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FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Jesus e o anúncio do Reino de Deus na teologia de Jon Sobrino: A perspectiva das vítimas e o compromisso de descer da cruz os povos crucificados GILBERTO KRAISCH Orientador: Prof. Dr. João Batista Libanio BELO HORIZONTE 2008

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  • FACULDADE JESUTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

    Jesus e o anncio do Reino de Deus na teologia de Jon Sobrino: A perspectiva das vtimas e o compromisso de descer da cruz os povos crucificados

    GILBERTO KRAISCH

    Orientador: Prof. Dr. Joo Batista Libanio

    BELO HORIZONTE 2008

  • GILBERTO KRAISCH

    Jesus e o anncio do Reino de Deus na teologia de Jon Sobrino: A perspectiva das vtimas e o compromisso de descer da cruz os povos crucificados

    Dissertao apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Teologia. rea de concentrao: Teologia da Prxis Crist Orientador: Prof. Dr. Joo Batista Libanio

    BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia

    2008

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Deus-Trindade: fonte da graa, da esperana e da vida plena.

    A todos os seres humanos excludos, espoliados e marginalizados, sobretudo os da Amrica Latina, que padecem fome, abandono, que no tm o que vestir e onde morar, vtimas da explorao e globalizao econmicas e do abuso de uma sociedade consumista, utilitarista, sem corao e sem amor.

    Ao meu pai, Vicente, e minha me, Margarida, que, na unio de seus coraes e no amor terno, fizeram-se uma s vida, para gerar, em Deus, seus trs filhos, ensinando-nos o caminho da solidariedade e da justia.

    Ao diretor, coordenador, professores, e funcionrios da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia pela ateno e conhecimentos adquiridos.

    Ao orientador, Joo Batista Libanio, pela dedicao e lapidao.

    Aos amigos e amigas do mestrado pela partilha e amizade.

    Diocese de Joinville que me permitiu o estudo.

    Parquia Cristo Operrio pela acolhida e apoio.

    CAPES pelo necessrio apoio financeiro.

  • RESUMO

    Esta pesquisa centra-se no estudo do tema do Reino de Deus em relao com os povos crucificados do continente latino-americano. Busca-se desenvolver o tema na viso do telogo J. Sobrino. Consiste em retomar o tema do Reino num contexto de injustia e pobreza, para suscitar esperana e misericrdia no corao das vtimas deste mundo, sem cair em idias enganadoras ou em teologias alienadoras de conscincias. Trs captulos buscam dar estrutura a esta dissertao: no primeiro, descreve-se a situao desumana do continente latino-americano que marcou profundamente a vida de J. Sobrino; no segundo, desenvolve-se a teologia do Reino de Deus em J. Sobrino na dimenso bblico-teolgica e na organizao sistemtico-teolgica; no terceiro, retomam-se os pontos-chaves das reflexes anteriores para mostrar que a categoria Reino de Deus ilumina a misso da Igreja. J. Sobrino leva a srio o compromisso concreto de descer da cruz os povos crucificados da histria. Para ele, a perspectiva a partir das vtimas, a vitria de Deus sobre a injustia trazida pela ressurreio de Jesus e a esperana no princpio misericrdia manifestam a presena do Reino e iluminam a realidade dos crucificados deste mundo. Palavras-chaves: Reino de Deus, Povo Crucificado, Pobreza, Injustia, Misericrdia, Esperana, Misso.

    SUMMARY

    This research focus on the study of the Kingdom of God theme with relation to the crucified people in Latin American continent. The theme is searched, developed from the theologian J. Sobrino's point of view. One aims at studying the Kingdom theme in the context of poverty and injustice, so that hope and mercy are raised in this world victims' hearts, without falling either into deceiving ideas or theologies which alienate consciousness. This dissertation is structured in three chapters: in the first, one describes the inhuman situation of Latin American continent, which deeply struck J. Sobrino's life; in the second, one develops the Kingdom of God theology in J. Sobrino, both in the theological-biblical dimension and in the theological-systematic organization; in the third, one retakes the key points of the previous chapters reflections to show that the category of Kingdom of God illuminates the mission of the Church. J. Sobrino seriously makes the concrete commitment to taking the crucified people of history down the cross. For him, the victims' perspective, God's victory against injustice brought in by Jesus' resurrection and hope in the mercy principle, manifest the Kingdom's presence and illuminate the reality of those who are crucified in this world. Key words: Kingdom of God, Crucified People, Poverty, Injustice, Mercy, Hope, Mission.

  • SUMRIO

    Introduo............................................................................................................................7 1 Povos Crucificados ou Vtimas da Histria......................................................................13

    1.1 Jon Sobrino e o espao vivencial de sua produo teolgica....................................13 1.1.1 Breve biografia de Jon Sobrino..........................................................................14 1.1.2 Traos significativos da teologia de Jon Sobrino...............................................15 1.1.3 O despertar teolgico de Jon Sobrino.................................................................17

    1.2 Descrio da realidade da pobreza salvadorenha......................................................20 1.2.1 Conceituao: povos crucificados e/ou vtimas da histria...............................21 1.2.2 Perseguies ao povo salvadorenho no final da dcada de setenta...................25 1.2.3 Panorama da realidade atual da Amrica Latina e salvadorenha......................31 1.2.4 Equiparao da realidade salvadorenha com a latino-americana......................35

    1.3 Os pobres da Amrica Latina na viso de Jon Sobrino.............................................40 1.4 A categoria Reino de Deus na Teologia da Libertao.............................................44 1.5 Concluso..................................................................................................................47

    2 A Categoria Reino de Deus no pensamento de Jon Sobrino............................................50 2.1 Categoria Reino de Deus: desenvolvimento bblico-teolgico.................................50

    2.1.1 Via nocional: a esperada utopia no meio da misria humana...........................51 2.1.2 Via do destinatrio: Reino de Deus dos pobres................................................56 2.1.3 Via da prtica de Jesus......................................................................................62

    2.2 Categoria Reino de Deus: organizao sistemtico-teolgica..................................73 2.2.1 Jesus como mediador absoluto do Reino de Deus.............................................73 2.2.2 A centralidade do Reino anunciado por Jesus em favor dos pobres..................80

    2.3 Concluso..................................................................................................................92 3 A vivncia do Reino de Deus sob a luz dos povos crucificados na teologia de Jon

    Sobrino.............................................................................................................................95 3.1 Perspectiva a partir das vtimas deste mundo: a esperana da proximidade

    de Cristo e do Reino de Deus...................................................................................96 3.2 Que significa descer da cruz o povo crucificado hoje?.........................................100

    3.3 Que novidade traz a ressurreio de Jesus para os povos crucificados na construo do Reino de Deus?........................................................................102

    3.3.1 Teolgica........................................................................................................... 103 3.3.2 Cristolgica.........................................................................................................104 3.3.3 Antropolgica.....................................................................................................104 3.3.4 Comunitria........................................................................................................106

    3.4 A esperana no princpio misericrdia como sinal do Reino de Deus..................107 3.5 Exigncias pastorais do princpio misericrdia.....................................................110

    3.5.1 Orientar a vida com a atitude misericordiosa do perdo-acolhida.....................112 3.5.2 A vivncia da prxis misericordiosa na histria fortalece a f e

    a esperana dos pobres.......................................................................................114 3.6 A histria como lugar de salvao para as vtimas na reflexo teolgica de Jon

    Sobrino....................................................................................................................117 3.6.1 A manifestao atual de Deus na histria.........................................................118 3.6.2 A reao misericordiosa como intellectus amoris............................................119 3.6.3 A opo pelos pobres como pr-compreenso da teologia...............................119 3.6.4 Eixos da teologia do princpio misericrdia como salvao na histria.......121

    3.7 Concluso................................................................................................................123 Concluso.........................................................................................................................126 Referncias Bibliogrficas...............................................................................................131

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    SIGLAS

    AT Antigo Testamento

    CAFTA-DR Acordo de Livre Comrcio da Amrica Central e Repblica Dominicana

    CDH Comisso dos Direitos Humanos

    CELADE Centro Latino-Americano de Demografia

    CEPAL Comisso Econmica para Amrica Latina e o Caribe

    CRM Coordenadoria Revolucionria de Massas

    CVI Cruz Vermelha Internacional

    DEI Departamento Ecumnico de Investigaes

    DH Dignitatis Humanae

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FMLN Partido da Frente Farabundo Mart de Libertao Nacional

    GS Gaudium et Spes

    NT Novo Testamento

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    SCSASS Secretaria de Comunicao Social do Arcebispado de San Salvador

    SRS Sollicitudo Rei Socialis

    UCA Universidade Centro Americana

  • INTRODUO 1 Horizonte temtico da pesquisa e sua relevncia

    Numa realidade como a do Terceiro Mundo, J. Sobrino e a Teologia da Libertao vem, na categoria Reino de Deus, a via com maior capacidade de organizar sistematicamente o todo da teologia1. Essa categoria unifica e articula, na reflexo teolgica, transcendncia e histria, teoria e prxis. Supera os perigosos dualismos e oferece a verificao na realizao do transcendente na histria. Alm disso, o Reino de Deus faz redescobrir o anti-reino, o mundo de pecado2.

    A realidade latino-americana clama pelo Reino de Deus. O fato maior na Amrica Latina a massiva e injusta pobreza em que vive a maioria dos seres humanos esmagados sob o peso da vida. Entretanto, o fato mais novo consiste na esperana de vida justa, de libertao. A convico da realidade primria, como pobreza injusta e como exigncia a apostar em favor da vida, leva reformulao da reflexo teolgica como pr-compreenso necessria para entender a Revelao de maneira adequada. Essa Revelao percorre a tarefa teolgica como sinal dos tempos e manifestao da vontade divina. A realidade em si mesma possui seu prprio clamor3.

    Hoje existem povos inteiros injustamente crucificados e oprimidos e que tm esperana de vida. Essa situao para J. Sobrino, sem cair em ingenuidades nem anacronismos, assemelha-se realidade na qual surgiu a noo de Reino de Deus. Por isso, a realidade histrica atual faz com que o Reino de Deus seja hoje mais til que outros conceitos para elaborar teologicamente a realidade. A urgncia do clamor se dirige vinda do Reino de Deus. O compromisso de construir esse Reino, como algo irrenuncivel, exige estar cheio do mesmo esprito presente na vida e na misso de Jesus. A ao do Esprito hoje, na histria, orienta a deciso fundamental da construo do Reino de Deus, que proporcionar a vida dos pobres.

