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Com Ritual de interação a Editora Vozes traz ao leitor brasileiro mais um livro importante do sociólogo canadense Erving Goffman. Por meio de seus seis ensaios temos uma análise notável dos fatores que influenciam nosso comportamento e formam nossa identidade quando estamos em contato com outras pessoas. A principal realização de Goffman talvez seja expor com clareza, e um fino senso de ironia, várias noções que temos sobre nós mesmos e sobre os outros ao nosso redor, mas que normalmente seríamos incapazes de enunciar, ou mesmo de perceber conscientemente. Assim, sua leitura tem um efeito potencialmente transformador e enriquecedor - depois de ler Goffman, é impossível encarar o mundo social como fazíamos antes. Nossa perspectiva é alterada, e para melhor. ^EDITORA VOZES Uma vida pelo bom livro [email protected] www.vozes.com.br ISBN 978-85-326-4097-0 9117885321164097011 Erving Goffman RITUAL DE INTERAÇÃO Ensaios sobre o comportamento face a face EDITORA VOZES soa LOGIA

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ciências sociais

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Com Ritual de interação a Editora Vozes traz ao leitorbrasileiro mais um livro importante do sociólogocanadense Erving Goffman. Por meio de seus seisensaios temos uma análise notável dos fatores queinfluenciam nosso comportamento e formam nossa

identidade quando estamos em contato comoutras pessoas.

A principal realização de Goffman talvez seja exporcom clareza, e um fino senso de ironia, várias noções

que temos sobre nós mesmos e sobre os outros aonosso redor, mas que normalmente seríamos incapazesde enunciar, ou mesmo de perceber conscientemente.

Assim, sua leitura tem um efeito potencialmentetransformador e enriquecedor - depois de ler

Goffman, é impossível encarar o mundo social comofazíamos antes. Nossa perspectiva é alterada,

e para melhor.

^EDITORAVOZES

Uma vida pelo bom livro

[email protected]

www.vozes.com.br

ISBN 978-85-326-4097-0

9 1 1 7 8 8 5 3 2 1 1 6 4 0 9 7 0 1 1

Erving Goffman

RITUAL DE INTERAÇÃOEnsaios sobre o

comportamento face a face

EDITORAVOZES

soa LOGIA

Colecão SociologiaCoordenador: Brasilio Sallumjr.- Universidade de São Paulo

Comissão editorial:Gabriel Co/m — Universidade de São PauloMys Barreira - Universidade Federal do CearáJosé Ricardo Ramalho - Universidade Federal do Rio de JaneiroMarcelo Ridenti — Universidade Estadual de CampinasOtávio Dulci - Universidade Federal de Minas Gerais

- A educação moralÉmile Durkheim

- A pesquisa qualitativa — Enfoques epistemológicos e metodológicosW.AA

- Sociologia ambientalJohn Hannigan

- Ó poder em movimento — Movimentos sociais e confronto políticoSidney Tarrow

- Quatro tradições sociológicasRandall Collins

- Introdução à Teoria dos SistemasNiklas Luhmann

- Sociologia clássica — Marx, Durkheim e WeberCarlos Eduardo Sell

- O senso práticoPierre Bourdieu

- Comportamento em lugares públicos — Notas sobre a organização social dos ajuntamentosErving Goffman

- A estrutura da ação social - Vols. I e IITalcott Parsons

- Ritual de interação — Ensaios sobre o comportamento face a faceErving Goffman

Erving Goffman

Ritual de interaçãoEnsaios sobre o comportamento face a face

Tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Goífman, ErvingRitual de interação : ensaios sobre

o comportamento face a face / Erving Goffman ;tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. -Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. - (ColecãoSociologia)

Título original: Interaction ritual: essayson face-to-face behavior

ISBN 978-85-326-4097-0l. Interação social I. Título.

11-02684 CDD-302

índices para catálogo sistemático:l. Interação social: Sociologia 302

WÂ EDITORAVOZES

Petrópolis

© 1967 by Erving Goffman

Título original inglês: Interactíon Ritual — Essays on Jace-to-face behavior

Publicada nos Estados Unidos pela Pantheon Books, uma divisão daRandom House, Inc., Nova York, e simultaneamente no Canadá pela

Random House of Canadá Limited, Toronto.Obra publicada originalmente pela Doubleday & Company, Inc.

Direitos de publicação em língua portuguesa:2011, Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luís, 10025689-900 Petrópolis, RJ

Internet: http://www.vozes.com.brBrasil

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá serreproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios

(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada emqualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Diretor editorialFrei António Moser

EditoresAline dos Santos Carneiro

José Maria da SilvaLídio Peretti

Marilac Loraine Oleniki

Secretário executivoJoão Batista Kreuch

Editoração: Dora Beatriz V. NoronhaProjeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico

Capa: Célia Regina de AlmeidaJuliana Teresa Hannickel

ISBN 978-85-326-4097-0 (edição brasileira)ISBN 0-394-70631-5 (edição norte-americana)

Editado conforme o novo acordo ortográfico.

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

Permissões e agradecimentos

"On Face-Work: An Analysis of Ritual Elements in Social Interacti-on" ["Sobre a preservação da fachada: uma análise dos elementos ri-tuais na interação social"] foi reimpresso com permissão de Psychi-atry: Journal for the Study of Interpersonal Processes, vol. 18, n. 3,ago./1955, p. 213-231. Copyright © 1955 da William Alanson Whi-l.e Psychiatric Foundation Inc.

"The Nature of Deference and Demeanor" ["A natureza da deferên-cia e do porte"] foi reimpresso com permissão de American Anthro-twlogist, vol. 58, jun./1956, p. 473-502. Copyright © da AmericanAnthropological Association. Todos os direitos reservados.

"Embarrassment and Social Organization" ["Constrangimento e or-ganização social"] foi reimpresso com permissão de The AmericanJournal ofSociology, vol. 62, n. 3, nov./1956, p. 264-274.

"Alienation from Interaction" ["Alienação da interação"] foi reim-presso com permissão de Human Relations, vol. 10, n. l, 1957 p47-59.

"Mental Symptoms and Public Order" ["Sintomas mentais e a or-dem pública"] foi reimpresso com permissão do Walter Reed Armyl nstitute of Research.

"Where the Action Is" ["Onde a ação está"] foi preparado com aajuda de um financiamento do Programa para o Desenvolvimentoda Juventude da Fundação Ford e do Centro para o Estudo do Di-reito e da Sociedade, Universidade da Califórnia, Berkeley, sob umFinanciamento do Escritório de Delinquência Juvenil e Desenvol-vimento da Juventude, Administração de Bem-estar, Departamen-io de Saúde, Educação e Bem-estar dos Estados Unidos em coope-ração com o Comité Presidencial sobre Delinquência Juvenil e Cri-mes Juvenis. Também recebi apoio do Instituto de Desenvolvi-mento Humano, Universidade da Califórnia, Berkeley, e do Centro

de Questões Internacionais, Universidade Harvard. Edwin Lemertforneceu críticas detalhadas, o que me deixa muito grato. Os co-mentários sobre jogatina em cassinos de Nevada são baseados numestudo em progresso.Os primeiros quatro artigos foram publicados enquanto eu era ummembro do Laboratório de Estudos Socioambientais, Instituto Na-cional de Saúde Mental, e sou grato pelo apoio do Laboratório. Peloapoio para publicar esta coleção de seis artigos, sou grato ao Centrode Questões Internacionais, Universidade Harvard.

Sumário

Introdução, 91 Sobre a preservação da fachada - Uma análise dos elementosrituais na interação social, 132 A natureza da deferência e do porte, 513 Constrangimento e organização social, 954 A alienação da interação, 1105 Sintomas mentais e a ordem pública, 1326 Onde a ação está, 142

Introdução

O estudo da interação face a face em ambientes naturais aindanão tem um nome adequado. Além disso, as fronteiras analíticas docampo continuam imprecisas. De alguma forma, mas apenas de al-guma forma, estão envolvidos um breve período de tempo, uma ex-tensão limitada no espaço, e os eventos são restritos àqueles que de-vem ser completados depois de iniciados. Há um emaranhado com-plexo com as propriedades rituais das pessoas e com as formas ego-cêntricas da territorialidade.

Entretanto, podemos identificar o assunto em questão. Ele é aclasse de eventos que ocorre durante a copresença e por causa da co-presença. Os materiais comportamentais definitivos são as olhade-las, gestos, posicionamentos e enunciados verbais que as pessoascontinuamente inserem na situação, intencionalmente ou não. Elessão os sinais externos de orientação e envolvimento - estados men-tais e corporais que não costumam ser examinados em relação à suaorganização social.

O exame detalhado e sistemático desses "pequenos comporta-mentos" começou a se desenvolver, estimulado por estudos atuaisimpressionantes de animais e da linguagem, e apoiados pelos recur-sos disponíveis para o estudo da interação em "grupos pequenos" epelas psicoterapias.

Um dos objetivos ao se lidar com esses dados é descrever as uni-dades naturais da interação construídas a partir deles, começandocom as menores possíveis - por exemplo, o movimento facial breveque um indivíduo pode fazer no jogo de expressar seu alinhamentocom aquilo que está acontecendo - e terminando com acontecimen-los como conferências de uma semana, esses mastodontes interacio-nais que forçam até os limites aquilo que pode ser chamado de umaocasião social. Um segundo objetivo é descobrir a ordem normati-va que vale dentro dessas unidades, e entre elas, ou seja, a ordem

Tamara Campos
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todos nos nos comunicados comprometidos e querendo apresentar/manter o nosso "eu" (self). Dar a minha opiniao sobre e mim e sobre os outros. interacao entre a imagem que eu penso de mim e o retorno que os outros dao pra mim do meu "eu". (nas interacoes a imagem pode ser destruida, reforcada, etc. Modelo interpretativo, lido de modo coletivo, ja que e abracado pelo todo. Como nos definimos uns aos outros nas situacoes. GOFFMAN faz parte da linha do interacionismo simbolico.

conxportamental encontrada em todos os lugares povoados, sejameles públicos, semipúblicos ou privados, e estejam eles sob os auspí-cios de uma ocasião social organizada ou sob as coerções mais pro-saicas de um mero ambiente social rotinizado1. Ambos objetivos po-dem progredir através da etnografia séria: precisamos identificar osincontáveis padrões e sequências naturais de comportamento queocorrem sempre que pessoas entram na presença imediata de ou-tras. E precisamos enxergar esses eventos como uma questão deanálise por si só, analiticamente distinta de áreas vizinhas, como,por exemplo, relações sociais, pequenos grupos sociais, sistemas decomunicação e a interação estratégica.

Defende-se aqui uma sociologia das ocasiões. A organização so-cial é o tema central, mas aquilo que é organizado é a mescla entrepessoas e as atividades interacionais temporárias que podem surgira partir disso. Está em questão aqui uma estrutura estabilizada nor-mativamente, um "ajuntamento social", mas essa entidade é mutan-te, necessariamente evanescente, criada por chegadas e assassinadapor partidas.

Os primeiros cinco artigos deste livro aparecem na ordem desua publicação original com apenas algumas mudanças editoriais; osexto, abrangendo quase metade do volume, é publicado aqui pelaprimeira vez. Eu temo que eles não sejam lá muito "botânicos". Maseles certamente enfocam uma questão geral que continua a ser deinteresse para o etnógrafo, e que sempre terá que receber algumaconsideração.

Eu pressuponho que o estudo apropriado da interação não é oindivíduo e sua psicologia, e sim as relações sintáticas entre os atosde pessoas diferentes mutuamente presentes umas às outras. Aindaassim, já que são atores individuais que contribuem com os materiaismais básicos, sempre será razoável perguntar quais propriedadesgerais eles precisam ter se quisermos esperar esse tipo de contribui-ção deles. Que modelo mínimo do ator é necessário se quisermosdar corda nele, enfiá-lo entre seus colegas, e ver emergir um tráfegode comportamento ordenado? Que modelo mínimo é necessário se

1. Eu realizei uma tentativa nesses moldes em Comportamento em lugares públicos.Petrópolis: Vozes, 2010.

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o estudante quiser antecipar as linhas pelas quais um indivíduo, quaparticipante em interações, pode ser efetivo, ou então desmorona?É disso que estes artigos tratam. Uma psicologia está necessaria-mente envolvida, mas ela é despojada e comprimida para se acomo-dar ao estudo sociológico das conversações, provas de atletismo,banquetes, julgamentos e vagabundagem na rua.

Não, então, homens e seus momentos. Em vez disso, momentose seus homens.

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sera que a presenca do maestro afeta o comportamento dos musicos? so a partir da interacao teria como compreender a supervalirizacao do maestro perante os musicos.

1Sobre a preservação da fachada*Uma análise dos elementos rituais na

interação social

Todas as pessoas vivem num mundo de encontros sociais que asenvolvem, ou em conta to face a face, ou em conta to mediado comoutros participantes. Em cada um desses contatos a pessoa tende adesempenhar o que às vezes é chamado de linha - quer dizer, umpadrão de atos verbais e não verbais com o qual ela expressa sua opi-nião sobre a situação, e através disto sua avaliação sobre os partici-pantes, especialmente ela própria. Não importa que a pessoa preten-da assumir uma linha ou não, ela sempre o fará na prática. Os outrosparticipantes pressuporão que ela assumiu uma posição mais oumenos voluntariamente, de forma que se ela quiser ser capaz de li-dar com a resposta deles a ela, ela precisará levar em consideração ai mpressão que eles possivelmente formaram sobre ela.

O termo fachada pode ser definido como o valor social positivoque uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da li-nha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um conta to

'•'•' Este capítulo foi escrito na Universidade de Chicago. Pelo apoio financeiro paraescrevê-lo, eu sou grato a uma Bolsa de Saúde Pública dos Estados Unidos (n.M702[6]MH[5]) para um estudo das características da interação social dos indiví-duos, liderado pelo Dr. William Soskin do Departamento de Psicologia, Universi-dade de Chicago.l . Face, no original em inglês. Em português não utilizamos este termo com a co-notação que Goffman emprega aqui, que poderia ser resumida, de forma um tantoimprecisa, como "respeito próprio". É um termo de tradução particularmentecomplicada, porque, como veremos no decorrer do texto, ele é usado em contextosvariados com significados variados. Quando isto ocorrer, o termo original será as-sinalado no texto [N.T.].

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particular. A fachada é urna imagem do eu delineada em termos deatributos sociais aprovados - mesmo que essa imagem possa sercompartilhada, como ocorre quando uma pessoa faz uma boa de-monstração de sua profissão ou religião ao fazer uma boa demons-tração de si mesma2.

A pessoa tende a experimentar uma resposta emocional imedia-ta à fachada que um contato com outros permite a ela; ela catexizasua fachada; seus "sentimentos" se ligam a ela. Se o encontro sus-tenta uma imagem da pessoa que ela dá por certo há muito tempo,ela provavelmente terá poucos sentimentos sobre a situação. Se oseventos estabelecem uma fachada para ela melhor do que ela pode-ria esperar, ela provavelmente se "sentirá bem"; se suas expectativascostumeiras não forem realizadas, espera-se que ela se "sinta mal"ou "sinta-se ofendida". De modo geral, o apego de uma pessoa auma fachada particular, junto com a facilidade de comunicar infor-mações falseadoras por ela e por outros, constitui uma das razõesque fazem com que ela considere que a participação em qualquercontato com outros seja um compromisso. A pessoa também terásentimentos sobre a fachada mantida para os outros participantes e,apesar desses sentimentos poderem ser de quantidade e direção di-ferentes daqueles que ela tem para sua própria fachada, constituemum envolvimento com a fachada dos outros que é tão imediato e es-pontâneo quanto o envolvimento que ela tem com sua própria fa-chada. A fachada pessoal e a fachada dos outros são construtos damesma ordem; são as regras do grupo e a definição da situação quedeterminam quantos sentimentos devemos ter pela fachada e comoesses sentimentos devem ser distribuídos pelas fachadas envolvidas.

Podemos dizer que uma pessoa tem, está com ou mantém a fa-chada quando a linha que ela efetivamente assume apresenta umaimagem dela que é internamente consistente, que é apoiada por juí-

2. Para discussões sobre o conceito chinês de fachada, cf. os seguintes textos: CHINHU, H. "The Chinese Conception of 'Face'". American Anthropologist, n.s. 46, 1944,p. 45-64. • YANG, M.C. A Chinese Village. Nova York: Columbia University Press,1945, p. 167-172. • MACGOWAN, J. Um andManners ofModem China. Londres:Unwin, 1912, p. 301-312. • SMITH, A.H. Chinese Characteristics. Nova York: Fel-ming H. Revell Co., 1894, p. 16-18. Para um comentário da concepção de fachada dosíndios americanos, cf. MAUSS, M. The Gift. Londres: Cohen & West, 1954, p. 38.

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zos e evidências comunicadas por outros participantes, e que é con-firmada por evidências comunicadas por agências impessoais na si-tuação. Em tais momentos, a fachada da pessoa claramente é algoque não está alojado dentro ou sobre seu corpo, mas sim algo locali-zado difusamente no fluxo de eventos no encontro, e que se tornamanifesto apenas quando esses eventos são lidos e interpretadospara alcançarmos as avaliações expressas neles.

A linha mantida pôr e para a pessoa durante o contato com ou-tros tende a ser de um tipo institucionalizado legítimo. Durante umcontato de um tipo particular, um participante da interação comatributos conhecidos ou visíveis pode esperar ser apoiado numa fa-chada em particular, e pode sentir que é moralmente apropriadoque isto aconteça. Tendo em vista seus atributos e a natureza con-vencionalizada do encontro, ele terá um pequeno conjunto de li-nhas abertas para ele escolher, e um pequeno conjunto de fachadaspara escolher estará esperando por ele. Além disso, baseado em al-guns atributos conhecidos, ele recebe a responsabilidade de possuirum número vasto de outros atributos. Seus coparticipantes prova-velmente não terão consciência do caráter de muitos desses atribu-tos até que ele aja, perceptivelmente, de uma forma que depreciesua posse deles; nesse momento todos se tornam conscientes dessesatributos e pressupõem que ele deliberadamente deu uma falsa im-pressão de possuí-los.

Assim, apesar de a preocupação com a fachada enfocar a aten-ção da pessoa na atividade em curso, ela deve, para manter a fachadanessa atividade, levar em consideração seu lugar no mundo socialalém dela. Uma pessoa que consegue manter a fachada na situaçãoem curso é alguém que se absteve de certas ações no passado que te-riam sido difíceis de encarar com coragem [face up to] posterior-mente. Além disso, ela teme perder a fachada agora em parte porqueos outros podem tomar isto como um sinal de que não precisarãodemonstrar consideração pelos seus sentimentos no futuro. Aindaassim, há uma limitação a essa interdependência entre a situação emcurso e o mundo social mais amplo: um encontro com pessoas comas quais ela não terá mais interações no futuro a libera para assumiruma linha "altiva" que o futuro depreciará, ou a libera para sofrerhumilhações que tornariam interações futuras com elas algo cons-trangedor demais para enfrentar.

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da psicologia: investir energia mental ou emocional na representação precisa de (algo); catectizar
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a pessoa sai ofendida da interacao justamente porque investiu muita energia psiquica para construir uma fachada e qdo alguem abala essa construao ha a ofensa.

Podemos dizer que uma pessoa está com a fachada errada quan-do, de alguma forma, trazemos alguma informação sobre seu valorsocial que não pode ser integrada, mesmo com esforço, com a linhaque está sendo mantida para ela. Podemos dizer que uma pessoaestafara âefachada quando ela participa de um contato com outrossem ter uma linha pronta do tipo que esperamos que participantesde tais situações tenham. A intenção de muitos trotes é levar umapessoa a mostrar uma fachada errada, ou nenhuma fachada, mas éclaro que também existirão ocasiões sérias em que ela se encontrará,expressivamente, não a par da situação.

Quando uma pessoa sente que está com fachada, ela tipicamen-te responde com sentimentos de confiança e convicção. Firme na li-nha que está assumindo, ela sente que pode manter a cabeça erguidae se apresentar a outros abertamente. Ela sente uma certa segurançae um certo alívio - como também pode ocorrer quando os outrossentem que ela está com a fachada errada, mas conseguem esconderessas sensações dela.

Quando uma pessoa está com a fachada errada, ou fora de fa-chada, eventos expressivos estão sendo contribuídos para o encon-tro, mas eles não podem ser costurados facilmente ao tecido expres-sivo da ocasião. Se ela sentir que está com a fachada errada ou forade fachada, provavelmente se sentirá envergonhada e inferior devi-do ao que aconteceu com a atividade por sua causa e ao que poderáacontecer com sua reputação enquanto participante. Além disso, elapode se sentir mal porque esperava que o encontro apoiasse umaimagem do eu à qual ela se sente emocionalmente ligada e que agoraencontra ameaçada. Uma falta de apoio apreciativo percebida no en-contro pode chocá-la, confundi-la e momentaneamente incapaci-tá-la enquanto participante da interação. Seus modos e orientaçãopodem cambalear, desabar e desmoronar. Ela pode ficar constrangi-da e mortificada; ela pode ficar com a fachada envergonhada [sha-mefaced]. A sensação, justificada ou não, que ela é percebida numestado de alvoroço pelos outros, e que ela não está apresentandouma linha utilizável, pode ferir ainda mais os seus sentimentos, as-sim como sua passagem de estar com a fachada errada ou fora de fa-chada para a fachada envergonhada pode adicionar mais desordempara a organização expressiva da situação. Seguindo o uso do senso

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comum, eu empregarei o termo aprumo para me referir à capacidadede suprimir e esconder qualquer tendência de ficar com a fachadaenvergonhada durante encontros com outros.

Em nossa sociedade anglo-americana, assim como em algumasoutras, a expressão "perder a fachada" [to loseface] parece significarestar com a fachada errada, estar fora de fachada, ou estar com a fa-chada envergonhada. A expressão "salvar a fachada"3 [to save one'sface] parece se referir ao processo através do qual a pessoa mantémuma impressão para os outros de que ela não perdeu a fachada. Se-guindo o costume chinês, podemos dizer que "dar fachada" [to giveface] é possibilitar que outra pessoa assuma uma linha melhor doque ela seria capaz de assumir sozinha4, esta outra, portanto, ganhaa fachada dada a ela, e esta é uma das formas pelas quais ela pode ga-nhar fachada.

Enquanto um aspecto do código social de qualquer círculo soci-al, podemos esperar encontrar um entendimento sobre até que pon-lo uma pessoa deve ir para salvar sua fachada. Quando ela assumeuma imagem do eu expressa através da fachada, os outros terão a ex-pectativa de que ela atuará de acordo com essa fachada. De formasdiferentes em sociedades diferentes, ela precisará mostrar respeitopróprio, renunciando a certas ações porque elas estão acima ou abai-xo dela, enquanto se força a realizar outras, mesmo que sejam muitocustosas para ela. Ao entrar numa situação em que recebe uma fa-chada para manter, essa pessoa assume a responsabilidade de vigiaro fluxo de eventos que passa diante dela. Ela precisa garantir queuma ordem expressiva particular seja mantida - uma ordem que re-gula o fluxo de eventos, grandes ou pequenos, de forma que qual-quer coisa que pareça ser expressada por eles será consistente comsua fachada. Quando uma pessoa manifesta tais compunções, prin-cipalmente por causa do dever a si mesma, falamos, em nossa socie-dade, de orgulho; quando ela o faz por causa do dever a unidades so-ciais mais amplas, e recebe apoio destas unidades ao fazê-lo, falamos

'>. Em portuguí ; temos uma expressão que se encaixa bem com o que Goffmanc|iicr dizer com to save face: "livrar a cara". No texto, preferi manter uma traduçãolilcral para não destoar do conceito central de "fachada" [N.T.].l. Cf. SMITH, A.H. Chinese Characteristics. Op. cit, p. 17nl.

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de honra. Quando essas compunções têm a ver com coisas de postu-ra, com eventos expressivos derivados da forma pela qual a pessoalida com seu corpo, suas emoções, e as coisas com as quais ela temcontato físico, falamos de dignidade, um aspecto do controle ex-pressivo que é sempre louvado e nunca estudado. Seja como for,apesar de sua fachada social ser sua posse mais pessoal e o centro desua segurança e prazer, ela é apenas um empréstimo da sociedade;ela será retirada a não ser que a pessoa se comporte de forma dignadela. Atributos aprovados e sua relação com a fachada fazem de cadahomem seu próprio carcereiro; esta é uma coerção social funda-mental, ainda que os homens possam gostar de suas celas.

Assim como esperamos que um membro de qualquer grupo te-nha respeito próprio, também esperamos que ele mantenha um pa-drão de consideração; esperamos que ele realize certos esforços pararesguardar os sentimentos e a fachada dos outros presentes, e espe-ramos que ele faça isso voluntária e espontaneamente por causa deuma identificação emocional com os outros e com os sentimentosdeles5. Como consequência, ele não estará inclinado a testemunhara desfiguração [dcfacement] dos outros6. Em nossa sociedade, cha-mamos de "sem-coração" uma pessoa que consegue testemunhar ahumilhação de outra mantendo impassivelmente um semblantefrio, assim como aquela que consegue impassivelmente participarde sua própria desfiguração é considerada "sem-vergonha".

5. É claro que quanto mais poder e prestigio os outros tiverem, mais provável seráque uma pessoa demonstre consideração para com os sentimentos deles, como su-gere DALE, H.E. The Higher Civil Service in Great Britam. Oxford: Oxford Univer-sity Press, 1941, p. 126n.: "A doutrina dos 'sentimentos' foi exposta para mim hámuitos anos por um funcionário civil de grande eminência com um belo gosto pelocinismo. Ele explicou que a importância dos sentimentos varia em alto grau com aimportância da pessoa que sente. Se o interesse público requer que um funcionárionovato seja removido de seu posto, não é preciso tomar cuidado com seus senti-mentos; se o caso envolver um vice-diretor, eles devem ser considerados cuidado-samente; se for um secretário de Estado, seus sentimentos são um elemento funda-mental na situação, e apenas um interesse público i iperativo pode suplantar seusrequerimentos".6. Vendedores, especialmente mascates de rua, sabem que, se eles assumirem umalinha que será depreciada a não ser que o cliente relutante compre alguma coisa, ocliente pode ser capturado pela consideração e acabar comprando algo para salvar afachada do vendedor, e impedir o que normalmente resultaria num incidente.

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O efeito combinado da regra do respeito próprio e da regra daconsideração é que a pessoa tende a se conduzir durante um encon-tro de forma a manter tanto a sua própria fachada quanto as facha-das dos outros participantes. Isto significa que normalmente permi-timos que a linha assumida por cada participante prevaleça, e quecada participante desempenhe o papel que ele pareça ter escolhidopara si próprio. Estabelecemos um estado em que todos temporaria-mente aceitam a linha de todos os outros7. Esse tipo de aceitaçãomútua parece ser uma característica estrutural básica da interação,especialmente da interação em conversas face a face. Normalmenteé uma aceitação "prática", e não "real", pois ela tende a ser baseadanão em um acordo de avaliações sinceras expressas candidamente, esim em uma disposição a oferecer juízos da boca para fora, com osquais os participantes não concordam realmente.

A aceitação mútua de linhas tem um efeito conservador impor-tante sobre os encontros. Quando uma pessoa apresenta uma linhainicial, ela e as outras tendem a construir suas respostas posterioresa partir dela e, num certo sentido, ficam presas a ela. Se a pessoa al-terar sua linha radicalmente, ou se a linha se tornar desacreditada, oresultado é a confusão, pois os participantes estarão preparados ecomprometidos com ações que não são mais apropriadas.

Normalmente, a manutenção da fachada é uma condição da in-teração, e não o seu objetivo. Objetivos comuns, como ganhar fa-

7. É claro que um acordo superficial sobre a avaliação do valor social não significaigualdade; a avaliação mantida consensualmente sobre um participante pode serbem diferente daquela mantida consensualmente sobre outro. Esse acordo tambémc compatível com a expressão de diferenças de opinião entre dois participantes,desde que ambos mostrem "respeito" pelo outro, orientando a expressão da discór-dia de forma que ela transmita uma avaliação sobre o outro que o outro esteja dis-posto a transmitir sobre si mesmo. Casos extremos são oferecidos por guerras, due-los, e brigas de bar, quando ocorrem de forma cavalheiresca, pois eles podem serconduzidos sob auspícios consensuais, com cada protagonista orientando sua açãode acordo com as regras do jogo, possibilitando assim que sua ação seja interpreta-da como uma expressão de um jogador limpo em combate aberto com um oponen-ic limpo. De fato, as regras e etiquetas de qualquer jogo podem ser analisadas comoum meio através do qual a imagem de um jogador limpo pode ser expressa, assimcomo a imagem de um jogador limpo pode ser analisada como um meio através doqual as regras e etiqueta de um jogo são mantidas.

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chada, expressar livremente nossas crenças verdadeiras, introduzirinformações depreciadoras sobre os outros, ou resolver problemas erealizar tarefas, são tipicamente perseguidos de forma consistentecom a manutenção da fachada. Estudar o salvamento da fachada éestudar as regras de tráfego da interação social; aprendemos sobre ocódigo que a pessoa segue em seu movimento pelos caminhos e pro-jetos dos outros, mas não sobre para onde ela vai, nem por que elaquer chegar lá. Não aprendemos sequer por que a pessoa está dis-posta a seguir o código, pois um grande número de motivos diferen-tes pode levá-la a fazer isso. Ela pode querer salvar sua própria fa-chada por causa de sua ligação emocional com a imagem do eu quesua fachada expressa, por causa de seu orgulho ou honra, por causado poder que seu estatuto presumido permite que ela exerça sobreos outros participantes, e assim por diante. Ela pode querer salvar afachada dos outros por causa de sua ligação emocional com umaimagem deles, ou porque ela sente que seus coparticipantes têm umdireito moral a esta proteção, ou porque ela quer evitar a hostilidadeque poderá ser dirigida para ela se eles perderem sua fachada. Elapode sentir que existe uma suposição de que ela é o tipo de pessoaque demonstra compaixão e simpatia pelos outros, de forma que,para reter sua própria fachada, ela pode se sentir obrigada a ter con-sideração pela linha assumida pelos outros participantes.

Com preservação da fachada [face-work] eu quero designar asações tomadas por uma pessoa para tornar o que quer que esteja fa-zendo consistente com a fachada. A preservação da fachada servepara neutralizar "incidentes" - quer dizer, eventos cujas implica-ções simbólicas efetivas ameaçam a fachada. Assim, o aprumo é umtipo importante de preservação da fachada, pois através do aprumoa pessoa controla o seu constrangimento e, assim, o constrangimen-to que ela e outros poderiam sofrer por causa do seu constrangi-mento. Mesmo que a pessoa que empregue ações para salvar sua fa-chada não conheça todas as consequências delas, elas frequente-mente se tornam práticas habituais e padronizadas; elas são comojogadas tradicionais num jogo, ou passos tradicionais numa dança.Cada pessoa, subcultura e sociedade parecem ter seu próprio reper-tório característico de práticas para salvar a fachada. Em parte, é aesse repertório que as pessoas se referem quando perguntam comouma pessoa ou cultura "realmente" são. E, ainda assim, o conjunto

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particular de práticas enfatizadas por pessoas ou grupos particula-res parece ser retirado de um único esquema logicamente coerentede práticas possíveis. É como se a fachada, por sua própria natureza,só pudesse ser salva através de um certo número de formas, e comose cada agrupamento social precisasse fazer suas escolhas dentrodessa única matriz de possibilidades.

Podemos esperar que os membros de todo círculo social te-nham algum conhecimento da preservação da fachada e alguma ex-periência no uso dela. Em nossa sociedade, esse tipo de capacidadeàs vezes é chamado de ta to, savoir-faire, diplomacia ou habilidadesocial. Variações na habilidade social têm mais a ver com a eficáciada preservação da fachada do que com a frequência de sua aplica-ção, pois quase todos os atos que envolvem outras pessoas são mo-dificados, prescritiva ou proscritivamente, por considerações sobreA fachada.

Se uma pessoa quiser empregar seu repertório de práticas parasalvar a fachada, obviamente ela deve, em primeiro lugar, ter cons-ciência das interpretações que os outros podem ter colocado sobreos seus atos, e as interpretações que ela talvez deva colocar sobre osdeles. Em outras palavras, ela precisa exercer a perceptividade8. Masmesmo que ela perceba apropriadamente os juízos transmitidossimbolicamente e seja socialmente hábil, ela ainda precisa estar dis-posta a exercer sua perceptividade e habilidade; ela deve, resumin-do, ser orgulhosa e considerada. É claro que, confessadamente, aposse de perceptividade e habilidade social leva com tanta frequên-cia à sua aplicação que, em nossa sociedade, termos como "polidez"c "tato" acabam não distinguindo entre a inclinação para exercerl ais capacidades e as próprias capacidades.

H. Supostamente, a habilidade social e a perceptividade serão altas em grupos cujosmembros frequentemente agem como representantes de unidades sociais mais am-plas, como linhagens ou nações, pois o jogador, aqui, está apostando com uma fa-chada à qual os sentimentos de muitas pessoas estão ligados. Da mesma forma, po-demos esperar que a habilidade social seja bem desenvolvida entre aqueles de altaposição e aqueles com quem estes têm relações, pois quanto mais fachada um parti-cipante da interação tiver, maior será o número de eventos que podem ser inconsis-lrnl.es com ela e, por isso, maior a necessidade de ter habilidade social para preve-nir ou neutralizar essas inconsistências.

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stda sociedade ou grupo social tem seu proprio repertorio de acoes "adequadas" para salvar a fachada. conceito aplicavel em grupo/mmicrogrupo. nao existe sociedade sem face a face. Discutir a fachada do musico e do maestro. o que e ser musico? o que e ser maestro? que condutas, falas comportamentos, expressoes sao aplicaveis para esse grupo?
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ver tb simmel. sociedade como danca. interacao.

Eu já afirmei que a pessoa terá dois pontos de vista - uma orien-tação defensiva para salvar sua própria fachada e uma orientaçãoprotetora para salvar a fachada dos outros. Algumas práticas serãoprimariamente defensivas e outras primariamente protetoras, aindaque, de modo geral, possamos esperar que as duas perspectivas se-jam assumidas ao mesmo tempo. Ao tentar salvar a fachada dos ou-tros, a pessoa precisa escolher um método que não levará à perda desua própria fachada; ao tentar salvar sua própria fachada, ela precisalevar em consideração a perda de fachada dos outros que sua açãopode causar.

Em muitas sociedades há uma tendência a distinguir três níveisde responsabilidade que uma pessoa pode ter quanto a uma ameaça àfachada criada por suas ações. Primeiro, pode parecer que ela agiuinocentemente; sua ofensa parece ser não intencional e involuntária,e aqueles que percebem seu ato podem sentir que ela teria tentadoevitá-lo se tivesse previsto suas consequências ofensivas. Em nossasociedade, chamamos tais ameaças à fachada de/auxpas, gafes, dispa-rates ou pisadas na bola. Segundo, a pessoa ofensora pode parecer teragido com malícia e despeito, com a intenção de causar um insultoaberto. Terceiro, há ofensas incidentais; estas surgem como um efeitocolateral não planejado, mas às vezes previsto da ação - uma ação queo ofensor realiza apesar de suas consequências ofensivas, mas não porcausa de despeito. Do ponto de vista de um participante em particu-lar, esses três tipos de ameaça podem ser introduzidos pelo próprioparticipante contra sua própria fachada, por ele contra a fachada dosoutros, pelos outros contra a fachada dos outros, ou pelos outros con-tra a sua fachada. Assim, a pessoa pode se encontrar em muitas rela-ções diferentes a uma ameaça à fachada. Se ela quiser lidar bem consi-go própria e com os outros em todas as contingências, ela terá quepossuir um repertório de práticas de salvamento da fachada para cadauma dessas relações possíveis à ameaça.

Os tipos básicos de preservação da fachadaO processo de evitação. A saída mais garantida para uma pessoa

evitar ameaças à sua fachada é evitar contatos em que seria provávelque essas ameaças ocorressem. Em todas as sociedades podemos

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observar isto na relação de evitação9 e na tendência de conduzir cer-tas transações delicadas através de intermediários10. Da mesma for-nia, em muitas sociedades, os membros conhecem o valor de volun-tariamente realizar uma retirada graciosa antes que uma ameaça à(achada prevista possa ter chance de ocorrer11.

Quando a pessoa realmente arrisca um encontro, outras formasde práticas de evitação entram em jogo. Como medida defensiva, elase mantém longe de tópicos e atividades que levariam à expressãode informações que seriam inconsistentes com a linha que ela estámantendo. Em momentos oportunos, ela mudará o assunto da con-versa ou a direção da atividade. Muitas vezes, ela apresentará inici-almente uma atitude de acanhamento e compostura, suprimindoqualquer demonstração de sentimentos até que descubra que tipode linha os outros estarão dispostos a apoiar para ela. Quaisquerafirmações sobre o eu serão feitas com uma modéstia beirando omenosprezo, com fortes qualificações, ou com uma nota de debo-che; garantindo-se desta forma, ela terá preparado um eu para simesma que não será depreciado pela exposição, fracassos pessoais,ou os atos imprevistos de outros. E se ela não garantir suas afirma-ções sobre si mesma, ela pelo menos tentará ser realista quanto acias, sabendo que se não o fizer os eventos poderão depreciá-la e fa--íer com que ela perca a fachada.

9. Em nossa própria sociedade, um exemplo da evitação é encontrado no negro declasse média ou alta que evita certos contatos face a face com brancos para proteger;i autoavaliação projetada por suas roupas e modos. Cf., p. ex., JOHNSON, C. Pat-Irrns of Negro Segregation. Nova York: Harper, 1943, cap. 13. A função da evitaçãopara manter o sistema de parentesco em pequenas sociedades pré-letradas pode serconsiderada um exemplo particular do mesmo tema geral.10. Um exemplo é dado por LATOURETTE, K.S. The Chinese: Their History andi Xilture. Vol. 2. Nova York: Macmillan, 1942, p. 211: "Um vizinho ou grupo de vi-zinhos pode utilizar seus bons funcionários para ajustar uma disputa em que os an-líigonistas estariam sacrificando suas fachadas se tomassem o primeiro passo paraabordar o outro. Um intermediário sábio pode realizar a reconciliação preservando:i dignidade de ambos".l l . Num artigo inédito, Harold Garfinkel sugeriu que, quando a pessoa percebe(|uc perdeu a fachada num encontro conversacional, ela pode sentir um desejo de( l csaparecer ou "sumir da face da Terra", e que isto pode envolver um desej o de nãoapenas ocultar a perda de fachada, mas também de voltar magicamente a um pontono tempo em que teria sido possível salvar a fachada evitando o encontro.

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Algumas manobras protetoras são tão comuns quanto essas ma-nobras defensivas. A pessoa demonstra respeito e polidez, assegu-rando-se de estender às outras qualquer tratamento cerimonial queelas possam merecer. Ela emprega a discrição; ela não menciona fa-tos que possam, implícita ou explicitamente, contradizer e cons-tranger as afirmações positivas feitas pelas outras12. Ela emprega cir-cunlocuções e engodos, fraseando suas respostas com uma ambi-guidade cuidadosa de modo a preservar a fachada dos outros, mes-mo que não preserve o bem-estar deles13. Ela emprega cortesias, fa-zendo leves modificações de suas exigências quanto às outras, ousua avaliação delas, para que elas possam definir a situação comouma em que seu respeito próprio não está ameaçado. Ao fazer umaexigência que menospreza os outros, ou ao imputar atributos nãoelogiosos a eles, ela poderá empregar um modo de gozação, permi-tindo que eles assumam a linha de pessoas generosas, capazes de re-laxar seus padrões comuns de orgulho e honra. E, antes de se enga-jar num ato potencialmente ofensivo, ela poderá fornecer explica-ções sobre por que as outras não devem se sentir ultrajadas por isso.Por exemplo, se ela sabe que será preciso se retirar do encontro an-tes que ele termine, pode dizer por antecipação aos outros que pre-

12. Quando a pessoa conhece bem as outras, ela saberá quais assuntos não devemser mencionados e em que situações elas não devem ser colocadas, e ela estará livrepara introduzir as questões que quiser em outras áreas. Quando as outras são des-conhecidas, ela muitas vezes inverterá a fórmula, restringindo-se a áreas específi-cas que ela sabe que são seguras. Nessas ocasiões, como Simmel sugere, "[...] a dis-crição não consiste, de maneira alguma, apenas no respeito pelo segredo do outro,por sua vontade específica de esconder isto ou aquilo de nós, mas em ficar longe doconhecimento de tudo aquilo que o outro não revela expressamente para nós" (TheSociology ofGeorg Simmel. Glencoe, 111. The Free Press, 1950, p. 320-321).13. Viajantes ocidentais costumavam reclamar que nunca podiam confiar que chi-neses dissessem o que realmente queriam dizer, e que eles sempre diziam o queachavam que seu ouvinte ocidental queria ouvir. Os chineses costumavam recla-mar que os ocidentais eram bruscos, grosseiros e mal-educados. Supostamente, emtermos dos padrões chineses, a conduta de um ocidental é tão canhestra que elecria uma emergência, forçando o asiático a esquecer qualquer tipo de resposta dire-ta e se apressar em oferecer um comentário que possa resgatar o ocidental da posi-ção comprometedora em que ele se colocou (cf. SMITH, A.H. Chine.se. Characteris-tics. Op. cit., cap. 8nl: "The Talent for Indirection"). Este é um exemplo de umgrupo importante de mal-entendidos que surgem durante interações entre pessoasque vêm de grupos com padrões rituais diferentes.

cisará ir embora, para que as fachadas deles estejam preparadas paraisto. Mas a neutralização do ato potencialmente ofensivo não preci-sa ser feita verbalmente; ela pode esperar um momento propício ouuma pausa natural - por exemplo, em conversas, uma calmaria mo-mentânea em que nenhum orador poderia ser ofendido - e então irembora, usando aqui o contexto, em vez das palavras, como umagarantia de não ter intenções ofensivas.

Quando uma pessoa não consegue impedir um incidente, ela ain-da pode tentar manter a ficção de que nenhuma ameaça à fachadaocorreu. O exemplo mais evidente disso é encontrado quando a pes-soa age como se um evento que contém uma expressão ameaçadorasimplesmente não ocorreu. Ela pode aplicar essa não observância cui-dadosa a seus próprios atos - como quando ela não admite, através denenhum sinal exterior, que seu estômago está roncando - ou aos atoscie outros, como quando ela não "vê" que alguém tropeçou14. A vidasocial em hospitais psiquiátricos deve muito a esse processo; os paci-entes o empregam em relação às suas próprias peculiaridades, e os vi-sitantes o empregam, muitas vezes com um desespero ténue, em rela-ção aos pacientes. De modo geral, a cegueira diplomática desse tipo éaplicada apenas a eventos que, se forem percebidos, só podem serpercebidos e interpretados como ameaças à fachada.

Um tipo menos espetacular, mas mais importante, de vista gros-sa diplomática é praticado quando uma pessoa abertamente reco-nhece um incidente como um evento que ocorreu, mas não comoum evento que contenha uma expressão ameaçadora. Se não foi elaí\l pelo incidente, então sua cegueira precisará ser apoia-da por sua clemência; se ela causou o feito ameaçador, então sua ce-gueira precisará ser apoiada por sua disposição em procurar umaForma de lidar com o assunto, o que a deixa perigosamente depen-dente da clemência cooperativa dos outros.

Outro tipo de evitação ocorre quando uma pessoa perde o con-Irole de suas expressões durante um encontro. Em tais momentos,c Ia pode tentar não exatamente fazer vista grossa ao incidente, mas

14. Um belo exemplo disto é encontrado na etiqueta da praça de armas, que pode< i brigar aqueles que participam de um desfile a tratar qualquer um que desmaiecomo se ele simplesmente não estivesse presente.

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sim esconder ou ocultar sua atividade de alguma forma, possibili-tando, assim, que os outros evitem algumas das dificuldades criadaspor um participante que não manteve a fachada. Da mesma forma,quando uma pessoa é pega fora de fachada porque não esperava serenvolvida numa interação, ou porque sentimentos fortes perturba-ram sua máscara expressiva, os outros podem, de forma protetora,dar as costas a ela ou à sua atividade por um momento, para que elatenha tempo de se recompor.

O processo corretivo. Quando os participantes de uma ocasiãoou encontro não conseguem evitar a ocorrência de um evento queé expressamente incompatível com os juízos de valor social que es-tão sendo mantidos, e quando o evento é do tipo que é difícil de ig-norar, então os participantes provavelmente darão a ele o estatutoautorizado de um incidente - ratificando-o como uma ameaça quemerece atenção oficial direta - e procederão de forma a tentar cor-rigir os seus efeitos. Nesse ponto, um ou mais participantes se en-contram num estado estabelecido de desequilíbrio ou desgraça ri-tual, e deve-se fazer uma tentativa de restabelecer um estado ritualsatisfatório para eles. Eu uso o termo ritual porque estou lidandocom atos em que o ator, através do componente simbólico dessesatos, mostra o quão digno ele é de respeito ou o quão dignos elesente que os outros são de respeito. A imagem do equilíbrio é aptaaqui porque a extensão e a intensidade do esforço coletivo se adap-ta bem à persistência e intensidade da ameaça15. Nossa fachada, en-tão, é uma coisa sagrada, e a ordem expressiva necessária paramante-la é, portanto, uma ordem ritual.

Eu chamarei de intercâmbio a sequência de atos colocada emmovimento por uma ameaça reconhecida à fachada, terminando no

15. Antropólogos sociais parecem considerar esse tipo de imagem naturalmenteapropriada. Percebam, p. ex., as implicações do seguinte enunciado de MargaretMead em seu "Kinship in the Admiralty Islands". Anthropological Papers of theAmerican Museum of Natural History, 34, p. 183-358: "Se um marido espanca suamulher, o costume exige que ela o deixe e vá para seu irmão, real ou que exerça talfunção, e permaneça lá por um período de tempo proporcional ao grau de sua dig-nidade ofendida" (p. 274).

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restabelecimento do equilíbrio ritual16. Definindo uma mensagemou jogada como tudo aquilo que é comunicado por um ator duranteum turno de ação, podemos dizer que um intercâmbio envolveráduas ou mais jogadas e dois ou mais participantes. Exemplos óbviosem nossa sociedade podem ser encontrados na sequência de "Comlicença" e "Certamente", e na troca de presentes ou visitas. O inter-câmbio parece ser uma unidade concreta básica da atividade social,c fornece uma forma empírica natural de estudar a interação de to-dos os tipos. Práticas de salvar a fachada podem ser utilmente classi-ficadas de acordo com sua posição na sequência natural de jogadasque compõem esta unidade. Tirando o evento que introduz a neces-sidade de um intercâmbio corretivo, quatro jogadas clássicas pare-cem estar envolvidas.

Em primeiro lugar, há o desafio, através do qual os participantesassumem a responsabilidade de chamar a atenção ao erro de condu-la; como consequência, eles sugerem que as afirmações ameaçadasdevem ser mantidas firmes e que o próprio evento ameaçador teráque ser resolvido.

A segunda jogada consiste na oferta, através da qual um partici-pante, normalmente o ofensor, recebe uma chance de corrigir aofensa e restabelecer a ordem expressiva. Existem algumas formasclássicas de fazer essa jogada. Por um lado, podemos tentar mostrarque aquilo que manifestai nente pareceu ser uma expressão ameaça-dora na realidade é um evento insignificante, ou um ato não inten-cional, ou uma piada que não deve ser levada a sério, ou um produtoinevitável e "compreensível" de circunstâncias atenuantes. Por ou-tro lado, podemos admitir o significado do evento e concentrar osesforços sobre o criador dele. Podemos dar informações para mos-trar que o criador estava sob a influência de algo, e que não era donode si, ou que ele estava seguindo as ordens de outra pessoa, e não

1.6. A noção de intercâmbio é retirada em parte de CHAPPLE, H.D. "Measuringl luman Relations". Genetic Psychol. Monographs, 22, 1940, p. 3-147, esp. p. 26-30.• HORSFALL, A.B. & ARENSBERG, C.A. "Teamwork and Productivity in a Shoel?actory". Human Organization, 8, 1949, p. 12-25, esp. p. 19. Para mais referênciassobre o intercâmbio enquanto unidade, cf. GOFFMAN, E. Communication Conductin an Island Community. Chicago: University of Chicago, 1953, caps. 12 e 13, esp. p.165-195 [tese de doutorado inédita].

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fachada como algo sagrado. a arte tb como coisa sagrada - aura, beijamin. podemos discutir a potencializacao da fachada do musico e maestro, pois seriam estas "duplamente sagradas", por isso talvez as relacoes sejam mais difíceis.

adindo por vontade própria. Quando uma pessoa afirma que um atona uma brincadeira, ela pode afirmar que o eu que parecia estar porIrás do ato também fora projetado como uma brincadeira. Quandouma pessoa descobre de repente que ela manifestamente fracassouem capacidades que os outros pressupunham que ela tinha e reivin-dicava para si - como a capacidade de soletrar, de realizar tarefascorriqueiras, de falar sem impropriedades, e assim por diante - poderapidamente adicionar, de forma séria ou não, que ela reivindica es-sas incapacidades como parte do seu eu. Desta forma, o significadodo incidente ameaçador se mantém, mas ele pode agora ser incorpo-rado suavemente ao fluxo dos eventos expressivos.

Como um suplemento ou substituto para a estratégia de redefi-nir o ato ofensivo ou a si mesmo, o ofensor pode seguir dois outrosprocedimentos: ele pode fornecer compensações aos feridos - quan-do não foi sua própria fachada que ele ameaçou; ou ele pode forne-cer punição, penitência e expiação para si mesmo. Essas são jogadasou fases importantes no intercâmbio ritual. Ainda que o ofensor nãoconsiga provar sua inocência, ele pode sugerir, através desses mei-os, que ele agora é uma pessoa renovada, uma pessoa que pagoupelo seu pecado contra a ordem expressiva e em que mais uma vezpodemos confiar no mundo dos juízos. Além disso, ele pode mos-trar que não trata levianamente os sentimentos dos outros, e que seos sentimentos deles foram feridos por ele, ainda que inocentemen-te, ele está preparado para pagar um preço por sua ação. Assim, eleassegura aos outros que eles podem aceitar suas explicações semque tal aceitação constitua um sinal de fraqueza ou falta de orgulhoda parte deles. Além disso, por seu tratamento de si mesmo, por suaautopunição, ele mostra que está claramente consciente do tipo decrime que ele teria cometido se o incidente fosse o que parecera ser àprimeira vista, e que ele sabe o tipo de punição que deve ser infligidasobre alguém que cometesse tal crime. A pessoa suspeita mostra as-sim que é completamente capaz de assumir o papel dos outros emrelação à sua própria atividade, que ela ainda pode ser usada comoum participante responsável no processo ritual, e que as regras deconduta que ela parece ter quebrado ainda são sagradas, reais, e nãoforam enfraquecidas. Um ato ofensivo pode despertar ansiedadequanto ao código ritual; o ofensor apazigua essa ansiedade demons-

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l l rando que tanto o código quanto ele, enquanto defensor do código,ainda funcionam.

Depois do desafio e da oferta acontecerem, a terceira jogadapode ocorrer: as pessoas a quem a oferta é feita podem aceitá-lacomo um meio satisfatório de restabelecer a ordem expressiva e asfachadas apoiadas por essa ordem. Só então o ofensor pode terminara parte principal de sua oferta ritual.

Na jogada final do intercâmbio, a pessoa perdoada comunica umsi uai de gratidão para aqueles que deram a ela a indulgência do perdão.

As fases do processo corretivo - desafio, oferta, aceitação e agra-decimento - nos dão um modelo do comportamento ritual interpes-soal, mas esse modelo pode ser modificado de forma significativa.Por exemplo, as partes ofendidas podem dar ao ofensor uma chancede iniciar a oferta imediatamente, antes de fazer um desafio e antesque elas ratifiquem a ofensa como um incidente. Esta é. uma cortesiacomum, concedida baseada na suposição de que seu receptor inicia-rá um autodesafio. Além disso, quando as pessoas ofendidas acei-tam a oferta corretora, o ofensor pode suspeitar que isto foi feito poreducação, ou seja, de má vontade, e por isso pode apresentar espon-laneamente ofertas corretivas adicionais, não esquecendo do assun-lo até receber uma segunda ou terceira aceitação de sua desculpa re-petida. Ou as pessoas ofendidas podem educadamente assumir opapel do ofensor e apresentar desculpas para ele que serão, forçosa-mente, aceitáveis para as pessoas ofendidas.

Um desvio importante do ciclo corretivo padrão ocorre quandoum ofensor desafiado abertamente se recusa a considerar o aviso econtinua com seu comportamento ofensivo, em vez de consertar aalividade. Essa jogada transfere o jogo de volta para os desafiantes.Se eles aprovarem a recusa de suas exigências, ficará claro que seudesafio era um blefe e que o ofensor "pagou para ver". Esta é umaposição insustentável; eles não podem derivar uma fachada para simesmos dela, e tudo que poderão fazer é vociferar. Para evitar essedestino, eles têm a opção de algumas jogadas clássicas. Por exem-plo, eles podem apelar para uma retaliação violenta e mal-educada,destruindo ou a si próprios ou a pessoa que se recusou a ouvir seuaviso. Ou elas podem se retirar da ocasião visivelmente ressentidas -justamente indignadas, ultrajadas, mas confiantes numa vindicação

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definitiva. Ambos os métodos servem para negar ao ofensor seu es-tatuto enquanto participante da interação e, assim, negar a realidadedo juízo ofensivo que ele proferiu. Ambas as estratégias são formasde resgatar a fachada, mas os custos são normalmente altos para to-dos os envolvidos. É em parte para prevenir tais escândalos que umofensor normalmente oferece desculpas rapidamente; ele não querque as pessoas afrontadas se comprometam com a obrigação de ape-lar a medidas desesperadas.

Fica claro que as emoções têm um papel nesses ciclos de respos-tas, como quando expressamos angústia pelo que alguém fez para afachada de outra pessoa, ou fúria pelo que foi feito para nossa pró-pria fachada. Quero enfatizar que essas emoções funcionam comojogadas, e se encaixam tão precisamente na lógica do jogo ritual queseria difícil compreendê-las sem ele17. De fato, é provável que senti-mentos expressos espontaneamente se encaixem no padrão formaldo intercâmbio ritual de forma mais elegante do que sentimentospreparados conscientemente.

Ganhando pontos - o uso agressivo da preservação da fachadaToda prática para salvar a fachada que consegue neutralizar

uma ameaça em particular abre a possibilidade de que a ameaça sejaintroduzida voluntariamente com o objetivo de ganhar algo, em se-gurança, através dela. Se uma pessoa sabe que os outros responde-rão à sua modéstia com louvores, ela pode procurar obter elogios. Sesua avaliação do eu será testada contra eventos incidentais, entãoela pode preparar eventos incidentais favoráveis. Se os outros esti-verem dispostos a ignorar uma afronta a eles e agir com clemência,ou a aceitar desculpas, então ela pode se basear nisto para ofen-dê-los em segurança. Retirando-se repentinamente, ela pode tentarcolocar os outros num estado ritualmente insatisfatório, deixando-os

17. Mesmo quando uma criança exige alguma coisa e não a recebe, é provável queela chore e fique amuada não como uma expressão irracional de frustração, mascomo uma jogada ritual, comunicando que ela já tem uma fachada que pode serperdida, e que sua perda não deve ocorrer levianamente. Pais compreensivos po-dem até permitir tais exibições, vendo nessas estratégias grosseiras o começo de umeu social.

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se debatendo num intercâmbio que não pode ser completado. Final-mente, com alguns custos pessoais, ela pode induzir os outros a ferirseus próprios sentimentos, forçando-os assim a sentir culpa, remor-sos, e um desequilíbrio ritual prolongado18.

Quando uma pessoa trata a preservação da fachada não comoalgo que ela precisa estar preparada para desempenhar, mascomo algo que ela sabe que os outros realizarão ou aceitarão, en-láo um encontro ou ocasião não é mais uma cena de consideraçãomútua, e sim uma arena em que se realiza uma disputa ou partida.O propósito do jogo é preservar a linha de todas as pessoas contrauma contradição imperdoável, enquanto tentamos marcar o maiornúmero de pontos sobre nossos adversários e ganhar o máximopossível para nós mesmos. Uma plateia para o embate é quase umanecessidade. O método geral consiste na pessoa apresentar fatoslavoráveis sobre si mesma e fatos desfavoráveis sobre os outros, delorma que a única resposta que os outros serão capazes de imagi-nar será algo que termine o intercâmbio num resmungo, uma des-culpa esfarrapada, um riso para salvar a fachada do tipo "eu nãoligo para piadas", ou uma resposta estereotipada do tipo "Ah é?"ou "Isso é o que você pensa". Os perdedores nesses casos terão quereduzir seus prejuízos, conceder tacitamente a perda de um ponto,c tentar se sair melhor no próximo intercâmbio. Pontos ganhosatravés da alusão a posições de classe social às vezes são chama-dos de "esnobadas"; pontos ganhos através da alusão à respeita-bilidade moral são às vezes chamados de "alfinetadas"; em ambosos casos, estamos lidando com uma capacidade em realizar algoc|tie às vezes é chamado de "malícia" [bitchiness].

Em intercâmbios agressivos, o vencedor não apenas consegueapresentar informações favoráveis sobre si mesmo e desfavoráveissobre os outros, mas também demonstra que, enquanto participante

18. A estratégia de manobrar outra pessoa para uma posição na qual ela não poderofrigir os danos que causou é empregada com muita frequência, mas seu exemplomáximo enquanto modelo ritual de conduta é o suicídio por vingança. Cf., p. ex.,IliFFREYS, M.D.W. "Samsonic Suicide, or Suicide of Revenge Among Africans".African Studies, 11, 1952, p. 118-122.

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da interação, ele cuida de si melhor do que seus adversários. Muitasvezes, provas dessa capacidade são mais importantes do que todasas outras informações que a pessoa comunica durante o intercâm-bio, de forma que a introdução de um "tiro" na interação verbal ten-de a implicar que seu causador tem um jogo de pernas melhor doque aqueles que são afligidos por seus comentários. Entretanto, seestes conseguirem aparar sua estocada e ainda ripostar com sucesso,o instigador do jogo precisará encarar não apenas o rebaixamentocom que os outros responderam, mas também aceitar o fato de quesua suposição de superioridade no jogo de pernas era falsa. Ele apa-rece como um tolo; ele perde fachada. Assim, "fazer um comentá-rio" é sempre uma aposta. É possível virar a mesa e o agressor podeperder mais do que teria ganho se sua jogada marcasse um ponto.Ripostas ou réplicas bem-sucedidas, em nossa sociedade, às vezessão chamadas de "nocautes" ou "viradas"; teoricamente, seria possí-vel nocautear um nocaute, virar uma virada, e aparar uma ripostacom uma contrarriposta, mas, com exceção de intercâmbios ensaia-dos, esse terceiro nível de ação bem-sucedida parece ser raro .

tão mais dispostos e preparados para agir como se não tivessem vis-lo a discrepância do que a própria pessoa ameaçada. Muitas vezes,eles prefeririam que ela demonstrasse aprumo20, enquanto ela senteque não pode se dar ao luxo de ignorar o que ocorreu com a sua fa-chada e por isso se torna apologética e com a fachada envergonhada,se for a causadora do incidente, ou destrutivamente assertiva, se osoutros são responsáveis por ele21. Mas, por outro lado, uma pessoapode manifestar aprumo quando os outros consideram que ela de-veria oferecer uma desculpa constrangida - que ela está se aprovei-lando indevidamente da obsequiosídade delas através de suas tenta-tivas de desfaçatez. Às vezes uma pessoa pode não se decidir sobrequal prática empregar, deixando os outros na posição constrange-dora de não saber que método eles terão que seguir. Assim, quandouma pessoa comete uma pequena gafe, ela e as outras podem ficarconstrangidas não porque não são capazes de lidar com tais dificul-dades, mas porque por um momento ninguém sabe se o ofensor ig-norará o incidente, o reconhecerá chistosamente, ou empregará al-guma outra prática para salvar a fachada.

A escolha da preservação da fachada apropriadaQuando ocorre um incidente, a pessoa cuja fachada é ameaçada

pode tentar restaurar a ordem ritual através de um tipo de estraté-gia, enquanto os outros participantes podem desejar ou esperar queuma prática diferente seja empregada. Quando, por exemplo, ocor-re um pequeno percalço, revelando momentaneamente uma pessoacom a fachada errada ou fora de fachada, os outros muitas vezes es-

19. Em jogos de tabuleiro e de cartas, os jogadores rotineiramente levam em consi-deração as respostas possíveis de seus adversários às jogadas que estão prestes a fa-zer, e consideram até a possibilidade de que seus adversários saberão que eles estãotomando tais precauções. Em comparação, o jogo conversacional é surpreendente-mente impulsivo; as pessoas rotineiramente fazem comentários sobre outros pre-sentes sem preparar esses comentários cuidadosamente para evitar uma réplicabem-sucedida. Da mesma forma, apesar de fintas e sandbagging [no pôquer, teruma mão boa, mas não apostar na expectativa de que alguém o faça primeiro paradepois aumentar a aposta - N.T.] serem possibilidades teóricas durante conversas,elas não parecem ser aproveitadas com frequência.

20. O folclore atribui um aprumo enorme às classes altas. Se há alguma verdadenessa crença, ela pode estar no fato de que a pessoa de classe alta tende a participarde encontros onde ela tem uma posição superior à dos outros participantes e nãoapenas em relação à classe. O participante superior muitas vezes é um tanto inde-pendente da boa opinião dos outros, e pode se dar ao luxo de ser arrogante, apegan-i lo-se a uma fachada mesmo que ela não seja apoiada pelo encontro. Por outro lado,aqueles que estão sob o poder de um colega-participante tendem a se preocupar de-mais com a avaliação que ele faz deles, ou com sua transformação em testemunhas,c' por isso acham difícil manter uma fachada levemente errada sem se constranger epedir desculpas. Podemos adicionar que pessoas que não percebem o simbolismoilc eventos triviais podem se manter calmas em situações difíceis, demonstrandoum aprumo que na realidade não possuem..11. Assim, em nossa sociedade, quando uma pessoa sente que as outras esperamque ela esteja à altura de padrões aprovados de limpeza, asseio, justeza, hospitali-dade, generosidade, opulência, e assim por diante, ou quando ela se vê como al-r.uém que deveria manter tais padrões, ela pode onerar um encontro com desculpasrepetidas por suas falhas, quando os participantes na realidade não se importamroín o padrão, ou não acreditam que a pessoa realmente não esteja à altura dele, ourstão convencidos de que ela não está à altura dele e enxergam a própria desculpacomo um esforço inútil de autoelevação.

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Cooperação na preservação da fachadaQuando uma fachada é ameaçada, é preciso realizar a preserva-

ção da fachada, mas não é de muita importância se ela é iniciada edesempenhada pela pessoa cuja fachada foi ameaçada, ou pelo ofen-sor, ou por uma mera testemunha22. A falta de esforço de uma pes-soa induz a um esforço compensador de outras; uma contribuiçãode uma pessoa dispensa outras desta tarefa. Na verdade, há muitospequenos incidentes em que o ofensor e o ofendido tentam iniciaruma desculpa simultaneamente23. A resolução da situação tendo emvista a satisfação aparente de todos é o primeiro requerimento; a dis-tribuição correta da culpa normalmente é uma consideração secun-dária. Assim, termos como "tato" ou savoir-faire não conseguemdistinguir se é a própria fachada da pessoa que sua diplomacia salva,ou se é a dos outros. Da mesma forma, termos como "gafe" e/auxpás não conseguem especificar se o ator ameaçou sua própria facha-da, ou a dos outros. E é compreensível que se uma pessoa percebeque é incapaz de salvar sua própria fachada, os outros pareçam es-pecialmente dispostos a protegê-la. Por exemplo, na sociedade edu-cada, uni aperto de mão que talvez não devesse ter sido oferecido setorna um que não pode ser recusado. Podemos explicar assim a no-blesse oblige através da qual esperamos que aqueles em posições al-

22. Assim, uma das funções de padrinhos em duelos reais, e também em duelos fi-gurados, é fornecer uma desculpa para não lutar que ambos os combatentes podemse dar ao luxo de aceitar.23. Cf., p. ex., TOBY, J. "Some Variables in Role Conflict Analysis". Social Forces,20, 1952, p. 323-337: "Com adultos, há menos probabilidade de que questões es-sencialmente triviais produzam conflitos. A desculpa automática de dois desco-nhecidos que colidem acidentalmente numa rua movimentada ilustra a funçãointegradora da etiqueta. Na realidade, ambas as partes da colisão dizem 'Eu nãosei se fui responsável por esta situação, mas, se este for o caso, você tem direitode estar irritado comigo, um direito que peço que você não exerça'. Ao definir asituação como uma em que ambos os lados precisam se rebaixar, a sociedadepermite que ambos mantenham o seu respeito próprio. Ambos podem muitobem verdadeiramente sentir 'Por que esse idiota não olha para onde anda?' Mas,abertamente, ambos representam o papel de culpados, mesmo que sintam que istonão é verdade" (p. 325).

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ias contenham seu poder de constranger os inferiores24, e também olato de que os deficientes muitas vezes aceitam cortesias quando sãoperfeitamente capazes de realizar o ato em questão sozinhos, e melhor.

Já que cada participante de uma ocasião está preocupado, ainda(|ue por razões diferentes, em salvar sua própria fachada e também ados outros, surgirá então naturalmente uma cooperação tácita parai (lie os participantes possam obter juntos seus objetivos em comum,mesmo que por motivos diferentes.

Um tipo comum de cooperação tácita para salvar a fachada é adiplomacia exercida em relação à própria preservação da fachada. Apessoa não apenas defende sua própria fachada e protege a dos ou-nos, mas também age de forma a possibilitar e mesmo facilitar queos outros preservem suas próprias fachadas e a dela. Ela os ajuda ase ajudarem, e a ajudarem a ela. A etiqueta social, por exemplo, avi-sa que os homens não devem marcar encontros de réveillon commuita antecedência, senão a garota poderá ter dificuldades de dari una desculpa gentil para recusar. Essa diplomacia de segunda or-

.',•!•. Independente da posição social relativa da pessoa, em um sentido ela tem po-dei' sobre os outros participantes e eles precisam contar com a sua consideração,i >nando os outros agem para com ela de alguma forma, baseiam-se numa relaçãosocial com a mesma, já que uma das coisas expressas pela interação é a relação en-1 1 c seus participantes. Desta forma eles se comprometem, pois eles a colocam numa[Hisição capaz de depreciar as afirmações que eles expressam em relação à atitudedela para com eles. Assim, em resposta a relações sociais reivindicadas, esperamosi|i ic- toda pessoa, de alta ou baixa posição, exerça a noblesse oblige e não se aproveitei l i i posição comprometida dos outros. Como as relações sociais são definidas parci-.ilmente em termos de ajuda mútua voluntária, recusar um pedido de ajuda se tor-na uma questão delicada que pode potencialmente destruir a fachada de quem pede(d . HOLCOMBE, C. The Real Chinaman. Nova York: Dodd/Mead, 1895, p. 274-' / ' ) ) nos dá um exemplo chinês: "Grande parte da falsidade a que dizem que os

i liineses, enquanto nação, são viciados é resultado das exigências da etiqueta. Um'uno' franco e direto é o ápice da descortesia. Qualquer recusa ou negação deve ser.iniortecida e enfraquecida através de uma expressão de incapacidade que se la-i i ir n ia. Nunca se demonstra uma falta de disposição para se fazer um favor. Em lu-H;I I ' dela, vemos uma sensação refinada de sofrimento devido a circunstâncias ine-vilnveis, mas bastante imaginárias, que tornam o favor completamente impossível,'.cculos de prática dessa forma de evasão tornaram os chineses inigualavelmenteleríeis na invenção e apresentação de desculpas. É realmente muito raro encontrarmu deles que não consiga oferecer uma ficção muito bem tecida para ocultar umaverdade indesejável".

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ciem pode ser exemplificada também através da prática disseminadada etiqueta de atributos negativos. A pessoa que tern um atributonegativo não aparente muitas vezes considera conveniente começarum encontro com uma admissão discreta de seu defeito, especial-mente com pessoas que não têm essa informação sobre ela. As ou-tras são, assim, avisadas por antecedência a não fazerem comentá-rios depreciativos sobre seu tipo de pessoa, e são salvas da contradi-ção de agir de forma amistosa com uma pessoa contra a qual elas es-tão involuntariamente sendo hostis. Essa estratégia também impedeas outras de automaticamente fazer suposições sobre ela que a colo-quem numa posição falsa, e a salva de uma clemência dolorosa oude admoestações constrangedoras.

A diplomacia em relação à preservação da fachada muitas vezesconta, para sua operação, com um acordo tácito para agir através dalinguagem das dicas - a linguagem das indiretas, ambiguidades, pau-sas bem colocadas, piadas cuidadosas, e assim por diante25. A regraque trata deste tipo não oficial de comunicação é que o emissor nãodeve agir como se tivesse comunicado oficialmente a mensagem queinsinuou, enquanto os receptores têm o direito e o dever de agircomo se não tivessem oficialmente recebido a mensagem contida nainsinuação. Desta forma, a comunicação insinuada é comunicaçãoque pode ser negada; ela não precisa ser encarada de frente. Ela é ummeio com o qual pessoa de que sua linha atual ou que a situação atu-al estão prestes a causar uma perda de fachada, sem que o próprioaviso se torne um incidente.

Outra forma de cooperação tácita que parece ser muito usada emvárias sociedades é a autonegação recíproca. Muitas vezes a pessoanão tem uma ideia clara do que seria uma partilha justa ou aceitávelde juízos durante a ocasião, e por isso ela voluntariamente se priva oudeprecia enquanto favorece e elogia os outros, em ambos os casos le-vando os juízos, com segurança, além daquilo que provavelmente se-ria justo. Ela permite que os juízos favoráveis sobre si própria ve-

25. Comentários úteis sobre alguns dos papéis estruturais desempenhados pela co-municação não oficial podem ser encontrados numa discussão sobre a ironia e ca-çoadas de BURNS, T. "Friends, Enemies, and the Polite Fiction". American Socioló-gica! Review, 18, 1953, p. 654-662.

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itham dos outros; e os juízos desfavoráveis sobre si própria são suacontribuição. Essa técnica "depois de você, Alphonse"26 só funciona,c claro, porque ao se privar ela pode prever com segurança que osoutros a elogiarão ou favorecerão. Independente da alocação de fa-vores que seja finalmente estabelecida, todos os participantes rece-bem antes uma chance de mostrar que eles não estão presos ou coa-gidos por seus próprios desejos e expectativas, que eles têm umaopinião apropriadamente modesta sobre si mesmos, e que podemosnos assegurar de que eles apoiarão o código ritual. A barganha nega-l iva, em que cada participante tenta fazer com que os termos do ne-gócio favoreçam mais o outro lado, é outro exemplo; e, enquantoforma de troca, ela talvez seja mais comum do que a dos economistas.

