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ARGUMENTAÇÃO RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO LINGÜÍSTICA 3 Oswald Ducrot (EHESS-PARIS) RESUMO: Neste artigo, minha primeira tarefa é o de fazer uma distinção entre as noções de argumentação retórica e argumentação lingüística. Acredito, entretanto, que a reflexão apresentada não somente facilite a leitura de certos textos, mas principalmente contribua para um aprofundamento sobre a problemática da argumentação. Para tanto, não diferencio somente os fenômenos discutindo as diversas acepções do termo argumentação, visto que não se trata aqui de um trabalho de terminologia, mas os contrasto, mostrando que a argumentação lingüística não tem nenhuma relação direta com a argumentação retórica. Tal afirmação parece constituir uma tese que diz alguma coisa sobre esses dois tipos de argumentações. PALAVRAS-CHAVE: argumentação lingüística, argumentação retórica e teoria dos blocos semânticos. ABSTRACT: In this paper, my first task is to differentiate between the notions of rhetoric argumentation and linguistic argumentation. Nonetheless, I hope that the reflection presented here not only can facilitate the reading of certain texts, but mainly contribute for a deeper understanding of the issue of argumentation. To do that, I do not distinguish only the phenomena by discussing about the various acceptations of the term argumentation, as this is not a study about issues of terminology, but I contrast the notions showing that linguistic argumentation has no direct relationship with rhetoric argumentation. Such assertion seems to constitute a thesis that says something about these two types of argumentations. KEYWORDS: linguistic argumentation, rhetoric argumentation, theory of semantic sets.

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  • ARGUMENTAO RETRICA EARGUMENTAO LINGSTICA3

    Oswald Ducrot (EHESS-PARIS)

    RESUMO: Neste artigo, minha primeira tarefa o de fazer umadistino entre as noes de argumentao retrica eargumentao lingstica. Acredito, entretanto, que a reflexoapresentada no somente facilite a leitura de certos textos, masprincipalmente contribua para um aprofundamento sobre aproblemtica da argumentao. Para tanto, no diferenciosomente os fenmenos discutindo as diversas acepes do termoargumentao, visto que no se trata aqui de um trabalho determinologia, mas os contrasto, mostrando que a argumentaolingstica no tem nenhuma relao direta com a argumentaoretrica. Tal afirmao parece constituir uma tese que diz algumacoisa sobre esses dois tipos de argumentaes.PALAVRAS-CHAVE: argumentao lingstica, argumentaoretrica e teoria dos blocos semnticos.

    ABSTRACT: In this paper, my first task is to differentiate betweenthe notions of rhetoric argumentation and linguisticargumentation. Nonetheless, I hope that the reflection presentedhere not only can facilitate the reading of certain texts, but mainlycontribute for a deeper understanding of the issue ofargumentation. To do that, I do not distinguish only thephenomena by discussing about the various acceptations of theterm argumentation, as this is not a study about issues ofterminology, but I contrast the notions showing that linguisticargumentation has no direct relationship with rhetoricargumentation. Such assertion seems to constitute a thesis thatsays something about these two types of argumentations.KEYWORDS: linguistic argumentation, rhetoric argumentation,theory of semantic sets.

  • A teoria da argumentao na lngua (ADL), tal comoJean-Claude Anscombre e eu a propusemos, e tal como MarionCarel a vem desenvolvendo atualmente, com sua teoria dos blocossemnticos (TBS), considera a palavra argumentao num sentidopouco usual, o que pode dar margem a muitos mal-entendidos. esse sentido pouco usual que aplico aqui expressoargumentao lingstica, que reduzirei algumas vezes aargumentao. Os mal-entendidos resultam de nossa tendnciapara ler nossas pesquisas atribuindo palavra argumentaoum sentido totalmente diverso, ao qual reservarei aqui aexpresso argumentao retrica. Minha primeira tarefa ser,portanto, elaborar uma distino entre essas duas noes.Espero, entretanto, que esta minha reflexo no somente facilitea leitura de certos textos, mas principalmente que contribuatambm para um aprofundamento sobre a problemtica daargumentao. Com efeito, no distinguirei somente osfenmenos discutindo essas acepes do termo argumentao(visto que no se trata aqui de um trabalho de terminologia),mas os contrastarei, mostrando que a argumentao lingsticano tem nenhuma relao direta com a argumentao retrica.Tal afirmao me parece constituir uma tese que diz algumacoisa sobre esses dois tipos de argumentaes. Assim, em primeirolugar, impe-se precisar o sentido que atribuo s duas expressesque constituem o ttulo de meu trabalho.

