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Parte XIII Ideas y Pensamiento

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Parte XIII Ideas y Pensamiento

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O homem de letras e o conceito de civilização no debate intelectual brasileiro oitocentista

Daniel PINHA

Professor da área de História do Brasil do Departamento de História - PUC-RIO/Brasil Mestre em História Social da Cultura - PUC-RIO/Brasil

Doutorando em História Social da Cultura - PUC-RIO/Brasil [email protected]

Resumo Trata-se de uma análise do conceito de civilização no pensamento brasileiro oitocentista tendo em vista as propostas de escrita da história literária de Domingos José Gonçalves de Magalhães (1836) e Silvio Romero (1888), seguindo de perto as sugestões metodológicas do historiador alemão Reinhart Koselleck a respeito de uma história intelectual a partir da análise dos conceitos. O termo literatura adquire para os autores uma concepção ampla que abarca o conjunto de manifestações da inteligência de um povo. O argumento se desenvolve a partir de duas questões principais: primeiro, a relação entre a pena e o espelho, ou seja, no quanto o exercício intelectual de pensar a nação se consolida como contínuo ato de pensar sobre a própria atividade intelectual; segundo, acerca das tensões entre local/universal, nacional/civilizado que balizam a experiência missionária do homem de letras. Desse modo, o homem de letras se afirma como o sujeito apto a traduzir para o contexto nacional a experiência positiva da civilização, estando na fronteira entre o local e o universal, atuando como outro (civilizado) e devidamente autorizado a definir o que é próprio ao mesmo (nacional). Palavras-chave: Pensamento brasileiro, História da literatura, Nação, Civilização. Abstract This is an analysis of the concept of civilization in the nineteenth century Brazilian thought considering the proposals for writing literary history of Domingos José Gonçalves de Magalhães (1836) and Silvio Romero (1888), following the methodological suggestions of the German historian Reinhart Koselleck about an intellectual history from the analysis of concepts. Here, the term literature is understood as a concept that embraces all manifestations of intelligence of a people. The argument is developed from two main issues: first, the relationship between the pen and mirror, or how much the intellectual exercise to think the nation established itself as a continuous act of thinking about their own intellectual activity, and second, about tensions between local / universal, national / civilized, considering the man of letters as a missionary of the civilization. Thus, the man of letters becomes the subject able to translate to the national context the positive experience of

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civilization, standing on the border between the local and universal, serving as the other (civilized) and duly authorized to define what is the national. Keywords: Brazilian Thought, History of Literature, Nation, Civilization.

1. Introdução

definição da identidade nacional apresenta-se como tema recorrente do debate letrado brasileiro no século XIX, o que nos revela o quanto o episódio da independência política não foi capaz, por si só, de provocar um sentido de unidade

brasileira aos habitantes do extenso território do Império do Brasil. Desde a tradição do Romantismo passando pela proposta renovadora da chamada Geração de 1870, nota-se nas formulações críticas de homem de letras como Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, Joaquim Nabuco e Silvio Romero, uma preocupação pedagógica de estabelecer um sentido missionário para a ação intelectual no mundo, como se o movimento das idéias precedesse ao surgimento de uma nova sociedade e uma nova política. Nesse sentido, o conceito de Civilização é central enquanto balizador do horizonte de expectativas dos letrados brasileiros, já que, a pretendida singularidade brasileira encontrava sentido na possibilidade de inserir o Brasil no rol das nações civilizadas do Ocidente. Será o então crítico literário Joaquim Maria Machado de Assis, em 1873, o autor do diagnóstico mais preciso acerca da condição da literatura brasileira oitocentista. No texto “Notícia atual da literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, Machado atendia ao pedido de José Carlos Rodrigues, editor em Nova Iorque da Revista “O Novo Mundo”, de traçar um estudo acerca do caráter geral da literatura brasileira contemporânea. O primeiro parágrafo dá o tom do que seria o texto como um todo.

“Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono do futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre, e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão.” “Meu principal objeto é atestar o fato atual; ora o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais independente.” (Assis. 1973, p.801-2)

O instinto de nacionalidade na literatura a que Machado se referia tornava a tarefa primordial de literatos e críticos da década de 1830 ou de 1870 – momentos de afirmação e ruptura das sensibilidades românticas brasileiras (Saliba, 2003) – responder à questão “O que é o Brasil?”. A invenção do Brasil pela pena literária traduziu-se de diversas maneiras: no movimento do indianismo literário, nas querelas a respeito da autonomia da cultura brasileira em relação a Portugal, na elaboração de histórias da literatura brasileira, nos romances de um José de Alencar, enfim, a ocupação primordial desde os primeiros

