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a patrimonialização da produção de louças e porcelanas em Pedreira/SP
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Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7, n. 1 (jan./abr. 2015) Belo Horizonte: Departamento de Histria, FAFICH/UFMG, 2015.
ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades
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A patrimonializao da produo de louas e porcelanas em Pedreira, So Paulo: um estudo de caso
The patrimonialization of the making process of china and porcelain
in Pedreira, Sao Paulo: a case study
Andr de Sousa Miranda Mestre em Anlise Crtica e Histrica da Arquitetura e Urbanismo UFMG
Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico de Minas Gerais [email protected]
Mariana Gonalves Moreira
Mestranda em Antropologia UFMG [email protected]
Raul Amaro de Oliveira Lanari
Doutorando em Histria UFMG Professor do Depto. de Histria do Centro Universitrio de Belo Horizonte UNI-BH
Rodrigo Augusto Silva Freitas Especialista em Geoprocessamento UFMG
Recebido: 11/10/2014 Aprovado: 19/11/2014
RESUMO: Este artigo pretende discutir o processo de construo e consolidao da prtica de fabricao de louas e porcelanas no municpio paulista de Pedreira, que remonta ao princpio do sculo XX. Analisaremos as mudanas observadas na prtica cultural ao longo das ltimas dcadas, com o abandono de alguns aspectos tradicionais e a adoo de mtodos industriais, tendo por objetivo atingir novos pblicos. Frente a este processo histrico-social ligado ao estabelecimento das relaes capitalistas de cunho industrial, observa-se, por sua vez, a manuteno de antigas prticas e relaes de trabalho, que passam a adquirir novos significados para aqueles que os praticam. Procuraremos mostrar como a produo da porcelana, seja ela em escala industrial ou artesanal, contribuiu para a formao de um universo simblico para a populao de Pedreira; ao mesmo tempo que consolidou-se como um importante setor da economia e do mercado turstico local. PALAVRAS-CHAVE: Porcelana, Patrimnio cultural, Pedreira/SP. ABSTRACT: This paper intends to discuss the building and consolidation process of the china and porcelain industry in Pedreira, SP Brazil, in the beginning of the 20th century. In the last few
A
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decades, the practice suffered changes, due to the substitution of traditional aspects for modern methods and aiming new market segmentation, which will be analysed. Regardless this industrial and capitalist historical-social process, some traditional aspects such as employment relationship and connections were preserved and gained different meanings for those who were involved with it. The idea is to show how porcelain and china manufacturing handmade or mass production scale - has influenced Pedreira's population symbolic repertoire, also its key role in the touristic and economic development for the city. KEY-WORDS: Porcelain, Cultural heritage, Pedreira/SP.
Introduo
Pretendemos apresentar aqui os resultados de pesquisa realizada no municpio de Pedreira,
estado de So Paulo, que teve o objetivo de identificar prticas culturais integrantes do cotidiano
local. A pesquisa integra o Programa de Identificao e Mapeamento do Patrimnio Cultural
existente no trecho onde ser instalada a Linha de Transmisso Araraquara-Taubat, a ser construda
pela Companhia Paranaense de Energia Eltrica/COPEL. O trabalho visa fornecer informaes
acerca da viabilidade do traado proposto para o empreendimento, levando-se em considerao o
patrimnio cultural situado no entorno da linha de transmisso passvel de ser impactado. Este artigo
analisar as informaes coletadas nos levantamentos de campo, tendo como objeto de estudo uma
das manifestaes culturais de relevncia identificada pela equipe: o modo de fazer louas e
porcelanas em Pedreira/SP.
Organizamos nossa explanao da seguinte maneira: primeiramente traamos o estado da
arte da produo de cermicas, louas e porcelanas. Em seguida, apresentamos informaes
histricas sobre sua produo e disseminao no Brasil e em Pedreira. Dando prosseguimento ao
estudo, analisamos o modo de fazer louas e porcelanas em Pedreira; o universo das relaes de
trabalho e a construo dos referenciais simblicos e identitrios ligados porcelana. Por fim,
argumentamos sobre as transformaes que essa manifestao cultural apresentou durante os mais
de cem anos de existncia.
Antecedentes histricos da produo da porcelana
A porcelana uma variao do grupo das cermicas que, segundo Pileggi, uma
denominao genrica que abrange todos os produtos derivados da fuso e cozimento em altas
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temperaturas entre argila e minerais como quartzo, bauxita, mulita, apatita, zircnia, entre outros.1
Existem diferentes categorias de cermica, em funo das caractersticas de sua massa e do
tratamento de superfcie que lhe conferido: alm da porcelana, se destacam os grupos das faianas,
louas e azulejos.
A porcelana pode ser caracterizada como um tipo de cermica vitrificada elaborada a partir
de uma massa composta por caulim, feldspato e quartzo, com caractersticas especiais referentes
resistncia, transparncia e porosidade. Desde sua descoberta, atribuda aos chineses durante a
Dinastia Tang (618-970), a porcelana goza de excepcional prestgio tanto no Extremo Oriente como
no mundo ocidental. A produo de porcelana se restringiu China, Coreia e Japo at o sculo
XVIII, tendo sido levada Europa no sculo XVI pela Companhia das ndias e as grandes
navegaes.2
O primeiro reino europeu a ter contato com a porcelana foi Portugal, tendo desenvolvido a
prtica durante os sculos seguintes com o surgimento de oleiros que se destacavam pelo esmero e
pela criatividade nos motivos decorativos e primor no acabamento. De suma importncia para o
destaque portugus foi a influncia mourisca decorrente da presena rabe na Pennsula Ibrica.3
Portugal se destacou pela produo de azulejos, em grande medida exportados para o Brasil nos
sculos XVIII e XIX.
No sculo XVII desenvolveu-se a produo de porcelana em Florena e, mais no final do
sculo, na Frana. Ao longo do sculo XVIII, mais de 60 milhes de objetos de porcelana chinesa
foram exportados para a Europa.4 No sculo XVIII a produo de louas e porcelanas inglesas e
portuguesas se destacou em funo dos esforos de oleiros em desenvolver a tcnica, com o intuito
de alcanar os padres orientais. A faiana portuguesa, por exemplo, ao aproximar-se da qualidade da
porcelana chinesa, contribuiu para sua difuso no ocidente e para alm-mar. O acrscimo de
elementos como slex calcinado, caulim, argila, cal, feldspato e giz nas manufaturas inglesas naquele
1 PILEGGI, Aristides. Cermica no Brasil e no mundo. So Paulo: Martins Editores, 1958, p.193. 2 MOUTINHO, Stella, PRADO, Rbia Bueno do, LONDRES, Ruth. Dicionrio de artes decorativas & decorao de interiores.