    Para a Teologia da Libertao, o Reino de Deus pe em evidncia a ultimidade da vontade de Deus, seu desgnio, sua transcendncia assim como seu contedo como boa-

    1 Cf. SOBRINO, J. Centralidad del Reino de Dios en la Teologa de la Liberacin. In ELLACURA, I.;

    SOBRINO, J. (orgs.). Mysterium Liberationis: Conceptos fundamentales de la Teologa de la Liberacin. Madrid: Trotta, 1991. v. 1, p. 472-473. 2 Cf. Idem., p. 474.

    3 Cf. Ibidem., p. 475.

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    notcia: o amor e a misericrdia. Deus se faz o Deus das vtimas deste mundo e essa solidariedade chega at os extremos da cruz. O evangelho de Jesus boa-nova para os pobres e estes so a chave para se aproximar, hoje, do evangelho4.

    Esta pesquisa quer redescobrir a importncia da conscincia do Reino de Deus na pregao de Jesus, sob a tica de J. Sobrino e, ao mesmo tempo, deseja abrir espao para a reflexo atual do compromisso cristo com as vtimas da histria.

    2 Limites desta dissertao O tema central desta pesquisa se estrutura na relao entre a categoria Reino de

    Deus e povos crucificados, a partir da cristologia fundamental de J. Sobrino.

    Os limites do horizonte desta pesquisa foram traados na formulao da questo central: Como J. Sobrino desenvolve a categoria Reino de Deus em sua teologia e como essa categoria ilumina a prtica pastoral na realidade de povos crucificados da Amrica Latina? Essa questo perpassa todo o trabalho.

    Outras questes decorrentes do estabelecimento do Estado da Questo servem de suporte para a pesquisa: Qual o significado, o alcance e a relevncia do Reino de Deus e dos povos crucificados na cristologia de J. Sobrino? Qual a repercusso e/ou a contribuio que ele oferece na redescoberta dessas categorias? A partir desta anlise, necessita-se repensar a f crist luz da realidade atual e do evento central: Jesus Cristo. Portanto, como fazer uma releitura da Sagrada Escritura? Como anunciar a esperana na misericrdia aos pobres sem alien-los e sem propor-lhes o recurso violncia?

    A pesquisa no aborda todos os aspectos da vasta produo teolgica de J. Sobrino. Entretanto, concentra-se na perspectiva das vtimas deste mundo e no compromisso de descer da cruz os povos crucificados como chave de leitura hermenutica da tarefa teolgica sobriniana. J. Sobrino constata que Jesus revela a proximidade de Deus atravs do amor misericordioso e da defesa concreta dos pobres e excludos.

    Com relao categoria Reino de Deus, no se tem a inteno de fazer uma exegese bblica, nem uma abordagem histrica completa desse conceito. O propsito contextualizar o autor em questo. Essa contextualizao se faz necessria para melhor compreender a proposta de J. Sobrino de valorizar a categoria Reino de Deus na reflexo

    4 Cf. SOBRINO, J. Jesus na Amrica Latina: seu significado para a f e a cristologia. So Paulo/Petrpolis:

    Loyola/Vozes, 1985. p. 26.

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    teolgica, no atual momento latino-americano.

    3 Novidade e colaborao O presente trabalho se prope a organizar e sistematizar, na cristologia de J.

    Sobrino, a categoria Reino de Deus em relao aos povos crucificados, no contexto latino-americano atual. Essa a especificidade desta pesquisa: uma colaborao til e necessria num momento que exige repensar a f crist luz do Reino de Deus na pregao de Jesus.

    A novidade desta pesquisa repousa na nfase dada questo fundamental relativa ao Reino de Deus, e como esse Reino ilumina a prtica pastoral em favor dos povos crucificados no pensamento de J. Sobrino.

    Na trilha da Teologia da Libertao, J. Sobrino exerce influncia na redescoberta da categoria Reino de Deus e no compromisso cristo com as vtimas deste mundo. Acredita-se que essa reflexo possa trazer alguma contribuio cincia teolgica.

    4 A edificao da pesquisa e os pressupostos metodolgicos Trs captulos buscam dar estrutura a esta dissertao: o primeiro se

    concentrar em construir o marco fundante do espao vivencial da produo teolgica de J. Sobrino. A preocupao central ser em responder pergunta: Quem J. Sobrino e qual a proposta do Evangelho para a superao da situao de pobreza e excluso em El Salvador na sua teologia? Nesse intuito, faz-se mister realar a situao desumana dos povos crucificados do continente latino-americano. J. Sobrino redescobre o pobre como lugar teolgico e como lugar teologal. Sua reflexo metodolgica privilegia os pobres. Leva-os a srio e possibilita atualizao constante da tarefa teolgica. Dessa forma, lana-se a proposta desse Autor na redescoberta, no mbito da Teologia da Libertao, da categoria Reino de Deus em favor dos povos crucificados.

    No segundo, deseja-se responder seguinte questo: Como J. Sobrino desenvolve a categoria Reino de Deus em sua teologia? Esse captulo desenvolver a teologia do Reino de Deus proposta por J. Sobrino, comeando pelo desenvolvimento bblico-teolgico da categoria Reino de Deus e, em seguida, passando para a organizao sistemtico-teolgica dessa categoria. A partir da averiguao da via nocional, do destinatrio e da prtica de Jesus, buscaremos traar os caminhos de compreenso da categoria Reino de Deus na teologia desse Autor. Ele no faz exegese bblica dos textos relativos categoria Reino de Deus, mas oferece elementos histricos significativos da

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    vida de Jesus. Depois, analisaremos os pontos-chaves da cristologia de J. Sobrino em relao realidade do Reino de Deus. Os tpicos abordados Jesus como mediador absoluto do Reino de Deus e a centralidade do Reino de Deus anunciado por Jesus em favor dos povos crucificados buscaro responder s realidades centrais da vida e da pregao de Jesus como Mestre de Nazar.

    O terceiro captulo procurar mostrar que a categoria Reino de Deus ilumina a misso da Igreja. Pergunta-se: Quais as implicaes, na teologia de J. Sobrino, que a categoria Reino de Deus oferece para a prtica pastoral, hoje, em favor da situao dos povos crucificados da histria? O Autor leva a srio o compromisso concreto de descer da cruz os povos crucificados da histria. Para ele, a perspectiva a partir das vtimas, a vitria de Deus sobre a injustia trazida pela ressurreio de Jesus e a esperana no princpio misericrdia manifestam a presena do Reino e iluminam a realidade dos crucificados deste mundo.

    Por fim, na concluso final, sero evidenciados os principais elementos desta pesquisa, os resultados, as contribuies e as verificaes das hipteses de trabalho. As hipteses de trabalho aqui elencadas so decorrentes do estabelecimento do Estado da Questo. Essa dissertao aborda uma temtica abrangente, que envolve elementos e relaes terminolgicas diversas entre as categorias Reino de Deus e povos crucificados, o que comporta uma hiptese complexa e pertinente.

    Para o estudo desta dissertao sero utilizadas as seguintes obras de J. Sobrino: Cristologia a partir da Amrica Latina: esboo a partir do seguimento de Jesus histrico; Jesus na Amrica Latina: seu significado para a f e a cristologia; Espiritualidade da libertao: estrutura e contedos; Jesus, o Libertador: a histria de Jesus de Nazar; A F em Jesus Cristo: ensaio a partir das vtimas; O Princpio Misericrdia: descer da cruz os povos crucificados; Onde est Deus? Terremoto, terrorismo, barbrie e utopia; Fora dos pobres no h salvao: pequenos ensaios utpico-profticos, principalmente o captulo sobre a centralidade do Reino de Deus anunciado por Jesus; Centralidad del Reino de Dios en la Teologa de la Liberacin em Mysterium Liberationis; Jess y el Reino de Dios. Significado y objetivos ltimos de su vida y misin em Sal Terrae. Alm destes, outros textos do Autor contribuiro no aprofundamento do tema.

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    A pesquisa perpassar, a partir de levantamento bibliogrfico, as principais obras teolgicas de J. Sobrino pertinentes ao tema. A partir das leituras e fichamentos das referidas obras, passaremos ao exerccio e mtodo hermenutico para analisar os textos do Autor e realizar a elaborao de uma viso teolgico-sistemtico-pastoral. Buscaremos captar a unidade interna de seu pensamento. O recurso a outros autores certamente se far necessrio para complementar o trabalho e atingir o objetivo proposto. O caminho percorrido ser a interpretao refletida e criativa do contedo teolgico do Autor em questo, a partir de cada tema e subtema escolhidos para a pesquisa.

    O trabalho responde linha de pensamento e/ou ao de J. Sobrino. As respostas s questes foram dadas a partir do estudo das obras desse Autor que aprofundam a categoria Reino de Deus. Depois de cada captulo, oferecem-se as principais concluses, enquanto a concluso final sintetiza toda a pesquisa.

    O contexto ou a problematizao deste trabalho se orienta sob dois aspectos:

    Por um lado, trata-se de responder exigncia objetiva e legtima: explanar e dilatar a verdade sobre Jesus de Nazar com relao ao Reino de Deus no processo histrico. No intuito dos cristos fomentarem as razes da esperana (cf. 1Pd 3,15), a teologia amplia o leque na tentativa de esclarecer os fundamentos da verdade de Cristo;

    Por outro, trata-se de expor a verdade sobre Cristo, de levar tambm em considerao os elementos fundamentais da f real em Cristo, desenvolvida e elaborada pela cristologia libertadora latino-americana.

    Na Amrica Latina um novo repensar teolgico inicia sua caminhada no final dos anos 60. So os primeiros passos da longa e importante marcha que continua at hoje. G. Gutirrez, J. B. Libanio, H. Cmara, J. L. Segundo, I. Ellacura, O. Romero, P. Richard, C. Mesters, L. Boff, C. Boff, A. M. Tepedino e outros oferecem mudana no panorama teolgico e no modo de conceber a vida crist. Essa experincia, vivida numa perspectiva de embate e conflito, nutre e abre novas sendas para o crescimento da conscincia e da prxis teolgica e dialgica sobre o Reino de Deus e os pobres. J. Sobrino expressa a urgente necessidade do zelo teolgico, centrado no mistrio da presena misericordiosa de Deus na histria dos povos crucificados.

