1377-4279-1-PB Cancao - Letra x Estrutura Musical

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    Letra e Msica

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    3 2 32 0 0 6 - jul.-dez. - A L E T R IADisponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    CANOl e t r a x e s t r u t u r a m u s i c a ll e t r a x e s t r u t u r a m u s i c a ll e t r a x e s t r u t u r a m u s i c a ll e t r a x e s t r u t u r a m u s i c a ll e t r a x e s t r u t u r a m u s i c a l

    Solange Ribeiro de OliveiraUFMG

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M O

    O texto discute diferentes teorias sobre a relao entre oselementos musical e verbal na composio vocal, ora postulandoa primazia do musical sobre o verbal, ora a integrao ou a tensodialtica entre os dois constituintes, sem esquecer sua relaocom o contexto scio-cultural. A ttulo de ilustrao, citam-se anlises da interao entre melodia e letra em algumascomposies vocais: o oratrio A Criao, de Haydn, o ciclo decanes denominadoFrauenliebe, de Schumann, e a canoMalandro empera do Malandro,de Chico Buarque de Holanda.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V E

    Palavra cantada, textualidade e musicalidade, ideologia ecano

    A interpenetrao de diferentes sistemas semiticos, freqente na arte e nasmdias contemporneas, tem inspirado inmeras pesquisas, incluindo as especificamentevoltadas para a relao intermiditica. Situa-se nesse espao a disciplina que StevenPaul Scher denomina Melopotica do grego melos(canto) + potica. Visando iluminao recproca entre a literatura e a msica, esse campo interdisciplinar, cujosesforos sistemticos remontam ao sculo XVII, focaliza diferentes vertentes da alianaentre o discurso musical e o verbal. Inserem-se a investigaes sobre diversas formas demsica cantada, como a cano, o lied, madrigais, cantatas, coros, baladas, a pera, a

    masqueinglesa e oSingspielalemo.No Brasil, a pesquisa sobre a produo musical, especialmente a de extrao popular,vem proliferando a partir dos anos 60 do sculo XX, com trabalhos situados em trs campospredominantes. O primeiro, representado por pesquisadores como Jos Ramos Tinhoro,Hermano Vianna Jr. e Cludia Matos, assume uma perspectiva antropolgico-sociolgica,de agenda implicitamente ideolgica, sem referncias musicolgicas. Como esses estudiososo segundo grupo de pesquisadores tambm se apia em critrios extramusicais para sua anlisePrivilegia uma abordagem cultural e literria, nos moldes dos trabalhos de, entre outros,Augusto de Campos e Affonso Romano de SantAnna. Derivado da anlise textual, esse

    tipo de investigao no demonstra considerar a cano como uma prtica artstica em simesma, de inconfundveis caractersticas prprias. Concentrada quase exclusivamente naletra, trata a cano como um subgnero da poesia lrica, testemunha do pacto imemorial

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    entre Erato e Euterpe, musas da lrica amorosa e da criao musical. H ainda aspublicaes jornalsticas e (auto)biogrficas, assinadas, por exemplo, por Tarik de Souza,Lupicnio Rodrigues ou Ruy Castro.

    Entretanto, a associao dos textos verbal e musical, integrados na cano, traz bailauma questo terica crucial, basicamente no abordada pelos pesquisadores que mencionei:

    a relao entre letra e estrutura musical. Sem ela, a cano no existiria, j que se constituiprimordialmente dessa relao, cuja natureza, extremamente complexa, mas presente emtoda msica vocal, tem despertado posturas tericas diversificadas. Alguns pesquisadoresdefendem o predomnio do musical sobre o verbal. Outros atribuem igual peso aos doiselementos, enquanto um terceiro grupo focaliza a tenso entre melodia e letra.