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românticos seria definir elementos diferenciadores da literatura do país que pudessem cobri-la de cores nacionais tornando-a autônoma em relação ao que vinha de fora, especialmente Portugal. Ao mesmo tempo, tencionava-se colocar o país em pé de igualdade com as demais culturas do Ocidente, seguindo de perto os ecos da Revolução que abalara os tronos e a cultura da Europa, isto é, tencionava-se inserir o Brasil na – considerada por eles – marcha inexorável da Civilização. A busca por vestir as formas literárias do pensamento com as cores do país significava também, para aqueles autores, estabelecer um outro tipo de olhar em relação ao passado: o rompimento seria, não só com o espaço metropolitano, mas também com as amarras de um tempo passado colonial. O objetivo seria instituir um novo passado literário, uma nova escrita da história, capaz de revelar a condição do presente oitocentista como um tempo de ruptura. A primeira geração romântica, liderada por Gonçalves de Magalhães, tomava para si o projeto de fundar uma literatura e uma nova tradição a partir daquele momento, agora nacional; além da iniciativa de elaborar um corpus pela publicação de textos, a tarefa imediata da história literária era exprimir a imagem da inteligência nacional na seqüência do tempo (Candido, 2000). Para isso, buscavam no passado referências de escritores que anunciavam correntes contemporâneas, tal como elucidado por Machado no trecho acima: aqueles que cantavam a terra e os costumes locais como os poetas árcades Santa Rita Durão e Basílio da Gama, eram considerados precursores do presente oitocentista de Gonçalves Dias, Porto-Alegre e Magalhães. Para este último, os literatos do passado e do presente se uniam na formação de uma continuidade histórica, que teria na afirmação nacional do presente o fio condutor. De acordo com Flora Sussekind, seria caro tanto a românticos da década de 1830 quanto a naturalistas da década de 1870 definir o tempo pelo parâmetro da unidade nacional. A produção da identidade estaria pautada, assim, não só na relação entre sujeitos que viviam no mesmo espaço e poderiam se considerar “brasileiros”, mas também entre os sujeitos do presente e seus precedentes, escolhidos conforme o parâmetro da brasilidade. Do mesmo jeito que, nas palavras de Flora Sussekind, “o retorno às origens pode ser necessário para que se possa romper os laços com ela”, estabelecer um outro opositor, como contraste, especialmente o português, era condição necessária para a afirmação da identidade brasileira (Sussekind. 1990, p. 19). Nas palavras da autora, “Ao descreverem a procura de uma nacionalidade essencial, de uma identidade sem rachaduras, de uma linha reta, desvendam para quem os lê a origem da literatura brasileira. Quimera que constroem a cada novo passo, que acrescentam ao seu novo mapa de pesquisas” (Idem, p.18).

O delineamento do mapa nacional ia além dos limites da natureza descrita nos romances, que apresentavam e balizavam os contornos da paisagem do Brasil: descobrir e devastar o país significava também se voltar para trás no tempo, com o parâmetro da essência nacional. O esforço por catalogar os nomes das diferentes espécies e fazer o leitor viajar e conhecer o Brasil sem sair do lugar através das narrativas, era semelhante, acrescento, àquele feito pelo historiador da literatura, que fazia o inventário dos principais personagens e acontecimentos da história do país: a descrição da especificidade da natureza brasileira equiparava-se a busca do diverso em um todo; a exposição da diversidade do passado, fixando marcos

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diferenciais, existia no sentido de justificar uma idéia de todo no presente do Brasil oitocentista. Era esse o mesmo princípio norteador que apontava o sentido do futuro. Nessa ambiência intelectual o conceito de Civilização seria especialmente caro, pois com ele seria possível ao pensamento brasileiro oitocentista situar seu lugar dentro de um processo histórico maior, definido a partir das tradições literárias ocidentais do passado e despontando para um futuro desconhecido e possivelmente melhor. Este ponto será introduzido aqui a partir da leitura dos trechos das propostas de história literária de Gonçalves de Magalhães, de 1836 e Silvio Romero, de 1888. Primeiro Magalhães: “Com a expiração do domínio português muito se desenvolveram as idéias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa, e como nação é filho dessa Revolução famosa que abalou todos os tronos da Europa, e repartiu com os homens a púrpura e os cedros dos reis.” (Magalhães. 1980, p. 33).

Agora, Romero:

“Todo e qualquer problema histórico e literário há de ter no Brasil duas faces principais: uma geral e outra particular, uma influenciada pelo momento europeu e outra pelo meio nacional, uma que deve atender ao que vai pelo grande mundo e outra que deve verificar o que pode ser aplicado ao nosso país.”

“A literatura no Brasil, a literatura em toda a América, tem sido um processo de adaptação de idéias européias às sociedades do continente. Esta adaptação nos tempos coloniais foi mais ou menos inconsciente; hoje tende a tornar-se compreensiva e deliberadamente feita. Da imitação tumultuária, do antigo servilismo mental, queremos passar à escolha, à seleção literária e científica. A darwinização da crítica é uma realidade tão grande quanto é a da biologia.”

“A poderosa lei da concorrência vital por meio da seleção natural, a saber, da adaptação e da hereditariedade, é aplicável às literaturas, e à crítica incumbe comprová-la pela análise dos fatos. (...)” (Romero. 1902-1903, p. 10-11)

No “Discurso sobre a História da Literatura do Brasil” – publicado por Gonçalves de Magalhães pela primeira vez na edição inaugural da Revista Niterói-Brasiliense em 1836, depois de ser apresentado de modo oral e parcialmente, três anos antes, em sessão do Instituto Histórico de Paris – é clara a menção à Revolução Francesa como acontecimento fundador de uma nova Era no processo histórico universal, do qual o Brasil seria herdeiro direto. O processo de independência brasileira seria um eco da Revolução – que em certa medida para Magalhães, dispensava a qualificação francesa, pois representava uma conquista não apenas daquele país, mas de toda a humanidade. Logo, o domínio português equivalia ao Antigo Regime nos Trópicos. Vivia-se um novo tempo de liberdade e não só os espaços – as nações modernas – apareciam conectados entre si por meio da Revolução, mas todos os tempos encerravam-se em um só tempo, o tempo da civilização e do contínuo progresso da humanidade. Não bastava, portanto, forjar uma unidade nacional interna que assegurasse uma identidade brasileira; era necessário demonstrar para a Europa que a nação brasileira se inseria na fraternidade universal dos povos filhos da Revolução.