    Entenderei por argumentao retrica a atividadeverbal que objetiva fazer com que algum acredite em algumacoisa. Com efeito, essa atividade um dos objetos tradicionaisde estudo da retrica. Farei agora dois pequenos comentriossobre essa definio. Ela exclui voluntariamente a atividade quevisa mandar algum fazer alguma coisa. Mais exatamente, essadefinio s leva em considerao o dever-fazer se ele estiverembasado num fazer-crer. Isso se constitui numa grandelimitao, pois certamente h outros meios de mandar algumfazer alguma coisa ao invs de se utilizar da estratgia um poucoingnua que consiste em fazer crer a esse algum que bompara si mesmo fazer tal coisa. Uma segunda limitao da minhadefinio que considero somente a atividade verbal, ou seja,aquela do escritor ou do orador, que utiliza a fala para fazercrer. Essa limitao tambm muito importante, pois h muitas

  • outras maneiras de fazer crer que no se restringem em falar :bastaria colocar o destinatrio numa situao em que ele teminteresse em crer naquilo que queremos faz-lo crer. Contudo,no trabalharei com esse tipo de situao, considerareiunicamente a persuaso pela fala, pelo discurso.

    O segundo termo a definir a expresso argumentaolingstica, ou abreviadamente, argumentao. Neste artigo4,assim denominarei os segmentos de discursos constitudos peloencadeamento de duas proposies A e C, ligadas implicita ouexplicitamente por um conector do tipo portanto, ento, emconseqncia, ...5 Chamarei A de argumento e C de concluso.Essa definio pode ser estendida aos encadeamentos que ligamno duas proposies sintticas, mas duas seqncias deproposies, por exemplo dois pargrafos de um artigo. Osgramticos e os lingistas geralmente interpretam estesencadeamentos A portanto C, dizendo que A apresentado comoque justificando C, como que tornando C verdadeiro, vlido, oupelo menos mais aceitvel do que ele era antes de seuencadeamento a A. Uma grande parte deste meu trabalho serdestinada a contestar essa interpretao de A portanto C, atmesmo quando ela atenuada pela formulao A apresentadocomo justificando C, ou ainda a lngua faz com que A justifiqueC. A crtica que vou propor no impede, contudo, que essainterpretao A portanto C faa parte, por assim dizer, dosconhecimentos metalingsticos dos sujeitos falantes, e atmesmo no-lingistas, e que ela constitua um nvel incontestvelda compreenso dos encadeamentos com portanto.

    Na medida em que a argumentao a que chamoretrica definida como um esforo verbal para fazer que algumacredite em alguma coisa, parece que a argumentao lingsticapoderia ser seu meio direto, sobretudo se esta ltima receber ainterpretao habitual que acabo de mencionar. Na verdade,parece que um meio evidente para os fazer aceitar uma proposioC justific-la (mostrar-lhes que ela verdadeira) e que parajustificar uma proposio, possa existir o interesse em apresentarinicialmente uma proposio A a qual vocs esto prontos aaceitar e que mantm com C uma relao conclusiva, uma relaoem portanto. A confiana de vocs em A corre o risco de secompletar por uma crena em C, isto , a validade de A, de certaforma, se transportando sobre C. Trata-se de uma concepo

  • inteiramente banal e, possivelmente, at inevitvel, do papel daargumentao lingstica na argumentao retrica. Vou tentarmostrar, por meio de argumentos de um lingista, que essaconcepo no apenas insuficiente, mas totalmente ilusria eque os encadeamentos conclusivos do discurso no constituem,enquanto tais, meios diretos de persuaso nem mesmo meiosparciais.

