de uma totalidade concluda e apreensvel,
e que nessa articulao o que se d a ver uma resistncia forma que, ao pr em causa
a imposio de limites (fim, comeo, margem), ir revelar-se tambm resistncia
leitura. A conjugao entre narrao e livro, acentuando a dimenso do transporte a
escrita como transporte de uma oralidade encenada, o livro como suporte da estria
apresenta-se deste modo como o lugar privilegiado de uma interrogao que ter na
materialidade do suporte (corpo do narrador, visibilidade da letra, livro material) o seu
campo de tenso. A partir deste quadro, ento possvel colocar a hiptese de um
trabalho sobre a forma do livro que procure superar os seus limites a partir do seu
interior, impondo uma dupla temporalidade sua construo material: linear, de um
lado, e recursiva, do outro, devolvendo insistentemente o leitor ao que no livro no se
fez legvel, orientando o acto de leitura para a paradoxal legibilidade do que no tem
formato. esse o projecto que aqui se desenvolve e sero essas as dimenses que
determinam os dois primeiros movimentos deste trabalho; na interrogao do modo
como o livro resiste forma imps-se, porm, um terceiro movimento, consequncia
desta primeira articulao. Antes de justificar a sua posio, torna-se necessrio um
pequeno desvio que articule, a partir do ttulo deste trabalho, livro e narrao com a
ideia de uma forma do meio.
9
II
Na sequncia central do conto Cara-de-Bronze, de Corpo de Baile, a narrativa
interrompe-se com a seguinte indicao de leitura:
Estria custosa, que no tem nome; dessarte, destarte. Ser que nem o bicho larvim, que j est comendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas, como na adivinha s se pode entrar no mato at ao meio dele. Assim, esta estria. (I 688).1
Importante por diferentes motivos no percurso deste trabalho, o excerto
exemplar de uma dificuldade intrnseca desta obra: antes mesmo de entrarmos em
interpretaes mais substanciais das implicaes de uma suposio como esta para a
relao entre incio, meio e fim (o todo edificado da obra), a adivinha coloca um
problema determinante para qualquer tentativa de leitura da fico de Guimares Rosa,
ao encenar a passagem de uma suposta descrio do mundo (o mato, o bicho larvim),
para um comentrio sobre a linguagem. A adivinha assenta num desvio: de uma
pergunta sobre o mato at onde se pode entrar? desloca-se, sem transio, para um
jogo entre expresses at ao ponto em que se comea a sair. O problema reside na
brusca transio entre os dois verbos, contguos numa relao que pe em causa
precisamente o terceiro termo que os define. E o problema desse terceiro termo ser
aquele a que se tentar dar resposta ao longo destas pginas, e para o qual se orientar o
questionamento da legibilidade do informe que aqui se prope. Se a adivinha interroga
at que ponto se pode entrar no mato, o texto de Rosa parece perguntar incessantemente
em que ponto se sabe que se comeou a sair ou, por outras palavras, em que ponto a
forma se fez forma. A resposta a esta pergunta, desdobrada por todos os livros de Rosa,
1 Todas as citaes da obra de Guimares Rosa, excepto quando indicado, sero feitas a partir
dos dois volumes da Fico Completa (Rosa 1994), indicando-se apenas o volume e a pgina.
10
passar necessariamente pela ideia de um diferimento, que ganhar corpo na figura,
decisiva para este trabalho, da releitura. Na relao entre entrar e sair, o meio revela-se
o ponto elusivo e diferido em torno do qual o texto se articula. Como se diz em Grande
Serto: Veredas: Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas
vai dar na outra banda num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que
primeiro se pensou. Viver nem no muito perigoso? (II 28).
Comear (e terminar) por um enigma, que necessariamente obscurece, por agora,
qualquer ideia de estrutura, uma estratgia bem rosiana: no entanto, o enigma serve-
me para destacar um problema de leitura para o qual muitos dos esquemas recorrentes
na recepo de Rosa no parecem oferecer resposta. Trata-se de um problema de
reflexividade, ou do modo como, na obra de Guimares Rosa, comentrio do mundo e
comentrio das estratgias de representao so continuamente sobrepostos,
constituindo um n reflexivo de difcil orientao. O anacoluto que o enigma sugere
disso exemplo: atravs de um vazio conceptual o centro que passamos de uma
ordem supostamente mimtica para a forma da enunciao, a aco de sair ganhando
ento o sentido de uma passagem (sem regresso) do mundo linguagem. O meio o
espao da sobreposio entre estas duas ordens: referncia e auto-referencialidade
coincidem, por momentos, nessa suspenso que se faz fronteira.
Parece-me ser esse o ponto de chegada possvel de um trabalho que procure
interrogar a ideia de legibilidade em Guimares Rosa: o que ope uma forma concluda
e delimitada a uma construo orientada para um centro que, furtando-se a uma fixao,
desestabiliza os pontos de entrada e de sada, introduzindo na forma a sua
transformao. No limite, poderamos dizer que este trabalho pode ser entendido, em
todos os seus momentos, como um esforo de leitura de uma das sequncias mais
conhecidas da obra rosiana: Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que
11
clareiam a sala. Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a
gente no meio da travessia. (II 46). O que tentarei demonstrar que numa passagem
como esta se concentram e tornam visveis os principais problemas da potica rosiana:
na construo de uma dimenso intervalar e diferida a travessia que no se soube ver a
tempo a prpria ideia de forma estruturada que posta em questo a partir de uma
ideia de centro que, vindo depois, faz da forma uma forma movente. Nesta imagem
encontramos no s a resistncia que o carcter elusivo de um meio em trnsito oferece
a uma legibilidade do mundo, mas tambm o ponto de tenso de uma construo da
forma do livro em Guimares Rosa.
O lugar de articulao destas questes questionamento da forma, reflexividade,
centro ser a parbase de Corpo de Baile e o modo como permite ler, de forma mais
abrangente, o trabalho sobre a suspenso intervalar que os dois exemplos de Grande
Serto: Veredas j acentuavam. A parbase tambm o eixo explcito da relao entre
livro e narrao (a forma do meio). Momento de suspenso da aco da Comdia
Antiga, em que o coro avana para o proscnio e fala directamente aos espectadores em
nome do autor, a parbase ocupava o centro da estrutura da pea. Extradramtica e
perturbadora da iluso ficcional, auto-referencial e intertextual, um intervalo que
interrompe e ameaa a fico contra a qual se define. Rosa incorpora a parbase, como
veremos em detalhe, atravs da duplicao dos ndices de Corpo de Baile, identificando
trs das sete novelas, no segundo, como parbases. O leitor verifica, nesse momento,
que esses trs contos ocupavam efectivamente o lugar da parbase na estrutura do livro,
situando-se, como suspenses peridicas na sua materialidade, no intervalo entre os
restantes. Tal como comemos por ver no exemplo anterior, o meio do livro revela-se
depois, na sada, na figura de um ndice de releitura que relana o livro em direco a si
prprio a partir do seu limite. Ao tradutor italiano Rosa escrever que a classificao
12
deriva de se ocuparem, os trs textos, de expresses de arte: a parbase de Corpo de
Baile, deste modo, apresenta-se como momento reflexivo de explicitao potica nele
a fico reflecte sobre a fico e a sua transmisso e como elemento da construo do
livro, abrindo um intervalo, um centro, indissoluvelmente ligado margem do livro que
o indica e identifica o ndice. atravs da parbase que encontraremos a imagem do
livro rosiano: a de uma solicitao crtica que ameaa a ideia de um livro como unidade
estruturada em princpio e fim para no mesmo gesto reafirmar na releitura a construo
de um livro que se alimenta do seu centro. Nesta conjugao de questionamento
metaliterrio e investimento numa forma desviante de livro a parbase prope-se como
figura determinante para a fico de Rosa, e o que aqui se far tom-la como figura da
interrogao da forma.
III
O percurso que esta tese prope determina-se assim na articulao dos dois
pontos anteriores. O seu movimento ir, podemos arriscar, do fim ao meio: da negao
do fim como questionamento da forma construo de um intervalo para o qual a
legibilidade do informe se orienta. A forma do livro, instituindo a releitura, ser o ponto
de passagem.