Quando uma pessoa realiza a preservação da fachada, junto comseu acordo tácito de ajudar as outras a realizar a delas, isto representasua disposição em obedecer às regras básicas da interação social. Eis osímbolo de sua socialização enquanto um participante da interação.Se ela e as outras não fossem socializadas dessa forma, a interação namaioria das sociedades e na maioria das situações seria uma coisamuito mais perigosa para sentimentos e fachadas. Não seria práticopara a pessoa se orientar para avaliações comunicadas simbolicamen-Ic de valor social, nem possuir sentimentos - quer dizer, não seriaprático para ela ser um objeto ritualmente delicado. E, como eu suge-rirei, se a pessoa não fosse um objeto ritualmente delicado, as oca-siões de conversa não poderiam ser organizadas da forma que nor-malmente são. Não surpreende que uma pessoa em que não se possaconfiar para jogar o jogo de salvar a fachada cause problemas.

Os papéis rituais do euAté agora, eu implicitamente utilizei uma definição dupla do

eu: o eu como uma imagem montada a partir das implicações ex-pressivas do fluxo total de eventos numa ocasião; e o eu como umi i pó de jogador num jogo ritual que lida honrada ou desonradamen-le, diplomaticamente ou não, com as contingências dos juízos na si-

16. Referência a uma tira em quadrinhos americana do início do século XX, em queos dois personagens, Alphonse e Gaston, eram tão educados que não conseguiamrealizar nada, pois sempre deferiam a passagem ou a ação para o outro [N.T.].

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tuação. Um mandado duplo está envolvido. Enquanto objetos sa-grados, os homens estão sujeitos a desfeitas e profanações; por isso,como jogadores do jogo ritual, eles precisaram se comprometer cornduelos, e esperar que uma salva de tiros errasse o alvo antes de abra-çar seus adversários. Aqui temos um eco da distinção entre o valorde uma mão num jogo de cartas e a capacidade da pessoa que a joga.Precisamos manter essa distinção em mente, ainda que pareça quequando uma pessoa obtém uma reputação por jogar bem ou mal,essa reputação pode se tornar parte da fachada que depois ela preci-sa jogar para manter.

Quando os dois papéis do eu são separados, podemos utilizar ocódigo ritual implícito na preservação da fachada para aprendercomo os dois papéis estão relacionados. Quando uma pessoa é res-ponsável por introduzir uma ameaça à fachada de outra, ela aparen-temente tem direito, dentro de certos limites, a escapulir da dificul-dade através da auto-humilhação. Quando realizadas voluntaria-mente, essas indignidades parecem não profanar sua própria ima-gem. É como se ela tivesse o direito da isolação, e pudesse se castigarenquanto atriz sem se ferir enquanto objeto de valor fundamental.Através da mesma isolação, ela pode se menosprezar e modesta-mente subestimar suas qualificações positivas, com a compreensãode que ninguém tomará seus enunciados como uma representaçãojusta de seu eu sagrado. Por outro lado, se ela for forçada, contra asua vontade, a se tratar dessas formas, sua fachada, seu orgulho esua honra serão seriamente ameaçados. Assim, em termos do códi-go ritual, a pessoa parece ter uma permissão especial para aceitarmaus-tratos por suas próprias mãos, mas não tem o direito de acei-tá-los vindos de outras pessoas. Talvez este seja um arranjo seguroporque não é provável que ela exagere no uso dessa permissão, en-quanto os outros, se recebessem tal privilégio, teriam mais chancede abusar dele.

Além disso, dentro de certos limites, a pessoa tem o direito deperdoar outros participantes por afrontas à sua imagem sagrada. Elapode clementemente ignorar pequenas calúnias sobre sua fachadae, em relação a ofensas um tanto maiores, ela é a única pessoa quepode aceitar desculpas em nome de seu eu sagrado. Esta é uma prer-rogativa que a pessoa pode assumir para si mesma com uma certa

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segurança, pois ela é exercida nos interesses das outras ou do em-preendimento. É interessante notar que, quando uma pessoa come-le uma gafe contra si mesma, não é ela quem tem permissão paraperdoar o evento; apenas os outros têm tal prerrogativa, e é seguroque eles a tenham porque eles só podem exercê-la nos interessesdela ou nos interesses do empreendimento. Descobrimos, então,um sistema de pesos e contrapesos através do qual cada participantelende a receber o direito de lidar apenas com as questões nas quaisele não teria muitos motivos para trapacear. Resumindo, os direitose deveres de um participante da interação são projetados para impe-di-lo de abusar de seu papel de objeto de valor sagrado.

Interação faladaMuito do que foi dito até agora se aplica a encontros do tipo

imediato e mediado, ainda que neste último a interação provavel-mente será mais atenuada, obtendo-se a linha de cada participante apartir de coisas como declarações escritas e registros profissionais,l Entretanto, durante contatos pessoais diretos, operam condiçõesinlormacionais únicas, e a importância da fachada se torna especial-mente clara. A tendência humana de usar sinais e símbolos significa(|ue evidências de valor social e de avaliações mútuas serão comuni-raclas por coisas muito pequenas, e essas coisas serão testemunha-das, assim como o fato de que foram testemunhadas. Uma olhadeladescuidada, uma mudança momentânea no tom de voz, uma posi-ção ecológica tomada ou não, tudo isso pode encharcar uma conver-sa de importância avaliativa. Deste modo, assim como não existemocasiões de fala em que impressões inapropriadas não possam sur-gir , intencionalmente ou não, também não existem ocasiões de falaIão triviais a ponto de não exigirem que cada participante demons-111- uma preocupação séria de como ele lida consigo próprio e comos outros presentes. Fatores rituais presentes em contatos mediadosaparecem aqui numa forma extrema.

Parece que em qualquer sociedade, sempre que surge a possibili-i lade física da interação falada, um sistema de práticas, convenções eregras de procedimentos entra em jogo, funcionando como um meioi Ir orientar e organizar o fluxo de mensagens. Valerá algum entendi-mento sobre como e quando será permissível iniciar a fala, entre

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vies que segue a influencia da sociologia americana. analise de conversacoes.

quem, e quais tópicos de conversação serão abordados. Um conjuntode gestos significativos é empregado para iniciar uma enxurrada de co-municação e como um meio para que as pessoas em questão se impu-tem como participantes legítimos27. Quando este processo de ratifica-ção recíproca ocorre, as pessoas ratificadas estão naquilo que podemoschamar de estado de f ala - quer dizer, elas se declararam oficialmenteabertas umas às outras para propósitos de comunicação falada e juntasgarantem manter um fluxo de palavras. Também se emprega um con-junto de gestos significativos para permitir que um ou mais novos par-ticipantes se juntem oficialmente à conversa, para permitir que um oumais participantes ratificados possam se retirar oficialmente, e parapermitir que o estado de fala termine.

Tendemos a manter e legitimar um único foco de pensamento eatenção visual, e um único fluxo de fala, como sendo oficialmenterepresentativo do encontro. A atenção visual combinada e oficialdos participantes tende a ser transferida facilmente através de dicasde autorização formais ou informais, com as quais o orador atual si-naliza que está prestes a parar de falar, e o orador esperado sinalizaum desejo de começar a falar. Temos um entendimento sobre comquanta frequência e por quanto tempo cada participante falará. Osreceptores comunicam ao orador, através de gestos apropriados,que estão dando a ele sua atenção. Os participantes restringem seuenvolvimento em questões externas ao encontro, e observam um li-mite de envolvimento a qualquer mensagem particular do encontro,

27. Podemos compreender o significado desse estatuto analisando os tipos de par-ticipação não legitimados ou não ratificados que podem ocorrer na interação fala-da. Uma pessoa pode ouvir outras sem que estas saibam; ela pode ouvi-las quandoelas sabem que isto está ocorrendo e quando escolhem ou agir como se ela não asestivesse ouvindo, ou sinalizar informalmente a ela que sabem que ela está ouvin-do. Em todos esses casos, o forasteiro é efetivamente mantido à distância como al-guém que não está participando formalmente da ocasião. É claro que códigos rituaisexigem que um participante ratificado seja tratado de forma bem diferente do queum não ratificado. Assim, por exemplo, podemos ignorar apenas uma certa quanti-dade de insultos de um participante ratificado antes que essa prática de evitaçãofaça com que as pessoas insultadas percam fachada; depois de um certo ponto elasprecisam desafiar o ofensor e exigir reparos. Entretanto, aparentemente em muitassociedades, muitos tipos de abusos verbais de participantes não ratificados podemser ignorados sem que esta falta de desafio constitua uma perda de fachada.

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garantindo assim que eles serão capazes de seguir a direçao em queo tópico da conversa os leva, seja ela qual for. Interrupções e pausassão reguladas para não perturbarem o fluxo de mensagens. Mensa-gens que não são parte do fluxo ratificado oficialmente são modula-das para que não interfiram seriamente com as mensagens ratifica-das. Pessoas próximas que não são participantes desistem visivel-mente, de alguma forma, de se aproveitar de sua posição comunica-tiva e também modificam sua própria comunicação, se houver, paranão causar interferências difíceis. Permitimos que prevaleça um ethosou atmosfera emocional particular. Tipicamente mantemos umacordo cortês, e participantes que possam ter uma discórdia real en-tre si falam temporariamente da boca para fora sobre opiniões queos façam concordar quanto a questões de princípio e fato. Seguimosregras para facilitar a transição, se houver, de um tópico de conversa

28para outro .Essas regras de fala valem não apenas para a interação falada con-

siderada como um processo contínuo, mas para uma ocasião de falaou episódio de interação enquanto uma unidade naturalmente limi-tada. Essa unidade consiste da atividade total que ocorre durante otempo em que um dado conjunto de participantes se ratificou paraconversar e mantém um único foco de atenção em movimento29.

As convenções que tratam da estrutura das ocasiões de conversarepresentam uma solução eficaz para o problema de organizar umfluxo de mensagens faladas. Ao tentar descobrir como essas conven-ções são mantidas em vigor como guias da ação, descobrimos evi-dências que sugerem uma relação funcional entre a estrutura do eue a estrutura da interação falada.

O participante socializado da interação acaba lidando com a in-leração falada como faz com qualquer outro tipo, como algo que

28. Para um tratamento mais profundo da estrutura da interação falada, cf. GOFFMAN,11 Communication Conduct in an Island Community. Op. cit.29. Eu pretendo incluir conversas formais onde as regras de procedimento sãoprescritas explicitamente e aplicadas oficialmente, e onde apenas algumas categori-as de participantes podem ter a permissão de falar - assim como conversas ehate-papos sociais em que as regras não são explicitas e o papel de orador circulacontinuamente entre os participantes.

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deve ser realizado com cuidado ritual. Apelando automaticamente àfachada, ele sabe como se conduzir em relação à fala. Fazendo-se re-petida e automaticamente a pergunta, "se eu agir ou não desta for-ma, será que eu ou os outros perderemos fachada?", ele decide, acada momento, conscientemente ou não, como se comportar. Porexemplo, a entrada numa ocasião de interação falada pode ser con-siderada um símbolo de intimidade ou de propósito legítimo, e porisso a pessoa precisa, para salvar sua fachada, desistir de entrarnuma conversa com um certo conjunto de outros a não ser que suascircunstâncias justifiquem aquilo que é expresso sobre ele por suaentrada. Quando ele é abordado para conversar, ele precisa assentirao pedido dos outros para salvar a fachada deles. Uma vez engajadona conversação, ele deve exigir apenas a quantidade de atenção quefor uma expressão apropriada de seu valor social relativo. Pausas in-devidas se tornam sinais potenciais de não se ter nada em comum,ou de ter um domínio de si insuficiente para criar algo a dizer, e porisso devem ser evitadas. Da mesma forma, interrupções e falta deatenção podem comunicar desrespeito, e devem ser evitadas a nãoser que o desrespeito implicado seja uma parte aceita da relação. Épreciso manter um verniz de consenso através da discrição e dementirinhas para que a suposição de aprovação mútua não seja de-preciada. É preciso lidar com a retirada de forma que ela não comu-nique uma avaliação inapropriada30. A pessoa precisa restringir seuenvolvimento emocional para que ela não apresente uma imagemde alguém que não tem autocontrole nem dignidade para se elevaracima de seus sentimentos.

A relação entre o eu e a interação falada também é demonstradaquando examinamos o intercâmbio ritual. Num encontro conversa-cional, a interação tende a ocorrer em arrancos, um intercâmbio porvez, e o fluxo de informação e negócios é parcelado nessas unidades

30. Entre pessoas que já tiveram alguma experiência na interação entre si, encon-tros conversacionais muitas vezes terminam de forma a parecer que todos os parti-cipantes chegaram independentemente ao mesmo momento para se retirar. A de-bandada é geral, e pode ser que ninguém tenha consciência da troca de dicas que foinecessária para que tal feliz simultaneidade de acão fosse possível. Cada participan-te é assim salvo da posição comprometedora de mostrar disposição a passar maistempo com alguém que não está tão disposto a passar tempo com ele.

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rituais relativamente fechadas31. A pausa entre intercâmbios tende aser maior do que a pausa entre falas num intercâmbio, e tende aexistir uma relação menos significativa entre dois intercâmbios emsequência do que entre duas falas em sequência num intercâmbio.

Esse aspecto estrutural da fala surge do fato que, quando umapessoa emite um enunciado ou uma mensagem, por mais trivial oucorriqueira, ela se compromete, e compromete aqueles a quem sedirige, e num certo sentido coloca todos os presentes em perigo. Aodizer algo, o orador se abre à possibilidade de que os receptores pre-tendidos o insultarão não prestando atenção a ele, ou pensando queele é atrevido, tolo ou ofensivo pelo que disse. E se essa for a recep-ção, ele estará comprometido com a necessidade de empreenderações para salvar a fachada contra eles. Além disso, ao dizer algo oorador abre seus receptores pretendidos à possibilidade de que amensagem será autocongratuladora, presunçosa, exigente, insul-tante, e de modo geral uma afronta a eles ou à concepção deles sobreo orador, forçando-os a tomar ação contra ele em defesa do códigoritual. E se o orador louvar os receptores, eles serão obrigados a ne-gar isso de forma apropriada, demonstrando que eles não têm umaopinião favorável demais sobre si mesmos e não estão ansiosos paragarantir indulgências a ponto de colocar em perigo sua confiabilida-de e flexibilidade enquanto participantes da interação.

Assim, quando uma pessoa oferece uma mensagem, contribuin-do assim com o que facilmente poderia ser uma ameaça ao equilíbrioritual, outra pessoa presente é obrigada a demonstrar que a mensa-gem foi recebida e que seu conteúdo é aceitável para todos os envolvi-dos, ou que pode ser contra-atacado aceitavelmente. É claro que essaresposta de reconhecimento pode conter uma rejeição diplomática dacomunicação original, junto com um pedido de modificação. Nessescasos, podem ser necessárias várias trocas de mensagens antes que ointercâmbio seja terminado com base em linhas modificadas. O inter-câmbio termina quando é possível modificá-lo para que termine - ou

31. A separação empírica da unidade de intercâmbio às vezes é obscurecida quan-do a mesma pessoa que fala pela última vez num intercâmbio também fala parainiciar o próximo. Entretanto, a utilidade analítica do intercâmbio enquanto uni-dade se mantém.

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seja, quando todos os presentes indicaram que foram aplacados ritu-almente de forma satisfatória para eles32. Uma pausa momentâneaentre intercâmbios é possível, pois ela surge em momentos em quenão será considerada um sinal de algo desagradável.

Então, de modo geral, uma pessoa determina como deve secomportar durante uma ocasião de conversa testando o significadopotencialmente simbólico de seus atos em relação às minhas ima-gens que estão sendo mantidas. Entretanto, ao fazer isto, ela inci-dentalmente sujeita seu comportamento à ordem expressiva queprevalece e contribui para o fluxo bem ordenado de mensagens. Seuobjetivo é salvar a fachada; seu efeito é salvar a situação. Então, doponto de vista de salvar a fachada, é bom que a interação falada te-nha a organização convencional que tem; do ponto de vista da ma-nutenção de um fluxo bem ordenado de mensagens faladas, é bomque o eu tenha a estrutura ritual que tem.

Entretanto, eu não quero dizer que outro tipo de pessoa relacio-nada a outro tipo de organização de mensagens não se sairia tãobem. E, o que é mais importante, eu não afirmo que o sistema atualnão tenha fraquezas ou desvantagens; o que é de se esperar, pois navida social sempre é o caso que um mecanismo ou relação funcionalque resolve um conjunto de problemas necessariamente crie umconjunto próprio de dificuldades e abusos em potencial. Por exem-plo, um problema característico na organização ritual de conta tospessoais é que, apesar de uma pessoa poder salvar a fachada discu-tindo ou se retirando indignada de um encontro, isto ocorre ao cus-to da interação. Além disso, a ligação da pessoa com a fachada forne-ce um alvo para os outros; eles não apenas podem tentar feri-la deforma não oficial, mas podem até oficialmente tentar destruir com-pletamente sua fachada. Muitas vezes, também, o medo da perdapossível de fachada impede a pessoa de iniciar contatos em que in-formações importantes podem ser transmitidas e relações impor-tantes restabelecidas; ela pode ser levada a buscar a segurança da so-lidão em vez do perigo dos encontros sociais. Ela pode fazer isso

32. A ocorrência da unidade de intercâmbio é um fato empírico. Além da explicaçãoritual para ele, podemos sugerir outras. Por exemplo, quando uma pessoa pronunciaum enunciado e recebe uma resposta imediata, isto permite que ela aprenda que seuenunciado foi recebido, e que foi corretamente recebido. Tal "metacomunicação" se-ria necessária por razões funcionais mesmo que não fosse por razões rituais.

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mesmo que os outros sintam que seu motivo é um "falso orgulho" -um orgulho que sugere que o código ritual está levando a melhorsobre aqueles cuja conduta é regulada por ele. Além disso, o com-plexo "depois de você, Alphonse" pode dificultar o término de umintercâmbio. E também, quando cada participante sente que precisasacrificar mais do que foi sacrificado por ele, pode ocorrer um tipode círculo de indulgências vicioso - bem parecido com o ciclo dehostilidades que pode levar a discussões abertas - com cada pessoarecebendo coisas que não quer e dando em troca coisas que preferi-ria manter. E, mais uma vez, quando as pessoas têm relações formais,elas podem gastar muita energia assegurando que não ocorram even-tos que possam carregar efetivamente uma expressão inapropriada.Por outro lado, quando um conjunto de pessoas tem relações infor-mais e sente que não precisa de cerimónias entre si, sua falta deatenção e interrupções podem ser abundantes, e a conversa pode sedegenerar numa tagarelice feliz de sons desorganizados.

O próprio código ritual requer um equilíbrio delicado, e podeser facilmente perturbado por qualquer um que o mantenha avida-mente demais ou de menos, em termos dos padrões e expectativasde seu grupo. Perceptividade insuficiente, savoir-faire insuficiente,orgulho e consideração insuficientes, e não podemos mais confiarque a pessoa seja alguém capaz de perceber uma dica sobre si mes-ma ou de dar uma dica que poupe os outros de constrangimentos.Tal pessoa se torna uma ameaça real à sociedade; não há muito quese possa fazer com ela, e muitas vezes ela consegue o que quer. Comperceptividade e orgulho excessivos, a pessoa se torna melindrosa,alguém que deve ser tratado com luvas de pelica, e precisa de maiscuidado dos outros do que estes podem achar que ela vale. Com sa-voir-faire e consideração demais, ela se torna alguém socializada de-mais, que deixa os outros com a sensação de que não sabem qual é aposição que eles têm com ela, nem o que devem fazer para realizarum ajuste a longo prazo eficiente em relação a ela.

Apesar dessas "patologias" inerentes à organização da conversa,o encaixe funcional entre a pessoa socializada e a interação falada éviável e prático. A orientação da pessoa para a fachada, especial-mente para a sua própria, é a vantagem que a ordem ritual tem sobreela; mas a promessa de tomar cuidado ritual de sua fachada é parteda própria estrutura da fala.

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Fachada e relações sociaisQuando uma pessoa começa um encontro mediado ou imediato,

ela já está em algum tipo de relação social com os outros em questão,e espera estar numa dada relação com eles quando este encontro emparticular terminar. Isto, obviamente, é uma das formas pelas quaisos contatos sociais são atrelados à sociedade mais ampla. Grande par-te da atividade que ocorre durante um encontro pode ser entendidacomo um esforço da parte de todos para atravessar a ocasião e todosos eventos imprevistos e não intencionais que podem colocar os par-ticipantes sob uma luz indesejável, sem perturbar as relações dos par-ticipantes. E se as relações estiverem em processo de mudança, o ob-jetivo será levar o encontro a um desfecho satisfatório sem alterar ocurso de desenvolvimento esperado. Tal perspectiva explica bem, porexemplo, as pequenas cerimónias de saudações e despedidas queocorrem quando as pessoas iniciam um encontro conversacional oupartem dele. Saudações permitem mostrar que uma relação ainda é oque era no término de uma coparticipação anterior, e, normalmente,que essa relação envolve uma supressão de hostilidades suficientepara que os participantes abaixem a guarda temporariamente paraconversar. Despedidas resumem o efeito do encontro sobre a relaçãoe mostram o que os participantes podem esperar uns dos outrosquando se encontrarem da próxima vez. O entusiasmo das saudaçõescompensa o enfraquecimento da relação causado pela ausência queacabou de terminar, e o entusiasmo das despedidas compensa o pre-juízo que a separação está prestes a causar à relação33.

33. É claro que as saudações servem para esclarecer e fixar os papéis que os partici-pantes assumirão durante a ocasião de conversa e para comprometer os participan-tes a esses papéis, enquanto as despedidas permitem terminar o encontro sem am-biguidade. Saudações e despedidas também podem ser usados para afirmar (e sedesculpar por) circunstâncias atenuantes - no caso das saudações, circunstânciasque impediram os participantes de interagir até agora e, no caso das despedidas,circunstâncias que impedem que os participantes continuem sua demonstração desolidariedade. Essas desculpas permitem manter a impressão de que os participan-tes têm uma relação social mais afável do que pode ser o caso. Essa ênfase positiva,por sua vez, garante que eles agirão como se estivessem mais dispostos a entrar emcontatos do que talvez realmente estejam, garantindo assim que canais difusos decomunicação potencial sejam mantidos abertos na sociedade.

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Parece ser uma obrigação característica de muitas relações soci-ais que cada um dos membros garanta apoiar uma certa fachadapara os outros membros em dadas situações. Assim, para preveniruma perturbação dessas relações, é necessário que cada membroevite destruir a fachada dos outros. Ao mesmo tempo, frequente-mente é a relação social da pessoa com outros que a leva a participarde certos encontros com eles, em que ela acabará dependendo delespara manter sua fachada. Além disso, em várias relações, os mem-bros compartilham uma fachada, de forma que, na presença de ter-ceiros, um ato inapropriado por parte de um membro se torna umafonte de constrangimento agudo para os outros membros. Uma re-lação social, então, pode ser vista como uma forma pela qual a pes-soa é forçada, mais do que o normal, a confiar sua autoimagem e fa-chada à diplomacia e boa conduta dos outros.

A natureza da ordem ritualA ordem ritual parece ser organizada basicamente sobre linhas

de acomodação, de forma que o imaginário usado para pensarmossobre outros tipos de ordem social não é muito apropriado para ela.Para os outros tipos de ordem social, parece que empregamos umtipo de modelo de estudante: se uma pessoa quiser manter uma ima-gem particular de si e confiar seus sentimentos a ela, ela precisa tra-balhar duro pelos créditos que comprarão essas melhorias do eupara ela; se ela tentar alcançar os fins através de meios inapropria-dos, trapaceando ou roubando, ela será punida, desclassificada dacorrida, ou pelo menos forçada a começar de novo do zero. Este éum imaginário de um jogo difícil e chato. Na verdade, a sociedade eo indivíduo participam de um jogo mais fácil para ambos, mas quetem seus próprios perigos.

Qualquer que seja sua posição na sociedade, a pessoa se isolaatravés de cegueiras, meias-verdades, ilusões e racionalizações. Elafaz um "ajuste" ao se convencer, com o apoio diplomático de seucírculo íntimo, de que ela é o que quer ser e que ela não faria, paraatingir seus objetivos, o que os outros fizeram para atingir os deles.E quanto à sociedade, se a pessoa estiver disposta a estar sujeita aum controle social informal - se ela estiver disposta a descobrir, apartir de dicas e olhadelas e pistas cuidadosas qual é o seu lugar, e

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mantiver esse lugar - então não haverá nenhuma objeção a que elamobílie esse lugar do jeito que quiser, com todo o conforto, elegân-cia e nobreza que sua sagacidade obtenha para ela. Para protegeresse abrigo, ela não precisa trabalhar duro, nem se juntar a um gru-po, nem competir com alguém; ela precisa apenas tomar cuidadocom os juízos expressos aos quais ela se coloca numa posição de tes-temunhar. Algumas situações, atos e pessoas terão que ser evitados;outros, menos ameaçadores, não devem ser levados muito longe. Avida social é uma coisa ordenada e não atravancada porque a pessoavoluntariamente fica longe dos lugares e tópicos e momentos emque ela não é desejada e onde poderia ser depreciada. Ela cooperapara salvar sua fachada, descobrindo que há muito a ganhar semnada arriscar.

Fatos fazem parte do mundo do estudante - eles podem ser alte-rados por um esforço diligente, mas não podem ser evitados. Na rea-lidade, a pessoa protege, defende e investe seus sentimentos numaideia de si, e ideias não são vulneráveis a fatos e a coisas, mas sim acomunicações. Comunicações pertencem a um esquema menos pu-nitivo que os fatos, pois podemos desviar comunicações, retirar-nosdelas, não acreditar nelas, convenientemente entendê-las mal, etransmiti-las diplomaticamente. E mesmo se a pessoa se comportarmal e quebrar sua trégua com a sociedade, a consequência não seránecessariamente a punição. Se a ofensa for do tipo que os ofendidospossam ignorar sem perder muito de suas fachadas, então é prová-vel que eles ajam com clemência, dizendo a si mesmos que eles sedesforrarão do ofensor de outra forma em outro momento, mesmoque essa ocasião possa nunca surgir, e talvez não seja aproveitada sesurgir. Se a ofensa for grande, as pessoas ofendidas podem se retirardo encontro, ou de encontros similares futuros, permitindo que suaretirada seja reforçada pelo pasmo que elas podem sentir quanto aalguém que quebra o código ritual. Ou talvez elas façam com que oofensor seja retirado, para que não haja mais comunicação. Mas jáque o ofensor pode resgatar grande parte da fachada com tais opera-ções, a retirada muitas vezes não é uma punição informal por umaofensa, meramente um meio de terminá-la. Talvez o maior princí-pio da ordem ritual não seja a justiça, e sim a fachada, e o que qual-quer ofensor recebe não é o que ele merece, e sim o que sustentará

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pelo momento a linha com a qual ele se comprometeu, e através dis-to a linha com a qual ele comprometeu a interação.

Durante este artigo, ficou implícito que, debaixo de suas dife-renças culturais, as pessoas são iguais em todos os lugares. Se as pes-soas tiverem uma natureza humana universal, não é nelas própriasque devemos procurar uma explicação dela. Em vez disso, devemosprocurá-la no fato de que as sociedades, em qualquer lugar, se qui-serem ser sociedades, precisam mobilizar seus membros como par-ticipantes autorreguladores em encontros sociais. Uma forma demobilizar o indivíduo para esse propósito é através do ritual; ele éensinado a ser perceptivo, a ter sentimentos ligados ao eu e um euexpresso pela fachada, a ter orgulho, honra e dignidade, a ter consi-deração, tato e uma certa quantidade de aprumo. Esses são algunsdos elementos de comportamento que devem ser enxertados na pes-soa se quisermos fazer uso prático dela enquanto participante da in-teração e, em parte, quando falamos de natureza humana universalé a esses elementos que nos referimos.

A natureza humana universal não é uma coisa muito humana. Aoadquiri-la, a pessoa se torna uma espécie de construto, criada não apartir de propensões psíquicas internas, mas de regras morais que sãocarimbadas nela externamente. Essas regras, quando seguidas, deter-minam a avaliação que ela fará sobre si mesma e sobre seus colegasparticipantes no encontro, a distribuição de seus sentimentos, e os ti-pos de práticas que ela empregará para manter um tipo especificado eobrigatório de equilíbrio ritual. A capacidade geral de ser limitadopor regras morais pode muito bem pertencer ao indivíduo, mas oconjunto particular de regras que o transforma num ser humano éderivado de requerimentos estabelecidos na organização ritual de en-contros sociais. E se uma pessoa ou grupo ou sociedade em particularparecer ter um cará ter único inteiramente próprio, é porque seu con-junto padrão de elementos da natureza humana é instalado e combi-nado de forma particular. Em vez de muito orgulho, pode haver pou-co. Em vez de obedecer as regras, pode haver um grande esforço paraquebrá-las err segurança. Mas se quisermos manter um encontro ouempreendim ^nto como um sistema viável de interação organizadopor princípios rituais, então essas variações precisam ser mantidasdentro de certos limites e bem contrabalançadas por modificações

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o que importa nao e o fato em si, mas as interpretacoes. e sao justamente os sentidos da acoes que importam para o estudo das interacoes.
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o que as pessoas recebem nao e necessariamente o que merecem, as sim o que foi interpretado por todos.
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relacionar com vigiar e punir.

correspondentes em algumas das outras regras e entendimentos. Damesma forma, a natureza humana de um conjunto particular de pes-soas pode ser especialmente projetada para o tipo especial de empre-endimentos em que elas participam, mas ainda assim todas essas pes-soas precisam ter dentro delas algo do equilíbrio de características ne-cessárias para um participante utilizável em qualquer sistema organi-zado ritualmente de atividade social.

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2A natureza da deferência

e do porte

Sob a influência de Durkheim e Radcliffe-Brown, alguns estu-dantes das sociedades modernas aprenderam a procurar o significa-do simbólico de qualquer prática social dada e a contribuição dessaprática para a integridade e solidariedade do grupo que a emprega,l vntretanto, ao voltar sua atenção para o grupo em vez do indivíduo,esses estudantes parecem ter negligenciado um tema apresentadono capítulo de Durkheim sobre a alma1. Lá, ele sugere que a perso-nalidade do indivíduo pode ser vista como uma parcela do mana co-letivo e que (como ele sugere em capítulos posteriores) os ritos rea-I izados para representações da coletividade social às vezes serão rea-Iizados para o próprio indivíduo.

Neste capítulo, eu quero explorar alguns dos sentidos em que apessoa, em nosso mundo secular urbano, recebe um tipo de sacrali-dade que é exibido e confirmado por atos simbólicos. Realizareiuma tentativa de construir um andaime conceituai esticando e re-torcendo alguns termos antropológicos comuns. Isto será usadopara apoiar dois conceitos que penso serem centrais para esta área: adeferência e o porte. Através destas reformulações, tentarei mostrarque uma versão da psicologia social de Durkheim pode ser eficientecom uma roupagem moderna.

Os dados para este capítulo foram retirados primariamente deum breve estudo observacional sobre pacientes psiquiátricos num

I . DURKHEIM, É. The Elementary Forms ofthe Rdigious Life. Glencoe: The Freel ' i ess, 1954, p. 240-272.

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hospital de pesquisas moderno2. Eu uso estes dados baseado na su-posição de que um lugar lógico para aprender sobre propriedadespessoais é entre pessoas que foram trancafiadas por fracassar espeta-cularmente em mante-las. As infrações de propriedades delas ocor-rem nos limites de uma enfermaria, mas as regras quebradas sãobastante gerais, levando-nos para fora da enfermaria, na direção deum estudo geral de nossa sociedade anglo-americana.

IntroduçãoUma regra de conduta pode ser definida como um guia para a

acão, recomendada não porque ela t agradável, barata ou eficiente,mas porque é apropriada ou justa. As infrações caracteristicamentelevam a sentimentos de desconforto e a sanções sociais negativas. Asregras de conduta impregnam todas as áreas de atividade e são man-tidas pelo nome e honra de quase tudo. Entretanto, sempre estaráenvolvido um agrupamento de adeptos - ou mesmo uma vida socialcorporativa - fornecendo através disto um tema sociológico co-mum. A ligação a regras leva a uma constância e padronização docomportamento; ainda que esta não seja a única fonte de regularida-

2. A Enfermaria A era formalmente dedicada à pesquisa farmacológica e continhadois controles normais, ambos rapazes menonitas de 19 anos que se opunham aoserviço militar, duas mulheres hipertensas de cerca de 50 anos, e duas mulheres deseus 30 anos diagnosticadas como esquizofrênicas e num grau avançado de remis-são. Por dois meses, o autor participou da vida social da enfermaria na posição ofi-cial de controle normal, comendo e socializando com os pacientes durante o dia eocasionalmente dormindo no quarto de uma das pacientes. A Enfermaria B era de-dicada ao estudo de garotas esquizofrênicas e suas mães, chamadas de esquizofre-nogênicas: uma garota de dezessete anos, Betty, e sua mãe, a sra. Baum; Grace, dequinze anos, e Mary, de trinta e um, cujas mães visitavam a enfermaria na maiorparte dos dias da semana. O autor passava parte dos dias da semana na EnfermariaB na posição de sociólogo da equipe. Dentro de certos limites, é possível tratar aEnfermaria A como um exemplo de uma enfermaria não psiquiátrica ordenada, e aEnfermaria B como um exemplo de uma enfermaria com pacientes psiquiátricosum tanto perturbados. Deve ficar bastante claro que apenas um aspecto dos dadosserá considerado, e que para cada evento citado interpretações adicionais seriamnecessárias, por exemplo, interpretações psicanalíticas. - Eu agradeço aos adminis-tradores dessas enfermarias, Dr. Seymour Perlin e Dr. Murray Bowen, e suas equi-pes, pela cooperação e assistência, e o Dr. John A. Clausen e Charlotte GreenSchwartz, então do Instituto Nacional de Saúde Mental, por sugestões críticas.

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de nas atividades humanas, ela certamente é importante. É claro queguias de conduta aprovados tendem a ser veladamente quebrados,evitados ou seguidos por razões que não seriam aprovadas, mas es-sas alternativas apenas aumentam o número de ocasiões em que asregras coagem pelo menos a superfície da conduta.

As regras de conduta invadem o indivíduo de duas formas ge-rais: diretamente, como obrigações, estabelecendo como ele é mo-ralmente coagido a se conduzir; indiretamente, como expectativas,estabelecendo como os outros são moralmente forçados a agir emrelação a ele. Uma enfermeira, por exemplo, tem uma obrigação deseguir as ordens médicas sobre seus pacientes; por outro lado, ela(em a expectativa de que seus pacientes cooperarão docilmente,permitindo que ela realize essas ações neles. Essa docilidade, porsua vez, pode ser vista como uma obrigação dos pacientes para suaenfermeira, e demonstra o caráter interpessoal, ator-receptor demuitas regras: a obrigação de um homem muitas vezes será a expec-tativa de outro.

Já que as obrigações envolvem uma coerção para agirmos deuma forma em particular, às vezes as representamos como coisas in-cómodas ou desagradáveis, que devem ser cumpridas, se o fizermos,cerrando os dentes em determinação consciente. Na verdade, amaioria das ações guiadas por regras de conduta são realizadas sempensar, e o ator questionado diz que as realiza "sem motivo" ou por-que ele "teve vontade". É apenas quando suas rotinas são bloquea-das que ele poderá descobrir que suas açõezinhas neutras são o tem-po todo consistentes com as propriedades de seu grupo e que seufracasso ao realizá-las pode se tornar uma questão de vergonha e hu-milhação. Da mesma forma, ele pode considerar suas expectativasquanto aos outros tão evidentes que é apenas quando as coisas dãoinesperadamente errado que ele repentinamente descobrirá quetem motivos para indignação.

Quando estiver claro que uma pessoa pode cumprir uma obriga-ção sem sentir que o faz, podemos ir além disto e ver que uma obriga-ção que é sentida corno algo que deve ser feito pode parecer para apessoa obrigada ou uma coisa desejada ou uma coisa onerosa, resu-mindo, um dever agradável ou desagradável. Na verdade, a mesmaobrigação pode parecer ser uni dever desejável num momento e um

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dever indesejável em outro, como quando uma enfermeira, obrigadaa administrar medicamentos em pacientes, pode ficar feliz por istoquando tenta estabelecer uma distância social dos assistentes (que asenfermeiras podem considerar, num certo sentido, não serem "bonso bastante" para realizar tal atividade), mas incomodada por isto emocasiões em que descobre que a dosagem deve ser determinada combase em ordens médicas ilegíveis. Da mesma forma, uma expectativapode ser percebida pela pessoa que espera como uma coisa desejadaou não, como quando uma pessoa sente que será merecidamente pro-movida e outra sente que será merecidamente demitida. No uso co-mum, uma regra que o ator ou receptor percebe como algo pessoal-mente desejável, independente de sua propriedade, é às vezes chama-da de um direito ou privilégio, como farei aqui, mas esses termos têmimplicações adicionais, sugerindo aquela classe especial de regrasque um indivíduo pode invocar, mas não precisa fazê-lo. Tambémdevemos notar que a obrigação agradável de um ator pode constituira expectativa agradável de um receptor, como o beijo que o maridodeve à esposa quando volta do escritório, mas que, como o exemplosugere, todos os tipos de combinações são possíveis.

Quando um indivíduo se envolve na manutenção de uma regra,ele tende a também se comprometer com uma certa imagem do eu.No caso de suas obrigações, ele se torna, para si mesmo e para os ou-tros, o tipo de pessoa que segue essa regra em particular, o tipo depessoa que naturalmente esperamos que o faça. No caso de suas ex-pectativas, ele se torna dependente da suposição de que os outrosrealizarão apropriadamente as obrigações deles que o afetam, pois otratamento que eles concedem ao indivíduo expressará uma con-cepção dele. Ao se estabelecer como o tipo de pessoa que trata as ou-tras de uma certa forma, e é tratado por elas de uma certa forma, eleprecisa garantir que será possível para ele agir e ser esse tipo de pes-soa. Por exemplo, com certos psiquiatras parece haver um ponto emque a obrigação de dar psicoterapia para os pacientes, seus pacien-tes, transforma-se em algo que eles precisam fazer se quiserem man-ter a imagem que passaram a ter de si mesmos. O efeito dessa trans-formação pode ser visto nas contorções que alguns deles podem fa-zer nas fases iniciais de suas carreiras, quando podem se encontrarempregados para fazer pesquisa, ou administrar uma enfermaria, oudar terapia para pessoas que prefeririam ser deixadas em paz.

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Então, de modo geral, quando uma regra de conduta é quebra-da, descobrimos que dois indivíduos correm o risco de se tornaremdesacreditados: um com uma obrigação, quem deveria ter sido go-vernado pela regra; o outro com uma expectativa, quem deveria tersido tratado de uma forma particular por causa desse governo. Tan-to o ator quanto o receptor são ameaçados.

Urn ato que está sujeito a uma regra de conduta é, então, umacomunicação, pois ele representa uma forma pela qual os eus sãoconfirmados - tanto o eu para quem a regra é uma obrigação quantoaquele para quem é uma expectativa. Um ato que está sujeito a re-gras de conduta, mas que não se conforma a elas também é uma co-municação - muitas vezes ainda mais - pois infrações geram notícias,e muitas vezes de forma a deslegitimar os eus dos participantes.Assim, as regras de conduta transformam a ação e a inação em ex-pressão, e é provável que algo significativo seja comunicado, inde-pendente de se o indivíduo segue as regras ou as quebra. Por exem-plo, nas enfermarias que estudei, todos os psiquiatras pesquisadorestendiam a esperar que seus pacientes aparecessem regularmentepara suas sessões terapêuticas. Quando os pacientes cumpriam essaobrigação, eles demonstravam que apreciavam sua necessidade del ratamento e que seu psiquiatra era o tipo de pessoa que consegueestabelecer uma "boa relação" com os pacientes. Quando um paci-ente se recusava a comparecer à sua sessão terapêutica, outras pes-soas na enfermaria tendiam a achar que ele estava "doente demais"para saber o que era bom para ele, e que talvez seu psiquiatra nãofosse o tipo de pessoa que consegue estabelecer relações boas. Com-parecendo ou não a suas consultas, os pacientes tendiam a comuni-car algo importante sobre eles e seu psiquiatra para a equipe e os ou-tros pacientes na enfermaria.

Ao considerar a participação do indivíduo na ação social, precisa-mos entender que, num certo sentido, ele não participa como umapessoa total, mas sim em termos de uma capacidade ou estatuto espe-cial; resumindo, em termos de um eu especial. Por exemplo, pacien-les que por acaso sejam mulheres podem ser obrigadas a agir de for-ma sem-vergonha diante de médicos que por acaso sejam homens, já(|ue é a relação médica, e não a sexual, que é definida como oficial-mente relevante. No hospital de pesquisa estudado, havia pacientes emembros da equipe negros, mas esses indivíduos não estavam oficial-mente (ou, mesmo de modo geral, não oficialmente) ativos nesse es-

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tatuto de grupo minoritário. É claro que durante encontros face a faceos indivíduos podem participar oficialmente em mais de uma capaci-dade. Além disso, quase sempre damos algum peso não oficial a capa-cidades definidas como oficialmente irrelevantes, e a reputação queganhamos em uma capacidade fluirá para a reputação que ganhamosem nossas outras capacidades, e até certo ponto a determinará. Masessas questões precisam de uma análise mais refinada.

Ao lidar com regras de conduta é conveniente distinguir duasclasses, simétrica e assimétrica3. Uma regra simétrica é aquela queleva um indivíduo a ter obrigações ou expectativas em relação a ou-tros que estes outros têm em relação a ele. Por exemplo, nas duasenfermarias do hospital, assim como na maioria dos outros lugaresem nossa sociedade, havia um entendimento de que nenhum indiví-duo deveria roubar outro indivíduo, independentemente de seusrespectivos estatutos, e todos os indivíduos da mesma forma podi-am esperar não ser roubados por ninguém. Aquilo que chamamosde cortesias comuns e regras da ordem pública tendem a ser simétri-cas, como o são as admoestações bíblicas como a regra de não dese-jar a mulher do próximo. Uma regra assimétrica é aquela que leva osoutros a tratar e serem tratados por um indivíduo de modo diferentedaquele com que ele trata e é tratado por eles. Por exemplo, médicosdão ordens médicas para enfermeiras, mas enfermeiras não dão or-dens médicas para médicos. Da mesma forma, em alguns hospitaisdos Estados Unidos, as enfermeiras se levantam quando um médicoentra na sala, mas os médicos normalmente não se levantam quandouma enfermeira entra na sala.

Os estudantes da sociedade fizeram várias distinções entre tiposde regras, como, por exemplo, regras formais e informais; entretan-to, para este capítulo, a distinção importante é aquela entre substân-cia e cerimónia4. Uma regra substantiva é aquela que guia a conduta

3. THOULESS, R.H. General and Social Psychology. Londres: University TutorialPress, 1951, p. 272-273.4. Eu retirei esta distinção de DURKHEIM; É. "The Determination of Moral Facts".Sociology and Philosophy. Glencoe: Free Press, 1953, esp. p. 42-43. Cf. tb. RAD-CLIFFE-BROWN, A.R. Taboo - Structure and Function in Primitive Society. Glen-coe: Free Press, 1952, p. 143-144. • PARSONS, T. The Structure of Social Action.Nova York: McGraw-Hill, 1937, p. 430-433. Às vezes a dicotomia é fraseada emtermos de "intrínseco" ou "instrumental" contra "expressivo" ou "ritual".

em relação a questões consideradas significativas por si só, significân-cia esta separada daquilo que a infração ou manutenção da regra ex-pressa sobre os eus das pessoas envolvidas. Assim, quando um indiví-duo se abstém de roubar outros, ele mantém uma regra substantivaque serve principalmente para proteger a propriedade desses outros,e apenas incidentalmente funciona para proteger a imagem que elestêm de si mesmos como pessoas com direitos de propriedade. As im-plicações expressivas de regras substantivas são oficialmente consi-deradas secundárias; essa aparência deve ser mantida, mesmo que emalgumas situações especiais todos possam sentir que os participantesestavam preocupados principalmente com a expressão.

Uma regra cerimonial é aquela que guia a conduta em questõesconsideradas de importância secundária ou até mesmo não existen-te por si só, tendo sua importância primária - pelo menos oficial-mente - como um meio convencionalizado de comunicação atravésdo qual o indivíduo expressa seu caráter ou transmite sua aprecia-ção dos outros participantes na situação5. Esse uso difere do uso co-

5. Ainda que o valor substantivo de atos cerimoniais seja considerado bastante se-cundário, ele pode ser apreciável. Presentes de casamento na sociedade americanasão um exemplo. É até possível dizer em alguns casos que, se quisermos transmitirum certo sentimento cerimonialmente, será necessário empregar um veículo simbó-lico que tenha uma certa quantidade de valor substantivo. Assim, na classe média bai-xa americana, entende-se que um investimento pequeno num anel de noivado, emlermos de investimento, pode significar que o homem dá um valor pequeno à sua noi-va, em termos emocionais, mesmo que ninguém realmente acredite que mulheres eanéis são coisas semelhantes. Nesses casos em que fica claro demais que o valor subs-lantivo de um ato cerimonial é a única preocupação dos participantes, como quandouma garota ou uni funcionário recebe um presente significativo de alguém que nãoestá interessado em relações apropriadas, então a comunidade pode responder comuma sensação de que seu sistema simbólico foi abusado.Um caso-limite interessante do componente cerimonial da atividade pode ser encon-Irado no fenómeno da "galanteria", como quando uni homem calmamente dá passa-gem para deixar uma dama desconhecida entrar antes dele num bote salva-vidas, ouquando um espadachim, durante um duelo, graciosamente pega a arma caída de seuadversário e a oferece de volta a ele. Aqui, um ato que normalmente é um gesto ceri-monial de valor substantivo insignificante é realizado sob condições em que se sabeque ele terá inesperadamente um grande valor substantivo. Aqui, por assim dizer, asformas da cerimonia são mantidas além do chamado do dever. Então, de modo geral,podemos dizer que todos os gestos cerimoniais diferem no grau em que têm valorsubstantivo, e que esse valor substantivo pode ser utilizado sistematicamente comoparte do valor comunicativo do ato, mas que ainda assim a ordem cerimonial é dife-rente da ordem substantiva, e esta diferença é compreendida.

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tidiano, em que "cerimónia" tende a implicar uma sequência exten-sa de ação simbólica altamente especificada realizada por atores ve-neráveis em ocasiões solenes, e onde é provável que sentimentos re-ligiosos sejam invocados. Em minha tentativa de enfatizar o que háde comum a práticas como tirar o chapéu e coroações, eu forçosa-mente ignorarei as diferenças entre elas a um ponto que muitos an-tropólogos talvez possam considerar impraticável.

Em todas as sociedades as regras de conduta tendem a ser orga-nizadas em códigos que garantem que todos ajam apropriadamentee recebam o que merecem. Em nossa sociedade, o código que gover-na regras substantivas e expressões substantivas compreende nossalei, moralidade e ética, e o código que governa regras cerimoniais eexpressões cerimoniais é incorporado naquilo que chamamos deetiqueta. Todas as nossas instituições têm os dois tipos de códigos,mas neste capítulo eu restringirei a atenção ao cerimonial.

Os atos ou eventos, quer dizer, os veículos ou fichas simbólicasque carregam mensagens cerimoniais têm caráter notavelmente varia-do. Eles podem ser linguísticos, como quando um indivíduo emiteum enunciado de louvor ou depreciação sobre si mesmo ou outrapessoa, e o faz numa linguagem e entonação particular6; gestuais,como quando a orientação física de um indivíduo transmite insolên-cia ou subserviência; espaciais, como quando um indivíduo precedeoutro através da porta, ou se senta à sua direita em vez da esquerda;incorporados em tarefas, como quando um indivíduo aceita uma ta-refa graciosamente e a realiza na presença de outros com segurança edestreza; parte da estrutura comunicativa, como quando um indiví-duo fala mais frequentemente que os outros, ou recebe mais atençãoque eles. O importante é que a atividade cerimonial, como a atividadesubstantiva, é um elemento analítico que se refere a um componenteou função da ação, e não à ação empírica concreta em si. Apesar de al-gumas atividades com um componente cerimonial parecerem não terum componente substantivo apreciável, percebemos que toda ativi-dade de significância primariamente substantiva carregará de algumaforma algum significado cerimonial, desde que sua realização seja

6. GARVIN, P.L. & RIESENBERG, S.H. "Respect Behavior on Pronape: An Ethno-linguistic Study". American Anthropologist, 54, 1952, p. 201-220.

percebida por outros de alguma forma. A maneira pela qual a ativida-de é realizada, ou as interrupções momentâneas que são permitidaspara trocarmos pequenas delicadezas, instilarão significância cerimo-nial na situação orientada instrumentalmente.

Podemos nos referir aos veículos empregados por um dado gru-po social para propósitos cerimoniais como seu idioma cerimonial.Normalmente diferenciamos sociedades de acordo com a quantidadede cerimonial injetado num dado período e tipo de interação, ou deacordo com a abrangência das formas e a minuciosidade de sua espe-cificação; talvez fosse melhor distinguir as sociedades de acordo comse a cerimónia necessária é realizada como um dever desagradável ou,espontaneamente, como um dever despercebido e agradável.

A atividade cerimonial parece conter certos componentes bási-cos. Como foi sugerido, um dos principais objetivos deste capítuloserá delinear dois destes componentes, a deferência e o porte, e es-clarecer a distinção entre eles.

DeferênciaCom "deferência" eu me refiro ao componente da atividade que

funciona como um meio simbólico através do qual se comunica re-gularmente apreciação para um receptor deste receptor, ou de algodo qual este receptor é considerado um símbolo, extensão ou agen-te7. Essas marcas de devoção representam formas pelas quais umator celebra e confirma sua relação com um receptor. Em alguns ca-sos, tanto o ator quanto o receptor podem na verdade não ser indiví-duos, como quando dois navios se cumprimentam com quatro api-los breves quando se cruzam. Em alguns casos, o ator é um indiví-duo, mas o receptor é algum objeto ou ídolo, como quando um ma-rinheiro saúda o tombadilho superior ao embarcar no navio, ouquando um católico se ajoelha perante o altar. Entretanto, eu me

7. Parte do material conceituai sobre deferência usado neste capítulo é derivada deum estudo financiado por uma bolsa da Fundação Ford para um inventário prepo-sicional da estratificação social dirigido pelo Professor E.A. Shils da Universidadede Chicago. Fico muito grato ao Sr. Shils por me orientar para o estudo do compor-lamento da deferência. Ele não é responsável por qualquer uso equivocado que eulenha feito de sua concepção.

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preocuparei apenas com o tipo de deferência que ocorre quandotanto o ator quanto o receptor são indivíduos, estejam eles agindoou não em nome de algo que não seja eles mesmos. Tal atividade ce-rimonial talvez seja vista mais claramente nas pequenas saudações,elogios e desculpas que pontuam o intercurso social, e podemos nosreferir a ela como "rituais de estatuto" ou "rituais interpessoais"8.Eu utilizo o termo "ritual" porque essa atividade, por mais informale secular que seja, representa uma forma pela qual o indivíduo pre-cisa proteger e projetar as implicações simbólicas de seus atos en-quanto estiver na presença imediata de um objeto que tenha um va-lor especial para ele9.

O estudo de rituais de deferência parece poder ir em duas dire-ções principais. Uma é escolher um dado ritual e tentar descobrir osfatores comuns a todas as situações sociais em que ele é realizado,pois é através de tal análise que podemos alcançar o "significado" doritual. A outra é coletar todos os rituais realizados para um dado re-ceptor, seja de quem vier o ritual. Cada um desses rituais pode entãoser interpretado em busca do significado expresso simbolicamenteque está incorporado nele. Juntando esses significados, podemoschegar à concepção do receptor que os outros são obrigados a man-ter sobre ele e para ele.

O indivíduo pode desejar, ganhar e merecer deferência, mas demodo geral não é permitido que ele a dê pai a si mesmo, e ele é força-do a procurá-la nos outros. Ao procurá-la nos outros, ele descobreque tem mais motivos para procurá-los, e por sua vez a sociedadeganha uma garantia maior de que seus membros constituirão intera-ções e relações entre si. Se o indivíduo pudesse dar a si mesmo a de-ferência que deseja, poderia haver uma tendência para a sociedade

8. Técnicas para lidar com essas obrigações cerimoniais são examinadas em "Sobrea preservação da fachada".9. Essa definição segue a de RADCLIFFE-BROWN, A.R. Taboo... Op. cit. p. 123,exceto que eu ampliei seu termo "respeito" para incluir outros tipos de considera-ção: "Existe uma relação ritual sempre que uma sociedade impõe para seus mem-bros uma certa atitude perante um objeto, em que tal atitude envolve algum graude respeito expresso por um modo de comportamento tradicional com referência aesse objeto".

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se desintegrar em ilhas habitadas por devotos solitários, todos vene-rando continuamente seu próprio altar.

A apreciação comunicada por um ato de deferência implica queo ator possui um sentimento de estima pelo receptor, o que muitasvezes envolve uma avaliação geral do receptor. A estima é algo que oindivíduo constantemente tem para os outros, e conhece o bastantepara ocasionalmente fingir que tem; mas ao ter estima por alguém, oindivíduo é incapaz de especificar detalhadamente o que tem de fatoem mente.

É claro que aqueles que prestam deferência para um indivíduopodem sentir que estão fazendo isso meramente porque ele é umexemplo de uma categoria, ou um representante de alguma coisa, eque eles estão dando a ele o que merece não por causa daquilo que"pessoalmente" pensam sobre ele, mas apesar disso. Algumas orga-nizações, como as forças armadas, explicitamente enfatizam essetipo de raciocínio para prestar deferência, levando a uma concessãoimpessoal de algo que é dirigido especificamente para a pessoa. Aodemonstrar facilmente uma estima que ele não tem, o ator pode sen-tir que está preservando um tipo de autonomia interna, manten-do-se à distância da ordem cerimonial através do próprio ato demante-la. E é claro que, ao observar escrupulosamente as formasapropriadas, ele pode descobrir que está livre para inserir todo tipode descaso, modificando cuidadosamente a entonação, pronúncia,ritmo, e assim por diante.

Ao pensarmos sobre a deferência, é comum utilizarmos comomodelo os rituais de obediência, submissão e conciliação que al-guém sujeito à autoridade oferece para alguém que tem autoridade.A deferência passa a ser concebida como algo que um subordinadodeve a seu superior. Esta é uma visão extremamente limitadora dadeferência por dois motivos. Primeiro, há inúmeras formas de defe-rência simétrica que pessoas em igualdade social devem umas às ou-tras; em algumas sociedades, por exemplo a tibetana, saudações en-tre indivíduos iguais de posição alta podem se tornar exibições pro-longadas de conduta ritual, de abrangência e duração maiores doque o tipo de obediência que um governado pode dever a seu gover-nante em sociedades menos ritualizadas. Da mesma forma, há obri-gações de deferência que os superiores devem a seus subordinados;

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posso fazer isso na minha pesquisa. que tal passar um dia inteiro acompanhando um maestro para ver como os atores o tratam enquanto receptor. tentar entender as cerimônias que permeiam o dia a dia desse indivíduo. Exemplo: os musicos levantam qdo o maestro entra? cmo se referem ao maestro? pelo nome ou existe um "chamamento" específico? como a imprensa e pessoas interagem com o maestro?
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a deferência é dada e legitimada socialmente.

altos sacerdotes no mundo inteiro parecem obrigados a responder aofertas com algum equivalente de "Deus te abençoe, meu filho". Se-gundo, a estima que o ator tem pelo receptor não precisa ser do tipode pasmo respeitoso; há outros tipos de estima que também são ex-pressos regularmente através de rituais interpessoais, como a confi-ança, como quando um indivíduo dá as boas-vindas a estranhos queaparecem de repente em sua casa, ou o respeito pela capacidade,como quando o indivíduo aceita o conselho técnico de outro. Umsentimento de estima que tem um papel importante na deferência éaquele da afeição e pertencimento. Podemos ver isto em seu exem-plo mais extremo na obrigação de um homem recém-casado emnossa sociedade de tratar sua noiva com deferência afetiva sempreque for possível transformar o comportamento ordinário numa exi-bição desse tipo. Nós a encontramos mais rotineiramente, porexemplo, como um componente em muitas despedidas nas quais,como em nossa sociedade de classe média, o ator será obrigado a in-fundir tristeza e arrependimento em sua voz, assim prestando defe-rência ao estatuto do receptor como alguém por quem outros po-dem ter carinho. Em estabelecimentos psiquiátricos "progressivos",uma demonstração deferente de aceitação, afeição e preocupaçãopodem compor um aspecto constante e significativo da posição to-mada por membros da equipe ao contatar pacientes. Na EnfermariaB, de fato, as duas pacientes mais jovens pareciam ter se acostumadotanto a receber tais ofertas, e duvidavam tanto delas, que às vezesrespondiam de forma zombeteira, aparentemente num esforço derestabelecer a interação no que lhes parecia um nível mais sincero.

Parece que o comportamento de deferência como um todo tendea ser honorífico t ter um tom polido, comunicando uma apreciaçãodo receptor que, de muitas formas, é mais elogiosa ao receptor do quepodem ser os sentimentos verdadeiros do ator. O ator tipicamente dáao receptor o benefício da dúvida, e pode até esconder uma estimabaixa por trás de uma meticulosidade adicional. Assim, os atos dedeferência muitas vezes evidenciam linhas gerais ideais às quais po-demos então, de vez em quando, referir a atividade real entre o ator eo receptor. Como um último recurso, o receptor tem o direito de fa-zer um apelo direto a essas definições honoríficas da situação, de in-sistir sobre suas reivindicações teóricas, mas se ele for precipitado o

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suficiente a ponto de fazer isso, é provável que a partir de então suarelação com o ator seja modificada. As pessoas sentem que o receptornão deve compreender o ator literalmente, nem obrigá-lo a mostrarsuas intenções, e deve se contentar com a demonstração de aprecia-ção em vez de uma expressão mais substantiva dela. Por isso, desco-brimos que muitos atos automáticos de deferência contêm um signi-ficado vestigial, tendo a ver com uma atividade em que ninguém maisestá engajado e implicando uma apreciação que há muito tempo nãoé mais esperada - e ainda assim sabemos que esses tributos antiqua-dos não podem ser negligenciados impunemente.

Além de um sentimento de estima, os atos de deferência tipica-mente contêm uma espécie de promessa, expressando de formatruncada a admissão e compromisso do ator de tratar o receptor deuma forma particular na atividade que se seguirá. O compromissoafirma que as expectativas e obrigações do receptor, tanto substanti-vas quanto cerimoniais, serão permitidas e apoiadas pelo ator. Osatores prometem, assim, manter a concepção do eu que o receptorconstruiu a partir das regras em que está envolvido. (Talvez o protó-tipo aqui seja o ato público de vassalagem em que um indivíduo ofi-cialmente reconhece sua subserviência ao seu senhor em certos as-suntos.) Compromissos de deferência frequentemente são comuni-cados através de termos falados envolvendo identificadores de esta-tuto, como quando uma enfermeira responde a uma censura na salade cirurgias com a frase "sim, doutor", significando através dessetermo e do tom da voz que a crítica foi entendida e que, por menospalatável que a crítica seja, ela não causou rebeldia. Quando um su-posto receptor não recebe atos de deferência previstos, ou quandoum ator deixa claro que está prestando homenagens de má vontade,o receptor pode sentir que o estado de coisas que ele consideravaevidente se tornou instável, e que o ator pode realizar um esforço deinsubordinação para realocar tarefas, relações e poder. Trazer à tonaum ato de deferência estabelecido, mesmo que antes seja precisolembrar o ator de suas obrigações e das consequências da descorte-sia, é prova de que se a rebelião vier, virá dissimuladamente; recusarabertamente um ato de deferência esperado muitas vezes é uma for-ma de afirmar que a insurreição aberta começou.

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É preciso mencionar uma complicação adicional. Uni ato dedeferência particular é algo que um ator, agindo numa certa capaci-dade, deve a um receptor, agindo numa certa capacidade. Mas é pro-vável que esses dois indivíduos estejam relacionados através demais do que um par de capacidades, e é provável que essas relaçõesadicionais também recebam expressão cerimonial. Por isso, o mes-mo ato de deferência pode mostrar sinais de tipos de estima diferen-tes, como quando um doutor, através de um gesto paternal, demons-tra autoridade sobre uma enfermeira em sua capacidade de técnicasubordinada, mas também afeição por ela como uma jovem que de-pende dele em sua capacidade de homem mais velho e compreensivo.Da mesma forma, um assistente, ao chamar alegremente um médicode "Doe"10 pode às vezes demonstrar respeito pelo papel médico e aomesmo tempo solidariedade masculina com a pessoa que o desempe-nha. Precisamos assim, em todo este capítulo, manter em mente queum ato de comportamento de deferência não é uma única nota ex-pressando uma única relação entre dois indivíduos ativos num únicopar de capacidades, e sim uma mistura de vozes respondendo ao fatode que o ator e o receptor estão em muitas relações diferentes entre si,e nenhuma delas normalmente recebe uma determinabilidade exclu-siva e contínua da conduta cerimonial. Podemos citar um exemplointeressante dessa complexidade quanto às relações entre senhor ecriado de um livro de etiqueta do século dezenove:

Emita suas ordens com gravidade e gentileza, e de formareservada. Que sua voz seja bem composta, mas evite umtom de familiaridade ou simpatia com eles. É melhor, aofalar com eles, usar uma tonalidade de voz mais aguda, enão permita que ela caia no final de uma sentença. O ho-mem de melhor educação que tivemos o prazer de conhecersempre empregava, ao falar com criados, formas de falacomo as seguintes - "Eu te agradeceria por isto ou aquilo" -"Esta coisa, por favor" -, com um tom gentil, mas uma to-nalidade muito elevada. A perfeição dos modos, neste casoparticular, é indicar através da sua linguagem que o ato éum favor, e através do seu tom que é algo evidente .

10. Abreviação informal de doctor, "doutor" em inglês [N.T.].11. ANÓNIMO. TheLaws ofEtiquette. Filadélfia: Carey/Lee and Blanchard, 1836,p. 188.

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A deferência pode assumir várias formas, das quais tratarei ape-nas de dois agrupamentos amplos, os rituais de evitacão e os deapresentação.

Os rituais de evitação, enquanto um termo, podem ser empre-gados para se referir às formas de deferência que levam o ator a man-ter distância do receptor e não violar o que Simmel chamou de "es-fera ideal" que está ao redor do receptor:

Apesar de diferir em tamanho em várias direções e diferirde acordo com a pessoa com quem mantemos relações,esta esfera só pode ser penetrada destruindo o valor depersonalidade do indivíduo. Uma esfera deste tipo é colo-cada ao redor de um homem pela sua honra. A linguagempungentemente designa um insulto à honra como "che-gar perto demais"; o raio desta esfera demarca, por assimdizer, a distância cuja transgressão por outra pessoa in-sulta nossa honra12.

Toda sociedade pode ser lucrativamente estudada como um sis-tema de arranjos deferentes de distância, e a maioria dos estudosnos dão algumas evidências disto13. Evitar o nome próprio de outrapessoa talvez seja o exemplo mais comum da antropologia, e deve-ria ser tão comum quanto na sociologia.

Aqui, devemos dizer, está uma das diferenças importantes entreclasses sociais em nossa sociedade: não apenas as fichas através dasquais a consideração pela privacidade dos outros é expressa são di-ferentes, mas também, aparentemente, quanto mais alta a classemais extensos e elaborados serão os tabus contra o conta to. Porexemplo, num estudo de uma comunidade das Ilhas Shetland, o au-tor descobriu que, quando saímos dos centros urbanos de classemédia na Grã-Bretanha para as ilhas rurais de classe baixa, a distân-cia entre as cadeiras da mesa diminui a ponto de, nas Ilhas Shetlandmais distantes, o contato corporal durante refeições e ocasiões soci-ais similares não ser considerado uma invasão da privacidade, e nãoser preciso pedir desculpas por isso. E ainda assim, qualquer que

12. SIMMEL, G. The Sociology of Georg Simmel. Glencoe: Free Press, 1950, p. 321.13. P. ex., HODGE, F.H. Etiquette: Handbook of American Indians. Washington:Government Printing House, 1907, p. 442.

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seja a posição dos participantes numa ação, é provável que o atorsinta que o receptor tem alguma expectativa de inviolabilidade bemfundamentada.

Quando um ator não precisa mostrar preocupação em penetrar areserva pessoal normal do receptor, e não precisa ter medo de conta-miná-lo através de qualquer penetração de sua privacidade, dizemosque o ator está em termos de familiaridade com o receptor. (A mãeque se sente livre para limpar o nariz de seu filho é um exemplo extre-mo.) Quando o ator precisa demonstrar circunspecção em sua abor-dagem do receptor, falamos de não familiaridade ou respeito. As re-gras que governam a conduta entre dois indivíduos podem, mas nãoprecisam, ser simétricas em relação à familiaridade ou ao respeito.

Parece haver algumas relações típicas entre a distância cerimo-nial e outros tipos de distância sociológica. Entre pessoas de estatu-to igual, podemos esperar encontrar a interação guiada pela familia-ridade simétrica. Entre superior e subordinado, podemos esperarencontrar relações assimétricas, tendo o superior o direito de exer-cer certas familiaridades que o subordinado não tem permissão deretribuir. Assim, no hospital de pesquisa, os médicos tendiam a cha-mar as enfermeiras pelos seus primeiros nomes, enquanto as enfer-meiras respondiam com o tratamento "educado" ou "formal". Damesma forma, em organizações comerciais americanas, o chefepode atenciosamente perguntar ao ascensorista como vão os filhosdeste, mas essa entrada na vida de outra pessoa pode ser bloqueadapara o ascensorista, que pode agradecer pela preocupação, mas nãoretribuí-la. Talvez a forma mais clara disto seja encontrada na rela-ção entre psiquiatra e paciente, onde o psiquiatra tem o direito detocar em aspectos da vida do paciente que o próprio paciente não sepermite tocar, enquanto obviamente este privilégio não é retribuí-do. (Há alguns psicanalistas que acreditam ser desejável "analisar acontratransferência com o paciente", mas esta, ou qualquer outrafamiliaridade da parte do paciente, é fortemente condenada pelosórgãos psicanalíticos oficiais.) Os pacientes, especialmente os psi-quiátricos, podem não ter sequer o direito de questionar seu médicoquanto à opinião dele sobre os seus próprios casos; entre outras coi-sas, isto os colocaria num conta to íntimo demais com uma área doconhecimento em que os médicos investem sua separação especialdo público leigo que eles servem.

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Apesar dessas correlações entre a distância cerimonial e outrostipos de distância serem típicas, precisamos ter bastante clarezaquanto ao fato de que outras relações muitas vezes são encontradas.Assim, pessoas de estatuto igual que não se conhecem bem podemestar em termos de respeito recíproco, e não familiaridade. Alémdisso, há muitas organizações nos Estados Unidos em que as dife-renças de posição são vistas como uma ameaça tão grande ao equilí-brio do sistema que o aspecto cerimonial do comportamento fun-ciona não como uma forma de expressar iconicamente essas dife-renças, mas como uma forma de cuidadosamente contrabalançá-las.No hospital de pesquisa que foi estudado, os psiquiatras, psicólogose sociólogos faziam parte de um único grupo cerimonial em relaçãoao tratamento pelo primeiro nome, e essa familiaridade simétricaaparentemente servia para mitigar alguma sensação da parte dospsicólogos e sociólogos de que eles não eram membros iguais daequipe, o que realmente não eram. Da mesma forma, num estudo degerentes de pequenas empresas, o autor14 descobriu que funcioná-rios de postos de gasolina tinham o direito de interromper seu che-fe, dar tapinhas em suas costas, zombar dele, usar seu telefone e to-mar outras liberdades, e que essa permissividade ritual parecia for-necer um modo através do qual o gerente conseguia manter o ânimoe a honestidade de seus empregados. Precisamos perceber que orga-nizações bastante semelhantes estruturalmente podem ter estilos dedeferência muito diferentes, e que os padrões de deferência são par-cialmente uma questão de moda variável.

Em nossa sociedade, as regras que tratam da manutenção dadistância são numerosas e fortes. Elas tendem a enfocar certos as-suntos, como lugares físicos e propriedades definidas como "próprias"do receptor, o equipamento sexual do corpo, etc. Um foco impor-tante de evitação por deferência consiste no cuidado verbal que osatores são obrigados a exercer para não trazer para a discussão as-suntos que possam ser dolorosos, constrangedores ou humilhantespara o receptor. Nas palavras de Simmel:

O mesmo tipo de círculo que envolve o homem - aindaque seja valorizado de forma muito diferente - é preen-

14. Artigo inédito preparado para Social Research, Inc., 1952.

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chido por seus negócios e características. Penetrar essecírculo através de sua percepção constitui uma violaçãode sua personalidade. Assim como a propriedade mate-rial é, por assim dizer, uma extensão do seu eu, e qual-quer interferência com nossa propriedade é, por essa ra-zão, considerada uma violação da pessoa, também háuma propriedade privada intelectual, cuja violação causauma lesão do eu no seu próprio centro. A discrição é sim-plesmente a sensação de que existe um direito em relaçãoà esfera dos conteúdos imediatos da vida. É claro que adiscrição difere em sua extensão com personalidades di-ferentes, assim como as posições de honra e propriedadetêm raios diferentes em relação a indivíduos "próximos",e estranhos, e pessoas indiferentes15.

A evitação por deferência pode ser ilustrada pela Enfermaria A,onde as regras a esse respeito eram bastante institucionalizadas . Ofato de que duas das pacientes tiveram experiência num hospitalpsiquiátrico do estado não era abordado nem em conversas sériasnem por brincadeira, exceto quando as próprias mulheres o traziamà tona; o mesmo ocorria com a idade dessas pacientes (que estavamnos meados de seus trinta anos). O fato de que os dois pacientesmasculinos se opunham ao serviço militar nunca era abordado, nemmesmo por eles. O fato de que uma das pacientes era cega e outranegra nunca era discutido pelos outros na presença delas. Quandouma paciente pobre se recusou a participar de uma excursão dizen-do ser indiferente, sua racionalização para não sair foi aceita e suaficção foi respeitada, ainda que os outros soubessem que ela queriair, mas tinha vergonha por não possuir um casaco apropriado. Nãose perguntava sobre as sensações de pacientes prestes a receber dro-gas experimentais, ou que acabavam de receber drogas, a não serque eles próprios abordassem o tópico. Mulheres solteiras, fossempacientes ou enfermeiras, não eram questionadas diretamente sobrenamorados. Informações sobre afiliações religiosas eram oferecidas,mas raramente requisitadas.

15. SIMMEL, G. The Sociology ofCeorg Simmel. Op. cit., p. 322.16. Agradeço ao Dr. Seymour Perlin por chamar minha atenção a algumas destasevitações e por apontar sua importância.