    Gostaria de insistir primeiramente sobre o carterradical, absoluto, que vou atribuir oposio entre argumentaolingstica e argumentao retrica. Se me contentasse emevidenciar a insuficincia da argumentao, tal como a definipara a atividade retrica, eu retomaria somente um tema banalda retrica e essencial para mim diferenciar minha crtica dopapel persuasivo da argumentao lingstica e a crticatradicional. Esta ltima relativa, e a que vou propor pretendeser radical. A crtica clssica do papel da argumentao se embasaespecialmente sobre o fato de que as nossas argumentaesnunca so decisivas. Por um lado, quando dizemos A portantoC, geralmente nos esquecemos das proposies intermediriasque so necessrias para operar a passagem de A para C. Poroutro lado, ainda que uma vez completos, nossos encadeamentosargumentativos se assentam sobre princpios gerais que admitemexcees. Como saber que no se trata de um caso de exceo ?Por ltimo, os conceitos sobre os quais se fundamentam essasargumentaes so muito vagos, muito mal definidos.Suponhamos que concluo que algum ciumento, dando comoargumento que essa pessoa est apaixonada. Nesse caso, utilizoos conceitos amor e cime que ningum sabe definir. A essa minhaconcluso pode-se contrapor que a pessoa de quem falo no esta bem dizer apaixonada, objeo que arruna minhaargumentao. A esse carter no-coercitivo das argumentaesdo discurso se acrescenta o fato de que a persuaso exige quenos apoiemos em outros motivos que no s os racionais. sobreisso que insiste a retrica tradicional, dizendo que a persuasoexige que apresentemos no somente razes, formando aquiloque chamamos de logos, mas que desenvolvamos igualmente noouvinte o desejo do crer verdadeiro (o pathos) e enfim, que oouvinte tenha confiana no orador, que deve lhe parecer algumconfivel, srio e bem intencionado. O orador deve, portanto,oferecer em seu prprio discurso uma imagem favorvel de si,

  • correspondendo quilo que a retrica clssica chama de ethos.Todos sabemos dos debates suscitados, no mundo cristo dosculo XVII, pela necessidade do pregador religioso em acoplar convico o apelo ao sentimento. legtimo ou no ao pregador,perguntava-se, apelar no somente ao logos, mas tambm spaixes ao passo que as paixes so uma das causas primeirasdo mal e do pecado ?

    No falarei mais desse tipo de insuficinciageralmente atribudo argumentao. Com efeito, todas essascrticas admitem a existncia no discurso de um logos, isto , deuma argumentao racional, que seria suscetvel de provar, dejustificar. Questiona-se apenas se esse logos , ou no, suficientepara a persuaso. Pessoalmente, o que defendo que aargumentao discursiva no tem nenhum carter racional, queela no fornece justificao, nem mesmo tnues esboos,lacunares, de justificao. Em outros termos, o que questiono a prpria noo de um logos discursivo que se manifestaria pormeio de encadeamentos argumentativos, por intermdio dos poise do por conseguinte.

    Depois de ter dito porque recuso todo carter racional argumentao discursiva, mostrarei que essa argumentao,mesmo no tendo nada a ver com um logos, pode, no entanto,servir persuaso. Seu papel persuasivo existe, mas ele noest ligado a um carter racional do qual a persuaso seria,ainda que vagamente, dotada. Na parte crtica de minhaexposio, vou me apoiar sobre uma teoria lingstica que venhodesenvolvendo h vrios anos com Jean-Claude Anscombre, ateoria denominada a argumentao na lngua e, maisprecisamente, sobre a nova forma dada a essa teoria pelostrabalhos recentes de Marion Carel, forma que ao mesmo tempoexplicita e radicaliza as idias que Jean-Claude Anscombre e euapresentramos.