A primeira parte da tese, intitulada Indesfechos, prope, nos dois captulos que a
compem, uma leitura das representaes da narrao na fico de Guimares Rosa. A
veremos como a relao entre narrador, histria e interlocutor ser configurada como
uma relao de resistncia, no sentido, como dizamos, de uma reteno, de uma
configurao, por negao, de um sentido incompleto ou associado a uma falta, lacuna
ou abertura constitutiva; mas tambm de uma tenso entre os elementos em dilogo que
13
ter a sua manifestao mais forte nos textos em que Rosa recorre frmula do dilogo
oculto. A reflexo en abme sobre a narrao em Guimares Rosa parece contrapor a
ordem resistente do narrador que no permite o aniquilamento da histria num
esgotamento do sentido que a plena transmisso, e a concluso, realizariam; e o
movimento da leitura, em que ouvintes e leitores procuram impor atravs da
determinao de um fechamento uma forma que delimite a histria. no encontro
destas duas foras que se d aquilo a que chamei questionamento da forma e que parece
funcionar, na obra de Rosa, no sentido de uma inscrio do segredo numa materialidade
persistente. Essa resistncia construda, como j sugeri, atravs de uma acentuao do
corpo como lugar da histria; e o que se decide nesse gesto uma coincidncia, na
tenso agonstica que destaquei, entre tentativa de imposio de uma concluso e uma
ideia de morte. A morte a interrupo, nestes textos, que termina aquilo que no pode
razoavelmente terminar. Este movimento ser caracterizado de duas formas: no
primeiro captulo, a partir de trs exemplos significativos (episdios de Uma Estria de
Amor e Grande Serto: Veredas e o conto Pirlimpsiquice, de Primeiras Estrias);
no segundo, numa proposta de leitura de Meu Tio o Iauaret como encenao
extrema, na obra de Guimares Rosa, da narrao como acto de resistncia que resulta,
perante a tentativa de eliminao do suporte, numa queda na ilegibilidade.
O passo seguinte desta interrogao estabelece no trabalho sobre o livro, como
figura de uma totalidade organizada e estruturada que a fico desestrutura, a forma
dessa tenso. Na construo do livro rosiano procurarei identificar a resistncia que a
histria ope ao livro, ou ideia de livro, ou seja a resistncia que a ideia de fico
definida na primeira parte introduz no seio do prprio livro: a articulao entre livro e
narrao o lugar da forma como problema. Neste movimento define-se tambm de
forma mais clara o lugar deste trabalho. Nos livros de Rosa reconhece-se a insistente
14
encenao de uma forma plenamente delimitada que contra os seus limites se abre como
lugar de uma comunicao resistente em que se problematiza a referncia. E, no
entanto, o problema do livro um problema ausente da fortuna crtica rosiana. Se
exceptuarmos leituras individuais de livros em que a questo se impe, como por
exemplo Tutamia, so surpreendentemente poucas as leituras que interrogam de forma
transversal o papel do investimento sobre a forma do livro em Guimares Rosa, e
sobretudo que o procuram relacionar com outros aspectos da sua recepo2. A questo
do livro permite, porm, um questionamento integrado das tenses estruturadoras da
obra de Guimares Rosa que articule diferentes leituras sem que se esgote em nenhuma
delas: nesse sentido, o que me proponho nesta tese ler os livros de Rosa, acreditando
que a partir deles possvel pensar uma ideia de literatura.
Assim, a leitura que desenvolvo na segunda parte, intitulada O livro pode valer
pelo muito que nele no deveu caber e dividida por trs captulos, interroga a dupla
temporalidade em que a tenso da forma ganha corpo no livro rosiano: a linearidade do
livro como forma estruturada e unificada e o prolongamento do livro, alm do seu
limite, num movimento regressivo em direco ao seu centro. Essa interrogao faz-se
em dois momentos. No primeiro, identifica-se uma constante dos livros de Rosa depois
de Sagarana3: a construo de uma forma estrutural de desdobramento que pe em
2 Se, por um lado, evidente que a recepo crtica rosiana constitui hoje um corpus
excessivamente vasto e disperso para que no se coloque sob suspeita qualquer tentativa de generalizao, tambm verdade que certas tendncias se tm delineado de forma muito precisa. Num ensaio publicado em 2004, Willi Bolle dividia os estudos sobre Grande Serto: Veredas em cinco grandes grupos 1) lingusticos e estilsticos; 2) anlises de estrutura, composio e gnero; 3) crtica gentica; 4) interpretaes esotricas, mitolgicas e metafsicas e 5) interpretaes sociolgicas, histricas ou polticas para sublinhar que as ltimas duas tendncias acabaram polarizando o debate em torno da obra (20), movimento visvel sobretudo, a partir do final dos anos noventa. Trata-se de uma classificao meramente indicativa que pode fazer sentido, no entanto, para uma viso de conjunto da fortuna crtica.
3 Sagarana, livro que antecede de dez anos a publicao de Corpo de Baile em 1956, ficar fora do mbito deste trabalho, apesar de muitas das questes que aqui se levantam poderem numa releitura a partir dos livros posteriores iluminar a sua leitura. Este trabalho toma como possveis limites para a escolha e coeso do corpus a construo de Corpo de Baile (1956) e Tutamia (1967), a partir do comum tratamento do livro que a, e nos livros que medeiam, se identificar. As questes principais que aqui se trataro passam pela identificao de movimentos reflexivos; como afirma Suzi Sperber, s a partir de
15
causa a noo de margem, atravs da acentuao e multiplicao da dimenso
paratextual e do trabalho sobre a ilustrao. Num segundo momento desenvolve-se uma
leitura, a partir dos elementos de composio do livro, dos dois casos extremos de
problematizao da forma que apresentam a figura de um ndice de releitura: Corpo
de Baile e Tutamia. A comparao entre os dois, ideia inicial deste projecto, permite-
nos introduzir um elemento decisivo para o questionamento da legibilidade que aqui
est em causa: nos exemplos da primeira parte, a imposio de um limite fazia coincidir
morte e interrupo; no ndice de releitura, ao contrrio, o livro prolonga-se, negando a
sua delimitao, em nome de uma legibilidade diferida, como tentarei demonstrar,
figura ltima da leitura da forma. nesse trao que se far mais explcita a relao da
forma com o tempo: inscrita na materialidade do suporte, a desestabilizao que a
histria produz no livro uma desestabilizao que no anula o limite contra o qual se
constri, e nesse sentido o movimento que o livro origina um movimento regressivo,
que devolve, atravs da figura da parbase, o leitor de volta ao centro do livro, intervalo
crtico onde a forma se suspende e revela. Neste gesto decide-se a configurao do livro
como errata, forma em transformao, e a identificao dos dois plos desse
movimento, que se desenvolver na parte final desta tese: a releitura e a parbase.
Assim, na terceira parte, intitulada S se pode entrar no mato at ao meio dele,
o primeiro captulo identifica trs movimentos desta desestabilizao regressiva do livro
a partir de Grande Serto: Veredas: a revelao pstuma como figura da negao da
closure; a interrupo central que questiona a forma sem a destruir, parbase do
romance; e, por ltimo, o movimento retroactivo da releitura na representao da carta
atrasada de Nhorinh como figura en abme deste questionamento da legibilidade. A
construo do livro analisada a partir de Tutamia a articulada com a construo do
Corpo de Baile que ida e volta, travessia, [se] convertem em problemas metalingusticos (Sperber 1982: 113).
16
romance, interrogando em particular a dimenso temporal da repetio e a funo do
reconhecimento como figura estrutural do questionamento da forma. O segundo e
ltimo captulo identifica em Cara-de-Bronze o ponto de fuga dos movimentos que
aqui se descreveram. Parbase da parbase, como argumentarei, toda a sua construo
encena uma resistncia da forma em torno de um centro que se furta representao. O
texto cruza a definio de uma aprendizagem potica, e do fazer do prprio texto, com
um questionamento da experincia literria e dos seus efeitos a partir de uma
multiplicao de formas que delimitam, enquanto ponto de atraco, a ideia de poesia
como ncleo ao mesmo tempo vital e irrepresentvel. Texto central na obra de Rosa,
nele se encontraro as linhas que definem reflexivamente a ideia de representao que
est em causa nesta fico, fazendo da tenso com os limites da forma o ponto de
superao de uma ideia de morte. Cara-de-Bronze, assim, encerra o movimento de
uma leitura contra a forma em torno da suspenso da parbase: s se pode entrar no
mato at ao meio dele.
Uma ltima nota a esta apresentao do caminho a percorrer. Se a estrutura do
trabalho a que aqui se apresentou, falta dizer algo sobre o procedimento de leitura: o
trabalho de subverso da forma que est aqui em causa identificado, essencialmente,
atravs de episdios e passagens mnimas que reflectem (ou invertem) movimentos
maiores dos textos em anlise. Apenas dois dos textos aqui considerados sero lidos
como totalidade: Meu Tio o Iauaret e Cara-de-Bronze, os dois extremos desta
interrogao da forma, o primeiro encenando o colapso do texto perante o seu limite
violento e o segundo construindo regressivamente alm do fim o espao irrepresentvel
da forma do centro. Todas as outras passagens iro fazer-se atravs da considerao de
elementos marginais, tanto no sentido, literal, que faz do paratexto do livro o lugar da
sua subverso e relanamento, quanto em sentido figurado: pequenos episdios ou
17
personagens aparentemente secundrias, na economia dos textos ou na recepo crtica,
que introduzem neste trabalho uma segunda narrativa, que s na leitura se poder
acompanhar, e que faz de personagens como Joana Xaviel, o Guegue, Nhorinh ou
Aristeu mendigos, prostitutas e bobos a quem o texto reserva escassos pargrafos as
fissuras decisivas de uma resistncia forma. Tentarei aqui mostrar que so essas as
veredas que permitem a leitura da forma do serto.