2ed. ver. atual. - Rio de Janeiro, Lexikon, 2011, p. 23-38. 3QUEIRS, Jos. Cermica Portuguesa. Aveiro: Livraria Estante Editora, 1987, p.98 e ss. 4Rdio Internacional da China (emissora estatal). Disponvel em: http://portuguese.cri.cn/chinaabc/chapter2 0/chapter200313.htm. Acesso em: 27 de mai. 2014.
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momento consistiu em grande novidade. A temperatura de queima oscilava entre 600 e 1150 graus.
O sal marinho aplicado s peas foi substitudo pelo xido de chumbo e xidos metlicos.5
A influncia da chegada da porcelana chinesa na produo europeia pode ser percebida
facilmente no estilo chinoiserie, baseado em interpretaes europeias de padres chineses, comum
principalmente na primeira metade do sculo XIX e geralmente caracterizada pelo tom azul de seus
elementos decorativos (perodo de produo de 1738 a 1873).
A partir do sculo XIX observou-se a profuso dos motivos decorativos chineses e a difuso
da fabricao da porcelana para outros locais da Europa, como a Espanha e, principalmente, a
Alemanha. Contribuiu para o destaque da porcelana alem a descoberta de jazidas minerais que
forneciam matria-prima semelhante da porcelana chinesa.
Na Inglaterra, por sua vez, desenvolveu-se a indstria de louas baratas, cuja alta
produtividade para os padres ento vigentes se devia a adaptaes nos mtodos de fabricao. A
loua inglesa se popularizou no sculo XIX com a ampliao da rede de trocas comerciais
estabelecidas ao redor do mundo e os produtos ingleses chegaram aos mais diversos cantos do
mundo.
No Brasil, a porcelana e as louas de origem inglesa se somaram s cermicas indgenas e
loua e faiana portuguesas, como veremos a seguir.
Antecedentes histricos da produo e disseminao da porcelana no Brasil
No Brasil, a cermica teve seu incio com a produo indgena pr-histrica. Estudos
arqueolgicos indicam sua existncia na regio amaznica h cerca de 5.000 anos. A cermica pr-
histrica apresentava variedade de funes e estilos decorativos, sendo produzidos vasilhames,
bancos, estatuetas, urnas funerrias, rodelas-de-fuso6, tangas, colheres, adornos auriculares e labiais e
apitos. A tradio ceramista no Brasil , portanto, muito anterior ao incio da colonizao portuguesa.
possvel destacar, nesse sentido, os exemplos dos povos Marajs, Karajs, Kaxinaus, Tupi-
Guaranis, Tukanos, Waur e Kadiuu.7
5TOCCHETTO, Fernanda Bordin et al. A Faiana Fina em Porto Alegre: vestgios arqueolgicos de uma cidade. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 2001, p.28. 6Instrumento utilizado para fiar. 7Dentre os diversos autores que se dedicam ao estudo da cultura material indgena possvel destacar: FAUSTO, Carlos. Fragmentos de histria e cultura Tupinamb: da etnologia como instrumento crtico de conhecimento etno-histrico. In: CUNHA, Manuela
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A origem da fabricao de cermicas entre os povos indgenas brasileiros, especialmente
aqueles existentes em perodos mais remotos, ainda motivo de discusses entre os arquelogos. A
principal controvrsia refere-se ligao entre a existncia de objetos cermicos e o desenvolvimento
das prticas de agricultura entre os indgenas em territrio americano. Segundo Suely Luna, cermica
e agricultura, ainda que possuam vnculos entre si, no devem ser diretamente associadas:
A presena da cermica entre as populaes pr-histricas vem geralmente associada ao conhecimento da agricultura, embora essa relao nem sempre obedea realidade. Tem-se observado, atravs da etnografia, que grupos em estgio agrcola usaram outros tipos de recipiente para transportar, armazenar e mesmo cozinhar alimentos. Por sua vez, j foram tambm detectados grupos humanos ceramistas que no praticavam atividades agrcolas ou as praticavam sumariamente em perodos sazonais, baseando sua alimentao na caa e, principalmente, na coleta. A utilizao da cermica no fica restrita, porm, a finalidades de preparao e armazenamento de alimentos, sendo usada tambm como objeto cerimonial, funerrio, ldico e de adorno.8
Quando os portugueses chegaram costa americana, portanto, encontraram um complexo de
povos indgenas que j dominavam tcnicas de produo de cermica e as utilizavam para a
confeco de diversos utenslios. O processo de colonizao, por sua vez, foi caracterizado pela
incorporao de tcnicas e saberes locais, estabelecendo contato entre as culturas indgenas e
europeia. O cotidiano do incio do povoamento da Amrica Portuguesa foi marcado pela vida
rstica, pela precariedade dos recursos e pela necessidade de estabelecer contato com o gentio.
Este cenrio levou a diversas transformaes nos modos de viver trazidos da Europa, com
incorporaes e adaptaes de prticas locais, mais adequadas ao ambiente americano. Os diversos
casamentos entre europeus e ndias aprofundou o contato entre culturas. Segundo Leila Mezan
Algranti, [...] nos primeiros tempos da colonizao, em virtude da falta de mulheres brancas, as
ndias assumiram seu lugar, ensinando a socar o milho, a preparar a mandioca, a traar as fibras, a
fazer redes e a moldar o barro.9
O cotidiano material dos habitantes da colnia nos primeiros anos da ocupao do territrio
americano caracterizava-se pela ausncia de conforto e pela pouca quantidade de posses. Tratava-se,
muitas vezes, de uma vida transitria, vivida nos caminhos abertos entre as matas, dependente de
roas temporrias e pousos pouco equipados. Segundo Laura de Melo e Souza, foi nos espaos
Carneiro da (ed.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992; e PROUS, Andr. Arqueologia Brasileira. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1992. 8LUNA, Suely. Sobre as origens da agricultura e da cermica pr-histrica no Brasil. Revista Clio Arqueolgica, n 16, v. 01 UFPE, Recife. 2003, p.69. 9 ALGRANTI, Leila Mezan. Famlias e vida domstica. In: SOUZA, Laura de Melo e (org.). Histria da Vida Privada no Brasil Vol I: Cotidiano e Vida Privada na Amrica Portuguesa. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 122.