    A idia de base que, num encadeamentoargumentativo A portanto C, o sentido do argumento A contmem si mesmo a indicao de que ele deve ser completado pelaconcluso. Assim sendo, o sentido de A no pode se definirindependentemente, uma vez que que A visto como aquilo queleva a C. No ocorre, a bem dizer, passagem de A a C, no hjustificao de C por um enunciado A, que seria compreensvelem si mesmo, independentemente de sua seqncia portanto C.

  • Por conseguinte, no h transporte de verdade, transporte deaceitabilidade, de A C, visto que o encadeamento apresenta oportanto C como j inserido no primeiro termo A.

    Primeiramente um exemplo simples, aquele em queo segmento A contm uma palavra como demais. Seja, porexemplo, o encadeamento voc dirige rpido demais, voc corre orisco de sofrer um acidente (nesse exemplo, est implcito umportanto entre as duas proposies encadeadas). Algunssemanticistas pensam, e at mesmo escrevem, que se tratarealmente de uma espcie de raciocnio, que passa de umapremissa voc dirige rpido demais, a uma concluso voc correo risco de sofrer um acidente. Tal raciocnio estaria fundamentadonum princpio geral implcito quando se dirige rpido demais,corre-se o risco de acidente. Mas essa descrio parece-meabsurda, pois a prpria palavra demais presente no antecedente,s se faz compreender em relao ao conseqente. O que dirigirrpido demais, seno dirigir a uma velocidade com o risco delevar a conseqncias indesejveis ? A velocidade em si aquicaracterizada pelo fato de que ela deve provocar um acidente :rpido demais significa aqui a uma velocidade perigosa. Em outrostermos, o prprio contedo do argumento no pode sercompreendido seno pelo fato de que ele conduz concluso.Considerado fora desse encadeamento, expresso ousubentendido, ele no significa nada. Um sinal dessainterdependncia, qual denomino radical, que esse rpidodemais significa uma coisa totalmente diferente no meu exemploe em discursos, como por exemplo :

    Voc dirige rpido demais, voc corre o risco de cometeruma contraveno.

    No se trata, necessariamente, da mesma velocidadenos dois casos ainda que se interesse apenas pelo aspectoquantitativo da velocidade. Por outro lado, o que acabo de dizersobre o segmento geralmente chamado argumento vale igualmentepara a concluso. A contraveno a que o ltimo encadeamentoalude uma contraveno por excesso de velocidade, isto , otipo de contraveno fundado sobre o argumento dado.Suponhamos, com efeito, que meu interlocutor tenha cometidouma contraveno, mas uma contraveno por no ter usado ocinto de segurana. Existe uma pitada de ironia em lhe dizer t vendo, eu tinha razo .

  • Concluirei dizendo que os encadeamentos analisados,apesar de ligarem duas proposies assertivas por meio doconector portanto (eventualmente implcito), no assinalam emnada uma inferncia indo de uma afirmao a outra. Cada umadessas aparentes afirmaes contm, na verdade, o conjunto doencadeamento no qual ela se situa. o portanto que permiteimaginar o tipo de velocidade e de contraveno de que se fala.Desse modo, no h passagem de um contedo factual, objetivoa um outro. Mesmo se meu discurso associa duas expressesbastante diferentes, rpido demais e contraveno, ele manifestauma representao semntica nica (na terminologia de MarionCarel, um bloco), que exprime a nica idia de velocidade proibida(ou, no exemplo precedente, de velocidade perigosa). Portanto,para qu serve o encadeamento argumentativo ? No parajustificar certa afirmao a partir de uma outra, apresentadacomo j admitida, mas para qualificar uma coisa ou uma situao(neste caso, a velocidade), por ela servir de suporte a uma certaargumentao. O portanto um meio de descrever e no de provar,de justificar, de tornar verossmil.