18
I. Indesfechos
Nada em rigor tem comeo e coisa alguma tem fim, j que tudo se passa em ponto numa bola; e o espao o avesso de um silncio onde o mundo d suas voltas.
A Estria do Homem do Pinguelo
El otro tigre, el que no est en el verso J. L. Borges
19
1
O resto que falta
1. faltava a segunda parte?
Escrevi metade. Isto : como que podia saber que era metade, se eu no tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?!
Grande Serto: Veredas
Durante os preparativos para a festa que d o subttulo novela Uma Estria de
Amor, segunda de Corpo de Baile, o protagonista Manuelzo descansa num catre
atrs de parede, quase encostado na cozinha (I 562), onde as mulheres, reunidas,
contam histrias na noite da vspera. Organizada por Manuelzo, a festa destinada
consagrao de uma igreja vai representar, ao mesmo tempo, a fundao de um lugar
a Samarra e o ponto crtico do percurso, e da constituio do nome, do seu fundador; a
noite antes da festa um dos momentos em que a personagem se debate entre a posio
de poder que neste momento ocupa e o questionamento da realidade desse mesmo
poder, sendo a preparao vivida em movimentos contrastantes que ora atestam controlo
20
ora colocam Manuelzo na posio daquele que foi sendo levado, e levado, pelo
movimento da festa (ou da vida). Nessa oscilao, a ritualidade funde-se com uma
problematizao da morte, incio e fim reunidos na ciclicidade da festa de fundao.
Como rito colectivo, esta atrai a povoao e em particular um rol de cantadores e
contadores, inscrevendo no texto a multiplicidade de vozes ligadas tradio popular
que iro tecer a complexidade polifnica da novela. A cena da vspera, quando as
histrias encaixadas ganham abertamente o primeiro plano, o momento em que a
dimenso reflexiva do conto se torna mais explcita: se, de acordo com a
correspondncia de Guimares Rosa com o tradutor italiano, o tema de Uma Estria de
Amor so as estrias, suas origens, seu poder (Rosa 2003a: 91) ou as estrias
(fico) (idem: 93)1, neste episdio que se deve procurar uma definio de fico, por
um lado, e da dinmica daquilo a que nos textos de Rosa se chamar narrao, num
movimento de mise en abme que me interessa aqui explorar. Figura determinante desta
representao ser a personagem Joana Xaviel, contadora que, tendo vindo para a festa,
estava agora na cozinha ensinando as estrias (I 562).
A sucesso de narrativas, pautada pelas reflexes em discurso indirecto livre de
Manuelzo e por intervenes da narradora no vo entre duas estrias (I 562), parece
constituir-se como fluxo contnuo, articulado pela frmula o seguinte este (I 563),
que levar, pginas adiante, o protagonista a perguntar se Joana Xaviel no terminava
nunca de acabar aquelas estrias? (I 570). Entrecortadas pelo fluxo das reflexes de
Manuelzo, as histrias contadas parecem comentar o modo como se articulam numa
sequncia apenas aparentemente interrompida, em que as delimitaes se esbatem e 1 Rosa justifica a incluso deste texto, no segundo ndice de Corpo de Baile, na parbase do
livro, do seguinte modo: Uma Estria de Amor : trata das estrias, sua origem, seu poder. Os contos folclricos como encerrando verdades sob forma de parbolas ou smbolos, e realmente contendo uma revelao. O papel, quase sacerdotal, dos contadores de estrias. (...) A formidvel carga de estmulo normativo capaz de desencadear-se de uma contada estria, marca o final da novela e confere-lhe o verdadeiro sentido. (Rosa 2003a: 91-92). Sobre a classificao parbase e as suas implicaes, ver a segunda parte deste trabalho.
21
confundem, numa progresso potencialmente infinita: era uma vez uma vaca Vitria:
caiu no buraco e comea outra estria... e era uma vez uma vaca Tereza: saiu do
buraco e a estria era a mesma... (I 573-574). Nessa sequncia entrar, porm, uma
histria desigual das outras, que coloca explicitamente o problema da sua interrupo
e ter amplo destaque ao longo da sequncia nocturna de Manuelzo sem no entanto
quebrar a srie que integra: trata-se da histria da Destemida, variao rosiana da
histria do Vaqueiro que no mentia2, sobre a ascenso sem queda de uma mulher
terrvel que parece comprazer-se em provocar o mal3. A histria conclui-se deste modo:
A estria se acabava a, de-repentemente, com o mal no tendo castigo, a Destemida graduada de rica, subida por si, na vantagem, s triunfncias. Todos que ouviam, estranhavam muito: estria desigual das outras, danada de diversa. Mas essa estria estava errada, no era toda! Ah, ela tinha de ter outra parte faltava a segunda parte? A Joana Xaviel dizia que no, que assim era que sabia, no havia doutra maneira. Mentira dela? A ver que sabia o resto, mas se esquecendo, escondendo. Mas uma segunda parte, o final tinha de ter! Um dia, se apertasse com a Joana Xaviel, brava, agatanhal, e ela teria que discorrer o faltante. Ou, ento, se vero ela no soubesse, competia se mandar enviados com paga, por a fundo, todo longe, pelos ocos e veredas do mundo Gerais, 2 Sandra Vasconcelos (1997) e Cleusa Passos (2000) traam um mapa dessa genealogia,
verificando a forma desviante da histria de Joana Xaviel, que pode ser agrupada ao (...) ncleo de narrativas, de origem muito antiga, cujo paradigma a Estria do Vaqueiro Que No Mentia, tambm conhecida como Estria do Boi Leio, ou Quirino, Vaqueiro do Rei. Seja em sua verso como conto popular, seja como tema do Entremeio de Reisado e Bumba-meu-boi, o Vaqueiro que no mentia circulou em diferentes regies do pas e seu motivo central pode ser rastreado at suas origens europias, especialmente peninsulares. (Vasconcelos 1997: 111-112).
3 Na progresso malfica da Destemida pode reconhecer-se a caracterizao de um mal solto por si que em Grande Serto: Veredas se fixar sobretudo na figura de Hermgenes, mas que tem uma representao encaixada e exemplar na narrao do caso de Maria Mutema por Je Bexiguento (II 145-148). A relao entre os dois episdios pode interessar-nos por duas ordens de motivos. Em primeiro lugar, temos no episdio do romance a representao de um narrador, definido como contador de casos, que no parece compreender a histria que conta (cf. a afirmao anterior de Bexiguento sobre a separao do Bem e do Mal, contrariada pelo caso que contar), permitindo interrogar, tal como aqui, a relao entre as histrias e os seus intrpretes; em segundo lugar, no episdio de Joana Xaviel, interrogao referida de Manuelzo sobre a continuidade da narrao ir seguir-se a pergunta: O padre no esbarrava de rezar no quarto, no se adormecia? (I 570). A relao entre a infinitude da histria e a infinitude da reza pode ser colocada tambm a propsito do episdio de Maria Mutema, na cena, comentada por Rosemary Arrojo, da entrada de Maria Mutema na igreja durante o Salve-Rainha, sendo que a recusa em interromper a reza por parte do padre (Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salve-rainha orao que no se pode partir em meio em desde que de joelhos comeada, tem de ter suas palavras seguidas at ao tresfim. Mas o missionrio retomou a fraseao, s que com a voz demudada, isso se viu., II 146) provocar a associao da pecadora Maria Mutema reza em curso, sendo deste modo saudada, prefigurando a inverso final da assassina em santa (Arrojo 1993: 181).
22
caando para se indagar cada uma das velhas pessoas que conservavam as estrias. Quem inventou o formado, quem por to primeiro descobriu o vulto de idia das estrias? Mas, ainda que nem no se achasse mais a outra parte, a gente podia, carecia de nela acreditar, mesmo assim sem ouvir, sem ver, sem saber. S essa parte que era importante. (I 565).
A recepo da histria caracterizada, indiferenciadamente, como colectiva e
individual. Tecida nas reflexes de Manuelzo, a ausncia de uma delimitao entre a
sua reaco e a reaco de todos que ouviam aqui determinante: se, por um lado, se
trata de uma representao do conflito da personagem, claro que estamos perante uma
problematizao geral da narrativa e dos seus efeitos, centrada precisamente sobre o
problema da concluso. Ao contrrio das outras histrias referidas, que parecem oscilar
entre uma completude prpria e a articulao num contnuo que permanentemente as
relana sem pr em causa a sua forma, esta histria provoca uma reaco porque
sentida como incompleta, interrompida e nesse sentido o problema que levanta ser
sempre o do seu prolongamento. O que com esta histria se abre , pois, a questo que
determina a tenso central de Uma Estria de Amor: a que ope o seu ncleo temtico
(o episdio do riacho que secou como erro no processo de fundao e figurao da
morte) s histrias como paradigma de superao da descontinuidade4. A histria de
Joana Xaviel , nesse sentido, o ponto de maior tenso entre interrupo e continuidade.