A violação de regras tratando da privacidade e separação é umfenómeno que pode ser estudado de perto em enfermarias psiquiá-tricas porque normalmente os pacientes e a equipe causam muitasdessas violações. Às vezes ela surge daqueles que são consideradosos requerimentos substantivos ou instrumentais da situação. Quan-do um paciente psiquiátrico é admitido num hospital, costumeira-mente é feita uma lista com todos os seus pertences; isto requer queele se entregue a outros de uma forma que ele pode ter aprendido adefinir como uma humilhação. Periodicamente, seus pertences po-dem ser revistados num esforço geral para livrar a enfermaria de"objetos afiados", bebidas, narcóticos e outros contrabandos. A pre-sença de uni microfone que se sabe que está escondido no quarto detodos os pacientes e ligado a um alto-falante na estação das enfermei-ras é uma invasão adicional (mas que só ocorre nos hospitais maisnovos); a censura de cartas para fora do hospital é outra. A psicote-rapia, especialmente quando o paciente compreende que outrosmembros da equipe aprenderão sobre o seu progresso e receberãoinclusive um relato detalhado sobre o caso, é outra invasão dessetipo; também o é a prática de fazer com que as enfermeiras e os assis-tentes "mapeiem" o curso das sensações e atividades diárias do paci-ente. Os esforços da equipe para "formar relações" com os pacien-tes, para quebrar períodos de retraimento no interesse da terapia, éoutro exemplo. Formas clássicas de "tratamento de não pessoas"são encontradas, com os membros da equipe respeitando tão pou-co a evitação por deferência que discutem intimidades de um paci-ente na presença dele como se ele simplesmente não estivesse lá. Obanheiro não tem porta, ou, se tiver, ela não tem tranca; os dormi-tórios coletivos, especialmente no caso de pacientes de classe mé-dia, são outro ataque à privacidade. O tratamento dado a pacientes"muito perturbados" em muitos hospitais públicos grandes leva auma direção semelhante, com a medicação forçada, pacotes degelo aplicados ao corpo nu, ou o confinamento nu numa solitáriavazia que pode ser observada pela equipe e outros pacientes. Ou-tro exemplo é a alimentação forçada, em que um paciente mudoassustado que poderia desejar manter alguns alimentos longe desua boca enfrenta um assistente que precisa garantir que os paci-entes sejam alimentados.

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Podemos fazer um paralelo entre as invasões de privacidade quetêm uma justificativa técnica instrumental e aquelas de uma nature-za mais puramente cerimonial. Desta forma, pacientes "psicóticos"e "em atuação" são aqueles que muito provavelmente ultrapassarãoos limites da polidez e farão perguntas constrangedoras para seuscolegas e a equipe, ou que farão elogios que normalmente não teri-am direito de fazer, ou realizarão gestos de apreciação como abraçarou beijar, que são considerados inapropriados. Assim, na Enferma-ria B, membros masculinos da equipe eram afligidos por enunciadoscomo "Por que você se cortou ao barbear desse jeito", "Por que vocêsempre usa as mesmas calças, estou cansada delas", "Olhe toda essacaspa que você tem". Ao se sentar ao lado de uma das pacientes, ummembro masculino da equipe poderia ter que se afastar continua-mente para manter uma distância aparentemente segura entre ele ea paciente.

Algumas das formas usadas pelos indivíduos na Enfermaria Apara manter distância ficavam claras em contraste com a incapaci-dade dos pacientes da Enfermaria B de fazer isso. Na Enfermaria A, aregra de que os pacientes deviam ficar fora da estação das enfermei-ras era obedecida. Os pacientes esperavam um convite ou, o queacontecia costumeiramente, ficavam na porta para poder falar comas pessoas na estação sem se aproximar demais. Assim, não era ne-cessário que a equipe trancasse a porta da estação quando uma en-fermeira estava lá. Na Enfermaria B não era possível manter três daspacientes fora da estação simplesmente com pedidos, e por isso aporta tinha que ser trancada para manter a privacidade. Mesmo as-sim, as paredes da estação eram efetivamente derrubadas por bati-das e gritos contínuos. Em outras palavras, na Enfermaria A, o anelprotetor que as enfermeiras e assistentes criavam ao redor de siquando se retiravam para a estação era respeitado pelos pacientes, oque não ocorria na Enfermaria B.

Posso citar um segundo exemplo. Os pacientes na Enfermaria Atinham sentimentos conflitantes sobre alguns de seus médicos, mascada paciente conhecia um ou dois médicos de que gostava. Assim,à mesa, nas refeições, quando um dos médicos favoritos passava,havia uma troca de cumprimentos; mas, em termos cerimoniais,apenas isso. Ninguém consideraria apropriado perseguir os medi-

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cos, atormentá-los e, de modo geral, invadir seu direito de separa-ção. Entretanto, na Enfermaria B, a entrada de um médico muitasvezes era um sinal para algumas das pacientes saírem correndo nadireção dele, tomando liberdades afetivas como segurar a mão deleou envolvê-lo pelo ombro, e então andavam com ele no corredor,numa conversa afetiva de brincadeira. E muitas vezes, quando ummédico se retirava atrás de uma das portas de escritórios da enfer-maria, pacientes batiam na porta e olhavam pela janela de vidro, e serecusavam a manter a distância esperada de outras formas.

Uma paciente da Enfermaria B, a Sra. Baum, parecia ter um ta-lento especial para adivinhar o que seria uma invasão da privacida-de de outras pessoas. Por exemplo, numa excursão de compras, elaentrava atrás do balcão ou examinava os conteúdos da sacola de umestranho. Outras vezes, ela entrava no carro de um estranho numcruzamento e pedia uma carona. De modo geral, ela dava ao estu-dante um lembrete constante do vasto número de atos e objetos di-ferentes que são usados como marcadores das fronteiras da privaci-dade, sugerindo que, no caso de algumas "desordens mentais", asintomatologia é especificamente, e não apenas incidèntalmente,uma manutenção imprópria da distância social.

A análise da evitacão por deferência foi às vezes prejudicadaporque existe um outro tipo de evitação cerimonial, um tipo auto-protetor, que se parece com a coerção por deferência, mas é analiti-camente bastante diferente. Assim como um indivíduo pode evitarum objeto para não poluí-lo ou profaná-lo, ele pode evitar um obje-to para não ser poluído ou profanado por ele. Por exemplo, naEnfermaria B, quando a Sra. Baum estava num estado paranóico, elase recusava a permitir que sua filha aceitasse um fósforo de um as-sistente negro, parecendo sentir que o conta to com um membro deum grupo contra o qual ela tinha preconceitos seria poluidor; damesma forma, quando ela beijava os médicos e enfermeiras numbom humor de aniversário, ela dava a impressão de que tentava,mas não conseguia se forçar a beijar esse assistente. Parece que, demodo geral, evitamos uma pessoa de alta posição devido à deferên-cia a ela, e evitamos uma pessoa de posição inferior devido a umapreocupação autoprotetora. Talvez a distância social às vezes cuida-dosamente mantida entre iguais implique ambos os tipos de evita-

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cão por ambas as partes. De qualquer forma, a semelhança dos doistipos de evitação não é profunda. Uma enfermeira que se mantémlonge de um paciente por causa de uma compreensão simpática deque ele quer ficar sozinho tem uma certa expressão em seu rosto ecorpo; quando ela mantém a mesma distância física de um pacienteporque ele é incontinente e cheira mal, ela provavelmente terá umaexpressão diferente. Além disso, as distâncias que um ator mantémpor deferência a outros diminuem quando sua posição sobe, mas asdistâncias autoprotetoras aumentam17.

Eu sugeri os rituais de evitação como um dos principais tipos dedeferência. Um segundo tipo, chamado rituais de apresentação,abrange atos através dos quais o indivíduo confirma especificamenteaos receptores como ele os estima e como os tratará na interação pres-tes a ocorrer. As regras que tratam dessas práticas rituais envolvemprescrições específicas, e não proscrições específicas; enquanto os ri-tuais de evitação especificam o que não deve ser feito, os rituais deapresentação especificam o que deve ser feito. Podemos retirar algunsexemplos da vida social na Enfermaria A mantida pelo grupo consis-tindo de pacientes, assistentes e enfermeiras. Eu acredito que esses ri-tuais de apresentação não são muito diferentes daqueles encontradosem muitas outras organizações de nossa sociedade.

Quando membros da enfermaria se cruzavam, normalmente tro-cavam saudações, cuja extensão dependia do período decorrido des-de a última saudação e o período que parecia provável antes da próxi-ma. Na mesa, quando os olhos se encontravam, um breve sorriso dereconhecimento era trocado; quando alguém partia para o fim de se-

17. As pesquisas sobre distância social surpreendentemente ignoram o fato de queum indivíduo pode manter distância de outros porque eles são sagrados demaispara ele, assim como porque eles não são sagrados o bastante. A razão para esseerro persistente constitui um problema da sociologia do conhecimento. De modogeral, seguindo os alunos de Radcliffe-Brown, precisamos distinguir entre a "sacra-lidade boa", que representa algo puro demais para entrarmos em contato, e a "sa-cralidade má", que representa algo impuro demais para entrarmos em contato, con-trastando ambos esses estados e objetos sagrados com questões ritualmente neutras(cf. SRINIVAS, M.M. Religion and Society Among the Coorgs of South índia. Oxford:Oxford University Press, 1952, p. 106-107). Radcliffe-Brown (Taboo... Op. cit.)não apresenta a cautela de que em algumas sociedades a distinção entre o sagradobom e o sagrado mau é muito menos clara do que na nossa.

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mana, um adeus envolvendo uma pausa na atividade sendo desempe-nhada e uma breve troca de palavras eram envolvidos. De qualquerforma, havia um entendimento de que, quando os membros da enfer-maria estivessem numa posição física capaz de entrar em contatoolho a olho de algum tipo, esse contato seria realizado. Parecia quequalquer outra coisa não demonstraria o respeito apropriado para oestado de relações que existia entre os membros da enfermaria.

Práticas relacionadas a "perceber" qualquer mudança de apa-rência, estatuto ou reputação estavam associadas às saudações,como se essas mudanças representassem um compromisso da partedo indivíduo modificado que precisasse ser subscrito pelo grupo.Roupas novas, penteados novos, ocasiões de estar "bem-vestido"evocavam uma rodada de elogios, independente do que o gruposentisse sobre a melhoria. Da mesma forma, era provável que qual-quer esforço da parte de um paciente para fazer alguma coisa na salade terapia ocupacional ou de desempenhar algo bem em outras for-mas fosse louvado pelos outros. Os membros da equipe que partici-pavam do teatro amador do hospital eram elogiados e, quando umadas enfermeiras marcava casamento, fotos de seu noivo e da famíliadele eram vistas e aprovadas por todos. Através disto, um membroda enfermaria tendia a ser salvo do constrangimento de se apresen-tar para os outros como alguém cujo valor tinha crescido e receberuma resposta como alguém cujo valor tinha diminuído, ou perma-necido o mesmo.

Outra forma de deferência por apresentação era a prática daequipe e dos pacientes claramente pedindo para todo e qualquer pa-ciente participar de excursões, terapia ocupacional, concertos, con-versas durante as refeições, e outras formas de atividade em grupo.Recusas eram aceitas, mas todos os pacientem recebiam ofertas.

Outra forma padrão de deferência por apresentação na Enfer-maria A era a realização de pequenos serviços e assistências. As en-fermeiras faziam comprinhas para os pacientes na cidade local; pa-cientes que voltavam de visitas residenciais pegavam outros pacien-tes em seu carro para evitar que eles tivessem que voltar por trans-porte público; pacientes masculinos consertavam as coisas que ho-mens consertam bem, e as pacientes femininas devolviam o serviço.A comida vinha da cozinha já dividida em bandejas individuais, mas

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em cada refeição uma negociação animada de troca de comida ocor-ria, incluindo doações em que aqueles que não gostavam de certosalimentos os davam para aqueles que gostavam. A maioria dosmembros da enfermaria se revezava no transporte das bandejas decomida do carrinho da cozinha para a mesa, como o faziam trazen-do torradas e café para os outros da mesa lateral. Esses serviços nãoeram trocados em termos de um calendário formal preparado paragarantir justiça, e sim uma coisa não planejada, através da qual oator conseguia demonstrar que os objetivos privados do receptoreram algo que os outros presentes participavam com simpatia.

Eu mencionei quatro formas muito comuns de deferência porapresentação: saudações, convites, elogios e pequenos serviços. Atra-vés de todos eles, o receptor é informado que ele não é uma ilha isola-da, e que os outros estão, ou desejam estar, envolvidos com ele e comsuas preocupações pessoais particulares. Em conjunto, esses rituaisfornecem um rastreamento simbólico contínuo de até que ponto o eudo receptor não foi fechado e obstruído em relação aos outros.

Dois tipos principais de deferência foram ilustrados: rituais deapresentação através dos quais o ator representa concretamente suaapreciação do receptor; e rituais de evitacão, assumindo a forma deproscrições, proibições e tabus, que implicam em atos que o ator devese abster de realizar se não quiser violar o direito do receptor de man-te-lo a distância. Nós temos familiaridade com essa distinção devido àclassificação de Durkheim do ritual em ritos positivos e negativos18.

Ao sugerir que há coisas que devem ser ditas e feitas para um re-ceptor, e coisas que não devem ser ditas nem feitas, deve ficar claroque há uma oposição e conflito inerente a essas duas formas de defe-rência. Perguntar sobre a saúde de um indivíduo, o bem-estar da fa-mília dele e o estado de seus negócios é apresentar a ele um sinal depreocupação simpática; mas, de certa forma, fazer essa apresentaçãoé invadir a reserva pessoal do indivíduo, como ficará claro se umator de estatuto errado fizer a ele essas perguntas, ou se um eventorecente tornou tal questão dolorosa de responder. Como Durkheimsugeriu, "a personalidade humana é uma coisa sagrada; não ousa-mos violá-la nem infringir suas fronteiras, enquanto ao mesmo tem-

18. DURKHEIM, É. The Elementary Forms ofthe Rdigious Life. Op. cit., p. 299.

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po o maior bem está na comunhão com os outros"19. Eu gostaria decitar dois exemplos das enfermarias dessa oposição inerente às duasformas de deferência.

Na Enfermaria A, como nas outras enfermarias do hospital,havia um "sistema de toque"20. Certas categorias de pessoal tinhamo privilégio de expressar sua afeição e intimidade com os outrosatravés do ritual de contato corporal com eles. O ator coloca seusbraços em torno da cintura do receptor, passa uma mão na suanuca, acaricia o seu cabelo e a sua testa, ou segura a mão dele. Éclaro que conotações sexuais são oficialmente excluídas. A formamais frequente que o ritual assumia era uma enfermeira estenden-do tal confirmação por toque para um paciente. Não obstante, as-sistentes, pacientes e enfermeiras formavam um grupo em relaçãoa direitos de toque, e esses direitos eram simétricos. Qualquer umdesses indivíduos tinha o direito de tocar qualquer membro desua própria categoria ou qualquer membro das categorias dos ou-tros. (Na verdade, algumas formas de toque, como lutas de brin-cadeira ou jogos de braço de ferro eram intrinsecamente simétri-cos.) É claro que alguns membros da enfermaria não gostavam dosistema, mas isto não alterava os direitos dos outros de incorpo-rá-los a ele. A familiaridade implícita em tais trocas era afirmadade outras formas, como o direito simétrico de chamar os outrospelo primeiro nome. Podemos adicionar que em muitos hospitaispsiquiátricos os pacientes, assistentes e enfermeiras não formamum único grupo para propósitos cerimoniais, e a obrigação dospacientes de aceitar o contato físico amigável da equipe não é re-tribuída.

Além dessas relações de toque simétricas na enfermaria, tam-bém havia outras assimétricas. Os médicos tocavam outras categori-as como um meio de transmitir apoio e conforto amigável, mas asoutras categorias tendiam a sentir que seria presunçoso da parte de-

19. DURKHEIM, É. "The Determination of Moral Facts". Op. cit., p. 37.20. A única fonte que conheço sobre sistemas de toque é a obra muito interessantede Edward Gross (Informal Relations and the Social Organization ofWork. Chicago:Chicago University Press, 1949 [tese de doutorado inédita] sobre os direitos de be-liscar mulheres no papel de secretárias particulares num escritório comercial.

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Ias retribuir o toque de um médico, quanto mais iniciar tal conta tocom ele .

Deve estar claro que se quisermos manter um sistema de toques,como ocorre em muitos hospitais dos Estados Unidos, e se os mem-bros da enfermaria quiserem receber a confirmação e apoio que essesistema ritual fornece, então pessoas que não sejam médicos que ve-nham viver ou trabalhar na enfermaria devem se tornar intimamen-te disponíveis aos outros presentes. Os direitos de separação e invio-labilidade que são exigidos e concedidos em muitos outros estabele-cimentos de nossa sociedade aqui precisam ser abandonados, nessecaso particular. O sistema de toque, para resumir, só é possível se osindivíduos abandonarem o direito de manter os outros a uma dis-tância física.

Um segundo exemplo do sentido em que as duas formas de de-ferência agem em oposição uma à outra tem a ver com a questão daparticipação social. Na Enfermaria A havia um sentimento forte desolidariedade de grupo entre todas as categorias não médicas - en-fermeiras, assistentes e pacientes. Uma forma de expressão disto eraatravés da participação conjunta em refeições, jogos de carteado, vi-sitas a quartos, reuniões para assistir televisão, terapia ocupacional,e excursões. Normalmente, os indivíduos estavam dispostos não sóa participar dessas atividades, mas também a fazê-lo com prazer eentusiasmo visíveis. Eles entregavam-se a essas ocasiões e, atravésdessa dádiva, o grupo florescia.

No contexto desse padrão de participação, e apesar de sua im-portância para o grupo, era compreendido que os pacientes tinhamo direito ao descontentamento. Apesar de ser considerado uma

21. O enfermeiro-chefe durante esse período iniciava toques no braço com o médi-co que atuava como administrador da enfermaria. Isto parecia criar uma percepçãofalsa e era considerado atrevimento. É interessante notar que o enfermeiro deixou oserviço. Devemos adicionar que em uma enfermaria do hospital, dedicada ao estu-do profundo de um pequeno número de garotos altamente delinquentes, os paci-entes e a equipe de todas as categorias, incluindo os médicos, aparentemente for-mavam um único grupo cerimonial. Os membros do grupo eram ligados por regrasde familiaridade simétricas, de modo que era permissível que um garoto de oitoanos chamasse o administrador da enfermaria por seu primeiro nome, brincassecom ele, e falasse palavrões na presença dele.

afronta à solidariedade de grupo chegar atrasado para o café da ma-nhã, os atrasados eram censurados apenas levemente por isso. Umavez na mesa, o paciente era obrigado a retribuir os cumprimentosque recebia, mas depois disto, se seu temperamento e modos ex-pressassem claramente seu desejo de ser deixado em paz, não se fa-ria nenhum esforço para atraí-lo para a conversa da mesa. Se um pa-ciente pegasse sua comida da mesa e voltasse para o seu quarto oupara o salão de TV vazio, ninguém ia atrás dele. Se um paciente serecusasse a participar de uma excursão, faziam uma piadinha, avi-sando o indivíduo sobre aquilo que ele perderia, e não se falava maisnisso. Se um paciente se recusasse a jogar baralho num momentoem que os outros jogadores precisavam de um quarto participante,protestos jocosos eram feitos, mas não continuados. E em qualquerocasião, se o paciente parecesse estar deprimido, mal-humorado, oumesmo um tanto desordenado, fazia-se um esforço para não perce-ber isso ou para atribuir isso a uma necessidade de cuidado e des-canso físicos. Esses tipos de delicadezas e restrições de exigênciaspareciam servir a função social de manter a vida informal livre dacontaminação de ser um "tratamento" ou uma prescrição, e signifi-cava que em alguns assuntos o paciente tinha o direito de impedir aintrusão quando, onde e como ele quisesse. Entretanto, fica claroque o direito de se retrair para a privacidade era um direito concedi-do à custa dos tipos de ato através dos quais esperava-se que o indi-víduo demonstrasse suas relações com os outros na enfermaria. Háuma oposição inescapável entre mostrar um desejo de incluir umindivíduo e mostrar respeito pela sua privacidade.

Como uma implicação desse dilema, precisamos perceber que ointercurso social envolve uma dialética constante entre rituais deapresentação e de evitação. É preciso manter uma tensão peculiar,pois esses requerimentos opostos da conduta precisam, de algumaforma, ser separados um do outro e apesar disso realizados juntos namesma interação: os gestos que levam um ator para um receptor tam-bém precisam significar que as coisas não serão levadas longe demais.

PorteEu sugeri que o componente cerimonial do comportamento

concreto tem pelo menos dois elementos básicos, a deferência e o

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porte. A deferência, definida como a apreciação que um indivíduomostra sobre outro para esse outro, seja através de rituais de evita-ção ou de apresentação, foi discutida e agora posso tratar do porte.

Com "porte", quero me referir ao elemento do comportamentocerimonial do indivíduo tipicamente comunicado através da postu-ra, vestuário e aspecto, que serve para expressar àqueles na presençaimediata dele que ele é uma pessoa de certas qualidades desejáveisou indesejáveis. Em nossa sociedade, o indivíduo de porte "bom"ou "apropriado" demonstra atributos como: discrição e sinceridade;modéstia em afirmações sobre o eu; espírito esportivo; controle dafala e dos movimentos físicos; autocontrole sobre suas emoções,apetites e desejos; aprumo sob pressão; e assim por diante.

Quando tentamos analisar as qualidades comunicadas atravésdo porte, alguns temas ficam aparentes. O indivíduo de porte bompossui os atributos popularmente associados com o "treinamentode caráter" ou "socialização", que são implantados quando um neó-fito de qualquer tipo é domesticado. Correia ou erroneamente, osoutros tendem a usar tais qualidades como um diagnóstico, comoevidência daquilo que um ator normalmente é em outros momentose como realizador de outras atividades. Além disso, o indivíduo deporte apropriado é alguém que selou muitas avenidas de percepçãoe penetração que os outros poderiam levar a ele, e que por isso é im-provável que seja contaminado por elas. Talvez o mais importanteseja que o bom porte é aquilo que é requisitado de um ator se elequiser ser transformado em alguém em que se pode confiar para semanter como um participante da interação, aprumado para a comu-nicação, e para agir de forma que os outros não se coloquem em pe-rigo ao se apresentarem como participantes da interação com ele.

Mais uma vez, devemos notar que o porte envolve atributos de-rivados de interpretações que outros fazem da forma pela qual o in-divíduo cuida de si durante o intercurso social. O indivíduo nãopode estabelecer esses atributos sozinhos garantindo verbalmenteque ele os possui, apesar de às vezes ele tentar, impulsivamente, fa-zer isso. (Entretanto, ele pode se forçar a se conduzir de forma queos outros, através da interpretação deles de sua conduta, imputarãoa ele os tipos de atributos que ele gostaria que os outros enxergas-

sem nele.) Então, de modo geral, através do porte, o indivíduo criauma imagem de si, mas, para ser exato, esta imagem não é para osseus próprios olhos. É claro que isto não deve nos impedir de verque o indivíduo que age com bom porte pode fazer isso porque co-loca um valor apreciável sobre si mesmo, e que aquele que não con-segue se portar apropriadamente pode ser acusado de não ter "res-peito próprio" ou de se desvalorizar perante seus próprios olhos.

Como no caso da deferência, um objeto no estudo do porte écoletar todos os atos cerimonialmente relevantes que um indiví-duo em particular realiza na presença de cada uma das várias pes-soas com quem ele entra em conta to, interpretar esses atos procu-rando o porte expresso simbolicamente através deles, e então jun-tar esses significados numa imagem do indivíduo, uma imagemdele aos olhos dos outros.

As regras do porte, como as regras de deferência, podem ser si-métricas ou assimétricas. Entre pessoas de posição igual, regras si-métricas de porte parecem muitas vezes ser prescritas. Entre desi-guais, podemos encontrar muitas variações. Por exemplo, em reu-niões da equipe nas unidades psiquiátricas do hospital, os médicostinham o privilégio de xingar, mudar o tópico da conversa, e de sen-tar em posições indignas; os assistentes, por outro lado, tinham o di-reito de participar de reuniões da equipe e de fazer perguntas duran-te elas (de acordo com a orientação de terapia-mifieu dessas unida-des de pesquisa), mas implicitamente se esperava que eles se com-portassem com maior circunspecção do que era necessário para osmédicos. (Isto foi apontado por uma terapeuta ocupacional percep-tiva que afirmou que ela era sempre lembrada que uma jovem psi-quiatra meiga era na verdade uma médica pelo fato de que essa psi-quiatra exercia essas prerrogativas de porte informal.) O caso extre-mo aqui talvez seja a relação entre mestre e criado vista nos casosem que valetes e empregadas são forçados a realizar de maneira dig-na serviços indignos. Da mesma forma, os médicos tinham o direitode perambular na estação das enfermeiras, vadiar no balcão de me-dicamentos da estação, e brincar com as enfermeiras; as outras cate-gorias participavam dessa interação informal com os médicos, masapenas depois dos médicos iniciá-la.

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Na Enfermaria A mantinham-se padrões de porte que parecemser típicos da sociedade de classe média americana. O ritmo de ali-mentação na mesa sugeria que ninguém presente estava ansioso de-mais para comer, com tão pouco controle sobre seus impulsos, outão ciumento de seus direitos, a ponto de engolir sua comida voraz-mente ou pegar mais do que sua parte. No pinochle, o jogo de bara-lho favorito, os jogadores induziam os espectadores a ficarem comas cartas deles, e, com consideração, os espectadores recusavam aoferta, expressando assim que não tinham sido tomados pela paixãopelo jogo. Ocasionalmente, um paciente aparecia na sala comunitá-ria ou em refeições vestindo um roupão de banho (uma prática per-mitida aos pacientes no hospital), mas normalmente era mantidauma moda casual, ilustrando que o indivíduo não estava aparecen-do diante dos outros de forma desleixada, ou apresentando muitode si livremente demais. Poucas profanidades eram empregadas, enenhum comentário sexual aberto ocorria.

Na Enfermaria B o mau porte (para padrões de classe média)era muito comum. Isto pode ser exemplificado com o comporta-mento durante as refeições. Muitas vezes um paciente se atiravasobre um pedaço extra de comida, ou pelo menos encarava um pe-daço extra cobiçosamente. Mesmo quando cada indivíduo na mesapodia receber uma parte igual, uma ansiedade exagerada era de-monstrada pela prática de se pegar toda a parte de uma vez ao invésde esperar até uma porção ser ingerida. Ocasionalmente, pacientesvinham à mesa seminus. Um paciente frequentemente arrotavaalto nas refeições, e era às vezes flatulento. De vez em quando,ocorriam manipulações bagunceiras de comida. Xingamentos epalavrões eram comuns. Os pacientes às vezes empurravam suascadeiras para longe da mesa apressadamente e saíam correndopara outra sala, voltando para a mesa da mesma forma violenta. Àsvezes eles emitiam sons altos sugando canudos em garrafas de re-frigerante vazias. Através dessas atividades, os pacientes expressa-vam para a equipe e para seus colegas que seus eus não tinham umporte apropriado.

Vale a pena estudar essas formas de desvio de conduta porqueelas nos fazem perceber alguns aspectos do bom porte que normal-mente consideramos evidentes; para aspectos ainda mais normal-

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mente considerados evidentes, precisamos estudar as enfermarias"dos fundos"22 em hospitais psiquiátricos típicos. Lá, os pacientestendem a se desnudar, a serem incontinentes e a se masturbar aber-tamente; eles se coçam violentamente; babam e deixam o nariz escor-rer sem se preocupar; hostilidades repentinas podem estourar, e imo-déstias "paranóicas" podem ser projetadas; a fala ou a atividade moto-ra podem ocorrer num ritmo maníaco ou deprimido, ou rápido de-mais ou devagar demais para serem consideradas apropriadas; ho-mens e mulheres podem se comportar como se fossem do outro sexo,ou como se não fossem velhos o bastante para ter um sexo. Tais en-fermarias, obviamente, são os ambientes clássicos do porte ruim.

Podemos mencionar um último ponto sobre o porte. Sejamquais forem seus motivos para aparecer com um porte bom diantede outras pessoas, supomos que o indivíduo exercerá sua própriavontade para fazer isso, ou que ele cooperará docilmente se for a ta-refa de outra pessoa ajudá-lo a esse respeito. Em nossa sociedade,um homem penteia seu próprio cabelo até que ele fique longo de-mais, e então vai para um barbeiro e segue instruções enquanto ocabelo é cortado. Essa submissão voluntária é crucial, pois serviçospessoais desse tipo são feitos próximo do centro da inviolabilidadedo indivíduo e podem facilmente resultar em transgressões; o servi-dor e o servido precisam cooperar intimamente para que elas nãoocorram. Entretanto, se um indivíduo não mantiver aquilo que osoutros consideram uma aparência pessoal apropriada, e se ele se re-cusar a cooperar com aqueles encarregados de mante-la para ele, en-tão é provável que a tarefa de torná-lo apresentável contra a sua von-tade custe a ele, no momento, grande parte da sua dignidade e defe-rência, e isto, por sua vez, pode criar sentimentos complexos naque-les que se encontram forçados a fazer com que ele pague o preço.Este é um dos dilemas ocupacionais daqueles empregados para tor-nar crianças e pacientes psiquiátricos apresentáveis. É fácil ordenaraos assistentes a "vestir bem" e barbear os pacientes masculinos nodia das visitas e, sem dúvida, quando isto ocorre, os pacientes apa-

22. Em hospib _s psiquiátricos mais antigos, as "enfermarias dos fundos" [backwards] eram usadas para confinar os pacientes mentalmente mais comprometidos,muitas vezes em acomodações significativamente mais precárias do que as dos pa-cientes considerados mais recuperáveis [N.T.].

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recém mais favoravelmente, mas durante o processo de criação des-sa aparência - nos chuveiros ou na barbearia, por exemplo - os paci-entes podem ser submetidos a indignidades extremas.

Deferência e porteDeferência e porte são termos analíticos; empiricamente, há

muita sobreposição das atividades a que eles se referem. Um atoatravés do qual o indivíduo dá ou recusa deferência a outros tipica-mente fornece meios para ele expressar o fato de ser um indivíduocom porte bom ou ruim. Podemos citar alguns aspectos dessa so-breposição. Primeiro, ao realizar um certo ato de deferência porapresentação, como ao oferecer uma cadeira a um convidado, o atorse encontra fazendo algo que pode ser feito com suavidade e segu-rança, expressando autocontrole e aprumo, ou com falta de jeito eincerteza, expressando um caráter irresoluto. Esta é, por assim di-zer, uma conexão incidental e extrínseca entre deferência e porte.Ela pode ser exemplificada com informações recentes sobre rela-ções entre médicos e pacientes, em que se sugere que uma das recla-mações que um médico pode ter sobre alguns de seus pacientes éque eles não tomam banho antes de comparecer a um exame23; emque tomar banho é não só uma forma de prestar deferência ao médi-co, mas, ao mesmo tempo, é uma forma de o paciente se apresentarcomo uma pessoa limpa e de bom porte. Um outro exemplo é en-contrado em atos como falar alto, gritar ou cantar, pois esses atos in-vadem o direito dos outros de serem deixados em paz enquanto aomesmo tempo ilustram uma falta de controle sobre os sentimentos,ou seja, um porte ruim.

A mesma conexão entre deferência e porte tem influência nasdificuldades cerimoniais associadas com a interação intergrupos: osgestos de deferência esperados por membros de uma sociedade àsvezes são incompatíveis com os padrões de porte mantidos pormembros de outra. Por exemplo, durante o século XIX, as relaçõesdiplomáticas entre a Grã-Bretanha e a Cl, na foram constrangidas

l

pelo fato de que a prostração que o imperador chinês exigia de em-baixadores visitantes era considerada, por alguns embaixadores bri-tânicos, incompatível com seu respeito próprio .

Uma segunda conexão entre a deferência e o porte tem a vercom o fato de que uma disposição a dar a outros o que eles merecemcomo deferência é uma das qualidades que o indivíduo deve expres-sar para os outros através de sua conduta, assim como uma disposi-ção de se conduzir com bom porte é, de modo geral, uma forma demostrar deferência àqueles presentes.

Apesar dessas conexões entre deferência e porte, a relação analí-tica entre eles é de complementaridade, e não de identidade. A ima-gem de si cuja manutenção através da conduta o indivíduo deve aosoutros não é o mesmo tipo de imagem que esses outros são obriga-dos a manter sobre ele. As imagens de deferência tendem a apontarpara a sociedade mais ampla fora da interação, ao lugar que o indiví-duo atingiu na hierarquia dessa sociedade. As imagens de porte ten-dem a apontar para qualidades que qualquer posição social permitea seus representantes uma chance de exibir durante a, interação,pois essas qualidades tratam mais da forma pela qual o indivíduo ge-rência sua posição do que ao cargo e local dessa posição em relaçãoàs posições possuídas pelos outros.

Além disso, a imagem de si cuja manutenção através da condutao indivíduo deve aos outros é um tipo de justificação e compensa-ção pela imagem dele que os outros são obrigados a expressar atra-vés de sua deferência a ele. Ambas as imagens podem, na verdade,agir como uma garantia e contrapeso sobre a outra. Num intercâm-bio que pode ser encontrado em várias culturas, o indivíduo defere aconvidados para mostrar como eles são bem-vindos e como é alta aestima que ele tem por eles; eles, por sua vez, recusam a oferta pelomenos uma vez, mostrando através de seu porte que não são pre-sunçosos, imodestos, ou ansiosos demais para receber favores. Damesma forma, um homem começa a se levantar para uma dama,mostrando respeito pelo sexo dela; ela interrompe e detém o gestodele, mostrando que não é gananciosa quanto a seus direitos nessacapacidade, e que está pronta para definir a situação como uma en-

23. DICHTER, E. APsychological Study oftheDoctor-Patient Relationship. [si]: Ca-lifórnia Medicai Association/Alameda County Medicai Association, 1950, p. 5-6. 24. DOUGLAS, R.K. Society in China. Londres: Innes, 1895, p. 291-296.

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tre iguais. Então, de modo geral, ao tratar os outros deferentementedamos a eles uma oportunidade de lidar com a indulgência comporte bom. Através dessa diferenciação de função simbolizadora omundo tende a ser banhado em imagens melhores do que qualquerum merece, pois é prático significar uma grande apreciação dos ou-tros oferecendo a eles indulgências deferentes, sabendo que algu-mas dessas indulgências serão recusadas como uma expressão debom porte.

Há ainda outras relações complementares entre deferência eporte. Se um indivíduo sente que deve demonstrar um porte apro-priado para ter direito a tratamento com deferência, então ele preci-sa estar numa posição de fazer isso. Ele precisa, por exemplo, ser ca-paz de esconder dos outros aspectos de si que o tornariam indignoaos olhos deles, e de se esconder deles quando estiver num estadoindigno, seja mental, de vestuário, de postura ou de ação. Os rituaisde evitação que os outros realizam para ele dão a ele espaço de ma-nobra, permitindo que apresente apenas um eu digno de deferência;ao mesmo tempo, essa evitação faz com que seja mais fácil para elesse garantir que a deferência que possuem para mostrar a ele é justifi-cada.

Para mostrar a diferença entre deferência e porte eu tratei da rela-ção complementar entre eles, mas mesmo esse tipo de relação podeser exagerado. Quando um indivíduo não demonstra a deferênciaapropriada a outros, isto não necessariamente os libera da obrigaçãode agir com bom porte na presença dele, por mais descontentes queeles possam ficar por ter que fazer isso. Da mesma forma, quando umindivíduo não se comporta com o porte apropriado, isto nem semprepermite que aqueles na presença dele não precisem tratá-lo com a de-ferência apropriada. É separando a deferência e o porte que podemoscompreender muitas coisas sobre a vida cerimonial, como, por exem-plo, que um grupo pode se destacar por excelência em uma dessasáreas enquanto tem uma má reputação na outra. É por isso que pode-mos encontrar um lugar para argumentos como os de De Quincey ,

25. DE QUINCEY, T. "French and English Manners". Collected Writings ofThomasDe Quincey. Vol. XIV. Edimburgo: Adams and Charles Black, 1890, p. 327-334[org. por David Mason],

que um inglês demonstra grande respeito próprio, mas pouco respei-to para com os outros, enquanto um francês demonstra grande res-peito para com os outros mas pouco para si mesmo.

Podemos ver, então, que há muitas ocasiões em que não seriaapropriado para um indivíduo comunicar algo sobre si mesmo queos outros estão prontos para comunicar sobre ele para ele, já quecada uma dessas duas imagens é uma garantia e justificação para aoutra, e não um reflexo dela. A noção de Mead de que o indivíduotoma para si a atitude que os outros tomam para ele realmente pare-ce ser uma simplificação exagerada. Em vez disso, o indivíduo pre-cisa confiar nos outros para completar o retrato dele, no qual elepode apenas pintar algumas partes. Cada indivíduo é responsávelpela imagem de porte de si mesmo e a imagem de deferência dos ou-tros, de forma que, para expressar um homem completo, os indiví-duos precisam dar as mãos numa corrente de cerimónias, cada umdando deferentemente, com porte apropriado, para o outro à direitao que será recebido deferentemente do indivíduo à esquerda. Aindaque possa ser verdade que o indivíduo tem um eu único completa-mente próprio, a evidência dessa posse é totalmente um produto detrabalho cerimonial conjunto, e a parte expressa através do porte doindivíduo não é mais significativa que a parte comunicada pelos ou-tros através de seu comportamento deferente para ele.

Profanações cerimoniaisHá muitas situações e muitas formas em que a justiça da cerimó-

nia pode não ser mantida. Há ocasiões quando o indivíduo percebeque ele recebe deferência que o identifica erroneamente, seja numaposição mais alta ou mais baixa do que ele considera correta. Há ou-tras ocasiões em que ele percebe que está sendo tratado de formamais impessoal e sem-cerimônia do que ele considera apropriado esente que seu tratamento deveria ser mais pontuado com atos dedeferência, mesmo que estes possam chamar a atenção à sua posi-ção subordinada. Uma ocasião frequente de dificuldade cerimonialocorre em momentos de contato entre grupos, já que sociedades esubculturas diferentes têm formas diferentes de comunicar a defe-rência e o porte, significados cerimoniais diferentes para o mesmoato, e quantidades de preocupação diferentes quanto a coisas como

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aprumo e privacidade. Livros de viagem como o da Sra. Trollope26 es-tão cheios de material autobiográfico sobre esses mal-entendidos, e àsvezes parecem ter sido escritos principalmente para torná-los públicos.

Dos muitos tipos de transgressões cerimoniais, há um que um arti-go preliminar sobre a cerimónia é obrigado a considerar: é o tipo queparece ser perpetrado de propósito e parece empregar conscientemen-te a própria linguagem da cerimónia para dizer aquilo que é proibido.O idioma através do qual os modos de conduta cerimonial apropriadasão estabelecidos necessariamente cria formas de profanação ideal-mente efetivas, pois é apenas em referência a propriedades especifica-das que podemos aprender a considerar o que será a pior forma possí-vel de comportamento. Profanações devem ser esperadas, pois cadacerimónia religiosa cria a possibilidade de uma missa negra27.

Quando estudamos indivíduos que estão em termos familiaresentre si, e não precisam de muita cerimónia, muitas vezes encontra-mos ocasiões em que formas cerimoniais padrão que são inaplicáveisà situação são empregadas de forma considerada jocosa, aparente-mente como um meio de "tirar sarro" de círculos sociais nos quais oritual é empregado seriamente. Quando sozinhas, enfermeiras nohospital de pesquisa às vezes se tratavam humoristicamente como"Senhorita" - e médicos em condições similares às vezes se chama-vam de "Doutor" com o mesmo tom de voz jocoso. Da mesma for-ma, às vezes atores ofereciam uma cadeira ou a precedência numaporta de forma elaborada para receptores com quem na verdade es-tavam em termos de familiaridade simétrica. Na Grã-Bretanha, ondea fala e o estilo social são claramente estratificados, podemos encon-trar um grande número de exemplos dessa profanação humorísticados rituais, com pessoas de classe alta gozando os gestos cerimoniaisda classe baixa, e pessoas da classe baixa, quando sozinhas entre si,devolvendo completamente o favor. A prática talvez alcance sua

26. SRA. TROLLOPE. Domestic Manners oftheAmericans. Londres: Whittaker/Trea-cher, 1832.27. Também parece existir um tipo de profanação cerimonial em relação a regrassubstantivas. No Direito, aquilo que às vezes é chamado de "ações de despeito" ser-vem como exemplos, assim como o fenómeno do vandalismo. Mas, como foi suge-rido anteriormente, eles representam formas pelas quais a ordem substantiva éabusada por propósitos cerimoniais.

maior expressão no teatro de revista, onde atores de classe baixa mi-metizam lindamente a conduta cerimonial da classe alta para umaplateia cuja posição está em algum lugar intermediário.

Parte da profanação de brincadeira parece ser dirigida não a fo-rasteiros, mas ao próprio receptor, provocando-o ligeiramente outestando os limites rituais a seu respeito. Devemos dizer que emnossa sociedade esse tipo de brincadeira é direcionado por adultosàqueles de estirpe cerimonial inferior - crianças, idosos, criados, eassim por diante - como quando um atendente afetuosamente des-penteia o cabelo de um paciente ou participa de tipos mais drásticosde provocações28. Antropólogos descreveram esse tipo de permissi-vidade numa forma extrema no caso de "cunhados que são esposossecundários em potencial"29. Por mais aparentes que as insinuaçõesagressivas dessa forma de conduta possam ser, o receptor recebe aoportunidade de agir como se nenhuma afronta séria à sua honra ti-vesse ocorrido, ou pelo menos nenhuma afronta mais séria do que ade ser definido como alguém com quem é possível fazer piadas. NaEnfermaria B, quando a Sra. Baum recebia um lençol pequeno de-mais para sua cama, ela o usava para divertidamente ensacar um dosmembros da equipe. A filha dela às vezes empregava a prática de es-tourar grandes bolas de chiclete o mais perto possível do rosto deum membro da equipe sem tocá-lo, ou de acariciar o braço e mão deum membro masculino da equipe numa paródia de gestos afetivos,alegremente propondo intercurso sexual com ele.

Um tipo menos brincalhão de profanação ritual pode ser encon-trado na prática de macular o receptor de uma forma, e de um ângu-lo, em que ele mantém o direito de agir como se não tivesse recebidoa mensagem profanadora. Na Enfermaria B, onde os membros daequipe tinham a obrigação ocupacional de "se relacionar" com ospacientes e responder a eles de forma amigável, as enfermeiras àsvezes murmuravam vituperações sotto você quando os pacientes

28. Cf. TAXEL, H. Authority Structure in a Mental Hospital Ward. Chicago: ChicagoUniversity Press, 1953, p. 68 [dissertação de mestrado inédita]. • WILLOUGHBY,R.H. TheAttendant in the State Mental Hospital Chicago: Chicago University Press,1953, p. 90 [dissertação de mestrado inédita].29. MURDOCK, G.P. Social Structure. Nova York: Macmillan, 1949, p. 282.

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eram penosos e difíceis. Os pacientes, por sua vez, empregavam omesmo artifício. Quando uma enfermeira voltava as costas, às vezesos pacientes mostravam a língua, davam "bananas" ou faziam care-tas para ela. É claro que estas são formas padrões de desprezo ritualem nossa sociedade anglo-americana, constituindo um tipo de defe-rência negativa. Podemos citar outros exemplos. Em uma ocasião aSra. Baum, para a diversão dos outros presentes, virou as costas paraa janela da estação, curvou-se e levantou a saia, num ato de desprezoritual que aparentemente já foi mais prevalente como um insultopadrão do que é hoje em dia. Em todos esses casos, vemos que, ape-sar de se tomarem liberdades cerimoniais com o receptor, ele não étão desprezado a ponto de ser insultado "na cara". Essa linha entreaquilo que pode ser comunicado sobre o receptor, enquanto esta-mos num estado de fala com ele, e aquilo que só pode ser comunica-do sobre ele, quando não estamos falando com ele, é uma institui-ção cerimonial básica em nossa sociedade, garantindo que seja pro-vável que a interação face a face seja mutuamente de aprovação. Po-demos compreender a profundidade dessa linha em enfermariaspsiquiátricas, onde pacientes severamente perturbados podem serobservados cooperando com membros da equipe para manter umaficção leve de que a linha está sendo mantida.

Mas é claro que há situações em que um ator comunica a profa-nação ritual de um receptor enquanto está oficialmente engajadonuma conversa com ele ou de forma em que a afronta não pode serignorada facilmente. Em vez de registrar e classificar essas afrontasrituais, os estudantes tendem a cobrir todas elas com uma tenda psi-cológica, rotulando-as como "agressões" ou "explosões hostis", epassando para outras questões de estudo.

Em algumas enfermarias psiquiátricas, a profanação ritual facea face é um fenómeno constante. Os pacientes podem profanar ummembro da equipe ou um colega cuspindo nele, es tapeando seu ros-to, jogando fezes nele, rasgando suas roupas, empurrando-o da ca-deira, tirando comida de sua mão, gritando em seu rosto, molestan-do-o sexualmente, etc. Na Enfermaria B, de vez em quando, Betty es-tapeava e socava o rosto de sua mãe, e pisava nos pés descalços delacom sapatos pesados; e a ofendia, na mesa, com aqueles palavrõesque crianças de classe média normalmente evitam em referência a

seus pais, muito menos na presença deles. Devemos repetir que,apesar destas profanações poderem ser, do ponto de vista do ator,um produto do impulso cego, ou ter um significado simbólico espe-cial , do ponto de vista da sociedade como um todo e de seu idiomacerimonial, estas não são infrações impulsivas aleatórias. Em vezdisso, esses atos são exatamente aqueles calculados para comunicarum desrespeito e desprezo completo através de meios simbólicos.Não importa o que esteja na mente de um paciente, o arremesso defezes num atendente é um uso de nosso idioma cerimonial tão formi-dável, de certa forma, quanto uma mesura feita com graça e floreio.Sabendo disso ou não, o paciente fala a mesma linguagem ritual queseus captores; ele meramente diz aquilo que eles não querem escu-tar, pois o comportamento do paciente que não carregue um signifi-cado ritual em termos do discurso cerimonial diário da equipe sim-plesmente não será percebido pela equipe.

Além da profanação dos outros, os indivíduos, por várias razõese em várias situações dão a aparência de se profanarem, agindo deforma que parece propositalmente planejada para destruir a ima-gem que os outros têm deles como pessoas dignas de deferência. Amortificação cerimonial da carne é um tema em muitos movimentossociais. O que parece estar envolvido é não apenas um porte ruim,mas sim os esforços concentrados de um indivíduo sensível a altospadrões de porte para agir contra seus próprios interesses e explorararranjos cerimoniais apresentando-se da pior forma possível.

Em muitas enfermarias psiquiátricas, o que parece ser autopro-lanação para a equipe e outros pacientes é uma ocorrência comum.Por exemplo, podemos encontrar pacientes mulheres que sistemati-camente arrancaram todo o seu cabelo, apresentando-se a partir deentão com uma aparência que certamente será grotesca. Talvez aforma extrema para nossa sociedade seja encontrada em pacientesque comem as próprias fezes e se lambuzam com elas31.

30. SCHWARTZ, M.S. & STANTON, A.H. "A Social Psychological Study of Incon-tinence". Psychiatry, 13, 1959, p. 319-416.H. WITTKOWER, E.D. & LA TENDRESSE, J.D. "Rehabilitation of Chronic Schi-zophrenics by a New Method of Occupational Therapy". British Journal of MedicaiPsychoíogy, 28, 1955, p. 42-47.

E claro que a autoprofanação também ocorre no nível verbal.Assim, na Enfermaria A, os altos padrões de porte eram quebradospela paciente cega que na mesa às vezes forçava sobre os outros pre-sentes uma consideração de sua enfermidade falando, de forma co-miserada, sobre como ela era inútil para todos e que, não importa oque fosse dito, ela ainda era cega. Da mesma forma, na Enfermaria B,Betty tendia a comentar sobre como ela era feia, gorda, e como nin-guém a desejaria como namorada. Em ambos os casos, essas autode-preciações, levadas além do limite da autodepreciação educada,eram consideradas um peso sobre os outros: eles estavam dispostosa exercer uma evitação protetora por deferência em relação às limi-tações do indivíduo, e consideravam injusto serem forçados a umaintimidade contaminante com os problemas do indivíduo.

ConclusõesAs regras de conduta que ligam o ator e o receptor são os laços

da sociedade. Mas muitos dos atos orientados por essas regras ocor-rem com pouca frequência, ou levam um longo tempo para seremconsumados. Por isso, as oportunidades para afirmar a ordem morale a sociedade poderiam ser raras. É aqui que as regras cerimoniaisdesempenham sua função social, pois muitos dos atos que são ori-entados por essas regras duram apenas um breve momento, não en-volvem nenhuma despesa substantiva, e podem ser realizados emtoda interação social. Não importa qual seja a atividade, e nem oquão profanamente instrumental ela seja, ela pode permitir muitasoportunidades para pequenas cerimónias desde que outras pessoasestejam presentes. Através desses costumes, guiados por obrigaçõese expectativas cerimoniais, um fluxo constante de indulgências seespalha pela sociedade, com os outros presentes lembrando cons-tantemente o indivíduo de que ele precisa manter o controle sobre sienquanto uma pessoa de porte bom e afirmar a qualidade sagradadesses outros. Os gestos que às vezes chamamos de "vazios" talvezsejam, na realidade, as coisas mais cheias que existem.

Por isso é importante ver que o eu é, em parte, uma coisa cerimo-nial, um objeto sagrado que precisa ser tratado com o cuidado ritualapropriado e que por sua vez precisa ser apresentado aos outros sobuma luz apropriada. Enquanto um meio através do qual este eu é es-

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tabelecido, o indivíduo age com porte apropriado enquanto está emcontato com os outros e é tratado pelos outros com deferência. Tãoimportante quanto o que foi dito acima é compreender que se o indi-víduo quiser jogar esse tipo de jogo sagrado, então o campo precisaser adequado a isso. O ambiente precisa garantir que o indivíduo nãopagará um preço alto demais por agir com um porte bom e que ele re-ceberá deferência. As práticas de deferência e porte precisam ser ins-titucionalizadas para que o indivíduo consiga projetar um eu sagradoviável, e permanecer no jogo numa base ritual apropriada.

Um ambiente, então, em termos do componente cerimonial daatividade, é um lugar onde é fácil ou difícil jogar o jogo ritual de terum eu. Onde as práticas cerimoniais são completamente institucio-nalizadas, como eram na Enfermaria A, parece fácil ser uma pessoa.Quando essas práticas não estão estabelecidas, como até certo pontonão estavam na Enfermaria B, parece difícil ser uma pessoa. O por-quê de uma enfermaria acabar sendo um lugar em que é fácil ter umeu e a outra se tornar um lugar onde isso é difícil depende em partedo tipo de paciente que é recrutado e do tipo de regime que a equipetenta manter.

Uma das bases pelas quais hospitais psiquiátricos em todo oinundo segregam seus pacientes é o grau de "doença mental" facil-mente aparente. De modo geral, isto significa que os pacientes sãoclassificados de acordo cem o grau em que violam as regras cerimo-niais do intercurso social. Há razões práticas muito boas para se se-parar os pacientes em enfermarias diferentes dessa forma e, na ver-dade, uma instituição em que ninguém se incomoda em fazer isso éretrógrada. Entretanto, essa classificação muitas vezes significa queindivíduos que são desesperadamente incivis em algumas áreas decomportamento são colocados na companhia íntima daqueles quesão desesperadamente incivis em outras áreas. Assim, os indivíduosmenos prontos a projetar um eu sustentável são abrigados nummeio onde fazer isso é praticamente impossível.

É neste contexto que podemos reconsiderar alguns aspectos in-teressantes do efeito da coerção sobre o indivíduo. Se um indivíduoquiser agir com o porte apropriado e demonstrar a deferência apro-priada, então será necessário que ele tenha áreas de autodetermina-ção. Ele precisa ter um suprimento consumível das pequenas indul-

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gências que sua sociedade emprega em seu idioma de estima - comocigarros a dar, cadeiras a oferecer, comidas a fornecer, e assim pordiante. Ele precisa ter liberdade de movimento corporal para queseja possível assumir uma posição que comunique o respeito apro-priado pelos outros e o porte apropriado de sua própria parte; umpaciente amarrado numa cama terá dificuldades para não se sujar,quanto mais para se erguer na presença de uma dama. Ele precisater um suprimento de roupas limpas apropriadas se quiser aparecercomo se espera que uma pessoa de bom porte apareça. Essa aparên-cia pode necessitar de uma gravata, um cinto, cadarços, um espelhoe lâminas de barbear - todos objetos que as autoridades podem pre-ferir não dar a ele. Ele precisa ter acesso aos talheres que sua socie-dade define como apropriados para usar, e pode descobrir que é im-possível comer carne circunspectamente com uma colher de pape-lão. E, finalmente, ele precisa ser capaz, sem grandes custos para simesmo, de recusar certos tipos de trabalho, que agora às vezes sãoclassificados como "terapia industrial", que seu grupo social consi-dera infra dignitatem.

Quando o indivíduo é sujeitado a coerções extremas, ele é auto-maticamente forçado a sair do círculo do apropriado. Os veículossimbólicos ou fichas físicas através dos quais as cerimónias costu-meiras são realizadas não estão disponíveis para ele. Os outros po-dem demonstrar uma estima cerimonial p ira ele, mas se torna im-possível para ele retribuir a demonstração m agir de forma a se tor-nar digno de recebê-la. Os únicos enunciados cerimoniais possíveispara ele são aqueles inapropriados.

A história do cuidado de casos psiquiátricos é a história de dis-positivos de coerção: luvas de restrição, camisas de força, correntesno chão e em cadeiras, algemas, mordaças, envoltórios úmidos, ba-nheiros com supervisão, banhos de mangueira, roupas institucio-nais, alimentação sem garfos e facas, e assim por diante32. O uso des-ses dispositivos fornece informações importantes sobre as formasem que é possível retirar as bases cerimoniais de formação do eu.

32. Cf. THOMAS, W.R. "The Unwilling Patient". Journal of Medicai Science, 99,1953 esp. p. 193. • WALK, A. "Some Aspects of the 'Moral Treatmenf of the Insaneup to 1854". Journal oj'Medicai Science, 100, 1954, p. 191-201.

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Como consequência, podemos obter dessa história informações so-bre as condições que precisam ser satisfeitas se os indivíduos quise-rem ter eus. Infelizmente, hoje ainda existem instituições psiquiá-tricas onde o passado de outros hospitais pode ser estudado empiri-camente agora. Os estudantes da cerimónia interpessoal devem pro-curar essas instituições com urgência quase tão grande quantoaquela com que os estudantes de parentesco procuram culturas emdesaparecimento.

Neste capítulo, eu pressupus que podemos aprender sobre acerimónia estudando uma situação secular contemporânea - aquelado indivíduo que se recusa a empregar o idioma cerimonial de seugrupo de forma aceitável e foi hospitalizado. Numa visão intercultu-ral, é conveniente enxergar isto como um produto de nossa divisãode trabalho complexa que reúne os pacientes em vez de deixá-losem seu círculo local. Além disso, esta divisão de trabalho tambémreúne aqueles que têm a tarefa de cuidar destes pacientes.

Somos levados assim ao dilema especial do trabalhador hospita-lar: enquanto membro da sociedade mais ampla, ele deveria agir con-tra pacientes psiquiátricos, que transgrediram as regras dá ordem ce-rimonial; mas seu papel ocupacional o obriga a cuidar e exatamentedessas pessoas, e protegê-las. Quando a "terapia-miíieu" é enfatizada,essas obrigações adicionalmente requerem que ele comunique afei-ção em resposta à hostilidade; relação em resposta à alienação.

Nós vimos que os trabalhadores hospitalares precisam testemu-nhar condutas inapropriadas sem aplicar as sanções negativas co-muns, mas que eles precisam exercer uma coerção desrespeitosa so-bre seus pacientes. Uma terceira peculiaridade é que os membros daequipe podem ser obrigados a realizar serviços aos pacientes comotrocar meias, amarrar cadarços ou cortar unhas, que, fora do hospi-tal, geralmente comunicam uma deferência elaborada. No ambientedo hospital, é provável que tais atos comuniquem algo inapropria-do, já que o assistente ao mesmo tempo exerce certos tipos de podere superioridade moral sobre aqueles por quem é responsável. Umaúltima peculiaridade na vida cerimonial dos hospitais psiquiátricosé que os indivíduos desmoronam, tornando-se unidades de subs-tância cerimonial mínima, e os outros aprendem que aquilo queconsideravam entidades supremas evidentes na verdade são manti-

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das por regras que podem ser quebradas com certa impunidade. Talcompreensão, como aquelas transmitidas pela guerra ou pelo fune-ral de um parente, tende a não ser muito discutida, mas talvez tendatambém a unir a equipe e os pacientes, sem querer, num grupo quecompartilha um conhecimento indesejável.

Resumindo, então, a sociedade moderna coloca os transgresso-res da ordem cerimonial num único lugar, junto com alguns mem-bros comuns da sociedade que ganham a vida lá. Eles habitam umlugar de atos e entendimentos profanos, mas alguns deles ainda sãofiéis à ordem cerimonial fora do ambiente hospitalar. De algumaforma, as pessoas cerimoniais precisam desenvolver mecanismos etécnicas para viver sem alguns tipos de cerimónia.

Também sugeri que noções durkheimianas sobre a religião pri-mitiva podem ser traduzidas para conceitos de deferência e porte, eque esses conceitos nos ajudam a compreender alguns aspectos davida secular urbana. A consequência é que num certo sentido estemundo secular não é tão irreligioso quanto poderíamos pensar. Nósnos livramos de muitos deuses, mas o próprio indivíduo teimosa-mente continua a ser uma divindade de importância considerável.Ele anda com certa dignidade e recebe muitas pequenas ofertas. Eletem ciúme da veneração que lhe é devida, mas, se for abordado noespírito certo, está pronto a perdoar aqueles que podem ter lhe ofen-dido. Por causa da posição relativa a ele, algumas pessoas o conside-rarão contagioso, enquanto outras o contagiarão, em ambos os ca-sos percebendo que precisam tratá-lo com cuidado ritual. Talvez oindivíduo seja tão viável como um deus porque ele pode realmentecompreender a importância cerimonial da forma em que é tratado,e, sozinho, pode responder dramaticamente àquilo que lhe é ofere-cido. Nos contatos entre tais divindades não é necessário interme-diários; todos esses deuses são capazes de ser seu próprio sacerdote.

Constrangimento eorganização social

l

Um indivíduo pode reconhecer o constrangimento extremonos outros e até em si mesmo através dos sinais objetivos de per-turbação emocional: enrubescimento, balbucios, gaguejar, umavoz estranhamente aguda ou grave, a fala trémula ou entrecortada,suor, palidez, piscadelas, tremor das mãos, movimentos hesitantesou vacilantes, distração e disparates. Como Mark Baldwin notousobre a timidez, pode haver "um rebaixamento dos olhos, a cabeçapode se curvar, as mãos postas atrás das costas, os dedos podembatucar as roupas ou se torcer entre si, e a pessoa pode gaguejar,com certa incoerência da ideia expressa na fala"1. Também existemsintomas subjetivos: a constrição do diafragma, uma sensação decambaleio, a percepção de gestos forçados e não naturais, umasensação de tontura, boca seca, e tensão dos músculos. Em casosde embaraço leve, esses alvoroços visíveis e invisíveis ocorrem,mas de forma menos perceptível.

Na opinião popular, é natural estar tranquilo durante a intera-ção, e o constrangimento é um desvio lamentável do estado nor-mal. O indivíduo, de fato, pode dizer que se sentiu "natural" ou"não natural" na situação, o que quer dizer que ele se sentiu con-fortável na interação ou constrangido nela. Aquele que frequente-mente se constrange na presença de outros é considerado como al-

1. BALDWIN, J.M. Social and Ethical Interpretations in Mental Development. Lon-dres: [s.e.], 1902, p. 212.

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guém que sofre de uma tola sensação de inferioridade injustifica-da, e que precisa de terapia".

Para utilizar a síndrome do alvoroço na análise do constrangi-mento, precisamos primeiro distinguir os dois tipos de circunstân-cias em que ela ocorre. Primeiro, o indivíduo pode ficar alvoroça-do enquanto engajado numa tarefa que não tenha, por si mesma,nenhum valor particular para ele, com exceção de que seus inte-resses de longo alcance requerem que ele a realize com segurança,competência e diligência, e ele teme ser inadequado para a tarefa.O desconforto será sentido na situação, mas, num certo sentido,não por ela; de fato, muitas vezes o indivíduo não será capaz de li-dar com ela simplesmente por estar tão ansiosamente tomado pe-las eventualidades presentes além dela. É importante notar que oindivíduo pode "estremecer" mesmo que outras pessoas não este-jam presentes.

Este capítulo não se preocupará com essas ocasiões de vexameinstrumental, e sim com o tipo que ocorre em relação clara com apresença real ou imaginária de outras pessoas. Acima de tudo, oconstrangimento tem a ver com a figura que o indivíduo representadiante dos outros considerados presentes naquele momento. A pre-ocupação crucial é a impressão que se dá sobre os outros no presen-te - qualquer que seja a base de longo alcance ou inconsciente dessapreocupação. Essa configuração flutuante daqueles presentes é umgrupo de referência dos mais importantes.

2, Uma versão sofisticada é a posição psicanalitica de que o desconforto na intera-ção social é um resultado de expectativas de atenção impossíveis baseadas em ex-pectativas não resolvidas em relação ao apoio paterno. Supostamente, um dos obje-tivos da terapia é fazer com que o indivíduo enxergue seus sintomas sob a verdadei-ra luz psicanalitica, presumindo que talvez, a partir disto, ele não precisará deles(cf. SCHILDER, P. "The Social Neurosis". Psycho-Analytical Review, XXV, 1938, p.1-19). • PIERS, G. & SINGER, M. Shame and Guilt: A Psychoanalytical and a Cul-tural Study. Springfield: Charles C. Thomas, 1953, esp. p. 26. • RANGELL, L. "ThePsychology of Poise". International Journal of Psychoanalysis, XXXV, 1954, p.313-332. • FERENCZI, S. "Embarrassed Hands". Further Contríbutíons to the The-ory and Technique of Psychoanalysis. Londres: Hogarth, 1950, p. 315-316.

O vocabulário do constrangimentoUm encontro social é uma ocasião de interação face a face, co-

meçando quando os indivíduos reconhecem que se moveram para apresença imediata uns dos outros e terminando com uma retiradaaceitável da participação mútua. Os encontros variam consideravel-mente em seus propósitos, função social, tipo e número de partici-pantes, ambiente, etc. e, apesar de aqui tratarmos apenas de encon-tros conversacionais, obviamente existem aqueles em que nenhumapalavra é pronunciada. E ainda assim, pelo menos em nossa socie-dade anglo-americana, não parece existir um encontro social quenão possa se tornar constrangedor para um ou mais de seus partici-pantes, gerando o que às vezes é chamado de incidente ou vexame.Ao escutar essa dissonância, o sociólogo pode fazer generalizaçõessobre as formas em que a interação pode degringolar e, por implica-ção, sobre as condições necessárias para que a interação seja correta.Ao mesmo tempo, ele recebe boas evidências de que todos os encon-tros são membros de uma única classe natural, receptivos a um úni-co esquema de análise.

O incidente constrangedor é causado por quem? Ele è constran-gedor para quem? Esse constrangimento é sentido sobre quem? Nemsempre os participantes sentem constrangimento pelos apuros de umindivíduo; ele pode ocorrer por pares de participantes que estejamlendo dificuldades juntos, e mesmo pelo encontro como um todo.Além disso, se o indivíduo pelo qual sentimos constrangimento por-ventura é percebido como um representante responsável de algumal acção ou subgrupo (como muito frequentemente ocorre na intera-ção entre três ou mais pessoas), então é provável que os membrosdessa facção se sintam constrangidos, e sintam isso por si mesmos.Mas enquanto uma gafe ou umfauxpas podem significar que um úni-co indivíduo é ao mesmo tempo a causa de um incidente, aquele quese sente constrangido por ele, e aquele pelo qual ele sente constrangi-mento, este talvez não seja o caso típico, pois nessas questões as fron-ieiras do eu parecem ser particularmente fracas. Quando um indiví-duo se encontra numa situação que deveria fazê-lo corar, os outrospresentes normalmente também enrubescem com ele e por ele, mes-mo que ele possa não ter um sentimento de vergonha ou apreciaçãodas circunstâncias suficientes para corar sozinho.

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As palavras "constrangimento", "embaraço" e "desconforto"são usadas aqui num contínuo de significados. Algumas ocasiões deconstrangimento parecem ter um caráter orgástico abrupto; uma in-trodução repentina do evento perturbador é sucedida por um picoimediato na experiência do constrangimento e então por um retor-no lento à tranquilidade anterior, com todas as fases abrangendo umúnico encontro. Assim, um momento ruim danifica uma situaçãoque seria, de outra forma, eufórica.

No outro extremo, descobrimos que algumas ocasiões de cons-trangimento são mantidas no mesmo nível por todo o encontro, co-meçando quando a interação começa e durando até o término doencontro. Os participantes falam de uma situação desconfortável oudesagradável, mas não de um incidente constrangedor. Neste caso,é claro, o encontro inteiro se torna para um ou mais dos participan-tes um incidente que causa constrangimento. O constrangimentoabrupto pode muitas vezes ser intenso, enquanto o desconfortocontínuo é costumeiramente mais leve, envolvendo alvoroços quaseimperceptíveis. Um encontro que parece ter grande probabilidadede causar um constrangimento abrupto pode, por causa disso, lan-çar uma sombra de desconforto contínuo sobre os participantes,transformando o encontro inteiro num incidente.

Ao formar um retrato do indivíduo constrangido, baseamo-nosem um imaginário mecânico: o equilíbrio ou o autocontrole po-dem ser perdidos, a estabilidade pode ser derrubada. Sem dúvida,o caráter físico dos alvoroços parcialmente evoca esse imaginá-rio. De qualquer forma, um indivíduo completamente alvoroçadoé alguém que não consegue, no momento, mobilizar seus recursosmusculares e intelectuais para a tarefa diante de si, ainda que dese-je fazê-lo; ele não consegue oferecer uma resposta para aqueles aoseu redor que permitirá a eles manter a conversação com facili-dade. Ele e suas ações alvoroçadas bloqueiam a linha de atividadeque os outros estavam seguindo. Ele está presente com eles, masele não está "em jogo". Os outros podem ser forçados a parar e vol-tar sua atenção para o impedimento; o tópico da conversa é negli-genciado, e as energias são direcionadas para a tarefa de restabele-cer o indivíduo alvoroçado, de cuidadosamente ignorá-lo, ou desair da presença dele.

Conduzir-se confortavelmente na interação e estar alvoroçadoestão em oposição direta. Quanto mais houver de um, menos, demodo geral, haverá do outro; por isso, através do contraste, um dosmodos de comportamento pode esclarecer características do outro.A interação face a face em qualquer cultura parece necessitar exata-mente daquelas capacidades que o alvoroço parece certamente des-truir. Assim, eventos que levam ao constrangimento e os métodospara evitá-lo e dissipá-lo podem fornecer um esquema de análise so-ciológica que atravessa culturas.

O prazer ou desprazer que um encontro social gera para um indi-víduo, e a afeição ou hostilidade que ele sente pelos participantes, po-dem ter mais do que uma relação com sua compostura ou falta dela.Elogios, aclamações e recompensas repentinas podem colocar o re-ceptor num estado de confusão alegre, enquanto uma discussão aca-lorada pode ser provocada e mantida com o indivíduo sentindo-secomposto e em controle total de si o tempo todo. E, o que é mais im-portante, há um tipo de conforto que parece ser uma propriedade for-mal da situação e que tem a ver com a coerência e determinação comas quais o indivíduo assume um papel bem integrado e persegue ob-jetivos momentâneos que não têm nada a ver com o conteúdo daspróprias ações. Uma sensação de embaraço per se parece sempre serdesagradável, mas as circunstâncias que a geram podem ter conse-quências imediatas agradáveis para aquele que é embaraçado.

Apesar dessa relação variável entre desprazer e embaraço, pelomenos em nossa sociedade parecer alvoroçado é considerado provade fraqueza, inferioridade, posição baixa, culpa moral, derrota e ou-tros atributos nada invejáveis. E, como sugerido anteriormente, oalvoroço ameaça o próprio encontro ao perturbar a transmissão erecepção regular que sustenta os encontros. Quando o embaraçosurge de qualquer uma dessas fontes, o indivíduo alvoroçado com-preensivelrnente realizará algum esforço para ocultar seu estado dosoutros presentes. O sorriso fixo, o riso vazio nervoso, as mãos ocu-padas, o olhar para o chão que esconde a expressão dos olhos, tudoisso tornou-se famoso como sinais para ocultar o constrangimento.Nas palavras de Lorde Chesterfield:

Eles estão envergonhados em companhia, e tão descon-certados que não sabem o que fazem, e tentam mil tru-

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quês para manter a compostura; e esses truques acabamse tornando hábitos. Alguns levam seus dedos ao nariz,outros coçam a cabeça, outros giram seus chapéus; resu-mindo, todo corpo desajeitado e de má estirpe tem seustruques3.

Esses gestos são biombos que o indivíduo usa para se esconderenquanto tenta trazer seus sentimentos de volta ao ritmo, e a si pró-prio de volta ao jogo.

Tendo em vista o desejo do indivíduo de ocultar seu constrangi-mento, tendo em vista o ambiente e sua habilidade em cuidar de simesmo, ele pode parecer aprumado de acordo com alguns sinais ób-vios, mas demonstrar estar constrangido de acordo com sinais me-nos aparentes. Assim, ao fazer um discurso público, ele pode conse-guir controlar sua voz e passar uma impressão de tranquilidade,mas aqueles sentados ao seu lado na plataforma podem ver que suasmãos estão tremendo ou que tiques faciais estão desmentindo suaatitude bem composta.

Como o indivíduo não gosta de se sentir ou parecer constrangi-do, pessoas de bom ta to evitarão colocá-lo nessa posição. Além dis-so, elas muitas vezes fingirão não saber que ele perdeu a composturaou que tem motivos para perdê-la. Elas podem tentar suprimir sinaisde reconhecimento de seu estado ou ocultá-los por trás do mesmotipo de gesto de cobertura que ele pode empregar. Dessa forma elesprotegem a fachada e os sentimentos dele, e supostamente facilitamque ele recupere a compostura, ou pelo menos mantenha a que lhesobrou. Entretanto, assim como o indivíduo alvoroçado pode nãoconseguir ocultar seu constrangimento, aqueles que percebem seudesconforto podem fracassar em sua tentativa de ocultar seu conhe-cimento, e neste ponto todos perceberão que seu constrangimentofoi visto e que essa visão deveria ter sido ocultada. Quando alcança-mos esse ponto, o envolvimento costumeiro na interação pode che-gar a um fim doloroso. Em toda essa dança entre aquele que oculta eaqueles de quem se oculta, o constrangimento oferece o mesmoproblema e é tratado através das mesmas formas que qualquer outraofensa contra a boa propriedade.

