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Conhec. Dest., Serra, ES, v. 01, n. 02, jul./dez. 2012. CURRÍCULO INTEGRADO E INTERDISCIPLINARIDADE NO PROJOVEM URBANO: CONTRIBUIÇÕES À LUZ DE DELEUZE, GUATTARI E GALLO Camila Reis dos Santos 1 Thiago Henrique Santos Pinheiro 2 Resumo Busca promover um “debate” à cerca da proposta curricular Projoviana e suas implicações no que tange a interdisciplinaridade. Buscamos permear a análise à luz das contribuições de Deleuze, Guattari e Gallo, abordando a relevância de se pensar sob a ótica rizomática na construção do conhecimento. Quando discutimos a abordagem curricular do Projovem Urbano, nos deparamos com os entraves políticos e sociais que envolvem toda uma vasta rede de poder, verticalizando o processo de construção curricular. Devemos vislumbrar a construção de uma concepção de saber que contemple a multiplicidade sem a fragmentação; um currículo para/com/por nossos jovens. Palavras-chave: Currículo. Projovem Urbano. Interdisciplinaridade. 1 INTRODUÇÃO Entendemos que é difícil para uma política pública de juventude contemplar a multiplicidade de percepções, expectativas e sonhos deste segmento e que, isoladamente, os projetos não bastam, é preciso mudar o entorno. Mas, desde que haja diálogo e participação, os Programas sociais, podem promover mudanças positivas na vida dos jovens. Para se criar um contexto participativo é preciso, antes de tudo, ouvir os interessados mesmo se tratando de uma política emergencial como é o caso do PROJOVEM (PEREIRA, 2007, p. 117). O estabelecimento eficaz da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil apresenta-se desafiador, principalmente no que tange a inclusão efetiva do público inserido nesta modalidade da educação. 1 Mestranda da linha de pesquisa Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas (Mestrado em Educação) na Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Educação Inclusiva pelo Instituto Superior de Educação e Cultura Ulysses Boyd (ISECUB). Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atuou como Educadora de Ciências Naturais no Projovem Urbano do Município da Serra (ES). E-mail: [email protected] . 2 Pós-Graduando em Informática na Educação pelo Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Bacharel em Ciências da Computação pelas Faculdades Integradas Espírito-santenses (FAESA). Atuou como Educador de Matemática e Informática no Projovem Urbano do Município da Serra (ES). E-mail: [email protected] .

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CURRÍCULO INTEGRADO E INTERDISCIPLINARIDADE NO PROJOVEM

URBANO: CONTRIBUIÇÕES À LUZ DE DELEUZE, GUATTARI E GALLO

Camila Reis dos Santos1

Thiago Henrique Santos Pinheiro2

Resumo Busca promover um “debate” à cerca da proposta curricular Projoviana e suas implicações no que tange a interdisciplinaridade. Buscamos permear a análise à luz das contribuições de Deleuze, Guattari e Gallo, abordando a relevância de se pensar sob a ótica rizomática na construção do conhecimento. Quando discutimos a abordagem curricular do Projovem Urbano, nos deparamos com os entraves políticos e sociais que envolvem toda uma vasta rede de poder, verticalizando o processo de construção curricular. Devemos vislumbrar a construção de uma concepção de saber que contemple a multiplicidade sem a fragmentação; um currículo para/com/por nossos jovens. Palavras-chave: Currículo. Projovem Urbano. Interdisciplinaridade.

1 INTRODUÇÃO

Entendemos que é difícil para uma política pública de juventude contemplar a multiplicidade de percepções, expectativas e sonhos deste segmento e que, isoladamente, os projetos não bastam, é preciso mudar o entorno. Mas, desde que haja diálogo e participação, os Programas sociais, podem promover mudanças positivas na vida dos jovens. Para se criar um contexto participativo é preciso, antes de tudo, ouvir os interessados mesmo se tratando de uma política emergencial como é o caso do PROJOVEM (PEREIRA, 2007, p. 117).

O estabelecimento eficaz da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil

apresenta-se desafiador, principalmente no que tange a inclusão efetiva do público

inserido nesta modalidade da educação.