Nas palavras do conto: Chegava na hora, a estria alumiava e se acabava. Saa por fim
fundo, deixava um buraco. Ah, ento, a estria ficava pronta, rastro como o de se ouvir
uma missa cantada. (I 573).
4 As principais leituras de Uma Estria de Amor assinalam a importncia do episdio do
riacho para a construo da novela: esse erro de fundao (a construo da casa sobre um rio que subitamente seca) o que a festa poder corrigir no modo como articula, nas histrias, imagens de uma superao do limite temporal: o reconhecimento da permanncia do riachinho para alm da sua extino ir fazer-se, na histria final de Camilo, com a referncia ao riacho que nunca seca (I 609). Para uma leitura detalhada do episdio e do seu desenvolvimento cf. Vasconcelos 1997: 57-75 e Miyazaki 1996: 191-198.
23
1.1
Conforme destacou Sandra Vasconcelos na primeira leitura dedicada
exclusivamente a Uma Estria de Amor (Vasconcelos 1997), a estrutura do conto
gravita em torno da relao entre duas personagens aparentemente laterais que se
articularo com o percurso do protagonista: as duas figuras de contadores, Joana Xaviel
e o Velho Camilo, que, atravs de duas histrias, a histria da Destemida e a Dcima
do Boi e do Cavalo, pautariam os dois pontos, mnimo e mximo, da evoluo de
Manuelzo5. Podemos adiantar a hiptese de a novela se construir inteiramente sobre a
conjugao de verses de narrativa representadas pelo par o amor do ttulo sendo o
espao de uma teorizao das possibilidades narrativas que eles representam ou, como
se diz em Grande Serto: Veredas a propsito de todo amor, uma espcie de
comparao (II 104)6. Este seria, por definio, o momento negativo desse percurso,
traduzindo para Manuelzo a inquietao de um mundo desordenado7, ou de uma
libertao da Lei que a figura feminina ousadamente representaria8, nos dois casos
provocando uma violenta rejeio por parte do protagonista, estendida ao estranhar de
todos os que ouviam, em nome de uma manuteno da ordem procurada ao longo de
todo o texto. possvel pensar esse estranhamento em termos da descrio aristotlica
(Retrica, II 8 e 9; 2006: 184-189) da indignao [to nemesan] como sentimento de dor
perante uma fortuna (alheia) imerecida: a indignao e a piedade, seu directo oposto, 5 Cf. tambm T. Myiazaki: a estria de Joana Xaviel prepara criticamente a de Camilo, de que
o espelho em negativo. (Myiazaki 1996: 19). 6 O ponto culminante da narrativa de Camilo seria, neste sentido, o seu reconhecimento por
Joana Xaviel enquanto contador: Joana Xaviel de certo chorava. Essa estria ela no sabia, e nunca tinha escutado. Essa estria ela no contava. O velho Camilo que amava. Estria! (I 611).
7 Cf. Sandra Vasconcelos: Nesse universo, no h remisso e nada se recompe, o que faz dessa histria uma epifania negativa, pois o que se revela para os ouvintes um mundo de cabea para baixo, um mundo desconjuntado em que tudo est fora do lugar. (Vasconcelos 1997: 114).
8 Cf. Cleusa Passos: Inconformado com a falta de castigo para o mal que oculta o impossvel fascnio pela nora, reprimido em nome de regras simblicas que impedem o incesto, Manuelzo rejeita essa narrativa danada de diversa, cujo termo excede os limites da Lei... (Passos 2000: 179).
24
partilham o pressuposto de uma ordem em que os homens so recompensados de forma
proporcional ao seu valor9, questo directamente colocada ao longo de Uma Estria de
Amor no modo como se pesa riqueza e merecimento10. Uma falha nessa distribuio
suscitaria nos homens de bom carcter o desejo de ver a queda do indivduo
indevidamente beneficiado. A histria da Destemida, fechando-se numa interrupo que
suscita e deixa em aberto a justa indignao dos ouvintes, recusar-se-ia, neste sentido,
como exemplo de conto de aco moral, ao afirmar o triunfo da personagem vil, o
mal no tendo castigo, invertendo deste modo a moral implcita do conto popular
(Vasconcelos 1997: 115). E a percepo desse desvio, repare-se, depende
exclusivamente da inconformidade com o universo das histrias a que supostamente
esta pertence a histria da Destemida , antes de mais, desigual das outras, danada de
diversa.
No entanto, importante sublinhar que o sentimento de indignao justa,
mais do que resposta a uma lio sobre a ordem do mundo, aqui sentido como efeito
indissoluvelmente ligado a uma estrutura, identificada pelos ouvintes como incompleta:
a falta de um sentido de fechamento que destaca esta histria, isolando-a do quadro da
sequncia narrativa em que se encontra e que interrompe. Como diz Barbara Herrnstein
Smith no incio do seu estudo sobre Poetic Closure, the sense of closure is a function
of the perception of structure (Smith 1968: 4). Assim, no apenas o exemplo da
histria a ser sentido como errado, nem os identificveis desvios, no curso da narrao,
em relao a outras variantes da histria tradicional que parece estar por trs desta.
9 Indignation, like pity, is moralistic; it translates good fortune into reward, just as pity
translates bad fortune into punishment, and the distress in each case arises from the consequent discrepancy between this perceived external reward or punishment, and an assumption about the internal character of the one who undergoes it. Pity and righteous indignation share the pressuposition that nature itself should be governed by an order in accordance with the standards of human justice (Burger 1971: 129); cf. tambm Leon Golden, Aristotle on the Pleasure of Comedy (Golden 1992).
10 E tambm no modo como a oposio Joana Xaviel/Camilo articula o par indignao/piedade no progressivo reconhecimento, por parte de Manuelzo, do Velho Camilo como seu igual. Para o questionamento do valor social em Uma Estria de Amor cf. Miyazaki 1996: 164-171.
25
Aquilo que aqui desperta o escndalo o facto de nada se seguir concluso desigual
apresentada pela contadora, que passa ento a representar um limite insustentvel, como
alis parece sugerir o facto de a estranheza da histria se apresentar inicialmente como
reparvel atravs de um movimento de adio (uma segunda parte). A ausncia dessa
continuao passa para primeiro plano: o vazio institudo pelo final de Joana Xaviel
ocupa o lugar de uma resoluo, de um movimento de inverso de fortuna, de um
completamento, afectando constitutivamente a aco. E esse vazio constitui-se como
trao singularizante da histria no quadro das outras contadas na mesma cena. Recorde-
se, como tem sido sublinhado desde o ensaio pioneiro de Cavalcanti Proena (1958: 25),
que Joana Xaviel ir introduzir tambm o contraponto tradicional ao desenvolvimento
do motivo da donzela guerreira em Grande Serto: Veredas, lanando um jogo
citacional que ter implicaes determinantes na construo do segredo no romance
rosiano. Na narrao, momentos antes, da histria de Dom Varo, em aberto contraste
com a recriao complexa de Grande Serto, temos um exemplo de closure comentada:
A Rainha ensinava ao filho seguidos trs estratagemas, astcia por fazer Dom Varo esclarecer o sexo pertencido. Quando sucedia esse final, o Prncipe e a Moa se casavam, nessas glrias, tudo dava acerto. (I 561). Quando sucedia esse final: o remate que, em Dom Varo, rene peripcia e
reconhecimento numa conciliao final, que parece faltar histria de Joana Xaviel. O
desenvolvimento que ser dado percepo do erro, transformado aqui em escndalo,
interessa-nos por colocar em causa, imediatamente, o formado das estrias. Na
reaco daqueles que ouvem a histria essa estria estava errada, no era toda! a
passagem lgica do erro para a incompletude que constitui o ncleo do episdio, pois o
erro antes de mais um erro de forma, em consequncia gerando um escndalo tico.
Completar a histria apresenta-se, para aqueles que a ouvem, como o nico modo de
completar a aco, que s parece existir no interior da histria. Fora da histria est o
26
vazio: se a aco narrada incompleta, a sua continuao s se poder encontrar numa
segunda parte que emende a interrupo. O erro ser, ento, um erro da histria que se
traduz numa aco incompleta, faltante por aco daquele que a estrutura, do
construtor de enredos, neste caso a contadora, que aparecer queles que a ouvem como
figura do escndalo e do conflito. Se uma concluso, na sua mais simples e persistente
definio, aquilo a que nada se segue, a recepo da histria de Joana Xaviel recusa o
fim que Joana Xaviel oferece, pressupondo um movimento estrutural que faria desse
fim o momento que antecede a inverso necessria: o meio, que separa primeira e
segunda parte. Este fim que no fecha sentido como interrupo de algo que s na
histria poderia continuar. Acabar impropriamente equivale a acabar de-
repentemente, bruscamente, sem verdadeiramente acabar.