    A viso de J. Sobrino se mostra provocativa e desafiadora. Escolhi trabalhar esse Autor porque sua preocupao central com a vida dos pobres, a aterradora evidncia

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    dos povos crucificados na Amrica Latina. Ele recupera a constitutiva e dupla relacionalidade histrica de Jesus: com o Reino de Deus e o Deus do Reino5. Aponta a raiz mais profunda da vida crist como experincia integral e encarnada.

    Segundo J. Sobrino, a vida crist centrada no Deus da vida supera a dicotomia, o dualismo e possibilita o servio proftico do Reino. Ele mergulha nas tenses entre f e vida que orientam a prxis crist. Num continente estigmatizado pela separao to escandalosa entre pobres e ricos, o seguimento de Jesus a servio do Reino significa descer da cruz os pobres.

    O Autor salvadorenho testemunha o Deus do Reino que se dirige de modo prioritrio ao mundo dos excludos e empobrecidos. A irrupo do rosto do Deus da vida presente no mundo se reveste da figura do Deus dos pobres.

    Essa reflexo teolgica justifica a escolha do Autor investigado. O objetivo mostrar as principais idias do pensamento teolgico de J. Sobrino sobre a concepo do Reino de Deus, a partir da articulao entre Reino de Deus e pobres6.

    Outras questes trabalhadas por J. Sobrino, no mencionadas nesta dissertao, ficaro, qui, para algum aprofundamento posterior. Espera-se que essa reflexo possibilite estimular a continuao da pesquisa teolgica nesse tema e nesse Autor. Que ela consiga se unir luta de todos aqueles que buscam, na ao misericordiosa, o sinal da presena do Reino de Deus em favor dos povos crucificados.

    5 Cf. SOBRINO, J. Jesus, o Libertador: a histria de Jesus de Nazar. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 1996. p. 33.

    6 Cf. Idem., p. 196-201.

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    1 Povos Crucificados ou Vtimas da Histria

    Mesmo depois de dois mil anos de histria do cristianismo, o mundo continua marcado por contradies. No continente latino-americano, em sua maioria composto de cristos, povos inteiros continuam crucificados. Enorme parcela de seres humanos vive esmagada sob o peso da vida e sobreviver a maior dificuldade e a morte lenta o destino mais prximo7. Num continente to marcado pelas desigualdades, surge a subespcie dos no-existentes, os marginalizados, os sobrantes, os excludos8.

    A pobreza, a gritante desigualdade social, a cultura da indiferena e do descartvel, a mudana de paradigmas, as rpidas transformaes poltico-econmicas e socioculturais, as revolues tecnolgicas e cientficas carregam um imperativo: repensar a

    f crist luz da realidade atual e a partir do evento central, Jesus de Nazar9. A linguagem encobre a realidade. As tecnologias da informao e das comunicaes e as foras de mercado globais polarizam rapidamente a populao em duas foras irreconciliveis e potencialmente antagnicas: nova elite cosmopolita, que controla as tecnologias e as foras

    de produo, e o crescente nmero de trabalhadores permanentemente demitidos, que tm poucas esperanas e perspectivas de empregos significativos na economia global.

    nesse contexto de pobreza e excluso que se situa o telogo J. Sobrino, em El Salvador. A preocupao central deste captulo ser em responder pergunta: Quem J. Sobrino e qual a proposta do Evangelho para a superao da situao de pobreza e excluso em El Salvador na sua teologia? Para tanto, sero analisados os seguintes tpicos: breve biografia do autor, influncia de seu ambiente para a formulao de sua teologia, descrio da realidade da pobreza salvadorenha, identificao do povo latino-americano como povos crucificados, pobres na Amrica Latina na viso de J. Sobrino e a redescoberta da categoria Reino de Deus, como centro articulador do seu pensamento.

    1.1 Jon Sobrino e o espao vivencial de sua produo teolgica

    A realidade salvadorenha marcou profundamente a vida de J. Sobrino. Ele se manifesta como testemunha da cruel pobreza e da injustia, dos terrveis massacres e

    7 SOBRINO, J. A F em Jesus Cristo: ensaio a partir das vtimas. Petrpolis: Vozes, 2000. p. 13.

    8 Cf. Idem., p. 13.

    9 Cf. Ibidem., p. 14-15.

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    terremotos, e tambm da luminosidade, esperana, criatividade, solidariedade e generosidade sem conta das vtimas de El Salvador10. Vamos conhecer brevemente a vida de J. Sobrino, os traos relevantes de sua teologia e seu despertar teolgico.

    1.1.1 Breve biografia de Jon Sobrino

    J. Sobrino nasceu em Barcelona, na Espanha, no dia 27 de dezembro de 1938. Entrou na Companhia de Jesus em 1956 e foi ordenado sacerdote em 1969. Pertence Provncia da Amrica Central e reside em El Salvador desde 1957, pas que ele adotou como sua ptria. Licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de St Louis dos EUA, em 1963, J. Sobrino obteve o master em Engenharia na mesma Universidade. Sua formao teolgica ocorreu no contexto do esprito do Conclio Vaticano II, e, consequentemente, na aplicao desse Conclio atravs da realizao da II Conferncia Geral do Conselho Episcopal Latino-Americano, em Medelln, no ano de 1968. Doutorou-se em Teologia na Hochschule Sankt Georgen de Frankfurt, na Alemanha, em 1975. Sua tese versa sobre o Significado de la cruz y resurreccin de Jess en las cristologas sistemticas de W. Pannenberg y J. Moltmann. doutor honoris causa pelas Universidades de Lovain, na Blgica e de Santa Clara, na Califrnia, ambas em 198911.

    Dedicou-se por anos docncia teolgica na Universidade Centro Americana (UCA). Publicou significativas obras nas reas de cristologia e espiritualidade. Sua primeira obra, publicada em 1976, foi Cristologia a partir da Amrica Latina: esboo a partir do seguimento do Jesus histrico: obra que o insere entre os telogos da libertao. Outros livros publicados em portugus: Ressurreio da verdadeira Igreja: os pobres, lugar teolgico da eclesiologia, 1982; Jesus na Amrica Latina: seu significado para a f e a cristologia, 1985; Espiritualidade da libertao: estrutura e contedos, 1992; O Princpio Misericrdia: descer da cruz os povos crucificados, 1994; Jesus, o Libertador: a histria de Jesus de Nazar, 1996; A F em Jesus Cristo: ensaio a partir das vtimas, 2000; Onde est Deus? Terremoto, terrorismo, barbrie e utopia, 2007; Fora dos pobres no h salvao: pequenos ensaios utpico-profticos, 2008.

    J. Sobrino foi assessor teolgico de O. Romero, arcebispo de San Salvador,

    10 Cf. SOBRINO, J. O Princpio Misericrdia: descer da cruz os povos crucificados. Petrpolis: Vozes, 1994.

    p. 16. 11

    Revista On-Line do Instituto Humanitas Unisinos www.unisinos.br/ihu, acessado no dia 19/07/2008.

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    assassinado pela direita salvadorenha em maro de 1980. Escapou do atentado realizado por militares do exrcito em novembro de 1989, quando seis colegas jesutas e duas mulheres foram barbaramente assassinados na UCA, entre os quais o telogo I. Ellacura, reitor da mesma universidade. responsvel pelo Centro de Pastoral Dom Oscar Romero, e pertence ao comit editorial da Revista Internacional de Teologia Concilium12.

    1.1.2 Traos significativos da teologia de Jon Sobrino

    O trao caracterstico da cristologia de J. Sobrino, presente na Teologia da Libertao, a nfase no Jesus histrico, no Jesus que vem narrado nos Evangelhos. Trata-se de algum marcado pelo princpio misericrdia, pela dinmica da hospitalidade e da acolhida. Em Jesus transparece a face do Deus amoroso, com entranhas de ternura e misericrdia, que se compadece dos mais pobres e excludos. O Jesus histrico o ponto de partida da cristologia sobriniana13. A realidade ltima para Jesus no foi ele mesmo, nem a Igreja, mas o Reino de Deus, como Reino de afirmao da vida.

    A Amrica Latina, continente cristo em massa, viveu a clamorosa opresso

    sem que a f em Cristo a tenha questionado e sem que a imagem de Cristo tenha servido sequer para suspeitar que algo estava mal no continente. A partir da perspectiva libertadora, a nova imagem de Cristo expressa pelo menos essa suspeita, e, profunda e concretamente, significa a superao dessa escandalosa situao14.

    Para J. Sobrino, certas cristologias oferecem imagens de Cristo como sublime abstrao. Exemplos: a imagem do Cristo-amor, sem incluir as formas fundamentais do amor de Jesus, como a justia e a parcialidade em favor dos pobres; a imagem de Cristo-poder, sem referncia ao poder-servio vivido por Cristo; a imagem de Cristo-reconciliador, sem levar em conta Jesus de Nazar: a denncia proftica, as bem-aventuranas aos pobres, a concretizao do amor na defesa dos pobres e a exigncia radical de converso aos opressores... J. Sobrino observa o perigo da soteriologia tradicional. Interpreta-se a cruz como reconciliao transcendente de Deus com os homens, mas fora do mbito do conflito histrico causado pelos pecados histricos, que levam Jesus

    12 Idem.

    13 Cf. SOBRINO, Jesus, o Libertador, p. 62; Cf. SOBRINO, Jesus na Amrica Latina, p. 108-112.

    14 Cf. SOBRINO, Jesus, o Libertador, p. 30.

  • 16

    cruz e hoje conduzem a ela os povos oprimidos15. J. Sobrino v como questo problemtica a absolutizao absoluta de Cristo.

    O perigo se mostra em ignorar a constitutiva e a dupla relacionalidade histrica de Jesus entre o Reino de Deus e o Deus do Reino16. J. Sobrino acrescenta a relacionalidade histrica relacionalidade trinitria transcendente. Jesus no viveu para si mesmo, mas teve um plo referencial no Reino de Deus, onde mesmo depois da ressurreio referido ao Pai, at que este seja tudo em todos (cf. 1Cor 15,28)17.

    O risco para a reflexo teolgica e para a vida crist se estabelece quando h uma ditadura de Cristo na Igreja e no mistrio da salvao. O receio do Terceiro Mundo consiste num Cristo sem Reino, um mediador sem mediao. Em nome da concentrao no mediador, corre-se o risco de relegar a segundo plano as exigncias da mediao do Reino, que se traduz pela realizao histrica da vontade do Pai. A preocupao central da teologia sobriniana a vida dos pobres, a aterradora evidncia dos povos crucificados na Amrica Latina. A retomada do Jesus histrico significa a superao de imagens alienantes de sculos de exerccio da f no Cristo18.