    Sem negar a contribuio do elemento verbal, Susanne K. Langer alinha-se entre osque sustentam a predominncia do musical sobre o verbal. Segundo a filsofa, quando palavrae msica se fundem numa cano, todo o material verbal fnico, semntico, potico, ouestrutural assimilado pelo musical. No se pode mais falar de linguagem verbal ou de

    poesia, mas to somente de msica. Assim o ouvinte, mesmo se totalmente ignorante dalngua grega, apreende o peso musicalmente expressivo de palavras comoKyrie Eleisonnumacomposio sacra. Essa assimilao do elemento verbal pelo musical explica a razo pelaqual, na msica vocal, versos banais funcionem to bem quanto grandes poemas. Por isso,canes de Schubert musicando versos medocres de Mller no se mostram inferiores sassociadas a poemas de Shakespeare e Heine.1 Langer chega a afirmar que, para o compositor,um poema perfeito pode s vezes constituir um problema, pois a preservao da forma literriainterfere na criao musical.

    No Brasil, Mrio de Andrade, como a filsofa norte-americana, defende a primazia do

    elemento musical. A propsito, argumenta que o ritmo musical jamais se submete ao dapalavra. Pode mesmo dificultar a compreenso do texto fato, a seu ver, irrelevante. Nosrituais religiosos, argumenta Andrade, pouco importa o significado das frases cantadas.Termos latinos, usados na liturgia catlica, desempenham assim funo semelhante depalavras cabalsticas e glossolalias, encontradas desde as frmulas sacras do antigo Egito atum canto de catimb.2

    Em posio diversa, outros tericos atribuem igual peso ao elemento verbal e aomusical. Anthony Storr, pesquisador contemporneo, oferece uma explicao fisiolgica paraessa afirmao. Segundo Storr, embora, presumivelmente, as funes lingstica e musicalsejam processadas, respectivamente, nos hemisfrios direito e esquerdo do crebro, quandopalavra e msica se encontram intimamente ligadas, como ocorre na cano, as duas funespassam a processar-se juntas, no mesmo hemisfrio o direito formando uma nicaGestalt.3

    A igualdade dos elementos verbal e musical foi sustentada pelo jovem Schumann,embora, na maturidade se tenha convertido posio de Langer. O compositor chegou aconsiderar a integrao de msica e poesia como a mais alta forma de composio vocal.4

    1 LANGER.Feeling and Form, p. 150-153.2 ANDRADE. Teraputica Musical, p. 21-23.3

    STORR.Music and the Mind, p. 37. Apud TREECE. Melody, Text and Luiz TatitsO Cancionista,p. 213.4 LANGER.Feeling and Form, p.153-154.

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    Na mesma linha, Robert Spthling destaca a complementaridade de melodia e letra nolied romntico.5 No Brasil, Santuza Cambraia Naves adota uma postura equivalente.No seu entender, certos textos verbais seriam inimaginveis aliados a melodias ou ritmosdiferentes dos adotados numa cano. Essa afirmao mostra-se, na verdade,questionvel. A respeito, invoco o testemunho de Manuel Bandeira, o mais musical de

    nossos poetas, dotado tambm de profundo conhecimento musical. Vrios poemas seusforam musicados, alguns recebendo distintas verses cantadas. Entre eles, destaco Azulo,que foi transformado em letra de trs canes totalmente diversas, compostas por JaimeOvalle, Camargo Guarnieri e Radams Gnatalli. As trs verses agradaram igualmenteao poeta, que afirmou encontrar a mesma adequao da msica s palavras em duas outrs realizaes musicais de um s texto.6

    Esse fato apenas demonstra que os trs compositores que musicaram Azulosouberam encontrar formas diferentes de atingir a indispensvel integrao entretextualidade e musicalidade. o que testemunham a sincronizao de acento musical

    e mtrico, bem como a perfeita adequao temtica das complexas transiesharmnicas e da linha meldica. Por outro lado, existe tambm a possibilidade, destacadapor Jos Miguel Wisnik, de defasagem entre a onda musical e a onda verbal, com suasinflexes de ritmo, timbre e entoao. Para Wisnik cabe ao cancionista descobrir essespontos e jogar com eles.7