1 Mestranda da linha de pesquisa Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas (Mestrado em Educação) na Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Educação Inclusiva pelo Instituto Superior de Educação e Cultura Ulysses Boyd (ISECUB). Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atuou como Educadora de Ciências Naturais no Projovem Urbano do Município da Serra (ES). E-mail: [email protected].

2 Pós-Graduando em Informática na Educação pelo Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Bacharel em Ciências da Computação pelas Faculdades Integradas Espírito-santenses (FAESA). Atuou como Educador de Matemática e Informática no Projovem Urbano do Município da Serra (ES). E-mail: [email protected].

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O educando da EJA é caracterizado como oriundo das classes menos favorecidas

da sociedade e que por motivos diversos, não concluiu seus estudos na escola

regular. Não podemos deixar de ressaltar, no âmbito desta caracterização, que na

grande maioria dos casos, a passagem do jovem e/ou adulto pela escola regular

constituiu-se um processo sem êxito e que culminou na exclusão do mesmo do

sistema regular de ensino. Pela vontade pessoal ou pela necessidade de se adequar

às exigências do mercado de trabalho, o aluno acaba retornando à escola com o

objetivo de obter qualificação ou aprender o que antes não lhe foi possível pela

escola regular.

Na época do Brasil colonial, a educação voltada para o público não-infantil segundo

Cunha (1999), fazia-se referência apenas à população adulta, que também

necessitava ser doutrinada e iniciada nas "cousas da nossa santa fé". É possível

perceber que havia um caráter mais religioso do que educacional. O que se buscava

nesta época, era a ascensão da produtividade relacionada ao aumento do número

de escravos. A educação não entrava neste âmbito, sendo totalmente negligenciada.

A partir do desenvolvimento industrial em nosso país, a valorização da educação da

população adulta teve sua progressão, sendo traduzida em pontos de vista diversos:

no domínio da linguagem falada e escrita visando o controle sob as técnicas de

produção; instrumento de ascensão social; meio de progresso para o país; ou até

mesmo ampliação da base de votos (CUNHA, 1999).

No Brasil, a década de 1940 marca os primórdios da independência da Educação de

Jovens e Adultos diante dos altos índices de analfabetismo no país. A modalidade

da EJA volta-se para políticas de alfabetização da população adulta.

Concomitantemente à Campanha de Educação de Adultos, abre-se a discussão sobre o analfabetismo e a educação de adultos no Brasil. O analfabetismo é visto como causa e não como efeito do escasso desenvolvimento brasileiro, privando o País de participar do conjunto das "nações de cultura" (CUNHA, 1999, p. 11).

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No ano de 1964, o golpe militar representou uma interrupção do trabalho de

alfabetização da população adulta, devido ao seu caráter conscientizador. O

governo só consentiu a realização de programas de alfabetização de adultos de

essência conservadora e assistencial. No ano de 1967 cria-se o Mobral -Movimento

Brasileiro de Alfabetização.

A atuação do Mobral voltou-se, inicialmente, para a população analfabeta entre 15 e 30 anos. Por outro lado, objetivou sua atuação em termos de "alfabetização funcional", definindo que ela deveria visar "a valorização do homem (pela aquisição de técnicas elementares de leitura, escrita e cálculo e pelo aperfeiçoamento dos processos de vida e trabalho) e a integração social desse homem, através do seu reajustamento à família, à comunidade local e à pátria" (CUNHA, 1999, p. 12).

O Mobral acabou sendo extinto em 1985 e, em seu lugar, surgiu a Fundação

Educar, "que abriu mão de executar diretamente os programas, passando a apoiar

financeira e tecnicamente as iniciativas de governos, entidades civis e empresas a

ela conveniadas" (CUNHA, 1999).

A Constituição de 1988 institui como dever do Estado a ampliação da EJA, ao

estabelecer a garantia do ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive aos

jovens e adultos que não tiveram acesso à educação básica na idade própria.