    A recuperao do novo rosto de Cristo libertador funciona, na prtica, como desmascaramento do que h de acristo e anticristo nas imagens de Jesus, superando e at contrapondo as imagens alienantes das cristologias. a despacificao de Cristo e sua desidolatrizao, ou seja, a afirmao da imagem de Cristo que no permite a iseno dos sujeitos face aos apelos do real, e a utilizao de seu nome para a continuidade da opresso19.

    A preocupao com o Jesus histrico na Amrica Latina marcada pela hermenutica da prxis: para que haja uma relao positiva com o Jesus histrico necessrio que se relacione adequadamente com ele, mediante a prxis do seguimento20. Afinal, o mais histrico de Jesus sua prtica, e acrescenta o esprito com que a realizou e com o qual a imbuiu: honradez para com a realidade, parcialidade para com o pequeno, misericrdia fundante, fidelidade ao mistrio de Deus21. Essa mesma prtica e esprito que foram transmitidos por Jesus se tornam convocao para os cristos no prosseguimento de

    15 Cf. Idem., p. 30-33.

    16 Cf. Ibidem., p. 33.75.

    17 Cf. Ibidem., p. 33.

    18 Cf. Ibidem., p. 34.

    19 Cf. Ibidem., p. 82.

    20 Cf. Idem.

    21 Ibidem., p. 84.

  • 17

    sua causa na histria. Acrescentar o esprito prtica de Jesus constitui numa relativa novidade que foi exigida pela experincia latino-americana. J. Sobrino parte da conscincia de que mediante o Jesus histrico e a prxis de seu seguimento que se d o acesso ao Cristo da f22.

    A reflexo teolgica latino-americana embarca na sensibilidade face aos tremendos desafios que acompanham a realidade sofrida dos pobres no continente. A ateno ao mundo dos pobres consiste num marco essencial da teologia de J. Sobrino. Ele mudou de lugar social quando se deparou com o povo pobre e os sofrimentos de El Salvador. Sua obra, em particular sua cristologia, resulta da experincia evanglica, da ruptura epistemolgica e do descobrimento dos pobres como lugar teolgico. Seu ensinamento cristolgico recupera a autoridade evanglica dos pobres, a preferncia de Deus por revelar-se aos pobres, o dom do Reino de Deus em primeiro lugar aos pobres23. J. Sobrino redescobre a categoria do pobre como lugar teolgico e como lugar teologal. Sua reflexo metodolgica privilegia os pobres. Leva-os a srio e possibilita atualizao constante da tarefa teolgica.

    O caminho teolgico desse Autor se traduz em f e esperana, pela fidelidade em sua longa e conhecida experincia de sofrimento compartilhada com o povo, com o arcebispo Romero e com seus irmos assassinados. Esse percurso torna-se um mtodo cristolgico incontornvel de coerncia e convico crist.

    1.1.3 O despertar teolgico de Jon Sobrino

    Sobre quais fundamentos J. Sobrino constri a cristologia latino-americana? Para mergulhar na cristologia libertadora de J. Sobrino, faz-se necessrio ouvir a pergunta de Jesus: E vs, quem dizeis que eu sou? (Mc 8,29). A resposta reflexiva emerge da historizao e conceitualizao da Amrica Latina e depara-se com a situao dos povos crucificados e de Cristo neles. J. Sobrino se questiona: h algo mais urgente e necessrio sobre o que pensar e o que fazer, do que descer da cruz o povo crucificado da histria?24. Num mundo de vtimas, o telogo salvadorenho faz sua experincia de Deus. Essa experincia no permite a indiferena ante o sofrimento das pessoas e convoca todo ser

    22 Cf. Ibidem., p. 88-89.

    23 Cf. Ibidem., p. 42-61.

    24 Cf. Ibidem., p. 17.

  • 18

    humano reao misericordiosa.

    J. Sobrino descreve como os cristos de El Salvador despertaram, na vida e ao longo da trajetria teolgica, para a verdadeira realidade dos povos crucificados. Esse despertar o levou no somente a purificar sua compreenso da presena de Cristo crucificado no aterrorizante sofrimento dos pobres, mas o interpelou a inclinar-se, como Jesus, com ternura e misericrdia ante as vtimas deste mundo. O despertar para a realidade do mundo oprimido e subjugado25 simbolizou o toque da graa que redimensionou nele, e em outros telogos, o modo de ser e de teologizar. Sua teologia pensada a partir das vtimas e do povo crucificado. O despertar para as vtimas, produto do pecado e da opresso humana, repercutiu em todas as dimenses de sua vida: religiosa, eclesial, intelectual e, sobretudo, nas dvidas de f. Seus questionamentos teolgicos passaram a ter primazia sobre outros despertares. A exigncia teolgica se converte na honestidade da realidade histrica de crueldade, represso e mortes injustas de vtimas inocentes. Nessa circunstncia, o rosto de Deus se revela de modo inesperado26. A realidade das vtimas dilata os horizontes. Abrir-se realidade dos pobres significa abrir-se ao Deus da vida e da esperana27.

    Foi a estarrecedora realidade dos povos crucificados que lhe possibilitou abraar a causa dos pobres. O sofrimento do povo e o martrio dos confrades e leigos salvadorenhos o iluminaram e revolucionaram sua vida28. Num primeiro momento, o percurso teolgico e ministerial no o despertou para a verdadeira realidade do mundo empobrecido. Afirma: Ao chegar a El Salvador em 1957, deparei com a terrvel pobreza, mas mesmo vendo-a com os olhos, no a via, e esta pobreza nada comunicava para minha prpria vida de jovem jesuta e de ser humano29. No lhe ocorreu transformao, porque o modo de pensar e de conceber o mundo vinha da Europa. Continua: Eu representava, pois, o tpico missionrio, com boa vontade, e ao mesmo tempo eurocntrico e cego para a realidade30. Mas no tardou acontecer o despertar dogmtico para a singularidade de Deus escondida na realidade dos pobres e vtimas do Terceiro Mundo. Chegou sacudindo e derrubando conceitos referentes f, questionando a imagem de Deus. Os estudos de

    25 SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 12.

    26 Cf. SOBRINO, J. Teologa desde la realidad. In SUSIN, L. C. (org.). O mar se abriu: Trinta anos de

    teologia na Amrica Latina. So Paulo: Loyola, 2000, p. 159-160. 27

    Cf. Idem., p. 160. 28

    Cf. SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 12. 29

    Idem. 30

    Ididem., p. 12-13.

  • 19

    filosofia e teologia desafiaram-no a uma mudana de paradigma. Aprendeu que nem tudo permanecia pronto e encerrado31. Sentiu-se instigado a gerar a dimenso compassiva e misericordiosa da razo.

    Ao despertar do sono dogmtico, J. Sobrino se descobre desadormecido do sono da cruel inumanidade. Os estudos teolgicos contriburam para desvendar-lhe os olhos para o mistrio de Deus que transparece, simultaneamente, de obscuridade e de luminosidade e se revela na histria. A teologia e o mergulho na realidade do mundo dos pobres nortearam-no para descobrir Jesus de Nazar, que no consistia no Cristo abstrato que antes tinha em mente [...]. E ratificou que Cristo no outro seno Jesus, e que este teve uma utopia na qual no pensava antes: o ideal do Reino de Deus32. O acordar do sono da inumanidade abalou forte e dolorosamente a vida de J. Sobrino: como se lhe arrancassem a pele pouco a pouco33. Essa sacudida permitiu-lhe deixar-se tocar pelo Cristo real e averiguar a presena desse Cristo na vida e na histria sofrida do povo pobre e oprimido do Terceiro Mundo34.

    J. Sobrino reconhece a importncia do conhecimento e dos estudos, porm constata a falta de mudana no primordial: o corao. A crucial realidade do povo crucificado e o testemunho dos confrades que lutavam em favor do povo sofrido de El Salvador despertaram-no para a reviravolta no teologizar. Entre estes esto I. Ellacura e o arcebispo Romero, que cooperaram para que seus olhos se abrissem realidade sofrida dos povos crucificados da Amrica Latina, levando-o a reagir com misericrdia35.

    No seu despertar teolgico, o Autor verifica o toque da graa de Deus. O rosto de Deus se revela em circunstncia inesperada e surpreendente36. A realidade latino-americana de povos crucificados o impeliu a se questionar e a sondar no s a existncia de Deus, mas tambm a dos dolos. Descoberta teolgica significativa para ele foi a releitura da Escritura: a relao transcendental entre Deus e os pobres37, sempre presente na Escritura. Essa redescoberta bblica encorajou-o a adotar a conduta do bom samaritano (cf. Lc 10,30-35) para descer da cruz os povos crucificados.

    Com essa experincia do Cristo real, presente nos povos crucificados, J.

    31 Cf. Ididem., p. 13.

    32 Idem.

    33 SOBRINO, Teologa desde la realidad, p. 156.

    34 Cf. SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 14.

    35 Cf. Idem., p. 15.

    36 Cf. SOBRINO, Teologa desde la realidad, p. 159.

    37 Idem., p. 161.

  • 20

    Sobrino reestrutura a pergunta teolgica fundamental: somos ou no humanos e, para os crentes, nossa f ou no humana?38. Ele responde atravs do testemunho de vida, pela alegria de se sentir humano e homem de f. Mas isto sob a condio de transformar a mente, os olhos e o corao e encher-se de reao misericordiosa39.

    O salto na compreenso do teologizar e o despertar para as inmeras penrias na realidade dos pobres avivaram-lhe a urgncia de relacionar estreitamente a f e a prtica. J. Sobrino perscruta a teologia no s como intellectus fidei, mas como intellectus misericordiae, ou melhor, assumindo a misericrdia divino-humana na prxis40. O desabrochar do sono da inumanidade para a realidade da humanidade lhe ensinou a ver Deus a partir do mundo das vtimas, e a ver o mundo das vtimas a partir de Deus41.

    A assimilao da realidade das vtimas do Terceiro Mundo proporcionou uma reao de misericrdia em favor dos empobrecidos42 e a descoberta do sentido e da alegria da vida43. Desse modo, a misericrdia prevaleceu na vida e na misso teolgica. O testemunho dado em favor dos pobres revela sua compreenso crist e teolgica, reacendendo a opo de dignificar na vida o princpio misericrdia, para descer da cruz os povos crucificados.