    A observao de Wisnik evoca a aluso feita por Lawrence Kramer e Paul Alpersa um terceiro tipo de relao entre melodia e letra, quando o discurso musical parececontestar o texto verbal, estabelecendo com ele um conflito proposital.8 Ocorre-me oexemplo dapera dos trs vintns: a letra de Bertolt Brecht e a msica de Kurt Weill

    apontam s vezes em direes opostas, parecendo visar a efeitos contrrios e gerandoum efeito desorientador provavelmente intencional compatvel com os objetivos doteatro pico e sua inteno de manter o espectador numa atitude crtica.9 NicolasRuwet tambm reconhece a possibilidade dessa relao dialtica entre o elemento verbale o musical. Encontra-a, por exemplo, emDichterliebede Schumann.10 Justapostos nesseciclo, melodia e letra geram um todo complexo, cujo sentido global difere do de cadaparte. Ruwet acrescenta que, em canes diferentes, a relao entre melodia e letrapode variar, oscilando entre a convergncia e a contradio, e incluindo todo tipo dedeslocamentos, compatibilidades e complementaridades.

    A propsito, Ruwet lembra a reflexo de Lvi-Strauss e Lacan: diversamente danatureza, a cultura introduz uma fenda na plenitude do ser. essa fenda que a arte, e,na msica, a complementaridade de melodia e letra, do a iluso de preencher. Ruwetconclui que isso se traduz no

    5 SPAETHLING. Literature and Music, p. 58.6 Cf. BANDEIRA. Itinerrio de Pasrgada, p. 71.7 WISNIK.O som e o sentido, p. 200.8

    ALPERS. Lyrical Modes, p. 67.9 Cf. KOWALKE. Brecht and Music, p. 218-234.10 RUWET. Fonction de la parole dans la musique vocale, p. 41-69, 55.

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    no fato de que o homem s tem acesso ao real pela mediao de sistemas significantes (alinguagem, o mito, os ritos, os sistemas de parentesco, os sistemas econmicos, a arte,enfim), cada um dos quais, em razo de sua estrutura e condies de atuao, impe suamarca sobre o real sem a ele se reduzir [...] No conjunto desses sistemas significantes,alguns (notadamente a religio e a arte) tm como principal funo exatamente tentarpreencher, ou mascarar, o hiato em questo. [...] Poder-se-ia indagar se a msica vocal

    no representa um caso privilegiado no interior dessa categoria, na medida em que unifica,numa categoria nica, dois sistemas muito diferentes [...] cada um dando a iluso de queir preencher o hiato deixado pelo outro .11

    Essas consideraes nos reconduzem ao ponto central discutido aqui: a relaoentre letra e composio musical reafirma-se sempre como essencial, j que, sem ainterao desses dois constituintes, no h propriamente msica vocal, mas apenasfragmentos discursivos. Entretanto, til lembrar, no faltam estudos de canes queconsideram apenas o texto verbal, como se, em si mesmo, ele constitusse um poema. Jos Miguel Wisnik comenta o equvoco dessa posio: a msica no apenas um apoio,