3. Letters ofLord Chesterfidd to His Son. Nova York: E.P. Dutton & Co., 1929, p. 80.

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Parece haver um ponto crítico em que o indivíduo alvoroçadodesiste de tentar ocultar ou minimizar seu desconforto: ele cai nochoro ou em paroxismos de riso, tem um acesso de cólera, é acome-tido por uma fúria cega, desmaia, corre para a saída mais próxima,ou se torna completamente imóvel, como se estivesse em pânico.Depois disso, fica muito difícil recuperar a compostura. Ele respon-de a um novo conjunto de ritmos, característico da experiênciaemocional profunda, e dificilmente conseguirá passar mesmo umaleve impressão de que está unido aos outros na interação. Resumin-do, ele abdica de seu papel como alguém que mantém encontros. Omomento da crise é obviamente determinado socialmente; o pontode ruptura do indivíduo é aquele do grupo a cujos padrões emocio-nais ele adere. Em ocasiões raras, todos os participantes de um en-contro podem ultrapassar esse ponto e, em conjunto, serem incapa-zes de manter sequer uma ilusão de interação ordinária. O pequenosistema social que eles criaram na interação desaba; eles se separamou apressadamente tentam assumir um novo conjunto de papéis.

Os termos "aprumo", "sangue frio" e "pose", referindo-se à ca-pacidade de manter a compostura, devem ser diferenciados daquiloque é chamado de "gentileza", "tato" ou "habilidade social", a saber,a capacidade de evitar causar constrangimento a si próprio e aos ou-tros. O aprumo tem um papel importante na comunicação, pois elegarante que aqueles presentes não fracassem em desempenhar seuspapéis na interação e que continuarão, enquanto estiverem na pre-sença uns dos outros, a receber e transmitir comunicações discipli-nadas. Não surpreende que o teste de provocações seja algo por quelodo jovem passa até desenvolver uma capacidade de manter a com-postura4. Também não deve surpreender que muitos de nossos jo-gos e esportes comemorem os temas da compostura e do constran-

4. Uma forma interessante de institucionalização desse teste nos Estados Unidos,especialmente na sociedade dos negros de classe baixa, é "jogar as dúzias" [brinca-deira em que duas pessoas trocam insultos jocosos cada vez piores até que uma de-las não tenha uma resposta à altura-N.T.] (cf. DOLLARD, J. "Dialectic of Insult".American Imago, 1,1939, p. 3-25. • BERDIE, R.F.B. "Playing the Dozens". Journal ofAbnormal andSocial Psychology, XLH, 1947, p. 120-121. Sobre a provocação em ge-ru l , cf. SPERLING, SJ. "On the Psychodynamics of Teasing". Journal oftheAmeri-itin Psycho-analyitical Association, I, 1953, p. 458-483.

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gimento: no pôquer, uma mão duvidosa pode ser lucrativa para o jo-gador capaz de apresentá-la calmamente; no judo, luta-se especifi-camente pela manutenção e perda da compostura; no críquete, osjogadores devem manter o autocontrole e o "estilo" sob pressão.

É provável que o indivíduo saiba que certas situações especiaissempre o deixam desconfortável e que ele tem algumas relações"defeituosas" que sempre causam apreensão. Sua rotina diária deencontros sociais é, sem dúvida, em grande parte determinada porsuas obrigações sociais principais, mas ele se esforça um pouco paraencontrar situações que não serão constrangedoras e se desviar desituações que o serão. Um indivíduo que firmemente acredite quetem pouco aprumo, talvez até exagerando seu defeito, é tímido eacanhado; temendo todos os encontros, ele busca sempre encur-tá-los ou evitá-los completamente. O gago é um exemplo dolorosodisto, mostrando-nos o preço que o indivíduo pode estar disposto apagar por sua vida social5.

Causas do constrangimentoO constrangimento tem a ver com expectativas não realizadas

(mas não com aquelas do tipo estatístico). Levando em considera-ção suas identidades sociais e o ambiente, os participantes sentirãoque tipo de conduta deveria ser mantida como a apropriada, pormais que eles possam não ter esperança de que ela realmente acon-tecerá. Um indivíduo pode firmemente esperar que certos outros odeixarão desconfortável, e ainda assim esse conhecimento pode au-mentar seu embaraço em vez de diminuí-lo. Um estalo completa-mente inesperado de engenharia social pode salvar uma situação,sendo eficiente exalamente porque não foi previsto.

Então, as expectativas relevantes para o constrangimento sãomorais, mas o constrangimento não surge da ruptura de qualquerexpectativa moral, pois algumas infrações geram indignação moralresoluta, e nenhum desconforto. Em vez disso, devemos procuraraquelas obrigações morais que envolvem o indivíduo em apenas

5. Cf. HELTMAN, H.J. "Psycho-social Phenomena of Stuttering and Their Etiologi-cal and Therapeutic Implica tions". Journal of Social Psycliology, IX, 1938, p. 79-96.

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uma de suas capacidades, aquela de alguém que desempenha en-contros sociais. É claro que o indivíduo é obrigado a se manter bemcomposto, mas isto nos diz que as coisas estão indo bem, e não porque isto ocorre. E as coisas vão bem ou mal por causa daquilo que épercebido sobre as identidades sociais daqueles presentes.

Durante a interação, esperamos que o indivíduo possua certosatributos, capacidades e informações que, em conjunto, se encaixemnum eu que, ao mesmo tempo, é unificado coerentemente e apro-priado para a ocasião. Através das implicações expressivas de seufluxo de conduta, da simples participação, o indivíduo efetivamenteprojeta esse eu aceitável na interação, ainda que ele não o perceba, eque os outros não percebam que interpretaram sua conduta dessaforma. Ao mesmo tempo, ele precisa aceitar e honrar os eus projeta-dos pelos outros participantes. Os elementos de um encontro social,então, consistem em reivindicações efetivamente projetadas de umeu aceitável e a confirmação de reivindicações semelhantes da partedos outros. As contribuições de todos estão orientadas para elas, esão construídas tendo-as como base.

Quando um evento coloca essas reivindicações em dúvida, ou asenfraquece, o encontro então se encontra alojado em suposições quenão valem mais. As respostas que as partes prepararam agora estãofora de lugar e precisam ser engolidas, e a interação precisa ser re-construída. Em tais momentos, o indivíduo cujo eu foi ameaçado (oindivíduo por quem se sente constrangimento) e o indivíduo que oameaçou podem ambos se sentir envergonhados daquilo que causa-ram, compartilhando esse sentimento exatamente quando têm razõespara se sentir separados. E essa responsabilidade conjunta é apropria-da. Segundo os padrões da sociedade em geral, talvez apenas o indiví-duo desacreditado deveria se sentir envergonhado; mas, pelos pa-drões do pequeno sistema social mantido através da interação, aqueleque o desacredita é tão culpado quanto a pessoa que ele desacredita -às vezes até mais, pois se ele estava posando como um homem debom ta to, ao destruir a imagem de outro ele destrói a sua própria.

Mas é claro que os problemas não terminam com o par culpadonem com aqueles que se identificaram em simpatia com eles. Nãolendo nenhum objeto legítimo ou confirmado ao qual podem ancorarsua própria união, os oulros se enconlram sólios e embaraçados. É

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por isso que o constrangimento parece ser contagioso, espalhan-do-se, depois de começar, em círculos cada vez maiores de embaraço.

Há várias circunstâncias clássicas em que o eu projetado por umindivíduo pode ser desacreditado, causando vergonha e constrangi-mento sobre o que ele fez ou parece ter feito consigo mesmo e com ainteração. Experimentar uma mudança repentina de posição, comoatravés do casamento ou de uma promoção, é adquirir um eu que osoutros indivíduos não admitirão completamente devido à sua liga-ção remanescente com o eu antigo. Pedir um emprego, um emprés-timo de dinheiro, ou uma mão em casamento é projetar uma ima-gem do eu como digno, sob condições em que aquele que pode de-sacreditar a suposição pode ter bons motivos para fazê-lo. Fingir tero estilo de superiores profissionais ou sociais é fazer reivindicaçõesque podem muito bem ser desacreditadas pela falta de familiaridadecom o papel.

A própria estrutura física de um encontro normalmente recebecertas implicações simbólicas, às vezes levando um participante,contra a sua vontade, a projetar reivindicações sobre si mesmo quesão falsas e constrangedoras. A proximidade física facilmente impli-ca proximidade social, como sabe qualquer um que já tenha se en-contrado numa reunião íntima em que não deveria estar, ou que te-nha se encontrado forçado a "bater papo" fraternalmente com al-guém superior ou inferior ou estranho demais para ser um irmão.Da mesma forma, se a conversa deve ocorrer, alguém deve iniciá-la,alimentá-la e terminá-la; e esses atos podem incomodamente suge-rir posições e poder que não condizem com os fatos.

Vários tipos de encontros recorrentes numa certa sociedade po-dem compartilhar da suposição de que os participantes alcançaramcertos padrões morais, mentais e fisionómicos. A pessoa que nãoatinge esses padrões pode, em todos os lugares, encontrar-se força-da, sem querer, a fazer reivindicações de identidade implícitas queela não pode cumprir. Comprometida em todos os encontros de queparticipa, ela realmente usa um sino de leproso. O indivíduo quemais se isola de contatos sociais pode então ser o menos isolado dasexigências da sociedade. E, se ele apenas imagina que possui umatributo que o desqualifica, sua avaliação de si mesmo pode estarequivocada, mas, levando-a em consideração, sua fuga dos contatos

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é compreensível. De qualquer forma, ao decidir se as bases da timi-dez de um indivíduo são reais ou imaginárias, não devemos procu-rar desqualificações "justificáveis", e sim o conjunto de característi-cas muito maior que realmente constrange encontros.

Em todos esses ambientes, a mesma coisa fundamental ocorre:os fatos expressivos presentes ameaçam ou desacreditam as suposi-ções que um participante descobre que projetou sobre a sua identi-dade6. A partir desse ponto, aqueles presentes descobrem que nãopodem nem ficar sem as suposições nem basear suas próprias res-postas nelas. A realidade inabitável se encolhe até que todos se sin-tam "pequenos" ou deslocados.

É preciso notar uma complicação adicional. Muitas vezes, oca-siões cotidianas importantes de constrangimento surgem quando oeu projetado é, de alguma forma, confrontado com outro eu que,ainda que válido em outros contextos, aqui não pode ser mantidoem harmonia com o primeiro. O constrangimento então nos levapara a questão da "segregação de papéis". Cada indivíduo tem maisde um papel, mas ele é salvo do dilema de papéis pela "segregaçãoda plateia", pois, normalmente, aqueles diante de quem ele desem-penha um de seus papéis não serão os indivíduos diante de quem eledesempenha outro, permitindo que ele seja uma pessoa diferenteem cada papel sem desacreditar nenhum dos dois.

Entretanto, todo sistema social tem momentos e lugares em quea segregação de plateia se desfaz e onde indivíduos se confrontamcom eus incompatíveis com aqueles que estendem um para o outroem outras ocasiões. Nesses momentos, o constrangimento, especi-almente do tipo leve, demonstra estar localizado não no indivíduo,mas no sistema social em que ele tem vários eus.

6. Além de seus outros problemas, ele desacreditou sua reivindicação implícita deaprumo. Ele então sentirá que tem motivos para se constranger pelo seu constran-gimento, mesmo que ninguém presente possa ter percebido os estágios anterioresde seu embaraço. Mas é preciso notar um senão. Quando um indivíduo, ao receberum elogio, se enrubesce de modéstia, ele pode perder sua reputação de aprumo,mas ganhar uma mais importante, a de ser modesto. Sentindo que não deve se en-vergonhar de seu vexame, seu constrangimento não o levará a se constranger. Poroutro lado, quando o constrangimento é claramente esperado como uma respostaapropriada, aquele que não se constrange pode parecer insensível e por isso seconstranger por causa dessa aparência.

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O domínio do constrangimentoComeçando com considerações psicológicas, chegamos depois

de alguns estágios a um ponto de vista sociológico estrutural. Temosprecedentes de antropólogos sociais e suas análises de piadas e evita-ção. Pressupomos que o constrangimento é uma parte normal da vidasocial normal, e o indivíduo fica desconfortável não porque ele é pes-soalmente desajustado, mas sim porque ele não o é; supostamentequalquer um em sua combinação de posições faria o mesmo. Num es-tudo empírico de um sistema social particular, o primeiro objetivo se-ria aprender quais categorias de pessoas ficam constrangidas em quaissituações recorrentes. E o segundo objetivo seria descobrir o queaconteceria com o sistema social e o esquema de obrigações se oconstrangimento não fosse incorporado sistematicamente nele.

Podemos citar um exemplo da vida social de estabelecimentosde grande escala - prédios de escritórios, escolas, hospitais, etc.Aqui, em elevadores, corredores e cafeterias, em bancas de jornal,máquinas de refrigerantes, balcões de lanches e entradas, todos osmembros estão muitas vezes em condições iguais, ainda que distan-tes7. Nos termos de Benoit-Smullyan, expressa-se o situs, e não o sta-tus ou o Zocus8. Atravessando essas relações de igualdade e distânciaestá outro conjunto de relações que surge em equipes de trabalhocujos membros são classificados através de coisas como prestígio eautoridade, mas ainda assim unidos pela atividade conjunta e co-nhecimento pessoal uns dos outros.

Em muitos estabelecimentos grandes, jornadas de trabalho es-calonadas, cafeterias segregadas e medidas semelhantes ajudam agarantir que aqueles que têm posições distintas e estão próximos emum conjunto de relações não terão que se encontrar em situações fi-

7. Essa participação igual e conjunta numa grande organização é muitas vezes cele-brada anualmente na festa do escritório e em esquetes dramáticos amadores, quesão realizados excluindo-se declaradamente forasteiros e misturando as posiçõesdos participantes.8. BENOIT-SMULLYAN, É. "Status, Status Types, and Status Interrelations". Ame-rican Sociológica! Review, IX, 1944, p. 151-161. De certa forma, a afirmação de per-tencimento institucional igual é reforçada pela regra em nossa sociedade de quehomens devem mostrar certas pequenas cortesias para mulheres; todos os outrosprincípios, como distinções entre grupos raciais e categorias profissionais, devemser suprimidos. O efeito é a ênfase no situs e na igualdade.

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sicamente íntimas quando deveriam esperar manter a igualdade e adistância. Entretanto, a orientação democrática de alguns de nossosestabelecimentos mais recentes tende ajuntar membros de posiçõesdiferentes da mesma equipe de trabalho em lugares como a cafete-ria, o que causa desconforto. Não há como eles agirem de forma anão perturbar um dos dois conjuntos básicos de relações que elestêm uns com os outros. É muito provável que essas dificuldadesocorram em elevadores, pois neles indivíduos que não se sentemexatamente confortáveis para conversar precisam passar um tempojuntos demais para ignorar a oportunidade de conversas informais -um problema que alguns, é claro, resolvem através de elevadoresexecutivos especiais. O constrangimento, então, é incorporado eco-logicamente ao estabelecimento.

O indivíduo, por possuir eus múltiplos, pode descobrir que énecessário que ele ao mesmo tempo esteja presente e não esteja pre-sente em certas ocasiões. O resultado é o constrangimento: o indiví-duo se encontra sendo dilacerado, ainda que isto possa ocorrer deforma muito gentil. A oscilação de seu eu corresponde à oscilaçãode sua conduta.

A função social do constrangimentoQuando o eu projetado de um indivíduo é ameaçado durante a

interação, ele pode, com aprumo, suprimir todos os sinais de vergo-nha e constrangimento. Nenhum alvoroço, nem os esforços paraocultá-lo, perturba o fluxo regular do encontro; os participantes po-dem proceder como se nenhum incidente tivesse ocorrido.

Entretanto, quando as situações são salvas, algo importantepode ser perdido. Ao demonstrar constrangimento quando ele nãopode ser nenhuma das duas pessoas, o indivíduo abre a possibilidadede no futuro poder efetivamente ser uma delas9. O papel dele na inte-

9. Um argumento semelhante foi apresentado por Samuel Johnson em seu artigo"Of Bashfulness". The Rambler, n. 139, 1751: "Normalmente é o caso que a segu-rança consegue acompanhar a habilidade; e o medo do malogro, que prejudica nos-sas primeiras tentativas, dissipa-se gradualmente quando nossa perícia avança emdireção à certeza do sucesso, O acanhamento, então, que impede a desgraça, aquelacurta vergonha temporária que nos protege contra o perigo da censura duradoura,não pode ser incluído apropriadamente como uma de nossas infelicidades".

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ração atual pode ser sacrificado, e talvez até o próprio encontro, masele demonstra que, apesar de não conseguir apresentar um eu sus-tentável e coerente nesta ocasião, ele pelo menos está perturbadopelo fato e pode se provar digno em outro momento. Neste sentido,o constrangimento não é um impulso irracional destruindo o com-portamento prescrito socialmente, e sim parte desse próprio com-portamento ordenado. Alvoroços são um exemplo extremo dessaclasse importante de atos que normalmente são bastante espontâneose ainda assim nem mais nem menos necessários e obrigatórios queatos realizados constrangidamente.

Por trás de um conflito de identidade está um conflito mais fun-damental, um conflito de princípio organizacional, pois o eu, paramuitos propósitos, consiste apenas da aplicação de princípios orga-nizacionais legítimos para o nosso eu. Construímos nossa identida-de a partir de reivindicações que, se forem negadas, dão-nos o direi-to de nos sentirmos justificadamente indignados. Por trás das rei-vindicações de um aprendiz de participação completa no uso de cer-tas instalações da fábrica está o princípio organizacional: todos osmembros do estabelecimento são iguais de certas formas qua mem-bros. Por trás da reivindicação do especialista de reconhecimento fi-nanceiro apropriado está o princípio de que é o tipo de trabalho, enão meramente o trabalho, que determina a posição. Os balbuciesdo aprendiz e do especialista quando chegam à máquina de Co-ca-Cola ao mesmo tempo expressam uma incompatibilidade de

, . . . . 1 0princípios organizacionais .É provável que os princípios de organização de qualquer siste-

ma social entrem em conflito em certos pontos. Em vez de permitirque o conflito seja expresso num encontro, o indivíduo se colocaentre os princípios opostos. Ele sacrifica sua identidade por um mo-

10. Em tais momentos às vezes ocorrem "caçoadas" [joshing]. Dizem que isto é ummeio de liberar a tensão causada ou pelo constrangimento ou por que quer que te-nha causado o constrangimento. Mas em muitos casos esse tipo de brincadeira éuma forma de dizer que aquilo que ocorre agora não é sério nem real. O exagero, oinsulto fingido, as reivindicações falsas - tudo isto reduz a seriedade do conflito aonegar a realidade da situação. E é claro que é isto, de outra forma, que o constrangi-mento faz. É natural, então, encontrarmos o constrangimento junto com piadas,pois ambos ajudam a negar a mesma realidade.

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mento, e às vezes sacrifica o encontro, mas os princípios são preser-vados. Ele pode ser moído entre suposições opostas, impedindo as-sim uma fricção direta entre elas, ou ele pode ser quase esquarteja-do, de forma que princípios com pouca relação entre si possam ope-rar juntos. A estrutura social ganha elasticidade; o indivíduo mera-mente perde compostura.

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A alienação da interação

1. IntroduçãoQuando o indivíduo em nossa sociedade anglo-americana se

engaja num encontro conversacional com outras pessoas, ele podeficar espontaneamente envolvido nele. Ele pode mergulhar de for-ma impensada e impulsiva na conversa e ser levado por ela, esqueci-do de outras coisas, incluindo de si mesmo. Esteja ele com um en-volvimento intenso que não é perturbado facilmente, ou com umenvolvimento leve do qual ele facilmente se distrai, o tópico da con-versa pode formar o principal foco de sua atenção cognitiva e o ora-dor atual pode formar o principal foco de sua atenção visual. O efei-to hipnótico e vinculador de tal envolvimento é ilustrado pelo fatode que, enquanto assim envolvido, o indivíduo pode se engajar si-multaneamente em outras atividades dirigidas a um objetivo (mas-car chiclete, fumar, encontrar uma posição confortável na cadeira,realizar tarefas repetitivas, etc.), mas gerência esses envolvimentoslaterais de forma abstraída, como uma fuga musical, para que elesnão o distraiam de seu foco de atenção principal.

É claro que o indivíduo, como uma criança ou um animal, podeficar espontaneamente envolvido em tarefas solitárias não sociáveis.Quando isto ocorre, a tarefa se torna ao mesmo tempo leve e pesada,dando a seu realizador um senso firme de realidade. Entretanto,enquanto um foco principal de atenção a conversa é algo único,pois ela cria para o participante um mundo e uma realidade quetem outros participantes nela. O envolvimento conjunto espontâ-neo é uma unio mystico, um transe socializado. Precisamos tam-bém perceber que uma conversação tem vida própria e faz exigên-cias em seu nome. Ela é um pequeno sistema social com suas pró-

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prias tendências de manutenção de fronteiras; ela é um pedacinhode compromisso com seus próprios heróis1 e vilões.

Tomando o envolvimento conjunto espontâneo como um pon-to de referência, eu quero discutir como esse envolvimento podenão conseguir ocorrer e a consequência desse fracasso. Eu querotratar das formas pelas quais o indivíduo pode se alienar de um en-contro conversacional, o desconforto que surge disto, e a conse-quência dessa alienação e desse desconforto para a interação. Comoa alienação pode ocorrer em relação a qualquer conversa imaginá-vel, talvez possamos aprender com ela algo sobre as propriedadesgenéricas da interação falada.

2. Obrigações de envolvimentoQuando indivíduos estão na presença imediata um do outro,

uma multidão de palavras, gestos, atos e eventos menores se tornadisponível, desejada ou não, através da qual alguém que está pre-sente pode, intencionalmente ou não, simbolizar seu caráter e suasatitudes. Em nossa sociedade prevalece um sistema de etiqueta quedirige o indivíduo a lidar com estes eventos de forma conveniente,projetando através deles uma imagem de si corre ta, um respeitoapropriado pelos outros presentes e uma consideração adequadapelo ambiente. Quando o indivíduo quebra uma regra de etiqueta,intencionalmente ou não, os outros presentes podem se mobilizarpara restaurar a ordem cerimonial, de forma parecida com aquelautilizada quando outros tipos de ordem social são transgredidos.

Através da ordem cerimonial que é mantida por um sistema deetiqueta, a capacidade do indivíduo de ser levado por uma conversase torna socializada, assumindo uma carga de valor ritual e função so-cial. A escolha do foco principal de atenção, a escolha dos envolvi-

1. Um dos heróis é o dito que pode introduzir referências a questões mais amplas eimportantes de uma forma inefavelmente apropriada ao momento de conversa atu-al. Como o dito espirituoso nunca mais será relevante da mesma forma, ofereceu-seum sacrifício à conversa, e prestou-se respeito à sua realidade única através de umato que mostra o quão completamente o ator está atento à interação.

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mentos laterais e a intensidade do envolvimento são confinadas porcoerções sociais, de forma que algumas alocações de atenção se tor-nam socialmente apropriadas e outras alocações são inapropriadas.

Há muitas ocasiões em que o indivíduo que participa de umaconversação descobre que ele e os outros estão presos juntos atravésde obrigações de envolvimento em relação à conversação. Ele passaa sentir que é definido como apropriado (e por isso ou desejável porsi mesmo ou prudente) dar seu foco principal de atenção à conver-sa, e ficar espontaneamente envolvido nela, enquanto ao mesmotempo ele sente que cada um dos outros participantes tem a mesmaobrigação. Devido à ordem cerimonial em que suas ações estão inse-ridas, ele pode descobrir que qualquer alocação alternativa de en-volvimento de sua parte será considerada uma descortesia e lançaráum reflexo indesejado sobre os outros, sobre o ambiente, ou sobre simesmo. E ele descobrirá que sua ofensa foi cometida na própria pre-sença daqueles ofendidos por ela. Aqueles que quebram as regras dainteração cometem seus crimes já na cadeia.

A tarefa de ficar espontaneamente envolvido em alguma coisa,quando ela é um dever para si mesmo ou para os outros, é uma coisadifícil, como todos nós sabemos através de nossa experiência comtarefas monótonas ou ameaçadoras. As ações do indivíduo precisamacontecer para satisfazer suas obrigações de envolvimento, masnum certo sentido ele não pode agir exatamente para satisfazer essasobrigações, pois tal esforço necessitaria de que ele mudasse suaatenção do tópico da conversação para o problema de estar esponta-neamente envolvido nela. Aqui, num componente de impulsividadenão racional - não apenas tolerada mas na realidade exigida - des-cobrimos uma forma importante pela qual a ordem da interação dis-tingue-se de outros tipos de ordem social.

A obrigação do indivíduo de manter o envolvimento espontâ-neo na conversação e a dificuldade de fazer isso o colocam numa po-sição delicada. Ele é salvo por seus coparticipantes, que controlamsuas próprias ações para que ele não seja forçado a sair do envolvi-mento apropriado. Mas, assim que ele for resgatado, ele terá queresgatar outra pessoa, e por isso seu trabalho de participante da inte-ração se complica ainda mais. Aqui, então, está um dos aspectosfundamentais do controle social na conversação: o indivíduo deve

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não apenas manter seu próprio envolvimento, mas também agir deforma a garantir que os outros mantenham o deles. É isto que o indi-víduo deve aos outros em sua capacidade de participantes da intera-ção, independentemente do que quer que seja devido a eles em quais-quer outras capacidades em que eles participem, e é esta obrigaçãoque nos diz que, não importa que papel social um indivíduo desem-penhe durante um encontro, ele além disso terá que cumprir o pa-pel de participante da interação.

O indivíduo terá razões aprovadas e não aprovadas para cumprirsua obrigação enquanto participante da interação, mas em todos oscasos, para fazê-lo, ele precisa ser capaz de rápida e delicadamente as-sumir o papel dos outros e sentir as qualificações que a situação delesdeve trazer para a sua própria conduta para que eles não sejam atra-palhados por ela. Ele deve, simpaticamente, ter consciência dos tiposde coisas nas quais os outros presentes podem se envolver espontâ-nea e apropriadamente, e então tentar modular sua expressão de ati-tudes, sentimentos e opiniões de acordo com a companhia.

Assim, como Adam Smith afirmou em sua Teoria dos sentimen-tos morais, o indivíduo deve frasear suas próprias preocupações,sentimentos e interesses de forma que eles sejam maximamente uti-lizáveis pelos outros como uma fonte de envolvimento apropriado,e esse dever importante do indivíduo enquanto participante da inte-ração é equilibrado por seu direito de esperar que os outros presen-tes realizarão algum esforço para incitar suas simpatias e colocá-lasao comando dele. Essas duas tendências, a do orador de diminuirsuas expressões e a dos ouvintes de aumentar seus interesses, ambassob a luz das capacidades e exigências dos outros, formam a ponteque as pessoas constróem umas para as outras, permitindo-as se en-contrar, através de um momento de fala, numa comunhão de envol-vimento mantido reciprocamente. É essa fagulha, e não os tiposmais óbvios de amor, que ilumina o mundo.

3. As forr as de alienaçãoSe tomar nos o envolvimento espontâneo conjunto num tópico

de conversarão como um ponto de referência, descobriremos que aalienação em relação a esse ponto é bastante comum. O envolvi-mento conjunto parece ser uma coisa frágil, com pontos-padrão de

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fraqueza e decadência, um estado instável precário que, provavel-mente, em qualquer momento pode levar o indivíduo a alguma for-ma de alienação. Como estamos tratando do envolvimento obriga-tório, as formas de alienação constituirão um desvio de comporta-mento de um tipo que pode ser chamado de "envolvimento erró-neo" [misinvolvemení]. Podemos discorrer agora sobre algumas dasformas-padrão de envolvimento erróneo alienante.

1) Preocupação externa. O indivíduo pode negligenciar o foco deatenção prescrito e focar sua preocupação principal em algo que nãoestá ligado àquilo que está sendo discutido no momento, e que podeaté não estar ligado às outras pessoas presentes, pelo menos em suacapacidade de colegas participantes. O objeto da preocupação do in-divíduo pode ser algo com o que ele deveria ter parado de se ocuparao entrar na interação, ou algo que só pode ser considerado apropria-damente mais tarde no encontro, ou depois do término deste. A pre-ocupação também pode assumir a forma de um aparte furtivo entreo indivíduo e um ou dois outros participantes. O indivíduo pode atéestar preocupado com um padrão vago de atividade profissional queele não pode manter por causa de sua obrigação de participar da in-teração.

O grau de ofensa da preocupação do indivíduo varia de acordocom o tipo de desculpa que os outros sentem que ele tem por ela.Em um extremo, está a preocupação que é considerada bastante vo-luntária, quando o ofensor passa a impressão de que poderia facil-mente dar sua atenção para a conversação, mas propositadamentese recusa a fazê-lo. No outro extremo, há a preocupação "involuntá-ria" , uma consequência do envolvimento compreensivelmente pro-fundo do ofensor com assuntos vitais fora da interação.

Indivíduos que têm desculpas que permitiriam que eles se reti-rassem de uma conversação muitas vezes permanecem leais e se re-cusam a fazer isto. Através desse ato eles demonstram um belo res-peito pelos colegas participantes e afirm; m as regras morais quetransformam pessoas socialmente responsáveis em pessoas quetambém são interativamente responsáveis. Obviamente, é atravésde tais regras e tais gestos reafirmadores que a sociedade se torna se-gura para os pequenos mundos sustentados em encontros face a

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face. Na verdade, parece que todas as culturas têm histórias exem-plares para ilustrar a dignidade e o peso que pode ser dado a essasrealidades passageiras; em todos os lugares encontramos a celebra-ção de um Drake que galantemente termina algum tipo de jogo an-tes de ir enfrentar algum tipo de Armada , e em todos os lugares te-mos algum fora da lei que é cativantemente civil com todos aquelesque rouba e com aqueles que depois o enforcam por isso3.

2) Consciência de si mesmo [self-consciousness]. Ao custo de seuenvolvimento no foco de atenção prescrito, o indivíduo pode focarsua atenção mais do que deveria sobre si mesmo — o si mesmo comoalguém que está se saindo bem ou mal, como alguém evocando umaresposta desejável ou indesejável dos outros. É claro que é possívelque o indivíduo se estenda sobre si mesmo como um tópico de con-versação - sendo autocentrado, desta forma -, mas ainda assim nãoexiba consciência de si mesmo. Parece que a consciência de si mes-mo para o indivíduo não resulta de seu interesse profundo no tópicoda conversação quando o tópico é ele mesmo, e sim quando ele dáatenção a si mesmo enquanto um participante da interação nummomento em que deveria estar livre para se envolver no conteúdoda conversação.

Devemos adicionar um enunciado geral sobre as fontes da cons-ciência de si mesmo. Durante a interação, o indivíduo normalmenterecebe, dos outros e de eventos impessoais na situação, uma ima-gem e avaliação de si que é pelo menos temporariamente aceitávelpara ele. Ele pode então voltar sua atenção para questões menos ín-timas. Quando essa definição do eu é ameaçada, o indivíduo tipica-mente retrai a atenção da interação num esforço apressado para cor-rigir o incidente que ocorreu. Se o incidente ameaça aumentar sua

2. Referência a Francis Drake, pirata e vice-almirante inglês que participou dabatalha contra a Armada espanhola que fracassou em invadir a Inglaterra em1588 [N.T.],3. Mas diferentes estratos da mesma sociedade podem ter preocupações diferentesquanto a seus membros aprenderem a se projetar em encontros; a tendência a man-ter conversas vivas e animadas pode ser uma forma pela qual alguns estratos, nãonecessariamente adjacentes, são caracteristicamente diferentes de outros.

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posição na interação, a fuga para a consciência de si mesmo pode seruma forma de regozijo; se o incidente ameaça rebaixar sua posição edanificar ou desacreditar sua autoimagem de alguma forma, então afuga para a consciência de si mesmo pode ser uma forma de prote-ger o eu e assoprar suas feridas. Enquanto fonte de consciência de simesmo, a ameaça da perda parece ser mais importante e comum doque a ameaça de ganho.

Seja qual for a causa da consciência de si mesmo, todos nós co-nhecemos as vacilações da ação e os alvoroços através dos quais elaé expressa; todos nós conhecemos o fenómeno do constrangimento.

Podemos pensar a consciência de si mesmo como um tipo depreocupação com questões internas ao sistema social interativo e,como tal, ela recebeu mais consideração de senso comum do queoutros tipos de preocupação interna. Na verdade, não temos pala-vras de senso comum para nos referir a estes outros tipos de envol-vimento impróprio. Eu me referirei a duas formas deles como"consciência da interação" e "consciência dos outros" para enfatizaruma similaridade com a consciência de si mesmo.

3) Consciência da interação. Um participante de conversaçõespode se tornar conscientemente preocupado num grau inapropria-do com a forma em que a interação, enquanto interação, está ocor-rendo, em vez de se envolver espontaneamente com o tópico deconversação oficial. Como a consciência da interação não é tão fa-mosa como a consciência de si mesmo, podemos citar algumas fon-tes dela como exemplos.

Uma fonte comum de consciência da interação está relacionadacom a responsabilidade especial que um indivíduo pode ter paraque a interação "caminhe bem", quer dizer, evocar o tipo apropria-do de envolvimento daqueles presentes. Assim, num pequeno ajun-tamento social, pode-se esperar que a anfitriã se junte a seus convi-dados e se envolva espontaneamente na conversação que eles estãomantendo, mas, ao mesmo tempo, se a ocasião tiver problemas, ela,mais do que os outros, será considerada responsável pelo fracasso.Como consequência, ela às vezes se preocupa tanto com a maquina-ria social da ocasião e com o desenrolar da noite como um todo, quefica impossível para ela se entregar à sua própria festa.

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Podemos mencionar outra fonte comum da consciência de inte-ração. Quando os indivíduos entram numa conversação, eles sãoobrigados a continuá-la até terem o tipo de base para se retrair queneutralizará as implicações possivelmente ofensivas de abandonaros outros. Enquanto engajados na interação, será necessário queeles tenham assuntos à disposição para conversar que se encaixemcom a ocasião e também forneçam conteúdo suficiente para mantera conversa em ação; em outras palavras, eles precisam de suprimen-tos seguros4. Aquilo que chamamos de "papo furado" serve para estepropósito. Quando os indivíduos acabam com seu papo furado, elesse encontram presos oficialmente num estado de fala mas sem nadapara conversar; a consequência típica é a consciência da interaçãoexperimentada como um "silêncio doloroso".

4) Consciência dos outros. Durante a interação, o indivíduo podese distrair devido a outro participante como um objeto de atenção -exatamente como no caso da consciência de si mesmo, ele pode sedistrair devido à preocupação com si mesmo .

Se o indivíduo descobre que sempre que está na presença conver-sacional de certas outras pessoas, elas fazem com que ele tenha cons-ciência demais delas à custa do envolvimento prescrito no tópico deconversação, então elas podem adquirir a reputação, aos seus olhos,de serem participantes defeituosos da interação, especialmente se elesente que não está sozinho nos problemas que tem com eles. É prová-vel que ele então impute certas características àqueles que são perce-bidos dessa forma, fazendo isto para explicar e justificar a distraçãoque eles causam a ele. Será útil, para a nossa compreensão da intera-ção, listar alguns dos atributos imputados dessa forma.

Com os termos "afetação" e "insinceridade" o indivíduo tende aidentificar aqueles que parecem fingir através de gestos aquilo queeles esperam que ele aceite como um fluxo expressivo não planeja-

4. O problema dos suprimentos seguros é analisado com mais profundidade emminha Communication Conduct in an Island Community. Chicago: University ofChicago, 1953, cap. XV [tese de doutorado inédita].5. A consciência dos outros é tratada breve, mas explicitamente em BALDWIN, J. Soci-al andEthical Interpretatians in Mental Development. Londres: [s.e.], 1902, p. 213-214.

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do de seu comportamento. A afetação, como sugere Cooley, "[...]existe quando a paixão por influenciar os outros parece desestabili-zar o caráter estabelecido e dar a ele uma pose ou peculiaridade ób-via [...]. Assim, há pessoas em que nas conversações mais simplesparecem ser incapazes de esquecer a si mesmas e entrar franca e de-sinteressadamente no assunto, consideradas, ao contrário, semprepreocupadas com o pensamento da impressão que estão causando,imaginando louvor ou depreciação, e normalmente posando umpouco para evitar esta ou ganhar aquela"6. Indivíduos afetados pare-cem principalmente preocupados em controlar a avaliação que umobservador fará deles, e parecem parcialmente tomados pela suaprópria pose; indivíduos insinceros parecem principalmente preo-cupados em controlar a impressão que o observador formará de suaatitude em relação a certas coisas ou pessoas, especialmente sobre simesmos, t não parecem ser tomados pela própria pose. Podemosadicionar que, enquanto aqueles que supostamente têm consciênciade si mesmo dão a impressão de estarem preocupados demais com oque acontecerá ou aconteceu com eles, aqueles que são considera-dos insinceros ou afetados dão a impressão de estarem preocupadosdemais com aquilo que eles podem realizar na ocasião que se segui-rá e estão dispostos a fingir para realizá-lo. Quando o indivíduo per-cebe que outros são insinceros ou afetados, ele tende a sentir queeles se aproveitaram indevidamente de sua posição comunicativapara promover seus próprios interesses; ele sente que eles quebra-ram as regras básicas da interação. Sua hostilidade ao jogo sujo deleso leva a focar sua atenção sobre eles e seu delito à custa de seu pró-prio envolvimento na conversação.

Ao tratar dos atributos imputados àqueles que fazem com queoutra pessoa tenha consciência deles, precisamos dar importânciaao fator da imodéstia. Em termos analíticos, a modéstia exageradadeveria contar igualmente como uma fonte de consciência dos ou-tros, mas, empiricamente, a imodéstia parece ser muito mais impor-tante. Aquilo que o indivíduo considera imodéstia nos outros podese apresentar de muitas formas diferentes: indivíduos imodestos po-

6. COOLEY, C.H. Human Nature and the Social Order. Nova York: Charles Scrib-ner's Sons, 1922, p. 196, 215.

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dem parecer louvar a si mesmos verbalmente; eles podem falar so-bre si mesmos e suas atividades de forma que pressupõe um interes-se e familiaridade com sua vida pessoal maiores do que o indivíduorealmente possui; eles podem falar mais frequentemente e mais de-moradamente do que o indivíduo considera apropriado; eles podemassumir uma posição "ecológica" mais proeminente do que ele achaque merecem, etc.

Uma fonte interessante de consciência dos outros pode ser en-contrada no fenómeno de "envolvimento exagerado". Durante qual-quer conversa, estabelecemos padrões sobre até que ponto o indiví-duo deve se permitir ser levado pela conversa, o quão completa-mente ele deve se permitir ser tomado por ela. Ele será obrigado a seimpedir de ficar tão inchado de sentimentos e prontidão para agir aponto de ameaçar as fronteiras relacionadas às emoções que foramestabelecidas para ele na interação. Ele será obrigado a expressaruma margem de não envolvimento, ainda que obviamente essa mar-gem varie de acordo com a importância socialmente reconhecida daocasião e de seu papel oficial nela. Quando o indivíduo se envolveexageradamente no tópico da conversação, e dá aos outros a impres-são de que não tem um grau necessário de autocontrole sobre seussentimentos e ações, quando, resumindo, o mundo da interação ficareal demais para ele, então é provável que os outros sejam levadosdo envolvimento com a conversa a um envolvimento com o orador.A animação exagerada de uma pessoa é a alienação de outra. Dequalquer forma, devemos ver que o envolvimento exagerado tem oefeito de momentaneamente incapacitar o indivíduo enquanto par-ticipante da interação; os outros precisam se ajustar a seu estado,enquanto ele se torna incapaz de se ajustar ao deles. E interessantenotar que, quando o impulso do indivíduo envolvido exagerada-mente diminui um pouco, ele pode perceber seu delito e ganharconsciência de si mesmo, ilustrando mais uma vez o fato de que oefeito alienante que o indivíduo tem sobre outros normalmente éum efeito que ele não pode evitar sobre si mesmo. Independente-mente disto, precisamos ver que a disposição a se envolver exagera-damente é uma forma de tirania exercida por crianças, prima âon-nas, e lordes de todos os tipos, que momentaneamente colocam seuspróprios sentimentos sobre as regras morais que deveriam tornar asociedade segura para a interação.

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Podemos mencionar uma fonte final de consciência dos outros.Se o indivíduo quiser se envolver num tópico de conversação, então,enquanto ouvinte, ele terá que oferecer sua atenção auditiva e nor-malmente também visual para a fonte da comunicação, ou seja, o ora-dor, e especialmente à voz e rosto dele. (Este requerimento físico éenfatizado por regras sociais que muitas vezes definem a falta de aten-ção ao orador como uma afronta a ele.) Se o próprio aparato comuni-cativo do orador comunica informações adicionais durante o períododa transmissão, então é provável que o ouvinte se distraia devido afontes de estímulo concorrentes, percebendo demais o orador à custadaquilo que está sendo dito. As fontes dessa distração são bem conhe-cidas: o orador pode ser muito feio ou muito bonito; ele pode ter umdefeito de fala como ter a língua presa, ou gaguejar; ele pode ter fami-liaridade inadequada com a linguagem, dialeto ou jargão que os ou-vintes esperam ouvir; ele pode ter uma leve peculiaridade facial,como lábio leporino, contração das pálpebras, estrabismo; ele podeter dificuldades comunicativas temporárias, como um torcicolo, rou-quidão, etc. Aparentemente, quanto mais perto for o defeito do equi-pamento comunicativo sobre o qual o ouvinte deve focar sua atenção,menor o defeito precisa ser para desequilibrar o ouvinte. (Devemosadicionar que se o orador precisar dirigir sua atenção ao ouvinte, massem tomar consciência exagerada dele, defeitos na aparência do ou-vinte podem perturbar o orador.) Esses pequenos defeitos no aparatocomunicativo tendem a bloquear o indivíduo afligido da corrente decontatos diários, transformando-o num participante da interação de-feituoso a seus olhos ou aos olhos dos outros.

Para concluir esta discussão de fontes de distração alienantes,gostaria de propor uma cautela óbvia. Quando o indivíduo senteque os outros não estão envolvidos apropriadamente, ele sentiráque os outros se comportaram de forma não apropriada sempre emrelação aos padrões de seu grupo. Da mesma forma, um indivíduoque faria com que certos outros tivessem consciência indevida delepor causa de sua insinceridade, afetação ou imodéstia aparentespassaria despercebido numa subcultura em que a disciplina conver-sacional fosse menos estrita. Assim, quando membros de grupos di-ferentes interagem uns com os outros, é bastante provável que pelomenos um dos participantes seja distraído do envolvimento espon-

l tâneo no tópico da conversação devido a algo que pareça a ele umcomportamento não apropriado da parte dos outros7. É a essas dife-renças de costumes expressivos que devemos olhar em primeiro lu-gar ao tentar explicar o comportamento inapropriado daqueles comquem estamos interagindo, em vez de tentar encontrar a fonte daculpa nas personalidades dos ofensores.

4. Sobre o caráter repercussivo das ofensas de envolvimento.Eu sugeri que o desencantamento com uma interação pode as-

sumir a forma de preocupação, consciência de si mesmo, consciên-cia dos outros, e consciência da interação. Essas formas de alienaçãoforam separadas para propósitos de identificação. Em conversas reais,quando um tipo ocorre, os outros não estarão longe.

Quando o indivíduo sente que ele ou outros participantes nãoestão alceando seu envolvimento de acordo com padrões que eleaprova, e como consequência eles estão comunicando uma atitudeimprópria para a interação e os participantes, então é provável queseus sentimentos sejam atiçados pela impropriedade - como seriamse quaisquer outras obrigações da ordem cerimonial fossem quebra-das. Mas as coisas não param por aí. Testemunhar uma ofensa con-tra obrigações de envolvimento, diferentemente de outras obriga-ções cerimoniais, faz com que a testemunha retire sua atenção daconversação e a volte para a ofensa que ocorreu durante ela. Se o in-divíduo se sente responsável pela ofensa que ocorreu, é provávelque ele sinta envergonhadamente consciência de si. Se os outros pa-recem ser responsáveis pela ofensa, então é provável que ele se sintaindignadamente consciente dos outros em relação a eles. Mas terconsciência de si ou dos outros é precisamente uma ofensa contra asobrigações de envolvimento. O mero ato de testemunhar uma ofen-

7. Por exemplo, no intercâmbio social entre habitantes tradicionais das Ilhas She-tland, o pronome "eu" tende a ser pouco utilizado; seu uso mais frequente por indi-víduos do resto da Grã-Bretanha, e especialmente seu uso relativamente frequentepor americanos, leva o habitante das Shetland a sentir que os forasteiros são imo-destos e grosseiros. Podemos adicionar que o tato das Shetland muitas vezes impe-de que os forasteiros descubram que seu comportamento perturba os habitantesdas ilhas.

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Podemos mencionar uma fonte final de consciência dos outros.Se o indivíduo quiser se envolver num tópico de conversação, então,enquanto ouvinte, ele terá que oferecer sua atenção auditiva e nor-malmente também visual para a fonte da comunicação, ou seja, o ora-dor, e especialmente à voz e rosto dele. (Este requerimento físico éenfatizado por regras sociais que muitas vezes definem a falta de aten-ção ao orador como uma afronta a ele.) Se o próprio aparato comuni-cativo do orador comunica informações adicionais durante o períododa transmissão, então é provável que o ouvinte se distraia devido afontes de estímulo concorrentes, percebendo demais o orador à custadaquilo que está sendo dito. As fontes dessa distração são bem conhe-cidas: o orador pode ser muito feio ou muito bonito; ele pode ter umdefeito de fala como ter a língua presa, ou gaguejar; ele pode ter fami-liaridade inadequada com a linguagem, dialeto ou jargão que os ou-vintes esperam ouvir; ele pode ter uma leve peculiaridade facial,como lábio leporino, contração das pálpebras, estrabismo; ele podeter dificuldades comunicativas temporárias, como um torcicolo, rou-quidão, etc. Aparentemente, quanto mais perto for o defeito do equi-pamento comunicativo sobre o qual o ouvinte deve focar sua atenção,menor o defeito precisa ser para desequilibrar o ouvinte. (Devemosadicionar que se o orador precisar dirigir sua atenção ao ouvinte, massem tomar consciência exagerada dele, defeitos na aparência do ou-vinte podem perturbar o orador.) Esses pequenos defeitos no aparatocomunicativo tendem a bloquear o indivíduo afligido da corrente decontatos diários, transformando-o num participante da interação de-feituoso a seus olhos ou aos olhos dos outros.

Para concluir esta discussão de fontes de distração alienantes,gostaria de propor uma cautela óbvia. Quando o indivíduo senteque os outros não estão envolvidos apropriadamente, ele sentiráque os outros se comportaram de forma não apropriada sempre emrelação aos padrões de seu grupo. Da mesma forma, um indivíduoque faria com que certos outros tivessem consciência indevida delepor causa de sua insinceridade, afetação ou imodéstia aparentespassaria despercebido numa subcultura em que a disciplina conver-sacional fosse menos estrita. Assim, quando membros de grupos di-ferentes interagem uns com os outros, é bastante provável que pelomenos um dos participantes seja distraído do envolvimento espon-

l tâneo no tópico da conversação devido a algo que pareça a ele umcomportamento não apropriado da parte dos outros7. É a essas dife-renças de costumes expressivos que devemos olhar em primeiro lu-gar ao tentar explicar o comportamento inapropriado daqueles comquem estamos interagindo, em vez de tentar encontrar a fonte daculpa nas personalidades dos ofensores.

4. Sobre o caráter repercussivo das ofensas de envolvimento.Eu sugeri que o desencantamento com uma interação pode as-

sumir a forma de preocupação, consciência de si mesmo, consciên-cia dos outros, e consciência da interação. Essas formas de alienaçãoforam separadas para propósitos de identificação. Em conversas reais,quando um tipo ocorre, os outros não estarão longe.

Quando o indivíduo sente que ele ou outros participantes nãoestão alocando seu envolvimento de acordo com padrões que eleaprova, e como consequência eles estão comunicando uma atitudeimprópria para a interação e os participantes, então é provável queseus sentimentos sejam atiçados pela impropriedade - como seriamse quaisquer outras obrigações da ordem cerimonial fossem quebra-das. Mas as coisas não param por aí. Testemunhar uma ofensa con-tra obrigações de envolvimento, diferentemente de outras obriga-ções cerimoniais, faz com que a testemunha retire sua atenção daconversação e a volte para a ofensa que ocorreu durante ela. Se o in-divíduo se sente responsável pela ofensa que ocorreu, é provávelque ele sinta envergonhadamente consciência de si. Se os outros pa-recem ser responsáveis pela ofensa, então é provável que ele se sintaindignadamente consciente dos outros em relação a eles. Mas terconsciência de si ou dos outros é precisamente uma ofensa contra asobrigações de envolvimento. O mero ato de testemunhar uma ofen-

7. Por exemplo, no intercâmbio social entre habitantes tradicionais das Ilhas She-tland, o pronome "eu" tende a ser pouco utilizado; seu uso mais frequente por indi-víduos do resto da Grã-Bretanha, e especialmente seu uso relativamente frequentepor americanos, leva o habitante das Shetland a sentir que os forasteiros são imo-destos e grosseiros. Podemos adicionar que o tato das Shetland muitas vezes impe-de que os forasteiros descubram que seu comportamento perturba os habitantesdas ilhas.

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sã de envolvimento, para não falar de sua punição, pode causar umcrime contra a interação, transformando a vítima do primeiro crimeem criminosa. Assim, durante a interacão falada, quando um indiví-duo é afligido pelo desconforto, muitas vezes ele contamina os ou-tros com a mesma doença.

É preciso adicionar uma qualificação. O indivíduo pode se tor-nar envolvido erroneamente e ainda assim nem ele nem os outrospodem perceber que isto acontece, e muito menos se tornar envolvi-dos inapropriadamente por causa dessa percepção. Ele comete umaofensa latente que apenas aguarda que alguém a perceba para se tor-nar manifesta. Quando os outros finalmente percebem que ele estáenvolvido erroneamente, e comunicam o fato desse juízo para ele,ele pode como consequência se alvoroçar, consciente de si mesmo,como pode ocorrer quando ele descobre este fato sozinho. Assim,um indivíduo pode "despertar" de um devaneio e, constrangida-mente, descobrir-se no meio de uma interacão, mas completamentealienado dela.

5. O fingimento de envolvimentoQuando uma conversa não consegue capturar o envolvimento

espontâneo de um indivíduo que é obrigado a participar dela, é pro-vável que ele finja uma aparência de estar realmente envolvido. Eleprecisa fazer isto para salvar os sentimentos dos outros participantes,e sua boa opinião, independentemente de seus motivos para quererefetuar esse salvamento. Ao fazer isto, ele tem um efeito amortecedorsobre as consequências repercussivas do envolvimento erróneo, ga-rantindo que, apesar de ele estar descontente, seu descontentamentonão contaminará os outros. Ao mesmo tempo, entretanto, ele ergueuma barreira entre si mesmo e o mundo que poderia se tornar realpara ele. E essa barreira é composta daquele tipo especial de descon-forto encontrado caracteristicamente durante a conversação; o tipode desconforto que ocorre quando as obrigações de envolvimentonão podem ser deixadas de lado, e nem realizadas espontaneamente;o tipo que ocorre quando o indivíduo é separado da realidade da inte-racão mesmo quando a interacão está ao seu redor.

Enquanto uma forma de maquinação, o envolvimento fingidoserá julgado diferentemente de acordo com o motivo que o indiví-

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duo alienado tem para maquiná-lo. Algumas demonstrações de en-volvimento são consideradas cínicas porque o indivíduo parece nãoestar realmente interessado nos sentimentos dos outros, e sim na-quilo que pode ser ganho ao levar os outros a uma crença de quecapturaram a sua atenção. Ele passa a impressão de estar ocupadocom a conversa, mas está realmente ocupado com a tarefa de passaressa impressão.

Por outro lado, se o indivídualienado está genuinamente preocu-pado com os sentimentos dos o outros como algo importante em simesmo, então qualquer ato que proteja esses sentimentos pode serconsiderado uma forma de tato, e aprovado por isso.

Devemos notar que muitas vezes a demonstração de envolvi-mento dada pelo participante cuidadoso não é tão boa quanto ele écapaz de dar. Algum poder quase que além dele o forçará a demons-trar aos outros e a si mesmo que esse tipo de interacão com essesparticipantes não é o tipo de coisa que captura sua atenção; alguémprecisa perceber que ele está talvez acima ou além disso. Aqui en-contramos uma forma de insubordinação realizada por aqueles quepodem não estar realmente em posição para se rebelar.

As formas de não esconder bem o envolvimento erróneo diplo-maticamente escondido constituem, então, os sintomas do tédio.Alguns sintomas do tédio sugerem que o indivíduo não realizará ne-nhum esforço para terminar o encontro ou sua participação oficialnele, mas que ele também não dará muito ao encontro. A iniciaçãode envolvimentos laterais, como folhear uma revista ou acender umcigarro, são exemplos. Outros sintomas do tédio sugerem que o in-divíduo está prestes a terminar sua participação oficial, e funcionamcomo um aviso diplomático disto8.

Manifestar sinais de tédio é uma inconsideração. Mas, de certaforma, aquele que faz isto garante aos outros que não está fingindoalguma coisa que não sente; eles pelo menos sabem sua posição real

8. Há na verdade uma pequena literatura sobre "relações humanas aplicadas" deta-lhando formas pelas quais o superior pode indicar que uma entrevista terminou,permitindo que o outro inicie as despedidas, de forma a salvar sua fachada.

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em relação a ele. Suprimir esses sinais completamente é considera-do suspeito, pois isto impede que os outros obtenham o benefício dedicas informativas que podem dizer a eles qual é a realidade da situa-ção. Assim, enquanto existe uma obrigação de fingir envolvimento,existe outra que induz o indivíduo a não fingi-lo muito bem. E umfato interessante que, quando o eu do indivíduo entediante estácomprometido profundamente com a situação, como pode ocorrer,por exemplo, durante despedidas e juramentos de afeição, então éprovável que o indivíduo entediado sinta uma compulsão forte aocultar sinais de alienação e fingir completamente envolvimento.Assim, é nos momentos mais pungentes e cruciais da vida que o in-divíduo é muitas vezes forçado a ser o mais calculista; estes tambémsão os momentos em que o indivíduo entediante precisará mais decandura dos outros, e será mais incapaz de suportar recebê-la.

Eu sugeri que uma demonstração de envolvimento pode ser fin-gida por participantes cínicos e cuidadosos; a mesma demonstraçãotambém pode ser fingida por aqueles que se sentem constrangida-mente conscientes de si. Eles podem até enfeitar sua produção fin-gindo sinais de tédio. O indivíduo troca assim uma condição que co-loca dúvida sobre ele próprio por uma que coloca dúvida sobre osoutros. Há uma doutrina psicológica que !eva esta observação umpasso adiante e afirma que, quando o indb íduo está convencido deque está entediado, ele pode estar tentando esconder de si mesmoque na verdade está constrangido9.

Encontros conversacionais em que os participantes se sentemobrigados a manter envolvimento espontâneo, mas não conseguemfazer isso, são encontros em que eles se sentem desconfortáveis epodem gerar desconforto para os outros. O indivíduo reconheceque certas situações produzirão esta alienação nele e nos outros, e

9. Para versões psicanalíticas deste tema, cí. GREENSON, R. "On Boredom". Jour-nal of ihe American Psychoanalytical Association, vol. l, p. 7-21. • FENICHEL, O."The Psychology of Boredom", n. 26. The Collected Papers ofOtto Fenichd, primeirasérie. Nova York: Norton, 1953. Algumas observações interessantes sobre o cultodo tédio e o lugar desse culto no mundo de um adolescente podem ser encontradasno romance de SALINGERJ.D. TheCatcherin theRye. Boston: Little/Brown, 1951.

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que é muito improvável que outras situações façam isso. Ele reco-nhece que certos indivíduos são participantes defeituosos porquenunca estão prontos para se envolver espontaneamente em encon-tros sociais, e terá termos populares como "chato", "metido", "peixemorto", "estraga-prazeres" para se referir a esses participantes refra-tários. Aqueles que não conseguem manter conversas com seus su-periores sociais podem ser chamados de grosseiros; enquanto aque-les que desdenham do envolvimento com inferiores podem ser cha-mados de esnobes; em ambos os casos as pessoas são condenadaspor valorizar mais a posição que a interação. Como sugerido anteri-ormente, o indivíduo também conhecerá algumas pessoas defeituo-sas porque seus modos e atributos sociais dificultam o envolvimen-to apropriado dos outros. Também é claro que em qualquer intera-ção desenvolve-se uma função de papel que garante que todos sejame permaneçam envolvidos espontaneamente. Essa função de igni-ção pode ser preenchida por participantes diferentes em momentosdiferentes da interação. Se um participante não conseguir manter ainteração funcionando, outros participantes terão que se ocupar daparte dele. Indivíduos podem adquirir uma reputação de realizarbem este tipo de trabalho, criando gratidão ou ressentimento comoalguém que é sempre a vida do encontro.

6. Generalizando o esquema1) O Contexto de obrigações de envolvimento. Uma limitação que

estabelecemos para nós mesmos é lidar com situações em que todosaqueles presentes estão oficialmente obrigados a se manter comoparticipantes da conversação e a manter envolvimento espontâneona conversação. Essa condição é frequente o bastante para servircomo ponto de referência, mas não é preciso ser completamente li-mitado por ela. Na verdade, as obrigações de envolvimento são defi-nidas em termos do contexto total em que o indivíduo se encontra.Assim, haverá algumas situações nas quais o envolvimento princi-pal daqueles presentes deveria ser investido numa tarefa física; aconversação, se ocorrer, terá que ser tratada como um envolvimen-to lateral cujo começo e fim dependem das exigências atuais da tare-

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ia que está sendo desempenhada. Haverá outras situações em que opapel e estatuto de um participante em particular será muito bemexpresso por seu direito de tratar uma conversação de forma arbi-trária, participando dela ou não, dependendo de sua inclinação nomomento. Um pai às vezes tem esse direito em relação às conversasem torno da mesa mantidas por membros inferiores da família, quenão têm esse direito.

Eu gostaria de citar outra forma pela qual o indivíduo pode acei-tar uma alocação diferente de envolvimento daquela que é esperadapara os outros. Nas provocações que os jovens sofrem dos mais ve-lhos, ou nos interrogatórios que empregados recebem de emprega-dores, a perda de compostura da parte dos subordinados pode seraceita pelo superior como uma parte esperada e apropriada do pa-drão de envolvimento. Em tais momentos, o subordinado pode sen-tir que gostaria de estar envolvido espontaneamente na conversa,mas seu pânico o impede de fazê-lo, enquanto o superior pode sen-tir que, para ele, o foco apropriado de atenção, que ele pode manterconfortavelmente, não é a conversa real e sim a situação mais amplagerada pelo sofrimento cómico do inferior enquanto ele se debatena conversação10. Na verdade, se o subordinado demonstrar com-postura nessas ocasiões, o superior pode se sentir afrontado e cons-trangido. Da mesma forma, haverá ocasiões em que sentimos queum indivíduo deveria, por respeito às dificuldades em que se encon-tra, estar preocupado ou envolvido exageradamente. Esse envolvi-mento erróneo pode perturbar um pouco a interação, mas um apru-mo perfeito de sua parte poderia escandalizar tanto aqueles presen-tes a ponto de perturbá-la muito mais. Assim, embora seja verdadeque às vezes um indivíduo será considerado um herói da interação

10. O sofrimento da pessoa com consciência de si mesma é, na verdade, um estímu-lo tão bom para evocar envolvimento espontâneo da parte daqueles que o testemu-nham que, durante conversas em que pode haver dificuldades para capturar o en-volvimento daqueles presentes, os indivíduos podem se revezar para causar peque-nas infrações contra a propriedade e para se constranger, garantindo assim o envol-vimento. Daí o paradoxo de que se todas as regras de comportamento social corretoforem seguidas com exatidão, a interação pode se tornar flácida, estéril e chata.

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se permanecer envolvido numa conversação sob condições difíceis,em outras ocasiões tal lealdade será considerada temerária.

Obrigações diferenciais em relação à mesma interação faladapodem ser vistas mais claramente em interações de larga escala,como discursos públicos, em que é provável que encontremos espe-cialização e segregação de papéis de envolvimento, com uma divi-são entre participantes completos, de quem se espera que falem e es-cutem, e especialistas não participantes, cujo trabalho é se mover deforma discreta e cuidar de algumas das mecânicas da ocasião. Exem-plos desses não participantes são empregados domésticos, mordo-mos, porteiros, estenógrafos e operadores de microfone. O alinha-mento especial que esses funcionários têm para a situação é seu di-reito e dever particulares; ele é aceito abertamente por eles e paraeles, e se eles se envolvessem manifestamente no conteúdo da falaeles na verdade causariam desconforto. Eles demonstram respeitopela ocasião ao tratá-la como um envolvimento lateral.

Os próprios participantes, numa interação de larga escala, po-dem ter uma permissividade quanto ao envolvimento que não teri-am numa conversa entre duas ou três pessoas, talvez porque quantomais participantes houver para manter a ocasião, menos ela depen-de de qualquer um deles. De qualquer forma, descobrimos muitasvezes na interação de larga escala que é permissível que alguns par-ticipantes entrem por alguns momentos em apartes e discussões la-terais, desde que modulem suas vozes e modos para demonstrar res-peito aos acontecimentos oficiais. De fato, um participante pode atédeixar a sala por um momento, e fazer isto de forma a comunicar aimpressão de que seu foco de atenção principal ainda é mantidopela conversa, mesmo que seu corpo não esteja presente. Em taisocasiões, o envolvimento principal e os laterais podem se tornar fic-ções mantidas oficialmente na aparência, enquanto padrões alterna-tivos de envolvimento são realmente mantidos na prática.

2) Pseuáoconversações. Até o momento restringimos nossa aten-ção a interações que têm como seus atos comunicativos constituti-vos os turnos de conversa tomados por participantes. Podemos es-tender nossa visão e tratar de interações parecidas com conversa-

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coes em que os símbolos trocados não são discursos, e sim gestos es-tilizados, como na troca de cumprimentos não verbais11, ou jogadasde um certo tipo, como em jogos de cartas. Estas interações não fala-das, mas parecidas com conversas, parecem ser similares, estrutu-ralmente, com interações faladas, exceto que as capacidades que de-vem ser mobilizadas para desempenhar tal interação parecem termais a ver com o controle muscular dos membros do que é o caso nainteração falada.

3) Interação desfocada. Eu sugeri que interações de fala, gestos ejogos são caracterizadas por um único foco de atenção cognitiva evisual principal que todos os participantes completos ajudam amanter. (É claro que o foco de atenção visual pode se mover de umparticipante para outro quando um orador cede seu papel de fala evolta ao papel de ouvinte.) Precisamos contrastar este tipo focadode interação com o tipo desfocado, onde os indivíduos em presençavisual e auditiva uns dos outros cuidam de suas próprias vidas semestarem ligados por um foco de atenção compartilhado. O compor-tamento de rua e a conduta em festas sociais grandes são exemplos.

Quando examinamos interações desfocadas, descobrimos queas obrigações de envolvimento são definidas não em relação a urnfoco conjunto de atenção cognitiva e visual, mas em relação a umpapel que pode ser sugerido pela frase "indivíduo decoroso cuidan-

11. Este é um exemplo de conversa entre um psiquiatra e um paciente que é verbalapenas de um lado. "[...] durante uma análise de uma esquizofrênica muito pertur-bada com características depressivas, a paciente se escondeu por baixo de seu úni-co traje, um cobertor, de forma a mostrar apenas a sobrancelha; não intimidado, eucontinuei a conversa de onde tínhamos parado da última vez e notei as mudançasdesse único membro visível, ainda que eloquente, cujas mudanças - um franzir,uma careta, surpresa, um lampejo de descontração, uma curva mais suave - indica-vam as mudanças no humor e pensamentos dela. Minhas suposições mostraram-secorreias, pois da próxima vez que ela exibiu seu rosto e usou sua voz, corroborou alinha geral de minhas apostas sobre o que ocorrera em sua mente. Essa sessão nãofoi um intercâmbio verbal - ela poderia até ser chamada de análise da sobrancelha -,mas havia uma tentativa de verbalizar, conceitualizar e concretizar no 'aqui e agora'aquilo que estava ocorrendo simultaneamente na mente dela" (RICHMAN, J. "TheRole and Future of Psychotherapy with Psychiatry". Journal o/Mental Science, 96,1950, p. 189).

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do de sua própria vida sem interferir com a dos outros". Entretanto,quando mudamos para esse ponto de referência, descobrimos quetodos os tipos de envolvimento erróneo que ocorrem durante a inte-ração focada também ocorrem durante a desfocada, mas às vezessob um nome diferente. Assim como um adolescente pode se tornardesconfortável e consciente de si mesmo ao falar com seu professor,ele também pode, ao entrar numa sala de aula cheia, sentir que estásendo observado criticamente e que seu modo de andar, que eleconsidera rígido e desajeitado, revela sua ansiedade social. Assimcomo podemos ter pessoas preocupadas na interação conversacio-nal, também na interação desfocada podemos ter participantes "dis-traídos", que através de sua postura, expressão facial e movimentosfísicos sugerem que estão momentaneamente "distantes", que dei-xaram cair momentaneamente a fantasia expressiva que se esperaque os indivíduos utilizem sempre que estiverem na presença ime-diata de outros. E, é claro, o tédio também pode ocorrer durante ainteração desfocada, como podemos observar em quase qualquerfila de indivíduos esperando para comprar um bilhete. E assimcomo substâncias como o álcool e a maconha podem ser emprega-das para transformar uma conversa em algo que não é constrange-dor ou entediante, elas também podem funcionar para tranquilizarindivíduos na cena mais ampla fornecida pela interação desfocada.Assim como um dito espirituoso pode honrar o momento conversa-cional, também o uso de roupas novas ou especiais, a oferta de ali-mentos caros ou raros, e o uso de flores perecíveis podem atrair aatenção ao valor único de uma ocasião social mais ampla. Clara-mente, então, há formas pelas quais a perspectiva empregada nesteartigo pode ser usada para estudar a interação desfocada.

Entretanto, não devemos esperar que a semelhança entre osdois tipos de interação seja completa. Por exemplo, parece que osindivíduos têm menos consciência de si mesmos em sua capacidadede participantes na interação desfocada do que como participantesde interação focada, especialmente a interação focada de tipo falado.De fato, na interação falada, o envolvimento espontâneo "normal"parece ser a exceção e a alienação de algum tipo a regra estatística.Isto é compreensível. Por um lado, requer-se que os participantessejam levados espontaneamente pelo tópico da conversação; por

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outro lado, eles são obrigados a se controlar para que sempre este-jam prontos a ficar dentro do papel de comunicador e atentos aosassuntos delicados que podem fazer com que os outros se sintamdesconfortáveis. Por um lado eles são obrigados a obedecer todas asregras de conduta aplicáveis, e por outro eles são obrigados a tomarliberdades o bastante para garantir um nível mínimo de animaçãoenvolvente. Essas obrigações parecem estar em oposição umas àsoutras, exigindo um equilíbrio de conduta que é tão delicado e pre-cário que a alienação e desconforto para alguém na interação são osresultados típicos. A interação desfocada não parece exigir a mesmadelicadeza de ajuste.

7. ConclusãoMuitos encontros sociais do tipo conversacional parecem com-

partilhar uma exigência fundamental: o envolvimento espontâneodos participantes num foco oficial de atenção deve ser evocado emantido. Quando esse requerimento existe e é cumprido, a intera-ção "deslancha" ou é eufórica enquanto interação. Quando o encon-tro não consegue capturar a atenção dos participantes, mas não oslibera da obrigação de se envolverem nele, então é provável que aspessoas presentes se sintam desconfortáveis; para elas a interaçãonão deslancha. Uma pessoa que cronicamente torna a si mesma ouaos outros desconfortável na interação e perpetuamente mata en-contros é um participante defeituoso; é provável que ele tenha umefeito tão daninho sobre a vida social ao seu redor que podemossimplesmente chamá-lo de uma pessoa defeituosa.

Então, será importante saber sobre qualquer indivíduo se seuestatuto ou modos tendem a prejudicar a manutenção do envolvi-mento espontâneo na interação, ou a ajudá-la. Devemos notar queesta informação concerne ao indivíduo em sua capacidade enquan-to participante da interação, e que, independentemente das outrascapacidades em que ele possa estar ativo no momento, o papel departicipante da interação é algo que ele será obrigado a manter.

Os encontros sociais variam bastante quanto à importância queos participantes dão a eles, mas, sejam cruciais ou corriqueiros, todosos encontros representam ocasiões em que o indivíduo pode se tornarespontaneamente envolvido nos acontecimentos e derivar deles um

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senso firme de realidade. E esse tipo de sentimento não é uma coisatrivial, independentemente do pacote de onde ele venha. Quando umincidente ocorre e o envolvimento espontâneo é ameaçado, então arealidade é ameaçada. A não ser que a perturbação seja resolvida, anão ser que os participantes da interação recuperem seu envolvimen-to apropriado, a ilusão de realidade será estilhaçada, o pequeno siste-ma social que é criado em cada encontro será desorganizado, e os par-ticipantes se sentirão desgovernados, irreais e anômicos.

Tirando o senso de realidade que oferece, um encontro particu-lar pode ter poucas consequências, mas precisamos enxergar que asregras de conduta que obrigam os indivíduos a serem capazes e esta-rem prontos a se entregar a tais momentos são de importância trans-cendente. Pessoas que obedecem a essas regras estão prontas para ainteração falada, e a interação falada entre muitos tipos de pessoasem muitos tipos de ocasiões é necessária para realizar o trabalho dasociedade.

O senso de realidade que foi discutido neste artigo toma sua for-ma em oposição a modos de alienação, a estados como a preocupa-ção, a consciência de si mesmo e o tédio. Por sua vez, esses modosde desengajamento devem ser compreendidos em referência à ques-tão central do envolvimento espontâneo. Quando vemos a formapela qual um encontro falado pode conseguir ou não trazer seusparticipantes para ele, temos uma pista para seguir para a compre-ensão de outros tipos de compromissos — a carreira ocupacional doindivíduo, seus envolvimentos políticos, seu pertencimento à famí-lia -, pois haverá um sentido em que essas questões mais amplasaparecem em ocasiões recorrentes de interação focada e desfocada.Ao examinar as formas pelas quais o indivíduo pode perder o passocom o momento sociável, talvez possamos aprender algo sobre aforma pela qual ele pode ser alienado de coisas que ocupam muitomais o seu tempo.

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Sintomas mentais e a ordem pública'

As pessoas que atraem a atenção de um psiquiatra normalmenteantes atraem a atenção de seus conhecidos leigos. Aquilo que os psi-quiatras enxergam como doença mental é normalmente visto pri-meiro pelo público leigo como comportamento ofensivo - compor-tamento digno de escárnio, hostilidade e outras sanções sociais ne-gativas. O objetivo da psiquiatria sempre foi interpor uma perspec-tiva técnica: a punição é substituída pela compreensão e tratamento;a preocupação com o círculo social que foi ofendido é substituídapela preocupação com os interesses do ofensor. Eu me abstenho decomentar aqui sobre o quão infeliz foi para muitos ofensores rece-ber essa boa sorte médica.

A psiquiatria freudiana introduziu uma peculiaridade impor-tante nessa corrente médica. Em pequenos clássicos da análise, osfreudianos mostraram que certos delitos particulares, agora chama-dos de sintomas, podem ser interpretados ou lidos como parte dosistema de comunicação e defesa do ofensor, especialmente uma re-versão a modos de conduta infantis. O triunfo final dessa perspecti-va psicológica técnica é a implicação de que o comportamento soci-almente impróprio pode ser psicologicamente normal (como quan-do um homem demonstra força o bastante para encerrar uma rela-ção conjugal doentia), e um comportamento socialmente apropria-do pode ser realmente doente (como exemplificado pelas preocupa-ções obsessivas e retraimento sexual de alguns químicos pesquisa-dores). Resumindo, para o psiquiatra, um sintoma inicial flagrante émeramente uma permissão para começar a escavar.