1.2
Percebe-se ento que todo o excerto esteja construdo sobre a oposio entre
uma reaco histria que a sente como errada ou seja incompleta, interrompida e a
nica defesa possvel por parte da contadora, uma defesa, alis, que reafirma a forma da
histria: A Joana Xaviel dizia que no, que assim era que sabia, no havia doutra
maneira. essa tenso que importa interrogar. A histria da Destemida um dos
pontos, na obra de Rosa, em que a relao entre histria e narrador problematizada
abertamente e caracterizada, de acordo com o que veremos, como relao de resistncia,
colocando problemas a uma leitura excessivamente transparente da presena da
narrativa tradicional nestes textos. Essa resistncia construda, no excerto, segundo
dois eixos: por um lado, verifica-se uma descontinuidade entre a figura da contadora e o
27
universo que supostamente representaria11, quebrando-se a relao metonmica entre o
contador de histrias e o mapa de uma memria que lhe daria sentido; por outro, nessa
manifestao particular de narrao o que posto em questo um problema de forma
que reencontramos ao longo de toda a obra de Rosa: o problema de uma incompletude
constitutiva em tenso com uma ideia de totalidade que se d por negao, sendo aqui
os seus limites jogados contra uma ideia de histria que d o tema a Uma Estria de
Amor.
Pensando agora no primeiro desses eixos, repare-se que so postas em relao
uma dimenso individual (o contador) e uma forma (a histria) que o atravessa mas no
parece residir exclusivamente nele: os ocos e veredas do mundo Gerais e cada uma
das velhas pessoas que conservavam as estrias, ltimo recurso da inquietao dos
ouvintes, so as duas dimenses de que Joana Xaviel seria o prolongamento, enquanto
meio de transmisso dotado de mobilidade, mas aos quais se ope a partir do momento
em que a sua histria se caracteriza por uma forma escandalosa de desvio. Assim, este
pequeno episdio comea por colocar a relao entre a manifestao especfica da
histria contada por Joana Xaviel e a necessria mas no disponvel existncia da
estria completa alm deste momento particular, que parece coincidir, aqui, com uma
ideia de tradio (a histria desigual das outras), ou de memria colectiva. Percebe-
se ento que o problema terico associado existncia das histrias, colocado no quadro
das interrogaes da personagem de Manuelzo, seja a pergunta sobre quem inventou
o formado, sendo o vulto de idia feito equivaler, desde j, em primeiro lugar a um
plano ideal, e mais tarde a uma temporalidade anterior e inacessvel. O que
importante, por agora, que o problema comea j a delinear-se como conflito e isso
interessa-nos inicialmente mais do que a raiz do escndalo. O conflito entre 11 Veja-se, por exemplo, Sandra Vasconcelos: Joana Xaviel e Camilo so porta-vozes de um
patrimnio coletivo, que preservam do esquecimento mediante a restaurao da fora mobilizadora e transformadora da palavra. (Vasconcelos 1997: 171).
28
performance e recepo que aqui se materializa assinala claramente que a contadora que
d forma histria determina a sua nica possvel manifestao a manifestao
incompleta, errada, da histria quando o erro suscita a exigncia de uma forma
completa inacessvel (tinha de ter outra parte).
importante sublinhar que a invalidao do final de Joana Xaviel pelos seus
ouvintes em nome de uma segunda parte parece orientar-se exclusivamente para a
obteno de um novo fim, de uma concluso que permita fechar o escndalo da
interrupo, e nesse sentido permite colocar os problemas associados noo de
closure12 e ao que determina uma concluso adequada e apropriada13. Diz-se, a dada
altura, no texto, a propsito da ascenso social de Manuelzo, que a Samarra era uma
espcie de comeo de metade de terminar (I 546) estrutura em que, de acordo com
Tieko Miyazaki, o aspecto inceptivo no de um novo tempo, mas de um fim
(Miyazaki 1996: 159). O movimento que determina a novela , nos seus vrios planos, o
da necessidade de um fim que retrospectivamente configure a coerncia do todo14, como
a frase referida exemplarmente descreve, ao reler a articulao de tempos em nome
dessa coerncia conclusiva. O mesmo movimento de desejo de fim projectado, no
exemplo de Joana Xaviel, assentar na recusa de um outro fim, transformado pela
exigncia de continuao apenas no ponto intermdio de uma aco que se deseja
completa. O que aqui se destaca que essa invalidao os devolve ao meio, quele
12 Ver, por exemplo, a caracterizao das dificuldades de uma sistematizao do sentido de
closure na introduo ao estudo de Marianna Torgovnick, Closure in the novel (Torgovnick 1981: 3-19). 13 As I use the term, closure designates the process by which a novel reaches an adequate and
appropriate conclusion or, at least, what the author hopes or believes is an adequate, appropriate conclusion. (Torgovnick 1981: 6).
14 Talvez o momento, na obra de Rosa, em que a necessidade de um fim mais claramente ligada ideia de uma legibilidade retrospectiva seja a seguinte passagem de Grande Serto: Veredas: O inferno um sem-fim que no se pode ver. Mas a gente quer Cu porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. (I 44).
29
middest 15 em que Frank Kermode, com uma frase de Sir Philip Sidney, situa o desejo
humano da fico como forma de configurao da totalidade.
A totalidade projectada a partir da negao da histria contada como totalidade,
porm, ter necessariamente que se propor como imaterial: percebe-se ento que se
diga, sobre as quadras cantadas na festa, que as quadras viviam em redor da gente, suas
pessoas, sem se poder pegar, mas que nunca morriam, como as das estrias (I 561).
Sem se poder pegar: a totalidade que a segunda parte reconfiguraria tem de se situar em
tenso com a histria material de Joana Xaviel, por recusar o limite por ela oferecido e
representado. Toda a tenso da problematizao da figura do contador passa por aqui: o
escndalo parece materializar-se numa forma faltante, intrinsecamente fragmentria,
por completar, mas que ter de ser completada contra a contadora como representao
fsica da materializao da histria. em nome de uma totalidade imaterial que a forma
da histria invalidada e a forma escandalosa e lacunar que gera a totalidade da
histria. O lugar dessa passagem o final de Joana Xaviel transformado em espcie de
comeo de metade de terminar, em meio orientado para um outro fim. O movimento,
porm, age ainda e apenas sobre a histria que preciso corrigir, completando-a, e
sobre a narradora que a constitui. nessa tenso que surge, neste excerto, a questo da
violncia do desejo.
1.3
histria contada, por necessidade estrutural, tem de corresponder uma segunda
parte, e esta necessidade o motor, nos ouvintes, de um movimento violento: apertar
com o contador, exercer violncia sobre ele a sua primeira projeco, que se fixa,
15 Men in the middest make considerable imaginative investment in coherent patterns which, by
the provision of an end, make possible a satisfying consonance with the origins and with the middle. That is why the image of the end can never be permanently falsified. (Kermode 2000: 17).
30
imediatamente, sobre o corpo: se apertasse com a Joana Xaviel, brava, agatanhal (I
565). O leitor est preparado para isso, neste ponto do texto, pelo modo como a
descrio da personagem prepara o tema da transformao do narrador pela histria em
Uma Estria de Amor. Joana Xaviel, que aparece no texto, ao contrrio do Velho
Camilo, como figura j formada e definida na sua profisso, tem essa definio
precisamente na disponibilidade para a metamorfose. A contaminao entre histria e
narrador ser clara atravs da recorrncia, para Joana e Camilo, de um lxico que
directamente evoque essa disponibilidade. O Velho Camilo, na sua vez, parece sado
em outro Velho Camilo, sobremente (I 602); Joana Xaviel, ao contar, sofria uma
transformao semelhante: virava outra e uma valia, que ningum governava,
tomava conta dela, s tantas (I 561). outra das marcas da relao complexa da
histria com o contador: se a forma da histria depende do seu narrador, o narrador
fisicamente transformado pela histria. Esta transformao, mais uma vez, parece
dependente de uma situao de presena, que a cena em anlise, no entanto,
complexifica.