    1.2 Descrio da realidade da pobreza salvadorenha

    O que se prope nesse captulo no fazer uma anlise scio-poltica e econmica da realidade de El salvador. O que se busca compreender o contexto provocador de pobreza e excluso que instiga J. Sobrino a fazer algumas perguntas que passaro a nortear toda sua reflexo teolgica. Numa situao de extrema injustia, o telogo se pergunta: Como so as vtimas deste mundo? Como se configuraram essas vtimas na histria poltica, social, econmica, religiosa e cultural da Amrica Central e, sobretudo, de El Salvador? Quais os imprios que se apossam do continente latino-americano, atravs do exrcito ou do sistema econmico? Como funcionam as oligarquias e empresas multinacionais? E o poder das Foras Armadas? Por que a liberalizao do

    38 SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 15.

    39 Cf. Idem.

    40 Cf. Ibidem., p. 65-67.

    41 Cf. Ibidem., p. 28.

    42 Cf. Ibidem., p. 26.

    43 Cf. Ibidem., p. 28.

  • 21

    comrcio se tornou hoje uma questo crtica? Essas perguntas sero respondidas a partir da compreenso do conceito de

    povos crucificados e/ou vtimas da histria. Na realidade centro-americana, milhes de inocentes ou povos inteiros crucificados morrem nas mos de seus opressores44.

    No cerne de cada situao de crise e de desejo de mudana, sobrevm a questo bsica do poder. No se transforma a sociedade sem definir atitudes perante o poder existente. O projeto democrtico no inclui a maioria dos pobres: eles no so considerados nessa viso de sociedade45. O prprio conceito de democracia fica desmoralizado por essa interpretao inadequada. O que as vtimas de fato revelam que tal democracia se alimenta de vtimas reais. A globalizao se evidencia como parte da ideologia desta pseudo-democracia, oferecendo um mundo homogneo. As vtimas, porm, deixam claro que, na globalizao, nem tudo to homogneo assim: existem vencedores e derrotados46.

    1.2.1 Conceituao: povos crucificados e/ou vtimas da histria

    A linguagem no consegue comunicar todo o mal que o mundo latino-americano vive. Fala-se de povos crucificados47, linguagem metafrica, mas, certamente, que comunica a magnitude histrica dessa runa e de seu significado para a f. J. Sobrino admite trs tipos de linguagem para expressar a realidade dos povos crucificados48:

    a) Os povos crucificados tornam-se linguagem til e necessria em dimenso ftico-real, porque cruz significa morte, qual se submetem, de mil maneiras, os povos latino-americanos. Morte lenta, mas real, causada pela pobreza gerada por estruturas injustas; morte rpida e violenta, por causa de represses e guerras. b) Os povos crucificados tornam-se linguagem til e necessria tambm em

    44 Cf. Idibem., p. 16.

    45 Cf. SOBRINO, J. Aniquilao do outro. Memria das vtimas. Reflexo proftico-utpica. Concilium,

    Petrpolis, n. 240, p. 20, 1992. 46

    Cf. SOBRINO, A F em Jesus Cristo, p. 16. Cf. MICHALET, C-A. O que mundializao? Pequeno tratado para uso dos que ainda no sabem se devem ser a favor ou contra. So Paulo: Loyola, 2003. p. 180-189. 47

    Foi I. Ellacura quem pela primeira vez cunhou a expresso povos crucificados. Cf. ELLACURA, I. El pueblo crucificado: ensayo de soteriologa histrica. Revista Latinoamerica de Teologa, San Salvador, n. 18, p. 305-333, 1989; Cf. ELLACURA, I. The crucified people. In SOBRINO, J.; ELLACURA, I. Systematic Theology: Perspectives from liberation theology. New York: Orbis Books, 1996. p. 257-278. 48

    Cf. SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 85-86; Cf. SOBRINO, J. Os povos crucificados, atual servo sofredor de Jav: memria de Igncio Ellacura. Concilium, Petrpolis, n. 232, p. 118-119, 1990.

  • 22

    dimenso histrico-tica, porque cruz expressa um tipo de morte infligida de modo ativo. Morrer crucificado no significa simplesmente morrer, mas ser morto; significa que existem vtimas e opressores. Por mais que se queira edulcorar o fato, a verdade da existncia da cruz dos povos latino-americanos se alicera na apropriao do continente por diferentes dominadores: no passado, os espanhis e portugueses; hoje, os EUA e seus aliados. Esses usam de exrcitos ou de sistemas econmicos, polticos, culturais e religiosos, em conivncia com os poderes locais. c) Finalmente, os povos crucificados tornam-se linguagem til e necessria em dimenso religiosa, porque cruz evoca pecado e graa, condenao e salvao, ao dos homens e ao de Deus.

    A dramtica imagem de povo crucificado49 une os rostos desfigurados das vtimas do mundo com a fisionomia dolorosa do messias sofredor. Povo crucificado significa: o sinal dos tempos, o lugar de revelao e o Servo de Jav. Essa expresso serve de contedo para a metfora messinica luz para as naes (Is 42,6). Essas intuies de I. Ellacura, adotadas por J. Sobrino, fundamentam a categoria povo crucificado.

    1.2.1.1 Sinal dos tempos

    J. Sobrino, baseado em palavras de I. Ellacura50, lembra que, antes de ser sinal dos tempos, o povo crucificado realidade histrica. A expresso povo crucificado aponta para a vasta, mas especfica, classe de pessoas que vivem na sombra da morte; uma esmagadora maioria no continente latino-americano51. Como conseqncia da atual ordem mundial, surge a subespcie dos no-existentes, os sobrantes, os excludos52.

    A linguagem do povo crucificado desafia e desmascara os defensores da atual ordem mundial. I. Ellacura enfatiza o carter estrutural do pecado histrico, ao descrever o povo crucificado como corpo coletivo que constitui a maioria da humanidade. Esse corpo coletivo est numa condio de crucificao, devido maneira

    49 Cunhada por I. Ellacura, essa expresso denota a realidade histrica que funciona como sinal crucial dos

    tempos recentes. Cf. ELLACURA, El pueblo, p. 305-333; Cf. ELLACURA, The crucified people, p. 257-278. 50

    Cf. ELLACURA, I. Discernir el signo de los tiempos. Diakona, Mangua, n. 17, p. 58, 1981; Cf. SOBRINO, J. Fora dos pobres no h salvao: pequenos ensaios utpico-profticos. So Paulo: Paulinas, 2008. p. 20. 51

    Cf. SOBRINO, J. Onde est Deus? Terremoto, terrorismo, barbrie e utopia. So Leopoldo: Sinodal, 2007. p. 87-88. 52

    SOBRINO, A F em Jesus Cristo, p. 13.

  • 23

    como a sociedade organizada e mantida pela minoria que exerce o poder. Tomados esses fatores em conjunto e dado o impacto concreto na histria, chega-se estrutura do pecado histrico53. Essa anlise de sistemas globais em termos de pecado histrico d nomes a crucificadores individuais e coletivos. Alm disso, desvenda os mecanismos de tortura e execuo escondidos nas realidades mundanas, tais como os programas de ajuste estrutural, regies de livre comrcio, medidas de segurana nacional e guerra ao terrorismo. Portanto, a expresso povo crucificado cobra uma prestao de contas por parte dos que lucram com a crucificao.

    1.2.1.2 Lugar de revelao

    O povo crucificado revela onde os cristos experimentam Deus na histria. Ele no apenas aponta, como sinal, para a realidade histrica, mas encarna o lcus onde o humano e o divino se entrecruzam, lugar revelatrio exemplar54.

    A familiaridade com os Exerccios Espirituais de Santo Incio de Loyola levou I. Ellacura a repensar a f. Na meditao dos Exerccios, Santo Incio instrui o exercitante a perguntar-se diante do Crucificado: O que fiz por Cristo? O que fao por Cristo? E o que preciso fazer por Cristo?55. Baseado nessa experincia, I. Ellacura recomenda aos leitores que abram os coraes aos que padecem misria, fome, opresso e represso e, diante deste povo assim crucificado, se perguntem: O que fiz para crucific-lo? O que fao para acabar com a crucificao? O que necessito fazer para que este povo ressuscite?56.

    A linguagem do povo crucificado, usada por I. Ellacura, ilumina a realidade histrica e historiza a realidade a fim de revelar a contnua presena de Jesus Cristo na histria. Jesus crucificado identificado com o povo crucificado e o seguimento dele proposto quando se trabalha para descer esse povo da cruz. Recupera-se o paradoxo central

    53 Cf. ELLACURA, I. El pueblo crucificado. In ELLACURA, I; SOBRINO, J. Mysterium Liberationis:

    Conceptos fundamentales de la Teologa de la Liberacin. Madrid: Trotta, 1994. v. 2, p. 202. Como esta obra tem o mesmo nome da anteriormente citada na nota 41, ela ser identificada como El pueblo (ML). 54

    Cf. ELLACURA, I. Los pobres, lugar teolgico en Amrica Latina. Misin Abierta, Madrid, n. 4-5, p. 225-240, 1981. 55

    LOYOLA, I. de. Exerccios espirituais. So Paulo: Loyola, 1985. p. 47 (exerccio n. 53). 56

    Cf. ELLACURA, I. Las Iglesias latinoamericanas interpelan a la Iglesia de Espaa. Sal Terrae, Barcelona, n. 826, p. 230, 1982.

  • 24

    do evangelho: no prprio lugar da morte, Deus revelado como Deus da vida57.

    1.2.1.3 Servo de Jav

    Chamar as vtimas da histria de povo crucificado significa enfrentar a realidade histrica escandalosa e, simultaneamente, redescobrir Deus no mundo. I. Ellacura observa: o que a f crist acrescenta constatao histrica do povo oprimido a suspeita de que, alm de ser o destinatrio principal da obra salvfica, ele ser tambm, na prpria situao crucificada, princpio de salvao para o mundo inteiro58. Para fundamentar essa percepo, I. Ellacura recorre lgica de sofrimento e salvao revelada nos cnticos do Servo Sofredor de Isaas e identificao que o cristianismo faz desse Servo com Jesus59.