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abertos e nas zonas distantes que se passou boa parte da histria da colonizao lusitana na Amrica
[].10 Esta vida instvel e itinerante no deixava espao para a manuteno de hbitos refinados,
bem como para a utilizao de utenslios refinados. J nos engenhos, grandes unidades produtivas
habitadas por uma populao maior de brancos, ndios e negros escravos, o contato com os
indgenas e a incorporao da prtica de produo de cermicas forneceu um bom substituto para as
louas importadas:
O mais comum, porm, eram as louas feitas de barro, que desde o incio da colonizao fabricavam-se em casa, pois na Bahia, segundo Gabriel Soares de Sousa, 'cada engenho tem um forno de tijolo, nos quais se coze muita boa loua. Porcelanas das ndias, contudo, chegavam com certa frequncia desde o incio da colonizao na bagagem dos mais providos, sendo completadas em pocas posteriores com baixelas inglesas de loua e prata.11
Os colonizadores portugueses instalaram as primeiras olarias do perodo histrico em
colgios, engenhos e fazendas jesuticas onde se produzia, alm de tijolos e telhas, vasilhames de
barro para uso domstico cotidiano. A introduo do uso do torno e das rodadeiras parece ser a
mais importante influncia europeia, verificada principalmente na faixa litornea, onde primeiro se
fixaram os colonizadores. Durante todo o perodo colonial a produo de louas de barro se
consolidou na Amrica Portuguesa, tendo como principais ncleos as fazendas e oficinas localizadas
nas zonas rurais. As cidades, por sua vez, dependiam do fornecimento de produtos confeccionados
nas fazendas ou do abastecimento de produtos importados, destinados aos consumidores mais
abastados. A inexistncia, na colnia, de iniciativas de produo de louas mais finas, como as
importadas pela Companhia das ndias, no pode ser atribuda precariedade das tcnicas. A
cermica se mostrou, desde cedo, um recurso muito adequado vida desenvolvida pelos primeiros
colonizadores. Das moringas que mantinham a gua fresca arte de moquear a carne, muitas foram
as solues oferecidas pelas cermicas vida cotidiana colonial.12
Pileggi ressalta que no Brasil, at o final do sculo XIX, a produo de cermica se restringiu
a alguns utenslios de uso domstico, entre os quais se incluam panelas, potes e vasos de barro.13 J
a produo de azulejos, louas e faianas ficava restrita a Portugal. A utilizao de cermicas e
10 SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisrias de existncia: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificaes. In: ________. (org.). Histria da Vida Privada no Brasil Vol I: Cotidiano e Vida Privada na Amrica Portuguesa. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.42. 11ALGRANTI, Leila Mezan . Famlias e vida domstica..., p.123. 12ETCHEVARNE, Carlos. Aspectos da cermica colonial do sculo XVII em Salvador, Bahia. Disponvel em: http://www.ufpe.br/clioarq/images/documentos/2006-V1N20/2006v1n20a3.pdf. Acesso em: 20 de mai. 2014. 13 PILEGGI, Aristides. Cermica no Brasil e no mundo..., p.43.
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azulejarias nas composies arquitetnicas do perodo barroco devia-se importao diretamente de
Portugal, onde oleiros se destacavam pelo apuro estilstico. Importavam-se tambm louas
decorativas e domsticas da Europa, que eram utilizadas pelas famlias mais abastadas do pas.
A campanha napolenica na Europa, com a invaso de Portugal em 1809, deteve o ritmo de
expanso da produo de louas lusitana. Com isso, no Brasil oitocentista a importao de louas foi
proveniente notadamente da Inglaterra, principalmente aps a Abertura dos Portos em 1808. Essa
loua possua qualidade superior, variedade de padres decorativos e preo mais acessvel, de forma
que rapidamente dominou o mercado brasileiro.14 Tais vantagens competitivas se deviam
substituio da confeco em torno pelo uso de moldes desde 1750 e ao emprego da tcnica de
impresso por transferncia, conhecida por transfer printing, criada em 1770. Essas evolues tcnicas
possibilitaram a produo em larga escala da porcelana inglesa e sua comercializao em nvel
mundial.
Nas ltimas dcadas do sculo XIX, quando comunidades rurais e setores mais pobres da
populao passaram a ter acesso, ainda que relativo, a bens industrializados, o consumo de peas de
loua se tornou amplamente difundido pelo territrio brasileiro. A ampliao da demanda por
produtos que antes eram restritos s classes mais abastadas da sociedade se insere no contexto do
processo de industrializao na Europa e na participao brasileira no nascente capitalismo industrial,
na posio de produtor de matrias primas e importador de produtos industrializados.15 O
escoamento da produo fabril europeia (principalmente a de origem inglesa) tornou mais acessvel
os artigos domsticos, que chegaram a ser oferecidos em mercados locais do interior paulista.
Um fator que contribuiu para a mudana nos padres de consumo da porcelana foi a
implantao do transporte ferrovirio no Brasil. As ferrovias facilitaram a conexo entre o litoral e a
regio interiorana do pas, vindo a contribuir significativamente para a disseminao do consumo de
bens industrializados em regies at ento isoladas dos principais centros comerciais. As mercadorias
levadas at as estaes de trem eram muitas vezes transportadas pelas tropas at os centros
consumidores.
14 TOCCHETTO et al. A Faiana Fina em Porto Alegre..., p.35. 15LIMA, Tnia Andrade et al. A tralha domstica em meados do sculo XIX: reflexos da emergncia da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Ddalo. So Paulo, pub. Avulsa, I: 205: 230, 1989.
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A transformao nos padres de consumo foi incrementada ainda pelo desenvolvimento da
produo nacional no incio do sculo XX, que contribuiu para a ampliao do acesso a bens
industrializados, antes restritos s camadas mais abastadas da sociedade.
Com o tempo, as peas de porcelanas foram incorporadas vida cotidiana, sendo
encontradas em grandes quantidades e geralmente associadas ao uso domstico. Sua insero no
contexto domstico se deu, em parte, em substituio a peas produzidas em outros materiais, como
o metal e a madeira.
Contextualizao histrica da cidade de Pedreira
Localizada na regio metropolitana de Campinas, entre as cidades de Jaguarina e Amparo,
Pedreira pertenceu a este ltimo municpio durante grande parte do sculo XIX. As terras onde
atualmente se localiza Pedreira foram de propriedade da famlia Godoy Moreira, que teve grande
poder poltico na regio desde o sculo XVII. O primeiro proprietrio das terras foi Joo Pedro de
Godoy Moreira, que construiu, em 1834, uma casa de residncia onde passou a viver com sua famlia.
Esta edificao se tornou sede da Fazenda Grande, formada por um conjunto de propriedades
anexadas ao ncleo original ao longo do sculo XIX.