    De uma maneira geral, o que impede ver uma espciede raciocnio num encadeamento argumentativo do tipo Aportanto C, que os segmentos A e C no exprimem fatosfechados sobre si mesmos, compreensveis independentementedo encadeamento e passveis de serem em seguida ligados entresi. Essa concluso pode se confirmar at com palavras menosevidentemente argumentativas do que demais e aparentementemais objetivas. Suponhamos que eu lhes preveja que Pedro vaiser reprovado em seu exame, e que minha previso toma a formade encadeamento Pedro trabalhou pouco, ele vai, portanto,reprovar. Seria possvel descrever meu discurso dizendo que euos informo inicialmente de um fato A (Pedro trabalhou pouco) eque, a partir dele, deduzo um outro fato C (Pedro vai reprovar) ?Essa descrio que busca a uma racionalizao parece-me aindaabsurda, pois a palavra pouco no se prestaria para descreverum fato. Ela indica j de antemo que concluso se dirige.Com efeito, para prever a aprovao de Pedro, teria bastado lhesdizer que Pedro trabalhou um pouco. Ele vai, portanto, conseguir.Ao qualificar o trabalho de Pedro por meio da expresso um pouco,eu j os teria orientado, mediante um portanto, em direo eventualidade de seu xito futuro. Ora, ningum jamais

  • encontrou diferena factual, quantitativa, entre pouco e um pouco.A nica diferena entre essas duas expresses reside nos tiposde encadeamentos possveis a partir delas mesmas. Como noexemplo de demais, o argumento A j anuncia a concluso nosentido de que a prpria significao de pouco ou um poucocomporta a indicao do que possvel encadear s proposiesque contm tais palavras. Desse modo, no h raciocnio,progresso cognitivo, transmisso de verdade, j que o portanto Cj faz parte do sentido de A.

    Tomarei agora como exemplo um adjetivo quepertence ao prprio lxico, portanto parte da lngua reputadacomo a mais informativa, o adjetivo longe. Imaginemos a seguintesituao : X e Y devem ir juntos a um certo lugar E. Ambos sabemexatamente a que distncia esto de E. X prope a Y ir a p atE. Se estiver de acordo, Y pode responder : sim, perto. Aocontrrio, se Y no concordar, ele poder dizer : no, longe. Oque que muda entre as qualificaes perto e longe ? Embora Xe Y a conheam, no a distncia o fator que determina uma ououtra qualificao. somente a explorao argumentativa dessadistncia. Ao dizermos perto o apresentamos como que permitindoa caminhada. Ao contrrio, ao dizermos longe, como secolocssemos um obstculo a essa caminhada. De maneira quea escolha das concluses sim ou no j est inscrita no prpriosentido dos argumentos perto ou longe. Vramos que demaisaplicado rpido qualifica a velocidade por um certo tipo deconcluses desfavorveis ; da mesma forma, longe qualifica adistncia como obstculo e perto, por sua vez, a qualifica comoum no-obstculo. Em todos esses casos, no possvel haverpor detrs do encadeamento do discurso um logos demonstrativo,pois o encadeamento j est dado pelo argumento. Esseencadeamento constitui o valor semntico do argumento.

    Alonguemo-nos um pouco mais. Disse anteriormenteque as proposies que contm palavras como demais, pouco,um pouco, perto, longe, j indicam que tipo de seqncias podemser encadeadas por intermdio de um portanto. Mas isso apenasuma parte da verdade, uma vez que sua significao no obriganecessariamente uma continuao por um portanto, ela permiteigualmente um encadeamento por uma palavra do tipo contudo.Se a expresso longe autoriza a seqncia portanto, no irei ap, ela tambm torna possvel encadear longe, contudo irei a