O desafio da educação de jovens e adultos nos anos 90 é o estabelecimento de uma

política e de metodologias criativas, com a finalidade de se garantir aos adultos

analfabetos e aos jovens que tiveram passagens fracassadas pelas escolas o

acesso à cultura letrada, possibilitando uma participação mais ativa no universo

profissional, político e cultural. O desafio torna-se maior quando se pensa que o

acesso à cultura letrada não significa em qualquer hipótese ignorar a cultura e os

saberes que os jovens e adultos trazem como bagagem (CUNHA, 1999).

Nessa perspectiva, é reducionismo compreender os jovens em relação exclusiva

com o mundo produtivo. Na sua formação há aspectos que são centrais na

constituição do tempo juvenil: a relação com o bairro, a cidade, os amigos, a família,

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a música, a dança, etc. Buscar compreender a juventude apenas no seu aspecto

produtivo, ou concebê-la meramente como violenta ou apática, reduz a dimensão

histórica e social à concepções fatalistas. Não se trata de apreender o que os jovens

urbanos trazem do folclore em sua acepção tradicional, mas quais as relações que

estabelecem entre o tradicional e o moderno, o rural e o urbano, como dialogam e se

orientam no mundo a partir da tradição proporcionada por seus pais (oriundos de

diferentes ambientes culturais impulsionados pelos processos migratórios) e a

cultura especificamente urbana, para se inserirem na vida da cidade (GUIMARÃES;

DUARTE, 2009).

[...] nos parece pertinente retomar a idéia bastante corrente da impossibilidade de pensar a educação fora do contexto histórico mais amplo, das intrínsecas relações entre educação, sociedade e política, e como o currículo está implicado em relações de poder, dada a não neutralidade da educação e o seu caráter de reprodução e transmissão da cultura hegemônica, que nega e silencia as demais culturas. Essas relações se mostram muito presentes nas práticas educativas na EJA, onde “ao vivo e a cores” se presencia a pulsação de forças que (re) produzem e acentuam não somente as desigualdades mas, também, as contradições que nos permitem vislumbrar a educação como campo de possibilidades, onde as classes populares afirmam, “sem saber que já sabiam”, o seu poder de luta pelo direito à educação [...] (OLIVEIRA, 2010, p. 02).

A Educação de Jovens e Adultos funciona atualmente em escolas públicas e

particulares em várias cidades do Brasil, por meio dos supletivos. Além deste, foram

criados outros programas voltados para a EJA como, por exemplo, o PROJOVEM

URBANO foco deste artigo.

O Projovem Urbano tem como finalidade elevar o grau de escolaridade visando ao

desenvolvimento humano e ao exercício da cidadania, por meio da conclusão do

ensino fundamental, de qualificação profissional e do desenvolvimento de

experiências de participação cidadã (BRASIL, 2008).

De acordo com Brasil (2008), uma proposta educacional concretiza-se em um

currículo que traduz as concepções nas quais se fundamenta. No Brasil, como tal

pelo mundo afora, os jovens são os mais atingidos, tanto pelas transformações

sociais, que tornam o mercado de trabalho excludente e mutante, quanto pelas

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distintas formas de violência física e simbólica, que caracterizaram a sociedade do

fim do século XX e persistem neste início de século.

As diversas situações excludentes vivenciadas pelo jovem causam e criam

instabilidade e falta de estímulo o que traz inúmeros desafios para o Projovem

Urbano. É preciso muita criatividade, energia e habilidade para apostar no potencial

dos jovens. Além disso, é de fundamental importância realizar ações que busque

problematizar as situações de exclusão, na perspectiva desses jovens refletirem se

vale a pena ou não buscar alternativas de inserção social. Segundo Brasil (2008),

tudo isso aponta para um currículo integrado que considere as dimensões humanas

do conhecimento, da ação e do compromisso consigo mesmo e com os outros.

Do ponto de vista específico da proposta curricular, é preciso que se respeitem e se valorizem as culturas dos jovens, mas também que se criem contextos que lhes favoreçam, na posição de sujeitos, a efetiva apropriação crítica de conhecimentos e linguagens de outros grupos sociais e do mundo do trabalho. Reconhecer e valorizar as culturas dos jovens não significa, por exemplo, aceitar que não sejam bons leitores, que não saibam usar o computador, a Internet, e outras tecnologias usuais na vida cotidiana dos tempos atuais (BRASIL, 2008, p. 34).