Em 1864 a Fazenda Grande foi desmembrada no processo de partilha dos bens de Joo
Pedro Godoy Moreira, iniciado antes de sua morte. Um de seus filhos, Joo Batista de Godoy
Moreira, foi contemplado com terras em uma regio conhecida como Fazenda Triunfo. Joo Batista
adquiriu posteriormente grande parte das terras de seus irmos, tendo herdado o restante da Fazenda
Grande no final da dcada de 1880 com a concluso do processo de partilha. A posse da maioria das
terras da famlia fez de Joo Batista o sucessor de Joo Pedro de Godoy Moreira, tendo ele adotado o
nome do pai a partir de sua morte.
A regio tambm se beneficiou com a instalao dos trilhos da Companhia Mogiana e a
construo da Estao de Pedreira em 1875.16 O surgimento do arraial que originou a cidade foi
fruto da ao pessoal de Joo Batista de Godoy Moreira, que criou em 1887 um loteamento em parte
16Pedreira era atendida por um dos primeiros ramais da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro (1875-1967). O Ramal de
Amparo foi implantado em 1875, ligando Jaguary (Jaguarina) a Amparo. Em 1890, o ramal foi prolongado pela
Companhia at Monte Alegre. Os trens de mercadorias e passageiros circularam neste ramal entre os anos de 1875 e 1967
e a estao de Pedreira era parada obrigatria. Na dcada de 1960 o trfego de trens no ramal foi suspenso e as estaes
desativadas.
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de suas terras com o objetivo de formar uma cidade. Em 1889 a pequena vila j contava com 70
habitaes, a Capela de Santana e possua estabelecimentos comerciais como padarias, aougues,
ferrarias, casas comerciais que vendiam tecidos, utenslios domsticos nacionais e estrangeiros,
ferragens, calados e aviamentos.
O nome da vila surgiu em decorrncia de uma peculiaridade do proprietrio das terras
loteadas, que nomeou seus quatro filhos com o mesmo nome: Pedro. O lugarejo ficou conhecido
ento como Bairro dos Pedros, Santana de Pedreira e, posteriormente, Pedreira. Por intermdio de
contatos realizados por Joo Pedro de Godoy Moreira com a elite paulista do incio da Repblica,
Pedreira foi elevada a Distrito Policial em 1890 e a Distrito de Paz e Freguesia em 22 de dezembro
do mesmo ano. Em junho de 1892 a Capela de Santana foi elevada a Capela Curada. Em 31 de
outubro de 1896 foi efetivada a emancipao de Pedreira.17
O desenvolvimento da nova cidade foi impulsionado pelo sucesso da lavoura cafeicultora na
regio, caracterizada pela presena de morros e terrenos de altitude mais elevada, propcios ao cultivo
do caf. Junto com a lavoura cafeicultora chegaram centenas de famlias provenientes da Itlia, que se
empregaram nas plantaes e passaram a residir na rea urbana. Muitos desses imigrantes passaram a
trabalhar em comrcios, chegando com o tempo a constiturem negcios prprios. Outros se
especializaram na produo de porcelana, inaugurando uma prtica que se ligaria, nas dcadas
seguintes, identidade de Pedreira.
Antecedentes histricos da produo da porcelana em Pedreira
A produo de louas e porcelanas teve incio nas propriedades da famlia Rizzi, que adquiriu
os equipamentos da famlia Bonadio, ambas italianas. Os Bonadio fabricavam peas como vasos,
jarras e travessas em cermica vermelha. Em 1914, os Rizzi fundaram a Cermica Santa Rita, uma das
primeiras da Amrica Latina. A implantao da Cermica contou com a contribuio dos tcnicos
italianos Jos Zappi e Mrio Zappi, que promoveram o aumento do tamanho das chamins dos
fornos, o que possibilitou o aprimoramento da produo.
Simone Faria de Souza ressalta que a urbanizao de Pedreira est diretamente relacionada ao
processo histrico da crise cafeeira. Os habitantes de Pedreira viviam, quase que exclusivamente, da
17PREFEITURA MUNICIPAL DE PEDREIRA. Portal oficial: http://www.pedreira.sp.gov.br/. Acesso em: 05 de mai.
2014.
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agricultura e do comrcio do caf, em sua maioria em propriedades rurais. Em 1914 surgiu a primeira
indstria de cermica da cidade, a Cermica Santa Rita, trazendo consigo uma nova alternativa
econmica. Com a crise do caf, a populao rural engajou-se nas pequenas fbricas locais, seduzidas
que estavam pelo aparente desenvolvimento econmico. O setor ceramista se expandiu e levou ao
crescimento socioeconmico da cidade, que passou a ser conhecida como a Flor da Porcelana.18
Posteriormente, outras indstrias surgiram no municpio, a partir, principalmente, da iniciativa
de funcionrios que aprendiam as tcnicas de produo da porcelana e montavam suas prprias
fbricas. Dentre os novos empreendimentos destacaram-se: a Cermica Santana, Nadir Figueiredo,
Santa Ceclia, a Cermica So Sebastio, Porcelana So Jorge, Cermica So Jos, Cermica Santa
Terezinha, Cermica So Joaquim, Porcelana So Paulo, Porcelana Santa Isabel, Cermica So
Gabriel, Porcelana So Joo, Bela Vista, Santa Ins, Nossa Senhora de Ftima, Santa Clara, Joana
dArc, Corcovado, Santa Rosa, Louas Ganzarolli, dentre outras dezenas de pequenas fbricas.
Cermica Santana
Cermica Nadir Figueiredo
Cermica Santa Terezinha
18SOUZA, Simone Faria de. A indstria de cermica de Pedreira e seus impactos ambientais: subsdios para uma gesto ambiental
pblica. Dissertao (Mestrado em Geocincias) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, p.19.
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Cermica Santa Rita
A maioria das fbricas se especializou na produo de peas de pequeno porte, como vasos,
conjuntos de louas e bibels. O grau de diversificao da produo e a especializao em
determinados conjuntos de peas garantiu a notoriedade de algumas das fbricas existentes em
Pedreira, como a Cermica Santana, a Nadir Figueiredo e a Cermica Santa Terezinha. As trs
fbricas prosperaram a partir da ampla aceitao de suas peas, atingindo projeo nacional. A
Cermica Santana, fundada em 1941 com o nome de Flamnio Maurcio e Cia., consolidou-se como
fabricante de enfeites e peas de uso domstico, como compoteiras, vasos e jarros. A partir do final
da dcada de 1940, j com o nome de Cermica Santana, investiu no incio da produo de isolantes
para linhas de transmisso, atingindo grande xito. Ao longo do sculo XX sua produo foi
orientada cada vez mais para esta ltima demanda, que apresentou enorme crescimento com a
interiorizao do desenvolvimento econmico no estado de So Paulo.
Quadro 01: Evoluo das logomarcas dos principais fabricantes de cermica em Pedreira/SP.
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Imagem 01: Dama e Cavalheiro. Cermica
Santana, 1940. Acervo Museu Histrico e da
Porcelana de Pedreira/SP.