Um efeito dessa abordagem esclarecida que o sociólogo pode de-plorar é que o interesse nas próprias impropriedades, paradoxalmen-

* Reimpresso com permissão de Disorders of Communicatíon, vol. XLII, p. 262-269.Research Publications, A.R.N.M.D. Copyright © 1964 da Association for Researchin Nervous and Mental Disease.

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te, diminui. (Afinal, um sintoma é apenas um sintoma, mesmo queele marque o lugar onde começamos a escavar. Se, através de algumaincisão, conseguimos amputar um sintoma, e não fazemos nada so-bre a dinâmica, é provável que outro sintoma apareça; ele pode terum rosto bastante diferente, mas terá o mesmo olhar malicioso.)

Ao se deslocar tão rapidamente do delito social para o sintomamental, os psiquiatras tendem a não se sair muito melhor do que osleigos em sua avaliação da impropriedade de um certo ato - o que édefensível no caso de atos extremamente desviantes, mas não nocaso de muitos deslizes mais suaves. Isto é inescapável, pois nóssimplesmente não temos um mapeamento técnico dos vários pa-drões de comportamento aprovados em nossa sociedade, e a poucainformação que temos não é transmitida no treinamento de escolasde medicina. Os psiquiatras não conseguiram nos oferecer um es-quema sistemático para identificar e descrever o tipo de delito re-presentado pelo comportamento psicótico. No momento, há umalinguagem bastante especial se estabelecendo, envolvendo termoscomo "achatamento emocional", "postura inadequada", "maneiris-mo", "fora de contato", e outros, o que resolve o problema de terque escrever notas clínicas apressadamente, mas é completamentedesajeitada para o profissional. A linguagem moralista nas ciênciassociais construída em torno da noção incrível de que as pessoas de-vem manter comunicação boa, clara, direta ou aberta entre si é ain-da pior - como se a comunicação fosse um comprimido que devês-semos engolir porque é bom para a barriga.

Um segundo efeito da abordagem psiquiátrica esclarecida que osociólogo pode deplorar é que dela resultou uma versão da comuni-cação muito especial e limitada. Os psiquiatras, devido à sua incli-nação à prática no consultório e uma preocupação (pelo menos atérecentemente) com neuróticos em vez de psicóticos, tendem a seencontrar com seus pacientes em salas para duas pessoas. Pior, elestendem a trabalhar sob o viés de cabine telefónica, ou seja, que aqui-lo em que o paciente estava engajado era de alguma forma um tipode fala, de partilha de informação, e o problema é que a linha estavaocupada, a ligação defeituosa, a pessoa do outro lado é tímida, des-confiada, com medo de falar, ou insistindo em usar um código. Apa-rentemente a profissão exigia forte paciência e um bom ouvido. Ahipnose e os "soros da verdade" também eram úteis para desbloque-ar as linhas. Recentemente, com a introdução de eletrodos corticais,progredimos, junto com a Bell Telephone, para um tipo de ligação

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direta. Posso adicionar que poucas profissões conseguiram institu-cionalizar tão bem, e vender no mercado social, suas próprias fanta-sias daquilo que eles estavam engajados em fazer.

De qualquer forma, há uma cegueira geral quanto ao seguintefato: muitas vezes, o desvio de conduta do paciente é um fato públi-co, no sentido de que qualquer um na mesma sala com ele sentiriaque ele está se comportando inapropriadamente, e, mesmo que nãoqualquer um, pelo menos qualquer um na mesma conversação. Éverdade que o paciente pode se comportar mal apenas porque aspessoas presentes são tomadas como substitutas das figuras real-mente significativas. Mas qualquer que seja o alvo mais profundo dodesvio de conduta, e por mais bem-sucedido que o psiquiatra sejaem garantir que ele e seu paciente estão sozinhos no consultório, odesvio de conduta é uma coisa pública, potencialmente acessível epotencialmente uma preocupação para toda e qualquer pessoa quepossa entrar na presença do paciente. E quando saímos do recintoprofissional do psiquiatra, este fato se torna mais óbvio. A psicose éalgo que pode se manifestar para qualquer um no local de trabalhodo paciente, em sua vizinhança, em sua casa, e ela deve ser vista,pelo menos inicialmente, como uma infração da ordem social queprevalece nesses locais. O outro lado do estudo de sintomas é o es-tudo da ordem pública, o estudo do comportamento em lugares pú-blicos e semipúblicos. Se quisermos aprender sobre um dos ladosdessa questão, talvez devêssemos estudar o outro também. Eu sugi-ro, então, que o comportamento sintomático pode muito bem servisto, em primeira instância, não como uma forma torturada de co-municação entre duas pessoas, e sim como uma forma de desvio deconduta social, no sentido em que Emily Post e Amy Vanderbilt re-conhecem este termo.

Eu quero, por um momento, voltar o relógio psiquiátrico e deli-near uma abordagem levemente diferente para a sintomatologia e acomunicação. Começando com o delito social de um pré-paciente,eu proponho que examinemos a regra geral de conduta que o com-portamento ofensivo infringe, e então tentemos preencher o con-junto de regras do qual aquela com que começamos é apenas umelemento, e ao mesmo tempo tentemos vislumbrar o círculo ou gru-po social que mantém as regras e é ofendido pela infração de qual-

1. Autoras de livros de etiqueta populares nos Estados Unidos [N.T..

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quer uma delas. Quando esse trabalho estiver feito, podemos voltarao ofensor individual para examinar novamente o significado paraele de seu comportamento ofensivo. Quando terminarmos essa aná-lise, deveremos estar em posição para compreender o fato constran-gedor de que um indivíduo que parece ser completamente louconum dia pode, no próximo, através da mágica da "remissão espontâ-nea", voltar a ter uma conduta "sã". Também devemos ser capazesde encontrar termos que descrevam com elegância e aptidão os sin-tomas-padrão. E, como Harold Garfinkel sugeriu, devemos estar emposição (não desejável em si mesma, mas desejável como um testede teoria) para programar a insanidade, quer dizer, reduzir ao míni-mo as instruções que teríamos que passar para um sujeito experi-mental para permitir que ele agisse lindamente como um louco, vin-do de dentro, por assim dizer.

Apesar dos cientistas sociais classificarem o comportamentopsicótico como um tipo de conduta imprópria, um tipo de desvio,há muitos anos, eles, como seus colegas médicos, não levaram mui-to a questão adiante.

Um problema é que apesar de ser bastante fácil chamar o com-portamento psicótico de desvio social, é ainda mais fácil enxergarque há muitos tipos de desvio social que não são exemplos de com-portamento psicótico - mesmo que psiquiatras e psicólogos valen-tes tenham tentado chegar às raízes doentes de tudo, do crime à des-lealdade política. Nós dizemos que criminosos comuns ofendem aordem da propriedade privada; traidores ofendem a ordem política;casais incestuosos ofendem a ordem de parentesco; homossexuaisofendem a ordem do papel sexual; viciados em drogas talvez ofen-dam a ordem moral, e assim por diante. Precisamos, então, pergun-tar: que tipo de ordem social é relacionada especificamente ao com-portamento psicótico?

O comportamento psicótico, como sugerido, vai contra aquiloque pode ser pensado como a ordem pública, especialmente umaparte da ordem pública, a ordem que governa as pessoas em virtudedelas estarem na presença física imediata umas das outras. Grandeparte do comportamento psicótico é, em primeira instância, uma fa-lha em seguir as regras estabelecidas para a conduta da interaçãoface a face - quer dizer, regras estabelecidas ou pelo menos aplica-das por algum grupo de avaliação, julgamento ou policiamento. Ocomportamento psicótico, em muitos exemplos, é aquilo que pode-mos chamar de impropriedade situacional.

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Tendo em vista que muitos sintomas psicóticos são exemplosde impropriedade situacional, precisamos nos perguntar se todas asimpropriedades situacionais são exemplos de sintomas psicóticos.Se isto fosse o caso, teríamos uma forma sociologicamente funda-mentada para diferenciar psicóticos de outras pessoas. Mas, obvia-mente, há muitas impropriedades situacionais aparentemente nãorelacionadas com a desordem mental. Há a conduta grosseira do es-trangeiro cultural, o arrogante, o excêntrico, o insolente, o cruel, ocelebrante, o bêbado, o idoso e o jovem.

Levando isto em conta, precisamos nos perguntar se essas im-propriedades situacionais que chamamos de sintomáticas têm algu-ma coisa em comum que ao mesmo tempo seja exclusiva delas. Naliteratura, há algum esforço para sugerir tais atributos. Sugere-seque uma impropriedade situacional psicótica é um ato pelo qualnão é fácil ter emparia, levando-nos a sentir que o ator é imprevisí-vel e indigno de confiança, que ele não está no mesmo mundo quenós, que não podemos nos colocar no lugar dele.

Por mais tentadora que seja essa abordagem, eu não creio queela seja correta. A distinção aguda entre impropriedades situacionaissintomáticas e não sintomáticas é certamente parte de nosso aparatoconceituai popular para olhar as pessoas; o problema é que ela nãoparece ter nenhuma relação fixa com o comportamento real ao qualela é aplicada. Não há nenhum consenso, exceto em casos extremos,sobre em qual dos dois poios devemos classificar um comportamen-to. O acordo normalmente ocorre depois do fato, depois da aplica-ção do rótulo "doença mental", ou (no outro caso), depois de suaaplicabilidade ter sido completamente rejeitada. Por isso, eu sintoque uma análise sociológica da sintomatologia psicótica deve inevi-tavelmente ser um pouco insatisfatória, incluindo um conjunto decondutas percebidas como normais além do conjunto de condutaspercebidas como psicóticas.

Comecemos agora a olhar socialmente para os sintomas. Primei-ro, exatamente o que é uma impropriedade situacional? Podemosenroscar esta questão perguntando: que tipos de eventos - apropria-dos ou inapropriados - podem ocorrer apenas em situações face aface? Algumas possibilidades são: 1) ataque físico e sexual, e interfe-rências menos dramáticas com os movimentos corporais livres. Dei-xemos essas possibilidades de lado por um momento, ainda que ob-viamente o temor da ocorrência possível desses exemplos tenha umpapel importante em nossa atitude para com os mentalmente doen-

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tes. 2) comunicação face a face: verbal, envolvendo a emissão e recep-ção de mensagens, e não verbal, envolvendo a transmissão e recolhi-mento de informações sobre o informante. Eis aquilo que é distintiva-mente situacional ou de face a face sobre a comunicação verbal e nãoverbal entre pessoas que estão presentes entre si: 1) o apoio nos senti-dos diretos ou sem auxílio e 2) o apoio em mensagens incorporadas,aquelas que só podem ser transmitidas porque o corpo do transmis-sor está presente. Como os estudantes da comunicação sugeriram, es-ses dois fatores em conjunto implicam que: 1) haverá uma simetriasimultânea de papéis (emissor será receptor, transmissor será reco-Ihedor); 2) a comunicação será muito rica em qualificado rés; 3) ha-verá oportunidades consideráveis de retroalimentação.

Por mais útil que possa ser esta análise das características comu-nicativas da interação face a face, ela ainda é derivada da suposição deque a interação face a face e a comunicação são mais ou menos a mes-ma coisa e que uma impropriedade na conduta situacional é de algu-ma forma uma patologia da comunicação. Entretanto, esta é uma su-posição muito traiçoeira, e (como já foi sugerido) sua consonânciacom uma orientação profissional intelectualista de classe média a tor-na ainda mais traiçoeira. Eu quero afirmar que quando a comunica-ção falada ocorre, a fala ocorre, ou espera-se que ocorra, apenas quan-do aqueles presentes uns aos outros se juntam num tipo especial deassociação ritualmente bem marcada, um tipo especial de amontoadoque podemos começar a pensar como um círculo conversacional.Quando ocorre uma impropriedade, como uma gesticulação manei-rista, isto se torna digno de nota, e é notado não porque algo está sen-do comunicado, mas porque as regras que tratam de como devemosnos comportar quando na presença de outros são quebradas. A co-municação verbal e não verbal é algo afunilado através de outra coisa.Esta outra coisa são os padrões aprovados de modos e associação oucoparticipação em cujos termos os indivíduos são obrigados a regularseus encontros. Agir de forma psicótica é, com muita frequência, as-sociar-se incorretamente com os outros na sua presença imediata;isto comunica alguma coisa, mas a infração em primeira instâncianão é de comunicação, e sim das regras de counião.

São essas regras, e as unidades de associação resultantes, os mo-dos sancionados resultantes de se encontrar e se separar, que supos-tamente fornecem um esquema naturalista em que muitos supostossintomas psicóticos podem ser localizados e descritos sistematica-mente. Quais são, então, as regras do comportamento apropriado

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na presença de. outras pessoas? Quais são as unidades de associação,de encontros, que essas regras possibilitam e que fornecem o esque-ma em que todos os eventos face a face ocorrem, incluindo a comu-nicação face a face?

A linguagem da sociologia tradicionalmente lida com organiza-ções, estruturas, papéis e estatutos, e não está bem adaptada paradescrever o comportamento de pessoas em virtude de sua presençaentre si. O termo "interação", infelizmente, significa quase qualquercoisa, e as unidades de análise necessárias, se quisermos nos focarsobre a interação face a face, receberam pouca consideração. Preci-samos então de uma tradução de termos estruturais para interacio-nais, enquanto mantemos a chave do método sociológico, o foco emregras e compreensões normativas. Com efeito, descrever as regrasque regulam uma interação social é descrever sua estrutura.

Enquanto um meio de começar a análise do comportamentoface a face, podemos recomendar três unidades básicas de interação.A primeira é a ocasião social: um evento, como um jantar, que é pla-nejado e rememorado como uma unidade, tem um horário e localde ocorrência, e estabelece o tom para aquilo que acontece durantee dentro dele. As ocasiões sociais parecem se misturar com aquiloque o psicólogo Roger Barker chama de ambientes de comporta-mento, especialmente no caso de ocasiões que são informais e quenão são muito percebidas como entidades em si mesmas.

Em segundo lugar, eu uso o termo ajuntamento para me referir aqualquer conjunto de dois ou mais indivíduos cujos membros in-cluem todos, e apenas aqueles, que no momento estão na presençaimediata uns dos outros. Com o termo situação social eu me referireiao ambiente espacial completo que transforma uma pessoa que nelepenetre em um membro do ajuntamento que está (ou que então setorna) presente. As situações começam quando o monitoramentomútuo ocorre e terminam quando a penúltima pessoa parte.

Quando as pessoas estão num ajuntamento, elas podem se unirpara manter um foco conjunto de atenção visual e cognitiva, ratifi-cando-se mutuamente como pessoas abertas umas às outras para aconversa ou seus substitutos. Eu chamo tais estados de fala de en-contros ou engajamentos. Estes ajuntamentos focados devem ser di-ferenciados dos casos em que as pessoas estão presentes umas às ou-tras, mas não engajadas diretamente na manutenção de um estadode fala, constituindo assim um ajuntamento desfocado. A interação

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focada é o tipo que ocorre num estado de fala; a interação desfocadaé o tipo que ocorre, digamos, quando duas pessoas se entreolhamenquanto aguardam um ônibus, mas não concederam à outra o esta-tuto de coparticipante num estado de fala aberto.

As regras que regulam o início, a manutenção e o término de es-tados de fala, abrangendo uma parte importante daquilo que Bate-son e Ruesch chamam de metacomunicação, foram razoavelmenteanalisadas na literatura, especialmente em relação a descrições deproduções verbais supostamente psicóticas, e obviamente na pes-quisa de grupos pequenos e em descrições de psicoterapia de grupo.De qualquer forma, esse aspecto da conduta situacional se encaixamuito bem com o viés ocupacional da sala de duas pessoas e a con-versa em voz baixa que os psiquiatras utilizam em sua análise docomportamento psicótico. O que talvez tenha sido ignorado nessaárea são as regras que governam os encontros entre aqueles que nãose conhecem, as regras, quer dizer, que tratam da abordagem e apro-ximação de estranhos, e, além disso, as regras que tratam do estadode estar "com" alguém.

As regras que tratam da interação desfocada - a pura e simplescopresença na mesma situação - não foram muito analisadas siste-maticamente; as poucas sugestões disponíveis vêm ou de descriçõesde retraimento, por exemplo as de Bleuler, ou de livros de etiqueta.Os sociólogos que se especializam no comportamento coletivo sefocam em pânicos, protestos e multidões, com poucas ideias sobre aestrutura do tráfego humano pacífico em lugares públicos. O respei-to que transforma meras fronteiras físicas como paredes e janelasem fronteiras comunicativas; a desatenção civil bem estruturadaque é concedida às pessoas presentes, através da qual tratamos o ou-tro como se ele tivesse sido visto, mas não como um objeto de curio-sidade indevida; a manutenção da fachada e da aparência como sesempre estivéssemos prontos para receber orientações e informa-ções do ambiente; a expressão da alocação apropriada de envolvi-mento como entre envolvimentos principais e laterais (como fu-mar) - essas exigências normativas da mera presença não recebe-ram nenhuma sistematização.

Da mesma forma, pouca atenção foi concedida ao gerenciamen-to de engajamentos acessíveis, quer dizer, engajamentos que sãomantidos na mesma situação social em que há outros engajamentose outras pessoas não engajadas. Nós apenas começamos a estudar,sob a influência de etologistas, as regras sobre espaçamento, através

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das quais os círculos conversacionais e as pessoas não engajadasnuma situação social dividem o espaço disponível de forma a maxi-mizar certas variáveis, modulando o som apropriadamente. Nãoanalisamos muito a dívida que um participante de um engajamentodeve ao engajamento em relação à situação como um todo, uma dí-vida que as pessoas se recusam a pagar quando manifestam váriasformas de descontentamento e distração; e nem, similarmente, tra-tamos muito da dívida que o engajamento como um todo deve à si-tuação social e ocasião social - obrigando aqueles no engajamento aficarem presos a ele, mas não serem levados longe demais pelo de-senvolvimento progressivo da atividade do engajamento.

Quando um paciente age de forma classicamente psicótica, eleestá ativo em relação a essas várias regras e as unidades de associa-ção que elas apoiam. Eu desejo afirmar agora que há um conjuntoextremamente amplo de motivos e razões para o indivíduo que rea-liza tal conduta. Quando um paciente com danos cerebrais e um pa-ciente funcionalmente doente manifestam desvios de conduta simi-lares - por exemplo, quando não respondem ao início de um engaja-mento - a psiquiatria encontra razões para confirmar a crença deque a conduta pode ser uma coisa médica sintomática, seja a doençaorgânica ou funcional. Mas isto certamente é uma inversão da natu-reza. É o comportamento do paciente orgânico que imita um delitosocialmente estruturado, assim como o silêncio soturno de uma co-ruja é lido por nós como um sinal de sabedoria, e é o paciente funcio-nal que manifesta o retraimento do contato em sua forma mais com-pleta e original. Uma garota de classe média alta que ignora os asso-bios, cantadas e convites de jovens favelados exemplifica o ato deestar fora de contato de uma forma ainda mais comum. Eu não co-nheço nenhum desvio de conduta psicótico que não possa encon-trar um igual na vida cotidiana na conduta de pessoas que não estãopsicologicamente doentes e nem são consideradas como tal; e emtodos os casos podemos encontrar uma multidão de motivos dife-rentes para se engajar no desvio de conduta, e uma multidão de fato-res diferentes que modificarão nossa atitude quanto à sua realiza-ção. Eu desejo apenas adicionar que os hospitais psiquiátricos, tal-vez através de um processo de seleção natural, são organizados deforma a fornecer exatamente o tipo de ambiente em que participan-tes involuntários têm recurso à exibição de impropriedades situacio-nais. Se você retira das pessoas todos os meios costumeiros de ex-pressar raiva e alienação, e as coloca num lugar onde elas nunca ti-

veram razão melhor para ter tais sentimentos, então o recurso natu-ral será se agarrar ao que resta - impropriedades situacionais.

Permitam-me tentar resumir o argumento. Quando as pessoasentram na presença física imediata umas das outras, elas se tornamacessíveis umas às outras de formas únicas. Surgem as possibilida-des de ataques físicos e sexuais, de abordar e ser levado a estados defala indesejados, de ofender e importunar através do uso de pala-vras, de transgredir certos territórios do eu do outro, de demonstrardescaso e desrespeito pelo ajuntamento presente e pela ocasião so-cial sob cujos auspícios o ajuntamento ocorre. As regras da condutade face a face que prevalecem numa dada comunidade estabelecema forma que a counião face a face deve ocorrer, e resulta então umaespécie de "Paz do rei", garantindo que as pessoas respeitarão umasàs outras através do idioma de respeito disponível, manterão seu lu-gar social e seus compromissos interpessoais, permitirão e não seaproveitarão do fluxo de palavras e pessoas e tratarão bem a ocasiãosocial. As ofensas contra essas regras constituem impropriedades si-tuacionais; muitos desses delitos prejudicam os direitos de todos ospresentes e constituem ofensas transmitidas publicamente, inde-pendentemente do fato de que muitas parecem ser motivadas pelarelação particular do ofensor com pessoas particulares presentes, oumesmo com pessoas ausentes. Essas impropriedades não são, emprimeira instância, um tipo linguístico de comunicação interpesso-al, e sim exemplos de desvios de conduta públicos - um defeito nãona transmissão de informação ou de relações interpessoais, mas dodecoro e do porte que regulam a associação face a face. É neste mun-do de formas sancionadas de associação que os sintomas psicóticosencontram seu lar natural, e é através da aquisição de um quadrosistemático das coerções da conduta pública aprovada que podemosobter a linguagem para falar bem e eficientemente sobre a sintoma-tologia. As regras para o comportamento enquanto na presença deoutros e em virtude da presença de outros são as regras que possibi-litam a comunicação face a face ordenada do tipo linguístico; masessas regras, e as muitas infrações delas que os psicóticos e outrostransgressores exibem sistematicamente, não devem em si mesmasser tratadas antes de tudo como comunicações; elas são antes detudo orientações (e sua perturbação) da organização social, a asso-ciação organizada de pessoas presentes umas às outras.

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Onde a ação está'Estar na corda bamba é a vida; o resto éespera1.

Há uma década o termo "ação" era usado, entre os jovens ameri-canos urbanos não muito afeitos à gentileza, num sentido não par-soniano em referência a situações de um tipo especial, contrastadascom situações em que "não havia ação". Muito recentemente, estalocução tem sido usada por quase todo mundo, e o próprio termotem sido flagelado sem misericórdia em comerciais e propagandas.

Este artigo, então, lida com um termo que aponta para algovivo, mas que está ele mesmo quase morto. A ação será definida ana-liticamente. Farei um esforço para descobrir onde ela pode ser en-contrada e o que isto implica sobre estes lugares.

1. ChancesOnde quer que a ação seja encontrada, também encontraremos

chances. Comecemos então com um exemplo simples de uma chan-ce, e continuaremos a partir dele.

Dois garotos encontram uma moeda de cinco centavos no seucaminho, e decidem fazer um cara ou coroa para ver quem fica com

* Este capítulo apresenta algumas dificuldades de tradução. Goffman utiliza muitostermos originários de jogos de azar e cassinos dos Estados Unidos, termos que mui-tas vezes possuem tradução apenas aproximada em português. Eu indico entre col-chetes os termos originais quando necessário, e adicionei várias notas para ajudar aesclarecer o significado de alguns deles.1. Atribuído a Karl Wallenda, falando sobre voltar a se apresentar na corda bambadepois do acidente fatal de sua trupe em Detroit. [Karl Wallenda era o patriarca dos"Wallendas Voadores", uma trupe circense famosa nos Estados Unidos por suasapresentações de alto risco - N.T.]

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ela. Eles concordam, então, em entrar numa brincadeira [play] ou,como os probabilistas chamam, uma aposta [gamble] - neste caso,uma rodada do jogo [game] de cara ou coroa.

Uma moeda pode ser usada como uma máquina de decisões, damesma forma que uma roleta ou um baralho de cartas. Com essamáquina em particular, fica claro que enfrentamos um conjuntocompletamente conhecido de resultados possíveis: cara ou coroa, an-verso ou reverso. O mesmo ocorre com um dado: na manufatura eno uso comuns2, ele apresenta seis lados diferentes como resultadospossíveis.

Tendo em vista os dois resultados possíveis quando uma moedaé arremessada, a probabilidade ou chance pode ser avaliada paracada um dos arremessos. As chances variam de "certa" a "impossí-vel" ou, na linguagem da probabilidade, de l a 0.

O que um jogador tem em mãos e corre o risco de perder é suaaposta. Aquilo que ele não tem e tem chance de ganhar com o jogopode ser chamado de prémio. O desfecho [payofj] para ele é o prémioque ele ganha ou a aposta que ele perde. A aposta e o prémio juntospodem ser chamados de bolo [pot].

Nos jogos, a probabilidade teórica [theoretical odds] refere-se àschances de um resultado favorável comparadas com as de um resul-tado desfavorável, vendo a máquina de decisão como ideal; a proba-

2. Um dado pode ser usado como uma moeda se, por exemplo, chamarmos l, 2 e 3de cara e 4,5 e 6 de coroa. Entre os tipos de dados de trapaça há dados com lados di-ferentes chamados variadamente de tops and bottoms, horses [com apenas 3 dos 6números impressos], tees, tats [dados chumbados], soft rolls [dados que rolam maisque o normal], Califórnia fourteens [dados que favorecem o resultado 14], doorpops [dados que favorecem 7 ou 11], Eastern pops [dados que favorecem 7], etc.Estes dados não têm números diferentes em cada um dos seis lados, e (como comuma moeda de faces iguais) permitem que um jogador aposte em um resultado quenão está entre as possibilidades, e cuja ocorrência então é bastante improvável. Ébom notar que dados, muito mais frequentemente que moedas, podem parar emsuas bordas (quando param de rolar encostados em outros objetos) e podem sair docampo de jogo. O gerenciamento dessas contingências lamentáveis é um dos traba-lhos dos membros de uma equipe de craps [jogo de dados mais popular nos cassi-nos americanos], especialmente o stickman [empregado responsável pela manipu-lação direta dos dados - N.T.], no sentido que suas correções verbais e físicas muitorápidas são planejadas para tornar perfeito um modelo físico muito imperfeito.

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bilidade verdadeira [true odás] é uma versão teórica das probabilida-des teóricas, envolvendo uma correção para os vieses físicos encon-trados em qualquer máquina real - vieses que nunca podem ser to-talmente eliminados ou totalmente conhecidos3. Por outro lado, aprobabilidade dada ]given odds] ou pagamento [pay] refere-se ao ta-manho do prémio comparado com o da aposta4. É bom notar que osresultados são definidos totalmente em termos do equipamento dojogo, e os desfechos em termos de recursos extrínsecos e variáveiscomprometidos no momento com resultados particulares. Assim,com probabilidades teóricas e dadas, de certo modo o mesmo termoé empregado para cobrir duas ideias radicalmente diferentes.

Avaliar o bolo em relação à chance, em média, de ganhá-lo, nosdá aquilo que os estudiosos da chance chamam de valor esperado dojogo. Subtrair o valor esperado da quantidade apostada dá uma me-dida do preço ou do lucro em média para se engajar no jogo. Expres-sar essa medida como uma proporção da aposta dá a vantagem ouporcentagem do jogo. Quando não há nem vantagem nem desvanta-gem, o jogo é considerado justo. Aqui, a probabilidade teórica é recí-proca à probabilidade dada, de forma que aquele que dá ou coloca asprobabilidades [gives or lays the odds], apostando uma soma grandena esperança de ganhar unia pequena, é compensado exatamentepela pouca chance de perder para o indivíduo que toma as probabili-dades [takes the odds].

Há jogos que permitem a escolha de uma profusão de resultadosdiferentes, cada um deles pagando variadamente e podendo até terdesvantagens diferentes para o apostador. O craps de cassino5 é umexemplo. Outros jogos envolvem um conjunto de resultados possí-veis favoráveis que pagam variadamente, de modo que o valor espe-rado do jogo deve ser calculado como uma soma de vários valoresdiferentes: as máquinas caça-níqueis e o bingo são exemplos.

3. Aqui e em outros pontos, ao discutir probabilidade eu agradeço a Ira Cisin. Ele éresponsável apenas pelos enunciados correios.4. Para aumentar a atração aparente de certas apostas, alguns desenhos de mesa decraps enunciam os ganhos não em termos de probabilidades dadas, mas em termos dobolo; assim, uma aposta cuja probabilidade dada é l em 4 será descrita como l para 5.5. Jogo de dados popular nos Estados Unidos [N.T.].

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Enquanto um jogo é um modo de adquirir um prémio, ele éuma oportunidade; enquanto ele é uma ameaça à aposta, ele é um ris-co. A perspectiva aqui é objetiva. Um senso subjetivo de oportuni-dade ou risco é uma questão bastante diferente, já que ele pode, masnão precisa, coincidir com os fatos.

Podemos definir ambos os nossos jogadores de cara ou coroacomo pessoas em cujo curso de vida encontrar uma moeda não ha-via sido previsto. Sem essa descoberta, a vida teria seguido em frentecomo esperado. Então, cada garoto pode conceber sua situaçãocomo capaz de dar a ele um ganho ou de devolvê-lo ao que é apenasnormal. Uma chance desse tipo pode ser chamada de oportunidadesem risco. Se um valentão abordasse um dos garotos e apostasseuma moeda vinda do bolso do próprio garoto (e isto acontece embairros urbanos), poderíamos então falar de um risco sem oportuni-dade. Na vida cotidiana, riscos e oportunidades normalmente ocor-rem juntos, e em todas as combinações.

O indivíduo às vezes pode voltar atrás em sua decisão de seguiruma linha de atividade quando descobre que ela provavelmente fra-cassará. Aqui não há chance, seja ela arriscada ou oportunista. Paraque a sorte esteja presente, o indivíduo deve garantir que está numaposição (ou é forçado a uma posição) de abandonar seu controle so-bre a situação, fazendo, no sentido de Schelling, um compromisso6.Sem compromisso, sem chance.

Uma nota sobre a determinação - definindo isto como um pro-cesso, e não um evento realizado. Assim que a moeda estiver no ar, oarremessador sentirá que forças decisivas começaram a trabalhar, eisto realmente ocorreu. É claro que é verdade que o período de de-terminação poderia ser ampliado para incluir a decisão de escolhercara ou coroa, ou ainda mais para incluir a decisão de jogar a moeda.Entretanto, o resultado (cara ou coroa) é determinado totalmentedurante o tempo em que a moeda está no ar; uma ordem de fatos di-ferente, como quem escolherá cara ou quanto será apostado, é de-terminada am ;s do arremesso. Resumindo, uma característica es-sencial da sit ,ação de cara ou coroa é que um resultado indetermi-

6. SCHELLING, T.C. The Strategy of Conflict. Cambridge: Harvard UniversityPress, 1960, esp. p. 24.

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nado até certo ponto - o ponto de arremessar a moeda no ar - é clarae completamente determinado depois do arremesso. Uma situaçãoproblemática é resolvida.

O termo "problemático" é tomado aqui no sentido objetivo dese referir a algo que ainda não foi determinado, mas está prestes aser. Como já foi sugerido, a própria avaliação subjetiva do ator trazcomplicações adicionais. Ele pode não ter consciência de que algoestá sendo determinado. Ou ele pode sentir que a situação é proble-mática quando na verdade a questão já foi determinada, e o que elerealmente enfrenta é a revelação ou exposição. Ou, finalmente, elepode estar completamente orientado para aquilo que está realmenteacontecendo - percebendo as probabilidades envolvidas e realisti-camente preocupado com as consequências. Esta última possibili-dade, onde temos um paralelo completo entre a situação objetiva e asubjetiva, será nossa preocupação principal.

As forças causais durante o período de determinação e antes doresultado final são muitas vezes definidas como forças de "merachance" ou "pura sorte". Isto não pressupõe algum tipo de indetermi-nismo absoluto. Quando uma moeda é arremessada, sua queda é de-terminada totalmente por fatores como o estado anterior do dedo doarremessador, a altura do arremesso, as correntes de ar (incluindoaquelas que ocorrem depois da moeda sair do dedo), e assim por di-ante. Entretanto, nenhuma influência humana, intencional e legíti-ma, pode ser exercida para manipular a parte relevante do resultado7.

Certamente existem situações de sorte em que ordens relevantesde determinação humanamente direcionada estão envolvidas emvirtude de habilidade, conhecimento, ousadia, perseverança, e as-sim por diante. Isto, na verdade, marca uma diferença crucial entrejogos de sorte "pura" e aquilo que é chamado de competições: na-queles, quando a determinação está em jogo, os participantes po-dem apenas aguardar o resultado passivamente; nestas, é exatamen-te este período que requer o exercício intensivo e sustentado de ca-

7. Cf. o argumento de MACKAY, D. "The Use of Behavioral Language to Refer toMechanical Processes". British Journal of the Philosophy of Science, XIII, 50,1962, p. 89-103. • "On the Logical Indeterminacy of a Free Choice". Minei, 69,1960, p. 31-40.

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pacidades relevantes. De qualquer forma, ainda é o caso que, duran-te competições, algo de valor para ser apostado está sujeito à deter-minação; em termos dos fatos e muitas vezes também de sua percep-ção, as influências intencionadas e efetivas são insuficientementeinfluentes para tornar a situação não problemática.

Uma característica crucial do cara ou coroa são suas fases tem-porais. Os garotos precisam decidir resolver a questão pelo cara oucoroa; eles precisam se alinhar fisicamente; eles precisam decidir oquanto do valor da moeda será apostado no arremesso e quem esco-lherá qual resultado; através da postura e de gestos eles precisam secomprometer com a aposta e assim passar do ponto sem volta. Estaé a fase de preparação [sciuaring-ofj] ou de aposta. Depois temos afase de determinação ou de jogo, durante a qual as forças causais re-levantes ativa e determinantemente produzem o resultado8. Chegaentão a fase de exposição ou de revelação, o tempo entre a determina-ção e a informação do resultado para os participantes. Esse períodoprovavelmente será muito breve, variará de acordo com os conjun-tos de participantes colocados em lugares diferentes em relação àmaquinaria de decisão9, e possuirá um suspense especial próprio.Finalmente, há a fase de assentamento, começando quando o resulta-do é revelado e durando até que as perdas tenham sido pagas e os ga-nhos coletados.

O período de que os participantes precisam numa certa jogadapara se mover pelas quatro fases dela - preparação, determinação,exposição e assentamento - pode ser chamado de duração [span] da

8. No cara ou coroa esta fase começa quando a moeda é arremessada no ar e termi-na quando ela pousa na mão - um ou dois segundos depois. Nas corridas de cavalo,a determinação começa quando a barreira é aberta e termina quando se cruza a li-nha de chegada depois da última volta, depois de pouco mais de um minuto. Emcorridas de ciclismo de sete dias, a fase de determinação dura uma semana.9. Golpes em corridas de cavalo se baseiam na possibilidade de convencer a vítimade que o período entre um resultado na pista e seu anúncio para lugares distantes élongo o bastante para realizar uma aposta certa depois da corrida, quer dizer,"apostar no passado" - uma condição que pode realmente ocorrer e que tem sidoexplorada sistematicamente. Podemos adicionar que carteadores de 21 amigáveisem Nevada, depois de escolherem uma carta, às vezes olham para ela e caçoam deum jogador sobre um destino que já foi determinado e lido, mas cuja exposição éprovocantemente atrasada.

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jogada. O período entre jogadas pode ser chamado de pausas. O pe-ríodo de uma jogada deve ser diferenciado do período de jogo, a sa-ber, a sessão, que é o tempo entre a realização da primeira aposta e oassentamento da última em qualquer ocasião que seja percebidacomo continuamente devotada ao jogo. O número de jogadas com-pletadas durante qualquer unidade de tempo é o ritmo de jogo du-rante esse tempo10. A duração média das jogadas de um jogo estabe-lece um limite superior ao ritmo de jogo, assim como o comprimen-to médio das pausas; uma moeda pode ser arremessada 5 vezes emmeio minuto; o mesmo número de decisões numa pista de cavalosexige mais de uma hora.

Tendo em vista essas distinções nas fases do jogo, é fácil cuidarde uma característica dos jogos de azar simples que poderia de outraforma passar despercebida. Quando uma jogada é realizada, sua de-terminação, revelação e assentamento normalmente se seguem ra-pidamente, muitas vezes antes que outra aposta seja feita. Uma ses-são de cara ou coroa consiste, então, de uma sequência de ciclos dequatro fases com pausas entre os ciclos. Tipicamente, o jogadormantém uma faixa de atenção e experiência contínua durante o cur-so de quatro ou cinco segundos de todas as jogadas, distraindo-seapenas durante as pausas, quer dizer, depois do assentamento deuma jogada e antes da realização de outra. A vida cotidiana normal-mente é muito diferente. O indivíduo certamente faz apostas e con-fia na sorte durante a vida cotidiana, como quando, por exemplo,ele decide aceitar um emprego em vez de outro ou se mudar de umestado para outro. Além disso, em certas junturas ele pode ter quetomar várias decisões vitais ao mesmo tempo, e assim manter porum breve período um ritmo de apostas muito alto. Mas normalmen-te a fase de determinação - o período no qual as consequências desua aposta são determinadas — será longa, às vezes se estendendo

10. Por exemplo, suponhamos que os garotos da moeda estejam engajados numjogo de morte súbita, com um arremesso determinando quem fica com a moeda. Seos dois garotos estiverem juntos nessa ocasião por uma hora, seu ritmo de apostas éde uma por hora. Se eles trocarem a moeda de cinco centavos por cinco de um cen-tavo, e arremessarem uma delas de cada vez, e apenas uma vez, então o ritmo deapostas é cinco vezes maior do que era antes, ainda que a mudança de sorte resul-tante não seja maior, provavelmente até menor.

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por décadas, seguidas de fases de revelação e assentamento que tam-bém são compridas. A propriedade distintiva dos jogos e competi-ções é que, quando a aposta é feita, o resultado é determinado e o des-fecho é concedido no mesmo sopro de experiência. Um único foco agu-do de percepção é mantido em alta intensidade durante a duraçãointeira da jogada.

2. ConsequencialidadePodemos, então, tomar alguns termos da análise tradicional do

cara ou coroa11, mas esse esquema logo nos leva a dificuldades.O padrão para a medição da quantidade de uma aposta ou pré-

mio é estabelecido ou imputado pela comunidade, o público em ge-ral, ou o mercado prevalente. Um constrangimento para a análise dejogos é que pessoas diferentes podem ter sentimentos bastante dife-rentes sobre a mesma aposta ou o mesmo prémio. Adultos de classemédia podem usar uma moeda de cinco centavos como uma máqui-na de decisões, mas dificilmente se darão ao trabalho de arremes-sá-la apenas para decidir quem fica com a máquina. Entretanto, ga-rotos pequenos podem sentir que uma reivindicação de descobridorde uma moeda de cinco centavos é uma aposta enorme. Quando épreciso dar atenção a variações no significado que pessoas diferen-tes dão à mesma aposta (ou ao mesmo prémio), ou que o mesmo in-divíduo dá em momentos diferentes ou sob circunstâncias diferen-tes, falamos de valor subjetivo ou utilidade. E assim como o valor es-perado pode ser calculado como o valor médio que resta a um bolode cinco centavos, também a utilidade esperada pode ser avaliadacomo a utilidade que um indivíduo designa a um bolo de cinco cen-tavos ponderada pela probabilidade de sua vitória.

A utilidade esperada de um bolo de cinco centavos deve ser dis-tinguida claramente da utilidade esperada de arremessar por essebolo; pois os indivíduos regularmente estabelecem um valor subje-tivo - positivo ou negativo - para a excitação ou ansiedade geradapelo arremesso. Além disso, depois do arremesso, o desprazer de

11. Um tratamento sólido, ainda que popular, pode ser encontrado em JEFFREY,R. The Logic ofDecision. Nova York: McGraw-Hill, 1965.

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perder e o prazer de vencer provavelmente não se anulam completa-mente; a diferença, para qualquer lado, também deve ser reconheci-da em média como parte da utilidade esperada da jogada 2. É possí-vel usar padrões objetivos para alcançar o significado das apostas;mas precisamos usar a noção nebulosa de utilidade para alcançar osignificado de apostar.

Quando passamos da noção clara do valor esperado de um bolopara a noção que será relevante para nossas preocupações, a saber, autilidade esperada de jogar pelo bolo, entramos em complexidadesquase insolúveis. Quando um indivíduo afirma que um dado perío-do de jogo envolve uma grande aposta, ou quando ele sente que émais arriscado do que outros, podemos envolver um conjunto intei-ro de considerações: a escala das apostas; o valor das probabilidades(e se ele as dá ou as toma); a brevidade do período de jogo; a peque-nez do número de jogadas; o ritmo do jogo; a porcentagem pagapara jogar; a variação de tamanho em relação a prémios associadoscom resultados favoráveis. Além disso, o peso relativo dado a cadauma dessas considerações variará bastante com o valor absoluto decada uma das outras13.

Para nós, isto significa que indivíduos e grupos diferentes têmfundamentos pessoais um tanto diferentes para medir o risco e aoportunidade; um modo de vida que envolva muito risco pode fazercom que o indivíduo se importe pouco com um risco que outra pes-soa consideraria proibitivo14. Assim, por exemplo, tentativas de ex-plicar a presença do jogo legalizado em Nevada às vezes citam a tra-dição mineradora do estado, um tipo de empreendimento que podeser definido como realmente muito arriscado. O argumento é que

12. Nos jogos de azar, esses fatores não são independentes. Sem dúvida, parte daexperiência obtida com o arremesso é derivada da diferença entre a satisfação decontemplar a vitória e o desprazer com a ideia da derrota.13. Obras recentes, especialmente de psicólogos experimentais, adicionaram umconhecimento apreciável a essa área através de um estratagema que obriga os indi-víduos a demonstrar uma preferência entre apostas envolvendo várias misturas deelementos. Cf., p. ex., COHEN, J. Behaviour in Uncertainty. Londres: George Allenand Unwin, 1964: cap. 3, "Making a Choice", p. 27-42. • EDWARDS, W. "BehaviorDecision Theory". Annual Review ofPsychology, 12, 1961, p. 473-498.14. Por esta e outras sugestões, eu agradeço a Kathleen Archibald.

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tendo em vista que a própria economia do estado foi baseada emapostas com o solo, é compreensível que as apostas em cassinosnunca tenham sido encaradas com muita desaprovação.

Nos jogos de azar simples e literais, então, a noção básica de"tentar a sorte" está salpicada de inúmeros significados variáveis enão totalmente realizados. Quando passamos dos jogos de azar parao resto da vida, a situação piora.

No cara ou coroa, há razões a priori e empíricas para avaliar aschances de qualquer resultado realmente como cinquenta por cen-to. A validade definitiva desta avaliação não precisa preocupar aque-les que arremessam moedas. É isso que é bom sobre moedas. Entre-tanto, em muitas situações ordinárias, o indivíduo pode ter que en-carar uma matriz de resultados que não pode ser completamente de-finida. (Isto pode surgir, por exemplo, se nossos garotos parassemdiante de uma caverna profunda com vários túneis, tentando deci-dir o que poderia acontecer se eles tentassem explorá-la.) Além dis-so, mesmo quando o conjunto completo de possibilidades de resul-tados é conhecido, as chances que devem ser atreladas â cada umadelas podem estar sujeitas a apenas uma avaliação grosseira baseadaem apelos vagos à experiência empírica15. Além do mais, o avaliadormuitas vezes não perceberá bem o quão grosseira sua avaliação é.Na maioria das situações da vida, lidamos com probabilidades subje-tivas e, por isso, no máximo uma medição geral muito frouxa, a uti-lidade esperada subjetivamente16.

15. Firmas de boa reputação que se especializam em dispositivos para trapaça emjogos de azar vendem dados de "formas" variáveis que dão ao cliente uma escolhaentre cinco ou seis graus daquilo que chamam de "força". A classificação provavel-mente é absolutamente válida. Mas nenhuma companhia jamais testou dados dequalquer suposta força por uma série de testes suficientemente longa para gerar ní-veis de confiança em relação à porcentagem favorável que estes dados sujos dão aseus usuários.16. Na literatura, seguindo F. Knight (Ris/z, Uncertainty andProfit. Boston: Hough-ton Mifflin, 1921, esp. caps. 7 e 8), o termo "risco" é usado para uma decisão cujosresultados possíveis e probabilidades são conhecidos, e o termo "incerteza" quan-do as probabilidades dos vários resultados não são conhecidas ou sequer conhecl-veis. Cf. aqui LUCE, R. & RAIFFA, H. Games and Decisiom. Nova York: Wiley &Sons, 1958, p; 13ss.). Seguindo John Cohen, B. Fox (Behavioral Approaches toAcci-dent Research. Nova York: Association for the Aid to Crippled Children, 1961, p.

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Além do mais, enquanto jogadores de cara ou coroa normal-mente jogam um jogo "limpo", e apostadores de cassino, um jogolevemente desvantajoso, os aspectos mais amplos da vida são muitomenos equilibrados neste respeito para o indivíduo; haverá situa-ções de grande oportunidade com pouco risco e de muito risco compouca oportunidade. Ademais, a oportunidade e o risco podem nãoser facilmente mensuráveis na mesma escala17.

Há um problema importante na própria noção de valor - a no-ção que apostas e prémios podem ser medidos em quantidades.Uma moeda de cinco centavos tem um valor ratificado socialmentee um valor subjetivo, em parte por causa daquilo que sua vitóriapermite, ou sua perda impede, que o arremessador faça depois. Estaé a consequencialidade da aposta, a saber, a capacidade de um desfechode fluir para além dos limites da ocasião em que ele é entregue e influen-ciar objetivamente a vida posterior do apostador. O período durante oqual essa consequencialidade é produzida é um tipo de fase de conse-quencialidade ou pós-jogo da aposta.

Agora precisamos tratar de uma questão complicada. O "valorobjetivo" e a "utilidade" são meios de estabelecer equivalentes ins-tantâneos para consequências que na realidade serão sentidas com opassar do tempo. Isto ocorre ao se permitir que a comunidade ou opróprio indivíduo estabeleça uma avaliação deste futuro, e aceite oudê um preço para ele agora. Eu desejo evitar esta sofisticação. Quan-do, por exemplo, um homem propõe matrimónio, é verdade que odesfecho é determinado assim que a garota toma sua decisão, reve-lado assim que ela dá sua resposta, e assentado quando o casamento

50) sugere usar o termo "perigo" [hazard] para chances objetivas péssimas, e "ris-co" para estimativas subjetivas de perigo. Fox iguala isto a uma distinção levemen-te diferente, aquela entre o risco percebido como inerente a uma situação e o riscopercebido como algo assumido intencionalmente. Cf. tb. COHEN,J. Behaviour inUncertainty. Op. cit., p. 63.17. O conceito de utilidade, e as técnicas experimentais de uma escolha forçada en-tre unidades e pares ligados probabilisticamente podem tentar reduzir essas varia-bilidades a um único esquema. Entretanto, esses esforços podem ser questionados.Muitas jogadas reais são realizadas em conjunção necessária com o jogador nãoperceber o risco (enquanto foca a oportunidade) ou a oportunidade (enquanto lidacom o risco). Estabelecer uma utilidade nessa falta de percepção para equilibrar ascoisas não parece uma resposta apropriada.

é consumado ou o pretendente rejeitado se retira para cortejar outrapessoa. Mas num outro sentido, a consequência do desfecho é senti-da por toda a vida que resta aos participantes. Assim como um "des-fecho" é o equivalente de valor de um resultado, a "consequenciali-dade" é o equivalente humano de um desfecho. Passamos então debolos e prémios, facilmente definíveis, para desfechos protelados,que só podem ser descritos vagamente. Esta é uma passagem dosbolos para a consequencialidade, e de apostas circunscritas paraarenas mais amplas da vida.

Alérn de todas estas limitações do modelo de cara ou coroa, háuma outra bastante central que podemos apenas tratar de forma pre-liminar agora. A experiência subjetiva desfrutada por garotinhosque jogam um cara ou coroa vem da sensação de exercer a vontadede forma leve. Uma decisão entre apostar ou não é feita sob condi-ções onde nenhuma pressão externa força a decisão, e não apostarseria uma decisão fácil e bastante prática. Quando esta decisão é to-mada afirmativamente, toma-se uma segunda sobre o resultado pos-sível para se apostar - aqui um direito ilusório, mas ainda assim di-vertido, e certamente não ilusório em jogos que envolvem habilida-de. Quando o resultado estiver definido, isto pode ser tratado comouma possibilidade que foi prevista, mas em que mesmo assim seapostou. Como consequência, a situação inteira pode facilmente servista prospectivamente como uma ocasião de sorte, uma ocasião ge-rada e governada pelo exercício de autodeterminação, uma ocasiãopara se arriscar e agarrar a oportunidade. Entretanto, na vida coti-diana o indivíduo pode nunca ter consciência do risco e da oportu-nidade que realmente existiram, ou pode perceber a aposta que esta-va fazendo apenas depois da jogada terminar. E quando a situação éabordada com seu cará ter de sorte em mente, o indivíduo pode des-cobrir que o custo de não apostar é tão alto que ele deve ser excluídocomo uma possibilidade realista, ou, quando a decisão é prática,que não há nenhuma escolha disponível sobre qual dos resultadospossíveis ele apostará. Há alguma liberdade de escolha e autodeter-minação presentes aqui, mas frequentemente não muita. O modelodo cara ou coroa pode ser aplicado a todas essas situações, mas ape-nas ignorando algumas diferenças importantes entre jogos de azarrecreativos e apostas da vida real. Deixando de lado a questão da

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quantidade em jogo, nossos dois garotos que jogam cara ou coroanão estão engajados no mesmo tipo de jogo de azar que dois sobre-viventes enfrentam sem nenhum prazer quando decidem mutua-mente que a única forma de decidir sobre quem deve se sacrificarpara deixar a jangada mais leve é um cara ou coroa; e eles, por suavez, estão sujeitos à sorte de forma diferente da de dois passageirosdoentes que são forçados por seus companheiros sadios a se subme-ter a uma decisão por cara ou coroa para ver qual dos dois não terámais direito à reserva de água do bote salva-vidas.

3. DecisividadeUm indivíduo prestes a sair de casa para comparecer a um com-

promisso percebe que está trinta minutos adiantado e tem algum"tempo livre" para utilizar ou aproveitar. Ele poderia aproveitar"bem" o tempo fazendo agora uma tarefa essencial que terá que serfeita em algum momento. Em vez disso, ele decide "passar" o tem-po. Ele pega uma revista na mesa, senta numa cadeira confortável, efolheia algumas páginas até chegar a hora de partir.

Quais são as características dessa atividade usada para passar otempo? Abordemos esta pergunta através de outra: quais são os efei-tos possíveis desse pequeno pedaço da vida do indivíduo sobre todoo resto dela?

Obviamente, aquilo que ocorre durante o tempo "passado" podenão ter nenhuma consequência para o resto da vida do indivíduo .Muitas linhas de atividade alternativas podem ser desempenhadas eainda assim sua vida continuará como está. Em vez de ler uma revis-ta, ele pode ler outra; ou ele pode passar o tempo assistindo TV, ti-rando uma soneca, ou resolvendo um quebra-cabeça. Se ele desco-brir que tem menos tempo livre do que pensara, ele pode facilmenteencerrar sua vadiagem; se descobrir que tem mais, ele pode vadiarmais. Ele pode tentar encontrar uma revista que o interesse, não

18. Fate/ulness no original. O neologismo "decisividade" é usado aqui não com osignificado de algo que precisa ser decidido, mas algo de caráter decisivo para avida de um indivíduo, algo que influenciará seu destino (/ate) [N.T.].19. Mas é claro que sua escolha do meio para passar o tempo pode expressar algosobre ele.

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conseguir, e ainda assim perder pouco devido a esse fracasso, tendomeramente que encarar o fato de que ele está temporariamente semnada para fazer. Sem ter nada para passar o tempo, ou nada suficien-te para isso, ele pode simplesmente esperar.

Momentos "desperdiçados", então, são inconsequentes. Elessão limitados e isolados. Eles não se derramam para o resto da vida,gerando um efeito nela. Em outras palavras, o curso da vida do indi-víduo não está sujeito a seus momentos desperdiçados, sua vida éorganizada de forma a ser impérvia a eles. As atividades para passaro tempo são selecionadas previamente como atividades que não po-dem emaranhar o indivíduo20.

Passar o tempo muitas vezes envolve o indivíduo em atividadesproblemáticas. A decisão sobre revista ou TV pode ser apertada, esua determinação pode só começar quando o indivíduo está prestesa se sentar. Temos aqui um comportamento problemático que não éconsequente. (É interessante notar que isto é exatamente o queocorre no cara ou coroa por cinco centavos. Nossos jovens aposta-dores podem colocar um grande valor subjetivo em ganhar a aposta,mas é muito difícil que o desfecho seja consequente.)

Em contraste ao tempo livre [time ofj] temos o tempo ocupado[time on] e seu mundo do trabalho sério organizado coletivamente,que engrena os esforços do indivíduo nas necessidades de outras pes-soas que contam com ele para suprimentos, equipamentos ou servi-ços para cumprir suas próprias obrigações. Fazem-se registros de suaprodução e entregas, e ele recebe penalidades se não conseguir reali-

20. O tempo livre aparece em todos os tamanhos, de alguns segundos a algunsanos. Ele aparece entre tarefas profissionais; no trajeto entre a casa e o trabalho; emcasa depois do jantar; fins de semana; férias anuais; aposentadoria. (Existe também -em grande parte como fantasia - o tempo longe da vida comum que Georg Simmelchama de "a Aventura".) Quando se passa o tempo livre, isto supostamente é feitoatravés de uma atividade escolhida livremente que possui um caráter de consuma-ção própria, um fim em si mesmo. Independentemente do indivíduo preencher seutempo livre com atividades consequentes ou não, ele normalmente precisa perma-necer no lugar onde os deveres sérios e agendados estão localizados, ou precisa aomenos ser capaz de voltar a ele rapidamente. É bom perceber que o tempo livrepara desperdiçar deve ser diferenciado de um vizinho próximo, o tempo que pesso-as desempregadas são forçadas a esperar e não podem justificar como um alíviomerecido de tarefas passadas ou iminentes.

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zá-las. Resumindo, a divisão do trabalho e a organização do fluxo dotrabalho conectam os momentos atuais do indivíduo aos próximosmomentos de outras pessoas de forma bastante consequente.

Entretanto, a consequencialidade de cuidar apropriadamentede nossos deveres em qualquer ocasião é muito pouco percebida.Certamente, os resultados são mais ou menos retratados antecipa-damente, mas a probabilidade de sua ocorrência é tão alta que esseproblema não parece precisar de muita atenção. Nada precisa serpesado, decidido ou avaliado; nenhuma alternativa precisa ser con-siderada. Essa atividade é realmente consequente, mas ela é bem ad-ministrada; ela não é problemática. Incidentalmente, qualquer mo-mento, seja trabalhado ou desperdiçado, terá esse elemento. É umaquestão de consequencialidade absoluta que nossos garotos conti-nuem a inalar e exalar e não batam suas cabeças numa parede deconcreto; qualquer fracasso naquele e sucesso neste pode ter efeitosmuito duradouros em todos os momentos vindouros de um garoto.Entretanto, continuar a respirar e não bater a cabeça numa paredesão objetivos perseguidos de forma tão contínua e impensada, e rea-lizados de forma tão certa e rotineira, que nunca é preciso conside-rar a consequencialidade de um lapso.

As atividades de tempo livre, então, podem ser problemáticas,mas provavelmente serão inconsequentes, e as atividades de tempoocupado provavelmente serão consequenl ;s, mas não problemáti-cas. Assim, ambos os tipos de atividade pedem facilmente ser roti-neiros: ou nada de importante acontece, ou nada de importante queseja inesperado e imprevisto.

Entretanto, uma atividade pode ser ao mesmo tempo problemá-tica e consequente. Eu chamo tais atividades de decisivas [fateful],mas o termo "extraordinário" [evení/uí] também serviria, e tratare-mos aqui deste tipo de sorte.

Precisamos admitir agora que apesar do tempo livre e o tempode trabalho bem administrado tenderem a não ser decisivos, é parteda condição humana que algum grau de decisividade sempre seráencontrado. É preciso ajustar contas com as bases primordiais dadecisividade.

Primeiro, há o tipo literário ou adventício de decisividade. Umevento que normalmente é bem administrado e não tem nada de no-

tável pode às vezes lançar decisividade no passado, dando a certosmomentos anteriores uma capacidade atípica de ser o primeiroevento numa conjunção decisiva de dois eventos. Se um de nossosjovens apostadores precisar de cinco centavos para fazer uma liga-ção telefónica crucial no momento em que a moeda é encontrada,então a chance de ganhar o jogo pode se tornar decisiva. Da mesmaforma, nosso indivíduo que passa o tempo pode ser tão absorvidopor um artigo da revista a ponto de perder a noção do tempo21 e nãose restabelecer até que seja tarde demais — uma mera irritação, a nãoser que o compromisso perdido fosse importante. Ou, folheando arevista, ele pode encontrar um artigo sobre testes de inteligênciacom exemplos de perguntas. Seu compromisso é um exame em queuma das perguntas aparece. Um momento para se desperdiçar nãoestá completamente separado dos momentos vindouros; ele pode terconexões inesperadas com eles.

Ainda que os indivíduos e suas atividades sempre estejam sujei-tos a alguma decisividade adventícia, há algumas atividades cujavulnerabilidade a este respeito é grande o bastante para servir comouma caracterização delas. Onde a coordenação e a ocultação são vi-tais, um conjunto inteiro de impedimentos menores inesperadosperde sua qualidade costumeira de corrigibilidade e se torna decisi-vo. Histórias de crimes quase perfeitos e ataques de destacamentosmilitares quase expostos cultuam essa fonte de decisividade, assimcomo histórias de trapalhadas estratégicas:

Maidstone, Inglaterra: ontem uma gangue de homensmascarados com cassetetes e martelos emboscou um car-ro carregando $28.000 para um banco local, mas elesagarraram o prémio errado - uma sacola de sanduíches.

21. Em nossa sociedade urbana é provável que o indivíduo verifique a hora periodi-camente e possa quase sempre estimar a hora aproximada. Pessoas de sono leve po-dem até se orientar constantemente no tempo. Surpreso, em alguma ocasião, sobre"como o tempo voou", o indivíduo pode na verdade querer dizer apenas uma ouduas horas. Ao perceber que seu relógio parou, ele pode descobrir que na verdadeele parou há apenas alguns minutos, e que ele deveria estar olhando para o relógioconstantemente.

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O dinheiro estava trancado no porta-malas do carro e a sa-cola com o almoço do funcionário do banco estava no ban-co do passageiro .

Ontem três ladrões que estragaram completamente o quedeveria ter sido um assalto a banco simples em Rodeo fo-ram condenados num Tribunal Federal local [...]Os três foram capturados por cerca de 40 policiais em 7 dejaneiro quando se esforçavam para fugir com $7.710 enfia-dos num saco de lavanderia que eles tinham roubado dobanco United Califórnia, o único banco em Rodeo [...]Pugh entrou com uma espingarda de cano curto e rendeuos 13 funcionários e dois clientes, enquanto Fleming,carregando uma pistola, foi ao cofre e começou a enchera sacola com notas e, infelizmente, moedas.As moedas não podem ser rastreadas - ele disse, esperto.Ele continuou a empilhar moedas até a sacola pesar cercade 100 quilos. Então ele arrastou a sacola pelo chão até aporta - e a corda gasta arrebentou.Ambos os homens então carregaram a sacola pela porta,mas ela enganchou na porta e abriu um buraco, deixandoum rastro de moedas atrás deles enquanto eles arrasta-vam a sacola para o carro de fuga, com Duren ao volante.Mas Duren estacionara perto demais do meio-fio, e ostrês não conseguiram abrir a porta para colocar o saqueno carro. Eles finalmente conseguiram depois de mover ocarro, e fugiram em alta velocidade - até a esquina. Lá ocarro parou quando os três viram o aglomerado de carrosdo xerife, da polícia e da patrulha rodoviária .

Esses erros são cotidianos e normalmente seriam absorvidos facil-mente pela reserva para correção que caracteriza a maioria dos empre-endimentos. O caráter especial da atividade criminosa (e de outrasoperações de tipo militar) é a escassez dessa reserva e daí o preço altoque deve ser pago pela desatenção e pelo azar. Esta é a diferença entre

estragar um golpe e realizá-lo com sucesso; aqui um ato se torna umfeito24.

Em segundo lugar, independentemente de quão inconsequentee isolado o momento de um indivíduo seja, e o quão seguro e bemadministrado seja seu lugar de deveres consequentes, ele precisa es-tar lá em carne e osso para o momento ser realmente seu, e essa éexatamente a mesma carne que ele precisa levar para onde quer quevá, junto com todos os danos que já tenham ocorrido a ela. Por maiscuidadoso que ele seja, a integridade de seu corpo sempre estará emalgum tipo de perigo. Ao ler, ele pode escorregar de sua cadeira, cairno chão e se machucar. Isto é certamente improvável, mas se ele deci-dir passar o tempo num banho, ou se ele ganha a vida trabalhandocom um torno mecânico, numa mina, ou em construções, a possibili-dade de se machucar seria consideravelmente maior, como demons-trado por dados atuariais. O perigo físico é uma estreita linha verme-lha que conecta cada um dos momentos do indivíduo a todos os ou-tros. Um corpo está sujeito a quedas, golpes, venenos, cortes, tiros,esmagamento, afogamento, queimaduras, doenças, sufocação e ele-trocussão. Um corpo é uma unidade de equipamento consequencial,e seu dono o está sempre colocando na linha de frente. É claro queele pode utilizar outros bens capitais em muitos de seus momentos,mas seu corpo é o único que ele nunca pode deixar para trás.

Um terceiro aspecto pertinente da condição humana trata dacopresença. Uma situação social pode ser definida (em primeira ins-tância) como qualquer ambiente de possibilidades de monitoraçãomútua que dure pelo tempo em que dois ou mais indivíduos se en-contrem na presença física imediata uns dos outros, e se estende portodo o território em que tal monitoração mútua é possível.

22. San Francisco Chronide, 10/03/1966.23. Ibid., 06/05/1966.

24. Em mundos vicários ficcionais, as operações criminosas (assim como as opera-ções secretas de vários agentes governamentais, estruturalmente similares) são rea-lizadas face a uma longa sequência de impedimentos reais e ameaçados, e cada umdeles tem uma grande probabilidade de arruinar tudo. O herói consegue sobreviverde episódio a episódio, mas apenas quebrando grosseiramente as leis da probabili-dade. Entre jovens aspiaiites a tais papéis, aqueles com inclinações probabilísticasdevem certamente ser desencorajados sutilmente.

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Por definição, as atividades de um indivíduo devem ocorrer ouem situações sociais ou solitariamente. Será que isto faz diferençapara a decisividade de seus momentos?

Para o tipo especial de consequencialidade com o qual estamospreocupados, o tipo decisivo que envolve a importância problemáti-ca da atividade de um momento sobre o próximo, não deveria im-portar se o evento está situado socialmente ou não. Afinal, nossapreocupação é com os efeitos posteriores de uma ação, e não suacondição atual. Ainda assim, a diferença entre atividades solitárias esituadas socialmente tem uma relevância especial própria.

Assim como o indivíduo sempre traz seu corpo para toda oca-sião de sua atividade, e também a possibilidade de uma ligação for-tuita de um evento já consequente a outro que, de outra forma, seriainócuo, ele também se traz como um defensor de padrões de condu-ta como competência física, honestidade, atenção, piedade e limpe-za. O registro da manutenção desses padrões pelo indivíduo forneceuma base utilizada por outros para atribuir uma caracterização pes-soal a ele. Posteriormente, eles empregam essa caracterização paradeterminar como tratá-lo - e isto é consequente. É claro que a maio-ria desses padrões é mantida impensada e consistentemente poradultos; é provável que eles só percebam essas normas quando umacidente estranho ocorre ou quando, em seus anos maduros e ritu-almente delicados, eles tentem pela primeira vez cavalgar, patinar,ou se engajar em outros esportes que requeiram técnicas especiaispara a manutenção do aprumo físico.

Em alguns casos, desvios solitários de conduta resultam numregistro de danos que podem depois ser relacionados ao ofensor.Entretanto, em muitos outros casos, não se encontra tal responsabi-lidade; ou os efeitos do desvio de conduta são efémeros (como ematos gestuais de desprezo), ou eles não podem ser relacionados a seuautor. É apenas a consciência do indivíduo que pode tornar tais ati-vidades consequentes para ele, e esse tipo de consciência não se en-contra em todos os lugares. Entretanto, quando a conduta ocorrenuma situação social - quando, quer dizer, testemunhas estão pre-sentes - então esses padrões se tornam imediatamente relevantes eintroduzem algum risco, por menor que seja.

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Podemos fazer um argumento similar sobre oportunidades dedemonstrar qualidades pessoais excelentes. Sem nenhuma testemu-nha presente, os esforços do indivíduo podem ter poucos efeitos du-radouros identificáveis; quando outros estão presentes, garante-sealgum tipo de registro.

Então, em situações sociais, riscos e oportunidades ordináriossão complicados por expressões de caracterização. A obtenção deinformação através dessa caracterização se torna disponível, muitasvezes disponível demais. As situações sociais tornam-se assim opor-tunidades para apresentar informações favoráveis sobre si mesmo, etambém se tornam ocasiões arriscadas em que fatos desfavoráveispodem ser estabelecidos.

Entre os vários tipos de objeto com os quais o indivíduo deve li-dar durante sua presença entre outras pessoas, um merece atençãoespecial: as próprias outras pessoas. A impressão que ele cria atravésde seus negócios com elas e as características que elas imputam a elecomo consequência têm uma importância especial para sua reputa-ção, pois aqui as testemunhas têm um interesse pessoal direto na-quilo que testemunham.

Especificamente, sempre que o indivíduo está na presença deoutros, ele se compromete a manter uma ordem cerimonial atravésde rituais interpessoais. Ele é obrigado a garantir que as implicaçõesexpressivas de todos os eventos locais sejam compatíveis com o es-tatuto que ele e os outros presentes possuem; isto envolve a polidez,a cortesia, e respostas punitivas a ofensas causadas pelos outroscontra o eu. E a manutenção dessa ordem, seja durante o tempo li-vre ou o ocupado, é mais problemática do que pode parecer à pri-meira vista.

Uma última palavra sobre situações sociais: a ordem cerimonialmantida pelas pessoas quando na presença imediata umas das ou-tras faz mais do que garantir com que cada participante dê e receba oque merece. Através do exercício do porte apropriado, o indivíduodá crédito e substância às próprias entidades de interação, comoconversações, ajuntamentos e ocasiões sociais, e torna-se acessível eutilizável para a comunicação. Certos tipos de desvio de conduta,como a perda do autocontrole, perturbam gravemente a usabilidadedo ator na interação face a face e podem perturbar a própria intera-

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cão. A preocupação que os outros participantes têm pela ocasião so-cial, e os fins que eles esperam que sejam obtidos através dela, jun-tos garantem que a propriedade do comportamento do ator recebaalgum peso.

Eu afirmei que o indivíduo está sempre em algum tipo de perigodevido às ligações adventícias entre eventos, à vulnerabilidade deseu corpo, e à necessidade de manter as propriedades em situaçõessociais. Obviamente, é quando acidentes acontecem - acontecimen-tos impessoais não planejados com resultados incidentais ruins -que percebemos essas fontes de decisividade. Mas é preciso consi-derar alguma coisa que não os acidentes.

As capacidades físicas de qualquer adulto normal o equipam, seele assim desejar, para perturbar imensamente o mundo imediata-mente ao seu redor. Ele pode destruir objetos, a si mesmo, e outraspessoas. Ele pode se profanar, insultar e contaminar outros, e inter-ferir com a movimentação livre deles.

Crianças não são consideradas capazes de ignorar essas oportu-nidades fáceis (e de qualquer forma elas não são desenvolvidas obastante para aproveitá-las totalmente) e são coagidas fisicamentepara não cometerem travessuras. O desenvolvimento pessoal é oprocesso pelo qual o indivíduo aprende a ignorar essas oportunida-des voluntariamente, mesmo enquanto sua capacidade de destruir omundo imediatamente ao seu redor aumenta. E essa privação nor-malmente é aprendida tão bem, que os estudiosos da vida social nãopercebem as desistências sistemáticas que ocorrem rotineiramentena vida cotidiana, e o caos completo que resultaria se o indivíduocessasse de ser um cavalheiro. Só apreciamos isto quando estuda-mos detalhadamente a perturbação notável de ambientes sociaisproduzida por crianças hipomaníacas, jovens vândalos, suicidas,pessoas patologicamente obcecadas por uma necessidade de auto-flagelacão, e sabotadores hábeis. Apesar de podermos confiar quenossos jogadores de cara ou coroa não prenderão sua respiraçãonem baterão suas cabeças numa parede, nem cuspirão um no outro,nem se lambuzarão com sua própria matéria fecal, sabe-se que paci-entes de hospitais psiquiátricos se engajam exatamente nesses com-portamentos, demonstrando muito bem a transformação de ativida-des consequenciais não problemáticas em atividades decisivas.

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4. Apostas práticasA condição humana garante que o extraordinário sempre será

uma possibilidade, especialmente em situações sociais. Mas o indi-víduo normalmente gerência seu tempo e o tempo livre de forma aevitar a decisividade. Além disso, grande parte do extraordinárioque realmente ocorre é tratado de modos que não nos interessamaqui. Há muitas ocasiões de decisividade não evitada que são resol-vidas de forma a permitir que os participantes não percebam aschances que eles de fato estavam arriscando. (A ocorrência de taismomentos, por exemplo, quando dirigimos, é em si mesma um as-sunto interessante para estudos.) E grande parte da decisividadeque ocorre como consequência de eventos estranhos e improváveisé tratada retrospectivamente; o indivíduo redefine sua situaçãocomo decisiva apenas depois do fato, e apenas assim ele compreen-de em que conexão a decisividade tinha que ocorrer. As decisivida-des retrospectiva e não percebida são abundantes, mas elas não se-rão analisadas aqui.

Ainda assim, obviamente, há nichos extraordinários na vida so-cial em que a atividade é tão enfaticamente problemática e conse-quente que é provável que o participante se oriente prospectiva-mente para a decisividade, percebendo nesses termos aquilo queestá ocorrendo. É aqui que situações decisivas sofrem uma transfor-mação sutil, reorganizadas cognitivamente pela pessoa que precisapassar por elas. É aqui que o esquema de referência empregado pornossos dois garotinhos é trazido para a vida séria por homens sérios.Tendo em vista a necessidade prática de seguir um curso de açãocujo sucesso é problemático e de aguardar passivamente o resultadodele, é possível que o indivíduo descubra uma alternativa, por maiscustosa que seja, e então se defina como alguém que escolheu livre-mente entre esta certeza indesejável e a incerteza possível. É pegarou largar, mas isto é o bastante para permitir que a situação seja lidacomo uma em que a autodeterminação é central. O perigo é redefi-nido como risco assumido; as possibilidades favoráveis como opor-tunidades agarradas. As situações decisivas se tornam empreendi-

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mentos arriscados, e a exposição à incerteza é concebida como umaaposta prática feita voluntariamente25.