2 A PROPOSTA CURRICULAR INTEGRADA E A INTERDISCIPLINARIDADE NO PROJOVEM URBANO

No que se refere à proposta curricular integrada projoviana, temos que:

[...] pretende ultrapassar o campo das intenções para promover situações pedagógicas que efetivamente favoreçam a construção do protagonismo juvenil. Isso implica criar estruturas, tempos e espaços de aprendizagem vinculados aos objetivos do programa e planejar ações nas quais se concretizem as experiências julgadas fundamentais para o processo de inclusão pretendido (BRASIL, 2008, p. 34).

O princípio fundamental do Projovem Urbano é o da integração entre Formação

Básica, Qualificação Profissional e Participação Cidadã, tendo em vista a promoção

da eqüidade e, assim, considerando as especificidades de seu público: a condição

juvenil e a imperativa necessidade de superar a situação de exclusão em que se

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encontram esses jovens no que se refere aos direitos à educação, ao trabalho e à

cidadania. Entende-se ainda que o acesso a esses direitos, assim como a outros

direitos universais, só será pleno quando a sociedade reconhecê-los e,

particularmente, quando os segmentos deles privados assumirem-se como cidadãos

ativos, conscientes do seu direito a ter direitos e da necessidade de lutar por eles

(BRASIL, 2008).

A idéia de disciplinarização e/o compartimentalização do saber, parece destoar tanto

dos objetivos propostos pelo Projovem Urbano quanto do estabelecimento desta

integração curricular proposta pelo programa, na visão de alguns educadores.

Entretanto, a proposta curricular projoviana, defende que:

[...] cada disciplina tem um modo específico de ver a realidade e o conhecimento desses diferentes pontos de vista é importante para que o jovem possa de fato construir sua subjetividade e conquistar sua inclusão social no mundo de hoje. A admissão dessas especificidades, porém, não implica separar, mas sim distinguir as contribuições de cada disciplina (BRASIL, 2008, p. 36).

No que tange o Projovem Urbano, a interdisciplinaridade é concebida como uma

construção do aluno que se faz com base em conhecimentos multidisciplinares. O

objetivo seria a conexão dos conteúdos disciplinares entre si e com a própria vida do

jovem. Interdisciplinaridade nos moldes projovianos não é sinônimo de integração,

ainda que as relações estabelecidas entre os dois conceitos sejam múltiplas e fortes

(uma vez que a interdisciplinaridade é segundo o programa uma ferramenta de

integração, de elo, entre diferentes dimensões do currículo).

Na concepção curricular projoviana, a idéia é a de que:

Ninguém consegue ampliar conhecimentos apenas refletindo sobre o que já sabe, já viveu ou está vivendo. É preciso que se trabalhe com um conteúdo organizado e sistematizado para que se possa avançar, para que se possa “aprender a aprender”. Esse uso do conteúdo não pode ser confundido com conteudismo, que dá importância ao conteúdo por si mesmo, como se o currículo fosse uma enciclopédia que abrangesse tudo de todas as áreas de conhecimento (BRASIL, 2008, p. 36).

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No caso do ProJovem Urbano, os conteúdos são selecionados em função dos

jovens estudantes, segundo sua importância para a formação de cidadãos

conscientes e capazes de mudar sua postura diante dos fatos e dos problemas da

vida contemporânea. Nesse caso, os conteúdos tornam-se instrumentos da inclusão

social e compreendem, além dos cognitivos, os conteúdos procedimentais e

atitudinais (BRASIL, 2008).

3 CONTRIBUIÇÕES DE DELEUZE, GUATTARI E GALLO

O paradigma, que surgiu na modernidade clássica com René Descartes, promoveu

o que entendemos hoje por compartimentarização do conhecimento, em que o

conteúdo é tratado em sua forma fragmentada, dividida e separada da complexidade

da realidade. Isso deu origem à especialização do conhecimento e,

conseqüentemente, ao formato disciplinar da educação que conhecemos (KHOURI,

2009).