    uma espcie de tela, onde se projetam imagens emanadas da letra. Mais freqentemente,ocorre o contrrio: a letra que atua como veculo da msica.12 Em outras palavras,Luiz Tatit confirma essa viso. Para Tatit, o que importa no tanto o que a letra diz,mas a forma como o faz, e essa maneira essencialmente musical, meldica.13Evidentemente, excetuados os textos inicialmente concebidos como poemas(exemplificados pelo Azulode Bandeira) a letra da cano no foi criada para ser lidaisoladamente. Quando tal ocorre, por exemplo, na leitura de cancioneiros como oprimeiro volume deChico Buarque, Letra e Msica, o texto dificilmente soa como poemaautnomo. O eventual interesse da leitura reduz-se evocao do texto verbal comoparte de um todo complexo, inseparvel do musical. EmO Cancionista,Luiz Tatit comentaque a especificidade da cano reside precisamente na interao de duas forascontraditrias seqncias meldicas e unidades lingsticas cuja justaposio etenso transformam a fala em canto. Compor uma cano significa, pois, eliminar afronteira entre fala e canto. Combina-se, assim, a continuidade linear da melodia, cujofluxo se adapta naturalmente s vogais da linguagem verbal, com frico edescontinuidade oferecidas pelas consoantes, que segmentam o discurso verbal emfonemas, palavras, locues, etc. O compositor tem de amalgamar, num todo nico,articulao lingstica e continuidade meldica. A propsito, David Treece acrescentaque, durante a audio, impossvel dissociar msica e linguagem verbal; o ouvinte

    reconhece as inflexes efetuadas pelo compositor como de certa forma derivadas daestrutura meldica subjacente, inerente linguagem verbal. Assim, nas melhores canes,a linha meldica parece brotar espontaneamente do texto verbal.14

    Se a anlise da letra, dissociada da construo musical, mostra-se insatisfatria,a recproca tambm verdadeira. A respeito, Glaura Lucas15 d um testemunho

    11 RUWET. Fonction de la parole dans la musique vocale, p. 67-68. Minha traduo.12WISNIK. O minuto e o milnio, p. 14. Apud TREECE. Melody, Text and Luiz TatitsO Cancionista, p. 207.13TATIT. O Cancionista: composio de canes no Brasil. So Paulo: EDUSP, 1996, p. 9. Apud TREECE.

    Melody, Text and Luiz TatitsO Cancionista, p . 207.14 TREECE. Melody, Text and Luiz TatitsO Cancionista, p. 208.15 Autora deOs sons do rosrio.

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    interessante. A artista e musicloga considera frustrante a execuo meramenteinstrumental de certas canes, especificamente as de Chico Buarque. Divorciada docanto, que articula a letra, a composio musical soa montona, repetitiva, desprovidada beleza que vem fascinando geraes. Tudo isso demonstra a necessidade de umaabordagem integrada, que considere no apenas o elemento verbal, mas tambm o

    musical, articulados na cano, sem esquecer seus aspectos scio-culturais. No Brasil,essa dupla abordagem vem sendo exemplarmente praticada por dois pesquisadores jcitados, Jos Miguel Wisnik e Luiz Tatit. No por acaso, os dois acadmicos so tambmmusiclogos e compositores. No exterior, um estudo de Lawrence Kramer sobre o libretodo oratrio de Haydn A criaoexemplifica a mesma abordagem integrada da composiovocal.16 Kramer salienta a funo ideolgica da obra: legitimar a rgida estrutura socialvigente poca da composio. Na Viena de 1791, uma ordem essencialmente patriarcalpressupunha a completa sujeio da mulher. Previsivelmente, o libreto do oratrio deHaydn endossa a submisso de Eva a Ado. O sucesso de sua obra deve-se, entretanto,

    perfeita correspondncias entre o texto verbal e a composio musical. Como exemplo,Kramer cita a ria de Uriel,Mit Wrd und Hoheit angetan. Quando Ado entoa: folge mir(obedece-me), Eva responde dir gehorchen (obedecer-te), acrescentando Unddir gehorchen bringt / Mir Freude, Glck und Ruhm (e obedecer-te me traz / Alegria,felicidade e glria). Essas palavras so realadas pela construo musical: um sofisticadomelisma sublinha e prolonga a palavra chave Freude (alegria), enfatizando o jbiloque supostamente recompensa a submisso feminina.