Consideremos agora as ocupações em que enfrentamos conse-quencialidade problemática e em que seria fácil definir a atividadede um indivíduo como uma aposta prática feita voluntariamente:

1) Há papéis no comércio que são financeiramente perigo-sos ou pelo menos instáveis, sujeitando o indivíduo a ondasrelativamente grandes de sucesso e fracasso a curto prazo;entre eles temos os especuladores imobiliários e de ações,pescadores comerciais26, garimpeiros.

25. Os teóricos das decisões atualmente demonstram que quase qualquer situaçãopode ser formulada utilmente como uma matriz de desfechos englobando todos osresultados possíveis, e cada resultado é designado com um valor que por sua vez épesado em relação à probabilidade de ocorrência. O resultado é que condutas quepoderiam ser concebidas como automáticas e não problemáticas, ou como umaresposta obrigatória a exigências inflexíveis e tradicionais, podem ser remodeladascomo uma decisão racional tomada voluntariamente em relação a alternativas defi-nidas. Além disso, como a escolha é feita entre resultados que têm apenas uma cer-ta probabilidade de ocorrer ou, se forem certos, então apenas urna certa probabili-dade de serem satisfatórios, a decisão pode ser vista como um risco calculado, urnaaposta prática. (Caracteristicamente, a matriz de desfechos trata da mesma formaum resultado possível cuja probabilidade é um produto da natureza, como quandouma decisão sobre uma invasão leva em consideração a probabilidade de tempobom ou ruim em todos os pontos de desembarque possíveis, ou cujas característi-cas probabilísticas foram introduzidas intencionalmente através de equipamentospara apostas, como quando uma das alternativas disponíveis envolve jogar dadospor um prémio especificado.) A resistência a esse tipo de formulação pode ser atri-buída a uma falta de inclinação a encarar todas as escolhas que estão implicadasnum ato. A aceitação dessa formulação envolve uma certa quantidade de associa-ção com o diabo; aceita-se as chances, mas elas não são acariciadas. Qualquer queseja a consequência social e política dessa perspectiva da teoria das decisões, pode-mos antecipar um resultado puramente cultural, a saber, uma tendência de perce-ber cada vez mais a atividade humana como uma aposta prática. Podemos, como umparênteses, adicionar que a bomba atómica pode ter um efeito um tanto similar - atransformação das ideias sobre uma sociedade futura em ideias sobre as chances dehaver uma sociedade futura, chances estas que variam a cada mês.26. Cf. BARTH, F. "Models of Social Organization". Royal Anthropologícal InstituísOccasional Paper, 23, 1966, p. 6. Glasgow: The University Press.

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2) Há papéis na indústria que são fisicamente perigosos: mi-neração, trabalho em construções grandes27, pilotos de testes,tapadores de poços.3) Há os empregos de "promoção" [hustZing] em empresas co-merciais nas quais vendedores e promotores trabalham porcomissões ou por contratos sob condições de competiçãoacirrada. Aqui a renda e o prestígio podem ser ganhos e perdi-dos rapidamente devido a pequenas contingências traiçoei-ras: uma falta de esforço temporária, o clima, o humor passa-geiro de um comprador.4) Há empregos de performance ocupados por políticos, ato-res, e outros artistas ao vivo que, durante cada aparição nopalco, precisam trabalhar para ganhar e manter uma plateiasob condições em que muitas contingências podem estragar oespetáculo e colocar a reputação do showman em perigo.Aqui, também, qualquer falta de esforço e qualquer pequenoacidente podem facilmente ter consequências sérias.5) Há a vocação do soldado28 e a do policial - posições na vidapública que se encaixam fora das categorias de trabalho nor-mais, e fazem o encarregado ser oficialmente responsável porsofrer perigo físico nas mãos de pessoas que pretendem cau-sar isto. O fato de que essas vocações são classificadas fora dasposições civis parece reforçar a noção de autodeterminação.6) Há a vida criminosa, especialmente das variedades menoresde não extorsão, que oferece oportunidades consideráveis,mas contínua e renovadamente sujeita o indivíduo a contingên-cias terríveis - perigo físico, o risco de perder a posição civil, eflutuações amplas em relação ao pão de cada dia29. "Ganhar a

27. Uma descrição recente é TALESE, G. TheBndge. Nova York: Harper & Row, 1965.28. Que compreende, é claro, um dilema interessante: na batalha, é preciso manteruma tradição de honra e de assumir riscos, mas atrás das linhas a organização ne-cessita de homens firmes em uniformes de flanela cinza. Cf. JANOWITZ, M. TheProfessional Soldier. Nova York: The Free Press, 1960, p. 35-36.29. Um retrato autobiográfico útil da sorte envolvida continuamente na vida de umtrombadinha de favela especializado em assaltos pode ser encontrado em WIL-LIAMSON, H. Husíler! Nova York: Doubleday, 1965. Cf. tb. BROWN, C. Manchildin the Promised Land. Nova York: Macmillan, 1965, para a versão do Harlem.

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vida" nas ruas requer uma orientação constante a oportuni-dades imprevisíveis e uma prontidão para tomar decisões rá-pidas em relação ao valor esperado de planos propostos — etodos eles sujeitam o indivíduo a grandes incertezas. Como jáfoi visto, chegar e sair da cena de um crime sujeita os participan-tes ao jogo decisivo daquilo que normalmente seriam pequenosincidentes.7) Uma outra fonte de decisividade pode ser encontrada emarenas, em esportes profissionais cujos atletas colocam di-nheiro, reputação e segurança física em risco ao mesmo tem-po: o futebol, o boxe e touradas são exemplos. A vocação deStirling Moss também o é:

[...] o automobilismo em seu maior nível, na companhia maisrápida e competitiva, dirigindo em grandes prémios, é o esportemais perigoso do mundo. É uma das atividades humanas maisarriscadas. O automobilismo mata homens. Em um ano recentea taxa de mortalidade foi de vinte e cinco por cento, ou um emcada quatro. Isto pode ser comparado com as taxas de mortali-dades citadas para pilotos de caças e soldados paraquedistas .

8) Finalmente, há os esportes recreativos sem espectadoresque estão cheios de riscos: alpinismo, caça de grandes ani-mais, mergulho sem equipamento, paraquedismo, surfe, tre-nós, exploração de cavernas.

5. AdaptaçõesMomentos não extraordinários foram definidos como momen-

tos que não são consequencialmente problemáticos. Eles tendem aser monótonos e não estimulantes. (Quando sentimos ansiedadedurante tais momentos, isto ocorre por momentos extraordináriosque estão prestes a acorrer.) Mas há muitas boas razões para consi-derarmos confortável esse cará ter não extraordinário e desejá-lo,privando-nos voluntariamente de apostas práticas com seus riscose oportunidades - estas simplesmente porque muitas vezes estãorelacionadas ao risco. Isto é uma questão de segurança. Em situa-

30. MOSS, S. & PURDY, K. Ali but My Life. Nova York: Bantam, 1964, p. 10.

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coes não extraordinárias, podemos administrar cursos de açãocom confiança e atingir nossos objetivos progressiva e previsivel-mente. Através dessa autoadministração, o indivíduo permite queoutras pessoas o incluam em seus próprios planos de forma orde-nada e efetiva. Quanto menos incerta for sua vida, mais a socieda-de pode aproveitá-lo. É compreensível, então, que o indivíduo façaesforços realistas para minimizar o caráter extraordinário - a deci-sividade - de seus momentos, e que ele seja encorajado a fazê-los.Ele utiliza suportes31.

Uma técnica básica é o cuidado físico. O indivíduo se comportade forma a minimizar o perigo remoto de danos acidentais a seu cor-po. Ele não inclina demais a cadeira, nem devaneia ao atravessar umcruzamento movimentado32. Atividades desimportantes fazem asmesmas exigências que atividades obrigadas e sérias tanto quantoao problema de exercer cuidado físico quanto sobre a necessidadede fazer isto. Sempre é preciso exercer algum cuidado. Tomar cuida-do é uma condição constante do ser. Por isso, o cuidado é uma daspreocupações centrais que os pais, em todas as sociedades, deveminculcar em seus filhos33 - a injunção de "tomar cuidado" e não seenvolver desnecessariamente em decisividades evitáveis.

Outro meio de controlar a decisividade, que é quase tão empre-gado quanto o cuidado físico, é às vezes chamado de providência:uma orientação incremental a objetivos de longo alcance expressaatravés de atos que têm consequências aditivas de longo prazo mui-to pequenas. O trabalho de investir na poupança é um exemplo; aaquisição de estabilidade num emprego e a obtenção de promoçõesatravés da aquisição gradual de treinamento são outros. Criar uma

31. "Copings" no original. "Coping mechanism" ou "coping behavior" são termosusados para se referir aos artifícios, ou suportes, empregados pelos seres humanospara lidar com situações difíceis [N.T.].32. Obviamente, grande parte desse cuidado é inserido no ambiente através do pla-nejamento de segurança. Cadeiras são construídas de forma a limitar a possibilidadede quebra, bancos de forma a limitar a possibilidade de que virem, etc. Até os carrosestão começando a ser planejados de forma a minimizar ferimentos possíveis.33. Sugerido por Edward Gross.

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família grande talvez possa ser incluído. A questão importante aquié que o esforço de qualquer dia em particular, por envolver um in-cremento bastante pequeno, pode ser sacrificado sem ameaçar mui-to o conjunto. Esta é a solução calvinista para a vida: quando o indi-víduo divide as atividades dos seus dias em atividades que não têmnenhum efeito e atividades que têm uma consequência contributivamuito pequena, nada pode realmente dar errado.

Outro meio padrão de se proteger contra a decisividade são osseguros de qualquer forma, como quando compramos velas e fusí-veis extras para nosso lar, motoristas compram pneus extras, e adul-tos compram planos de saúde. Dessa forma, o custo de problemaspossíveis pode ser espalhado facilmente através de todo o curso davida de um indivíduo, uma "conversão de uma perda contingentemaior numa taxa menor fixa"34.

Os sistemas de cortesia e etiqueta também podem ser vistoscomo formas de seguro contra decisividades indesejadas, desta vezligados a ofensas pessoais que um indivíduo pode inadvertidamentecausar a outros. A administração segura da interação face a face de-pende particularmente desse tipo de controle.

É bom notar que a disponibilidade e aprovação dessas medidasde redução de risco criam uma nova contingência, uma nova basepara a ansiedade. Quando um evento desfavorável ocorre duranteum momento que não deveria ser extraordinário, e o evento ultra-passa a fronteira do momento e contamina partes da vida futura doindivíduo, ele enfrenta uma perda dupla: a perda inicial em questão,e a perda adicional de aparecer a si mesmo e aos outros como al-guém que não conseguiu exercer o tipo de controle inteligente, otipo de "cuidado", que permite a pessoas razoáveis minimizar peri-gos e evitar remorsos.

Esses, então, são alguns dos meios - em grande parte de evita-cão - que o indivíduo realisticamente utiliza como suportes para li-dar com situações de decisividade. Precisamos agora tratar de umaquestão diferente, mas que é facilmente confundida com esta — ocomportamento defensivo.

34. KNIGHT, F. Risk, Uncertainty and Profit. Op. cit, p. 246.

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Atividades decisivas previstas criam ansiedade e excitação. Istoestá implícito na noção de que é provável que a utilidade daquiloque é apostado seja bem diferente da utilidade de apostá-lo. E tam-bém, como sugerido, o indivíduo muitas vezes sente remorsosquando algo indesejado acontece cuja chance de ocorrer ele nãoconseguiu reduzir, e desapontamento quando algo desejável nãoacontece e cuja ocorrência ele poderia ter garantido. Qualquer prá-tica que administre a resposta emocional associada com a decisivi-dade — emoções como ansiedade, remorso e desapontamento — podeser chamada de uma defesa5.

Quando passamos da consideração da administração da decisi-vidade para a administração de uni estado emocional associado aela, precisamos revisar novamente as fases de uma jogada. Pois comefeito há situações em que respondemos a fases objetivamente in-consequentes de uma jogada com uma sensação de que elas são de-cisivas. Nosso indivíduo, prestes a abrir uma carta com os resulta-dos de um exame, pode se sentir excitado e ansioso a ponto de se en-gajar em pequenos rituais de expiação e controle antes de pousarseus olhos sobre a notícia terrível. Ou, quando a enfermeira se apro-xima dele com informações sobre o estado de sua esposa e o sexo deseu bebé, ele pode sentir que o momento é decisivo; como ocorreriaquando a equipe do hospital volta com notícias obtidas de umabiópsia realizada nele para avaliar se um tumor é benigno ou malig-no. Mas deve estar claro que esses momentos não são realmente de-cisivos, e sim apenas de revelação. Em cada um desses casos o desti-no do indivíduo já foi determinado antes dele entrar na situação deobtenção de notícias; ele é simplesmente informado sobre aquiloque já está ocorrendo, sobre algo que, nesse momento, ele não podefazer nada a respeito. Abrir uma carta ou analisar uma amostra de

35. A distinção entre suporte e defesa foi emprestada de MECHANIC, D. Studentsunder Stress. Nova York: The Free Press, 1962, p. 51. Uma distinção um tanto se-melhante é empregada por ANDERSON, B. "Bereavement as a Subject of Cross-Cultural Inquiry: An American Sample". Anthropology Quarterly, XXXVIII, 1965,p. 195: "O comportamento direcionado à pressão é orientado para remover, resol-ver ou aliviar as próprias circunstâncias invasoras; o comportamento direcionado àtensão para aplacar o desconforto físico ou psicológico que é produzido por essesacontecimentos".

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biópsia não podem gerar nem determinar uma condição, apenas re-velar o que já foi gerado36.

Assim como revelações podem criar a excitação e preocupaçãosobre um destino sendo gerado, isto também ocorre com assenta-mentos, ou seja, ocasiões em que questões cruciais que já foram de-terminadas de uma certa forma são finalmente executadas. Assim,na Europa moderna, os últimos passos de um condenado não eramdecisivos, mesmo que cada passo o tenha trazido mais perto da mor-te; sua execução era meramente dramática, e o julgamento era real-mente decisivo. No século XVIII, quando muitas sentenças de mor-te eram aprovadas e a maioria delas comutadas, o julgamento nãoera tão decisivo quanto o período que se seguia a ele. Obviamente,nos dias de hoje, com sua agitação contra a pena capital, o períodopós-julgamento se tornou novamente bastante decisivo.

Podemos agora voltar a tratar de defesas, ainda que de modopassageiro, para relacionar um tópico muito discutido com o assun-to deste artigo.

O tipo mais óbvio de defesa talvez seja aquele que não tem ne-nhum efeito objetivo no destino, como no caso de superstições ritu-ais. O comportamento considerado verdadeiro sobre boxeadoresservirá como exemplo:

Já que a maioria dos embates é imprevisível, os boxeadoresnormalmente têm superstições que servem para criar confi-ança e segurança emocional entre eles. Às vezes o empresá-rio ou treinador usa essas superstições para controlar o luta-dor. Um lutador acreditava que, se comesse certos alimen-tos, ele certamente venceria porque esses alimentos lhe da-vam força. Outros insistem em vestir o mesmo roupão comque venceram sua primeira luta; um deles usava um cober-

36. É claro que quando o destino não é uma questão de vida ou morte imediata, amera informação sobre aquilo que ocorreu pode iniciar o trabalho de ajuste aos da-nos, de modo que não conseguir aprender agora sobre uma perda eventual pode serdecisivo em si mesmo. Aqui, a revelação do destino não pode causar aquilo que érevelado, mas pode causar o momento de esforços reconstitutivos. Da mesma for-ma, se a rapidez da resposta do indivíduo à situação tem importância estratégicaem sua competição com outras partes, então o momento de sua descoberta sobre oresultado pode ser decisivo, mesmo que a revelação do resultado não possa influ-enciar esse resultado em particular.

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tor indígena para entrar no ringue. Muitos têm amuletos,ou consideram importante entrar no ringue depois do ad-versário [...] Alguns insistem que, se uma mulher observarseu treinamento, isso traz azar. Um boxeador, para mostrarque não era supersticioso, passava debaixo de uma escadaantes de cada luta até isto se tornar um rito mágico em simesmo. De forma consistente com esta atitude, muitos in-tensificam suas atitudes religiosas e têm Bíblias em seus ar-mários. Um lutador tinha um rosário dentro de sua luva. Seele perdesse o rosário, ele passava a manhã antes da luta naigreja. Apesar de essa atitude supersticiosa poder ser impor-tada da cultura local ou étnica, ela é intensificada entre ospróprios boxeadores, sejam eles brancos ou negros, lutado-res de preliminares ou campeões37.

Apostadores exibem superstições similares, ainda que menosreligiosas38.

Claramente, é provável que qualquer prática realista com o ob-jetivo de evitar ou reduzir o risco - qualquer suporte - terá o efeitocolateral de reduzir a ansiedade e o remorso; para resumir, é prová-vel que ela tenha efeitos defensivos. Uma pessoa que friamente re-corre a uma matriz de teoria dos jogos quando enfrenta uma decisãovital está reduzindo um risco doloroso a um risco calculado. Seu es-quema mental lhe traz paz de espírito. Como um cirurgião compe-tente, ele pode sentir que está fazendo tudo que é possível fazer e,por isso, pode aguardar o resultado sem angústia ou recriminação.Da mesma forma, uma apreciação clara da diferença entre a fase dedeterminação de uma jogada e a revelação e assentamento dela podeajudar o indivíduo a lidar com a ansiedade produzida na duração daatividade; tais distinções podem ter funções defensivas.

Não surpreende, então, que, quando não se encontra imediata-mente uma base causal para descontar o caráter determinado da si-tuação, ela pode ser procurada; e quando ela não pode ser encontra-

37. WEINBERG, K. & AROND, H. "The Occupational Culture of the Boxer". Ame-rican Journal o/Sociology, LXVIII, 1952, p. 463ss.38. Na sociedade moderna, tais práticas tendem a ser empregadas apenas com umaambivalência considerável e sem dúvida estão em grande declínio. Para a mudança dasituação a respeito de um grupo tradicionalmente supersticioso, pescadores comerciais,cf. TUNSTALL, J. The Fishermen. Londres: Macgibbon & Kee, 1962, p. 168-170.

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da, é imaginada. Assim, por exemplo, vemos que eventos determi-nados localmente podem ser interpretados como a consequência dedeterminações anteriores. Encontramos uma versão desse "deter-minismo defensivo" na crença no destino, na predestinação e emkismet - a noção de que os principais resultados de nossas vidas jáestão escritos, e não há nada que possamos fazer para melhorar oupiorar nossas chances. A máxima do soldado é um exemplo: "eu nãomorrerei até chegar a minha hora, então para que me preocupar?"39

Assim como a causalidade pode ser procurada fora da situação,ela também pode ser procurada em forças locais que servem da mes-ma forma para aliviar nosso senso de responsabilidade. Está envol-vido aqui um tipo de bode expiatório, relacionado à função de alojara eficácia causal naquilo que é visto como as partes duradouras e au-tónomas da personalidade de um indivíduo, transformando assimum evento decisivo em algo que "já se esperava". Ao sofrer um aci-dente devido à falta de cuidado, o indivíduo pode dizer: "eu sou as-sim mesmo; faço isso o tempo todo". Quando está prestes a realizarum exame crucial, o indivíduo pode se tranquilizar dizendo a simesmo que o exame será justo, e que por isso tudo depende do tra-balho que ele realizou ou não como preparação.

Além disso, a crença na sorte pura pode proteger o indivíduo doremorso de saber que algo poderia e deveria ter sido feito para se prote-ger. Aqui temos a posição oposta ao determinismo defensivo - um tipode indeterminismo defensivo -, mas as consequências são bastante si-milares. "Não é culpa de ninguém", o indivíduo diz. "Foi só azar"40.

39. Cf. a discussão sobre o destino de W. Miller em "Lower Class Culture as a Ge-nerating Milieu of Gang Delinquency".Journai of Social hsues, XIV, 1958, p. 11-12.As raízes religiosas obviamente são encontradas em João Calvino e no puritanismoascético.40. Um exemplo é citado em COHEN, J. Behaviour in Uncertainty. Op. cit, p. 147:"A possibilidade de se apoiar na 'sorte' pode ser um grande conforto em outras cir-cunstâncias. Em 1962, as universidades britânicas rejeitaram cerca de 20.000 ins-crições. A maior parte dessas pessoas reconciliou essa rejeição com seu orgulho di-zendo que a oferta de uma vaga na universidade depende tanto de sorte quanto demérito. Descreve-se os rejeitados como gente que 'envia inscrições como um apos-tador coloca moedas numa máquina de caça-níqueis, certos de que o grande pré-mio um dia chegará'".

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Obviamente, então, uma afirmação tradicional de suporte edefesa pode ser aplicada em relação à decisividade. Mas isto negli-gencia um fato mais amplo sobre a adaptação a encarar chances.Quando examinamos de perto a adaptação à vida realizada porpessoas cuja situação é constantemente decisiva, digamos, aposta-dores profissionais ou soldados da linha de frente, descobrimosque a percepção das consequências envolvidas acaba sendo amor-tecida de forma especial. O mundo que é apostado é, afinal, apenasum mundo, e o apostador pode aprender a se desfazer dele. Elepode se ajustar aos altos e baixos de seu bem-estar descontandosua relação anterior ao mundo e aceitando uma relação arriscadacom aquilo que os outros têm segurança de ter. As perspectivas pa-recem ser inerentemente normalizadoras: quando as condiçõessão encaradas totalmente, podemos construir uma vida a partir de-las, e quando isto ocorre de baixo para cima, são os altos, e não osbaixos, que são vistos como temporários.

6. AçãoApesar de ser possível lidar com todos os tipos de decisividade

através de suportes e defesas, ela não pode ser evitada completa-mente. E, o que é mais importante, existem, como sugerido, algu-mas atividades cuja decisividade é realmente apreciável se combi-narmos a quantidade arriscada, a taxa de chances, e o caráter pro-blemático do resultado. É aqui, obviamente, que o indivíduo prova-velmente perceberá a situação como a entrada numa aposta prática -arriscar voluntariamente chances sérias.

Tendo em vista as reivindicações de obrigações mais amplasque comprometem alguns indivíduos com aquilo que eles podemperceber como empreendimentos arriscados, às vezes a necessidadeé transformada em virtude. Isto é outro ajuste defensivo à decisivi-dade. Aqueles com deveres decisivos às vezes se consideram ho-mens de respeito próprio que não têm medo de se colocar na linhade frente. Em todos os encontros (afirmam eles) estão prontos paracolocar seu bem-estar e reputação em perigo, transformando en-contros em confrontos. Eles têm um desprezo mais ou menos secre-to por aqueles com empregos seguros e confiáveis que nunca preci-sam encarar testes reais de si mesmos. Eles afirmam que não apenas

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estão dispostos a permanecer em empregos cheios de oportunida-des e riscos, mas que buscaram esse ambiente deliberadamente, re-cusando-se a aceitar alternativas seguras, sendo capazes, dispostos eaté inclinados a viver no desafio .

Dizem que ladrões e batedores de carteiras talentosos, cuja ha-bilidade sempre é exercida sob pressão, desprezam pequenos trom-badinhas, pois a única arte de que estes precisam para sua vocação éuma certa malícia indigna42. Os criminosos também podem depreci-ar compradores de objetos roubados como "ladrões sem coragem"43.Da mesma forma, carteadores de cassinos de Nevada podem come-çar seus turnos sabendo que são eles que precisam encarar as inten-ções duras dos jogadores de ganhar, e ficar friamente no caminhodeles, bloqueando consistentemente a habilidade, a sorte e as trapa-ças para não perderem a reputação precária que têm com os geren-tes. Tendo que enfrentar essas contingências todos os dias, eles sesentem separados dos funcionários dos cassinos que não estão na li-nha de tiro.

Em alguns cassinos há carteadores especiais que são trazidospara um jogo para ajudar a natureza a corrigir as séries custosas deboa sorte que os jogadores ocasionalmente experimentam, ou pararemover a incerteza que o supervisor [pit boss] pode sentir quandoum grande apostador começa a jogar seriamente. Esses carteadorespraticam artes que exigem delicadeza, velocidade e concentração, eo trabalho pode facilmente ser estragado visivelmente. Além do

41. E. Hemingway (Death in the Aftemoon. Nova York: Scribners, 1932, p. 101) su-gere que homens dessa estirpe, com pouca inclinação a fazer cálculos precisos, têmsua própria doença: "a sífilis foi a doença dos cruzados na Idade Média. Suposta-mente ela foi trazida para a Europa por eles, e esta é uma doença de todas as pessoasque levam vidas em que predomina o desprezo pelas consequências. Ela é um aci-dente industrial, esperado de todos aqueles que vivem vidas sexuais irregulares eem cujos hábitos mentais preferem se arriscar a usar profiláticos, e é um fim, oufase, a ser esperado por todos os fornicadores que levam suas carreiras longe de-mais". A penicilina enfraqueceu esse caminho para a hombridade.42. SHAW, C. "Juvenile Delinquency - A Group Tradition". Bulletin of the StateUniversity of lowa, 23, n. 700, 1933, p. 10, apud CLOWARD, R. & OHLIN, L. De-linquency and Opportunity. Nova York: The Free Press, 1960, p. 170.43. BLACK, S. "Burglary", II. The New Yorker, 14/12/1963, p. 117.

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mais, é provável que o jogador nesse momento esteja profundamen-te comprometido e procurando aberta e até beligerantemente numcampo pequeno as provas que têm que estar lá. Os "mecânicos" dedados e cartas habilidosos compreensivelmente desenvolvem des-prezo não apenas por não carteadores, mas também por meros carte-adores44. Os pequenos pescadores que eu conheci nas Ilhas Shetlandtinham um sentimento parecido; durante cada uma das cinco ouseis jornadas de um dia de pescaria, eles se sujeitavam a uma apostaséria por causa da variabilidade extrema da pesca45. Espiar a redequando o guincho a trazia para fora d'água com seus peixes era umaemoção, e aqueles que a experimentavam sabiam que era algo queseus colegas da ilha não eram homens o bastante para querer supor-tar regularmente. É interessante notar que Sir Edmund Hillary46,que veio a praticar uma vocação realmente arriscada, nos deu a se-guinte opinião sobre o trabalho que sustentava a ele e seu pai, a sa-ber, a apicultura:

Era uma vida boa - uma vida de ar puro e sol e trabalho fí-sico duro. E, numa maneira singular, era uma vida de in-certezas e aventura; uma luta constante contra os capri-chos do clima e uma correria louca quando todas as nos-sas 1.600 colmeias decidiam enxamear ao mesmo tempo.Nós nunca sabíamos como seria nossa safra até extrair oúltimo quilo de mel das colmeias. Mas durante todos osmeses excitantes do fluxo de mel, o sonho de uma safraexcepcional nos motivava durante as horas longas e du-ras de trabalho. Eu acho que éramos otimistas incuráveis.E durante o inverno eu muitas vezes perambulava pornossas lindas colinas cobertas de arbustos e aprendia um

44. Com alguma reverência, carteadores citam como um modelo de referência os"mecânicos" de vinte-e-um em Nova York que trabalhavam ao lado do antro damáfia Murder Incorporated, e diariamente jogavam com clientes que provavelmenteseriam visivelmente intolerantes de qualquer carteador que fosse apanhado trapa-ceando. Certamente, aqueles que eram capazes de sobreviver a tal ocupação devemter se sentido homens de aprumo considerável, à altura de qualquer outra pessoaimaginável nesse departamento.45. Estudo de Campo, 1949-1950.46. Líder da primeira expedição a chegar ao topo do Monte Everest [N.T.].

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pouco sobre confiar em mim mesmo, e sentia as primei-ras agitações leves do interesse pelo desconhecido47.

Quando nos deparamos com essas posições podemos suspeitarque elas estão tentando adoçar coisas ruins - elas seriam mais umaquestão de racionalizações do que de descrições realistas. (É comose a ilusão da autodeterminação fosse o pagamento que a sociedadedá aos indivíduos em troca de sua disposição a realizar trabalhosque os expõem ao risco.) Afinal, mesmo com papéis ocupacionaisarriscados, a escolha ocorre principalmente no momento em que opapel é aceito, e outros mais seguros são descartados; quando o in-divíduo se compromete com um nicho particular, é mais provávelque o fato de ele ter que encarar aquilo que ocorre lá expresse coer-ções firmes do que redecisões diárias. Aqui o indivíduo não pode es-colher abandonar as apostas na sorte sem consequências sérias parasua posição ocupacional48.

Entretanto, há atividades decisivas que são definidas socialmen-te como aquelas em que um indivíduo não está sob nenhuma obri-gação de continuar a desempenhar depois de começar a fazê-lo. Ne-nhum fator extrínseco o compele a encarar o destino em primeirolugar; nenhum objetivo intrínseco dá razões úteis para sua partici-pação continuada. Sua atividade é definida como um fim em si mes-mo, procurada, aceita e completamente sua. Seu registro durante aperformance pode ser reivindicado como a razão pela participação,sendo assim uma expressão direta e irrestrita de sua composiçãoverdadeira e uma base justa para a reputação.

Com o termo ação eu me refiro a atividades que são consequen-tes, problemáticas e realizadas por aquilo que é considerado seu

47. HILLARY, E. High Adventure. Nova York: Dutton, 1955, p. 14.48. Dean MacCannell sugeriu que há pessoas que apostam os próprios empregos,como quando um vigia noturno arrisca ir ao cinema durante seu turno e gosta daaposta tanto quanto do filme. Entretanto, esses empregos são caracteristicamente"meros" empregos, ocupados e abandonados rapidamente por pessoas que não sãoespecificamente qualificadas para eles e que não são qualificadas para nada melhor.Quando esses trabalhos são sujeitos a uma supervisão apenas errática, podem ocor-rer as apostas com o emprego.

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próprio bem. O grau de ação - sua seriedade ou realidade [realness] -depende do quão completamente essas propriedades são enfatiza-das e está sujeito às mesmas ambiguidades relacionadas à mensura-ção do que aquelas descritas no caso das chances. A ação parece sermais marcada quando as quatro fases da jogada - preparação, deter-minação, exposição e assentamento - ocorrem num período de tem-po breve o bastante para estar contido num feixe de atenção e expe-riência contínuo. É aqui que o indivíduo se liberta para o momentopassageiro, apostando seu estado futuro naquilo que transpira pre-cariamente nos segundos que virão. Em tais momentos, é provávelque um estado emocional especial seja despertado, emergindo trans-formado em excitação.

O local da ação pode mudar fácil e rapidamente, como qualquerjogo de dados flutuante prova; na verdade, se uma briga de facas co-meçar ao lado de uma mesa de dados, a ação pode mudar de localenquanto muda de tipo, e ainda assim os participantes aplicarão amesma palavra, como se a ação numa situação fosse por definição aação mais séria naquela situação no momento, independentementede seu conteúdo49. Ao fazer a pergunta famosa: "Onde está a ação?",um indivíduo pode estar mais preocupado com a intensidade daação que encontra do que com o seu tipo.

Quem quer que participe na ação o faz em duas capacidadesbastante distintas: como alguém que arrisca ou aposta algo valio-so, e como alguém que precisa realizar quaisquer atividades quesejam exigidas. Nesta última capacidade, o indivíduo normalmen-te precisa estar sozinho50, arriscando sua reputação de competên-

49. Assim, N. Polsky ("The Hustler". Social Problems, XII, 1964, p. 5-6) sugere queum jogo de sinuca entre jogadores habilidosos por uma aposta pequena ficará emsegundo lugar em relação a um jogo entre jogadores menos hábeis que estão apos-tando quantias mídores.50. A capacidadí de realizar tende a ser imputada ao indivíduo, mas há situações,como molestarr ntos de gangues, em que essa capacidade claramente é derivada dosreforços visívei, que ele pode invocar prontamente. Além disso, há algumas situa-ções cuja ação surge porque um conjunto de atores se comprometeu a realizar atosintricadamente coordenados - como em alguns roubos recentes. O próprio cálculodas interdependências face a várias contingências se torna uma fonte de ação.

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cia oin jogos'1. Mas na primeira capacidade ele pode facilmentecompartilhar sua aposta com outras pessoas ou mesmo deixá-las"ficar" com ela totalmente. A ação, então, normalmente é algo doqual podemos ter um "pedaço"; o realizador da ação tipicamente éum único indivíduo, mas o grupo que ele representa pode conteruma escalação de membros comprometidos conjuntamente que va-ria rapidamente. Entretanto, para a análise, é conveniente focar nocaso em que o realizador fica com sua ação inteira, e não pega a demais ninguém.

É claro que foi no mundo dos jogos de azar que o termo "ação"começou enquanto gíria, e o jogo de azar é o protótipo da ação. Noscassinos de Nevada podemos encontrar os seguintes usos: "ação dedólar", refere-se a pequenos apostadores e seus efeitos na renda dodia; e "ação boa [ou real, ou grande]" refere-se a rendas maiores.Diz-se que carteadores que são intimidados por grandes apostado-res são incapazes de "dar cartas para a ação", enquanto carteadoresfrios são "capazes de lidar com a ação". Naturalmente, carteadoresnovatos são "retirados da ação" e, quando as apostas se tornamgrandes e variadas numa mesa de craps, o melhor dos apostadorespróximos ao carteador pode ser "colocado ao lado da ação". Dizemque cassinos que tentam evitar jogos de limites altos "não querem aação". Um grande apostador conhecido por "deixar" muito dinhei-ro pode ser recebido calorosamente num cassino porque "gostamosda ação dele". Supervisores, sempre preocupados em mostrar quede alguma forma merecem o seu salário, "ficam de olho na ação" auma distância segura. Um trapaceiro conhecido, ou alguém capazde "contar cartas" em vinte-e-um, pode ser ordenado a deixar o cas-sino permanentemente com a frase "não queremos a sua ação". Jo-gadores indecisos "atrasam a ação", e aquele que não consegue co-brir tudo aquilo que é considerado uma boa aposta pode fazer comque outro jogador pergunte se ele pode "aguentar o resto da ação".

51. É bastante possível que um indivíduo esteja mais preocupado com sua reputa-ção como um realizador do que com o valor objetivo do bolo em jogo. Por exem-plo, carteadores de cassino, especialmente no começo da carreira, podem acharmais difícil dar as cartas para uma grande aposta durante seu turno do que adminis-trar uma aposta do mesmo tamanho como um cliente depois do trabalho.

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Gerentes de cassino merecedores podem ser recompensados "rece-bendo um pedaço da ação", ou seja, uma parte da propriedade("pontos"). É provável que em cassinos com apenas um aglomeradode mesas (um "buraco" ["pit"]) exista uma mesa que, devido à sualocalização ou apostas máximas especiais, seja chamada de "mesada ação", assim como em cassinos grandes existe aquilo que é cha-mado "buraco de ação" com apostas mínimas altas52.

Apesar de a ação ser independente do tipo e relacionada com aquantidade, esta, por si mesma, não pode ser tomada como um sim-ples produto do tamanho de cada aposta pelo número de jogadoresapostando. Isto fica muito claro no craps. Uma mesa cujo único joga-dor está fazendo apostas de cem dólares pode ser vista como tendomais ação do que outra mesa cujos vinte jogadores estão fazendoapostas de cinco e dez dólares. Uma mesa "entupida" de jogadores fa-zendo muitos tipos diferentes de apostas pode ser vista como tendomais ação do que outra mesa em que dez jogadores estão apostandoum agregado maior através de apostas simples. Similarmente, dizerque um carteador pode "cuidar da ação" pode significar ou que elepode dar as cartas friamente para um apostador muito grande, ou queele pode dar as cartas veloz e precisamente quando é necessário fazerrapidamente um grande número de cálculos e desfechos.

Outro aspecto do uso do apostador do termo "ação" surge dofato de que a ação e as chances que ela envolve podem constituir afonte do ganha-pão diário do apostador. Assim, quando ele pergun-ta onde a ação está, ele não está meramente procurando situações deação, mas também situações em que ele pode praticar sua ocupação.Algo semelhante é encontrado na concepção do ladrão e da prosti-tuta de onde a ação está - a saber, onde os riscos para se ganhar avida estão disponíveis atual e amplamente53. Aqui, comprimida or-

52. Da mesma forma, N. Polsky ("The Hustler". Op. cit, p. 5) relata que certos sa-lões de sinuca são identificados nacionalmente como "salas de ação", e dentro deum salão haverá uma ou duas mesas reservadas informalmente para a ação.53. Sugerido por BECKER, H. The Dictionary of American Underworld Lingo. NovaYork: Twayne, 1950 (org. por GOLDIN, H.; O'LEARY, F. & LIPSIUS, M.). Defineação como: Atividade criminal. "Aparece hoje à noite, Joe, tem ação - um jogo(roubo) no Brooklyn".

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gulhosamente em uma palavra, temos uma reivindicação de uma re-lação muito especial com o mundo do trabalho.

Sem dúvida foram os apostadores que aplicaram em primeirolugar seu termo a situações fora de jogos de azar, iniciando assimuma difusão de uso que não apostadores recentemente estenderamainda mais. Mas quase sempre o uso parece apropriado. Subjacenteà diversidade aparente de conteúdo está uma única propriedadeanalítica que pode ser sentida com certeza por pessoas que poderi-am ser incapazes de definir com precisão aquilo que sentem.

Não há lugar melhor para ver essa difusão de uso do que a pro-moção recente da ação em nossa mídia de massa. Na verdade, con-tribuintes da mídia recentemente ajudaram a esclarecer o significa-do interno do termo e a mostrar sua aplicabilidade a novos conjun-tos de situações, dando uma ênfase especial à cultura popular atual.Assim, um anúncio de jornal para o "Dia dos Adolescentes" noWhiskey à Go Go (sem álcool, música ao vivo), declara:

Dance a música Big Beat do Whiskey à Go Go original -WHISKEY À GO GO, ONDE A AÇÃO ESTÁ!54

Herb Caen, reportando sobre acontecimentos na Baía Leste,afirma que:

O Sr. Larry Lawrence, pres. do Hotel dei Coronado, e oacionista Al Schwabacher Jr. se encontraram na CabanaP'Alto outro dia, e é por isso que há um boato por aí di-zendo que Al pode comprar um pedaço da ação históricado Coronado55.

Caen também escreve:Você sabe onde a ação está nas noites? Em Oakland, é láque ela está. Ou pelo menos foi o que pareceu ontem,num bar de strip-tease na Praça Jack London, onde o pre-feito de Oakland, John Houlihan, e o milionário BernieMurray se envolveram num empurra-empurra que termi-

54. San Francisco Chronide, 07/08/1965.55. Ibid., 22/07/1965. Herb Caen foi um famoso jornalista americano, conhecido,entre outras coisas, por popularizar os termos beatník e hippie [N.T.].

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nou com Sua Excelência caído de bunda no meio da pistade dança - com as dançarinas dançando o /ntg56 sobre eao redor de sua figura deitada [,..]"57

O Lãs Vegas Sun, sob uma foto da competição, relata:AÇÃO DE BRIDGE - espectadoras assistem com atençãoa especialistas em bridge competindo no Hotel RivieraJ8.

Durante outro torneio, uma chamada de coluna no Sun afirma:Ação de Gin9 vai para a segunda rodada60.

E o colunista do mesmo jornal relata:A dança sexy de Shirley Jones do filme Elmer Gantry noFlamingo hoje em dia é a ação mais explosiva desde JulietProwse [...]61.

Uma chamada de capa da revista Newsweek:SINATRA: Onde a ação está62.

Um anúncio colorido na revista Look:7-UP [...] ONDE TEM AÇÃO! Seven-up é a bebida natu-ral para a turma da ação! Ela tem a faísca que dança [...] ea ação que manda a sede embora. Procure isso. 7-UP [...]onde tem ação!63

E um anúncio na revista Califórnia Living, mostrando uma garo-ta passando batom, e sugerindo que "a boca de uma garota está sem-pre se movendo", tem como título:

Onde a ação da beleza está64.

56. Tipo de dança parecido com o twist, em moda por um breve período nos anos1960 [N.T.].57. San Francisco Chronide, 24/09/1965.58. Lãs Vegas Sun, 10/02/1965.59.Jogo de cartas americano semelhante ao buraco [N.T.].60. Lãs Vegas Sun, 04/12/1965.61. Ibid., 20/04/1965.62. Newsweek, 06/09/1965.63. Look, 24/08/1965.64. Califórnia Living, 07/11/1965. A ação também aparece em outras partes inespe-radas do corpo. Meu vendedor de bebidas, promovendo uma cerveja holandesa im-

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Uma foto de capa de página inteira da mesma revista exibe duasmodelos numa seção de uma loja de departamentos decorada comoum ponto de encontro de adolescentes, sobre um título que diz:

Confira a ação da moda65.E um artigo sobre a venda pelo departamento de polícia de San

Francisco de artigos recuperados de roubos que não foram reivindi-cados relata que o leiloeiro "mantém o ritmo acelerado para cente-nas de compradores fazendo ofertas":

Se não há honra entre ladrões, também não há um deno-minador comum dos roubos. Confira a ação no leilão dapolícia para ver por quê .

Colunistas financeiros, é claro, também recorrem ao termo:Se foi o pânico para vender que tomou o mercado em ou-tubro de 1929 e maio de 1962, então hoje certamente es-tamos nas garras do pânico para comprar. Pelo menos éassim que Shearson, Hammill & Co. enxergam o va-le-tudo atual.Aparentemente a principal motivação no momento é omedo de perder ou ter perdido uma grande oportunidadede compra - observa a firma de corretagem.Em grande parte, todo dia os compradores de ações - nãousaremos o termo "investidores" - estão indo para onde aação está, e ela não é difícil de encontrar.Para qualquer um que deseje um pouco da ação, Shear-son aconselha o seguinte: [...]67.

Grandes vendas ocorreram durante a primeira hora e osregistros de cotações começaram a não conseguir acom-panhar a ação68.

portada barata, abre uma garrafa para mim, coloca perto do meu rosto, e diz: "Expe-rimenta esta ação".65. Ibid., 13/02/1966.66. Califórnia, 17/04/1966.67. WATSON, L. San Francisco Chronide, 23/04/1966.68. Boston Travder, 22/08/1966.

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Aqueles que escrevem sobre contratos governamentais podemempregar o termo, evocando uma imagem de ocasiões em que deci-sões, alocações e oportunidades muito boas estão em pleno proces-so de determinação:

The Chronide descobriu ontem que a firma de investi-mentos do poderoso lobista Tom Gray ganhou um peda-ço de $40.000 da ação quando a Junta de Supervisoresaprovou uma extensão de $2 milhões do estacionamentoFifth and Mission69.

Essas ênfases jornalísticas têm importância. O culto dos car-ros fornece um bom exemplo. Encontramos um apoio para estemundo no automobilismo profissional e o esporte público orga-nizado ao redor dele. Outro apoio é a propaganda, e eu cito doisexemplos de uma brochura em cores recentemente impressa pelaBuick:

Pense num carro cheio de ação, com linhas clássicas, ágilcomo um gato, e luxuoso como não se pode sequer ima-ginar. O carro em que você está pensando é o Riviera daBuick. Temos aqui uma mistura única de performance fla-mejante (325 cavalos) e equilíbrio sólido que diferencia oRiviera de todos os outros carros. Em outras palavras, éum carro que estaria igualmente em casa em estradas epistas de corrida.

A ÊNFASE ESTÁ NA AÇÃO! Um carro só ganha vidaquando você gira a chave para ligar o motor. Este é o me-lhor momento de ter um Buick. Com qualquer um dosseis motores e quatro transmissões da Buick, você com-prou um pedaço de ação que não parará nunca.

Essas duas fontes de publicidade contribuem para a fabricação,venda e uso de carros esportivos e sedas rápidos, e isto por sua vezfornece equipamentos oficiais para transformar as estradas em ce-

69. "Uma parte de $40.000 da Ação". San Francisco Chronide, 04/08/1966, p. 1.

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nas tlc ação, lugares onde habilidade, impaciência e veículos carospodem ser exibidos sob condições seriamente arriscadas70.

Neste ensaio, a ação será considerada principalmente no con-texto da sociedade dos Estados Unidos. Apesar de sem dúvida todasas sociedades terem cenas de ação, foi nossa própria sociedade queencontrou uma palavra para ela. É interessante notar que percebe-mos a ação num momento em que - comparado com outras socie-dades - nós diminuímos bastante na vida civil a ocorrência de deci-sividade do tipo sério, heróico e zeloso.

Uma última palavra sobre a disseminação de palavras. Na joga-tina de cassinos, quando um jogador faz uma aposta grande e a per-de, ele às vezes se refere ao que fez como "uma furada" [blowing it].Então, engajar na ação sem sucesso é "furá-la". A implicação é queuma aposta desejável (neste caso monetária) que possuíramos agorafoi perdida, e que nem a posse da aposta nem sua perda eram parti-cularmente justificadas ou legítimas. Furar uma aposta grande pas-sa uma má impressão sobre si mesmo, mas não tão ruim que sejainadmissível acusar-se facilmente de ter feito isso. É este complexoque acabou sendo generalizado.

Funcionários de cassinos novos no emprego sentem que haveráum grande lucro se eles conseguirem "chegar lá", mas que não hánenhuma forma prática de garantir que eles chegarão. Durante essa

70. Dirigir muitas vezes se torna urna forma de ação, e a relação entre práticas de di-reção cotidianas com o mundo idealmente perigoso das pistas de corrida, e o mun-do de promoção de sonhos da publicidade de carros é um tópico social importante,talvez percebido suficientemente apenas por aqueles que têm um interesse profis-sional em diminuir as taxas de acidentes. Cf., p. ex., JONES, M. "Who Wants SafeDriving". The Observer, Resenha de Fim de Semana, 16/08/1964, p. 17. • COHEN,J. Behaviourin Uncertainty. Op. cit.: cap. 5, "GamblingwithLife on the Road". •ROBERTS, J.; THOMPSON, W. & SUTTON-SMITH, B. "Expressive Self-TestinginDriving". Human Organization, 25, l, 1966, p. 54-63. Dirigir para "ganhar tempo"poupa uma quantidade notavelmente pequena de tempo, mas gera uma corrente deação subjacente; muitas vezes parece que estamos poupando tempo para experi-mentar riscos. Algumas pessoas gostam de viagens aéreas pela mesma razão. Elasprogramam sua partida para o aeroporto de forma a minimizar a espera quandochegarem lá, e incidentalmente se certificam de haver algum perigo de perder o vooe, uma vez no avião, eles apreciam uma sensação de um leve perigo de vida durante

fase difícil, há muitas pequenas infrações de regras que servemcomo justificativa suficiente para demissão: chegar alguns minutosatrasado para o turno; recusar uma tarefa indigna; errar no manu-seio das fichas; ser irreverente quanto a uma perda da casa; expres-sar impaciência sobre o ritmo do próprio progresso, e assim pordiante. Quando a habilidade e reputação são adquiridas, a estabili-dade é apenas um pouco mais segura: séries de má sorte; suspeitasinfundadas de roubo; mudanças na administração; tudo isso poderesultar em justificativas para uma demissão repentina.

A perda de um emprego devido a algo que também pode, defato, ser visto como um lapso insignificante também é uma "fura-da". Em contraste à perspectiva de classe média que tende a definir aposição ocupacional como algo que só pode ser adquirido e perdidomerecidamente, a situação ocupacional para o funcionário de cassi-nos tende a oscilar muito rapidamente entre "chegar lá" e "furar", enenhum desses estados é visto como particularmente justificado.Essa perspectiva se espalhou para outras áreas da vida, e um cartea-dor pode falar sobre ter furado seu casamento ou sua chance de umaeducação universitária.

A lógica dessa atitude vigorosa diante das características funda-mentais da vida, que implica uma defesa profunda para a vida comação, pode ser entendida em referência à organização social de Ne-vada: a relativa facilidade de divórcios e casamentos; a presença deum número muito grande de pessoas que fracassaram profissionalou conjugalmente; uma tradição de fronteira de não se fazer per-guntas sobre a história ou o ganha-pão atual das pessoas; a possibili-dade clara de conseguir um emprego equivalente no outro lado darua depois de ser demitido; a alta visibilidade de um grande númerode empregados de cassinos conhecidos por terem trabalhado recen-temente em empregos melhores em outros cassinos; o fato de querodadas esporádicas de jogos grandes significam a realização espo-rádica da experiência ideal de uma cultura, de forma que, por maislongos e magros que sejam os dias entre rodadas, esse uso do pró-prio dinheiro pode ser o melhor que Nevada pode oferecer. De qual-quer modo, a ação não é o único termo que parece ter se dissemina-

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( l o a partir das mesas de jogos. Há uma família de termos que pareceestar envolvida, e a família inteira parece estar migrando71.

7. Onde a ação estáEu afirmei que a ação é encontrada sempre que o indivíduo vo-

luntariamente arrisca chances consequentes percebidas como evitá-veis. Normalmente, a ação não será encontrada durante a rotina detrabalho dos dias úteis, em casa ou no emprego. Pois aqui as coisastendem a ser organizadas de forma a deixar as chances de fora, eaquelas que permanecem não são obviamente voluntárias. Onde,então, encontramos rotineiramente a ação? Permitam-me resumiras sugestões já feitas de passagem.

Primeiro, os competidores encontram ação no esporte competi-tivo comercializado. Talvez porque essa atividade seja encenadapara uma plateia e assistida por diversão, sentimos que não poderiaexistir uma razão completamente séria para se engajar na atividadeem si. E também o fato de que amadores realizam essas atividadesespetaculares sozinhos, privadamente e sem receber por isso, comorecreação, reforça a noção de que os profissionais estão engajadosnuma vocação autodeterminada de livre e espontânea vontade. Istoé o caso mesmo que esteja claro que interesses profissionais e co-merciais podem ser apostados de forma organizada sobre o resul-tado do espetáculo. Apesar de um piloto de corridas poder ganhar avida ao volante, e a decisão de uma companhia de manter ou cance-lar um modelo de automóvel pode depender do resultado de uma

71. Além de "ação" e "furar", precisamos contar a frase "chegar lá" [having it made]como sendo uma fonte de renda, merecida ou não, que permite uma vida de poucotrabalho e despesas consideráveis, e um sentido da frase "ter um esquema" [to havesomething goingfor oneselj], a saber, algum tipo de vantagem, como quando umfuncionário de cassino diz que nunca joga vinte-e-um a não ser que tenha um es-quema com o carteador - incidentalmente, uma condição de jogo que é muito difí-cil de evitar. Eu não tratarei aqui de um termo usado por funcionários de cassinoem muitos contextos: to hustle. Este é um membro adotado da família de termos decassino, originário de um negócio mais antigo. [To hustle, em cassinos, significa"fraudar", mas o termo surgiu em relação à prostituição, onde significa "conseguirclientes para uma prostituta" - N.T.]

corrida72, ainda sentimos que os pilotos poderiam escolher outrostipos de emprego, ou pelo menos se abster da corrida atual, e queesse tipo de chance é, de alguma forma, voluntário.

O próximo lugar da ação que devemos analisar são os esportesarriscados sem espectadores73. Não se recebe nenhum pagamentopor esse esforço; nenhuma identidade publicamente relevante éconsolidada por ele; e ele não incorre em nenhuma obrigação nomundo sério do trabalho. Na ausência das pressões normais para seengajar numa atividade, é supostamente fácil pressupor que a auto-determinação está envolvida e que as chances enfrentadas o são ape-nas devido ao desafio que resulta. É interessante notar que algunsdesses esportes vigorosos são dominados por cidadãos jovens e sóli-dos que podem se dar ao luxo de dedicar tempo, viagens e equipa-mento a eles. Essas pessoas parecem desfrutar do melhor de doismundos, aproveitando a honra de se arriscar sem ameaçar muitoseus envolvimentos rotineiros dos dias úteis.

Os próximos da lista são os lugares de ação mais comercializa-dos - lugares de localização conveniente em que equipamentos e ocampo para seu uso podem ser alugados, recebendo um leve grau deação. Casas de boliche, salões de sinuca, parques de diversão e cen-tros de fliperama fornecem arranjos em que o custo do jogo e o valordo prémio geram um contexto levemente decisivo para a exibiçãoda competência. Apostas j mblicas em corridas de cavalos e em cassi-nos permitem que o apostador demonstre vários atributos pessoais,

72. Por exemplo, a participação dos Corvette na corrida de Sebring de 1956, comodescrita pelo piloto John Fitch (com C. Barnard), The Day that Corvette Improvedthe Breed, p. 271-286, apud BEAUMONT, C. NOLAN, W. Omnibus of Speed. NovaYork: Putnam and Sons, 1958: "Eu sabia que uni fracasso em Sebring provavelmentesignificaria o fim do interesse da Chevrolet em produzir carros de corrida" (p. 286).73. É característico que "vale a pena assistir" aos esportes recreativos arriscados,que eles frequentemente serão assistidos, e que o realizador precisa aceitar essa au-diência. Ele deve ser capaz de realizar seu papel enquanto é assistido; mas ele nãodeve realizá-lo apenas para ser assistido e deve realizá-lo mesmo que não haja es-pectadores. Não importa o quão grande seja a multidão que assiste a um esportista,nem o quanto ele esteja fascinado com o fascínio deles, o papel deles não é ratifica-do; eles não podem exigir que ele agende sua performance nem a complete depoisde ter começado. Eles têm o direito que ele ignore o fato deles estarem assistindo,mas o dever de aceitar que ele os ignore.

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mus a « n u custo considerável. As atrações de "vertigem" em feiras el >;u ([ucs de diversão resolvem abertamente nosso dilema em relaçãoa ação ao oferecer um perigo com garantias de não ser realmente pe-rigoso - o que Michael Balint descreveu bem como a excitação segu-ra dos arrepios [thrills]:

Em todas as diversões e prazeres deste tipo podemos ob-servar três atitudes características: (a) uma quantidadede medo consciente, ou pelo menos uma percepção deperigo externo real; (b) uma exposição voluntária e in-tencional de si a esse perigo externo e ao medo geradopor ele; (c) enquanto ao mesmo tempo existe uma espe-rança mais ou menos confiante de que o medo pode sertolerado e desejado, o perigo passará, e que seremos ca-pazes de voltar sãos e salvos. Essa mistura de medo, pra-zer, e esperança confiante face ao perigo externo é o queconstitui o elemento fundamental de todos os arrepios".

Há um tipo final de ação comercializada envolvendo participaçãodireta que eu chamarei de "estar nos holofotes" [fancy milling]75. Osadultos em nossa sociedade podem sentir um gostinho de mobilidadesocial consumindo produtos valiosos, desfrutando de entretenimen-

74. BALINT, M. Thrills and Regressions. Londres: The Hogarth Press/The Instituteof Psycho-Analysis, 1959, p. 23. Balint prossegue fa: ;ndo este comentário interes-sante (p. 23-24): "Examinemos rapidamente de que ;orma outros arrepios se pare-cem com aqueles oferecidos em parques de diversão. Alguns estão ligados à alta ve-locidade, como em todos os tipos de corridas, equitação, automobilismo, patinação,esqui, tobogãs, velejar, voar, etc. Outros estão ligados a situações expostas, como vá-rias formas de saltos e mergulhos, escaladas, asa-delta, domesticar animais selva-gens, viajar para terras desconhecidas, etc. Finalmente, há um grupo de arrepios li-gados a formas de satisfação estranhas ou mesmo completamente novas, ou na formade um novo objeto ou de um método desconhecido de prazer. O objeto novo óbvioé uma virgem, e é impressionante como quantos arrepios reivindicam este adjetivo.Falamos de terra virgem, um pico virgem, ou um caminho virgem para o pico, velo-cidades máximas virgens, e assim por diante. De modo geral, qualquer parceiro se-xual novo é um arrepio, especialmente se ele ou ela pertence a outra raça, cor oucredo. As novas formas de prazer incluem, entre outros: comidas novas, roupas no-vas, costumes novos, até formas novas de atívidades sexuais 'perversas'. Em todosesses fenómenos encontramos os mesmos três fatores fundamentais descritos aci-ma: o perigo externo objetivo gerando medo, a exposição voluntária e intencional aele, e a esperança confiante de que no fim tudo dará certo".75. A necessidade de tratar desse modo de ação foi recomendada por Howard Becker.

tos caros e na moda, passando tempo em ambientes luxuosos e semisturando com pessoas de prestígio - e ainda mais se tudo isto ocor-rer ao mesmo tempo e na presença de muitas testemunhas. Essa é aação do consumo. Além disso, a mera presença num ajuntamentogrande e apertado de pessoas em uma festa pode trazer não apenas aexcitação gerada por multidões, mas também a incerteza de não se sa-ber exatamente o que está prestes a acontecer, a possibilidade de fler-tes, que podem eles mesmos levar à formação de relacionamentos, e aexperiência animada de estar a um cotovelo de distância de alguémque realmente consegue encontrar uma ação real na multidão.

Quando esses vários elementos de estar nos holofotes são com-binados, e o indivíduo compara o prestígio e a brevidade da partici-pação contra o custo de chegar à cena e a taxa de despesas necessá-rias durante cada momento de participação, o resultado é um tipode ação difusa - ou melhor, um sabor da ação - por mais limitadaque seja a decisividade76. O indivíduo traz para si mesmo o papel derealizador e o de espectador; ele é a pessoa que se engaja na ação,mas ao mesmo tempo ele é a pessoa que provavelmente não será afe-tada permanentemente por ela.

Aqui os cassinos de hotéis oferecem um exemplo extremo. Elesnão apenas disponibilizam apostas monetárias, mas esse tipo de açãoé recoberto com a ação de consumo. Temos uma breve penetração navida dos ricos. Limusines estacionadas por choferes são amontoadasna entrada. Depois da entrada, o ambiente é luxuoso. Bebidas carassão servidas nas mesas, muitas vezes sem custos para o consumidor.Um bufe de qualidade pode ser oferecido, permitindo uma glutonariade alto nível. Encoraja-se um sistema de gratuidade que eleva seususuários e faz com que garçonetes de pouca roupa, escolhidas por suaaparência, sejam um tanto acessíveis. Um sistema de sinais operadosno "buraco" permite que essas garotas entreguem drinques, cigarrose aspirinas em qualquer lugar do estabelecimento se necessário."Mensageiros" de bingo" e garotas que trocam dinheiro são organiza-

76. Os serviços em tais lugares precisam ser caros se o objetivo for facilitar esse tipode ação. Os proprietários aceitam isto, mas por outras razões.77. Funcionários encarregados de levar as apostas de bingo para serem processa-das [N.T.].

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• Io:, para ficar à disposição da mesma forma. Na mesa facilita-se ocontato com pessoas conhecidas nacionalmente e com os grandesgastadores. Também existe a proximidade daquilo que alguns cha-mariam de elemento gangster. Garante-se acesso fácil a entreteni-mentos de fama nacional, e até alguma proximidade física com osapresentadores. O bar é "enfeitado" com garotas do coro vestidascom suas roupas de fora do palco. As clientes femininas sentem quepodem experimentar com a alta costura esportiva, reivindicando umaimagem e estilo que talvez elas não tentassem em casa devido à mo-déstia. Resumindo, a oportunidade para enobrecimento efémero éabundante. Entretanto, se o cliente quiser se sentar durante esse eno-brecimento, é muito provável que ele tenha que se sentar numa mesade jogos. Então temos um ambiente rico, mas cada minuto dele pro-vavelmente custará arriscar um dinheiro considerável.

Outros estabelecimentos de serviços públicos também parecemcada vez mais recobrir seus serviços com escolhas indulgentes atéentão consideradas irrelevantes. Assim, nossos jatos adicionaramgarotas bonitas, comida razoável, filmes e bebidas grátis78. Postos degasolina oferecem agora não apenas combustível, mas a companhiade mulheres frentistas atraentes por um momento. E, é claro, temosa moda recente do topless, que traz, junto com comida, garçonetesque são garantidamente atraentes79.

78. Num artigo sobre "The 'Secrets' of Air Hostesses" ["Os 'segredos' das aeromo-ças"] (San Francisco Chronicle, 04/04/1966), sob a manchete "Those Cupcakes inthe Sky" ["Esses docinhos no céu"], lemos: "- O que queremos de nossas aeromo-ças é uma atratividade discreta [diz Nancy Marchande, uma loira escultural encar-regada das garotas da PSA]. Ao escolher uma aeromoça, prestamos atenção parti-cular à aparência dela. - Os passageiros, disse Lawrence [o presidente das linhasaéreas Braniff, uma das líderes em merchandising aéreo] merecem mais do que umaviagem segura e confortável. Eles merecem um pouco de diversão. A definição deLawrence de diversão a bordo incluiu pintar a frota de j atos da Braniff em várias co-res de ovos de páscoa, e redecorar loucamente os interiores das aeronaves, dos pos-tos de venda de passagens e das salas de espera. Mas ele reservou a maior diversãopara as aeromoças da companhia. Ele contratou o famoso estilista italiano MilioPucci, o inventor da calça bailarina, para criar um vestido de aeromoça com 'char-me, excitação e surpresa'".79. Acho que o caso mais claro do recobrimento de indulgências é TheHarry's Sho-eshine Palace, em San Francisco (como relatado no San Francisco Chronicle,26/07/1966), que oferece engraxates de topless por $2 e uma carteira de identidade.De Sade ficaria impressionado com essa promoção de seus princípios.

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Certos segmentos de cada comunidade parecem responder me-lhor do que outros à atração desse tipo de ação. Vale a pena notarque os indivíduos respondem não como membros de uma comuni-dade local, mas como membros da sociedade mais ampla de menta-lidade parecida, mas sem qualquer outra relação. Forasteiros na ci-dade podem perguntar ao motorista de táxi onde a ação está e pro-vavelmente conseguirão entrar quando chegarem lá. Uma camara-dagem de indivíduos que, de outra forma, seriam estranhos, está en-volvida, uma coalizão temporária contra a sociedade dos respeitáveisna qual aquele que procura ação provavelmente tem amigos e relaci-onamentos. Os mecanismos tradicionais de conhecimento de pes-soas e convites pessoais não são necessários para restringir a partici-pação; em vez disso, servem os riscos da participação.

Apesar de ser possível e desejável procurar onde a ação está exa-minando a organização social de modo geral, estou preocupadoaqui com um esforço muito mais específico. Eu quero examinar osarranjos sociais reais através dos quais a ação é disponibilizada.

O mundo social opera de forma que qualquer indivíduo que este-ja fortemente orientado para a ação, como alguns apostadores, podeperceber as potencialidades de chances em situações que outros en-xergariam como sem decisividade; a situação pode até ser estruturadade forma a manifestar essas possibilidades80. A chance não é mera-mente procurada, e sim esculpida. Devemos adicionar que é provávelque a forma de chance encontrada aqui seja um risco considerável aobem-estar corporal em troca da oportunidade de um ganho insignifi-cante. A única cena de decisividade que quase qualquer um tem con-dições de produzir é alguma versão da "roleta russa", e ela é uma cenaque exemplifica muito bem o risco como um fim em si mesmo. É in-

80. Sugerido por Sheldon Messinger. O exemplo clássico, popularizado por Da-mon Runyon [autor americano conhecido por seus contos sobre Nova Iorque naépoca da Lei Seca - N.T.], é o pequeno apostador da Broadway que reconstitui per-ceptualmente o ambiente ao seu redor em uma série contínua de resultados apostá-veis prestes a serem determinados sobre os quais ele oferece proposições. O heróicultural aqui é John W. "Apostou-um-milhão" Gates, o rei do arame farpado, que,em 1897, num trem entre Chicago e Pittsburgh, aparentemente ganhou 22 mil dó-lares apostando em corridas de gotas de chuva, usando a janela do trem como pista(cf. ASBURY, H. Suckefs Progress. Nova York: Dodd Mead, 1938, p. 446).

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teressante notar que atualmente, através do LSD e outras drogas, estádisponível um meio de se arriscar voluntariamente o bem-estar psí-quico para se chegar além da consciência normal. O indivíduo aquiusa sua própria mente como o equipamento necessário para a ação81.As pessoas que acenam com o suicídio usam seus corpos numaaposta, mas aqui, como com as drogas, o risco enquanto tal não pa-rece ser o principal propósito do empreendimento . O interesse ge-ral recente sobre os efeitos deletérios do fumo e do colesterol sãoum exemplo mais leve da mesma possibilidade; a esses vários sabo-res podemos adicionar o sabor extra de não dar a mínima83.

Nos casos examinados até agora, a chance está na atitude dopróprio indivíduo - sua capacidade criativa de redefinir o mundo aoseu redor como suas possibilidades de decisão. Tratemos agora daspossibilidades de ação que exigem mais do ambiente e são facilita-das mais diretamente pela organização.

Podemos encontrar um começo simples nas apostas em cassi-nos, já que estes são lugares, antes de tudo, cuja organização física esocial é planejada para facilitar a ocorrência da ação. A eficiênciadesses arranjos precisa ser compreendida e apreciada. Tudo que umjogador precisa fazer é entrar num cassino (cassinos fora das ruasprovavelmente não necessitarão nem que urna porta seja aberta) ecolocar dinheiro numa área de preparação ou compromisso. Se ocarteador ainda não estiver jogando, ele imediatamente começará afazê-lo, uma pausa momentânea que é ela mesma evitada por mui-tos cassinos que contratam funcionários apenas para manter jogosmortos correndo. Em poucos segundos, o jogador pode se plugarem atividades bastante significativas; tomadas estão disponíveis.

Além disso, jogos de cassino têm uma duração notavelmentecurta, permitindo uma taxa de jogo muito alta. Uma jogada de ca-ça-níqueis leva apenas 4 ou 5 segundos. Uma rodada de vinte-e-umpode levar apenas 20 segundos, devido a técnicas de manipulação

81. Sugerido por Nancy Achilles.82. Os vários tipos de aposta com a vida desfrutados por aqueles inclinados ao sui-cídio são discutidos em FARBEROW, N. & SCHNEIDMAN, E. The Cry for Help.Nova York: McGraw-Hill, 1961, esp. p. 132-133.83. Sugerido por Dean MacConnell.

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das cartas que todos os carteadores aprendem a empregar84. Em to-dos os jogos de cassino também é possível se engajar em mais deuma jogada ao mesmo tempo e, no caso dos caça-níqueis e do craps,espalhar as apostas múltiplas de forma que temos um compromisso eo início da determinação de uma aposta enquanto outra está nas fasesposteriores do processo de determinação. Um jogo, o bingo, dispo-nível na maioria dos cassinos, é organizado especificamente paraque em quase todas as regiões do cassino seja possível fazer apostase acompanhar a determinação. Placares do bingo são colocados emvários lugares e atualizados simultaneamente de forma eletrônica."Mensageiros" de bingo [keno runners] coletam apostas e entregamdesfechos em todos os lugares do cassino, exceto os banheiros. As fa-ses do jogo não coincidem com nenhuma outra atividade do cassino.Assim, não importa o que um indivíduo esteja fazendo, nem onde eleesteja fazendo, ele pode sobrepor sua atividade com o bingo e sem-pre ter pelo menos um número de bingo "valendo para ele"85.

Um jogador pode se empenhar em todos os tipos de cálculos eadivinhações sobre como administrar sua aposta, e isto pode ou nãoenvolver suportes, defesas, ou ambos. Mas ele também pode, se qui-ser, simplesmente empurrar uma pilha de dinheiro ou fichas nãocontadas na direção geral da área de compromisso e o carteador es-crupulosamente fará o resto. (Eu vi um carteador ajudando um ho-mem cego a jogar, e também um homem artrítico demais para segu-rar suas próprias cartas.) Um grande conjunto de esforços do joga-dor é assim bem cuidado pela mesma organização do jogo. Isto sig-nifica que um jogador pode começar assistindo com muita atençãotudo o que acontece, fazendo cálculos elaborados, perceber que estáficando completamente exaurido depois de oito ou nove horas dejogo, ou bêbado a ponto dos funcionários precisarem apoiá-lo para

84. N. Polsky ("The Hustler". Op. cit, p. 6) sugere que em "salas de ação" jogos debilhar são escolhidos e até modificados para aumentar a taxa de ação, que senão se-ria baixa demais. Entretanto, jogos de cinco minutos ainda parecem ser os de me-nor tempo, a não ser quando se aposta em tacadas individuais.85. Na sociedade americana como um todo, as corridas de cavalos, apostas em lote-rias, e o mercado de ações são meios pelos quais um indivíduo pode ter uma ouduas coisas "valendo para ele" todos os dias. O bingo tem um caráter de sobreposi-ção um tanto similar, mas cada jogada leva apenas alguns minutos.

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que cie não caia de sua cadeira, e mesmo assim, fazendo apenas al-guns gestos relevantes, continuar ativo em sua capacidade de apos-tador. A organização do jogo nos cassinos é planejada para forneceração não apenas a pessoas de posições sociais muito diferentes, mastambém a pessoas em estados fisiológicos muito diferentes.

Além desses vários arranjos organizacionais, temos o fato cen-tral de que cassinos, dentro de limites muito amplos, rotineiramen-te cobrem apostas de qualquer tamanho. O jogador pode, então, ar-riscar seu capital independentemente de seu tamanho. Ele tem ga-rantida a oportunidade de encarar a excitação de um risco e oportu-nidades financeiras um pouco maiores do que a maioria das pessoasde sua posição se sentiriam confortáveis em aceitar. Os cassinosconcretamente incorporam arranjos para permitir que o indivíduose force até os limites de sua própria tolerância para ganhos e per-das, garantindo assim um teste real e difícil, pelo menos a seus pró-prios olhos.

Podemos mencionar alguns arranjos específicos fora de cassinospara gerar eficientemente oportunidades de ação. Um bom exemplopode ser encontrado nas convenções associadas com touradas. Aqui,o estilo e a graça dos movimentos e da postura, o conhecimento dotrabalho, e o domínio do touro, três qualidades centrais exibidas emtouradas, recebem pontos de acordo com o perigo ao eu que é volun-tariamente introduzido pelo indivíduo durante os movimentos. Épreciso então forçar a segurança a seus limites extremos:

Nas touradas modernas não é suficiente que o touro sejasimplesmente dominado pela muleta para que a espadapossa matá-lo. O matador precisa realizar uma série depassos clássicos antes de matar se o touro ainda for capazde avançar. Nestes passos, o touro deve passar pelo corpodo matador ao alcance do chifre. Quanto mais perto otouro chegar do homem depois do convite e direção des-te, maior o arrepio que o espectador recebe86.

A tourada é a única arte em que o artista corre risco devida e em que o grau de brilho da apresentação fica aos

86. HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Life, 05/09/1960, p. 86.

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cuidados da honra do lutador. Na Espanha, a honra éuma coisa muito real. Chamada de pundonor, isto signifi-ca honra, probidade, coragem, respeito próprio e orgulhonuma única palavra87.