  • p. Do mesmo modo, possvel dizer tanto ele trabalhou um pouco,portanto vai conseguir e ele trabalhou um pouco, contudo vaifracassar. De uma maneira geral, se uma proposio A contmna sua significao a possibilidade de ter encadeado a si portantoC, ela tambm contm a possiblidade de lhe ter encadeadocontudo no C. Por conseguinte, se para provar a vocs umaproposio C, utilizo um argumento A que, por seu valor prprioleva a dizer portanto C, ele est em total conformidade com asignificao de A em continuar contudo no C 6. Nessas condies, impossvel dizer que, apresentando o argumento A e sendo eleseguido por portanto C, eu justifico C. Com efeito, o mesmoargumento, em virtude da sua significao intrnseca, poderiaperfeitamente ser seguido por no C, com a condio de mudarde conector. Desse modo, um golpe de sorte que faz escolher Cem detrimento de no C aps A. Essa escolha no determinadapela significao de A, que no favorece mais C do que no C. Anica coisa que ela impe, escolha de um portanto em um casoou de um contudo em outro. Eu no vejo, ento, como aproposio A poderia levar a aceitar C como verdadeiro. Aalternncia de portanto e de contudo parece-me, portanto,desmentir uma vez mais a prpria idia de uma prova discursiva,de um logos argumentativo.

    Contudo ela gira, disse Galileu. Vocs poderiam entome responder da seguinte forma : h, entretanto, alguns portantono discurso que objetiva ser persuasivo, quer seja ele poltico,publicitrio, filosfico, etc... bem como, no discurso das crianas apartir dos trs anos (sob a forma de por que). Ento, para queservem essas argumentaes ? Como que elas contribuem paraa persuaso, visto que para mim elas no constituem nem mesmoesboos de justificao ?

    Uma primeira resposta consiste em dizer que a maiorparte das expresses, empregadas ou no com objetivospersuasivos, comportam em seu sentido argumentaes compreendendo por isso, como eu fiz at aqui, encadeamentoscom portanto ou contudo. Uma frase predicativa simples comoos culpados foram punidos coloca um portanto entre o fato de serculpado e o fato de ser punido. Todavia, alm disso, segundoMarion Carel e eu, possvel detectar argumentaes nasignificao interna de muitas palavras. Desse modo, procuramosatualmente descrever a maior parte possvel do lxico francs,

  • caracterizando cada palavra por uma parfrase que tem a formade um encadeamento discursivo com portanto ou em contudo. Oque significa, por exemplo, um adjetivo como interessado (nosentido moralmente negativo do termo) ? Para ns, constitutivoda semntica desse adjetivo evocar encadeamentos do tipo deseu interesse portanto ele faz e tambm no de seu interesseportanto ele no faz. Ou ainda, o qu se quer dizer quando seconsidera a expresso verbal ter sede como indicando, segundoa terminologia lingstica habitual, um estado ? Para ns, dizerque um estado, no nada mais do que dizer que possvelencadear com portanto a indicao de que algum tem sede nomomento T1 e a de que ele tem sede no momento seguinte T2 (seria preciso um contudo para encadear a indicao de quealgum tem sede em T1 e que esse algum no tem mais sedeem T2). Assim, para ns, existem encadeamentos argumentativosna significao at das palavras e dos enunciados de que odiscurso construdo. Nessas condies, toda fala, tenha ela ouno objetivos persuasivos, faz necessariamente aluso aargumentaes. O que mostra ao menos que no h relaoprivilegiada entre a argumentao retrica e a argumentaolingstica.

    evidente que se espera de mim uma resposta maisespecfica questo porque existe argumentao lingstica naargumentao retrica ? (mais especfica significa, aqui, maisligada ao carter particular do discurso persuasivo). Apresentareitrs respostas possveis. Primeiramente, a argumentatividade estligada a uma estratgia persuasiva tida como eficaz: a concesso.Descreverei primeiramente a concesso da seguinte maneira.Suponhamos que um locutor queira que uma concluso Z sejaadmitida. Suponhamos tambm que ele disponha de umargumento Y que permite encadear Y portanto Z, mas que elesaiba, por outro lado, que existem argumentos X que permitemencadear X portanto no-Z. Desse modo, eu quero levar um amigo concluso Z = (voc no deve fumar). Para tanto, disponho,entre outros, de um argumento Y = (fumar faz voc tossir), massei tambm que os fumantes possuem o argumento X = (fumardiminui o stress) que pode ser encadeado por portanto conclusono-Z = no precisa parar de fumar. O qu fazer ? Posso em meudiscurso esquecer o argumento desfavorvel minha posio Xe simplesmente apresentar o argumento Y que lhe favorvel. O