O ponto de partida para a caracterizao da figura do contador ser ento o da
aco da palavra sobre o corpo. Do ponto de vista dos efeitos, repare-se no entanto que
Uma Estria de Amor encena essa aco de forma indirecta: Sandra Vasconcelos
sublinhou a importncia do som, no texto, no quadro da contraposio entre arcaico e
moderno que est na base do seu argumento. Diz-se em Puras Misturas: No seu
resgate de um universo mais arcaico, que se perdeu na paisagem moderna, o narrador
recupera tambm a experincia dos sentidos, fazendo da escuta um outro modo de
olhar. (Vasconcelos 1997: 56). A pergunta que se coloca ser, ento, a de uma possvel
equivalncia entre escuta e olhar para a construo de uma situao de presena. A cena
em anlise, a esse respeito, abertamente questiona essa suposta presena: como referi
31
inicialmente, a longa sequncia da narrao de Joana Xaviel construda, em discurso
indirecto livre, a partir de uma focalizao sobre a figura de Manuelzo, deitado no
catre num quarto adjacente cozinha. O protagonista figurado no em voyeur, mas
numa situao paralela: ouve, sem ser visto, as histrias e as vozes da cozinha. Antes de
sabermos que a mulher est efectivamente do outro lado da parede, a contar, e que
Manuelzo se encontra na posio descrita, temos uma apresentao geral das histrias
e da narradora Como as compridas estrias, de verdade, de reis e donos de suas
fazendas (...) as estrias contadas, na cozinha, antes de se ir dormir, por uma mulher (I
561) subitamente particularizada num evento especfico Se somava que a Joana
Xaviel tinha vindo para a festa (I 562). Essa primeira projeco da figura, que no a
reconhece ainda como prxima, comea j por descrev-la transformada no momento da
narrao: tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara demudava,
desatava os traos, antecipava as belezas, ficava semblante (I 562). A partir da, o
longo relato vai cruzar o fluxo do pensamento de Manuelzo com as palavras que
chegam da cozinha, a voz cruzando-se por duas vezes com o relato dessa transformao.
H um ponto em que a questo se torna determinante:
Joana Xaviel demonstrava uma dureza por dentro, uma inclinao brava. Quando garrava a falar as estrias, desde o alumeio da lamparina, a gente recebia um desavisado de iluso, ela se remoando beleza, aos repentes, um endemnio de jeito por formosura. Aquela mulher, mulher, morando de ningum no querer, por essas chapadas, por a, sem dono, em cafuas. Pegava a contar estrias gerava torto encanto. A gente chega se arreitava, concebia calor de se ir com ela, de se abraar. As coisas que um figura, por fastio, quando se est deitado em catre, e que, seno, no meio dos outros, em p, sobejavam at vergonha! De dia, com sol, sem ela contando estria nenhuma, quem v que algum possua perseveranas de olhar para Joana Xaviel como mulher assaz? (I 565-6).
Sem ela contando estria nenhuma: o torto encanto de Joana Xaviel, objecto
de desejo do devaneio do protagonista, mais uma vez, no reside nela, e sim na
32
interaco entre ela e a histria. Vimos que sem narrador no haveria histria num
certo sentido, sabemos agora que sem histria, sem a aco da histria sobre o corpo,
no h desejo, ou no h mesmo o corpo que gera o desejo, como a recorrncia de
imagens de alteridade parece sugerir. A palavra age sobre o corpo, tornando-o
disponvel para um desejo que se esvai na ausncia da palavra; uma dimenso indirecta
parece sobrepor-se metamorfose visual que as palavras implicam e a audio
secreta, o voyeurismo auditivo, o trao mais marcante dessa posio. Repare-se que a
aco da metamorfose apenas projectada, e que o desejo pela forma transformada
afirmado como possvel apenas em situao de negao: As coisas que um figura, por
fastio, quando se est deitado em catre, e que, seno, no meio dos outros, em p,
sobejavam at vergonha! Manuelzo descrito como desejando o objecto de uma
transformao visual pela narrao apenas no momento em que no pode ver. E o que a
descrio constri uma transformao visual assente numa interaco entre corpo e
palavra vedada descrio, obliquamente representada na situao de devaneio cego.
Deste modo, o texto constri uma transformao intrinsecamente vinculada a um verbal
ausente. Se a palavra age tornando-se visvel no corpo, qual o estatuto desta percepo
indirecta da transformao, precisamente no texto de Rosa em que parece ser mais
explcita uma tematizao da presena? Podemos arriscar que os problemas mais
difceis da leitura de Corpo de Baile se situam nesta esfera; deste paradoxo que se
ocuparo, num sentido geral, as narrativas que compem o livro, desde as cantigas de
Aristeu em Campo Geral at aos dilogos nocturnos de Buriti: o da representao
textual e diferida de um valor performativo aparentemente vinculado a situaes de
presena ou dilogo. O episdio de Joana Xaviel d corpo tenso entre oralidade e
escrita que est na base do projecto rosiano. Como sublinha Susana Lages a propsito
de Grande Serto: Veredas:
33
H portanto um plano tico uma moral da forma que determina como certos contedos ou temas mticos se articulam no texto. (...) A fala de Riobaldo, porm, enquanto fala, oralidade, diz tambm da sua impossibilidade de abranger a vida em seu contnuo fluir e mesmo de capturar o instante primordial das origens. Mas a fala de Riobaldo no uma fala: um texto escrito que encena uma situao de fala. O que h um efeito de oralidade e uma aura mtico-sacral obtidos atravs de um manejo extremamente apurado da linguagem em seus diferentes planos (...). (Lages 2002: 74).
A escolha da representao cega e indirecta da metamorfose atravs do devaneio
dominado pelo som parece-me indicar de forma explcita a complexidade da situao de
narrao aqui encenada, servindo de modelo para a problematizao geral da narrativa
em presena nestes textos. Tal como acontece nas narrativas que repetem a estrutura do
dilogo oculto de Grande Serto: Veredas, tambm aqui nos encontramos perante o tipo
de dissoluo de dicotomias que Davi Arricucci Jr. descreveu como o ressurgimento
do romance de dentro da tradio pica ou de uma nebulosa potica primeira, indistinta
matriz original da poesia, rumo individuao da forma do romance de aprendizagem
ou formao (Arrigucci 1994: 20). Estamos perante uma tenso entre formas
aparentemente opostas: formas ligadas ao universo da narrativa tradicional, tal como o
caracterizou Benjamin no ensaio sobre Leskov, e as formas identificveis com o
universo isolado do romance que, ainda segundo Benjamin, se lhes contrape:
What differentiates the novel from all other forms of prose literature the fairy tale, the legend, even the novella is that it neither comes from oral tradition nor goes into it. This distinguishes it from storytelling in particular. The storyteller stakes what he tells from experience his own or that reported by others. And he in turn makes it the experience of those who are listening to his tale. The novelist has isolated himself. (Benjamin 1992: 87).
Isolamento e tradio oral, aqui, parecem convergir, paradoxalmente, numa
forma de escrita que joga com representaes da oralidade. A reconstruo de efeitos de
presena no incompatvel, antes se alimenta, de uma construo explicitamente
34
assente sobre efeitos de distanciamento. A solido que caracteriza a cultura do romance
ser ento o dado de partida para esta construo, distanciada e filtrada, de uma
presena inacessvel e no entanto operativa. E no como compensao que esta tenso
funcionar: o universo dos contadores aparece aqui como forma, podemos dizer, de uma
construo verbal declaradamente indirecta revitalizada pela explorao de todas as
potencialidades desse distanciamento. A encenao dramtica da situao de oralidade,
quer, como veremos, atravs do dilogo oculto, quer, como neste caso, atravs de uma
representao intrinsecamente distanciada de efeitos dependentes de situaes de
presena, ser um dos pontos em que a obra de Rosa testa abertamente a sua potica.
Recuperando uma expresso dos cadernos de Guimares Rosa no seu arquivo, trata-se
da construo, atravs da escrita, de um texto em que nenhuma palavra morre (E15).
1.4
O corpo de Joana Xaviel, desejado na sua transformao, parece ento ser o
primeiro lugar de fixao do desejo da segunda parte da histria. A violncia desse
desejo tem uma direco especfica, que a imagem da caa materializa. Se a narradora
no sabe interpretar ou validar a histria que conta; se a narradora s a sabe assim,
decididamente vinculando forma e substncia, ser preciso vencer a resistncia do
narrador, acedendo ao lugar da interaco entre narrador e histria, ou seja, ao corpo.
Joana Xaviel, que tem fama, nos pargrafos anteriores, de furtar o que podia (I 565),
d-nos uma das grandes figuraes na obra de Rosa da relao entre o contador e aquilo
que conta. O corpo do contador, disponvel para a transformao pela histria,
tambm o lugar da manifestao de algo que ultrapassa a situao de comunicao: o
seu corpo, que d forma, tambm furta, tambm cala, tambm no diz. a primeira,
seno a mais forte, representao do poder que encontramos nesta histria sobre a
35
construo do domnio: o narrador pode esconder o que sabe, acendendo o desejo, e o
nico lugar para procurar aquilo que o narrador no quer dizer ser o seu corpo,
submetido a uma tortura que implicaria a entrega, a sujeio, a cessao da vontade que
furta: a liquidao da resistncia do narrador. E a violncia sobre o corpo como primeira
reaco figura do contador ser reflectida no outro movimento que em torno da
entrada em cena de Joana Xaviel se cria: o que representa a contadora como objecto do
desejo masculino desejo proibido ou no confessvel porque desejo abertamente
desvalido. Desejo e violncia so ento os dois movimentos que tm origem na atraco
pela histria, por uma dimenso imaterial da histria a que a novela, curiosamente, d o
nome no ttulo, em que a estria de amor entre dois contadores tambm a histria do
amor pela estria.