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Em Silvio Romero, podemos observar mais um desdobramento do ponto elucidado por Magalhães do que uma contraposição1. Lemos acima um trecho retirado do capítulo II do livro I da História da Literatura Brasileira de Silvio Romero, intitulado “Teorias da história do Brasil” – titulo que revela a dimensão temporalizada e historicizada adquirida pelo conceito de literatura em Romero, questão que desenvolverei mais adiante neste artigo. A leitura desse pequeno extrato nos permite conhecer os propósitos mais imediatos de Romero em reunir e sistematizar uma história da literatura no Brasil: adequar a crítica e a história literária brasileira aos novos princípios científicos do tempo, o que implicava em inserção das letras brasileiras no movimento geral das idéias do mundo ocidental. A particularidade da nação brasileira estaria sempre pautada no confronto com uma universalidade, a do conjunto das nações civilizadas do ocidente, ou seja, ao mundo das letras da Europa. A tensão entre o local e o universal se balizava não apenas pelo domínio da diversidade entre culturas, mas sim por uma diferença definidora de uma hierarquia, onde o Brasil ocupava o lugar de aprendiz ou reprodutor daquilo que melhor se produzira no Velho Continente. Se a gênese do pensamento – ou a raiz, para tratar em termos romerianos – estava na Europa, cabia aos homens de letras brasileiros a tarefa de selecionar o que aqui devia sobreviver, isto é, o que aqui devia ser reproduzido. Se na época colonial predominava o espírito de imitação servil ao elemento português, no presente histórico dos oitocentos a imitação servil transformar-se-ia em imitação selecionada.

O que estava em jogo para Romero e Magalhães era ao mesmo tempo a afirmação da particularidade brasileira – sintetizada na metáfora do instinto de nacionalidade diagnosticada por Machado de Assis – e a inserção do pensamento brasileiro na corrente mais avançada de idéias contemporânea. Diante do progresso do mundo civilizado, a inteligência brasileira não poderia manter-se em uma situação colonial de estagnação, com um passo atrás. A afirmação do presente como diferença e progresso em relação ao passado acentuava a importância do conceito de Civilização; a civilização associava à história uma noção de processo2, no qual o presente só podia ser entendido na continuidade ou na ruptura com o passado e com o futuro. Em outras palavras, a identidade do tempo presente como novo se forjava tanto pela diferença qualitativa sobre o passado quanto pela inferioridade em relação ao futuro.

1 No prefácio do livro Cantos do Fim do Século, intitulado “A poesia hoje” e datado de 1873, Silvio Romero

afirma sobre o Romantismo: “O romantismo é um cadáver e pouco respeitável; não há futuro que o salve, nem que pretenda ser o Proteu de alguma mitologia de espécie nova!” In ROMERO, Silvio “Cantos do Fim do século”, Afrânio Coutinho(org.), Caminhos do pensamento crítico, Rio de Janeiro, Pallas; Brasília INL, Vol I, 1980, p. 413. No mesmo texto, Romero assevera: “O que todos podem experimentar, se quiserem verificá-lo, é que o pensamento de hoje, chocado por outras necessidades, enlarguecido por outras concepções, dificilmente se pode agüentar naquelas velhas cadeias. Avança deixando atrás a passada intuição, condenando à impotência os antigos programas literários.” Idem, p. 416. 2 A esse respeito, cabe ressaltar o argumento de Hannah Arendt sobre o lugar da idéia processo na História –

que diferente das histórias locais, será grifada com a letra maiúscula – e a relação entre esta História e a Civilização. Nas palavras de Arendt: “O processo, que torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquiriu assim um monopólio de universalidade e significação”, de tal modo que o que está fora do processo é considerado pelo signo do atraso e da barbárie. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 96.

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O ponto que pretendo desenvolver aqui é sobre o modo pelo qual Gonçalves de Magalhães e Silvio Romero, em suas proposições sobre a história da literatura brasileira, asseguram um lugar específico para o homem de letras na afirmação desse projeto civilizador. O argumento é o de que, para eles, o homem de letras se torna o sujeito apto a traduzir para o contexto nacional a experiência positiva da civilização, estando na fronteira entre o local e o universal, atuando como outro (civilizado) e devidamente autorizado a definir o que é próprio ao mesmo (nacional). Nesse sentido, o exercício de pensar a nação se consolida como contínuo ato de pensar a própria atividade intelectual, conferindo a esta uma concepção missionária.