    A musicloga Ruth A. Solie oferece uma anlise semelhante do ciclo de canesFrauenliebe und -leben,de Schumann, com versos de Adelbert von Chamisso. Tambm

    essa pesquisadora denuncia o conluio entre linguagem verbal e retrica musical. Ascanes, de cunho hortativo, visam claramente convencer a mulher a deixar-se moldarpela ideologia patriarcal, idealizada no texto verbal e reforada pela seduo da msica.Composta por um homem, a letra das canes ficticiamente d voz a uma mulher, quecelebra a existncia feminina, da juventude velhice. Constitui-se, assim, um atoautobiogrfico esprio,17 pois h um ele atrs do ela aparente. Transvertida emcanto feminino, a persona lrica narradora faz-se porta-voz da perspectiva patriarcal. Anarrativa cantada no espelha a experincia da mulher, e sim uma fantasia masculina:o amor submisso e incondicional que o paterfamiliasespera da esposa.

    A anlise da estrutura musical, exaustivamente empreendida por Solie, confirma suainterpretao do texto verbal. Entre os trechos ilustrativos, a autora destaca o posldio. Eleno constitui um simples eplogo, pois tambm recapitula a melodia da primeira cano.Sugere-se assim um ciclo repetitivo, eterno, miticamente associado feminilidade pelaideologia patriarcal. A figura musical da primeira cano j se revela cclica: o fim incorporase ao princpio, tanto do ponto de vista rtmico quanto do harmnico. A composio cclicainicia e encerra, assim, emoldurando-a, a melodia da primeira cano. Por sua vez, estaemoldura todo o ciclo. O texto verbal e o musical aliam-se para enfatizar o processo derepetio, o tempo abrangente e infinito, associado em muitas culturas representao

    16KRAMER. Music and representation, p. 159-160.17 SOLIE. The Gendered Self in SchumannsFrauenliebeSongs.

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    da mulher. A repetio caracteriza tambm a narrativa cantada emFrauenliebe,quedescreve a retomada, pela filha e neta, da experincia da protagonista. Privada daespecificidade de sua vivncia e da participao ativa no processo histrico, a heronalimita-se a uma existncia mtica, ritualstica, fadada repetio. Reforando essaidia com a construo musical, as estrofes do poema parecem inconclusas, cada uma

    sendo subvertida por uma cadncia enganadora. Quando se aproxima o final, a estrofe novamente absorvida pelo fim/princpio do motivo musical cclico, sublinhando acoerncia entre letra e composio musical.

    Uma integrao semelhante entre construo musical e verbal, que, por sua vez, evocao social, pode ser exemplificada por canes brasileiras. Entre essas, destaco Malandrode Chico Buarque, que introduzpera do Malandro(1978), comdia musical resultanteda transcriao das peasThe Beggars Opera, de John Gay, eDreigroschenoper,de BertoltBrecht. A meu ver, essa cano de Chico merece particular ateno, como exemplarprojeo da figura de um cone da cultura brasileira, o malandro. Conhecido por seus

    dons de inteligncia, encanto e lirismo, ele tem sido estudado por sua posio liminarentre a ordem e a desordem, no raro associada identidade nacional.A melodia de Malandro, tomada de emprstimo cano Moritat, composta

    por Kurt Weill para aOperade Brecht, transcriada por Chico em ritmo de samba. Amelodia de Moritat repete-se quase monotonamente. Seu inicio, retomado em toda acano, serve para dividir a composio nos diversos segmentos rtmico-meldicoscoincidentes com as subdivises da letra em quadras. Estas constam de heptasslabos,tpicos do cancioneiro popular, com os tempos fortes uniformemente marcados na terceirae na ltima slaba de cada verso. A adoo do ritmo de samba, adequado construo