    O Servo Sofredor vtima do pecado do mundo torna-se o intermedirio da salvao. A possibilidade de solidariedade redentora emerge da necessidade divina de misericrdia. Nas palavras lapidares de I. Ellacura:

    Somente num difcil ato de f o autor dos cantos do Servo capaz de descobrir justamente o oposto do que aparece aos olhos da histria, precisamente porque v algum carregar os pecados que no cometeu. Tambm pelas conseqncias desses pecados, ele ousa em virtude da prpria injustia da situao atribuir a Deus tudo o que acontece. Deus no pode atribuir a este ato de absoluta injustia histrica seno um valor plenamente salvfico. Deus faz essa atribuio porque o prprio Servo aceitou o destino de salvar os que causaram seus sofrimentos, ao carregar esses mesmos sofrimentos60.

    Como o Servo Sofredor, Jesus luta primeiramente contra o pecado antes de morrer por causa dele e radicaliza o vnculo salvao e sofrimento histrico. Ele no sofreu e morreu simplesmente. Foi torturado e morto pelos inimigos do Reino de Deus porque os desmascarou. Chegou a ser aniquilado por defender a justia. Do mesmo modo, a ressurreio no revela apenas o poder de Deus sobre a morte, mas a vitria de Deus sobre a injustia61. luz da salvao transmitida por Jesus atravs de sua vida histrica, continua renovada e concretizada aps a ressurreio uma histria desfigurada por contnuas

    57 Esta idia corresponde ao que E. Schillebeeckx chama de experincia de contraste negativo. Nas

    experincias de dor, toma-se conscincia, de maneira negativa e dialtica, de um desejo e uma busca de sentido e liberdade, de salvao e felicidade para o futuro. Cf. Jess: la histria de un viviente. Madrid: Cristiandad, 1981. p. 583-586; Cf. God the Future of Man. New York: Sheed and Ward, 1968. p. 152-161. 58

    ELLACURA, El pueblo (ML), p. 202. 59

    Cf. ELLACURA, El pueblo, p. 321-327. 60

    Cf. ELLACURA, El pueblo (ML), p. 209-210. 61

    Cf. SOBRINO, A F em Jesus Cristo, p. 72-73.

  • 25

    crucificaes.

    Surge a questo-chave para a soteriologia histrica: Quem continua, na histria, a funo essencial, a misso salvfica que o Pai confiou ao Filho?62. A resposta

    inclui o povo crucificado na interao de Jesus e do Servo Sofredor de Isaas. Como sinal de contradio, o povo crucificado chama as naes converso; revela o triunfo de Cristo, a ressurreio do Crucificado. Como Servo Sofredor, encarna a esperana contra toda esperana (Rm 4,18). Atravs da prpria negatividade do sofrimento e da morte, o povo crucificado simboliza o Deus libertador63.

    No horizonte complexo da realidade salvadorenha, cheio de negatividades e dramas, ocorre o despertar teolgico de J. Sobrino e da Igreja salvadorenha.

    1.2.2 Perseguies ao povo salvadorenho no fim da dcada de setenta

    El Salvador sofreu o maior massacre de camponeses latino-americanos em proporo sua populao. Em 1932, trinta mil camponeses foram assassinados a mando do ditador Maximiliano Hernndez Martinez (1931-1944)64. No final da dcada de 1970, o governo do general Molina tentou modificar as estruturas agrrias tradicionais em El Salvador. Essa experincia resultou para o governo em uma onda de represso sistemtica. Os camponeses organizaram para defender os direitos mais elementares, mas foram brutalmente reprimidos. Nessa situao de guerra, abandonaram seus povoados e se transformaram em verdadeiros nmades. Os ataques do governo com a aviao e tropas terrestres destruram vidas, plantaes, ranchos e exterminaram animais... Os pais se viram obrigados a carregar os filhos para refgios em lugares inadequados para moradia, entre os pntanos.

    A represso pelas Foras Armadas salvadorenhas corpos policiais, exrcitos e

    62 ELLACURA, El pueblo (ML), p. 189.

    63 Cf. SOBRINO, Jesus, o Libertador, p. 366-381.

    64 Cf. RICHARD, P.; MELENDEZ, G. La Iglesia de los pobres en Amrica Central: un analisis socio-

    politico y teolgico de la Iglesia Centroamricana (1960-1982). Costa Rica: DEI, 1982, p. 46. Em dezembro de 1931 foi deposto Arturo Arajo e instalado na presidncia o general Maximiliano Hernndez Martinez. No incio de 1932, na regio de Izalco, um levante de camponeses se propagou rapidamente por toda a regio ocidental do pas. As foras repressivas do governo, com o apoio dos guardas civis organizados pelos latifundirios e pela burguesia urbana, dizimaram brutalmente a rebelio. Esta massiva campanha de represso teve um saldo de trinta mil camponeses mortos. Esse massacre representou um momento decisivo da histria salvadorenha e a confirmao da aliana entre o grupo oligrquico e os militares.

  • 26

    organizaes paramilitares, todo o complexo aparato repressivo de dominao65 durou por dcadas. Vrios camponeses foram entregues ao prprio destino. Decidiram assentar-se em qualquer lugar onde pudessem trabalhar e viver com dignidade. No entanto, a perseguio continuava, pois esses camponeses viviam em zonas conflituosas ou possuam

    algum familiar na guerrilha66.

    Privilegia-se, nessa pesquisa, o perodo em que o bispo Romero exerceu o ministrio na arquidiocese de San Salvador (1977-1980). Conforme o testemunho de J. Sobrino, esse perodo sem deixar de reconhecer outros acirrou a perseguio Igreja e abriu portas para novo despertar teolgico67.

    Em fevereiro de 1977, chegaram a El Savaldor trs figuras que simbolizavam as principais foras do pas:

    a) O general Romero, que fora ministro da defesa e da segurana pblica de 1972 a 1976 e representava os mais reacionrios, o exrcito e a oligarquia. b) O bispo Romero, eclesistico da linha conservadora. Como secretrio da Conferncia Episcopal de El Salvador impedira a aplicao dos resultados da Conferncia de Medelln na Igreja salvadorenha. Assumiu a liderana da arquidiocese de San Salvador, no lugar do monsenhor Luis Chvez y Gonzlez, que se mostrava aberto a Medelln. c) As Ligas Populares de 28 de fevereiro, que seguiam as pegadas de outras

    organizaes populares j florescentes, smbolo da coragem e determinao do povo salvadorenho68.

    Entre 21 de fevereiro e 12 de maro de 1977 intensificou-se a perseguio contra o povo e a comunidade crist em El Salvador. Prises, torturas, arrombamentos, expulses marcaram esse perodo. Em 12 de maro, o jesuta padre Rutlio Grande e dois companheiros foram assassinados pela oligarquia salvadorenha e pelos servidores armados no caminho de Aguilares. Padre Grande era uma figura-chave de renovao apostlica na arquidiocese. Foi o pioneiro da Igreja salvadorenha na recepo do Conclio Vaticano II e

    65 Cf. SOL, R. Para entender El Salvador. Costa Rica: DEI, 1980. p. 35-52.

    66 Cf. SOBRINO, J. Vivir en tiempo de guerra. Sal Terrae, Barcelona, n. 75, p. 157-163, 1987. J. Sobrino

    conta a reconstruo de um grupo de famlias que retorna ao povoado de Las Vueltas alguns meses depois da destruio feita pela invaso militar no final da dcada de 70. 67

    Cf. SOBRINO, J. Mi recuerdo de Monseor Romero. Revista Latinoamericana de Teologa, San Salvador, n. 16, p. 21-26, 1989. 68

    Cf. CARDENAL, R.; MARTN-BAR, I.; SOBRINO, J. Voz dos sem voz: a palavra proftica de D. Oscar Romero. So Paulo: Paulinas, 1987. p. 11-12.

  • 27

    de Medelln.

    Diante do assassinato do padre Grande e de dois companheiros, o arcebispo Romero fez a defesa dos camponeses, convertendo-se em voz dos sem-voz. J. Sobrino declara que foi os sofrimentos dos pobres que sacudiu o arcebispo. Os pobres exigiam dele converso e lhe ofereciam luz e esperana.

    O arcebispo Romero se empenhou nessa mudana. Explicou ao povo o sentido da Igreja, as denncias profticas, a defesa dos pobres, a represso ao povo, a perseguio Igreja... Exigiu do governo a investigao dos assassinatos e prometeu sua gente que a Igreja estaria em defesa da justia. Rompeu publicamente sua participao nos atos oficiais do governo, enquanto no se esclarecessem os crimes e cessasse a represso69. Nessa atitude do arcebispo Romero, J. Sobrino encontrou um vlido motivo para sua atividade teolgica70.

    Os assassinatos do Padre Grande e de outros cristos impressionaram at o mago a sensibilidade do arcebispo Romero. Assim, pouco a pouco, a voz do arcebispo se erguia para denunciar a injustia pecaminosa que provocava a morte do povo salvadorenho. Transformou sua voz no clamor pelo sangue do povo massacrado. Ele mesmo se fez clamor pela justia e dignidade do povo pisoteado, o que o levou a uma f viva e integrada71.

    Em julho de 1977, o general Romero assumiu o poder em El Salvador. Com ele, consagra-se um programa poltico repressivo, que abandonava as intenes reformistas e entregava o pas aos interesses financeiros agrcolas e exportadores reacionrios. O caf, principal fonte de economia salvadorenha, alcanou os preos mais elevados, mesmo no mercado internacional.

    A represso ao povo provocada pelo colapso do programa de reforma agrria e, principalmente, a hipocrisia que decorreu das eleies fraudulentas que deram posse ao general Romero como presidente, constituram as caractersticas mais importantes da vida em El Salvador durante a primeira metade de 197772. Trs grandes massacres atingiram o povo salvadorenho nesse perodo, alm de outros assassinatos, como o do padre Alfonso

    69 Cf. SOBRINO, Mi recuerdo, p. 13-14.

    70 Cf. Ibidem., p. 25.

    71 Cf. HERNNDEZ-PICO, J. Un cristianismo vivo: reflexes teolgicas desde Centroamrica. Salamanca:

    Sgueme, 1987. p. 102-103. 72

    Todavia, j em 1972, constatou-se fraude no processo eleitoral em El Salvador. Os jornais internacionais, especialmente o Le Monde (francs), denunciaram a manobra cnica do governo. Este exps a necessidade de recontar os votos, j que a primeira contagem no lhe havia sido favorvel. Cf. SOL, op. cit., p. 49-50.