  • risco que meu amigo me responda invocando X. Felizmentepara mim (e, talvez para sua sade), h uma outra estratgia :indicar inicialmente o argumento desfavorvel X, seguido de ummas Y : (sim, fumar diminui o estress, mas faz tossir). A palavramas , entre outras coisas, especializada nessa funo porisso que ela uma espcie de vedete do discurso persuasivo.Graas a ela possvel considerar os argumentos contrrios concluso a que se visa. Basta que sejam seguidos por um massem ter nem mesmo necessidade de refut-los, manobra queno muito rdua e que tem vantagens persuasivas eminentes.

    Ao indicar X, que desfavorvel tese que sustentoe favorvel a meu interlocutor, eu o impeo primeiramente deutilizar esse X, argumento que seria ridculo explorar contra mim,uma vez que eu mesmo tive a generosidade de enunci-lo e, jque decidi, aps t-lo considerado, que ele no mereceria umaconsiderao mais sria. A essa vantagem da concesso para aestratgia polmica, acrestanta-se o fato de que ela permitemelhorar a imagem que o orador produz de si no seu discurso. Oorador possui o ar de um homem srio, por isso confivel, j queantes de escolher sua posio Z, ele tem tambm prestou atenos objees possveis contra Z. O enunciado concessivo poderiaser comparado quilo que se passa num jogo de futebol quandoum jogador marca um gol contra sua prpria equipe. O oradorque diz X antes de continuar mas Y marca, por assim dizer, umgol contra a sua prpria posio argumentativa. Mas h umadiferena essencial. O gol marcado pelo inbil jogador estdefinitivamente marcado : no h mas possvel. Por outro lado,no discurso persuasivo, tira-se proveito dos gols que forammarcados contra a sua prpria equipe. Esse benefcio no querde modo algum que o argumentador tenha demonstradoracionalmente alguma coisa. Ele preza, sim, para que oargumentador tenha melhorado sua imagem pessoal ou, emtermos retricos, o seu ethos ( como se o jogador de futebolusufrusse o prestgio por ter marcado um gol contra a suaequipe). Visto que a concesso, tal como a descrevi, manipulaargumentaes, implcitas ou explcitas, preciso atribuir a elastoda a utilidade que se atribui concesso, no que diz respeito atividade persuasiva.

    Um segundo ponto : o prprio fato de enunciar umaargumentao com portanto (isto , a enunciao dessa

  • argumentao) apresenta por si s vantagens para a persuaso.Assim, o interlocutor obrigado, por seu turno, a fornecer umargumento se ele recusar a concluso. Suponhamos que vocsme dissessem A portanto C (a estao longe, portanto tomemosum txi). Se desejo recusar sua concluso, no possosimplesmente me contentar em neg-la radicalmente (no, notomemos um txi). Sou obrigado, por minha vez, a dar umargumento que suplante o de vocs. Contudo, corro o risco oude dar um motivo perigoso minha imagem, ou que vocs sevoltem contra mim. Por exemplo : se sou obrigado, devido a seuportanto, a confessar minha avareza, dou-lhes como argumentoque no quero pagar o txi. como no jogo de xadrez, em que sedesloca uma pea para obrigar o adversrio a responder por umamanobra que o deixar em dificuldade. Uma segunda vantagemque existe para vocs para enunciar um encadeamentoargumentativo fornecendo uma razo para a sua deciso, quepor intermdio dele, vocs constituem uma imagem favorvel desi prprios: aquela de um homem que aceita a discusso, queno tenta se impor brutalmente. Desse modo, vocs melhoram oprprio ethos, como no caso da concesso, sobretudo se houveralgum que assiste nossa discusso, e vocs se dooportunidades para persuadir mais facilmente essa terceirapessoa. Se algum dia vocs tiverem uma discusso em conjunto(imagine que h sempre uma terceira pessoa participando dosdilogos, mesmo quando, materialmente houver apenas duas ;essa terceira pessoa se constitui numa espcie de superegoabstrato, que os interlocutores tomam como rbitro ideal,personagem que encontramos o tempo todo e que preciso atodo custo domesticar).