2. Apreensão histórica dos conceitos e o conceito de literatura De um ponto de vista metodológico, o presente texto seguirá de perto as proposições do historiador alemão Reinhart Koselleck acerca de uma história intelectual a partir da análise dos conceitos3. Nesse sentido, o conceito é visto como resultado de um processo de teorização que admite uma pretensão à generalidade e polissemia, mas que se estabelece dentro de uma dimensão temporal específica. Se a repetição de estruturas lingüísticas é necessária para que haja compreensão de um conceito, ao historiador caberá analisar o uso do conceito dentro de uma situação histórica específica, de tal modo que a diacronia da experiência esteja contida na sincronia do conceito.

Para o objetivo do argumento que se segue, cabe ressaltar que os conceitos de literatura e civilização, apreendidos na totalidade que admite a reunião de uma diversidade histórica em um sentido, serão lidos à luz da experiência histórica oitocentista brasileira, dentro de sua dinâmica própria, considerando o universo de referências específico da experiência brasileira. Privilegiarei o conceito em seu uso, levando em conta as produções discursivas dos sujeitos históricos.

No quadro intelectual brasileiro aqui delineado o conceito de literatura terá uma apreensão bastante específica. Examinemos, uma vez mais, trechos do “Discurso sobre a história da literatura no Brasil”, de Gonçalves de Magalhães e da História da Literatura Brasileira de Silvio Romero, mais especificamente do capítulo “Os estudos de história literária do Brasil”. Primeiro Magalhães:

“A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência; e quando esse povo, ou essa geração, desaparece da superfície da terra com todas as suas instituições, crenças e costumes, escapa a literatura aos rigores da importância do povo, do qual é ela o único representante de sua posteridade”.4 (Magalhães. 1980, p. 24)

3 O diálogo mais intenso nesse sentido é com os livros: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à

semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC-Rio, 2006; e KOSELLECK, Reinhart. Los extratos del tiempo – estudos sobre la historia. Buenos Aires: Piados, 2001

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Agora, Romero:

Para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as manifestações de inteligência de um povo: política, economia, arte, criações populares, ciências, ...e não, como era de supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia!... (Romero, 1980, p. 428)

As aproximações entre Magalhães e Romero estão novamente acentuadas nos dois trechos, de tal modo que palavras semelhantes são utilizadas para designar o termo literatura: enquanto para o primeiro ela é o “reflexo da inteligência de um povo”, para o segundo, ela diz respeito a “todas as manifestações da inteligência de um povo.” Para ambos a literatura é o conjunto do que há de mais apurado na produção de um povo em um determinado tempo, ou seja, as condições temporais e locais são as linhas constantes para a distinção do caráter literário. Além de ser testemunho vivo do que o povo efetivamente foi, para Magalhães a literatura guarda em si o que deverá ser considerado memorável, ou seja, digno de ser lembrado no futuro, revelando, ao mesmo tempo, o estágio de evolução do pensamento em relação ao processo histórico maior da Civilização. Donde é possível supor que a concepção ampla do termo literatura proposta por Silvio Romero em 1888 realiza a síntese de aspirações tanto de naturalistas quanto de românticos brasileiros, no tocante ao tratamento da literatura como conjunto de expressões culturais e pensamentos de uma época. O que parece estar em jogo tanto para Magalhães quanto para Romero é um modo amplo de conceber o literário, portador de aspirações que ultrapassam as pretensões artísticas, alcançando fins políticos e morais. Tal acepção ampla do literário incorpora uma dimensão eminentemente pedagógica. É o que se pode depreender, por exemplo, das palavras finais do prefácio à primeira edição da “História...”, de Romero:

São estas as linhas diretoras de minha ação na literatura do país. Se me faltou o talento, resta-me em todo caso, a face moral da empresa; a verdade e o patriotismo foram os meus guias.

Tal o sentido de certos ataques a influências estrangeiras, que desejaria ver anuladas de todo. Independência literária, independência científica, reforço da independência política do Brasil, eis o sonho da minha vida. Sejam eles a tríplice empresa do futuro. (Romero.1902-3, p. XXVI)

Podemos observar neste trecho um Silvio Romero que dedica sua obra primordialmente ao engrandecimento do pensamento nacional. Possíveis equívocos interpretativos ou documentais poderiam ser justificados ao leitor pela “face moral da empresa”, isto é, pelo sentido patriótico que contém no livro. Se Romero nos diz que “a verdade e o patriotismo foram guias”, eu acrescentaria que na lógica dessa história literária, verdade e patriotismo estariam muito próximos, de tal modo que uma não viveria sem a outra. O instinto de nacionalidade ao qual se referia Machado em 1873 estaria aqui mais presente do que nunca! O homem de letras põe sua pena à disposição do desenvolvimento nacional; não que esse

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desenvolvimento fosse obra única e exclusiva desse homem, mas sua missão ante aos seus contemporâneos seria contribuir para o engrandecimento intelectual do país, oferecendo sim caminhos para a ação5. Conjugado a esse engrandecimento estariam todas as independências possíveis: literária, científica e reforço da independência política.