Assim se compreende que a caracterizao de Joana Xaviel responda to
directamente a uma descrio platnica do estrangeiro, modelo alis da contaminao
do intrprete pela fico. Veja-se a famosa descrio da Repblica (398a), que, como
diz Giorgio Agamben, viene spesso ripetut[a] quando si parla di arte senza che
latteggiamento paradossale che trova in esso espressione sia, per questo, divenuto
meno scandaloso per un orecchio moderno (Agamben 1994: 12):16
Se chegasse nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus poemas, prosternvamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-amos que na nossa cidade no h homens dessa espcie, nem sequer lcito que existam, e mand-lo-amos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra sobre a cabea e de o termos coroado de grinaldas. (Plato 2001: 123-4). 16 No mesmo texto, Agamben liga a atitude paradoxal perante o imitador conscincia de um
vnculo entre violncia e linguagem: Non si comprende, in particolare, il fondamento del tanto discusso ostracismo comminato da Platone ai poeti, se non lo si ricollega a una teoria dei rapporti fra linguaggio e violenza. Il suo presupposto la scoperta che il principio, che in Grecia era stato tenuto per vero fino al sorgere della Sofistica, secondo il quale il linguaggio escludeva da s ogni possibilit di violenza, non era pi valido, e che, anzi, luso della violenza era parte integrante del linguaggio poetico. Una volta fatta questa scoperta, era perfettamente congruente da parte di Platone stabilire che i generi (e perfino i ritmi e i metri) della poesia dovevano essere sorvegliati dai custodi dello stato. (Agamben 1994: 18).
36
A Joana Xaviel est reservada a mesma atitude paradoxal: seduz e atrai,
chamada para contar, mas no era querida nas casas (I 565). O seu mel, como o
texto diz claramente, mel, mas mel de marimbondo! (I 564). Essa oscilao entre
atraco e averso directamente vinculada a uma atribuio de poder, que reside no
domnio verbal: dito que causava ruindades, que tem o poder de matar por feitio,
distncia, s por mo de praga de dio (I 566). O seu poder de feiticeira da palavra
obriga a Samarra a uma relao de compromisso com a figura marginal: a presena da
mulher tolerada (momentaneamente) em nome das histrias que conta, sem que, no
entanto, a figura seja colocada fora de suspeita. Joana Xaviel guarda aquilo que por
todos desejado, de forma mais ou menos confessada: mas guarda essa riqueza no corpo,
guarda sem plenamente oferecer, o que equivale a dizer que a furta, pois essa se fingia
em todo passo, muito mentia, tramava, adulava (I 564). O desejo da histria o desejo
do que esconde o corpo do narrador pulso hermenutica e ertica reunidas numa
mesma repulsa.
Para perceber as implicaes desta caracterizao, essencial a formulao
oferecida por Rosa num dos textos de Estas Estrias que teve publicao mais recuada,
antecedendo a exploso de 1956. Refiro-me ao conto-reportagem Com o Vaqueiro
Mariano, forma estranha ao corpo ficcional da obra do autor onde porm se encontram,
na tenso entre relato e construo ficcional que a se expe mais do que noutros
lugares, alguns dos temas essenciais da narrao rosiana. Numa passagem em que a
entrevista interrompida por uma suspenso crtica, oferece-se uma das
problematizaes mais directas do enredamento de narrador, ouvinte e caso narrado
num campo de foras inextricvel:
37
Te aprendo ao fcil, Z Mariano, maior vaqueiro, sob vez de contador. A verdadeira parte, por quanto tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo poders transmitir-me. O que a laranjeira no ensina ao limoeiro e que um boi no consegue dizer a outro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que d trunfo tua voz e tento s tuas mos. Tambm as estrias no se desprendem apenas do narrador, sim o performam; narrar resistir. (II 779).
A ideia de furto, que encontrmos associada a Joana Xaviel, mantm-se aqui,
significativamente desprovida de conotaes morais: por ou contra a vontade do
contador, h uma parte, a verdadeira parte, que no poder ser transmitida. Mais uma
vez estamos alm, no foco do excerto, de uma situao de comunicao, dado que esta
invalidada partida, o que no implica, porm, a inexistncia de uma tenso entre o que
se transmite e o que no se transmite no impede, ou seja, que a narrao acontea, e
cumpra a sua funo performativa, de um modo que ultrapassa a comunicao. O que
mais curioso na relao entre este excerto e aquilo que nos ocupa que nos
encontramos, outra vez, perante uma vinculao entre um elemento ausente e a sua
necessria materializao. A verdadeira parte, que da ordem do no materializvel,
ou do indizvel, no transmissvel, mas manifesta-se no corpo: Ipso o que acende
melhor teus olhos, d trunfo tua voz e tento s tuas mos17. A relao entre histria e
contador uma relao de contaminao, como alis previa a admonio platnica ao
pretender defender em primeiro lugar o guardio dos efeitos da imitao18. S que o que
o excerto identifica um efeito, digamos, residual. Aquilo que acende melhor um
resto a que falta a transmissibilidade essa parte intransmissvel que age sobre o
17 A relao desta caracterizao com a descrio da metamorfose em actor da personagem do
Velho Camilo no final de Uma Estria de Amor evidente. Depois de, ao longo do conto, ser caracterizado como uma figura a quem a interpretao estava vedada, Camilo tem o seu momento, a sua vez, na narrao final da Dcima do Boi e do Cavalo, momento da revelao referida por Rosa a Bizzarri17: O Velho Camilo estava em p, no meio da roda. Ele tinha uma voz. Singular, que no se esperava, por isso muitos j acudiam, por ouvir (I 602). A voz alterada o contraponto que o velho desvalido oferece transformao em princesa que Joana Xaviel representava concretizando assim, nessa resposta, o amor do ttulo.
18 Cf. Repblica, III, 395c (Plato 2001: 120). Para uma anlise da contaminao como modo de aco da fico em Plato, cf. Schaeffer 1999: 35-42.
38
corpo, constituindo nele a parte que no se transmite pela narrao. Que esse resto,
esse resduo, seja a parte verdadeira, coloca-nos perante a mesma hierarquia que o
episdio de Joana Xaviel lanava a partir da importncia da segunda parte. A, s a
parte em falta era a importante; aqui, o que se transmite precisamente a parte que
no verdadeira.
A analogia final, na concluso do excerto, regressa ao universo, prprio, da
narrao de estrias, de que Mariano foi aproximado ao narrar as suas memrias sob
vez de contador: tambm as estrias no se desprendem apenas do narrador, porm o
performam. As estrias, ao serem contadas, desprendem-se do narrador o narrador
o meio atravs do qual as histrias passam, ou do qual as histrias emanam; elas
desprendem-se, mas no s: sim o performam. Ao performar o narrador (criar o
narrador enquanto outro por aco do acto de contar), as histrias constituem nele no
narrador, corpo material, olhos, voz e mos a verdadeira parte que no pode ser
transmitida. Narrando, ento, o narrador resiste afirma-se e no se deixa aniquilar, no
se deixa absorver pela histria, singularizando a sua narrao, no sentido em que no se
dilui numa transmisso, motu proprio, da histria. Por outras palavras, a histria
transmite-se sublinhando a sua natureza estruturalmente fragmentria e marcando o
intransmissvel, e este intransmissvel o narrador, que assim resiste. O que aqui se
torna descontnuo, como comemos por ver com o episdio de Uma Estria de
Amor, a relao entre as histrias e a histria particular que pelo narrador contada,
no sendo possvel uma coincidncia plena entre essa origem, ou tradio, e a histria
que do contador se desprendeu. A marca dessa diferena, residual, o corpo do
contador, parte irredutvel da histria que constitui narrando e parte integrante daquilo
que se declara fragmento.
39
Verdadeira parte ou segunda parte, a situao de narrao caracterizada, nos
dois casos, em funo de algo que no est presente e que no entanto localizvel, em
tenso, na materialidade de um suporte vivo, o contador que no se deixa aniquilar. O
impulso inicial dos ouvintes da histria de Joana Xaviel ganha agora um sentido mais
preciso: a seduo da transformao, que atrai fisicamente, a seduo do que na
histria no se transmite. O lugar da histria completa, ento, parece comear a
perceber-se pela relao entre os dois excertos, ainda o narrador, mas o narrador no
modo como corpo e histria se colocam em tenso a histria que o atravessa, o
narrador que lhe resiste, no sentido em que atravs dela resiste, constituindo-se suporte
de uma aco no transmissvel. Torturar o narrador, como se infere do episdio em
anlise, o primeiro movimento de uma caa que pretende extrair parte da histria do
lugar onde ela est precisamente por no estar: tentar fazer com que o narrador entregue
ou confesse aquilo que por nenhum modo poder transmitir. Torturar o narrador o
movimento da falta.
