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    Resenha

    A PSICANLISE E O MERCADO DAS

    PSICOTERAPIAS. O FUTURO DE UMA

    REGULAMENTAO?

    Manifesto pela psicanlise,de Erik

    Porge, Frank Chaumon, Guy Lrs,Michel Plon, Pierre Bruno, Sophie

    Aouill. Traduo: Clvis Marques.

    Reviso Tcnica: Joel Birman. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2015,

    190 p. (Coleo Sujeito e Histria)

    Natasha Mello HelsingerPsicloga (PUC-Rio), mestre e doutorandaem Teoria Psicanaltica (UFRJ), membrodo Espao Brasileiro de EstudosPsicanalticos.

    O futuro da psicanlise objeto de preo-cupao desde Freud, mas mesmo depoisda morte de seu mentor ela sobreviveue disseminou-se no campo social. Nasltimas dcadas, esta difuso caracteri-

    zada por um contraste, pois a psicanliseapresenta vitalidade em pases da AmricaLatina e em outros, como a China, mas emcertos contextos, sobretudo na Europa enos Estados Unidos, passa por uma criseque se encontra relacionada a uma novamodalidade de gesto da sade mental.

    Neste cenrio, foi publicado na Frana,em 2010 e este ano, no Brasil , olivro Manifesto pela psicanlise,que j revela

    no ttulo seu carter crtico e patente.O trabalho um desdobramento do Ma-nifesto, organizado pelos mesmos autores

    em fevereiro de 2004, cujo ponto departida foi a emenda apresentada pelo de-putado Accoyer em outubro de 2003, cujaproposta visava regulamentar o uso do

    ttulo de psicoterapeuta. A promulgaodessa lei de sade pblica, em agosto de2004, constituiu o artigo 52, que, por suavez, apontava diretamente para os psica-nalistas. A possibilidade de inscrev-los nadenominao genrica de psicoterapeu-tas despertou a preocupao de alguns,uma vez que a normalizao empreendidasuporia a submisso da psicanlise aopoder pblico.

    Diante dessa situao, outros psica-nalistas ficaram indiferentes, seja poracreditarem que ocupam uma posio deextraterritorialidade em relao psico-logia, seja por apostarem que a psicanlise imortal. Alguns mostraram-se ingnuospor no perceberem a relao entre o pla-nejamento burocrtico da sade mentale o controle das prticas psicoterpicas.

    Houve, tambm, aqueles que contribu-ram para o projeto de lei, por ficaremseduzidos com as supostas vantagens deum estatuto profissional garantido peloEstado por exemplo, acreditaram quea psicanlise teria maior adeso e que severia protegida dos charlates, ilusesque caem por terra uma vez que os autoressustentam com unhas e dentes que seriaa psicanlise quem pagaria o preo de tal

    regulamentao.O que est em jogo que o movi-

    mento psicanaltico mostrou-se bastante

    DOI - http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982015000200010

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    dividido. Por exemplo, a cole de la CauseFreudienne (ECF) assumiu uma posturaambgua, o Grupo de Contato no se opsao artigo 52 e a Association de Psycha-

    nalyse Jacques Lacan (APJL) o recusouradicalmente. Para investigar a questo,os autores revisitam alguns marcos domovimento psicanaltico francs, comoa fundao da cole Freudienne de Paris(EFP), em 1964, e sua dissoluo, em1980. A partir disso, lanam a hiptese deque o fato de alguns psicanalistas teremparticipado da elaborao do projeto de

    lei revela que a dissoluo da EFP nofoi concluda. Ademais, defendem quea reao desorganizada dos psicanalistasevidenciou que no houve um questiona-mento srio no interior do campo psicana-ltico, o que impossibilitou a constituiode uma frente nica que poderia reafirmara singularidade da psicanlise em relaoaos servios dos bens.

    Algumas rupturas e cises foram fun-damentais para o futuro da psicanlise, oque os autores qualificam comomomentos,inspirados no historiador da filosofiapoltica J. G. A. Pocock, o qual defineummomentocomo o perodo no qual umaentidade terica ou institucional correo risco de desaparecer e que a interven-o terica de um crucial para que oscontemporneos percebam tal perigo e

    possam reagir a ele.Pois bem, a partir da, a ideia susten-

    tada no livro de que estamos diante deum terceiromomento, no qual a psicanlisese v ameaada. O primeiromomentodizrespeito ao risco de a psicanlise ser subor-dinada ao saber mdico, contextualizadoem 1926, quando Freud escreve A questoda anlise leiga. Os autores retomam o caso

    Reik, que foi acusado de exercer a psican-lise sem ser mdico, para enfatizar que setornar psicanalista no uma questo dediploma, mas, sim, de formao. Esta questo

    examinada de forma pormenorizada nodecorrer do livro, na medida em que osautores se ope, de modo frontal, ideiade que a legitimao da passagem do

    analisante psicanalista possa ser dadapelo Estado, o que um ponto nevrlgicodo debate suscitado pela Lei de 2004.