Reparemos o tratamento dado por Gonçalves de Magalhães acerca dessa questão. O trecho abaixo é transcrito do penúltimo parágrafo do texto, escrito em tom conclusivo:

Como não estudamos a história só com o fito de conhecer o passado, mas sim com o fim de tirar úteis lições para o presente; assim, no estudo do que chamamos modelos não nos devemos limitar à sua reprodução imitativa. A estrada aberta pelos nossos ilustres maiores, que podemos considerar em caracol em uma montanha, ainda não tocou ao seu cume; se aspirarmos chegar a ele, o mais seguro caminho é trilhá-la, mas com cuidado que não nos deixemos encantar pela harmonia das vozes dos cisnes que a ladeiam. Ouvindo-os para adoçar a fadiga, admirando-os, porém marchando sempre, empenhemo-nos em nos adiantar nessa estrada. (Magalhães. 1980, p. 38)

O primeiro ponto que merece ser destacado é a observação feita por Magalhães em relação ao objetivo do estudo da história: não há um fim em si mesmo no conhecimento sobre o passado, não é ele capaz de justificar-se autonomamente, seja por seu encantamento ou pela experiência de descentramento que ele propicia ao sujeito que lhe visita. Há um objetivo, uma finalidade, um sentido para o estudo do passado, explicitado claramente no trecho em que ele afirma que é possível “tirar lições úteis para o presente”. Nesse ponto, Magalhães parece defender a compreensão da história à moda ciceroniana, isto é, a da história como mestra da vida. De acordo com Reinhart Koselleck (2006), nesta apreensão, o estudo do passado poderia oferecer exemplos úteis para as ações do homem, tendo, portanto, uma função pedagógica. Isso seria possível, segundo Koselleck, dentro de uma forma de experimentar o tempo capaz de conceber as ações do futuro pautadas naquilo que o passado poderia oferecer como lição, a ser seguida ou descartada6. Em Magalhães, há uma

5 De acordo com Roque Spencer M. de Barros, a Geração 1870 torna-se a ilustração brasileira, semelhante ao

movimento do Iluminismo europeu, pela crença disseminada no poder das idéias e na confiança de que “a educação é o único caminho legítimo para melhorar os homens, para dar-lhes inclusive um destino moral”. BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração brasileira e a ideia de universidade. São Paulo: Convívio/ Edusp, 1986. 6 Koselleck define como condições para a afirmação da história como mestra da vida: compreensão de uma

constância da natureza humana através dos tempos; possibilidade de antecipação de um futuro fundado em experiências passadas; mudanças sociais ocorrendo em ritmo lento. Nas palavras do historiador: “Até o século XVIII, o emprego de nossa expressão [historia magistra vitae] permanece como indício inquestionável da constância da natureza humana, cujas histórias são instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas. Mas, da mesma forma, a perpetuação de nosso topos aludia a uma constância efetiva das premissas e pressupostos, fato que tornava possível uma semelhança potencial entre os eventos terrenos. E, quando uma transformação social ocorria, era de modo tão lento e em prazo tão longo, que os exemplos do passado continuavam a ser proveitosos. A estrutura temporal da história passada delimitava um espaço contínuo no qual acontecia toda a experimentação possível.” In KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC-Rio, 2006, p. 43.

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afirmação e uma recusa dessa concepção de história: afirmação da perspectiva pedagógica e recusa da possibilidade do passado oferecer um modelo de ação. Tal como na proposta de Silvio Romero, a história literária de Magalhães tenciona agir sobre as formas de conduta do brasileiro, expurgando-lhe o ranço colonial e conduzindo-o para o caminho da civilização. Ao mesmo tempo, repugnava a Magalhães pautar suas ações em modelos do passado, já que ele considerava a experiência do presente singular e radicalmente inédita.

E será exatamente essa preocupação pedagógica que define o problema nacional como principal questão que deve ocupar as linhas do debate letrado nacional7. Dessa forma, se inaugura uma forma de definir a literatura brasileira pelo prisma preponderantemente nacional, o que acaba por aproximar a verdade proposta pela narrativa historiográfica moderna ao realismo da narrativa literária; a literatura é apreendida, nesse sentido, como documento do real8.

Mais do que isso, o conceito de literatura incorpora uma perspectiva historicizada. Cabe ressaltar, nesse sentido, o argumento desenvolvido por Valdei Lopes de Araújo. Para este historiador, o episódio da independência política no caso brasileiro por si só não teria trazido a sensação de ruptura que marca o nascimento de um novo país – decerto que a presença de um Imperador português como D.Pedro I como primeiro Imperador do Brasil reforçava simbolicamente a relação de continuidade temporal existente entre o novo Império do Brasil e o antigo Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, existente desde o início do século. É a geração romântica de 1830 que, ocupada em construir a nação e impulsionada pelo momento político de construção da unidade nacional e manutenção do território brasileiro que inaugura o novo tempo enquanto tempo de ruptura e distinto do anterior.