Um conjunto de arranjos um tanto parecido pode ser encontra-do como a base da ação no automobilismo. Tipicamente, a diferençana mera capacidade de velocidade dos carros de classes similaresnão é relevante o bastante para ganhar corridas. Um piloto vencequando se aproxima mais frequentemente dos limites em que a ve-locidade fará com que ele perca o controle do carro do que os outrospilotos, devido a diferenças de coragem ou competência88. De fato, éa possibilidade de reestruturar atividades rotineiras para permitirque limites sejam forçados que transforma atividades rotineirasnum campo de ação. Por exemplo, em estradas os carros normal-mente se espalham num padrão cuja estabilidade é produzida porcada motorista avaliando aquilo que os outros motoristas não ousa-riam fazer, e então com efeito patrulhar esses limites; mantemos as-sim o nosso lugar no tráfego. "Ganhar tempo" na estrada quando otráfego está pesado significa forçar além do ponto que os outros mo-toristas consideram que protege sua posição .

Para que o esforço de testar os limites seja possível, o equipa-mento que o ator usa pode ter que ser restrito apropriadamente. Afi-nal, touradas dificilmente testariam um homem se ele usasse umcartucho de rifles Weatherby 460 em vez de uma capa e uma espada.Da mesma forma, se quisermos que a travessia do oceano seja umdesafio, precisamos usar jangadas em vez de navios de cruzeiro. Sequisermos transformar um peixe numa oportunidade de luta, então

87. HEMINGWAY, E. Death in theAfternoon. Op. cit, p. 91.88. MOSS, S. & PURDY, K. AU but My Life. Op. cit., p. 22: "O piloto mais rápido éaquele que pode se aproximar mais do ponto em que os pneus do carro perdemaderência da pista e fazem com que a máquina entre numa derrapagem incontrolá-vel. (A palavra-chave aqui é 'incontrolável'. Em boa parte do tempo, o piloto delibe-radamente solta o carro e permite que ele derrape, mas sob controle.)"89. É claro que melhorias nas estradas e na dirigibilidade dos carros meramentepermitem que o motorista seja "expressivo" em velocidades maiores; quaisquerque sejam as condições do tráfego, o território do outro sempre estará lá para serforçado.

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l > n • < - i s i i m o s escolher a vara, a linha e o anzol com os maiores limitesl xissivris , o que muitas vezes acontece90. Se quisermos que a caça deanimais grandes seja não apenas cara, mas também arriscada, entãomiras telescópicas dificilmente parecem "justas", de fato, talvez sejaaté melhor substituir o rifle por um arco e flecha.

Arranjos que evocam esforços marginais geram a possibilidadede ação. Podemos analisar mais um arranjo de ação. Ele é encontra-do quando podemos criar uma série através de vitórias em rodadasconsecutivas, de forma que cada rodada seguinte adiciona a mesmaprobabilidade adicional de terminar a série enquanto adiciona maisdo que o valor da rodada anterior à série como um todo. Por exem-plo, no boliche, a reputação do indivíduo enquanto jogador está re-lacionada ao placar máximo que ele atingiu. E o placar depende donúmero de strikes durante qualquer série ou conjunto de jogadas,aumentando mais do que linearmente com o número de strikes con-secutivos. Além disso, uma próxima jogada de placar máximo tendea ser assimilada mentalmente àquilo que o indivíduo já realizou, epor isso o fracasso em realizá-la constitui um "furo" de uma sequên-cia de pontos que o jogador "tinha valendo". Enquanto o ganhopossível com cada jogada aumenta, isto também ocorre com a difi-culdade de manter a habilidade. Algo semelhante é encontrado nasapostas de cassino ligadas à prática de "deixar correr", a saber, apos-tar todos os ganhos da aposta anterior na próxima jogada, e conti-nuar fazendo isto por uma série de jogadas. Aquele que consegueacumular seus ganhos dessa forma muitas vezes recebe respeitocomo alguém que tem "coragem", está "quente" e "sabe quandoapostar". E como a aposta (num jogo de dinheiro constante) é do-brada todas as vezes, a quinta ou sexta vitória seguida será muitomais pesada do que a segunda ou terceira. E assim o jogador desco-bre que o ganho monetário e psíquico aumenta mais do que aritme-ticamente, enquanto ao mesmo tempo precisa enfrentar oportuni-dades completamente novas de perda total.

90. GILBERT, B. "The Moment-of-Truth Menace". Esquire, dez./1965, p. 117. Oartigo de Gilbert é uma descrição de até que ponto os esportistas vão para encontrarum ambiente natural que possa ser transformado num desafio através da limitaçãoapropriada de equipamentos. A exploração de cavernas e caiaques em correntezassão usados como exemplos.

Precisamos tratar de um último assunto em relação à base orga-nizacional da ação. Anteriormente eu sugeri que as pessoas presen-tes numa situação social podem servir não apenas como testemu-nhas, mas também como os próprios objetos sobre os quais o indiví-duo age, e que seu histórico em relação a isto terá importância espe-cial. Quando esses atos que envolvem os outros implicam chancesdecisivas criadas intencionalmente apenas para que possam ser ar-riscadas, então temos um tipo especial de ação em que as própriaspessoas que estão presentes para o ator fornecem o campo para suaação. Hemingway nos dá uma ilustração maravilhosamente rude,que também recebemos de artistas de circo que atiram facas, e garo-tinhos que atiram bolas de neve:

Uma das atrações que Mary preparara no parque foi umacabine de tiros que ela alugara de um circo itinerante.António ficara um pouco chocado em 1958 quando Má-rio, o chofer italiano, segurara cigarros numa ventaniapara que eu arrancasse as pontas acesas com uma espin-garda .22. Na festa, António prendeu cigarros em suaboca para que eu acertasse as cinzas. Fizemos isso setevezes com as espingardinhas da galeria de tiros e no finalele estava fumando rapidamente os cigarros para ver qualera o menor tamanho que conseguiríamos deixá-los.Ele finalmente disse:- Ernesto, fomos o mais longe que dá. Este último quasearranhou meus lábios.O marajá de Cooch-Behar também se viciou nessa diver-são alegre. Ele começou, conservadoramente, usandouma piteira, mas a abandonou imediatamente pela esco-la das baforadas. Eu parei enquanto ainda estava no lu-cro e me recusei a atirar em George Saviers porque eleera o único médico na casa e a festa acabara de começar.Ela foi longe91.

Enquanto uma pessoa fornece um campo de ação para outra,esta outra pode, por sua vez, usar o primeiro indivíduo como seucampo de ação. Quando encontramos essa reciprocidade de uso e oobjetivo é exercer algum tipo de perícia ou habilidade, falamos de

91. HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Op. cit., 12/09/1960, p. 76.

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uma competição ou duelo. O que ocorre nessas cenas pode ser cha-mado de ação interpessoal91.

A ação interpessoal ocasionalmente parece apenas duplicar otipo comum. Num duelo de pistolas, por exemplo, um indivíduo é ocampo de alvo passivo para o outro, enquanto, ao mesmo tempo, ooutro é o campo de alvo passivo para o primeiro - com exceção, éclaro, dos pequenos estratagemas de ficar num ângulo que apresen-te a menor superfície possível para o adversário, e usar os braçoscomo um escudo para o coração. De fato, um duelo de pistolas podeser analisado como um arranjo para juntar duas funções separáveis:a competição de alvos e um esquema de desfecho para vencedores eperdedores. Entretanto, é mais frequente que a reciprocidade sejamais íntima e interessante. O próprio ato através do qual um partici-pante exerce suas capacidades face a outra pessoa pode em si mes-mo fornecer o campo para a ação competidora ou de retaliação dooutro. A impressão que um participante transmite será retirada daimpressão que o outro transmite. Mesmo nas diversões de tiro deHemingway, temos um gostinho disto: a frieza demonstrada porAntónio ao se submeter ao papel de alvo requer para seu campo deação os esforços de atirador de Hemingway.

Assim como existem arranjos sociais para garantir a ação, tam-bém há arranjos para garantir a ação interpessoal. Um exemplo im-portante é a prática disseminada de desvantagens [handicapping]

92. Normalmente, os arranjos de competições requerem que os participantes es-tejam face a face, mas existem, por exemplo, competições de corte entre dois pre-tendentes à mesma mão em que os adversários nunca se encontram; há competi-ções na coluna de cartas ao editor e há outras (como Hemingway sugere), onde ohistórico de uma das partes, que pode estar ausente no momento, se torna o con-texto da ação do outro (HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Op. cit.05/09/1960, p. 91-92): "Touradas não valem nada sem rivalidade. Mas com doisgrandes toureiros ela se torna uma rivalidade mortal. Porque quando um deles fazalgo que ninguém mais consegue fazer, e pode fazê-lo regularmente, e isto não éum truque, mas sim uma apresentação mortalmente perigosa que só é possíveldevido a nervos, juízo, coragem e arte perfeitos, e este toureiro aumenta sua leta-lidade continuamente, então o outro, se tiver qualquer falha temporária de ner-vos ou de juízo, será gravemente ferido ou morto se tentar igualá-la ou superá-la.Ele terá então que recorrer a truques, e quando o público aprender a diferenciaros truques das coisas verdadeiras ele perderá a rivalidade, e terá muita sorte seainda estiver vivo ou capaz de se apresentar".

em competições . Esse dispositivo garante que, por mais dísparesque os competidores sejam, todos terão mais ou menos a mesmachance de ganhar ou perder, e isto dependerá de seus próprios es-forços até o limite. Garantimos assim que o resultado não apenasseja imprevisível e, assim, capaz de manter a atenção, mas tambémuma questão de esforço marginal, com a vitória obtida pelo competi-dor que chega mais perto de seus limites do que os outros. Esse es-forço extrafinal determina o resultado. Uma competição com des-vantagens, então, é um arranjo muito bem calculado para transfor-mar dois indivíduos em campos de ação um para o outro, com o de-talhe adicional de que o sucesso de uma pessoa precisa ser equili-brado pelo fracasso da outra. Podemos adicionar que uma limitaçãoautoimposta de equipamentos na caça e na pesca também pode servista como um tipo de desvantagem: a presa é transformada numadversário, e o resultado é uma competição "justa" (ou melhor, qua-se justa). Jogos limpos requerem presas limpas94.

Em vários jogos e esportes, então, os indivíduos podem usaruns aos outros como campos de ação, normalmente, numa arena se-gregada, removidos física e temporalmente da vida séria. Mas obvia-mente o uso mútuo uns dos outros como um campo de ação é maisgeral. Como uma ponte dos jogos até o mundo, examinemos as rela-ções entre os sexos.

Todas as situações de ação descritas até agora são cenas muitomais de atividade masculina do que feminina; de fato, a ação emnossa cultura ocidental parece pertencer ao culto da masculinidade -apesar da existência de toureiras, mulheres pilotos, e da preponde-rância de mulheres nas máquinas de caça-níqueis dos cassinos95. Há

93. GOFFMAN, E. "Fun in Games", p. 67. In: Encounters. Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1961. [Em esportes como o golfe, a prática de handicapping consiste em fa-zer com que os jogadores com um histórico superior comecem a partida com algu-mas tacadas de desvantagem em relação aos competidores com menos experiênciae habilidade. -N.T.]94. Trocadilho intraduzível: "Fair games (jogos) requirefairgame (presas)" [N.T.].95. A masculinidade, enquanto valor, parece ser especialmente importante na soci-edade latina, e como um valor ela dificilmente pode ser dissociada de sua base nosaspectos biológicos do sexo. Cf. PITT-RIVERS, J. "Honour and Social Status". Ho-nour and Shame. Chicago: University of Chicago Press, 1966, cap. l, p. 45 [org. por

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registros de alguns duelos lutados por mulheres europeias, mas es-ses encontros parecem ser considerados uma perversão do belosexo, e não seu ornamento96. Mas, obviamente, as mulheres estãoenvolvidas de forma especial em um tipo de ação: elas são os cam-pos de jogo para a ação sexual e de corte. Homens adultos podemdefinir uma mulher como um objeto com o qual se deseja iniciaruma relação potencialmente sexual. O risco é a recusa, a uniãocom pessoas de posição inferior, a responsabilidade, a traição derelacionamentos anteriores, ou o desprazer de outros homens; aoportunidade é o tipo de confirmação do eu que apenas o sucessonessa área consegue trazer. Essa ação às vezes é chamada de "paque-ra" [making oiti'7].

Em nossa sociedade, há horários e locais especiais para a paquera:festas, bares98, bailes, hotéis turísticos, parques, salas de aula, eventospúblicos, encontros de associações, pausas para café em escritórios, re-uniões de igrejas, e ruas públicas de má reputação. A paquera em si éde dois tipos, de acordo com se o círculo em que ela ocorre contémpessoas que se conhecem ou não. Entre os que se conhecem, encontra-mos trocas de flertes e o início de casos; entre os que não se conhecem,intercâmbios de sinais de interesse e propostas.

PERISTIANY, J.]: "Assim, a coibição é a base natural da pureza sexual, assim comoa masculinidade é a base natural da autoridade e da defesa da honra familiar. O ide-al do homem honrado é expressado pela palavra hombria, 'hombridade' [...] A mas-culinidade significa coragem, seja ela empregada para fins morais ou imorais. É umtermo ouvido constantemente no pueblo, e o conceito é expressado como a quintes-sência física sexual do homem (cojones). A noção contrária é transmitida pelo adje-tivo manso, que significa inofensivo, mas também castrado. Sem essa base fisiológi-ca, obviamente não se pode esperar que o sexo frágil possua tal conceito, e isto é ex-cluído das exigências da honra feminina". Supostamente as contrapartes femininasdas virtudes masculinas clássicas envolvem a modéstia, a coibição e a virgindade,cuja exibição parece envolver qualquer coisa que não a ação.96. BALDICK, R. The Duel. Londres: Chapman and Hall, 1965, cap. 11, "WomenDuelists", p. 169-178.97. O termo making out, no século XXI, significa "beijar", conotação que não exis-tia quando Goffman redigiu este livro, e não mais "paquerar" [N.T.].98. Uma afirmação parecida é encontrada em CAVAN, S. Liquor License. Chicago:Aldine, 1966. Cf. tb. ROEBUCK, J. & SPRAY, S. "The Cocktail Lounge: A Study ofHeterosexual Relations in a Public Organization". American Journal of Sociology,jaó/1967.

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Entre os que não se conhecem, a facilitação organizacional dapaquera assume muitas formas: a instituição de anfitriãs sociais emhotéis, bares de telefone, a mediação de balconistas de bar para a ro-tina do compro-um-drinque-para-você, etc. Eu analisarei em maiordetalhe a situação nos cassinos de Nevada.

As mesas de cassinos são, por definição, abertas para qualqueradulto com dinheiro para gastar. Apesar da impessoalidade apa-rente da operação, estranhos na mesma mesa descobrem que umaleve camaradagem é gerada por uma exposição ao destino conjun-ta e mutuamente visível. Grandes apostadores, com um envolvi-mento implicado por causa do tamanho de suas apostas, e o estatu-to implicado dos visivelmente endinheirados, tornam-se um tantoacessíveis a colegas apostadores e mesmo a espectadores. A res-ponsabilidade mútua imputada pelo resultado (no sentido limita-do, mas constante, em que isto é imputado) aumenta a exposição econexão moral. E entre os sexos prevalece uma abertura adicional.Homens quase sempre podem dar alguns conselhos gratuitos amulheres na vizinhança, juntando-se gradualmente a, elas numacoalizão de esperança contra o carteador. Além disso, se ocorre deuma mulher jogar de uma forma que pode ser interpretada comolucrativa para todos, pode-se facilmente "colocar" uma aposta porela e aumentar o envolvimento mútuo. Da mesma forma, depoisque se conhece uma mulher, ela pode receber apostas de presentesem comprometer abertamente sua posição. Então, parece naturalque ela fique com tudo ou parte de suas vitórias. Assim, as mesasfornecem a primeira jogada no jogo dos relacionamentos, e tam-bém uma cobertura muito graciosa sob a qual pagamentos em di-nheiro podem ser feitos como adiantamento para favores sociais esexuais realizados posteriormente de forma não comercial. É as-sim que se facilita organizacionalmente a paquera.

Devemos notar que há muitos homens que se intimidam quantoa se envolver ativamente na paquera, mesmo quando estão em luga-res estabelecidos para esse propósito. Há muitos outros que buscamtais oportunidades em qualquer lugar, seja na casa, em locais de tra-balho, ou em conta tos de serviços. E eles encaram todos os dias com

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tais potencialidades em mente". Esses homens orientados cronica-mente precisam ser classificados junto com aqueles que estão dispostosa transformar qualquer evento numa proposição de aposta, ou qualquertarefa em uma competição de força, habilidade ou conhecimento.

Tentativas de iniciar um relacionamento potencialmente sexualsão, obviamente, apenas uma forma da ação interpessoal que ocorre nacomunidade como um todo. Outro tipo importante ocorre quando oindivíduo serve como um campo de ação em virtude de sua capacidadede receber e causar ferimentos tanto físicos quanto verbais. Para en-contrar aqueles que favorecem esse esporte, provavelmente teremosque procurar "forasteiros" que, como adolescentes, ainda não foramcosturados muito fortemente em estruturas organizacionais. Suposta-mente, é entre eles que essas atividades decisivas causarão as menoresperturbações e serão mais toleráveis; é um caso de ter pouco a perder,ou ter pouco a perder por enquanto, um caso de estar bem organizadopara a desorganização. O estudo de gangues de esquina de jovens urba-nos agressivos e alienados nos dá uma ilustração:

O tempo acelerado dos testes de relacionamentos em es-quinas, em contraste com, por exemplo, grupos de traba-lho, surge em parte porque os líderes não controlamquantidades importantes de propriedade, porque eles po-dem conceder poucos privilégios ou imunidades, e por-que não há pressões institucionais externas que coagemos membros a aceitar a disciplina da gangue100.

Entre tais jovens a noção de "barato" ["leicfes"] tem sua impor-tância mais clara. Aqui, a cultura e o refinamento dos esportes reco-nhecidos não está presente para mascarar a gratuidade dos riscos to-mados; a própria comunidade é transformada num campo para aação, utilizando especialmente iguais, adultos desprotegidos, e pes-soas percebidas como símbolos da autoridade policial. Walter Mil-ler nos dá uma boa descrição:

99. Apesar de a noção de ação certamente ser relevante para contatos heterossexuais,ela parece ser ainda mais para contatos homossexuais. A sociedade gay aparente-mente destaca a "transa de uma noite" (ou, melhor, transa de parte da noite) muitomais do que a sociedade heterossexual, tendo uma taxa correspondentemente altade contingência e risco em relação à formação de relacionamentos.100. SHORT, J. & STROTBECK, F. Group Process and Gang Delinquency. Chicago:University of Chicago Press, 1965, p. 196.

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Muitas das características mais típicas da vida de classe bai-xa estão relacionadas à busca de excitação ou "arrepio".Estão envolvidos aqui o uso altamente prevalente do álco-ol por ambos os sexos e o uso disseminado de todo tipode jogos de azar -jogar "nos números" [playing the num-bers]101, apostar em corridas de cavalos, dados, cartas. Ajornada pela excitação encontra o que talvez seja sua ex-pressão mais vívida na prática altamente padronizada da"noite na cidade" recorrente. Essa prática, designada porvários termos em áreas diferentes ("ir para a balada", "ga-nhar a noite", "pular de bar em bar") envolve um conjuntopadronizado de atividades em que o álcool, a música, eaventuras sexuais são componentes fundamentais. Umgrupo ou indivíduo sai para "rodar" por vários bares ouclubes noturnos. A bebedeira continua progressivamentedurante a noite. Os homens tentam "catar" mulheres, e asmulheres jogam o jogo arriscado de insinuar avanços se-xuais. Lutas entre homens envolvendo mulheres, apostas,e afirmações de bravura física, em várias combinações, sãoconsequências frequentes de uma noite rodando por ba-res. O potencial explosivo desse tipo de aventura com sexoe agressão, frequentemente levando a "confusões", é bus-cado semiexplicitamente pelo indivíduo. Já que sempre háuma boa possibilidade de que estar na noite terminará embrigas, e te., a prática envolve elementos de risco voluntá-rio e perigo desejado102.

101. Um tipo de loteria ilegal muito popular entre negros do Harlem, em NovaYork, na primeira metade do século XX, com algumas semelhanças com o jogo dobicho no Brasil [N.T.].102. MILLER, W. "Lower Class Culture as a Generating Milieu of Gang Delin-quency". Op. cit, p. 11. Uma das primeiras descrições sobre o tema da excitação nadelinquência é encontrada em THRASHER, F. The Gang. Chicago: University ofChicago Press, 1927, cap. 5: "The Quest for New Experience". Uma versão maisatual é encontrada em H. Finestone ("Cats, Kicks and Color". Social Problems, 5,1957, p. 5), que descreve um grupo que combina o desdém pelo mundo do traba-lho com uma preocupação muito forte com a expressão da frieza diante de proble-mas. Da mesma forma, as "preocupações focais" que Miller atribui à cultura urbanade classe baixa (confusão, agressividade, inteligência, excitação, destino, autono-mia) parecem muito apropriadas para apoiar o envolvimento na ação.

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Um estudioso de italianos de classe baixa de Boston nos dá ou-tra descrição:

Para aquele que procura a ação, a vida é episódica. O rit-mo da vida é dominado pelo episódio aventureiro, emque ápices de atividade e sensações são alcançados atra-vés de comportamento excitante e às vezes libertino. Oobjetivo é a ação, uma oportunidade de arrepio, e achance de enfrentar e superar um desafio. Ele pode serprocurado num jogo de cartas, numa briga, num inter-lúdio sexual, numa competição de bebedeira, numa ses-são de apostas, ou numa troca rápida e furiosa de tiradase insultos. Qualquer que seja o episódio, aquele queprocura a ação o faz resolutamente, e vive o resto de suavida numa preparação quieta - e muitas vezes taciturna -para esse clímax, na qual diz-se que ele normalmente estáít i -n 103matando tempo .

8. CaráterComeçando com um garoto arriscando a sorte, passamos para a

consequencialidade; de lá chegamos à decisividade do tipo zeloso(notando que isto poderia levar à construção da situação como umaaposta prática realizada voluntariamente); e de lá chegamos à ação -uma espécie de atividade em que a autodeterminação é celebrada. Evimos que a decisividade, evitada por muitas pessoas, é aprovada,por algum motivo, por outras, e existem até aquelas que constróemum ambiente no qual elas podem desfrutá-la. Algo significativo epeculiar parece estar envolvido na ação. A descrição de Hemingwayda situação humana de um de seus toureiros favoritos nos dá umadica sobre aquilo que devemos procurar:

103. GANS, H. The Urban Villagers. Nova York: The Free Press, 1962, p. 29. Eleapresenta uma outra discussão sobre o apelo da ação nas p. 65-69. Na literatura, mui-tas vezes se argumenta que os jovens adolescentes precisam desenvolver e demons-trar a hombridade e que a busca da ação serve para isso. Neste capitulo, eu argumen-to que a hombridade é um complexo de qualidades que é melhor chamar de "cará-ter", e que é isto que deve ser tratado na análise da "representação" adolescente. Dequalquer forma, como Bennett Berger aponta ("On the Youthfulness of Youth Cultu-re". Social Research, 30,1963, p. 325-327), a orientação para a ação envolve uma pre-ocupação não apenas com a masculinidade, mas também com a juventude.

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Nós conversáramos sobre a morte sem morbidez, e eudissera a António o que eu pensava sobre ela, o que é inú-til, já que nenhum de nós sabe nada sobre ela, eu podiaser sinceramente desrespeitoso sobre a morte e às vezescomunicar esse desrespeito a outras pessoas, mas eu nãoestava lidando com ela neste momento. António a en-frentava pelo menos duas vezes por dia, às vezes todos osdias da semana, viajando longas distâncias para fazerisso. Todo dia ele deliberadamente provocava o perigodela para si mesmo, e prolongava esse perigo para alémdos limites em que ele normalmente pode ser suportado,através de seu estilo de tourear. Tudo que ele sabia eratourear e ele fazia isso tendo nervos perfeitos, sem nuncase preocupar. Pois o seu modo de lutar, sem truques, de-pendia de entender o perigo e controlá-lo através da for-ma pela qual ele se ajustava perfeitamente à velocidadedo touro, ou à falta dela, e o controle do touro através deseu pulso que era governado por seus músculos, seusnervos, seus reflexos, seus olhos, seu conhecimento seuinstinto e sua coragem.

Se houvesse qualquer coisa errada com os seus reflexos, ele nãopoderia lutar dessa forma. Se sua coragem falhasse pela menor fra-ção de segundo, o feitiço seria quebrado e ele seria arremessado ouchifrado. Além disso, ele precisa brigar com o vento que poderia lheexpor ao touro e matá-lo caprichosamente a qualquer momento.

Ele sabia de todas essas coisas fria e completamente, enosso problema era reduzir o tempo que ele tinha parapensar sobre elas ao mínimo necessário para que ele sepreparasse para enfrentá-las antes de entrar na arena.Este era o compromisso regular de António com a morteque precisamos enfrentar todos os dias. Qualquer ho-mem pode ser capaz de enfrentar a morte, mas se com-prometer a trazê-la o mais perto possível enquanto reali-za certos movimentos clássicos, e fazer isso de novo e denovo e depois causar ele mesmo a morte, com uma espa-da, de um animal que pesa meia tonelada e que você ama,é mais complicado do que simplesmente encarar a morte.É encarar sua apresentação como um artista criativo tododia e sua necessidade de funcionar como um matador ha-bilidoso. António precisava matar rápida e misericordio-

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samente e ainda assim dar ao touro uma chance completade matá-lo quando ele passava por cima do chifre pelomenos duas vezes por dia104.

Se examinarmos momentos em que um indivíduo arrisca taischances, seja como parte de trabalho sério ou de brincadeiras peri-gosas, algumas capacidades, algumas propriedades de sua composi-ção parecem ter relevância intrínseca ou "primária": em trabalhosde construção de estruturas altas, cuidado e equilíbrio; no alpinis-mo, a "condição" e resistência; nas touradas, o senso de oportunida-de e o julgamento perceptivo; na caça esportiva, a mira; nos jogos deazar, um conhecimento das probabilidades; e em todos os casos, amemória e experiência. Muitas vezes essas capacidades primáriaspodem ser criadas através de treinamento. É importante notar queas mesmas capacidades podem ser exercidas durante circunstânciasinconsequentes, quando os aspectos arriscados de ocasiões reais sãocompletamente evitados ou meramente simulados. Encontramosassim sessões de treino, tiro ao alvo, testes, jogos de guerra e ensaiosde palco. O treinamento organizado usa extensivamente esse tipode simulação. Aqui, uma atuação boa ou má não precisa ser decisivapor si mesma nem em seu efeito na reputação do ator. Da mesmaforma, as capacidades primárias podem muitas vezes ser exercidasem ocasiões em que a performance efetiva é atingida fácil e impensa-damente, quando, resumindo, os resultados são consequentes, masnão problemáticos.

É sob circunstâncias percebidamente decisivas - consequentese problemáticas - e apenas em relação próxima a elas que apareceum segundo conjunto de capacidades ou propriedades. Uma sensa-ção repentina de um indivíduo sobre algo que poderá acontecerlogo pode ter um efeito notável em seu comportamento, em relaçãotanto a laços sociais quanto realização de tarefas. No caso das rela-ções com os outros, o comportamento baseado em princípios queele consegue exibir durante ocasiões ordinárias pode desmoronar.A consciência rápida daquilo que os seus princípios custam a ele nomomento pode fazer com que sua decência costumeira falhe e, nocalor e pressa do momento, o interesse próprio sem disfarces pode

104. HEMINGWAY, E. "The Dangerous Summer". Li/e, 12/09/1960, p. 75-76.

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se intrometer. Ou, pelo contrário, o alto custo repentino do com-portamento correto pode servir apenas para confirmar sua integri-dade. Da mesma forma, na parte da realização de tarefas, o fato deele imaginar a consequência de fracassar ou ser bem-sucedido parasi mesmo pode afetar fortemente sua capacidade de exercer as capa-cidades primárias em questão. As possibilidades iminentes podemdeixá-lo nervoso, incapaz de utilizar o que sabe, e incapaz de reali-zar ações organizadas105; por outro lado, o desafio pode fazer comque ele mobilize suas energias e se saia melhor do que o esperado.Em contraste ao amigo de Hemingway, António, temos José Marti-nez que, ao estrear como matador em Múrcia, desmaiou quando o

106touro entrou na arena .Essas capacidades (ou falta delas) para agirmos de forma correta

e firme diante de pressões repentinas são cruciais; elas não especifi-cam a atividade do indivíduo, mas sim como ele se portará nesta ati-vidade. Eu me referirei a essas propriedades de manutenção comoum aspecto do carãter do indivíduo. A prova de incapacidade de secomportar efetiva e corretamente sob a pressão da decisividade éum sinal de caráter/raco. Aquele que manifesta uma habilidade mé-dia e esperada não parece ser muito julgado em termos de caráter. Aprova de uma capacidade destacada de manter o autocontrole totalquando as cartas estão na mesa - seja em relação a tentações moraisou a realização de tarefas - é um sinal de caráter forte.

105. J.L. Austin ("Pleas for Excuses" (Phílosophical Papers. Oxford: Oxford Uni-versity Press, 1961, p. 141 [org. por URMSON, J. & WARNOCK, G.]), discutindoos vários "departamentos nos quais o negócio de fazer ações é organizado", sugere:"Há, por exemplo, o estágio em que temos que realmente desempenhar alguma açãoem que embarcamos - talvez tenhamos que realizar certos movimentos corporais,ou fazer um discurso. Enquanto realmente fazemos essas coisas (costurando aação) precisamos prestar (alguma) atenção àquilo que estamos fazendo e tomar(algum) cuidado para nos precaver contra perigos (prováveis): podemos precisarusar juízo ou tato: precisamos exercer controle suficiente sobre nossas partes cor-porais, e assim por diante. A desatenção, o descuido, erros de juízo, grosseria, faltade jeito - todos estes e mais outros são males (com desculpas anexas) que afetamum estágio específico na maquinaria da ação, o estágio executivo, o estágio em queestragamos as coisas".106. Relatado por McCABE, C. San Francisco Chronide, 02/06/1966.

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Tanto as propriedades primárias quanto aquelas do caráter con-tribuem para a reputação que um indivíduo adquire; ambas são, por-tanto, consequentes. Mas há diferenças importantes entre as duas.Como foi sugerido, as qualidades primárias podem ser expressasnuma situação que não é decisiva; as qualidades do caráter - nos as-pectos considerados aqui - só emergem em eventos decisivos, oupelo menos eventos considerados decisivos subjetivamente. Pode-mos aprovar, desaprovar ou sermos moralmente neutros quanto aqualidades primárias. Entretanto, as propriedades de caráter sempresão julgadas a partir de uma perspectiva moral, simplesmente porqueuma capacidade de se mobilizar para o momento está sempre sujeitaà avaliação social. E, em contraste com as propriedades primárias, asmarcas de caráter tendem a ser avaliadas em extremos, referindo-se afracassos completamente inesperados ou sucessos extraordinários; amera conformidade com os padrões normais não é o problema. Final-mente, diferente de traços primários, os de caráter tendem a ser "es-sencializadores", colorindo totalmente nosso retrato da pessoa carac-terizada dessa forma, e (como veremos depois) uma única expressãotende a ser considerada uma base adequada para um julgamento.

Analisemos algumas das principais formas de caráter importan-tes para o gerenciamento de eventos decisivos.

Primeiro, há as várias formas de coragem, a saber, a capacidadede visualizar um perigo imediato e ainda assim levar adiante o cursode ação que traz o perigo. As variações são estabelecidas pela natu-reza do risco, por exemplo, físico, financeiro, social ou espiritual.Assim, entre apostadores profissionais, há respeito por uma quali-dade chamada de "arriscar tudo", a saber, uma disposição a se sub-meter às regras do jogo enquanto se arrisca uma porção significativado capital atual do indivíduo - supostamente com a graça para acei-tar a vitória ou derrota circunspectamente. É bom notar que os inte-resses servidos por ações corajosas podem ser bastante egoístas; aquestão é a prontidão do ator a enfrentar grandes riscos.

Há a combatividade [gameness], a capacidade de se manter numalinha de atividade e continuar a despejar todos os esforços nela in-dependentemente de percalços, dor ou fadiga, e isto não é devido auma insensibilidade bruta, mas devido à força de vontade e determi-nação internas. Os boxeadores nos dão um exemplo:

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Há também um culto de um tipo de coragem perseveran-te, chamada de "coração lutador", o que significa "nuncaadmitir a derrota". O lutador aprende cedo que a cora-gem que ele exibe - a habilidade, se necessário, de cair lu-tando - caracteriza o boxeador respeitado e que agrada àsplateias. Ele precisa se agarrar à esperança de que podevencer com mais alguns golpes107.

Devemos adicionar que as pessoas não estão sozinhas, e talveznão estejam nem em primeiro lugar, nessa questão de mostrar cora-ção. Touros criados apropriadamente o exibem maravilhosamente;é por isso que eles aceitam as batalhas feitas para eles e continuam alutar mesmo de uma posição cada vez mais fraca, e é por isso quetouradas podem existir. Cavalos de corrida, sob uma leitura especialdo termo "classe", também podem ter coração108.

Uma característica fundamental de caráter pessoal do ponto devista da organização social é a integridade, significando aqui a pro-pensão a resistir à tentação em situações em que haveria muito lucroe alguma impunidade ao se esquecer de padrões morais momenta-neamente. A integridade parece ser especialmente importante du-rante atividades decisivas que não são testemunhadas por outros.Apesar das sociedades diferirem enormemente nos tipos de caráterque aprovam, nenhuma sociedade poderia persistir por muito tem-po se seus membros não aprovassem e encorajassem essa qualidade.Todos tendem a reivindicar um alto padrão de integridade, por maisrara que seja a realização dele; a excelência neste quesito é conside-rada evidente, e pessoas que fracassam são aquelas que são designa-das, neste caso, como tendo caráter fraco109. (Portanto, podemos en-contrar exemplos de integridade nos menores cantinhos da vida:quando um vendedor promove um produto inadequado com me-nos persuasão do que poderia aplicar; quando uma garota não can-cela um encontro que uma oportunidade repentina tornou desvan-

107. WEINBER' , K. & AROND, H. "The Occupational Culture of the Boxer". Op.cit, p. 462.108. Cf. SCOTT, M. TheRacing Game. Chicago: Aldine, 1968.109. Eu agradeço a Marvin Scott pelas sugestões tratando do lugar especial da inte-gridade enquanto uma propriedade de caráter.

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tajoso; quando uma criança admite ter causado uma ofensa que se-ria atribuída a outras pessoas; quando um motorista de táxi ou bar-beiro entrega três dólares em notas quando uma dívida de dois dóla-res é paga com uma nota de cinco.) Comentários um tanto seme-lhantes podem ser feitos sobre a "autodisciplina", a capacidade de seabster de um envolvimento excessivo nos prazeres fáceis da mesa -seja num bar, num restaurante, ou num cassino.

Anteriormente, sugeri que as próprias situações sociais carre-gam algumas implicações quanto à reputação, especialmente em re-lação aos padrões que os participantes são obrigados a manter emseus negócios uns com os outros. Eu disse que essa consequenciali-dade normalmente não era problemática. Entretanto, aqui precisa-mos ver que as circunstâncias às vezes causam isso.

Por exemplo, a manutenção contínua da ordem cerimonialpode ocasionalmente tornar-se muito cara, produzindo o privilégioquestionável de exibir uma versão especial da integridade. Nessesmomentos, o indivíduo terá que decidir se cederá ou não à pressão,se deixará os padrões escorregarem ou não. A galanteria se refere àcapacidade de manter as formas da cortesia quando as formas estãocheias de substância. Ela é demonstrada quando Douglas Fair-banks110, no meio de um duelo cinemático até a morte, pega a espadaque seu adversário deixara cair e a entrega de volta com um gestocortês, para impedir que uma vantagem sem significado estragasse aoportunidade de uma expressão válida. Outros esportes apresentamoportunidades semelhantes:

Foi em 1902 que o então campeão britânico Selwyn F.Edge, pilotando na corrida Paris-Viena, teve um pneu fu-rado e foi forçado a parar para consertá-lo. Entretanto,ele logo descobriu que a bomba de ar que trouxera nãofuncionava. Sem ela, o pneu não poderia ser enchido e ocarro não poderia prosseguir.Nesse momento, o exuberar te Conde Louis Zborowskiapareceu na estrada num Mt xedes, olhou rapidamen-

te para a situação, parou ao lado do carro de Edge e jo-gou sua própria bomba de ar para o rival. Edge acabouvencendo a copa Gordon Bennett. Zborowski foi o se-gundo"1.

É interessante notar que os exemplos de galanteria são normal-mente do tipo que citei, e negligenciam o lugar dessa propriedadena vida cotidiana. Na verdade, um lojista é galante quando ele des-necessária e polidamente aceita a devolução de uma grande venda aum turista que repentinamente mudou de ideia. Da mesma forma,um passageiro numa lista de espera é galante quando ele voluntaria-mente cede o penúltimo lugar para que um casal jovem, próximo nafila, possa ficar junto sem ter que esperar o próximo voo"2.

É claro que a galanteria não é a única qualidade de caráter en-contrada em conexão com a manutenção cara e problemática da or-dem cerimonial. Assim como o indivíduo deve cortesias a outros,estes também as devem a ele e, se não o tratarem apropriadamente,ele pode descobrir que precisa arriscar atos de retaliação para mos-trar que eles não podem se aproveitar dele. No mundo contemporâ-neo, a polícia nos dá excelentes exemplos deste tema, já que às vezeseles sentem que precisam empenhar seus punhos, seus cassetetes eaté seus revólveres para garantir uma boa deferência daqueles queeles prendem ou abordam de outra forma113.

110. Ator americano do inicio do século XX, conhecido principalmente por seu pa-pel como Zorro [N.T.].

111. DAVIS, S. "Chivalry on the Road". In: BEAUMONT, C. & NOLAN, W. Omni-bus ofSpeed. Op. cit., p. 32-33.112. Em cassinos, a galanteria é institucionalizada como o direito e dever especialdo supervisor. Apostas cujo resultado é questionado são julgadas por ele, e o estilotradicional e preíerido é sugerir gentilmente ao cliente como a culpa poderia ser oué dele, e então, depois de limpar assim o nome do carteador, permitir graciosamen-te que a decisão vá contra a casa. Eu vi supervisores se comportarem dessa formaquando a aposta era grande o bastante para fazer uma diferença apreciável na contada mesa nesse turno. Aqui, é claro, o próprio cassino está preocupado em adquirir emanter uma reputação daquilo que neste contexto é chamado de "classe", o opostode ser "barato". (Encontra-se um tratamento geral do caráter organizacional emSELZNICK, P. Leadership in Administration. White Plains: Row, Petterson, 1957,esp. p. 38-42.)113. Cf. WESTLEY, W. "Violence and the Police". American Journal of Sociology,LIX, 1953, p. 39-40.

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Atos de retaliação desse tipo pressupõem, é claro, que a pessoaofendida tem grande autoridade e recursos. Quando isto não é o caso,então ela pode se sentir obrigada a sacrificar sua própria substânciapara manter as aparências. O resultado é uma galanteria invertida:não uma cortesia cara, mas um desprezo caro. No extremo mítico,empregado zelosamente em muitos romances de ação, o herói, despi-do e amarrado numa cadeira, cospe ou pelo menos faz uma caretapara o vilão que ameaça morte e tortura; o herói voluntariamenteexacerba uma situação precária para demonstrar aversão pela presun-ção e estilo do vilão. De forma mais realista, descobrimos que serviçaisde todos os tipos sabem que se o valor de seu serviço ou de seu eu équestionado, eles podem majestosamente recusar qualquer paga-mento ou até mesmo pedir ao cliente para levar sua freguesia para ou-tro lugar - uma questão de cortar o próprio nariz para destruir a fa-chada de outra pessoa. Normalmente não apreciamos tais vitórias dePirro, e nem a qualidade de cará ter considerada responsável por ar-rancá-las. E sem dúvida tais incidentes não ocorrem frequentementeno mundo real. Mas histórias de sua ocorrência estão em todos oscantos, e parecem ter um papel significativo para manter o respeitopróprio dos serviçais e o comedimento daqueles a quem eles servem.

De todas as qualidades de caráter associadas com o gerência-mento da decisividade, a mais interessante para este ensaio é a com-postura, quer dizer, o autocontrole, o domínio de si e o aprumo.Esse atributo é duplamente consequente, pois ele causa diretamenteo funcionamento de uma propriedade primária e é ele mesmo umafonte de reputação.

A compostura tem um lado comportamental, uma capacidadede executar tarefas físicas (tipicamente envolvendo o controle dosmúsculos das mãos) de forma suave, organizada e autocontroladasob circunstâncias decisivas. Ganhar dinheiro com sinuca é umexemplo:

Por outro lado, o jogador precisa ter "coração" (coragem).O sine qua non é que ele seja um bom "jogador de dinhei-ro", que possa dar o seu melhor quando o jogo vale açãopesada (o que muitos jogadores não conseguem). E eletambém não deve deixar uma jogada azarada ou distraçõesna plateia perturbá-lo. (Ele pode fingir ser abalado em taisocasiões, mas isso é apenas parte de seu truque.) E a quali-

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dade de seu jogo também não pode deteriorar quando, sejapor um erro de cálculo ou algum outro motivo, ele se en-contra muito atrás do que gostaria de estar114.

Podemos citar um exemplo do que esta capacidade não é:Noite passada, um homem nervoso vestindo uma capaimpermeável e óculos escuros estava no guichê de paga-mento da loja Safeway, na Rua Mission, 4940.Enfiando a mão no bolso, ele retirou uma pistola automáti-ca de calibre 32. Ou pelo menos tentou. A arma ficou presano bolso, disparando um tiro no rodapé da cabine do caixa.Uns 15 clientes e dez funcionários encararam o homem.Ele lambeu os lábios, nervoso.- Isto é um assalto - ele balbuciou para a caixa Rose Ca-telli, 30, moradora da Rua Naples, 579. - Quero todo odinheiro do cofre.E então ele deu as costas e saiu correndo da loja, com ogerente Vai Andreacchi e o funcionário Tom Holt emperseguição.Sem sequer olhar para trás, o atirador disparou frenetica-mente três ou quatro tiros enquanto correu meio quartei-rão até um beco na Rua London, pulou em seu carro, efugiu rapidamente115.

A compostura também tem aquilo que é considerado um ladoafetivo, o autocontrole emocional necessário para se lidar com osoutros. Na verdade, o que parece estar envolvido é o controle físicodos órgãos empregados para falar e gesticular. Sir Harold Nicolson,discorrendo sobre as qualidades necessárias a um diplomata profis-sional, nos dá exemplos:

Uma terceira qualidade essencial para o diplomata ideal éa qualidade da calma. O negociador não apenas deve evitardemonstrar irritação quando enfrenta a estupidez, desones-tidade, brutalidade ou presunção daqueles com quem éseu dever desagradável negociar, mas ele deve deixar delado todas as hostilidades pessoais, todas as predileçõespessoais, todos os entusiasmos, preconceitos, vaidades,exageros, dramatizações e indignações morais. [...]

114. POLSKY, N. "The Hustler". Op. cit., p. 10.115. San Francisco Chronicle, 17/11/1963.

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A qualidade da calma, aplicada ao diplomata ideal, deve seexpressar em duas direções principais. Em primeiro lugar,ele deve ter bom humor, ou pelo menos ser capaz de man-ter seu mau humor sob controle perfeito. Em segundo lu-gar, ele deve ser muito excepcionalmente paciente.As ocasiões em que diplomatas perderam a paciência sãolembradas com horror por gerações de seus sucessores.Napoleão perdeu a paciência com Metternich no PalácioMarcolini em Dresden em 26 de junho de 1813, e jogouseu chapéu no carpete com resultados deveras infelizes.Sir Charles Euan Smith perdeu a paciência com o Sultãodo Marrocos e rasgou um tratado na presença imperial. OConde Tattenbach perdeu a paciência na Conferência deAlgeciras e expôs seu país a uma grave humilhação diplo-mática. Herr Stinnes perdeu a paciência em Spa116.

Esses homens "explodiram", deixaram de ser seus própriosmestres, tornando-se, junto com seus princípios, sujeitos ao contro-le de outros.

Junto ao valor de movimentos suaves e emoções serenas, pode-mos examinar o valor da calma e prontidão mentais, ou seja, a pre-sença de espírito. Esta competência é importante para a execuçãoapropriada de muitas tarefas impessoais, como, por exemplo, pro-vas. Estas são supostamente um dispositivo de amostragem paradescobrir um resultado justo e esperado. Mas, na verdade, a notanuma prova depende da mobilização de memória e conhecimentosob pressão, e então a confecção de uma resposta abrangente e orde-nada num tempo não exatamente confortável; o oposto disto é àsvezes chamado de "dar um branco"117. A presença de espírito tam-bém é importante em tarefas que envolvem outras pessoas direta-

116. NICOLSON, H. Diplomacy. Nova York: Oxford University Press, 1964, p. 62.117. Como parte da socialização, provas escolares podem ser importantes não porcausa daquilo que os alunos precisam aprender para fazê-las, mas sim por causa da-quilo que eles podem aprender ao fazê-las. Pois aqui, pelo menos em nossa socieda-de, está talvez o treinamento inicial mais importante para a realização de tarefas di-fíceis sob condições de tempo limitado, de forma que a falta de compostura mentalpor si mesma provavelmente desperdiçará um tempo limitado e aumentará suaprópria produção. É interessante notar que, em nossa sociedade, testes formais querequerem compostura física sob circunstâncias difíceis parecem aparecer apenasmuito mais tarde na vida, se é que aparecem.

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mente. Esse tipo de presença de espírito é aquilo que pessoas conhe-cidas como espirituosas têm, e a pessoa tímida não tem. Livros demots famosas, afirmações brilhantes de tato, e "cala-bocas" e humi-lhações eficientes testemunham o interesse geral nessa disposição.

A compostura tem ainda outro lado, a capacidade de contem-plar a mudança abrupta do destino - o próprio, e por extensão, odos outros - sem perda de controle emocional, sem se "abalar"118.

A compostura também tem um lado corporal, às vezes chamadode dignidade, quer dizer, a capacidade de manter o decoro corporalface a custos, dificuldades e impulsos imperativos119. Aqui, o esportedo surfe (ainda mais do que o esqui) tem interesse especial. O apru-mo físico e a dignidade da postura ereta devem ser mantidos numaprancha chata e estreita contra forças retumbantes que desafiam atéo limite a capacidade humana para esse tipo de autocontrole corpo-ral. Aqui a manutenção do aprumo físico não é meramente umacondição para a performance efetiva, mas um propósito central dela.

Podemos mencionar um último aspecto da compostura: a confi-ança de palco - a capacidade de suportar os perigos e oportunidadesde aparecer perante grandes plateias sem medo, constrangimento,vergonha ou pânico. Por trás disto está o tipo especial de aprumo re-lacionado a lidar com a contingência de estar sob a observação deoutros enquanto se desempenha um papel em que é fácil perder cré-dito. Uma variação interessante ocorre no mundo secreto de es-piões, agentes à paisana e criminosos, no qual pode ser necessário"agir naturalmente" perante uma plateia crítica quando se sabeque em alguns poucos segundos o show inteiro pode acabar. O que

118. Uma análise desta questão é oferecida em GLASER, B. & STRAUSS, A. Aware-mss ofDying. Chicago: Aldine, 1965, p. 226-256, cap. 13: "Awareness and the Nur-se's Composure".119. A dignidade pode criar noticias. Vejamos um relato do Sun-Times (com foto),17/04/1953: "Viviane Romance, uma estrela de cinema francesa que se recusou adeixar um ator cuspir em seu rosto e xingá-la numa cena de um filme, foi multadaem $11.428 por quebra de contrato em Paris. A estrela disse que tal ação estava'abaixo de sua dignidade'". Um bom exemplo de conduta que alguns considerariamindigna pode ser encontrado no livro Picture, de L. Ross (Nova York: Dolphin,1962) em que ela descobre as tarefas ignóbeis que Albert Band aparentemente rea-lizava como assistente de John Huston e Gottfried Reinhardt. Cf. esp. p. 32-57,91-97. [Band, Huston e Reinhardt foram diretores de cinema - N.T.]

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se segue foi escrito sobre um dos melhores arrombadores de NovaYork, logo depois de realizar um roubo muito grande no décimo an-dar de um hotel:

Ele desceu as escadas para o nono andar e pegou o eleva-dor até o térreo. Com aquilo que a polícia chama de "co-ragem de arrombador", ele deixou que o porteiro cha-masse um táxi para ele.- Foi a primeira vez na minha vida que não pude dar umagorjeta para o porteiro - ele disse para a polícia. - Meusbolsos estavam tão cheios de jóias que eu não conseguipegar nenhum trocado. Foi muito constrangedor120.

Está envolvido aqui um conjunto importante de suposições.Pessoas que têm boas razões para temer serem presas a qualquermomento são inclinadas a fugir correndo ou pelo menos ficar cons-tantemente de olho em perigos possíveis. Essas tendências bastantenaturais podem ser mantidas sob controle, mas raramente sem dei-xar algum traço de agitação. Então, as autoridades, procurandoaquele realmente culpado entre os aparentemente inocentes, esta-rão corretamente inclinadas a vistoriar pessoas que pareçam des-confiadas, ou ansiosas sem nenhuma causa visível. Parecer tímido,então, é estragar o disfarce de "parecer com qualquer um". Mas se oindivíduo sentir que sua aparência o está denunciando, ele sentiráque tem mais motivos para ter medo. Suprimir o impulso de sair dorecinto que este novo medo causa gerará sinais ainda maiores de fal-ta de naturalidade que, por sua vez, terão seu efeito circular.

A compostura, em todas as suas dimensões diferentes, tradicio-nalmente é associada com a ética aristocrática. Entretanto, recente-mente uma versão dessa qualidade tem sido bastante promovida porelementos urbanos vulgares sob o rótulo de cooíness121. Sir Haroldtalvez não aprovasse a locução, mas seus conselhos para um diplo-

120. BLACK, S. "Burglary", II. Op. cit., p. 118.121. Literalmente, "frieza", mas sem tradução para o português na acepção em queGoffman o emprega (o termo é utilizado no original por jovens brasileiros) - o maispróximo que temos é a expressão "ficar frio". É bom notar que na época em queGoffman publicou este ensaio, o termo, como ele diz, era utilizado principalmentepor classes mais baixas. Hoje em dia, no início do século XXI, seu uso já se generali-zou entre jovens de todas as classes [N.T.].

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mata itinerante poderiam ser expressos com precisão dizendo "Que-rida, fique fria"122. O ponto importante aqui é que descobrimos que acompostura é uma preocupação e um valor em muitas culturas dife-rentes e através de muitos estratos diferentes. Parece haver duas ra-zões principais para isto.

Primeiro, sempre que um indivíduo está na presença imediatade outros, especialmente quando ele está envolvido cooperativa-mente com eles - como, por exemplo, na manutenção conjunta deum estado de fala - sua capacidade enquanto um participante com-petente da interação é importante para eles. A ordem social mantidano ajuntamento retira seus ingredientes, sua substância, de peque-nos comportamentos disciplinados. Sua contribuição de um porteapropriado se mistura com a contribuição dos outros para produziruma copresença organizada socialmente. Ele precisará manter con-trole sobre si mesmo se quiser se tornar disponível para as questõesdo momento e não as perturbar. A falta de compostura o desqualifi-cará para esses deveres e ameaçará o mundo sustentado conjunta-mente em que os outros sentem que têm direito de estar.

Segundo, esteja ou não o indivíduo na presença de outros, qual-quer tarefa que ele realize envolve o uso fácil e treinado de faculda-des humanas - mente, membros e, especialmente, músculos dasmãos. Muitas vezes, esse gerenciamento precisa ser adquirido emantido sob circunstâncias muito especiais: qualquer fracasso tem-porário de controle devido à preocupação sobre a situação criará ra-zões para ainda mais constrangimento e, por isso, ainda mais faltade jeito, e assim por diante até o indivíduo ficar abalado demais para

122. Mas a cooíness contemporânea parece ter nuances próprias. O estilo emprega-do pressupõe que, apesar da cooíness ser uma característica pessoal, aquele que apossui está numa relação alienada com ela, já que mante-la é sempre problemático.Assim como podemos perder a carteira, podemos perder a cooíness. O termo tam-bém é estendido para cobrir não apenas o envolvimento em questões perturbado-ras, mas o envolvimento em qualquer coisa - aparentemente, sob a pressuposiçãode que para aqueles cuja posição social é vulnerável, qualquer preocupação porqualquer coisa pode ser infeliz, e a indiferença é a única posição defensível. Final-mente, na frase "esfria aí" [to cool íí], comunica-se uma injunção contra comporta-mentos que poderiam excitar respostas indesejáveis de outras pessoas e assim, porextensão, aumentar a ameaça contra nossa própria situação e, em consequência,contra nossa cooíness.

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lidar com a tarefa. Engolidores de espadas são um exemplo claro. Otoque e a temperatura da lâmina fazem com que aqueles que nãotêm prática tenham náuseas, o que certamente impossibilita a tare-fa. Quando essa resposta consegue ser suprimida, o aprendiz desco-bre que a espada faz com que sua garganta se feche bastante. Ele pre-cisa de mais treino para relaxar esses músculos e permitir que a es-pada passe sem tocá-los. Quanto mais a espada toca, maior a chancede um espasmo involuntário, o que, obviamente, aumentará a quan-tidade de toques123. (É claro que, correspondentemente, quantomais bem composto o engolidor, menos a espada tocará e menosrestrita será a passagem, e assim por diante.) Como foi sugerido, umapuro similar ocorre sob condições de tempo limitadas. A falta dejeito pode desperdiçar tempo, o que torna a situação mais difícil, oque por sua vez provoca ainda mais descompostura.

Já que as pessoas em todas as sociedades precisam levar a cabo boaparte de suas atividades em situações sociais, devemos esperar que acapacidade de manter apoio à ocasião social sob circunstâncias difíceisseja aprovada universalmente. Da mesma forma, já que indivíduos emtodas as sociedades e estratos precisam realizar tarefas, a composturarequerida por isto será uma preocupação em qualquer lugar.

Eu listei várias bases de caráter forte: coragem, combatividade,integridade, compostura. Deve estar claro que elas podem ser com-binadas, produzindo decorações para a vida moral da comunidade.Um operador de telégrafo que polidamente se recusa a abandonarseu navio naufragando, e afunda enquanto friamente improvisa re-paros no transmissor, combativamente se motivando mesmo comsuas mãos queimadas, combina em seu feito quase tudo que a socie-dade pode pedir de uma pessoa. Ele transmite uma mensagem im-portante, mesmo que ninguém receba seu SOS.

Desejo agora voltar à sugestão de que, apesar das propriedadesde caráter serem encontradas tipicamente durante momentos deci-sivos, elas também são exibidas durante ocasiões de mera decisivi-dade subjetiva, quando um destino que já está determinado estásendo revelado e assentado. Os sentimentos gerados durante essesmomentos podem exigir poderes de autocontrole para serem bem

123. Cf. MANNIX, D. Memoirs ofaSwordS-wallawer. Nova York: Ballantine, 1964,p. 94-98.

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gerenciados. E, é claro, esse domínio de si será especialmente im-portante quando outros estão imediatamente presentes, já que a in-teração ordenada que eles mantêm seria colocada em perigo peladescompostura do indivíduo cujo destino está em jogo.

Não podemos encontrar nenhum exemplo melhor do que asqualidades exibidas por alguém prestes a ser enforcado, guilhotina-do, fuzilado, ou submetido à câmara de gás. As execuções ocorremsob condições nas quais a plateia é bastante instável, e em que a co-operação física e a equanimidade psíquica são exigidas do homemcondenado para as coisas correrem suavemente. O saber sobre exe-cuções registra, como consequência, pessoas que lutaram, se con-torceram, cuspiram, uivaram, desmaiaram e tiveram incontinênciadurante os momentos antes de serem despachados, provando suafalta de caráter:

"O povo de York testemunhou outro enforcamento desa-gradável quando Joseph Terry lutou, gritou e mordeuquando o carrasco tentou colocar o nó em volta de seupescoço. Seis homens vieram para o cadafalso para segu-rá-lo e finalmente a corda foi forçada em sua cabeça, masem outro embate o capuz caiu. Neste momento a plata-forma caiu. Terry saltou e conseguiu colocar um pé naborda do cadafalso, agarrando-se a um dos postes da for-ca com seu braço. Aqui ele conseguiu enfrentar os esfor-ços conjur tos do carrasco e de seus assistentes por umminuto antes deles conseguirem derrubá-lo. Ele morreucom seu rosto coberto de contorções assustadoras"124.

124. ATHOLL, J. Shadow ofthe Gallows. Londres: John Long, 1954, p. 77. A histó-ria das execuções normalmente é escrita em termos evolucionistas, começandocom mortes cruéis indicadas para vários crimes e chegando até a nossa época, ondea morte humanitária é administrada para muito poucos crimes, e há muita pressãopara se abolir totalmente a pena de morte. Na verdade, a história das execuções po-deria ser melhor escrita em termos de interação, pois a evolução das técnicas deexecução tem muito a ver com o desenvolvimento de dispositivos e práticas paragarantir uma ocasião social tranquila. Tendo em vista que a plateia, o carrasco e avítima estarão ansiosos, como se pode realizar o ato de forma a facilitar o autocon-trole dos três tipos de participantes? A história das práticas de execução é a históriada resposta se acumulando lentamente. Vejamos a arte dos enforcamentos, porexemplo. Desenvolveram-se forcas que podem ser erguidas silenciosamente du-rante a noite no pátio da prisão para minimizar visões e sons medonhos; uma "tabe-la de quedas" de acordo com o peso e condição do pescoço, de forma que a exten-

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Em contraste, as histórias contam de outras atrações que troca-ram gracejos com a plateia, mantiveram as delicadezas sociais, aju-daram o carrasco no ajuste do nó e, de modo geral, facilitaram as coi-sas para todos os presentes. O humor da forca realmente ocorre,como quando um aristocrata, prestes a ser guilhotinado, recusa ocopo de rum tradicional, dizendo: "Eu perco todo o meu senso dedireção quando bebo"125.

As dificuldades procedimentais que vítimas de execuções indis-postas podem causar, e sua tendência geral de ir para a morte coope-rativamente, demonstram o desejo que as pessoas têm de exibir ca-ráter forte. O homern condenado normalmente coopera; ele tem es-pírito esportivo; ele não é uma criança; ele aceita que perdeu o jogosem ressentimento nem caindo no choro126, e pode até demonstrarum coração de lutador, desdenhando com uma careta colocar suaaposta final de forma tradicional, quer dizer, com piedade, orações,e um pedido para que aqueles que ficam o perdoem e sejam perdoa-dos127. Este tipo de graça é o ato socializado final e terrível, pois o

são da queda livre nem deixaria o homem se contorcendo nem arrancaria a cabeçadele, e sim quebraria seu pescoço com precisão - projetando-se um nó e um tipo decorda para facilitar este ajuste; correias para os braços para impedir que o homemobstrua a queda; e alçapões que ficam presos até que a corda seja puxada, queabrem rapidamente quando isto ocorre, e (num dos toques mais interessantes) pro-jetados para não ficarem oscilando para frente e par? trás numa reverberação pesa-rosa da queda. Pode-se argumentar que o caráter rn nanitário da execução dificil-mente seria importante para a vítima, já que a questão de como alguém logo serádespachado pode muito bem ser considerada sem importância em comparaçãocom o fato de que alguém está prestes a ser despachado. São apenas aqueles que fi-cam para trás que podem se confortar sabendo que o fim foi praticamente indolor eque ninguém sentiu prazer com o negócio terrível de prepará-lo e testemunhá-lo.125. KERSHAW, A. A History ofthe Guillotine. Londres: John Calder, 1958, p. 71.126. É claro que não são apenas crianças que podem ser maus esportistas e perdersua equanimidade e, assim, seu caráter quando perdem um jogo. Como uma enxa-drista profissional relatou: "Em um jogo, uma jogadora holandesa perdeu de re-pente sua rainha para uma russa. Ela saiu correndo do palco chorando" (SenhoritaLisa Lane, apud "Talk of the Town". The New Yorker, 19/09/1964, p. 43).127. Em correlação com a tendência na direção de execuções "humanitárias", temhavido um declínio nos pedidos de graça e caráter que colocamos sobre os conde-nados. Na câmara de gás em prisões americanas, pode-se pedir que a vítima respireprofundamente logo depois que o cianeto é liberado, mas ninguém pediria que elaapresentasse suas últimas palavras da forma que era costumeira nos séculos XVII eXVIII. Sobre últimas palavras, cf. ATHOLL, J. Shadow ofthe Gallows. Op. cit, p. 56.

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homem condenado tranquiliza a situação social, apoiando a partemais evanescente de nossa vida social - suas ocasiões sociais - exa-tamente quando ele quase não pode compartilhar mais daquilo queestá apoiando. Afinal, há outras pessoas presentes. Passemos pelosdentes da eternidade se for preciso, mas não os limpe com os dedos.

Compreensivelmente, durante os tempos de execuções públi-cas, a conduta do dia final do condenado era observada de perto econtribuía muito para sua reputação póstuma. Heróis podiam entãonascer, ser confirmados e assassinados enquanto morriam. Em co-munidades nas quais a possibilidade de execução não é insignifican-te, ainda encontramos esse interesse, como Claude Brown sugereem suas memórias do Harlem:

Parecia que um monte de gente da vizinhança, manosque a gente conhecia, que foram para a escola conosco,estavam sendo fritados [na prisão de] Sing Sing. Tinha vi-rado um hábito na vizinhança ir falar com as mães e pa-rentes desses manos que foram para a cadeira elétrica emSing Sing. Eu lembro que quando eu era mais jovem,quando eu estava [na prisão] Warwick, e logo depois queeu saí, ouvia falar que gente que eu conhecia tinha idopra cadeira. Todo mundo queria saber o que eles tinhamdito porque a gente queria descobrir algo para nós mes-mos. A gente queria descobrir se tinha valido a pena noúltimo minuto, se eles achavam que tinha valido a pena,agora que eles iam morrer.Quando eu era mais novo, alguns anos depois de Warwick,eu queria saber se esses manos eram mesmo durões. Euacho que a maioria dos caras da minha idade olhava pra elescomo heróis quando eles estavam sendo fritados em SingSing. A gente queria saber as últimas palavras deles. Alguémme disse que quando eles fritaram Pirulito - Pirulito era ummano meio doido, e a gente chamava ele de Pirulito porqueele gostava de doces - logo antes dele morrer, ele disse:- Bom, parece que esta foi a última lambida do Pirulito.Foi isso. Todo mundo admirava ele pela forma que ele sedespediu. Ele não gritou, nem nada disso128.

128. BROWN, C. Manchild in the Promised Land. Op. cit., p. 211.

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Ao revisar algumas das qualidades que influenciam a forma emque um indivíduo atuará em ocasiões desesperadas, sugeri uma cone-xão entre ação e caráter. A relação não deve ser exagerada. Aquelesque apoiam uma moralidade provavelmente sentem que ela pode serlevada longe demais, mesmo que a sociedade possa se beneficiar doexemplo oferecido pela devoção extrema. Também devemos admitirque há certas qualidades de caráter valorizadas positivamente obtidasquando nos aferramos a uma tarefa que não é dramática por um lon-go período de tempo e, consequentemente, a conduta durante qual-quer dado momento não pode conter uma expressão completa da ca-racterística. Além do mais, durante a decisividade zelosa, como quan-do homens guerreiam, o tipo de graça e intrepidez de destaque indivi-dual exibido por apostadores e pilotos de corrida não será o bastante.Como William James notou em seu elogio das virtudes militares, háuma necessidade de abandonar interesses privados e demonstrar obe-diência a ordens129. Uma crise pode exigir não apenas as qualidadesde caráter que levam um indivíduo a superar outros e se destacar,mas também aquelas que o levam a se submergir nas necessidadesimediatas do todo. Mesmo o interesse próprio pode exigir a demons-tração disciplinada de qualidades muito pouco heróicas. O jogadorde sinuca por dinheiro nos oferece um exemplo:

O jogador precisa se abster de conseguir realizar muitasdas tacadas extremamente difíceis. Isso não é fácil, por-que é difícil de resistir ao arrepio de fazer uma tacadacomplicada que causa aplausos da plateia. Mas o jogadorprecisa resistir, senão ficaria mais difícil de acreditar emseus erros em tacadas mais comuns130.

Aqui a qualidade mais profunda de caráter é conseguir parecer,sob pressão, que se tem menos graça do que realmente é o caso. Fi-nalmente, como já foi sugerido, há as qualidades de caráter associa-das tradicionalmente com a feminilidade. Estas obrigam a mulher ase retrair de todas as disputas para preservar sua pureza, garantindoque mesmo seus sentidos não serão maculados. Quando a ação é ne-

l

129. JAMES, W. "The Moral Equivalent of War". Essays on Faith and Morais. NovaYork: Meridian, 1962, p. 323.130. POLSKY, N. "The Hustler". Op. cit, p. 9.

cessaria para garantir essa virtude, supostamente ela é realizadapelo homem que protege a mulher.

Eu sugeri que quando o indivíduo está numa situação social eleestá exposto a julgamentos dos outros presentes, e que isto envolveque eles o avaliem em relação a capacidades primárias e qualidadesde caráter. Nenhum quadro dessas contingências de reputação esta-ria completo sem tratar das crenças populares que predominam nasociedade em relação à natureza das pessoas, pois essas crenças ofe-recem o esquema de referência para os julgamentos de característi-cas feitos em relação ao indivíduo testemunhado.

Primeiro, com propriedades de caráter, diferente das proprieda-des primárias, uma única expressão tende a ser considerada definiti-va. Já que propriedades de caráter são evocadas apenas nas ocasiõesraras em que a decisividade não foi evitada, manifestações posterio-res de corroboração ou correção não são imediatamente prováveis.Precisaremos forçosamente confiar numa única amostra. E, o que émais importante, faz parte do imaginário dessas características quenenhuma exceção é permitida. É exatamente quando ele está maistentado a se desviar, que o indivíduo tem a oportunidade mais clarade ser constante e assim demonstrar seu caráter; essa constân-cia-apesar-de-tudo é, de fato, a essência do caráter. Dizer que impu-tações leigas são impulsivas e infundadas, e que com o passar dotempo e em várias situações o indivíduo talvez não mantenha defato o caráter que manifesta atualmente é verdade, mas não importaaqui. Eu não estou preocupado em saber se um certo indivíduo pos-sui ou não uma característica específica, mas em como noções sobreo caráter funcionam na vida cotidiana. Em nossos negócios com ou-tra pessoa pressupomos que o caráter que ela expressa atualmente éum ré trato completo e duradouro dela, e ela ao lidar conosco fazexatamente a mesma suposição de como ela será vista. É claro quedesculpas são oferecidas, explicações dadas e exceções concedidas;mas este trabalho é feito em relação à pressuposição anterior de quea demonstração atual é crucial, e de qualquer forma muitas vezes éincompletamente efetiva.

Segundo, uma vez que a evidência de caráter forte tenha sido es-tabelecida, ela não precisa ser reestabelecida intencionalmente, pelomenos não imediatamente; por enquanto, o ator pode se basear no

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seu histórico. Ele pode confiar que os outros pressuporão que se aocasião correta surgir ele assumirá as implicações de seus modos eagirá com caráter. Mas isto, é claro, traz seu próprio perigo para a vidamoral, pois nós tendemos a operar em termos de visões otimistas denós mesmos, que seriam desacreditadas se um dia as testássemos.

Terceiro, existe a crença de que uma vez que o indivíduo tenhafalhado de forma particular, ele se torna essencialmente diferente apartir daquele momento e deveria simplesmente desistir. Um solda-do doutrinado com a ideia de que ele tem uma vontade, e que vonta-des ou se mantêm totalmente ou são completamente quebradas,pode tender, por causa disso, a divulgar tudo que sabe durante uminterrogatório inimigo a partir do momento em que ele tiver divul-gado alguma coisa131. Da mesma forma, pode-se dizer que um tourei-ro perde todo o seu valor depois da primeira chifrada132. E também,em corridas de cavalos, existe a discussão sobre jóqueis que "per-dem a coragem" e passam a correr mal, ou até a se recusar a correr.Histórias exemplares falam de jóqueis famosos que, sentindo queperderam a coragem, proclamaram esse fato e se aposentaram dospáreos133. Histórias parecidas são contadas sobre mergulhadores degrandes profundidades. E a ficção detetivesca muitas vezes descrevepoliciais e marginais durões que recebem um espancamento severoe depois nunca recuperam seu brio anterior. E, é, claro, há a crençacomum de que, depois que descobrimos e pagamos o preço de umhomem, torna-se impossível confiar nele e é melhor que ele passe aaceitar subornos pequenos, mas frequentes.

Junto com a crença na "capacidade de perda" da coragem, na des-tra tibilidade da fibra moral, e em "ele-nunca-mais-será-o-mesmo",há uma outra: depois de não ter coragem ou fibra moral por muitotempo, um indivíduo pode adquirir repentinamente "energia" ou"coração", e a partir deste ponto continuar a tê-la:

131.BIDERMAN, A. "Social-Psychological Needs and Involuntary Behavior asIllustrated by Compliance in Interroga tion". Sociometry, 23, 1960, p. 138-139. Umoutro relato é apresentado em GOFFMAN, E. Asylums. Nova York: DoubledayAnchor, 1961, p. 89-90.132. Cf., p. ex., HEMINGWAY, E. Death m the Afternoon. Op. cit., p. 89.133. LEACH, J. "Unseated by Nerves". The Observer, 03/03/1963.

Cayetano Ordonez, Nino de Ia Palama, sabia lidar com amuleta perfeitamente com ambas as mãos, era um atorlindo com um grande senso artístico e dramático da/ae-na , mas ele nunca mais foi o mesmo depois de desco-brir que os touros carregavam passagens pelo hospital,inevitáveis, e a morte, talvez, em seus chifres, além de no-tas de cinco mil pesetas entre sua cernelha. Ele queria asnotas, mas não estava disposto a se aproximar dos chifrespara pegá-las quando descobriu a penalidade que eraaplicável pelas pontas deles. A coragem percorre umadistância tão curta; do coração para a cabeça; mas quandoela some ninguém sabe para onde ela vai; para uma he-morragia, talvez, ou para uma mulher, e é ruim estar nonegócio das touradas quando ela se some, seja lá paraonde quer que ela tenha ido. Às vezes ela é recuperada deoutro ferimento, o primeiro pode trazer o medo da mortee o segundo afastá-lo, e às vezes uma mulher a leva e ou-tra a traz de volta. Os toureiros ficam em suas profissõesconfiando em seu conhecimento e em sua habilidade delimitar o perigo, e torcem para que a coragem volte, e àsvezes ela volta, mas, na maioria das vezes, não135.

Na ficção e nos mitos, a redenção muitas vezes é alcançada ape-nas no ato que dá ao indivíduo força suficiente para morrer por seusprincípios, e o falecimento do redimido serve para manter as pres-suposições contraditórias de que uma queda da graça é permanentee que uma pessoa quebrada pode se consertar.

Tendo em vista a crença de que o caráter pode ser adquirido eperdido dramaticamente, o indivíduo claramente terá razões para irem frente com uma situação arriscada independentemente do customaterial ou físico provável para si mesmo, manifestando assimaquilo que às vezes é chamado de orgulho. É interessante notar quenossas crenças sobre a coragem permitem um pouco de ajuda defora nesta questão: muitas vezes sentimos que uma dose rápida deuma bebida forte permitirá que um homem desempenhe uma ação

134. Em espanhol, termo usado para indicar o conjunto de passos realizados du-rante uma tourada [N.T.].135. HEMINGWAY, E. Death in the Afternoon. Op. cit., p. 222.