Imagem 02: Senhorita em Trajes de Banho.
Cermica Santana, 1940. Acervo Museu
Histrico e da Porcelana de Pedreira/SP.
Imagem 03: Figura Feminina. Cermica
Santana, 1940. Acervo Museu Histrico e da
Porcelana de Pedreira/SP.
Imagem 04: Bobina de cermica para linhas de
transmisso de energia eltrica. Acervo Museu
Histrico e da Porcelana de Pedreira/SP. Foto:
Raul Lanari, 23/06/2014
A Cermica Nadir Figueiredo, fundada em 1943, integrou o grupo empresarial fundado em
1912 e que se destacou pela produo de vidros ao longo de todo o sculo XX. A fbrica da
Cermica Nadir Figueiredo, instalada na entrada da rea urbana de Pedreira, congregou um grande
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nmero de funcionrios, que residiam em uma vila operria anexa s dependncias da linha de
produo. A Cermica Nadir Figueiredo se destacou na produo de baixelas, conjuntos de jantar e
vasos, adquirindo reconhecimento internacional.
Imagem 05: Bule. Cermica Nadir Figueiredo,
1951. Acervo Museu Histrico e da Porcelana
de Pedreira/SP.
Imagem 06: Conjunto de sobremesa. Cermica
Nadir Figueiredo, 1949. Acervo Museu
Histrico e da Porcelana de Pedreira/SP.
O modo de fazer Porcelana em Pedreira:
Em Pedreira, o modo tradicional de fazer a porcelana tem sido mantido ao longo do tempo
em parte das fbricas instaladas no municpio. O processo consiste em oito etapas, a saber: criao da
matriz; estampagem; desenforme; acabamento; pintura mo; esmaltao; empilhamento para o
forno e fornada.
Inicialmente feito o preparo da massa com a mistura de, feldspato, quartzo, caulim e argila,
obtidos normalmente de fornecedores de Pinhalzinho/SP, Campo Largo/PR, Equador/RN e So
Simo/SP. Em alguns casos observa-se a utilizao das fritas, materiais de natureza vtrea obtidos a
partir de processamento, em temperaturas por volta de 1500o C, dos minerais listados acima e de
componentes qumicos como boratos e carbonatos.
Os ingredientes so triturados e misturados no tamboro, equipamento formado por um
cilindro metlico revestido com paraleleppedos e grandes pedregulhos em sua parte interna. Aps
trinta e seis horas de moagem obtida a borbotina, como conhecida a massa lquida da
porcelana. Aps o beneficiamento, a massa passa por filtroprensas,19 onde perde aproximadamente
19 Equipamento de filtragem de gua sob presso.
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25% de sua umidade, e compactada atravs do processo de extruso com a utilizao da
maromba, de onde sai cilndrica e com consistncia dura.
Imagem 07: Ingredientes utilizados para a
obteno da massa da porcelana expostos no
Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira/SP.
Foto: [suprimido], 22/01/2014.
Imagem 08: Tamboro utilizado pela
Cermicas Santana para a mistura da massa da
porcelana. Dcada de 1980. Acervo Museu
Histrico e da Porcelana de Pedreira.
Imagem 09: Filtroprensa durante o processo de
beneficiamento da borbotina, massa utilizada
para a fabricao da porcelana. Cermicas
Santana, dcada de 1980. Acervo Museu
Histrico e da Porcelana de Pedreira.
Imagem 10: Processo de extruso da borbotina
com a utilizao do equipamento conhecido
como Maromba. Cermicas Santana, dcada
de 1980. Acervo Museu Histrico e da
Porcelana de Pedreira.
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Aps a extruso, a massa colocada em formas de gesso, conhecidas por estampo. Aps a
secagem, cuja durao varia entre uma e duas horas, a pea destacada do molde e entregue seo
de a acabamento. Espera-se aproximadamente um dia at a secagem completa das pelas e ento so
retiradas as rebarbas, isto , o excesso de massa que se acumula na juno das partes do molde. A
realizao dos acabamentos conta com a utilizao de equipamentos como tornos e lminas. Os
detalhes mais finos so obtidos com o uso de buchas umedecidas em gua, cuja funo o
alisamento da superfcie.
Imagem 11: Molde utilizado para a fabricao
de canecas de porcelana. Acervo Museu
Histrico e da Porcelana de Pedreira/SP.
Imagem 12: Molde utilizado para a fabricao
de vasos de porcelana. Acervo Museu Histrico
e da Porcelana de Pedreira/SP.
Para evitar que a pea fique porosa, aps a queima feita a esmaltao, processo responsvel
por dar brilho e colorao superfcie das peas. O esmalte da cermica um dos elementos que
mais afeta os aspectos funcionais da pea, pois seu uso est diretamente relacionado a caractersticas
como a estanqueidade.20
20Ausncia de porosidades, trincas e furos que possam deixar escapar parte do contedo armazenado nas peas.
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O esmalte branco usado na produo da porcelana tambm serve de base para a formao de
cores especficas, cores essas criadas mediante a adio de corantes. O esmalte colocado em um
grande recipiente e as peas so banhadas, absorvendo imediatamente o verniz.
Em seguida, retirado o esmalte da base da pea, em alguns casos com o uso de um
equipamento especfico, desenvolvido na prpria fbrica, composto por uma esteira revestida por
uma esponja. A retirada do esmalte da base necessria para que a pea no fique aderida ao forno
na etapa de queima.
As peas de porcelana so organizadas em armrios abertos respeitando-se a fase de
produo. Os armrios so geralmente formados por uma estrutura metlica fixa sobre a qual so
colocadas prateleiras de madeira. As prateleiras destacam-se da estrutura do armrio de modo a
servirem de suporte para o transporte dos produtos. Esse transporte realizado com o funcionrio
utilizando apenas o apoio do ombro e uma das mos tarefa que exige equilbrio e muito domnio
espacial do local de trabalho. Em alguns casos observa-se a existncia de estantes projetadas
especialmente para o processo de transporte e armazenamento, com rodas que permitem fcil
locomoo nas dependncias da oficina.
Imagem 13: Detalhe do trabalho das
funcionrias da empresa Cermicas So Joaquim
durante o processo de acabamento das peas
produzidas. Foto: Raul Lanari, 24/01/2014.
Imagem 14: Armazenamento de peas da
empresa Cermicas So Joaquim. Observa, no
canto inferior esquerdo, a utilizao de estantes
com rodas para facilitar o transporte das peas.
Foto: Raul Lanari, 24/01/2014
A etapa seguinte do processo a queima das peas. Nesse ponto distinguem-se dois tipos de
produtos finais: aquele que ser comercializado sem nenhum tratamento artstico sobre o suporte e
aquele que receber decorao superficial.