    O segundo momento em que a psica-nlise se viu ameaada est circunscritoa 1956 e refere-se ao desenvolvimentoda Psicologia do eu, que desencadeououtro movimento como contrapartida: oretorno a Freud, empreendido por La-

    can. Uma crtica incisiva sobre as preten-ses cientficas da psicologia foi esboadanaquele momento, no entanto, o alcanceda psicologia s encontrou seu apogeu 30anos depois. Sendo assim, d-se o terceiromomento, marcado pela aprovao do artigo52, que demarca o perigo da psicanliseser includa no imprio da psicologia.

    Para aprofundar essa discusso, osautores analisam a coadunao entre neo-liberalismo e as novas modalidades de ges-to do social que visam promover a sademental positiva. E investigam como ascincias humanas contriburam para ainstaurao de uma nova governamentalidadeque visa produzir sujeitos do governo,sinalizando que nessa conjuntura que ainflao do saber psicolgico se impe.Assim, so conduzidos hiptese de que

    a questo da regulamentao das psico-terapias sintomtica de um novo modode organizao social. Para sustent-la,analisam como certas categorias (comovtima e trauma), que esto sendoinvestidas na vida poltica por meio deprescries da fala, provocam efeitos nosmodos de subjetivao. E mais: indicamcomo essa nova gesto humana articula-se

    com a definio de novos limiares de nor-malidade, com a complementariedade en-tre os psicotrpicos e as psicoterapiase com as polticas sanitrias de segurana.

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    Desse modo, a constituio de uma bolsade valores psi pensada em relao satuais variantes do discurso capitalista, oque implicou, tambm, na problematiza-

    o da relao entre psicanlise, cinciae mercado.

    Reconhecendo que certas prticasclnicas colocam em xeque algumas daspremissas ticas da psicanlise e que estano imortal, os autores procuram enfa-tizar suas especificidades. Por exemplo,sublinham que a psicologia visa a uni-dade do sujeito, enquanto a psicanlise

    postula a diviso do sujeito, na medidaem que ela supe um saber inconsciente.Criticam a proposta de

    Lagache

    de ins-crever a psicanlise em uma psicologiageral, ressaltando que a psicoterapia visaerradicar o sintoma para promover umavida harmoniosa, diferente da psicanlise,que almeja extrair a verdade do sintoma.Os autores indicam que isso supe que oanalista abdique do desejo de curar, pois acura implica que algo volte a uma ordemanterior, isto , normalizao.

    Assim, os autores defendem que oganho que uma anlise pode propiciarest ligado forma pela qual o sujeitovai restabelecer o sentido de seu desejoinconsciente, o que dificilmente implica-r em um benefcio capitalista. Afinal, apsicanlise uma tica e, como tal, no

    pode se submeter a qualquer tipo de ges-to administrativa ou utilitarista, como aexigncia de rapidez e de avaliao.

    No que se refere a isso, outra proble-mtica importante abordada: muitospsicanalistas tornaram-se os coveiros dapsicanlise, uma vez que tentam fazercom que esta assuma uma postura servilem relao ao discurso dominante. Mas,

    mesmo que se negligencie o inconsciente eque o Estado tente controlar a psicanlise,os autores apostam que seu campo aindaest aberto, afinal, os sujeitos, enquanto

    seres de linguagem, continuam atraves-sados por seus inconscientes e suscetveisao recalque.

    Em suma, Manifesto pela psicanliseencon-

    tra sua pertinncia crucial por revelar umnovo lugar que a psicanlise vem sendoconvidada a ocupar na atual lgica do mer-cado da Sade e da Segurana, ressaltando,como contrapartida, a irredutvel singu-laridade da experincia analtica. Assim,ele fornece ferramentas preciosas paraproblematizarmos a relao entre espaosocial contemporneo e psicanlise, alm

    de evidenciar que esta no pode se mantercomo prtica sem tomar uma posio nocampo de tenso dos discursos.

    E essa tomada de posio dos autoresque faz desse Manifesto pela psicanlise umlivro to belo, corajoso e imprescindvel.Devemos aclamar a iniciativa da Civili-zao Brasileira por ter traduzido a obra,e tambm a dedicao de Joel Birman,organizador da Coleo Sujeito e Histria,para que fosse publicado no Brasil.

    Recebida em 6/7/2015.Aprovada em 27/7/2015.

    Natasha Mello Helsinger

    [email protected]

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