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difícil melhor e mais facilmente, e um número surpreendente de si-tuações permite tal fortificação136.

Tendo em vista esses argumentos sobre a natureza do caráter, épossível entender melhor por que a ação parece ter um apelo peculi-ar. Claramente, é durante momentos de ação que o indivíduo tem orisco e a oportunidade de exibir para si mesmo e às vezes para ou-tros seu estilo de conduta quando as cartas estão na mesa. O caráteré apostado; uma única boa exibição pode ser considerada represen-tativa, e uma exibição ruim não pode ser desculpada ou tentada denovo facilmente. Exibir ou expressar caráter, fraco ou forte, é gerarcaráter. O eu, resumindo, pode ser sujeito voluntariamente à recria-ção. Sem dúvida essa permissão é praticável, do ponto de vista dasociedade, porque, como fica ilustrado claramente em relação com a"aposta" dos apostadores, o preço de fazer tais demonstrações prova-velmente oferece um freio automático contra aqueles que poderiamser inclinados demais a exibi-las. De qualquer forma, aqui está achance de mostrar graça sob pressão; aqui está a oportunidade deser medido pela medida dos homens de Hemingway.

Podemos começar a ver que a ação não precisa ser percebida, emprimeira instância, como uma expressão de impulsividade ou irracio-nalidade, mesmo quando o resultado é risco sem nenhum prémio apa-rente. Certamente arriscamos uma perda através da ação; mas pode ha-ver um ganho real de caráter. É nesses termos que a ação pode ser vistacomo um risco calculado137. Afirmações (incluindo a minha) de que aação é um fim em si mesmo devem ser entendidas como locuções.Arriscar-se seriamente de forma voluntária é um meio de manter e ad-quirir caráter; isto é um fim em si mesmo apenas em relação a outros ti-pos de propósito. Considerar a ação literalmente como um fim em simesmo seria trivializar e truncar a explicação social.

E agora começamos a ver o caráter como ele realmente é. Porum lado, ele se refere àquilo que é essencial e imutável sobre o indi-

136. A prática de execuções é uma ilustração. Cf., p. ex., KELLER, A. (org.). TheHongmaris Diary. Londres: Philip Allen, 1928, p. 8, sob a frase stãrkenden Trunfe,["drinque de restauração" - N.T.]137. Este argumento foi feito recentemente em relação ao risco envolvido em rela-ções sexuais extraconjugais e brigas de gangues. Cf. STRODTBECK, F. & SHORT,J. "Aleatory Risks Versus Short-run Hedonism in Explanation of Gang Action", So-cial Problems, 12, 1964, p. 127-140.

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víduo - aquilo que é característico dele. Por outro lado, ele se referea atributos que podem ser gerados e destruídos durante momentosdecisivos. Nesta segunda visão o indivíduo pode agir de forma a de-terminar as características que doravante serão suas; ele pode agirde forma a criar e estabelecer aquilo que será imputado a ele. Todavez que um momento ocorre, então seus participantes se encontra-rão com outra pequena chance de fazer um nome para si mesmos.

Daí um paradoxo. O caráter é ao mesmo tempo imutável e mu-tável. Mas é assim que nós o concebemos.

Também deve estar bem claro que nossa falta de lógica sobre essaquestão tem seu valor social. A organização social, em todos os luga-res, tem os problemas do ânimo e da continuidade. Os indivíduosprecisam chegar a todas suas pequenas situações com algum entusi-asmo e preocupação, pois é em grande parte através desses momen-tos que a vida social ocorre, e, se não houvesse um esforço renovadoem cada um deles, a sociedade certamente sofreria. A possibilidade decriar reputação é a espora. Mas ainda assim, se a sociedade quiser per-sistir, o mesmo padrão precisa ser mantido de uma ocasião social realpara outra. Aqui a necessidade é de regras e convencionalidade. Osindivíduos precisam se definir em termos de propriedades já aceitascomo deles, e agir confiavelmente em termos delas.

Para satisfazer as exigências fundamentais de ânimo e continui-dade, somos encorajados a acreditar numa ilusão fundamental. Elaé nosso caráter. Algo inteiramente nosso que não muda, mas que aomesmo tempo é precário e mutável. As possibilidades relacionadasao caráter nos encorajam a renovar nossos esforços em cada mo-mento de atividade da sociedade do qual nos aproximamos, especi-almente seus momentos sociais; e é precisamente através dessas re-novações que as rotinas antigas podem ser mantidas. Permite-se quepensemos que há algo a ganhar nos momentos que enfrentamospara que a sociedade possa enfrentar os momentos e derrotá-los.

9. Competições de caráterComeçando com a noção de tarefas ocupacionais decisivas, po-

demos enxergar a ação como um tipo de evocação auto-orientada deforma ritualizada da cena moral que surge quando tais tarefas sãoexercidas. A ação consiste de tarefas arriscadas realizadas "por simesmas". A excitação e a exibição de caráter, os efeitos colaterais

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das apostas práticas, de cenas decisivas sérias, tornam-se, no caso daação, o propósito tácito de todo o show. Entretanto, nem as tarefasdecisivas nem a ação nos dizem muito sobre as implicações mútuasque podem ocorrer quando a exibição de caráter de uma pessoa temimportância direta sobre a de outra, e também não aprendemos sobreo esquema de compreensão que possuímos para lidar com tais ocor-rências. Para isto, precisamos nos voltar para a ação interpessoal.

Durante ocasiões desse tipo de ação, não é apenas o caráter queestá em jogo - prevalece aqui uma decisividade mútua. Cada pessoaestará pelo menos incidentalmente preocupada em estabelecer evi-dências de caráter forte, e as condições serão tais que só permitirãoisto à custa do caráter dos outros participantes. O próprio campoque o primeiro usa para expressar o caráter pode ser a expressão decaráter do outro. E algumas vezes as propriedades primárias emjogo podem elas mesmas ser transformadas abertamente numa con-veniência, servindo marcadamente apenas como uma ocasião parauma batalha através do caráter, e por ele. O resultado é uma compe-tição de caráter, um tipo especial de jogo moral.

Esses engajamentos ocorrem, é claro, em jogos e esportes nosquais os adversários estão equilibrados e são necessários esforçosmarginais para vencer. Mas as competições de caráter também sãoencontradas sob condições planejadas menos obviamente para com-petições, sujeitando a todos nós a um fluxo de pequenas perdas eganhos. Todo dia, podemos tentar marcar pontos de várias formas, etodo dia podemos ser derrubados de várias formas. (Talvez um pe-queno resíduo permaneça de cada uma dessas atribulações, de for-ma que, no momento em que um indivíduo se aproxima de outro,seus modos e seu rosto podem revelar as consequências que sãonormais para ele, e sutilmente dirigir a interação num caminho quese desenvolve e termina como sempre parece ocorrer com ele.) Bar-ganhas, ameaças, promessas - seja no comércio, na diplomacia, naguerra, em jogos de cartas ou relações pessoais — permitem que umcompetidor oponha sua capacidade de desmontar intenções e re-cursos contra a capacidade do outro de provocar ou adular aquiloque é secreto para que possa ser lido. Sempre que indivíduos pedemou dão desculpas, proferem ou recebem elogios, insultam ou são in-sultados, o resultado pode ser uma competição de autocontrole. Damesma forma, os pequenos flertes tácitos que ocorrem entre amigos

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e entre estranhos produzem uma competição de indisponibilidade -ainda que normalmente não mais que isto. E quando ocorrem gra-cejos ou "observações", alguém terá demonstrado mais aprumo queoutra pessoa. Os territórios do eu têm fronteiras que não podem serpatrulhadas literalmente. Em vez disso, as disputas de fronteiras sãobuscadas e desfrutadas (muitas vezes com alegria) como um modode estabelecer onde estão as fronteiras de uma pessoa. E essas dispu-tas são competições de caráter.

Entretanto, se quisermos apreciar a importância de competi-ções de caráter, precisamos nos afastar de jogos e escaramuças emdireção às características constitutivas da vida social. Precisamosexaminar o investimento que um indivíduo é obrigado a fazer emexpectativas legítimas que por um acaso são suas, especialmente ex-pectativas informais, e os meios disponíveis na sociedade para esta-belecer autoridade, posição hostil, domínio e estatuto. No jogo en-tre virtude e posição, encontramos um código que atinge o centrodo eu, e que vale a pena tentar formular idealmente.

Quando duas pessoas estão mutuamente presentes, a conduta decada uma pode ser lida para se chegar ao conceito que ela exprime emrelação a si mesma e à outra. O comportamento copresente se tornaassim tratamento mútuo. Mas o próprio tratamento mútuo tende a setornar socialmente legitimado, de forma que cada ato, seja substanti-vo ou cerimonial, se torna a obrigação do ator e a expectativa do ou-tro. Ambos os participantes são transformados num campo em que ooutro necessariamente pratica conduta boa ou má. Além do mais,ambos não apenas desejarão receber o que merecem, mas descobrirãoque são obrigados a fazer com que isso aconteça, obrigados a policiara interação para garantir que recebam o que é justo.

Quando ocorre uma competição sobre qual tratamento do eu edo outro deve prevalecer, cada indivíduo se engaja em oferecer evi-dências para estabelecer uma definição de si mesmo à custa daquiloque pode restar para o outro. E essa disputa constrangerá não ape-nas o desejo de um lugar satisfatório nas definições que prevalecem,mas também o direito de receber tal lugar e o dever de insistir nele.Está envolvida aqui uma "questão de princípio", ou seja, uma regracuja santidade é derivada não apenas da conduta real orientada porela, mas também de sua implicação simbólica como uma regra de

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um. conjunto inteiro de regras, estando o sistema inteiro amea-çado"". A insistência por um lugar desejável é assim coberta efortalecida pela insistência por nosso lugar de direito, e isto é aindamais endurecido pela obrigação de fazê-lo, para que o padrão intei-ro de regras não se deteriore. Podemos então nos engajar em honra,a saber, aquele aspecto da composição pessoal que faz com que oindivíduo zelosamente entre numa competição de caráter quandoseus direitos foram violados - um curso que se torna mais necessá-

. 139rio seguir quanto maiores parecerem os custos prováveis .O jogo tipicamente começa com um jogador ofendendo uma re-

gra moral, cuja aplicação particular o outro jogador se comprome-teu a manter pessoalmente, normalmente porque ele ou aquelescom quem ele se identifica são os alvos da ofensa. Esta é a "provoca-ção". No caso de pequenas infrações, é provável que o ofensor ofe-reça uma desculpa imediata, que restaura tanto a regra quanto ahonra do ofendido; o ofendido precisa apenas comunicar sua acei-tação para abortar o jogo inteiro - na verdade, ele pode se descul-par também ao mesmo tempo, ou aceitar a desculpa antes que elaseja oferecida, demonstrando mais uma vez a grande preocupaçãodas pessoas em ficar fora desse tipo de ação. (Uma questão estrutu-ral importante aqui é que é mais fácil oferecer uma desculpa emnossa capacidade de guardião dos direitos dos outros, quando estaé autoiniciada, do que é aceitar uma afronta em nossa capacidadede protetor de nossa própria santidade.) Um término semelhantedo jogo ocorre quando o ofendido comunica um leve desafio (obastante para mostrar que ele possui honra), chamando a atençãodo ofensor para aquilo que aconteceu, o que é seguido por uma se-quência de desculpas e aceitação. Pede-se e oferece-se "satisfação",e não se gera muito caráter, ainda que cada lado possa mais uma

138. Cf. o argumento de FRIED, C. "Reason and Action". Natural Law Fórum, vol.11, 1966, p. 13-35.139. O caso principal aqui é o duelo de honra do século XVI. Um cavalheiro zelavapor sua honra, mas apenas um pequeno número de pessoas era socialmente qualifi-cado a ponto de obrigá-lo a satisfazer sua honra através de um duelo, e então, é cla-ro, os problemas de arranjar um horário, lugar e equipamento mutuamente satisfa-tórios eram tão grandes que em países como a Inglaterra poucos duelos realmenteaconteciam. Cf. BRYSON, F. The Point of Honor in Sixteenth-Century Italy: AnAspect of the Life of the Gentleman. Nova York: Institute of French Studies/Co-lumbia University, 1935. • BALDICK, R. TheDuel. Op. cit.

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vez afirmar que é uma pessoa socializada apropriadamente com pie-dade apropriada para as regras do jogo. Entretanto, mesmo quandoa ofensa é incomum e profunda, consequências sérias podem serevitadas. A pessoa ofendida pode abertamente expressar seu senti-mento de que o ofensor não é o tipo de pessoa cujos atos precisamser levados a sério140; o ofensor, ao ser desafiado, pode recuar comum dito espirituoso, de forma que, mesmo que uma parte dele percafama, é outra parte dele que está causando isso - e fazendo isso tãobem a ponto de rebater a reivindicação do desafiante de ter que rea-lizar um trabalho autorrestaurador.

Já que um desafio pode ser comunicado e recusado com as me-nores dicas, descobrimos aqui um mecanismo geral de controle so-cial interpessoal. Um indivíduo que saiu levemente de linha é lem-brado da direção que ele está tomando e de suas consequências an-tes que qualquer dano sério tenha sido causado. O mesmo mecanis-mo parece ser empregado para o estabelecimento de uma hierarquiasocial em relação a vários tipos de direitos.

Se a competição realmente quiser começar, o desafio comunica-do pelo ofendido precisa ser sério, e o outro jogador precisa clara-mente se recusar a dar satisfações. Quando ambas essas respostasestão presentes, elas juntas transformam retrospectivamente o sig-nificado da ofensa inicial, reconstituindo-a como o começo daquiloque às vezes é chamado de um "encontrão" [run-in]. Isto é semprealgo que envolve duas pessoas, diferente de um "incidente", quepode envolver centralmente apenas uma pessoa. O resultado é ocombate moral, com as propriedades de caráter entrando em jogocomo algo que pode ser ganhado ou perdido141. Os encontrões en-

140. Caixas de banco já impediram assaltos a banco ao simplesmente se recusar alevar a sério o bilhete de ameaça entregue a eles por pretensos assaltantes armados.Da mesma forma, policiais podem enfrentar ameaças de pistolas contra si mesmossimplesmente dando as costas ao atirador, removendo a base de competição (CF.San Francisco Chronicle, 26/07/1965, p. 3: "Cop Turns His Back - And Disarms aGunman").141. Os duelos tradicionais eram mais complexos devido à regra de escolha de ar-mas. Se o ofendido desafiasse o ofensor a um duelo, este último normalmente teriaa escolha de armas, uma vantagem injusta para alguém que já tinha feito algo erra-do. E por isso o ofendido insultava abertamente o ofensor, "desmentindo-o", e comessa provocação o ofensor original seria então forçado a desafiar o ofendido. Atra-vés dessa cooperação extensa, a escolha de arma podia cair no lado certo.

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volvem a própria vítima em todas as fases do processo de sanção.Nesse tribunal, o queixoso deve agir como juiz e carrasco. Como écaracterístico da ação em geral, o indivíduo sozinho é aqui a unida-de eficaz de organização.

Deve estar aparente que o significado dessas várias jogadas éparcialmente derivado da orientação que o jogador traz a elas e as lei-turas que ele faz retrospectivamente delas142. Portanto, haverá umafolga na definição da situação, e um certo grau de consenso mútuoserá necessário antes que um encontrão completo possa ocorrer.

No mundo de hoje, quando um encontrão realmente ocorre, éprovável que uma competição de caráter se siga imediatamente, seela tiver que ocorrer. Entretanto, nos mitos e rituais, as partes mui-tas vezes se retiram para se encontrar novamente num lugar desig-nado, mantendo voluntariamente um compromisso com o destinodo tipo corpóreo e também de caráter. Em ambos os casos, testemu-nhas são necessárias e sempre precisam se abster cuidadosamentede interferir. (Isto garante que a competição seja considerada "jus-ta", uma cena válida para o jogo de caráter.)

Quando o encontrão ocorreu e a competição começou, as impli-cações de caráter do jogo podem se desenrolar de formas diferentes,e não necessariamente com restrições "de soma zero".

Um dos lados pode sofrer uma derrota evidente em base daspropriedades de caráter: ele mostra que estava blefando o tempotodo e não está realmente preparado para realizar o ato que amea-çou; ou ele perde a coragem, dá as costas e foge, deixando seu adver-sário na posição confortável de não ter que demonstrar até que pon-to ele seriamente estava preparado a levar a competição; ou ele des-morona enquanto um adversário, rebaixa-se e implora misericór-dia, destruindo seu próprio estatuto enquanto uma pessoa de cará-ter na pressuposição básica de que ele então será indigno como umadversário e não mais se qualificará como um alvo de ataque.

Ambos os lados podem sair com honra e afirmando um bom ca-ráter - aparentemente, um resultado obtido cuidadosamente na

142. Sugerido por BOURDIEU, P. "The Sentiment of Honour in Kabyle Society"In: PERISTIANY, J. Honour and Shame. Op. cit., p. 200.

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maioria dos duelos de honra formais, uma realização consideráveljá que ferimentos também normalmente eram evitados.

E supostamente ambos os lados podem perder, assim como umlado pode perder enquanto o outro ganha pouco. Assim, essa exce-lente competição de caráter, o "racha" , pode terminar com ambosos veículos virando, nenhum veículo virando, ou com um virandotão rápido que seu motorista perde muita honra, mas seu adversárionão recebe nenhum crédito em particular144.

Obviamente, o resultado de caráter da competição é bastanteindependente daquilo que pode ser visto como o resultado "mani-festo" da peleja. Um jogador superado pode combativamente dartudo que tem para sua situação sem saída e então cair corajosa-mente, ou orgulhosamente, ou insolentemente, ou graciosamente,ou com um sorriso irónico nos lábios145. Um suspeito de crimespode manter-se frio diante de técnicas elaboradas empregadas porequipes de investigadores policiais, e depois receber a condenaçãodo juiz sem piscar. Além disso, um jogador enfrentando um adver-sário que se equipara a ele pode sofrer severamente enquanto seuadversário se humilha usando técnicas desonrosas, mas decisivas,perdendo assim um duelo, mas ganhando caráter. Da mesma for-

143. ["Chícken run" no original - um tipo de "racha" de carros em que dois moto-ristas dirigem em direções opostas em alta velocidade, indo um ao encontro do ou-tro, até que um deles vire o carro para evitar um acidente, perdendo assim a compe-tição-N.T.]144. Uma apresentação ficcional do racha automobilístico pode ser encontrada emG. Elliott, Parktilden Village (Nova York: Signet, 1961:42-43). Um tratamento ana-lítico elegante é oferecido por T.C. Schelling, Arms and Influence (Nova York: YaleUni versity Press, 1966:116-125). É bom notar que, antes que o jogo possa ser joga-do, as pessoas precisam saber como o equipamento acessível para elas pode ser usa-do para esse propósito. Alguns garotos de classe média não sabem que um cigarroaceso segurado entre as mãos de dois garotos diferentes até queimar a carne ofereceuma possibilidade perfeita para o jogo. (O primeiro a retirar a mão perde, obvia-mente, e automaticamente termina a provação para os dois.) A competição deprender a respiração parece ser mais conhecida.145. Uma das razões para que resgates inesperados sejam usados em histórias deação é que apenas desta forma o herói pode receber uma chance de demonstrarque, mesmo diante de dificuldades quase insuperáveis, ele não pedirá arrego. Per-sonagens secundários têm a permissão de provar isto de forma mais definitiva, sen-do dispensáveis para a história.

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ma, um indivíduo que se opõe a um adversário fraco pode ganhar ocará ter de valentão através do próprio ato de ganhar a partida. Eum valentão que empata realmente está perdido, como esta notíciade Fresno, Califórnia, ilustra:

Ontem de manhã uma garçonete e um bandido jogaramuma partida de "pagar para ver" com pistolas carregadase, apesar de nenhum disparo ter ocorrido, a garçonetevenceu.A ação aconteceu no The Bit, um oásis proletário de vi-nho e cerveja no sul da cidade, onde a amável JoanO'Higgins estava trabalhando atrás da bancada.De repente um bandido enorme entrou no estabeleci-mento, pediu uma cerveja, exibiu uma pequena pisto-la e ordenou à senhorita O'Higgins esvaziar a caixa re-gistradora.A garçonete colocou $11 no bar, uma quantidade quenão satisfez o bandido, cuja altura foi estimada em ummetro e noventa e cinco.- Me dá o resto - ele exigiu.A garçonete O'Higgins abriu uma gaveta com a sacolaprincipal de dinheiro e a pistola calibre .22 embaixo dela.Ela apontou a arma para o homem e perguntou:- E agora, o que você quer fazer?O bandido, percebendo que encontrara um oponente àaltura no The Bit, piscou quando viu a arma e saiu, dei-xando sua cerveja e os $11 para trás146.

Assim como uma jogada está sujeita à interpretação, tambémum resultado de caráter pode ser lido diferentemente por partici-pantes diferentes. Em negociações entre nações, por exemplo, podeser que não surja nenhum critério sem ambiguidade para um acordosobre quem ganhou e quem perdeu147. A pontuação em alguns casospode ser tão flexível que cada lado pode manter sua própria visão doresultado final. Desta forma, algumas lutas entre gangues de rua ri-

146. San Francisco Chronicle, 14 de julho de 1966.147. F. Iklé, How Nations Negotiate (Nova York: Harper & Row, 1964:164ss.). Cf.tb. BOURDIEU, p. 207, apud PERISTIANY, J. Honour and Shame. Op. cit.

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vais podem terminar com ambos os times sentindo que ganharam"".Esse tipo de presunção é facilitado por uma mistura variável de preo-cupação com o resultado físico ou manifesto, permitindo que umtime enfatize o placar em atributos primários, enquanto o outro ofaz em propriedades de caráter.

O caubói dos duelos do Velho Oeste é especialmente instrutivopara demonstrar a cooperação e o respeito às regras necessários daparte de todos os participantes para que o jogo possa conseguir ge-rar caráter e ameaçá-lo, ou seja, para que o caráter entre no jogo.Ambos os lados devem levar o jogo a sério; ambos, como sugerido,precisam se tornar disponíveis, entregando-se voluntariamente pa-ra o jogo. Durante o combate que resulta, o herói, se acabar tendouma vantagem fácil, deve desistir dela com desdém, restringindo-sea um meio de luta que não deixará que o vilão tenha nenhuma for-ma de escapar das expressões de caráter que resultarão. E o herói,depois de vencer um desafio ou um duelo, pode logo dar as costasao adversário, sabendo que sua superioridade, uma vez estabeleci-da, não será desafiada de novo imediatamente, e que de qualquerforma tomar cuidados demais é algo indigno149.

Tendo em vista essas sugestões sobre a dinâmica dó jogo de ca-ráter, analisemos brevemente algumas das implicações.

Aquele que deseja evitar eventos decisivos precisa evitar encon-trões ou rastejar em segurança para longe daqueles que não foramevitados - seja ele o ofensor ou o ofendido. Quase todo mundo rastejadessa forma, ainda que se diga que os oficiais do Kaiser quase nunca ofaziam. Mesmo Casanova, que, de acordo com seu próprio relato, eraum espadachim formidável e um cavalheiro de grande caráter, admi-te tais retiradas, comentando sobre elas durante uma ocasião em quea honra acabara de forçá-lo a um duelo com um desconhecido:

148. SHORT,J. & STRODTBECK, F. "Why GangsFight". Transaction, 1,1964, p. 26.149. Essa estranha confiança decisiva no jogo limpo do inimigo recém-derrotado temuma função social óbvia. Sem essa confiança, o domínio e a hierarquia não forneceriamum mecanismo social prático para estabelecer uma ordem temporária. Se os adversári-os em um encontrão começassem uma nova competição logo depois de terminar a pri-meira, nenhuma ordem poderia ser estabelecida. Todos estariam sempre engajados ouem lutar, ou em ficar de guarda cuidadosamente. De qualquer forma, a "autoexposiçãoterminal" da parte do vencedor é uma jogada padrão para terminar uma ampla varie-dade de competições - embates de luta livre, touradas, duelos de caubóis, etc.

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Tivemos um jantar agradável e conversamos alegrementejuntos sem dizer uma palavra sobre o duelo, com a exce-ção de uma dama inglesa que disse, não me lembro emrelação a que, que um homem de honra nunca deve se ar-riscar a se sentar para jantar num hotel a não ser que elese sinta inclinado, se necessário, a lutar. A observação eramuito verdadeira na época, quando era preciso sacar umaespada por qualquer palavra fútil e se expor às conse-quências de um duelo se não quiséssemos que até as da-mas apontassem o dedo do escárnio para nós130.

Uma outra implicação se segue à primeira. Ela tem a ver com"competições de competição". A tendência do indivíduo de evitarocasiões em que o caráter é ameaçado o expõe a ser forçado por ou-tra pessoa a entrar numa competição sobre se haverá ou não umacompetição. O agressor, sabendo que sua vítima provavelmenteprocurará quase qualquer meio de evitar um acerto de contas, podeforçá-la a admitir uma exibição de sua fraqueza diante de testemu-nhas, enquanto o agressor demonstra sua própria bravura.

O agressor, numa competição, pode começar ou cometendouma ofensa que o outro não pode ignorar com facilidade, ou res-pondendo a uma ofensa pequena ou até microscópica de forma aatrair o ofensor quase inocente para uma peleja151. Se a vítima aindase recusa a entrar na batalha, o agressor pode provocá-la com atos

150. The Memoirs ofjacques Casanova. Vol. 2. Nova York: Dover, 1961, p. 958.151. L. Yablonsky (The Violent Gang. Nova York: Macmillan, 1962, p. 208-209),ao descrever tipos de membros de gangues, relata o extremo lógico: "[...] Outrosjovens que podem ser incluídos na categoria de pertencimento marginal a gan-gues são os indivíduos sociopatas quase sempre prontos para lutar com qualquergangue disponível. Eles procuram ou provocam a violência simplesmente, comoeles descrevem, 'pelo barato ou ação'. Eles não são necessariamente membros dequalquer gangue violenta em particular, mas em alguns aspectos eles são mem-bros de todas elas. Eles se juntam a gangues porque, para eles, gangues são umaoportunidade conveniente e de fácil acesso para a violência. Quando a gangue,enquanto um instrumento, não é apropriada, eles 'inventam' sua própria forniade violência (por exemplo, os três homens que chutaram um homem até a mortepor 'assobiar uma canção de que a gente não gostava'). Por exemplo, num padrãotípico utilizado por esse tipo de jovem, ele se aproxima de um desconhecido coma provocação 'O que você disse sobre a minha mãe?' A vítima é então agredida an-tes que possa responder à pergunta, e é claro que não há nenhuma resposta apro-priada para impedir o ataque".

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cada vez mais insuportáveis, num esforço aparente ou para encon-trar seu pavio ou para demonstrar que ela não tem um pavio. Fala-mos aqui de "incitar", "instigar", "afrontar"; quando o agressor éum subordinado, falamos de "insolência". Devemos repetir que,apesar deste tipo de agressão poder não ser comum, pelo menos navida cotidiana de classe média, não obstante todos os contatos face aface entre indivíduos são ordenados por vários sinais antecipadosde respeito mútuo, e essa ordenação pode facilmente ser transfor-mada por um agressor num campo perigoso de ação interpessoaldecisiva. Por exemplo, em qualquer lugar que o indivíduo vá, eleimplanta uma exigência tácita de que os outros presentes manterãorespeitosamente seus olhos, vozes e corpos longe do círculo imedia-tamente ao seu redor. Em todos os lugares, essas cortesias territoriaissão mantidas automática e impensadamente; mas em todos os luga-res elas oferecem muitos meios à disposição para um agressor (atra-vés da falha clara e demorada em conceder essas considerações) tes-tar a honra do indivíduo. Da mesma forma, desconhecidos em luga-res públicos são unidos por algumas obrigações mínimas de ajudamútua, estabelecendo o direito de, por exemplo, perguntar a horaou orientações para algum destino, ou até de pedir uni cigarro ouum trocado. Ao conceder tal pedido, o indivíduo pode perceber queseu maço inteiro de cigarros é tomado calmamente, ou todos os tro-cados em sua mão, enquanto seu olho é mantido pelo agressor paraque a afronta seja ancorada numa percepção mútua reconhecidamutuamente. Vendedores ambulantes em ruas de favelas podemperder uma fruta em seus carrinhos da mesma forma insolente152.

A acomodação mútua que ordena o tráfego humano pode entãoser vista como algo que deixa vulnerável aqueles que a consideramautoevidente. Eu gostaria de citar por extenso uma ilustração ficcio-nal oferecida por William Sansom. O cenário é um "clube" de bebi-das londrino. O herói, e narrador, que toca piano no clube, é abor-dado de repente:

Quando uma voz acima de mini diz:- Tu não vai tocar mais, amigo?

152. Apesar desses vários "logros" serem dirigidos contra um indivíduo, este mui-tas vezes serve em parte como símbolo de um grupo mais amplo - o mundo adulto,a autoridade policial, brancos, etc.

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É um jovem que eu nunca vi antes, um garoto quase novodemais para estar num bar. A cabeça dele verga como umcalombo de ossos num pescoço fino demais para supor-tá-lo. Ele veste roupas exageradas, e um tipo especial depenteado, como um porco-espinho. Ele empina seus om-bros para que pareçam maiores. Os olhos dele são opacoscomo escamas de peixe morto. Ele cerra seus dentescomo se estivesse enjoado.- Num instante. - eu digo a ele. O tom dele foi realmenteinsolente, mas a juventude serve como desculpa paramuitas coisas.- Não demore muito então, amigo - ele diz, ainda me en-carando fixamente com seus olhos de peixe morto.Então, atrás dele, eu começo a ver uma espécie de irmãogémeo - mas ele era apenas outro jovem vestindo o mes-mo tipo de roupas. E então eu vi que havia mais seis ousete no bar, ou sentados de pernas esticadas na mesa. Euolhei para Belle [a proprietária] e ela deu de ombros, semesperanças, do outro lado do salão - como se esse fenó-meno repentino estivesse além de suas capacidades.- Nossa - eu disse para Marie, ignorando o jovem, queainda estava parado ali olhando para mim -, temos com-panhia esta noite.- Vocês têm - o garoto disse tristemente -, vocês certa-mente têm - e ele foi embora para o bar, andando numpasso conscientemente rígido. Lá ele disse alguma coisapara os outros, e todos eles olharam para mim e sacudi-ram a cabeça - mais urna vez, tristemente, como se eu es-tivesse realmente numa situação muito ruim [... ]Nós os observamos por um momento. Todas as olhadelase gestos eram cuidadosamente agressivos. Eles esticavamas pernas forçando Andrew, que carregava uma bandejade drinques, a dar a volta - e o observaram em silêncioenquanto ele fazia isso. Um deles se inclinou e pegouuma bandeja de batatas fritas da mesa de outra pessoa -sem sorrir, e claramente sem se desculpar. Outro, no bar,começou a atirar caroços de azeitona nas garrafas. Bellepediu que parasse. Ele se desculpou com um gesto exage-rado e atirou outro imediatamente.

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- Pelo amor de Deus, toque alguma coisa. - Belle disse.Eu me levantei. Falar sobre eles tão abertamente fora umerro. Eles sabiam que estavam sendo discutidos, e agora,quando me dirigi ao piano, viram que suas ordens foramobedecidas. Dava quase para sentir eles se exibindo.Então eu comecei a tocar as notas de algodão da Humo-resque para distraí-los um pouco.

É claro que não funcionou. A qualidade comum de todosesses jovens é sua vigilância. Eles sentam e observamtudo com um desgosto obtuso. Isto dá a eles aquele famo-so olhar "murcho". Quando o meu tinido se estabeleceu,um deles perambulou na minha direção, mãos nos bol-sos, queixo para baixo, e parou acima de mim. Ele sim-plesmente pronunciou, como uma ordem, o nome de umhit do momento. Tirando essa grosseria clara, o maior bi-cho-papão dos pianistas é alguém pedir outra músicaquando eleja está tocando - por isso eu cerrei meus den-tes e tentei fechar meus ouvidos. Ele empurrou meu bra-ço direito com seu cotovelo fazendo com que eu parassede tocar e disse simplesmente:- Anda. - E repetiu, mais alto, seu pedido"153.

Eu estou sugerindo que comportamentos insignificantes podemser empregados como um convite sério para um encontrão ou acertode contas. Um tipo de ato truncado deve ser mencionado especifica-mente. É o uso do estilo de ficar em pé ou andar como um conviteampfo para a ação para todos os outros presentes. Daí temos um "pas-so de delinquente" que, na verdade, comunica um desafio à autorida-de dos adultos presentes, afirmando simultaneamente não apenasque a primeira jogada foi feita mas também que ela não foi enfrentadapor aqueles a quem ela foi e é direcionada154. O caminhar especial dotoureiro na arena, sandunga, é a estilização da mesma expressão.

153. SANSOM, W. TheCautious Heart. Nova York: Reynal & Co., 1958, p. 100-102.154. Sobre esta e outras jogadas mistas empregadas por delinquentes, cf. o estudoútil de WERTHMAN, C. Ddinquency and Authority. Berkeley: University of Cali-fórnia, 1964, p. 115 e cap. LV, "Gang Members and the Police" [dissertação demestrado].

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Já que são expressões ou comunicações, e não questões subs-tantivas, que estão envolvidas nesses jogos, não há muito que impe-ça o símbolo de ter sua duração e visibilidade cada vez mais atenua-das até praticamente desaparecer. Como consequência, pode haveruma sequência de jogadas entre dois jogadores e o estabelecimentode um vencedor sem quase nenhuma atividade visível, como foi su-gerido, é claro, na análise da comunicação de G.H. Mead.

Anteriormente, eu sugeri que um indivíduo pode ganhar umareputação, entre seus colegas, de alguém que procura a ação - sem-pre de olho em qualquer garota desejável que ele encontre, ou pron-to para "tirar satisfação" da menor afronta, ou de ver uma aposta emqualquer coisa que aconteça. Da mesma forma, um indivíduo podeadquirir a reputação de sempre estar disponível para outros para umtipo particular de ação interpessoal, pronto a qualquer momentopara servir como um teste definitivo de qualquer um que busque de-finição. O "pistoleiro" do Velho Oeste normalmente é retratadocomo o exemplo arquetípico. Jogadores de sinuca famosos tambémse encontram selecionados para esse papel. Gates "Apostou-um-mi-Ihão"155 aparentemente atraía apostadores da mesma forma156. Hojeem dia, a polícia, estando comprometida (como já foi sugerido) coma obtenção de deferência imediata de todos os civis que encontra, ecom obrigar essa exigência com uma disposição imediata de invocarsanções físicas, às vezes se encontra forçada nesse papel de testador.Estrelas de cinema que representam papéis de heróis durões podemser utilizadas como testadores por aqueles que os encontram poracaso em lugares públicos. Músicos de jazz famosos que permitem"duelos de piano" são outro exemplo, pelo menos para aqueles queescrevem sobre eles.

Não importa se um indivíduo constantemente procura compe-tições de caráter ou é constantemente procurado para elas - pode-mos prever que ele não durará muito; qualquer um que tenha taisinclinações será um dia removido da competição pela operação daprobabilidade. Quando cada jogada envolve uma aposta considerá-vel, aquele que se arrisca persistentemente não deve planejar muito

155. Cf. nota 80 [N.T.].156. Cf. BEEBE, L. The Big Spenders. Nova York: Doubleday, 1966, p. 85.

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a longo prazo. O papel da ação é longevo, mas seus realizadores du-ram apenas brevemente, exceto na televisão.

Assim como existe a especialização de pessoas, existe a especi-alização de sinais. Afrontas particulares podem ser definidas comoaquelas que um indivíduo honrado não deve tolerar. Há pontoscríticos reconhecidos por todos aqueles envolvidos como pontosem que as coisas terão ido longe demais; quando eles são atingidos,a pessoa ofendida deve recusar desculpas, sentir as coisas seriamen-te, e tomar medidas para restabelecer a ordem normativa se quiserpreservar sua honra. Entre as várias palavras que um caubói hon-rado pode ouvir, ele precisa, por mais pacíficas que sejam suas in-tenções, reconhecer aquelas poucas que todos sabem que são pala-vras "de briga". Quando tal função especializada é concedida aatos, eles podem ser empregados por agressores como uma chama-da inevitável à ação. Realizados de forma calculada e clara, essesatos testam a honra do receptor, quer dizer, sua prontidão inde-pendentemente do preço a manter os códigos pelos quais ele vive.Todas as partes compreendem a ofensa real como algo incidental,uma mera conveniência; a importância principal do ato é servircomo um teste frontal da reivindicação tácita de honra do indiví-duo157. Assim, um enunciado convencionalizado, "O senhor men-tiu na minha cara", era a mentita tradicional - o ato através do qualuma pessoa ofendida forçava o ofensor a desafiar o orador a umduelo158. Cuspir no rosto do outro é um exemplo mais comum emenos cavalheiresco. Nas relações raciais americanas atuais, o usopor um branco da palavra "preto" [nigger] é igualmente provoca-dor. Outros atos servem como testes em grupos mais circunscri-tos. Um professor numa escola de favela urbana que afirma a regrada escola contra atrasos fica vulnerável a um aluno que entra atra-

157. Esses atos de insolência e insubordinação clara devem ser contrastados comatos corporais de deferência, atos que também são especializados, mas que servempara afirmar a d aposição atual do ator de aceitar o status quo.158. Cf. BRYSC N, F. The Point of Honor in Sixteenth-Century Italy... Op. cit, cap.IV. Como sugerido, o ofendido não podia desafiar o ofensor porque isto daria aoofensor a escolha das armas. Assim, pressupunha-se que os ofensores eram honra-dos o bastante para permitir sua manipulação para o papel de desafiador.

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sacio e o encara friamente para enfatizar o desafio1"9. Esses atos deteste são jogadas favoritas em competições de competição.

Assim como um teste pode ser criado a partir de um ato ofensi-vo realizado por um indivíduo contra outro, ele também pode sergerado pela exigência, sob ameaça, que um indivíduo aja de umaforma que ele considera inapropriada. Para estabelecer um indiví-duo numa posição subordinada, um agressor pode coagi-lo a reali-zar abertamente uma obediência ou serviço indigno baseado napressuposição que, uma vez que ele ceda a isto, ele poderá (e sabeque poderá) a partir de então atender a qualquer exigência feita aele160. Como ocorre com o jóquei, consideramos que a "coragem" foiperdida, mas dessa vez em relação à atividade interpessoal e sua or-dem cerimonial. E, é claro, enquanto ambas as parte compartilha-rem essas crenças, o jogo social será jogado dessa forma.

Ao analisar a ação, eu disse que, apesar de haver uma relação en-tre ação e cará ter, algumas formas de cará ter surgem em oposição aoespírito da ação. A mesma qualificação deve ser feita em relação àação interpessoal e competições de caráter. Há situações em que arecusa de um indivíduo de ser envolvido numa peleja de honra éaprovada, e os desafiantes são acusados de "imaturidade". Sempreé possível para o indivíduo se recusar a aceitar o esquema de refe-rência ritual inteiro e, além do mais, fazer isso de forma ousada, es-pecialmente quando seus semelhantes apoiam este estilo de resposta:

Mas devemos enfatizar que, apesar dos estereótipos emvigor, nem todas as gangues juvenis são orientadas paraconflitos, e os sistemas de valor podem variar entre elas,como entre outros agrupamentos humanos. Uma gangue"de escapismo" [retreatest], que constrói seu sistema devalores ao redor do efeito das drogas, apresenta um con-traste dramático.Apesar de serem criticados e ridicularizados repetida-mente por outras gangues devido à sua covardia e falta dehombridade, os escapistas raramente respondiam a pro-

159. Um incidente deste tipo é descrito em WERTHM \N, C. Delinquency and Aut-hority. Op. cit., p. 68-69.160. Cf. o tratamento de "testes de obediência" em GOFFMAN, E. Asylums. Op.cit., p. 17-18.

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vocações, e sempre fugiam do combate. Eles não se preo-cupavam com sua reputação de lutadores - pois não a ti-nham - e não a consideravam importante - na verdade,eles pensavam que as gangues orientadas para conflitoseram "caretas". Ao serem desafiados diretamente a sejuntar a outras gangues de brancos para repelir os protes-tos de negros "entrando n'água" numa praia de Chica-go161, eles "viajaram" com pílulas e jogaram baralho des-preocupadamente durante todo o incidente"162.

161. Até os anos 1960, negros não podiam se banhar nas praias de Chicago. No ini-cio dessa década houve protestos organizados em que grupos de negros entravamsem permissão na água dos Grandes Lagos [N.T.].162.SHORT, J. & STRODTBECK, F. "Why Gangs Fight". Op. cit., 27-28. Cf. tb.seu "The Response of Gang Leaders to Status Threats". American Journal ofSocio-logy, LXVIII, 1963, p. 576-577. Um exemplo literário é oferecido no romance deLouis Auchincloss, Sybil (Nova York: Signet, 1953, p. 122-123). Um homem (Phi-lip), em seu clube com sua amante, chama um conhecido em particular (NicholasCummings) e pergunta se ele gostaria de conhecê-la. Nicholas se recusa, e o se-guinte diálogo ocorre: "- É melhor tomar cuidado, Cummings - ele disse ameaça-doramente. - Você está falando sobre a moça com quem pretendo casar. Mas Ni-cholas simplesmente continuou a encará-lo com seu olhar gelado. - É difícil para aspessoas saberem disso, não é - ele perguntou -, quando você ainda está casado comminha prima? Houve uma pausa pesada. - Bom, de qualquer forma - Philip dissecuidadosamente, sem saber quais são as exigências da honra numa situação tãoconstrangedora - é melhor você parar com essas piadinhas sobre Julia. A não serque você queira perder os dentes. Entretanto, Nicholas foi impiedoso. - Você con-sidera o termo 'amante' uma 'piadinha'? - ele perguntou. - Sinto muito. Achei queera preciso. Você não vai negar que ela é sua amante, vai? Porque eu devo te dizerque, como advogado de sua esposa, ainda que ela não tenha me pedido isto, eu meocupei em descobrir exatamente qual é sua relação com a senhorita Anderson. Apalavra 'amante' parece explicá-la perfeitamente. Você tem alguma melhor? Dequalquer forma, eu devo insistir no meu direito de descrevê-la dessa forma sempreque eu tiver ocasião de discutir os seus negócios com aqueles que possam estar pre-ocupados com isto. Se você tiver alguma objeção, você está livre para pedir um res-sarcimento, seja legalmente num processo de calúnia, ou ilegalmente, como vocêameaça, através de um ataque à minha pessoa. Philip agora respirava com dificul-dade. Não havia nenhuma regra para lidar com uma pessoa que desafiava de formatão ousada os preceitos mais elementares da boa camaradagem. - Você gostaria deir lá fora - ele perguntou - e resolver esta questão como um cavalheiro? - Não, eucertamente não gostaria -, respondeu Nicholas. - Eu não vim para o meu clubepara te dar uma oportunidade de começar uma briga na rua. Philip ficou paradopor mais um momento, olhando para ele, incerto. - Ah, vá para o inferno - ele res-pondeu. - Malditos advogados - ele disse quando se afastou. Pilantras. Todos eles".

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Algo semelhante ocorre em bares de classe média, onde umapessoa ofendida pode sentir que seria indigno dela "pedir satisfa-ções", pelo menos com o adversário particular do momento - de-mocratizando assim a noção cavalheiresca de que só vale a pena de-safiar nossos semelhantes sociais. A vítima se contentará em passarum breve sermão a seu adversário sobre o quanto ele é "doente". Emmundos sociais nos quais a honra é altamente valorizada, e os ho-mens devem estar preparados para arriscar suas vidas para salvarsuas fachadas, as modas da moralidade podem mudar rapidamente,e o ato de provar tais atributos como nossa "masculinidade" podemter sua importância reduzida163. Houve até o desenvolvimento doideal literário do "anti-herói", que confiantemente recusa todas asoportunidades de exibir virtudes custosas, demonstra um orgulhosubterrâneo em escapar de suas obrigações morais, e nunca se arris-ca. É claro que quando um indivíduo recusa um desafio com frieza,

163. C. Brown (Manchild in thePromtsed Land. Op. cit.,p. 211,253-256, 261) ofe-rece uma boa descrição das formas pelas quais jovens do Harlem nos anos de 1930e 1940 aprendiam sobre a necessidade de defender seu dinheiro e suas mulherescom lutas letais, e como, nos anos 1950, em conjunção com a importância crescen-te das drogas, o poder coercivo do código declinou notavelmente. Esta é apenasuma versão pequena de histórias maiores. O duelo de honra, por exemplo, aindaque bastante popular na França, ocorria muito raramente nos estados do Norte,sendo bastante rejeitado pelos cidadãos. Na Inglaterra, em 1844, o artigo do Decre-to do Motim, que obrigava os oficiais a manterem sua honra através de duelos, foiderrubado e substituído por decretos que os proibiam. O terceiro dos novos artigosesboça muito bem a perspectiva antiofensa moderna:"Expressa-se aprovação da conduta daqueles que, tendo o infortúnio de ofender,ou ferir ou insultar outros, explicam francamente, desculpam-se ou oferecem inde-nização por isso, ou daqueles que, ao serem ofendidos, aceitam cordialmente expli-cações ou desculpas francas pelas ofensas; ou, se tais desculpas não são oferecidasnem aceitas, submetem a questão ao oficial em comando; e, finalmente, todos osoficiais e soldados são absolvidos de desgraças e desvantagens se, estando dispostosa oferecer ou aceitar tais indenizações, recusam-se a aceitar desafios, pois eles terãoapenas agido como é apropriado para o caráter de homens honrados, e realizaramseu dever como bons soldados que se sujeitam à disciplina" (apud BALDICK, R.The Duel. Op. cit., p. 114). Este é o comentário de Baldick: "De forma surpreenden-temente repentina, esses artigos, que foram, reconhecidos como constituindo um'Código de Honra' britânico, combinados com a determinação óbvia de juizes e jú-ris para condenar duelistas por assassinato, com o sarcasmo da imprensa, e com apressão cabal da opinião pública, conseguiram suprimir os duelos na Grã-Bretanha[...] o duelo como uma instituição honrada, respeitada e próspera deixou de existir,para todos os propósitos, na Grã-Bretanha na metade do século XIX" (ibid.).

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ou não fica raivoso por uma ofensa, ele está demonstrando autocon-trole sob circunstâncias difíceis, e assim estabelece um certo caráter,mas não do tipo heróico.

Resumindo, apesar das competições de caráter que podem serdisputadas sem envolver a força física não serem incomuns, as varie-dades clássicas do pugilato e do duelo de caubóis pertencem, emgrande parte, a locais cinematográficos. Não obstante, a lógica de lu-tas e duelos é uma característica importante de nossa vida social co-tidiana. A possibilidade, por menor que seja, de que as coisas pos-sam degenerar nessa direção oferece às pessoas presentes mutua-mente uma razão de fundo para ocultar expressões de hostilidade;aqui elas têm um guia constante para aquilo que não se permitiráque aconteça. (De fato, uma piada sobre "resolver lá fora" pode serusada como uma jogada estratégica para restabelecer a falta de serie-dade se houver um desenvolvimento ameaçador no discurso so-cial.) Através de várias acomodações conjuntas, a voz de nossa ra-zão prevalece ao custo de quase nenhuma desonra.

10. ConclusõesA visão sociológica tradicional do homem é otimista. Quando

você faz com que a besta deseje objetivos delineados socialmentesob os auspícios do "interesse próprio", é preciso apenas conven-cê-la a regular suas atividades de acordo com um conjunto elabora-do de regras básicas. (Eu quero adicionar que entre essas regras sãoimportantes as "propriedades situacionais", ou seja, padrões deconduta através cuja manutenção significa que ela expressa respeitopela situação atual.) Correspondentemente, o principal problemaque o indivíduo pode causar é não adquirir desejos apropriados, ouvoluntariamente não respeitar as regras para obter quaisquer dese-jos que ele tenha adquirido. Mas obviamente é preciso tratar de ou-tras dificuldades. Este ensaio cuidou de uma delas.

Esteja um indivíduo preocupado em atingir um objetivo pessoalou manter uma norma reguladora, ele precisa estar em comando fí-sico de si mesmo para fazer isso. E há momentos em que sua atençãoàs contingências na situação perturba seus negócios com os tópicosem questão: sua capacidade de realizar tarefas mentais e físicas ordi-nárias é abalada, e sua obediência costumeira a princípios moraisbásicos é enfraquecida. A própria inteligência que permite a ele ten-

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tar prever e fazer cálculos na busca de seus objetivos, as própriasqualidades que fazem dele algo mais complexo do que uma simplesmáquina, garantem que em certos momentos aquilo que ele inteli-gentemente traz à mente perturbará sua capacidade de agir e atrapa-lhará sua moralidade normal.

A habilidade de manter o autocontrole sob circunstâncias difíceisé importante, como o são, portanto, a frieza e firmeza moral necessá-rias para que isto seja feito. Se a sociedade quiser utilizar o indivíduo,ele precisa ser inteligente o bastante para apreciar os riscos sérios emque ele está envolvido e ainda assim não se tornar desorganizado oudesmoralizado por essa apreciação. É apenas então que ele trará paramomentos da atividade da sociedade a estabilidade e continuidadeque eles exigem para manter a organização social. A sociedade apoiaesta capacidade através de pagamentos morais, atribuindo caráterforte àqueles que demonstram autocontrole, e fraco àqueles que sãofacilmente distraídos ou derrotados. Podemos compreender então oparadoxo de que quando um feito imoral é realizado por um planobem executado que exclui tentações impulsivas, podemos quase ad-mirar o culpado; podemos pensar que ele tenha um caráter muitomau, enquanto apreciamos que ele não tem caráter fraco164.

Uma oportunidade central de demonstrar caráter forte é encon-trada em situações decisivas, e tais situações necessariamente arris-cam o indivíduo e seus recursos. (Um destino já decidido que agoraestá sendo assentado também é útil, mas ainda mais caro.) É prová-vel então que o ator evite esses riscos e tente rastejar para longe deocasiões que ele não evitou. Afinal, em nossa sociedade, devemossobreviver aos momentos, e não vivê-los. Além disso, a própria ati-vidade decisiva muitas vezes perturba rotinas sociais e não pode sertolerada em grandes quantidades por organizações. (Assim, na Eu-ropa, os duelos prosperaram sob monarquias, mas os monarcas eseus principais generais lideraram as tentativas de conter a institui-ção, parcialmente devido ao custo que os duelos causavam a oficiaisimportantes.) Na vida doméstica e profissional, a maior parte dessesperigos parece ter sido eliminada com segurança.

Entretanto, há alguma ambivalência quanto à vida segura e semmomentos. Alguns aspectos do caráter podem ser afirmados facil-mente, mas há outros que não podem ser nem expressados nem ga-nhos em segurança. Pessoas cuidadosas e prudentes devem entãoabandonar a oportunidade de demonstrar alguns atributos valoriza-dos; afinal, dispositivos que livram os momentos do indivíduo dadecisividade também os livram de novas informações a seu respei-to - livram-nos, resumindo, de expressões significativas. Como re-sultado, a pessoa prudente perde conexão com alguns dos valoresda sociedade, alguns dos próprios valores que retraiam a pessoacomo ela deveria ser.

Por isso, algumas apostas práticas podem ser procuradas, ou, senão procuradas, pelo menos aproveitadas quando elas ocorrem nocurso regular das atividades. E realizamos atividades que são consi-deradas fora da rotina normal, evitáveis se quiséssemos, e cheias deriscos e oportunidades dramáticos. Isto é a ação. Quanto maior a de-cisividade, mais séria a ação.

A decisividade coloca o indivíduo numa relação muito especialcom o tempo, e a ação séria o leva a essa relação voluntariamente.Ele precisa se preparar para estar numa posição de entrar nela, e en-tão entrar. As circunstâncias em que ele se arremessa dessa formaprecisam envolver questões que são problemáticas e consequentes.E - no caso mais puro - suas atividades sob essas circunstâncias pre-cisam ser resolvidas ou pagas pela duração atual daquilo que paraele é uma experiência subjetivamente contínua15. Ele deve se exporao tempo, a segundos e minutos passando fora de seu controle; eledeve se entregar à resolução rápida e certa de um resultado incerto.

164. Um bom exemplo recente é oferecido pelos heróis do planejamento que exe-cutaram o Grande Roubo de Trem na Inglaterra. Sobre o respeito que eles obtive-ram, cf. GOSLING, J. & CRAIG, D. The Great Train Robbery. Indianápolis:Bobbs-Merrill, 1965, p. 173-175.

165. As pessoas diferem em até que ponto elas prendem a respiração por uma expe-riência continua. Fanáticos e crentes verdadeiros parecem estar inclinados a esticarum pouco as coisas, mantendo uma duração de experiência e entusiasmo quandooutros exalariam e passariam para outras jogadas da vida. É claro que poetas e reli-giosos tendem a argumentar que se o indivíduo compara o tempo bastante conside-rável em que ele precisa passar morto com o tempo relativamente breve em que elepode andar e passear pelo mundo, ele poderia muito bem encontrar uma razão paraenxergar toda a sua vida como um jogo muito decisivo de duração muito curta, ecada segundo dele deveria enchê-lo de ansiedade sobre aquilo que está sendo gasto.E, na verdade, nosso tempo razoavelmente breve está se esgotando, mas parece quesó conseguimos prender nossa respiração por segundos e minutos dele.

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E ele deve se entregar ao destino nessa forma quando ele poderiaevitá-lo a um custo razoável. Ele precisa apostar.

A ação séria é um passeio sério, e passeios desse tipo são pratica-mente sempre excluídos da vida cotidiana. Como foi sugerido, todoindivíduo participa de atos consequentes, mas a maioria desses atosnão é problemática, e quando eles o são (como quando se toma umadecisão profissional que afeta a vida do indivíduo), a determinação eassentamento dessas apostas muitas vezes chegam depois de décadas,e então já estarão obscurecidos pelos desfechos de muitas de suas ou-tras apostas. A ação, por outro lado, traz o risco e a resolução no mes-mo momento aquecido da experiência; os eventos da ação inundam oagora momentâneo com suas implicações para a vida que se segue.

A ação séria é um meio de obter alguns dos benefícios morais daconduta heróica sem assumir todos os riscos de perda que a oportu-nidade de heroísmo normalmente envolve. Mas a própria ação sériaenvolve um preço considerável. Isto pode ser minimizado pelo indi-víduo ao participar da ação comercializada, em que a aparência dedecisividade é gerada de forma controlada numa área da vida calcu-lada para isolar suas consequências do resto da vida. O custo dessaação pode ser apenas uma pequena taxa e a necessidade de sair dacadeira, ou da sala, ou da casa.

É aqui que a sociedade oferece uma outra solução para aquelesque querem elevar seu caráter, mas diminuir seus custos: a manufa-tura e distribuição de experiência indireta através da mídia de massa.

Quando examinamos o conteúdo da experiência indireta comer-cializada, descobrimos uma uniformidade assustadora. Apostas prá-ticas, competições de caráter e ação séria são retratados. Estas podemenvolver faz de conta, biografias, ou uma visão de outra pessoa atual-mente exercendo uma atividade decisiva. Mas parece que é apresen-tado sempre o mesmo catálogo morto de exibições animadas . Em

166. James Bond recebe uma missão decisiva. Ele se dirige a seus superiores numclube exclusivo e lida muito firmemente com seus recursos. James Bond aluga umquarto num hotel chique num balneário chique numa parte chique do mundo. JamesBond conhece uma garota inatingível e então rapidamente conquista a garota, e de-pois disso ele demonstra como consegue superar friamente o assassinato dela noquarto. James Bond enfrenta um adversário com carros, cartas, helicópteros, pisto-las, espadas, arpões, engenhosidade, conhecimento de vinhos, judo e habilidade ver-bal. James Bond esnoba o homem prestes a torturá-lo com um ferro quente, etc.

todos os lugares, recebemos oportunidades para nos identificarmoscom pessoas reais ou fictícias engajadas em vários tipos de decisivida-de, e para participarmos indiretamente dessas situações.

Por que a decisividade, em todas as suas variedades, é um ingre-diente tão popular da vida ilusória? Como foi sugerido, ela ofereceexcitação sem custo, se o consumidor puder se identificar com oprotagonista167. Esse processo de identificação parece ser facilitadopor dois fatores. Primeiro, atos decisivos, por definição, envolvem oator no uso de facilidades cujo agente completo e eficaz é o próprioator. Um único indivíduo é aquele que toma as decisões e as execu-ta, a unidade relevante de organização. Supostamente, é mais fácilse identificar com um indivíduo, real ou fictício, pelo menos na cul-tura burguesa, do que com um grupo, uma cidade, um movimentosocial, ou uma fábrica de tratores. Segundo, a decisividade envolveum jogo de eventos que podem ser iniciados e realizados num espa-ço e tempo pequenos o bastante para serem completamente teste-munhados. Diferente de fenómenos como a ascensão do capitalis-mo ou a Segunda Guerra Mundial, a decisividade é algo que podeser assistido e retratado em sua totalidade, do começo ao fim emuma sessão; diferente desses outros eventos, ela é inerentementeapropriada para ser assistida e retratada.

Vejamos a seguinte história contada por um jornalista negro,atravessando os Estados Unidos de carro para escrever uma matériasobre como seria tal viagem para uma pessoa como ele:

167. É claro que há grandes diferenças através do tempo e entre culturas diferentesem relação àquilo que as pessoas se permitirão desfrutar indiretamente. Eu nãoacho que assistir a execuções hoje seja considerado um grande privilégio, mas nãohá dúvida de que isto já foi um exemplo melhor de arrepios através de participaçãoindireta. Assim, na Inglaterra do século XVIII:"A curiosidade dos homens sobre a morte levou os intelectuais e as pessoas de des-taque a se fascinarem com o cadafalso. Pepys era um espectador frequente, e dizemque Boswell, o biógrafo de Johnson, usou seu grande dom para fazer amigos com osfamosos com o Protetor de Newgate simplesmente para conseguir bons lugares nosenforcamentos. Em uma ocasião, quando ele pôde cavalgar para Tyburn com ocondenado, ele se sentiu tão sortudo quanto um torcedor moderno com um par deingressos para uma decisão mundial dos pesos pesados. Seu prazer foi compartilha-do por Sir Joshua Reynolds, na carruagem atrás dele" (ATHOLL, J. Shadow oftheGallows. Op. cit., p. 53).

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Eu não fiquei muito tempo em Indianápolis, nem emChicago, que agora estava nas garras de um inverno terrí-vel nos Lagos. Então eu estava atravessando Ohio, diri-gindo devagar, cinto de segurança apertado na minhacintura. No meio da tarde eu vi um carro da polícia seaproximando. Eu olhei para meu velocímetro e vi seten-ta, o limite. Eu me mantive nessa velocidade, esperandoque o policial me ultrapassasse, mas quando olhei paratrás vi que ele estava dirigindo no meu ritmo. Então elesinalizou para que eu parasse.Depois do Kentucky, eu fora seguido por policiais ou pa-trulheiros na Georgia, Tennessee e Mississippi; eu foraparado em Illinois e na Califórnia. Seguido, parado, e in-formado que eu era um homem negro sozinho num carrogrande, t vulnerável para diabo. Eu não aguentava mais.Eu arranquei o cinto de segurança e abaixei a janela. Issonão me deu espaço suficiente, por isso eu praticamentechutei a porta para abri-la.- Qual é o problema? - eu gritei para o policial. Ele nãorespondeu enquanto andava para o carro. E então eu de-cidi entrar com tudo - meu corpo, também, se ele o qui-sesse -, pois eu não toleraria mais abusos.- Mostre-me seus documentos.- Eu perguntei qual é o problema. - Isso não era o que elequeria. Segundo o ritual, eu tinha que ter entregue meusdocumentos para ele sem nenhuma palavra.- Eu quero ver seus documentos.Eu os dei para ele, sentindo o fedor de um homem prestesa exercer a insolência da profissão. Era o velho jogo:"você é negro, eu sou branco, e também sou um tira".Ele mexeu nos documentos e então, inclinando-se casu-almente sobre a janela, disse:-John, qual é a sua profissão?Eu ri. O que é que a profissão tem a ver com uma supostaviolação de tráfego? Será que a natureza do meu trabalhoindicaria para ele se eu tinha dinheiro o bastante para su-borná-lo? Será que era para ele saber que eu era o "tipocerto" de negro, aquele que tem conexões políticas quepoderiam deixar as coisas ruins para ele? Será que eu de-

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via ser desempregado e estar transportando drogas, umcadáver ou meninas através da divisa do estado? Policiaise patrulheiros dos Estados Unidos, quando vocês tiveremum dia devagar, sempre poderão encontrar um ou doisnegros passeando pelo seu estado. Alegrem esse dia agin-do abertamente como vocês são.- Meu nome - eu gritei - é Senhor Williams. - Eu tenhocerteza de que tiras e patrulheiros usam o primeiro nomecom muitas pessoas brancas, mas eu saquei este aqui."John" era sinónimo de "garoto"168. Ele tirou o braço dajanela. Eu joguei minha autorização de viagem nele. Eu oobservei enquanto ele a leu, e pensei, não, eu não sou o"tipo certo" de negro, nem vou te subornar, e estou a cin-co segundos de me comprometer completamente - o quesignifica a cinco segundos de te quebrar a cabeça.Ele me olhou do topo da página.- Sr. Williams, o senhor estava andando a oitenta na es-trada. Quando eu te alcancei, o senhor estava a oitenta equatro.-Você está mentindo. Eu estava a setenta. Oitenta? Pren-da-me e prove isso.- Sr. Williams -- Estou cansado de toda esta perseguição de vocês.- Sr. Willif ms -- Vocês exageram tanto com essas palhaçadas que vãoacabar se dando mal.Outros carros diminuíam quando passavam por nós. Opatrulheiro agora parecia ansioso. Sim, minha raiva mefazia tagarelar, mas eu estava pronto para ir. E mais, ape-nas pelos insultos que eu falei, ele teria me prendido seestivesse certo. Em vez disso, ele voltou para o seu carro eeu segui em frente — a setenta milhas por hora" .

168. Nos Estados Unidos, especialmente nos estados do sul, quando um brancousa o termo "garoto" ("feqy") para se referir a um negro, isto quase sempre tem umaconotação racista [N.T.].169. WILLIAMS, J. "This Is My Country Loo", II. Holiday, set./1964, p. 80.

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O Sr. Williams realmente teve essa experiência e depois ele adisponibilizou, e disponibilizou a si mesmo, numa revista popular.Uma reportagem dramática cobre muito bem os eventos relevantes,como o faria uma versão dramática de palco. Nós, leitores, nos en-volvemos indiretamente, confortavelmente distantes de nossa vidanormal. O que para ele é uma competição de caráter, um momentoda verdade, para nós é um meio de massagear nossa moralidade.

Quaisquer que sejam as razões para nosso consumo de expe-riência indireta, a função social de fazer isto é clara. Recebemos emsegurança homens honrados em suas cenas de decisividade com osquais nos identificamos sempre que damos as costas a nossos mun-dos reais. Através desta identificação, o código de conduta afirmadoem atividades decisivas - um código caro ou difícil demais de man-ter completamente na vida cotidiana - pode ser esclarecido e reafir-mado. Asseguramos um esquema de referência para julgar atos coti-dianos, sem termos que pagar suas penalidades.

A mesma figura-para-identificação muitas vezes participa dostrês tipos de atividade decisiva: tarefas perigosas, competições decaráter e ação séria. Portanto, podemos facilmente passar a acreditarnuma conexão intrínseca entre elas, de forma que aquele a quem ocaráter leva a um tipo de atividade decisiva será o tipo de pessoa notipo de vida que também considera necessário e desejável participardos outros dois aspectos. É fácil deixar de rer que a afinidade natu-ral do herói para todos os tipos de decisividade provavelmente nãopertence a ele, mas sim àqueles entre nós que participam indireta-mente de seu destino. Nós moldamos e preenchemos essas figurasromânticas para satisfazer nossa necessidade, e nossa necessidade éde economia - uma necessidade de entrar em contato indireto como maior número de bases de caráter possível pelo mesmo preço deentrada. Um indivíduo vivo desencaminhado o bastante para pro-curar todos os tipos de decisividade apenas adiciona carne e ossospara algo que surgiu como um pacote para consumo.

Isso sugere que regras de organização social podem apoiar e serapoiadas por nosso mundo indireto de decisividade exemplar. Por-tanto, o herói de caráter provavelmente não será o homem na rua:

Pensem na pressão sobre nosso vocabulário moral se pe-díssemos a ele para produzir mitos heróicos de contado-

l rés, programadores e executivos de recursos humanos.Nós preferimos caubóis, detetives, toureiros e pilotos decorrida, porque esses tipos incorporam as virtudes quenosso vocabulário moral está equipado para celebrar:realização individual, aventuras e intrepidez1™.

Já que o retrato é necessário, é preciso encontrar um lugar parao retratista. Por isso, nas bordas da sociedade, há poças de pessoasque aparentemente acham razoável se engajar diretamente nos fei-tos arriscados de uma vida honrada. Ao se remover cada vez mais dasubstância de nossa sociedade, elas parecem agarrar cada vez maiscertos aspectos de seu espírito. Sua alienação de nossa realidade asliberta para serem sutilmente induzidas a perceber nossas fantasiasmorais. Como já foi sugerido sobre delinquentes, elas de algumaforma cooperam ao encenar uma cena na qual projetamos nossa di-nâmica de caráter:

O delinquente é o homem renegado. Sua conduta podenão apenas ser vista negativamente, como um dispositi-vo para atacar e derrogar a cultura respeitável; mas elapode ser vista positivamente como a exploração de mo-dos de comportamento que são tradicionalmente sim-bólicos da masculinidade desimpedida, aos quais a cul-tura de classe média renuncia porque são incompatíveiscom seus objetivos, mas que não deixam de ter uma cer-ta aura de glamour e romance. É por isto que eles tam-bém entram na cultura respeitável, mas apenas em for-mas disciplinadas e atenuadas como os esportes organi-zados, em jogos de fantasia ou faz de conta, ou indireta-mente como em filmes, televisão e histórias em quadri-nhos. Não permitimos que eles interfiram com os negó-cios sérios da vida. O delinquente, por outro lado, ao re-nunciar a estes negócios sérios, como definidos pelaclasse média, está mais livre para desviar estas correntessubterrâneas de nossa tradição cultural. O ponto impor-tante para nosso propósito é que a resposta delinquente,por mais "errada" e "reles" que seja, ainda faz parte do

170. BERGER, B. "The Sociology of Leisure: Some Suggestions". Industrial Relations,vol. l, n. 2, 1962, p. 41. L, Yablonsky (The Violent Gang. Op. cit., p. 226-227) afirmaalgo semelhante numa discussão daquilo que ele chama de "herói sociopata".

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conjunto de respostas que não ameaçam sua autoidenti-ficação como um homem171.

Apesar das atividades decisivas muitas vezes serem respeitáveis,há muitas competições de caráter e cenas de ação séria que não osão. Mas estas são as ocasiões e lugares que mostram respeito pelocaráter moral. Não encontramos locais de adoração apenas em cor-dilheiras que convidam o alpinista, mas também em cassinos, salõesde sinuca e pistas de corrida; pode ser que a sensibilidade moral sejafraca exatamente nas igrejas, onde há uma grande garantia de quenada decisivo ocorrerá.

Ao procurar onde a ação está, chegamos a uma divisão românti-ca do mundo. Em um lado estão os lugares seguros e silenciosos, olar, o papel bem regulado nos negócios, na indústria e nas profis-sões; no outro estão todas as atividades que geram expressão, exi-gindo que o indivíduo dê a cara para bater e se coloque em perigopor um momento passageiro. É a partir desse contraste que confec-cionamos quase todas nossas fantasias comerciais. É a partir dessecontraste que delinquentes, criminosos, apostadores profissionais eesportistas ganham seu respeito próprio. Talvez este seja o paga-mento em troca do uso que fazemos do ritual de suas exibições.

Um último ponto: a experiência indireta restabelece nossa cone-xão com os valores relacionados ao caráter. O mesmo ocorre com aação. Então, a ação e a experiência indireta, tão diferentes na superfí-cie, parecem estar aliados de perto. Posso citar alguma evidência.

Vejamos as roupas. Roupas femininas são planejadas para se-rem "atraentes", o que deve significar, num ou outro sentido, que ointeresse de homens não especificados deve ser atraído. E com essaatração, temos a base para um tipo de ação. Mas a probabilidade real

171. COHEN, A. Delinquent Boys.Glencoe: The Free Press, 1955, p. 140. Aqui difi-cilmente poderíamos encontrar um exemplo melhor do que o escritor Norman Mai-ler. Seus romances apresentam cenas de deveres decisivos, competições de carátere ação séria; seus ensaios expõem e exaltam os riscos, e aparentemente em sua vidapessoal ele demonstra uma certa tendência a definir tudo, de seus casamentos aseus encontros sociais, em termos da linguagem e estrutura do jogo da luta. Quais-quer que sejam as recompensas e os custos da orientação da vida a apostas, ele pa-rece tê-los colhido. É claro que, nessa mitificação da própria vida, Hemingway foi ocampeão anterior.

dessa ação ocorrer muitas vezes é muito baixa. Reforçamos assimfantasias, mas não a realidade. Uma versão mais clara dessa mesmaprovocação indireta é o grande número recente de vendas, para cau-bóis sem cavalos, de chapéus de vaqueiro, botas de salto alto, calçasLevfs e tatuagens172. Delinquentes que carregam facas e são "maqui-nados" exibem da mesma forma uma orientação maior à ação, masaqui talvez as aparências tenham mais chance de se intrometer narealidade.

As loterias, os "números" e o bingo de cassinos são expressõescomercializadas de apostas improváveis oferecidas a um preço mui-to pequeno. O valor esperado da jogada é, obviamente, muito me-nor até do que o preço, mas recebemos uma oportunidade para fan-tasias agradáveis de ganhos milionários. Aqui a ação é, ao mesmotempo, indireta e real.

Quando as pessoas vão para onde a ação está, elas muitas vezesvão para um lugar onde há um aumento não das chances enfrenta-das, mas das chances pelas quais elas serão obrigadas a se arriscar.Se a ação realmente ocorrer, é provável que ela envolva alguémcomo elas, mas outra pessoa. Então, elas foram para um lugar onde oenvolvimento de outra pessoa pode ser assistido de perto e desfruta-do indiretamente.

E claro que a comercialização representa a mistura final entrefantasia e ação. E ela tem uma ecologia. Nos fliperamas de assenta-mentos urbanos e balneários de verão pode-se alugar cenas em queo cliente pode ser a estrela de apostas animadas por serem muito le-vemente consequentes. Aqui, uma pessoa atualmente sem conexõessociais pode inserir moedas em máquinas de habilidade para de-monstrar às outras máquinas que ela tem qualidades de caráteraprovadas socialmente. Esses pequenos espasmos nus do eu ocor-rem no fim do mundo, mas lá no fim estão a ação e o caráter.

172. Cf., p. ex., POPPLESTONE, J. "The Horseless Cowboy". Trans-Actions, mai.-jun./1966.

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