    de figuras nacionais como a baiana ou o prprio malandro, , na verdade, a principalmetamorfose introduzida por Chico na criao musical de Weill. Em sua comdia musical,Chico na verdade transforma personagens da pea inglesa em diferentes verses domalandro brasileiro. O samba que inicia aperabrasileira debuxa o malandro comofigura emblemtica dos grupos explorados no mundo globalizado. Emerge a um dadovalioso para a crtica cultural: a ambivalncia da noo de malandro. Na criao deChico, essa figura pode associar-se a grupos tica e socialmente antagnicos, no cenrionacional e internacional. De um lado, encontram-se os pequenos malandros. So elesas vtimas dos grandes malandros, assentados nos centros do poder. A letra de Chicodescreve o processo de explorao em toda a cadeia socio-econmico-produtiva.Menciona primeiro um pequeno malandro, caloteiro, demasiado pobre para pagar suacachaa. Sucessivamente, o texto cita outros personagens, presentes numa cadeiaascendente de malandragem: o produtor da bebida, o usineiro, os intermedirios botequineiro, distribuidor at chegar aos exportadores e eventuais importadores. Nohemisfrio norte, so estes os grandes malandros, os exploradores, que controlam omercado internacional e barram o produto brasileiro. As primeiras quadras da letra, noPrlogo do Primeiro Ato, relatam:

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    O malandro / Na durezaSenta mesa / Do cafBebe um gole / De cachaaAcha graa / E d no p

    O garom no / PrejuzoSem sorriso / Sem fregusDe passagem / Pela caixaD uma baixa / No portugus

    O galego / Acha estranhoQue o seu ganho / T um horrorPega o lpis / Soma os canosPassa os danos / Pro distribuidor

    Mas o frete / V que ao todoH um engodo / Nos papisE pra cima / Do alambiqueD um trambique / De cem mil ris

    O usineiro / Nessa lutaGrita puta / Que o pariuNo idiota / Tranca a notaLesa o Banco / Do Brasil.

    Nosso banco / T cotadoNo mercado / ExteriorEnto taxa / A cachaaA um preo / Assustador

    Mas os ianques / Com seus tanquesTm bem mais o / Que fazerE probem / Os soldadosAliados / De beber.

    A partir da, a letra narra a reverso da srie de golpes que compem a cadeia daexplorao. Refazendo, em sentido inverso, o caminho percorrido, o texto repassa os elosanteriores: banqueiros, exportadores, usineiros, porturios, botequineiro at a partemais fraca da corrente, o malandro caloteiro. Ele e o garom, modesto assalariado, soos nicos penalizados. Para os demais, vale a impunidade. As quadras finais salientam ainverso do processo:

    A cachaa / T paradaRejeitada / No barrilO alambique / Tem chiliqueContra o Banco / Do Brasil.

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    O usineiro / Faz barulhoCom o orgulho / De produtorMas a sua / Raiva cegaDescarrega / No carregador.

    Este chega / Pro galegoNega arreglo / Cobra maisA cachaa / T de graaMas o frete / Como que faz ?

    O galego / T apertadoPro seu lado / No t bomEnto deixa / Congelada

    A mesada / Do garom.

    O garom v / Um malandroSai gritando / Pega ladroE o malandro / Autuado julgado e condenado culpadoPela situao.

    O desenrolar da cano evidencia a integrao dos constituintes verbal e musical. Acrtica implcita na letra articula-se com virtualmente todos os elementos da composiomusical: o ritmo, o desenho meldico, a intensidade e a durao das notas, o nmero e volumede vozes, o estilo interpretativo, bem como, na quadra final, a utilizao do breque

    caracterizado por ritmo sincopado, com interrupes bruscas, destinadas fala ou improvisaodo cantor, sem acompanhamento musical.18 Em gravao de 1986, canta o prprio Chico,acompanhado de violo e pequeno conjunto, em andamento moderado, no estilo do canto-falado ou cantar baixinho, reminiscente da Bossa Nova e adequado pequena voz dointrprete.19 Uma mesma frase meldica, tomada de emprstimo Moritat de Weill,reaparece duas vezes em cada verso. Pausas musicais, coincidentes com a pausa mtrica emcada heptasslabo, bem como a maior intensidade e durao da ltima nota, indicam o fim eo iminente reaparecimento de cada ocorrncia meldica. Esta termina com um tonemaascendente, suspensivo, que sugere a expectativa de continuidade do processo, como convm