  • 28

    Navarro73:

    a) o massacre dos partidrios da coalizo oposicionistas de 28 de fevereiro; b) o massacre dos trabalhadores no Parque Cuscatln de San Salvador em 1 de maio;

    c) a operao militar contra a populao de Aguilares, que acarretou a morte e o desaparecimento de inmeras pessoas.

    Esses fatos provocaram srio conflito, resultando numa ferrenha perseguio Igreja74. No dia 25 de novembro de 1977, foi promulgada a Lei de defesa e garantia da ordem pblica. Sob a camuflagem de princpios democrticos, a Lei autorizava o governo a eliminar qualquer pessoa ou grupos que considerasse perturbador75.

    Desde ento, a casa do arcebispo Romero se transformara em abrigo e esperana para os oprimidos. O fluxo constante dessas vtimas angustiadas tornara-se a fonte de inspirao para os anncios profticos do arcebispo. Ele via em tais pessoas o semblante vivo de Jesus, novamente crucificado. As palavras do arcebispo estimulavam as vtimas a prosseguirem como imperturbveis defensoras da vida e da justia que os poderosos dos setores econmico, poltico e militar se encarregavam de pisotear76.

    No ano de 1978, 1.063 pessoas foram presas e violentadas; 147 foram assassinadas, entre as quais, o padre Ernesto Barrera; 23 desapareceram por motivos polticos77. Nesse contexto de represso e opresso, as reflexes pastorais da Igreja institucional salvadorenha divergiam em relao s organizaes populares78.

    Nos primeiros nove meses de 1979, as foras de segurana salvadorenhas prenderam ilegalmente, em mdia, trs pessoas a cada dois dias e assassinaram outras quatro79. Nesse perodo, muitos do clero catlico Otvio Cruz, Rafael Palcios, Alrio Napolen Macas continuavam a ser vtimas de sangue ao lado do povo.

    73 Cf. CARDENAL; MARTN-BAR; SOBRINO, op. cit., p. 14-15.

    74 Em 1977, o Secretariado Social Interdiocesano esclareceu ao povo cristo o sentido da perseguio

    Igreja: Perseguio Igreja , portanto, atacar de forma institucionalizada e permanente os meios que tem a Igreja, pessoas e instituies, de anunciar e realizar o Reino de Deus, de denunciar o pecado que nega esse Reino e de atacar os destinatrios dessa misso, em concreto a maioria do povo salvadorenho catlico, que vive em situaes de extrema misria, causada pela injustia estrutural e permanente, que a negao do Reino de Deus. RICHARD; MELENDEZ, op. cit., p. 89. 75

    Cf. CARDENAL; MARTN-BAR; SOBRINO, op. cit., p. 17. 76

    Cf. Idem., p. 18. 77

    Cf. Secretara de Comunicacin Social del Arzobispado de San Salvador (SCSASS). Informe sobre la represin en El Salvador. Boletn Informativo, n. 10 (12 de dezembro de 1979). 78

    Cf. Editorial. Divisin y conflicto en el episcopado salvadoreo. Estudios Centroamricanos, San Salvador, n. 359, p. 687-689, 1978. 79

    Cf. SCSASS, Informe 10.

  • 29

    A crise institucional, poltica e econmica chegou a dimenses insuportveis. Intensificaram-se as reivindicaes da populao operria em busca de seus direitos. A ao repressora j no conseguia conter a oposio, principalmente contra os grupos polticos e militares. Assaltos e seqestros, ocupaes de edifcios, confrontos e combates nas ruas tornaram-se rotineiras. El Salvador deslizou rapidamente para a desintegrao social.

    O triunfo sandinista na Nicargua contra a ditadura do presidente Somoza atraiu a ateno do exrcito salvadorenho. Apesar dos esforos do general Romero para redimensionar e reorientar os rumos do governo e das Foras Armadas do pas, ele foi deposto em 15 de outubro de 1979, num incruento golpe militar. Um grupo de oficiais jovens, com tendncias democrticas e reformistas, apoiado pelos EUA, liderou o golpe. Desejava-se romper com o passado corrupto e com o servilismo em face dos interesses do capital. Iniciava-se, portanto, nova poca com reformas polticas e econmicas80.

    Entretanto, depois do golpe militar, a represso atingiu dimenses maiores e causando tantas mortes, ao ponto de recordar o genocdio de 193281. O governo se mostrava incapaz de concretizar as exigncias propostas pelos jovens oficiais. Em contrapartida, crescia a unidade das foras revolucionrias populares. Na segunda quinzena de janeiro de 1980, as organizaes populares formaram a CRM (Coordenadoria Revolucionria de Massas). Os grupos polticos e militares criaram uma frente unida semelhante. Essa unidade do povo evidenciou-se em 22 de janeiro de 1980, por ocasio de gigantesca manifestao, a maior de toda a histria de El Salvador. A manifestao foi adiante, apesar de as foras de segurana tentar impedir que os no-residentes da capital entrassem na cidade. Os soldados atiraram nos manifestantes, deixando um saldo de quarenta mortos e centenas de feridos82.

    As estatsticas dos assassinatos nos governos de Molina (1972-1977) e de Romero (1977-1979), embora fossem elevadas, de repente pareciam mnimas se comparadas s novas83. As foras de segurana, com o apoio do governo e dos EUA, desencadearam uma organizada campanha de represso e de terror: 265 pessoas mortas em

    80 Cf. La insurreccin militar del 15 de octubre. Estudios Centroamricanos, San Salvador, n. 373, p. 741-

    744, 1979; Cf. SOL, op. cit., p. 79. 81

    Cf. RICHARD; MELENDEZ, op. cit., p. 46. 82

    Cf. ESCOBAR, F. A. En la lnea de la muerte la manifestacin del 22 de enero de 1980. Estudios Centroamricanos, San Salvador, n. 377-378, p. 375-376, 1980. 83

    Cf. SOL, op. cit., p. 80.

  • 30

    janeiro de 1980 pelas foras de segurana; 236 em fevereiro e 514 em maro84. Por causa da trgica realidade salvadorenha, o arcebispo escreveu uma carta ao

    presidente dos EUA, Jimmy Carter85, enfatizando o valor dos direitos humanos e sensibilizando o presidente norte-americano a no enviar ajuda militar para El Salvador86.

    A represso provocava sofrimento, e simultaneamente, esperana no arcebispo Romero. A partir dos pobres, ele descobriu que Deus pertence aos crucificados, defende-os e liberta-os. Entre os pobres descobriu que Deus o Deus dos empobrecidos87.

    Na homilia de 23 de maro de 1980 o arcebispo Romero denuncia fortemente a violncia repressora. Instou as tropas e os guardas nacionais a no obedecerem s ordens dos oficiais de matar os irmos, e sim a obedecerem Lei de Deus: Em nome de Deus, portanto, e em nome desse povo sofredor, cujos clamores sobem a cada dia em tom mais alto aos cus, peo-lhes, suplico-lhes, ordeno-lhes em nome de Deus: cessem a represso!88.

    No dia seguinte 24 de maro de 1980 o arcebispo Romero foi vtima da represso quando celebrava no altar. A morte do arcebispo causou tristeza e desconcerto. No enterro, em 30 de maro de 1980, pessoas morreram asfixiadas ou baleadas. Enterrou-se o arcebispo s pressas e em meio aos feridos e mortos, assim como vivera, no meio do povo oprimido e pisoteado, cuja causa ele assumira como prpria e a cujas aspiraes ele dera voz89.

    Entre os anos de 1977 e 1980, seis sacerdotes salvadorenhos foram assassinados antes do arcebispo Romero. Depois dele, trs religiosas, uma missionria leiga norte-americana e toda a comunidade de jesutas da UCA, alm de duas leigas, empregadas domsticas da comunidade, que tambm foram martirizadas90.

    Nas dcadas de 1970 at 1990, mais de quarenta mil homens e mulheres do

    84 Cf. CDH de El Salvador, Reporte estadstico. Orientacin, San Salvador, 11 de maio de 1980, p. 4.

    85 Cf. CARDENAL; MARTN-BAR; SOBRINO, op. cit., p. 276-278. O arcebispo Romero escreveu,

    principalmente, quatro cartas pastorais Igreja de San Salvador: a) A Igreja Pascal; b) A Igreja, corpo de Cristo na histria; c) A Igreja e as organizaes polticas populares; d) A misso da Igreja em meio crise nacional. 86

    Cf. BERRYMAN, P. Stubborn Hope: Religion, Politics, and revolution in Central America. New York: Orbis Books, 1994. p. 64. 87

    Cf. SOBRINO, Mi recuerdo, p. 15. 88

    CARDENAL; MARTN-BAR; SOBRINO, op. cit., p. 32; SOBRINO, Mi recuerdo, p. 32-33; BERRYMAN, op. cit., p. 64-65. 89

    Cf. CARDENAL; MARTN-BAR; SOBRINO, op. cit., p. 33. 90

    Cf. SOBRINO, J. Os seis jesutas mrtires de El Salvador. Depoimento de Jon Sobrino. So Paulo: Loyola, 1990. p. 6-8; Cf. SOBRINO, J. El asesinato-martirio de los jesutas salvadoreos. Quines eran y por qu los mataron? Sal Terrae, Barcelona, n. 12, p. 853-874, 1989.

  • 31

    povo foram assassinados ou caram ao lutar por justia na realidade salvadorenha. Para construir o Reino e a justia anunciados por Jesus, vrias pessoas combateram firmemente o anti-reino. Uma nuvem de testemunhas (Hb 12,1) multido de animadores sociais, catequistas, sindicalistas, trabalhadores do campo, jovens, pais e mes de famlia foi sacrificada na guerra cruel, que contou com o apoio da administrao estadunidense, de diversas formas, a sucessivos governos representantes das oligarquias cruis e sangrentas da Amrica Latina91.

    1.2.3 Panorama da realidade atual da Amrica Latina e salvadorenha

    A pobreza e a desigualdade social aumentam drasticamente na Amrica Latina.

    De 1980 a 2006 o nmero de pobres aumentou em setenta milhes na Amrica Latina. Naquele ano de 1980 constatava-se que 40% da populao vivia abaixo da linha de pobreza e, em 2006, a mesma percentagem persistia. A Amrica Latina tem 205 milhes de pessoas pobres, mais do que os 135 milhes de 1980. Alm disso, 85% dos pobres da regio vive nos pases com renda per capita, em termos de poder de compra, superior a cinco mil dlares, como Mxico e Brasil92.