Uma das tentativas de superação desta fragmentação tem sido a proposta de se

pensar uma educação interdisciplinar, isto é, uma forma de se organizar os

currículos escolares de modo a possibilitar uma integração entre as disciplinas,

permitindo a construção daquela compreensão mais abrangente do saber

historicamente produzido pela humanidade (GALLO, 2003).

Segundo Gallo (1999), as propostas interdisciplinares - com todas as suas

adjetivações e mesmo os outros conceitos próximos a ela, de multidisciplinaridade e

transdisciplinaridade - surgiram exatamente para possibilitar esse livre trânsito pelos

saberes, rompendo com suas fronteiras e buscando respostas para assuntos

complexos como os ecológicos e os educacionais, por exemplo. Devemos, portanto,

perguntar: a interdisciplinaridade dá conta de romper com as barreiras entre as

disciplinas?

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Temo que não; embora ela possa significar um grande avanço em relação à disciplinarização pura e simples, não é, porém, um rompimento definitivo com as disciplinas. A afirmação da interdisciplinaridade é a afirmação, em última instância, da disciplinarização: só poderemos desenvolver um trabalho interdisciplinar se fizermos uso das várias disciplinas. E, se a fragmentação e compartimentalização dos saberes já não dão conta de responder a vários problemas concretos com que nos defrontamos em nosso cotidiano, precisamos buscar um saber, não-disciplinar, que a interdisciplinaridade não seria capaz de nos fornecer. Para pensar problemas híbridos, necessitamos de saberes híbridos, para além dos saberes disciplinares (GALLO, 1999, p. 05).

Sílvio Gallo (2003) lembra que todo o conhecimento construído na história da

humanidade, desde a tecnologia escrita, se fundamenta no processo de

interpretação da realidade, e é norteado por uma busca incessante pela verdade.

Esse acúmulo de saberes que se iniciou com a atividade interpretativa humana foi

se ramificando ao longo do tempo dando origem à metáfora arborescente do saber,

em que há uma hierarquização de todo conteúdo acumulado, que se origina a partir

de um único e robusto tronco, de forma a revelar a grande árvore do conhecimento.

Deleuze e Guattari concebem diferentemente o processo de produção de saberes.

Para eles, não existe um pressuposto último que sustenta todo o conhecimento, e

que se ramifica infinitamente em direção à verdade. A estrutura do conhecimento

assume forma fascicular, em que não há ramificações, e sim pontos que se originam

de qualquer parte, e se dirigem para quaisquer pontos. O conceito de rizoma surge,

assim, em Deleuze e Guattari, em oposição à forma segmentada de se conceber a

realidade, bem como ao modo positivista de se construir conhecimento (KHOURI,

2009).

Diferentemente da ramificação hierarquizada do saber, e sem a lógica binária que rege as relações dicotômicas nas quais se incluem o pensamento psicanalítico e o estruturalismo em geral (DELEUZE e GUATTARI, 1995), a visão rizomática da estrutura do conhecimento não estabelece começo nem fim para o saber (KHOURI, 2009, p. 02).

Segundo Gallo (2003), as propostas de uma interdisciplinaridade postas hoje sobre

a mesa apontam no contexto de uma perspectiva arborescente, para integrações

horizontais e verticais entre as várias ciências; numa perspectiva rizomática,

podemos apontar para uma transversalidade entre as várias áreas do saber,

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integrando-as, senão em sua totalidade, pelo menos de forma muito mais

abrangente, possibilitando conexões inimagináveis através do paradigma

arborescente. Assumir a transversalidade é transitar pelo território do saber como as

sinapses viajam pelos neurônios, uma viagem aparentemente caótica que constrói

seu(s) sentido(s) à medida em que desenvolvemos sua equação fractal.