    Uma terceira razo para utilizar a argumentao naestratgia persuasiva alude a que modelos de encadeamentosargumentativos esto, eu o disse o tempo todo, j presentes, attulo de representaes estereotipadas, na significao daspalavras do lxico. Assim, ao dizer longe, portanto no iremos,eu explicito a representao da distncia como obstculo,representao que para mim faz parte do prprio sentido dapalavra longe. De modo semelhante, para mostrar que Pedro nofar nada, posso dizer que no h interesse, portanto ele no farnada. Nesse enunciado, constru um encadeamento que oprprio sentido de uma palavra da lngua, a palavra interessado,

  • tal como a analisei anteriormente. Ao argumentar (no sentidolingstico do termo), pode-se, portanto, apresentarfreqentemente seu discurso como a explicitao de palavras dalngua e como to livre de dvidas quanto essas palavras. SenhorLarousse tem sempre razo, e existe interesse em apoiar seuprprio discurso sobre o Senhor Larousse : apresentando-seassim como um simples utilizador desse tesouro comum que ovocabulrio. Ao mesmo tempo d-se a seu dizer um aspectomodesto, colorindo o seu dito com uma espcie de evidncia.

    Para resumir essas explicaes da freqncia dosportanto na fala considerada persuasiva, diria que eles servempara melhorar a imagem do orador, seu ethos. Uma estratgiaque pode tornar a fala mais eficaz. Desse modo, as pesquisasque Marion Carrel e eu conduzimos atualmente sobre osencadeamentos argumentativos na lngua levam a uma viso daretrica persuasiva um pouco diferente daquela que tradicionalno pensamento ocidental. A concepo habitual coroa a estratgiapersuasiva com um logos que seria uma forma enfraquecida daracionalidade. Esse logos, manifestado pelos encadeamentosargumentativos, teria necessidade, em vista de suasinsuficincias, de ser completado pelo recurso a fatoresirracionais, o ethos e o pathos. Procurei mostrar, de um ponto devista puramente lingstico, que esse logos no apenas ilusrio,mas que sua prpria existncia uma iluso. Os encadeamentosargumentativos do tipo portanto revelam tanto do golpe de sortequanto as mais brutais das afirmaes. Sua eficcia persuasiva,que no em nada negligencivel, revela, antes de tudo, o efeitoque eles tm sobre o ethos. Se h tempos o ethos vem suprir asinsuficincias do logos, o logos (se por isso entendemos osencadeamentos com portanto) que explorado pelo ethos : somente nisso que ele pode estar a servio da argumentao, nosentido retrico desse ltimo termo.

    Para simplificar, chamemos de platnica a pesquisade uma verdade absoluta que exigiria que fssemos alm dalinguagem, isto , em que se tentasse, mesmo sem saber se possvel, sair da Caverna (pois a verdadeira caverna, aquela quenos probe a ligao com a realidade, a que nos obriga a viverno meio das sombras, , para mim, a linguagem). Chamemos dearistotlica de maneira bastante esquemtica, a esperana deencontrar no discurso, isto , no interior da Caverna, uma espcie

  • de racionalidade imperfeita, insuficiente, mas acima de tudoaceitvel, suportvel. Mediante essas aproximaes, minhareflexo se inscreve numa oposio sistemtica ao otimismoretrico de Aristteles e de seus inumerveis sucessores; eladesejaria promover um retorno a Plato e a uma desconfianaradical em relao ao discurso.