    ao carter cclico da explorao, denunciada pela letra.Na interpretao, o timbre e a reduzida altura da voz do cantor simulam o tom deconversao, compatvel com a coloquialidade da letra. Acompanhamento e cantovalorizam-se mutuamente, nas breves pausas expressivas. O clmax do processo narrativo,assinalado pela referncia da letra chegada da cachaa ao mercado internacional, coincidecom o clmax musical: nesse ponto, crescem gradativamente o volume e o nmero das vozesVerifica-se o mesmo entrelaamento entre textualidade e musicalidade quando a letrafaz referncia volta da cachaa a seu ponto de origem, repassando, em sentido inverso,

    18

    Cf. ANDRADE.Dicionrio Musical Brasileiro, p. 71.19Essas observaes referem-se gravao de O Malandro do discopera do Malandroda PolyGram.Edio remasterizada, de 1986. 829 609-2, 1993. CD.

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    os elos da cadeia de explorao. O andamento desacelerado e a menor intensidade damsica coincidem com esse movimento. Um tonema descendente prenuncia o final,quando aumentam novamente o nmero e o volume de vozes, sublinhando o acordogeral para a condenao do pobre malandro.20 As palavras j no so cantadas, masfaladas, como no samba de breque. Como se sabe, o breque, popularizado por Moreira

    da Silva em 1936, como lugar da improvisao, sugere a liberdade, em contraste com amarcha, associada disciplina do trabalho.21 Essa sugesto de liberdade, coincidentecom o final do samba, adapta-se como uma luva temtica daperade Chico Buarque.Reafirma, uma vez mais, o vnculo inextricvel entre letra e composio musical,textualidade e musicalidade, geminadas na cano a forma de arte mais expressivade nossa vida cultural.

    A A A A A B S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C T

    The text discusses different theories contemplating therelationship between the verbal and musical components invocal music, now supporting the supremacy of the verbal overthe musical, now postulating the integration or a dialecticaltension between those two constituents, as well as theirrelationship with the socio-cultural context. By way of illustration, the essay proposes different analyses of forms of interaction operating between words and musical structure inHaydns oratorioThe Creation, Schumanns lieder cycleFrauenliebeand in the song Malandro, from Chico Buarquede Holandas musical comedy,pera do Malandro.

    K K K K K E Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D S

    Word and music, textuality and musicality,ideology and song

    BBBBB I B L I O G R A F I A I B L I O G R A F I A I B L I O G R A F I A I B L I O G R A F I A I B L I O G R A F I A

    ALPERS, John. Lyrical Modes. In: SCHER, Steven Paul (Ed.).Music and Text: CriticalInquiries. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1992, p. 59-74.ANDRADE, Mario de. Teraputica Musical. In: ANDRADE, Mario de. Namoros com a medicina: teraputica musical. So Paulo: Martins; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.ANDRADE, Mario de.Dicionrio musical brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.BANDEIRA, Manuel. Itinerrio de Pasrgada. In: BANDEIRA, Manuel.Poesia completae prosa.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 33-102.BUARQUE, Chico.Letra e Msica 1.So Paulo: Companhia das Letras, 1989.CAMPOS, Augusto de.Balano da Bossa e outras bossas.So Paulo: Perspectiva, 1974.CASTRO, Ruy.Chega de saudade.So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    20Para a anlise de outras canes e de toda apera do Malandro, ver OLIVEIRA.De mendigos e malandros.21 A propsito, cf. SALVADORI.Capoeiras e malandros, p. 176, 203.

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  • 7/29/2019 1377-4279-1-PB Cancao - Letra x Estrutura Musical

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