7 Abel de Barros Baptista ressalta que quanto mais a busca pela especificidade do nacional toma conta dos

debates acerca da literatura brasileira tanto mais ela se filia ao projeto romântico europeu, que teve uma origem e um sentido fundados no Velho Continente. O autor acrescenta ainda que, com o Romantismo, inaugura-se uma nova maneira de conceber a tradição e esta nova atitude estará presente entre brasileiros e europeus: uma atitude moderna que sublinha principalmente a individualidade da própria época em relação ao tempo histórico. Por ser uma espécie de dominador do tempo, o Romantismo brasileiro autoriza-se a si mesmo permitir ou não o que deve e o que não deve ser considerado brasileiro, ou melhor, literatura brasileira, definindo a homogeneidade de uma nova tradição que se impõe. Nas palavras do escritor português: “As aquisições do romantismo (...) não se entendem corretamente no seu alcance mais decisivo, senão à luz dessa autoridade que o projetou sobre o desenvolvimento da literatura brasileira: um poder legislador que aparece a decidir a homogeneidade de uma tradição e o sentido de um caminho nela fundado, e na sua função não se esgota no romantismo e não tem nele, enquanto movimento cultural e literário, a sua única explicação. In BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2003, p. 24.

8 Flora Süssekind destaca a concepção naturalista como uma tradição marcante das letras brasileiras. Neste

sentido, a literatura nega o próprio caráter de ficção para ressaltar o de documento; oculta-se a ficcionalidade em nome de um paradigma de objetividade: *as elaborações literárias+ “negam-se enquanto ficção, enquanto linguagem, para ressaltar o seu caráter de documento, de espelho ou de fotografias do Brasil.” In SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua história. Rio de Janeiro: Achimé, 1984, p. 37.

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Transformada em processo, a literatura assume o papel de horizonte de totalidade, como a dimensão capaz de produzir e preservar a identidade de uma comunidade ao longo do tempo e do espaço. Através dela, a história deixa de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados e torna-se o desenvolvimento progressivo de uma identidade, cujo sujeito maior é o povo e o resultado é a nação. No texto de Magalhães, a literatura assume funções que, na modernidade, seriam atributos característicos do conceito de história.(Araújo. 2008, p. 121)

O debate sobre a literatura brasileira incorpora elementos conceituais fundamentais dentro de uma perspectiva moderna de história9: reunião da diversidade do passado em torno de uma unidade e um sentido que caminha para o presente – nas palavras de Araujo, “a história deixa de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados e torna-se o desenvolvimento progressivo de uma identidade”; afirmação do tempo presente como singularidade, autônomo e independente do passado – uma consciência de singularidade que não consegue mais abarcar perspectivas cíclicas, nos termos do historiador; associação a um determinado horizonte de universalidade, continuidade na qual se reivindica herança. Tal horizonte de universalidade estará inteiramente relacionado ao conceito de civilização; à inserção do Brasil na Civilização Ocidental e no processo histórico da civilização. 3. A pena e o espelho: o letrado, a nação e a Civilização O exercício de pensar a nação consolida-se como contínuo pensar sobre a própria atividade intelectual. E se a atividade intelectual tinha um sentido pedagógico, como já vimos linhas acima, pensar o Brasil seria a principal demanda mental da nação. Nesse sentido cabe lembrar novamente do trecho final do prefácio da História da Literatura Brasileira, de Silvio Romero, escrito por ele em forma de apelo.

São estas as linhas diretoras da minha ação na literatura do país. Se me faltou o talento, resta-me em todo o caso, a face moral da empresa. A verdade e o patriotismo foram os meus guias.”

“Tal o sentido de certos ataques a influências estrangeiras, que desejaria ver anuladas de todo. Independência literária, independência científica, reforço da independência política do Brasil, eis o sonho da minha vida. Sejam eles a tríplice empresa do futuro.

9 Para Reinhart Koselleck, o conceito moderno de história relaciona-se ao nascimento de uma concepção de

história como singular-coletivo, reunião de diversos passados relavantes de uma mesma espécie que se remete a um todo coerente e unido a um programa maior. Neste sentido, tal acepção relaciona-se ao advento das Filosofias da História setecentistas e, posteriormente, com os desdobramentos da Revolução Francesa. Dentre as características da concepção moderna de história é possível citar: elaboração de um conceito de tempo específico que insere o futuro na história e renuncia a obrigação de ter Deus como referência; transformação da História em processo, que leva a definição de uma unidade inerente ao plano histórico; adoção de um tom realista que confere uma pretensão de verdade. Além disso, a gênese do conceito moderno de história coincide com a ascensão de um uso social e integrador da história, relacionado à apreensão de uma diversidade do passado. In KOSELLECK, Reinhart. “Le concept d´histoire”. In KOSELLECK, Reinhart. L´expérience de l´histoire. Paris: Galimard, 1997.

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“Tenhamos confiança!”10 (Romero. 1902-3, p. XXVI.)

A pena do historiador literário estaria em função daquela missão nacional do presente, isto é, todo o estudo acerca do passado literário do país só fazia sentido para ele se estivesse inteiramente à disposição daquele desejo em ver concretizadas as diversas independências nacionais. Para Silvio Romero, sua intervenção no presente e o sentido de sua história – isto é, a formação do povo brasileiro – precedia preocupações de ordem estritamente historiográfica, como cotejo de fontes ou utilização de um método11. Além disso, ele considera tão importante quanto escrever sobre o passado literário brasileiro em forma de história, pensar sobre o próprio sentido da escrita da história para o seu tempo.