Os impulsos nervosos, por exemplo, não se propagam apenas pelo contato entre

dois neurônios, podem também se fazer por meio de neurotransmissores. Assim

também o aprendizado pode se estabelecer de várias formas, existem caminhos

diversos que permitem-nos chegar à plenitude do saber. O educador rizomático

deve buscar uma gama de trânsitos no processo de construção do conhecimento,

que se estabelece na relação educando-educador. Como o rizoma que não é

hierarquizado, assim também deveriam se estabelecer as relações escolares. Não

se homogeneizar, mas tratar da heterogeneidade que a multiplicidade das conexões

de um rizoma podem proporcionar. Todos são importantes neste processo, cada

qual com suas manifestações e concepções da realidade.

Como Khouri (2009) nos apresenta, entender a educação na perspectiva rizomática,

seja na escola ou na universidade, como um campo de construção de conhecimento

requer, sobretudo, a compreensão de que existem diversas formas de

conhecimento, e que elas dialogam entre si dentro de contextos históricos e sociais.

Os conteúdos abordados criam conexões múltiplas com elementos de outros

campos do saber. Mito, ciência, filosofia, artes, religião e senso comum se

comunicam entre si e estabelecem redes interligadas de construção de

conhecimento. Mesmo as ciências naturais, como a matemática, estabelecem

relações com saberes de outras áreas, como as ciências humanas.

A forma rizomática de construção de conhecimento pode contribuir também para a

melhoria das relações interculturais. Estar convicto de que o modo como se pensa

consiste em apenas uma das múltiplas formas possíveis de se conceber a realidade,

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de que não existe uma verdade única para explicar as coisas e, portanto, da

compreensão de que não detemos a propriedade do conhecimento último e

verdadeiro, pode promover a construção de uma formação social mais tolerante com

as diferenças e mais condizente com nossa realidade.

4 DESAFIOS E PERSPECTIVAS: UMA VISÃO À LUZ DE DELEUZE, GUATTARI

E GALLO SOBRE A ESTRUTURA CURRICULAR PROJOVIANA

Segundo Gallo (1999), a disciplinarização dos currículos escolares não reflete

apenas a compartimentalização dos saberes científicos. Nela está embutida também

a questão do poder.

O saber e o poder possuem um elo muito íntimo de ligação: conhecer é dominar. E

conhecemos o velho preceito da política: dividir para governar. O processo histórico

de construção das ciências modernas agiu através da divisão do mundo em

fragmentos cada vez menores, de forma a poder conhecê-los e dominá-los. No

desejo humano de conhecer o mundo está embutido seu desejo secreto de dominar

o mundo.

Por sua vez, a educação esteve também permeada pelos mecanismos de controle.

E a disciplinarização possibilita esse controle sobre o aprendizado (o quê, quando,

quanto e como o estudante aprende) e também um controle sobre o próprio

educando. A disciplina também está relacionada ao comportamento, não-apenas, à

aprendizagem. Disciplinar o aluno é também fazer com que ele perceba seu lugar

social. A disposição cartográfica de uma sala de aula, seja ela qual for, é sempre

uma disposição estratégica para que o professor possa dominar os alunos, pois

nesta concepção de escola o aprendizado só pode acontecer sob domínio. Para

dizer de outra forma, uma sala de aula nunca é caótica, há sempre uma ordem

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implícita que, se visa possibilitar a ação pedagógica, traz também a marca do

exercício do poder, que deve ser sofrido e introjetado pelo educando.

Quando refletimos a questão da disciplinarização vinculada ao poder, vislumbramos

um maior entendimento à cerca da sistematização apresentada no currículo escolar

do Projovem Urbano. Haja vista o programa ser organizado pelo governo federal,

percebemos uma verticalização no processo de produção e articulação do currículo

projoviano, atuando como ferramenta de “controle e de manutenção da ordem”.

Ao mesmo tempo em que assumimos existir esse entrave na proposta curricular do

programa, enxergamos que:

De nossa criatividade e de nossa ação política e capacidade de influência dependerá o delineamento de um processo educativo e de uma sociedade em que o controle se exerça de forma mais diluída e também mais intensa, dando-nos apenas uma ilusão de autonomia, ou então de uma educação e uma sociedade em que a autonomia seja um fato, numa realidade mais solidária e mais democrática (GALLO, 1999, p. 09).