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O tratamento artstico consiste na pintura realizada mo ou no uso de decalque, isto , uma
pelcula que contm a decorao. A pintura de frisos e linhas feita com o uso do torno e as
decoraes figurativas, por serem geralmente mais elaboradas, so feitas mo livre.
Os produtos que receberam tratamento artstico passam por uma nova etapa de queima.
Cuidados especiais so necessrios durante essa etapa da produo. As peas so organizadas em um
suporte adequado para serem levadas ao forno. Uma vez que o esmalte entra em fuso com a
cozedura, necessrio separ-las durante a queima para evitar que elas se grudem. A queima feita
em fornos eltricos a 1290 C, temperatura necessria para a obteno de brilho vitrificado. Aps o
resfriamento, o produto est pronto para ser comercializado.
Imagem 15: Forno eltrico para a queima das peas na Cermicas So Joaquim. Foto: [suprimido], 24/01/2014
A produo de porcelana em Pedreira se caracteriza pela diversidade. So muitos os modelos
utilizados em suas peas, os padres decorativos, as formas e funes do produto, os smbolos de
identificao dos produtores e a gama de cores empregadas no suporte. A maior parte da produo
est voltada ao servio domstico, ao consumo, estocagem e armazenamento de alimentos. Esse
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universo de utenslios materializado em servios de jantar, de ch, de caf, em canecas, xcaras,
pratos, bibels, bules, malgas, tigelas, entre outras peas de grande beleza e requinte.
O universo das relaes de trabalho na cadeia produtiva da porcelana em Pedreira
permanncias e mudanas
Ao longo do tempo, poucas transformaes foram verificadas nas fbricas. A cadeia
produtiva tradicional de fabricao da porcelana manteve grau considervel de integridade, com a
permanncia de muitas das caractersticas do espao de trabalho e da atividade laboral.
Uma mudana verificada no contexto fabril est ligada discriminao de funes por
gnero. Inicialmente, havia uma forte diviso sexual das tarefas. As atividades que exigiam um maior
esforo fsico, assim como cargos administrativos de gerncia e chefia, eram preferencialmente
delegados a indivduos do sexo masculino. Por outro lado, atividades que exigiam maior habilidade
manual e acuidade, como no caso da pintura decorativa, eram preferencialmente destinadas ao sexo
feminino. Atualmente, nota-se que o enquadramento funcional por gnero est relegado ao passado.
A associao do universo feminino produo ceramista tem origem histrica. Fontes
bibliogrficas indicam o predomnio de mulheres no processo de confeco de vasilhames e outros
utenslios nas culturas indgenas, como observado no incio do captulo. A prtica, contudo, tambm
foi difundida entre escravos e quilombolas. Essas populaes utilizaram seus referenciais culturais e
tnicos na definio da morfologia e decorao das vasilhas utilizadas para preparo, consumo, servio
e armazenamento de alimentos. Sobre essa questo, Symamski indica a relao da produo afro-
brasileira com a frica:
[...] a atribuio da produo ceramista ao gnero feminino na grande maioria dessas sociedades, dado o papel fundamental da mulher na reproduo biolgica da sociedade, atravs do parto e da criao dos filhos. A associao da cermica com as mulheres, e consequentemente com a fertilidade, est tambm relacionada com o fato de elas serem as principais responsveis pelo cultivo da terra e preparao dos alimentos. Esta associao particularmente forte entre os grupos banto da frica Central.21
21SYMANSKI, Lus Cludio P. Cermicas, identidades escravas e crioulizao nos engenhos de Chapada dos Guimares
(MT). Histria Unisinos. Vol. 14 N 3 set./dez. De 2010, p.307.
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Em relao ao processo de ensino-aprendizagem empregado nas fbricas de porcelana, nota-
se que os funcionrios mais antigos da fbrica tendem a repassar as tcnicas artesanais da porcelana
para os aprendizes. Esses ltimos tm a oportunidade de inserirem-se na cadeia produtiva mediante o
ensino prtico de suas atividades.
No caso especfico da pintura manual dos objetos, a determinao e o esforo a mdio e
longo prazos fornecem o domnio tcnico necessrio para se trabalhar com a porcelana.
Consequentemente, o formato da decorao, a quantidade de tinta aplicada e a distribuio da
decorao nos vasilhames vo sendo aprimorados com o ganho de experincia.
As relaes vinculadas ao processo de ensino-aprendizagem se inserem em um contexto de
relaes muito particulares que caracterizam o trabalho fabril. A relao social entre os funcionrios
de muita proximidade, relao essa marcada por vnculos familiares e de estreita amizade. comum
que funcionrios indiquem parentes e amigos para trabalharem na fbrica, o que favorece a criao
de um ambiente laboral singular, cujas relaes interpessoais ultrapassam as fronteiras da profisso e
os limites da fbrica.
De forma geral, cada funcionrio possui tarefas e atividades bem definidas. A organizao do
trabalho caracterizada por uma forte disciplina, com horrios de trabalho e no-trabalho definidos
pelo som da sirene, que pode ser ouvida em toda a rea urbana do municpio. Justamente por seu
alcance sonoro, a sirene no s determina os horrios de trabalho, como tambm utilizada como
referncia temporal pelos moradores de Pedreira. Outra funo atribuda sirene anunciar o
falecimento de moradores no municpio. Para tanto, quando os encarregados da fbrica so
notificados do falecimento, a sirene tocada em tom baixo, anunciando para a populao o ocorrido.
A porcelana enquanto referencial simblico e identitrio: o caso das caqueiras
interessante observar que o modo de fazer louas e porcelanas desperta ressignificaes
diversas, que por vezes ultrapassam o universo mercantil e adentram o rol das experincias
simblicas. Um bom exemplo a apropriao das chamadas caqueiras pelas crianas.
As caqueiras so montculos formados a partir do descarte de peas que, em funo de
defeitos apresentados, tiveram sua comercializao inviabilizada. Geralmente localizadas na parte
posterior das fbricas, estes montes formados ao longo de dcadas de descarte constituem fonte
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riqussima de pesquisa, uma vez que o estudo pode revelar importantes informaes sobre a
porcelana, principalmente considerando-se a abordagem arqueolgica. Dados como cronologia das
peas, forma e padres decorativos so alguns dos elementos que poderiam ser mais bem
compreendidos por meio da pesquisa das caqueiras. O estudo desse potencial manancial de
informaes formado pelas caqueiras poderia subsidiar o registro arqueolgico da porcelana
encontrada no Brasil, elucidando tcnicas, hbitos e comportamentos dos diversos grupos sociais
que compem a sociedade brasileira.