Com Gonçalves de Magalhães notamos preocupação bastante semelhante:

O Discurso que aqui transcrevemos sobre a História da Literatura do Brasil saiu pela primeira vez impresso em 1836 na Niterói, Revista Brasiliense, e o destinávamos a servir de introdução a uma obra com esse título, da qual mais alguns artigos apareceram depois em uma folha periódica do Rio de Janeiro; trabalho que empreendemos no entusiasmo da juventude com o fim de chamar a atenção da mocidade literária para o estudo dos documentos esquecidos da nossa limitada glória literária, a excitá-la ao mesmo tempo a engrandecê-la e relevá-la com novos escritos originais, que mais exprimissem nossos sentimentos, religião, crenças e costumes, e melhor revelassem a nossa nacionalidade. (Magalhães. 1980, p. 23)

A passagem acima consta como “Advertência” na reedição do “Discurso sobre a história da literatura no Brasil” datada de 1863, portanto, vinte e sete anos após a primeira publicação. O texto aparecia agora como prólogo da história literária do filólogo alemão Ferdinand Wolf intitulado O Brasil literário (história da literatura brasileira) cujo principal mérito, segundo o próprio autor seria “ser o primeiro e único que até agora apareceu na Europa sobre o assunto” (Wolf. 1955, p. 5), assegurando, assim, um lugar para a literatura brasileira no movimento da história das literaturas universais12. Lemos um Magalhães ocupado em trazer

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De acordo com Ricardo Benzaquen de Araujo, a escrita da história no século XIX busca consolidar um método capaz de apurar os acontecimentos do passado, dotando-os de um sentido. Desse modo, a história se institui como uma ciência capaz de criar regularidades onde só há caos, isto é, nos acontecimentos do passado. Convive, no entanto, com o suposto antigo de que apura o particular, ou seja, aquilo que se torna notável no passado e é digno de ser lembrado. E se o passado oferece variáveis infinitas de acesso, a possibilidade de ordem está na conformação de um método para acessá-lo. É através da adoção desse método comum à verdade sobre o passado, grande busca do historiador moderno. In ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Ronda Noturna. Narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu.” Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1(1), 1986. 12

No entender de Gonçalves de Magalhães, a publicação do livro tinha o objetivo de mostrar à Europa o desenvolvimento de uma literatura brasileira independente. Nas palavras de Magalhães: “Ultimamente um sábio filólogo alemão, o Dr. Ferdinand Wolf, conhecedor profundo da literatura de povos de origem latina, notando o extraordinário desenvolvimento da nossa nesses últimos tempos, pela quantidade de obras desconhecidas na Alemanha que a comissão científica da fragata Novara levou do Brasil a Viena, encarregou-se

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a tona o passado literário brasileiro com o objetivo de despertar nas novas gerações sentimentos de nacionalidade, a partir dos estudos literários – capazes, mais do que qualquer outro tipo de texto, de exprimir “nossos sentimentos, religião, crenças e costumes”. Se o “Discurso” serviria como introdução de uma obra maior que “reuniria os documentos esquecidos da nossa limitada glória literária”, tal plano não se concretizou: diferente de Silvio Romero que reuniu e empreendeu uma longa história literária à luz dos novos métodos modernos, a história da literatura de Gonçalves de Magalhães nunca deixou de ser um projeto. Por outro lado, o sentido daquela história (e de outras) já estaria traçado e reforçado em 1863. O destaque do como se deve proceder, no caso de Magalhães, suplantou o próprio proceder em si. Descobrir o Brasil através das letras, para esses homens, significava pensar a própria tarefa intelectual e dotá-la de um sentido missionário.

Tal missão envolvia, igualmente, a inserção do Brasil no processo histórico da Civilização. Tanto para Gonçalves de Magalhães quanto para Silvio Romero o Brasil era um país novo que carregava o qualificativo de filho da civilização. Um filho que precisava ser devidamente educado. Cabe lembrar que, para Magalhães “Hoje o Brasil é filho da civilização francesa, e como nação é filho dessa Revolução famosa que abalou todos os tronos da Europa” (Idem, p. 33) enquanto que, para Romero, “a literatura no Brasil, a literatura em toda a América, tem sido um processo de adaptação de idéias européias às sociedades do continente. Essa adaptação nos tempos coloniais foi mais ou menos inconsciente; hoje se tende a tornar-se compreensiva e deliberadamente feita.” (Romero. 1980, p. 428) Nas duas passagens fica exposto que, se o Brasil é tema e objeto de investigações, o pensamento brasileiro não era capaz, ainda, de estabelecer uma forma específica capaz de dar conta daquela realidade.

Cabe ressaltar, nesse sentido, o argumento de Jean Starobinski (2002) acerca da gênese do conceito moderno de civilização. Para este autor, há uma preocupação em identificar a França como a vanguarda ou o farol da civilização, por nela terem brotado os ideais universais da humanidade – considerando tanto a Filosofia Iluminista quanto a experiência da Revolução Francesa, ambas com pretensão universalizante. O conceito de civilização associa-se, assim, a uma idéia normativa que distingue em pólos opostos os favoráveis ou não à civilização, os que já a alcançaram e os que ainda não atingiram o ponto civilizado, considerados como bárbaros. Configura-se, assim, um valor, capaz de determinar o que é ideal ou não, julgado a partir do imperativo da virtude e da razão. Ao mesmo tempo, esta se reveste de uma função puramente descritiva e neutra, de tal modo que grandes impérios lançaram mão dos atributos da civilização para subjugar os outros povos.