1.5
O excerto inicial, como vimos, faz acompanhar a deteco dessa falta de dois
movimentos, de que este apenas o primeiro. Se insisto nele porque a passagem para
o segundo movimento de procura, aquele que mais facilmente nos levaria a uma
identificao plena das histrias de Uma Estria de Amor com a anterioridade de um
repertrio tradicional, determinante para que se possa avaliar esta reaco
incompletude. Repare-se que, se o primeiro passo apertar, brava, um corpo, o
segundo ser marcado por um preo: a longa viagem dos enviados, para alm de
implicar distncias incalculveis (por a fundo, todo longe), envolve sobretudo um
40
custo: competia se mandar enviados com paga. Este elemento ganha relevncia se
pensarmos que, no pargrafo seguinte, Manuelzo descreve a sua situao de ouvinte
furtivo como uma posio passiva: Manuelzo aceitava de escutar as estrias e se
ouvindo assim, de graa, estimava (I 565). Nesse sentido, os dois movimentos
previstos pela necessidade de um final so movimentos (de recepo, ou de leitura)
activos. A violncia de que falvamos talvez o seu trao mais marcante, por ser
necessariamente uma violncia dirigida contra aquilo que se faz obstculo a uma
completude do sentido o corpo presente, no seu primeiro momento. Antes, ento, de ir
interrogar o tipo de presena que ganham as velhas pessoas, podemos pensar numa
outra cena em que a procura obsessiva de um sentido ausente (e totalizante) localizada
num corpo, eventualmente destrudo atravs de um apertar que, numa leitura famosa,
Shoshana Felman liga operao interpretativa. Refiro-me ao final da novela The Turn
of the Screw, de Henry James, onde a preceptora, narradora do manuscrito encaixado
que constitui o corpo do texto, progressivamente se convence de uma relao entre a
presena dos fantasmas que assombrariam a casa e a sua ocultao por parte das
crianas (James 1999). Saber o que as crianas sabem e no dizem, desde o comeo da
novela, equivale a provar a existncias dos fantasmas e nesse sentido que a
ocultao, a negao da informao por parte das crianas, apenas refora a
imaterialidade das suas suspeitas. Compreende-se, neste quadro, o caminho que leva a
preceptora ao interrogatrio final da criana mais velha, o pequeno Miles, fazendo-o
coincidir com uma cena de tortura em que a irredutibilidade do corpo silencioso da
criana representa a ausncia de uma totalizao de sentido. Aos olhos da preceptora de
James, obter a confisso e exorcizar o fantasma so aces absolutamente coincidentes,
como o desfecho da novela ironicamente sublinhar. Para que se chegue a esse ponto,
importante ter em conta que as crianas so, para a preceptora, detentoras de um (duplo)
41
segredo que resolveria a ambiguidade instituda no texto. Nesse sentido, elas
transformam-se, ao longo da narrativa, no lugar do conhecimento. Shoshana Felman
associa essa construo, que levar, entre outras coisas, a uma ntida inverso da relao
professor/aluno, descrio lacaniana do sujet suppos savoir19, como figura central
da transferncia que, por efeito da suposio de conhecimento, se transforma
necessariamente no objecto de amor. A essa fuso de desejo e amor, resultando na mais
inevitvel das violncias, Felman d o nome de interpretao, especificamente
entendida como completamento do sentido, preenchimento da falta ou da falha. E assim
se chega famosa cena do interrogatrio, em que presso das perguntas da preceptora,
que tenta compor o quadro da sua investigao, a criana apenas responde com o
corpo, com um mal-estar fsico que identifica claramente o lugar daquilo que se procura
obter e da sua resistncia. Inevitavelmente, perguntar equivale a apertar, agarrar
(to grasp) a criana; inevitavelmente, o resultado desse apertar ser enfim um corpo
esvaziado, dispossessed, inerte. Nas palavras de Felman: a child can be killed by the
very act of understanding (Felman 2003: 205). Sobre essa equivalncia entre procura
de um sentido e manifestao da violncia dir a autora:
The comprehension (grasp, reach his mind) of the meaning the Other is presumed to know, which constitutes the ultimate aim of any act of reading, is thus conceived as a violent gesture of appropriation, a gesture of domination of the other. Reading, in other words, establishes itself as a relation not only to knowledge but equally to power: it consists not only of a search for meaning but also as a struggle to control it. Meaning itself thus unavoidably becomes the outcome of an act of violence. (idem: 207). 19 The children become, then, in the governesss eyes, endowed with the prestige of the
subjects presumed to know. The reader will recall, however, that the subject presumed to know is what sustains, according to Lacan precisely the relationship of transference in psychoanalytical experience. (Felman 2003: 202). Podemos arriscar que essa estrutura determinante em vrios textos de Guimares Rosa: para alm da suposio de conhecimento que est na base da construo de A Terceira Margem do Rio, pode ser til pensar no modo como Cara-de-Bronze encena essa suposio na figura do Grivo, que comentarei no captulo final deste trabalho. Nesse sentido, importa ter em conta a descrio de Zizek, essencial para a operacionalidade de que se fala aqui: This knowledge is of course an illusion, but it is a necessary one: in the end only through this supposition of knowledge, can some real knowledge be produced. (Zizek 1989: 185).
42
O efeito desse acto de violncia, na novela de James, , como se sabe, uma das
mais explcitas representaes literrias daquilo a que se pode chamar um final aberto,
ou um evento no interpretado20 cuja marca , precisamente, um corpo
definitivamente esvaziado do sentido que supostamente deteria21. Interessa-me, ento,
manter a partir daqui a ligao entre desejo de sentido, violncia e amor. No caso em
anlise, esse n confusamente identificado pelo prprio Manuelzo na j referida
oscilao entre repulsa e seduo em relao a Joana Xaviel. O ponto mais evidente ser
o momento em que as figuras masculinas em relao s quais Manuelzo se est a
projectar, o filho e o velho Camilo, so as duas relacionadas, no devaneio que a histria
originou, com o desejo sexual por Joana Xaviel:
E o velho Camilo? Com margens de oitenta anos, podia ainda como homem? Mas, mesmo sem ser por resposta do corpo, sem os fogos, diversas pessoas procediam a inocncia de gostar dela a me, mesma de Manuelzo, outros, at as crianas... Ensalmo nenhum; suo de malcia. Suas lbias... Mas o que algum ali tinha dado a entender: que o Adelo, prprio, alguma vez usava o selvagem do corpo dela! isso havia de poder ser? Manuelzo duvidava spero daquilo, depois se compunha para o descrer. (I 566).
Desejo fsico e violncia, desejo da presena e desconfiana parecem ser ento
os traos da caracterizao deste corpo como lugar moralmente proibido, socialmente
inacessvel, mas irremediavelmente identificvel como o lugar daquilo que se deseja,
contra a prpria vontade dissimuladora da contadora contra o outro e no seu corpo, tal
como em The Turn of The Screw , no seu corpo como lugar material da presena da
histria, ou como lugar que a histria constituiu como seu, intransmissvel. A reificao
do corpo, implcita na suspeita em relao ao filho (usava o selvagem do corpo dela)
apenas um dos passos necessrios para o desdobramento que est aqui a ser praticado 20 Para a funo do evento no interpretado em The Turn of the Screw ver o ensaio de Emma
Kalafenos Not (yet) Knowning: Epistemological Effects of Deferred and Suppressed Information in Narrative, em particular as pginas 41-48 (Kalafenos 1999).
21 Felman, no ensaio referido, avana para atribuir essa mesma procura violenta de sentido s leituras de The Turn of the Screw que procuram resolver a sua ambiguidade. (Felman 2003: 226-42).
43
o que distingue uma Joana Xaviel com histria de uma Joana Xaviel sem histria, Joana
Xaviel da outra ou outras em que se parece tornar por aco das histrias, o corpo do
contador do prprio contador fora da aco da histria. nessa distino que se torna
claro que, dissimulao presumida parte, Joana Xaviel pode efectivamente no saber a
parte da histria que o seu corpo esconderia primeira de muitas figuras de narradores a
quem escapa o significado de um contar que s neles materialmente pode residir.
1.6
Por outro lado, o texto exemplar na medida em que associa o escndalo da
nemesis, ou seja o escndalo da abertura da forma, a um esforo arqueolgico: depois
da hiptese da tortura, da subjugao do corpo que oferece resistncia para dele extrair
o que falta, a reaco que o excerto encena abandona agora o corpo em nome do mapa.
A suposta relao metonmica entre gerais e contador aqui explicitada, sob o signo da
descontinuidade que apontei anteriormente.