Entretanto, o que salta aos olhos, dentro dos objetivos deste artigo, a profuso de memrias
existentes, entre os moradores adultos de Pedreira, a respeito das brincadeiras nas caqueiras. O
depoimento de Adilson Spagiari, atual diretor do Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira,
ilustrativo nesse sentido:
As caqueiras eram a alegria da gente quando ramos crianas. Muitas das fbricas se especializaram, nos primeiros tempos, na fabricao de bonecos e bibels. As peas com defeito iam todas para as caqueiras, e a voc imagina a alegria que no sentamos quando achvamos algum boneco mais ou menos intacto, com o qual poderamos fazer brincadeiras. Se voc perguntar pra todo mundo da minha idade, e pros mais velhos tambm, sobre as caqueiras, voc vai ter que ficar uma semana aqui em Pedreira de tanta histria que tem. 22
O modo de fazer louas e porcelanas em Pedreira est associado a mltiplas experincias de
vida que evidenciam o carter identitrio que a prtica carrega entre os moradores locais. No caso
acima possvel perceber que as memrias inserem os moradores em um campo de experincia
comum, que os coloca em contato com as geraes mais antigas por intermdio das prticas
advindas da produo de louas e porcelanas.
A ttulo de concluso desta seo, interessa observar a forma como os moradores se referem
aos produtos criados em Pedreira. Nem todas as fbricas de louas existentes na cidade produzem
porcelana. Somente um nmero diminuto delas trabalha com esse material, tendo a maioria se
especializado na produo de louas de outras composies e densidades. No obstante, os
moradores se referem s peas, sejam elas em loua ou porcelana, sem qualquer distino, apenas
como porcelanas, o que remete carga simblica imputada posse e, por extenso, produo
de peas deste gnero.
22 Depoimento de Adilson Spagiari, Diretor do Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira, registrado em 27 de janeiro
de 2014.
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Transformaes sociais nos universos da produo e do consumo
Em Pedreira, a instalao das fbricas de porcelana aqueceu a economia e motivou o
surgimento de atividades que do suporte ao setor, tais como as indstrias de mquinas e
equipamentos, estabelecimentos especializados em decalques, pintura e impresso, alm da indstria
de embalagens.
A boa acolhida dos produtos fabricados em Pedreira levou fundao de inmeras fbricas
na cidade entre as dcadas de 1920 e 1960. O tamanho dessas fbricas variava, com pequenas
empresas familiares convivendo com fbricas equipadas com maquinrio importado e mtodos
atualizados de produo das peas.
Segundo depoimentos de alguns dos proprietrios consultados nas visitas a campo, possvel
perceber que a especializao nos mtodos de produo e o acirramento da competio levou
aquisio de algumas das pequenas oficinas por empresas de maior porte. Esse processo levou
diminuio dos fabricantes tradicionais, que tiveram de se especializar em gneros especficos de
louas e cermicas, como por exemplo, as canecas promocionais e garrafas de bebidas alcolicas.
Observou-se tambm o crescimento da produo mecanizada, com a montagem de linhas de
produo, como observado nas dependncias da Cermica So Joaquim.
Imagem 16: Galpo sede da empresa
Cermicas So Joaquim, existente desde 1956 na
cidade de Pedreira/SP. Foto: Raul Lanari,
24/01/2014.
Imagem 17: Linha de produo da empresa
Cermicas So Joaquim, no municpio de
Pedreira/SP. Foto: Raul Lanari, 24/01/2014.
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Outro setor beneficiado com a implantao das fbricas de porcelana foi o comrcio. Na
dcada de 1980 foram criados os primeiros estabelecimentos comerciais na Praa Cel. Joo Pedro
para comercializarem seus produtos direto das fbricas. Essa forma de comrcio prosperou e
culminou por se estender ao longo da Via Marginal da cidade, onde atualmente a porcelana destaca-
se ao lado de outros gneros artesanais do municpio.
O municpio de Pedreira atualmente um centro de produo e comercializao de peas de
cermica e porcelana. A avenida principal, construda onde anteriormente passavam os trilhos da
ferrovia, corresponde a um trecho da rodovia Jaguarina-Amparo. A diversificao das atividades
comerciais e a concorrncia entre fabricantes e lojistas fez com que alguns dos produtores
abandonassem a fabricao de peas como pratos e conjuntos de ch. No caso especfico desses
utenslios, tornou-se mais rentvel importar as peas brutas da China para customizao23 nas
dependncias das fbricas locais.
Ainda hoje a produo cermica fortemente marcada pela mo de obra intensiva. Essa
caracterstica torna a competio com o mercado asitico extremamente difcil, dado o baixo custo
da mo de obra nesse mercado. Isso explica porque 80% da produo de cermicas de uso domstico
e afins concentram-se na sia.24
A fabricao de louas em Pedreira foi alvo de polticas pblicas visando a expanso do
mercado turstico no municpio. Observou-se ento um processo de dupla dimenso: a expanso das
fbricas, a modificao dos mtodos de produo e o consequente aumento do mercado consumidor
foram acompanhados pela patrimonializao da prtica e sua valorizao como parte da identidade
cultural local.
A despeito das mudanas nas prticas de fabricao, a populao de Pedreira tem na
porcelana um dos elementos constituintes de sua identidade, isto , a manifestao cultural local que
diferencia esse grupo social de outras coletividades e que lhe serve de identidade em um mundo cada
vez mais globalizado. esse um dos traos culturais que auxilia a contar a histria do municpio e
demonstrar seu protagonismo nesse campo do conhecimento. So esses valores que qualificam a
23Processo artstico de pintura que resulta na personalizao de peas avulsas ou conjuntos para atender s
demandas do mercado consumidor. 24 TEIXEIRA, Tiago Roberto Alves. Competitividade e territrio: uma anlise do arranjo produtivo local potencial de
cermica artstica do municpio de Porto Ferreira SP. Dissertao (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geocincias e
Cincias Exatas da Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2013.
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porcelana de Pedreira como um elemento do Patrimnio Cultural do municpio e, como tal, merece
ser registrado, preservado, valorizado e divulgado.