Nesse sentido, pode-se dizer que Magalhães e Romero propunham uma inserção subordinada da literatura e da nação brasileira no mundo civilizado europeu. A entrada do Brasil no processo histórico universal caracterizava o seu estágio de menoridade juvenil, o

de mostrar à Europa no seu Brasil Literário que já possuímos uma literatura própria, que pelo seu caráter especial se distingue da portuguesa.” In Magalhães. 1980, p. 24.

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que levava a uma conseqüente necessidade de educação civilizatória. O principal agente dessa educação seria o intelectual brasileiro intermediário das relações entre o Brasil e o mundo civilizado. Gonçalves de Magalhães nos dirá, por exemplo, que “O gérmem da civilização, lançado em teu seio pela Europa, não tem dado ainda os frutos que devia dar; vícios radicais têm tolhido seu desenvolvimento” (Magalhães. 1980, p. 31), cabendo a si e a seus contemporâneos superar esses vícios do contexto nacional – um deles, talvez o principal, a escravidão negra. Caberá, portanto, ao homem de letras realizar a interlocução entre a Europa Civilizada e o Brasil, novo e em estágio infantil.

As experiências mentais ocorridas na Europa lhes serviam igualmente como referencial, por materializarem concretamente o futuro civilizado em pleno tempo presente, só que em outro espaço. O futuro, neste caso, não correspondia a um horizonte imprevisível ou irrealizável; para eles o contexto cultural do Velho Continente seria a melhor prova de que suas aspirações eram viáveis. O grande desafio estaria, para usar termos romerianos, em adequar todos aqueles avanços cultivados na Europa civilizada ao contexto (adverso) das terras tupiniquins, ou seja, o esforço maior dos letrados consistiria em empreender o processo de adaptação de idéias européias e civilizadas em um ambiente tido por bruto e atrasado.

Nesse sentido merece ser destacado o conceito de auto-exotismo desenvolvido por Roberto Ventura, a partir do qual um homem de letras como Silvio Romero estabelece um olhar europeu para afirmar a identidade brasileira:

Produz-se, a partir da idealização das metrópoles, uma espécie de auto-exotismo, em que o intelectual ‘periférico’ percebe a realidade que o circunda como exótica. O exotismo permite, por um lado, o distanciamento ante os costumes da própria sociedade, trazendo um olhar antropológico. Por outro, introduz negatividade na sua auto-representação, que leva à visão etnocêntrica das culturas populares de origem africana, indígena ou mista. (Ventura. 1991, p. 39.)

O ponto se desdobra na seguinte conclusão:

Introduziu-se, na literatura e na crítica brasileira, uma visão exótica ou um olhar de fora, que trouxe uma imagem negativa da sociedade e da cultura local, expressa na oscilação entre ufanismo e cosmopolitismo, na tensão entre a ideologia civilizatória e o projeto nacionalista.(Idem, p. 41)

A designação do homem de letras como o sujeito apto a traduzir para o contexto nacional a experiência positiva da civilização, tal como proposta por Silvio Romero, produz, assim, a distância que permite melhor observar os problemas da própria sociedade, relativizando perspectivas e pondo pontos de interrogação em pressupostos comumente aceitos pelo debate nacional. Tal distância, por outro lado, como ressalta Ventura, termina por

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reproduzir determinações que reforçam os lugares do superior e do inferior dentro da escalada de evolução das sociedades. E a essa questão, acrescento que em Silvio Romero a oposição entre conhecimento letrado e ignorância/despreparo do povo, provenientes do passado colonial, também se torna um mecanismo de reprodução das hierarquias entre povos atrasados e evoluídos. Afinal, se o conhecimento – estabelecido na Europa e adequado ao caso brasileiro, como quer Romero – é condição necessária para o alcance do progresso da sociedade brasileira, a afirmação contínua das diferenças valorativas e dos lugares hierárquicos torna-se, igualmente, condição para esse progresso.

4. Considerações finais

Em Magalhães e em Romero, dois dos principais cânones da historiografia literária brasileira dos oitocentos, os homens de letras seriam os únicos sujeitos capazes de pensar e desenvolver sobre a tensão entre nação e civilização, justamente por possuírem um pé lá e outro cá, isto é, por serem brasileiros e compartilharem dos avanços da civilização, tidos como patrimônio comum de toda a humanidade. Se a definição do Brasil através das letras permanecia como a interrogação-chave do pensamento nacional – traço característico daquilo que Machado definiu como “instinto de nacionalidade” nas letras – a produção de uma resposta propriamente brasileira para este problema se apresentava, ainda, como uma completa indefinição.

O conceito de Civilização incorporado à realidade brasileira dessa maneira pretendia inserir o pensamento brasileiro no movimento incessante do progresso inaugurado fosse pela Revolução – no caso de Magalhães – ou pela ciência moderna – no caso de Romero, atualizando o Brasil quanto ao novo repertório intelectual europeu. Ao mesmo tempo, a condição valorativa intrínseca ao conceito de civilização põe em xeque a condição autônoma da cultura brasileira, que eles tanto requisitavam; o movimento incessante do progresso e da civilização mais parecia atualizar a principal propriedade histórica brasileira, marca indelével de sua formação, isto é, sua condição colonial.

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