Quando o programa concebe que os conteúdos são selecionados em função dos

jovens estudantes, segundo sua importância para a formação de cidadãos

conscientes e capazes de mudar sua postura diante dos fatos e dos problemas da

vida contemporânea, nos preocupa o fato de “por quem” e “pra quem” foram os

sujeitos reais analisados e concebidos na produção e execução do currículo do

Projovem Urbano. Nada mais pleno e justo seria a participação ativa dos jovens na

construção deste currículo, juntamente com os demais responsáveis educadores e

gestores, como forma de explanarem sobre suas reais necessidades e vontades.

Conceber de fato o protagonismo juvenil nos muros de nossas escolas.

Se, no lugar de partirmos de racionalizações abstratas de um saber previamente produzido, começarmos o processo educacional na realidade que o aluno vivencia em seu cotidiano, poderemos chegar a uma educação muito mais integrada, sem dissociações abstratas; à parte a nova filosofia de educação que implica essa postura e mesmo a nova visão de mundo que ela suscita., também experimentaríamos, com essa postura pedagógica, uma sensível melhoria no aproveitamento e rendimento dos alunos, pois aquela barreira intuitiva não mais precisaria ser ultrapassada (GALLO, 1999, p. 10).

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Vale ressaltar segundo Gallo (1999), que sem dúvida alguma, é bastante difícil para

qualquer professor trabalhar na perspectiva de uma transversalidade, dado que

fomos, nós próprios, formados de maneira compartimentalizada e de certo modo

"treinados" para trabalhar dessa forma, reproduzindo nos educandos as estruturas

dos "arquivos mentais estanques". Entretanto, como vimos, esse ensino

compartimentalizado leva a uma abstração do real, pois o mundo forma um todo

complexo e multifacetado, uma pluralidade de inter-relacionamentos. Devemos

lembrar que o estudante, na "sutil inocência" de sua virgindade acadêmica apreende

o mundo como essa pluralidade, compreendendo-a ou não; fica, assim, bastante

complicado para elas assimilar as compartimentalizações que lhes são oferecidos na

escola. Uma das primeiras barreiras na educação das crianças - e certamente uma

das mais difíceis de ser transposta - é essa percepção intuitiva e muitas vezes

inconsciente da multiplicidade do real, que elas precisam abstrair para assimilar a

compartimentalização de saberes que lhe é imposta pelos professores.

Os objetivos do programa, muito discutidos por nós neste artigo, são de fato

perspectivas inclusivas grandiosas e de grande relevância para nossos jovens. Não

podemos desconsiderar os méritos que o Projovem Urbano proporcionou, no âmbito

da EJA (Educação de Jovens e Adultos), em nosso país. Entretanto, quando

vislumbramos uma educação plena e rizomática, nos contentarmos com a

burocracia escolar que nos envolve, seria negar nosso papel e essência de

educadores e formadores que somos.

Sei que estamos, nós professores, em larga medida com pés e mãos atados pela burocracia escolar. O que podemos fazer é pouco, mas a pequena ação transformadora no espaço em que somos autônomos pode ter uma repercussão e um resultado maior do que o que imaginamos; sem dúvida, no mínimo conseguiremos mais do que insistindo na pálida apatia conformista que nos reduz a meros "reprodutores da mesmice” (GALLO, 1999, p. 10).

O desafio é grande e avassalador, porém, como Gallo (1999) mesmo nos estimula,

não podemos perder de nosso horizonte, que a utopia que nos guia é algo bem

maior: a construção de uma concepção de saber que vislumbre a multiplicidade sem

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a fragmentação; um currículo e uma escola na qual os jovens possam aprender

sobre o mundo em que vivem, um mundo múltiplo e cheio de surpresas, e possam

utilizar as diferentes ferramentas que permitam seu acesso aos diferentes saberes

possibilitados no cotidiano, e possam aprender a relacionar-se com os outros e com

o mundo em liberdade.

5 REFERÊNCIAS

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