Este processo de valorizao cultural da prtica de fabricao de louas e porcelanas fez parte
de um esforo para a criao de um roteiro turstico que pudesse ser associado s rotas existentes na
regio de Jaguarina e Amparo. Jaguarina se notabilizou pela realizao de um dos principais
rodeios brasileiros, enquanto Amparo uma das cidades histricas mais procuradas pelos paulistas
nos meses de julho e janeiro por abrigar uma estncia hidromineral e diversas opes de turismo
histrico.25 Pedreira procurou se beneficiar do fato de estar localizada entre as duas cidades para atrair
o turismo. Atualmente, existem mais de 150 lojas que comercializam uma grande variedade de
produtos cermicos em Pedreira, as quais esto localizadas, em sua maioria, nas proximidades da rota
do Circuito Paulista das guas, ou seja, em pontos estratgicos para atrair os turistas s compras.26
Para isso a Prefeitura Municipal investiu no processo de patrimonializao da prtica. Este
processo, segundo Franoise Choay, apresenta-se na forma da criao de instituies e polticas
culturais de reconhecimento e valorizao das prticas sociais que, por sua vez, direcionam as
prticas de preservao ao vincul-las ao poder pblico e a mecanismos de financiamento e
divulgao na imprensa e na mdia.27 No caso de Pedreira, o que se observou primeiramente foi a
preocupao em identificar e classificar as diversas fbricas de cermicas e porcelanas no municpio.
As informaes obtidas privilegiavam apenas os tipos de cermicas produzidas, sem especificao
das peculiaridades de cada produtor. Tratava-se, enfim, de uma listagem voltada para os lojistas que
visitavam Pedreira para a aquisio de estoques.
As aes de valorizao da histria da produo de louas e porcelanas em Pedreira
ganharam maior mpeto a partir da reestruturao do Museu Histrico Beato Jos de Anchieta,
fundado em 1980, e sua transformao no Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira em 1995. A
partir de ento, a instituio passou a funcionar na edificao conhecida como Sobrado do Dr. Silva
Pinto, localizada na Praa Coronel Joo Pedro, n.102. A construo, inaugurada na segunda metade
do sculo XIX, abrigou a famlia Silva Pinto durante aproximadamente sessenta anos. O sobrado foi
utilizado para diversas outras finalidades na segunda metade do sculo XX, abrigando instituies
bancrias, frum temporrio, sede de uma rdio e da Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais
25ALLIS, Thiago. Turismo, patrimnio cultural e transporte ferrovirio: um estudo sobre ferrovias tursticas no Brasil e na Argentina.
Dissertao (Mestrado em Integrao da Amrica Latina) Universidade de So Paulo, So Paulo, 2006, p.139. 26SOUZA, Simone Faria de. A indstria de cermica de Pedreira..., p.128-133. 27CHOAY, Franoise. O Patrimnio em Questo: antologia para um combate. Belo Horizonte: Ed. Autntica, 2011, p.31-37.
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do municpio. Entre 1995 e 1998 o Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira esteve instalado na
edificao, tendo iniciado o processo de composio de seu acervo a partir de campanha de
mobilizao das famlias locais. Entre 1998 e 2006 o museu funcionou na antiga Estao Ferroviria
de Pedreira, tendo voltado ao Sobrado do Dr. Pinto em 2006, por determinao da Lei Municipal
n. 2.633/2006. A edificao passou por intervenes de restauro nos anos de 2009, com sua
descupinizao total, e em 2010, com a substituio completa de sua cobertura.28
O retorno do Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira ao antigo edifcio levou
organizao de suas dependncias em torno de dois eixos: a histria do municpio, no primeiro
andar, e, no segundo, a histria da fabricao de louas e porcelanas. Foram organizadas no primeiro
piso exposies de peas e fotografias referentes aos imigrantes italianos, estrada de ferro, aos
ofcios tradicionais, como o boticrio, o dentista e o comerciante. Uma parte do salo principal foi
destinada exposio de grandes projetores de pelculas cinematogrficas, procurando mostrar o
crescimento urbano da cidade e a criao dos primeiros estabelecimentos culturais.
A instituio dedica as salas do segundo andar exposio de peas de porcelana produzidas
pelas fbricas do municpio, contextualizando e apresentando a evoluo histrica da prtica no
municpio de Pedreira. Grandes painis contam a histria dos principais fabricantes, como a
Cermica Santa Rita, a Cermica Santa Terezinha, Cermica Nadir Figueiredo e a Cermica Santana.
A narrativa museolgica da instituio mistura a memria do municpio memria da produo de
louas e porcelanas, mas apaga as distines entre as duas categorias de cermica com a
institucionalizao da segunda que, como j observamos, dotada de carga simblica ligada ao valor
econmico.
Em funo da recente comemorao do centenrio da Porcelana em Pedreira, a Prefeitura
Municipal, por meio da atuao da Secretaria Municipal de Turismo, de Cultura e Educao,
organizou visitas guiadas s fbricas locais para apresentar o processo produtivo da porcelana
populao interessada. Tambm foram ministradas palestras em escolas, concurso fotogrfico e
exposio no Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira. Tais atividades contriburam para
estimular a difuso das memrias ligadas produo de louas e porcelanas entre as geraes mais
novas de Pedreira.
28 Museu Histrico e da Porcelana de Pedreira. Disponvel em: http://museupedreira.blogspot.com.br/2013/07/ 100-anos-da-porcelana-em-pedreira-1913.html. Acesso em: 29 de abr. 2014.
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Para Choay e outros especialistas na rea do patrimnio cultural, como Ulpiano Toledo
Bezerra de Menezes, este processo traz consigo o perigo de inflao do mercado de bens
simblicos e de sua vinculao excessiva com a espetacularizao da cultura e as estratgias de
marketing cultural que submetem a valorao dos bens culturais s normas no escritas das trocas
econmicas.29 Schneider, acompanhando a linha de raciocnio descrita acima, identifica na dimenso
no-oficial do patrimnio processos de construo de significados ligados aos sentimentos e afetos.
Para a autora, esta dimenso estaria diretamente ligada ao sentimento de pertencimento que define as
identidades e que unifica os grupos sociais. Para estes autores, somente a existncia desta dimenso
no oficial de reconhecimento das manifestaes culturais permite a difuso e a incorporao delas
s identidades locais.30
A despeito dessas vicissitudes, percebe-se que as atividades tambm possuem o objetivo de
formar agentes culturais que possam trabalhar nos roteiros tursticos procurados pelos visitantes.
Percebe-se, nesse caso, uma forma de direcionamento da manifestao cultural a partir de demandas
no propriamente ligadas prtica, mas sim aos objetivos estratgicos da administrao municipal
referentes ao desenvolvimento econmico local. Esta estratgia apresenta o benefcio de inserir
jovens no mercado de trabalho, movimentando recursos no municpio. Por outro lado, esta insero
no mercado est apenas parcialmente ligada prtica, uma vez que aqueles que desenvolvem as
atividades tursticas no se engajam na produo de louas e porcelanas. Com isso fica prejudicado
um dos principais objetivos das prticas patrimoniais, segundo o Decreto 3551/2000: a garantia de
continuidade e livre apropriao das manifestaes culturais imateriais.
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Graduao em Comunicao, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.