    Grave problema a desigualdade econmica. Na Amrica Latina h vrios mundos: padres de vida similares aos da Europa e outros que se parecem com a frica Subsaariana, como o caso de Metlatnoc, no sul do Mxico93.

    A realidade da Amrica Latina e do Caribe torna-se preocupante. Situam-se na regio de maior desigualdade do mundo, contando atualmente com 563 milhes de habitantes. Desses, aproximadamente, 551 vivem na Amrica Latina, dos quais cerca de 213 milhes consideram-se pobres no h cifras disponveis sobre a pobreza no Caribe e 89 milhes sobrevivem abaixo da linha da pobreza94.

    J. Sobrino observa que o mundo atual conta com meios para mostrar a verdade

    85 Cf. SOBRINO, Mi recuerdo, p. 42-44. 92

    http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI1397454-EI8140,00.html, acessado no dia 10/07/2008. 93

    A crise econmica e os ajustes estruturais arrastaram para a pobreza contingentes das camadas mdias. Com o imprio neoliberal, esses novos pobres no so um problema exclusivo do Terceiro Mundo. Segundo o relatrio 1991 do PNUD, mais de 100 milhes de habitantes dos pases industrializados vivem abaixo da linha de pobreza. Essa cifra passa dos 200 milhes quando se inclui a Rssia e a Europa Oriental. Cf. VIGIL, J. M. Seguir a Jesus sob o imprio neoliberal na Amrica Latina. Revista Eclesistica Brasileira, Petrpolis, n. 227, p. 538, 1997. 94

    O Centro Latino-Americano de Demografia (CELADE) fornece os dados das estimativas demogrficas: Boletim Demogrfico: Amrica Latina. Proyecciones de poblacin urbana y rural, 1970-2005. Ano XXXVIII, n. 76, Santiago: Chile, CELADE, 2005. A Comisso Econmica para Amrica Latina e o Caribe (CEPAL) disponibiliza os dados das estimativas de pobreza: Panorama social da Amrica Latina. Santiago: Chile, 2005. Cf. www.oitbrasil.org.br/info/downloadfile.php?fileId=187, acessado no dia 10/07/2008.

  • 32

    do sofrimento das vtimas e fazer com que ela interpele: reportagens jornalsticas, televisivas, internet... Entretanto, esses meios encobrem e neutralizam a interpelao sem sentimento de culpa: a indstria do entretenimento, esporte, msica... A concluso que a verdade fica dissimulada ou anulada, e a realidade, encoberta. A honradez para com a realidade exige e interpela no nvel do saber, do esperar, do fazer e do celebrar95. No h igualdade diante das necessidades bsicas da vida e nem em termos de demonstraes de dignidade, de apreo, de considerao, de deciso... O abismo entre ricos e pobres cresce rapidamente: segundo o PNUD: 1 a 30 em 1960, 1 a 60 em 1990, 1 a 74 em 199796.

    O projeto de modernizao capitalista neoliberal impulsionado pelos EUA promete servios, bens, democracia e outros. No entanto, v-se hoje: mais privatizao, internacionalizao do solo e do subsolo, e mais dependncia do Estado. O Estado latino-americano mostra-se superendividado interna e externamente. A dvida interna torna-se o principal instrumento de acumulao capitalista na Amrica Latina e de relao parasitria do empresariado com o Estado97.

    Na Amrica Central, a crena na economia exportadora leva os pequenos pases perifricos a apostarem todas as fichas na assinatura de tratados de livre comrcio com os EUA (CAFTA-DR). O cenrio se consolida em grande rea submetida indstria maquiladora98, que no tem futuro quando comparada com a capacidade dos chineses em atrair o investimento estrangeiro direto e roubar a indstria maquiladora, especialmente em busca de melhores condies de valorizao99. Outros aspectos como exportao, entrega do territrio, incapacidade de controlar e de explorar a biodiversidade como riqueza estratgica e a crescente expulso de fora de trabalho completam o quadro de aprofundamento da dependncia na Amrica Central.

    Para reavivar a constatao de que o mundo continua injusto, desumano e

    95 Cf. SOBRINO, Onde est Deus?, p. 63-84.

    96 Cf. Idem., p. 94-98.

    97 Cf. http://www.ola.cse.ufsc.br/analise/20070312_nildo.htm, acessado no dia 11/07/2008.

    98 A indstria maquiladora se instalou no Norte da Repblica Mexicana em meados dos anos 60. O conceito

    de indstria maquiladora se situa numa malha de relaes cada vez mais complexas em que se apia a produo de bens e servios dos pases industrializados. Sua trajetria est vinculada com as tendncias na diviso internacional do trabalho. Consequentemente, isso reflete em mudanas na organizao das empresas, empurradas pelo crescimento do comrcio mundial e a intensificao da competncia entre pases (CEPAL). http://www.ilo.org/public/spanish/dialogue/actemp/papers/1998/maquila/capi-1.htm#C1_1, acessado no dia 25/07/2008. 99

    Cf. SOBRINO, Onde est Deus?, p. 69-85.

  • 33

    cruel, J. Sobrino pensa nos mrtires de El Salvador100. O sistema produz violncia e provoca a morte de milhes de seres humanos. E a globalizao101 mesmo com o potencial positivo contribui para o agravamento dessa situao, aumentando o nmero dos pobres, oprimidos, e vtimas aos milhes. A globalizao no consegue ocultar que, por trs dos conflitos tnicos, engendram-se gravssimas injustias contra os grupos minoritrios e as etnias indefesas.

    A realidade salvadorenha demonstra desafios: altos ndices de pobreza, catstrofes, violncia civil, economia informal como sustento da maioria da populao e o fenmeno migratrio que no se detm e que provoca mudanas sociais sem precedentes. Oficialmente, a metade da populao salvadorenha vive na pobreza grave ou extrema102.

    Aps dezesseis anos da afirmao dos Acordos de Paz103, as conseqncias do conflito seguem presentes. A violncia social tem alcanado magnitudes incomensurveis e o sofrimento do cidado se solidifica cada vez mais nessa terra onde pouco se valoriza a vida humana104. Por outro lado, o ps-guerra vem edificar as bases para a nova sociedade, apesar de a cicatriz da guerra ainda permanecer na memria coletiva.

    O que se passa em El Salvador merece ateno especial. O poltico fantoche, Elas Antonio Saca Gonzlez (2004-2009), ocupa a Presidncia e o dlar faz a vez de moeda nacional. O Partido da Frente Farabundo Mart de Libertao Nacional (FMLN), herdeiro das mais hericas guerrilhas do continente, a maior fora poltica do pas, mantm a unidade e governa hoje a capital e as principais cidades. A intensa luta de classes, tambm em El Salvador, desmente a teorizao dos que a consideravam superada.

    O Partido da FMLN demonstra, entretanto, no combate, conscincia das

    100 Cf. SOBRINO, El asesinato-martirio de los jesutas salvadoreos, p. 853-874, 1989; Cf. SOBRINO, Os

    seis jesutas, 1990. p. 5-70; Cf. SOBRINO, J. Oscar Romero: profeta e mrtir da libertao. So Paulo: Loyola, 1988. p. 20-37; Cf. SOBRINO, J. Los mrtires y la teologa de la liberacin. Sal Terrae, Santander, n. 983, p. 699-715, 1995; Cf. SOBRINO, J. Los mrtires latinoamericanos. Interpelacin y gracia para la Iglesia. Revista Latinoamericana de Teologa, San Salvador, n. 48, p. 307-330, 1999. 101

    Cf. SOBRINO, Fora dos pobres no h salvao, p. 78-80; Cf. DE SEBASTIN, L. Europa: globalizao e pobreza. Concilium, Petrpolis, n. 293, p. 62, 2001. 102

    Cf. SOBRINO, Onde est Deus?, p. 30. 103

    Cf. BERRYMAN, op. cit., p. 98-106: As Foras Armadas, o governo, a FMLN, a embaixada dos EUA, a CVI, a CDH e numerosos lderes religiosos comunitrios e pastorais, depois de inmeras tentativas de reconciliao e paz, de responsabilizar os culpados pelos assassinatos, torturas e violncias chegaram ao Acordo de Paz. Celebrou-se oficialmente o fim da guerra em 15 de janeiro de 1992 pelas ruas de San Salvador. Drapejou-se o banner de Farabundo Mart em frente catedral para simbolizar que o conflito no significava derramamento de sangue. 104

    J. Sobrino observa que noutros lugares persiste a morte por guerras, barbrie e terrorismo. Em El Salvador continuam as mortes pela violncia. Cada dia h dez homicdios. Assim, a morte se faz presente na vida da maioria do povo salvadorenho. Cf. Fora dos pobres no h salvao, p. 164, nota 6.

  • 34

    limitaes que lhe so impostas pela luta travada no quadro institucional. Aproveita todas as oportunidades que o sistema lhe abre. Dos xitos eleitorais alcanados alguns retumbantes no tira a concluso de que lhe abrem o caminho para a tomada do poder. A estratgia de dominao dos EUA na Amrica Central, hoje autntico quintal do imperialismo, no permitiria no atual contexto histrico que o partido como a FMLN pudesse exercer o poder real, mesmo que, atravs de eleies viesse a conquistar a presidncia. Se dependesse da lucidez com que a FMLN analisa a conjuntura poltica e social do pas, seria levada a desistir de seu ideal revolucionrio. Porm conserva-se totalmente fiel a ele105.

    A cultura atual de El Salvador, como na Amrica Latina, se caracteriza pelo acentuado pluralismo. Eis algumas caractersticas da modernidade: concepo dinmica, histrica e evolutiva do ser humano e da histria; viso antropocntrica marcada por forte racionalismo; dessacralizao da natureza, forte subjetivismo individualista, dualismo antropolgico; processo de secularizao; perspectiva mecanicista do ser humano e da realidade; enfim, o futuro melhor para todos, visto na imanncia da histria106.

    Como reao s acentuaes prprias da modernidade, constata-se o influxo crescente da sensibilidade ps-moderna, com noo pessimista e diminuda do ser humano: compreenso crtica do racionalismo e do mecanicismo modernos; valorizao do simbolismo e do mundo da afetividade; desconfiana dos compromissos sociais e polticos bem como das instituies. A ps-modernidade prioriza a procura de satisfaes imediatas, o utilitarismo e o consumismo. E ainda, vive-se num acentuado subjetivismo individualista e narcsico...107

    O neoliberalismo econmico alicerado na tecnologia da informao desenvolve a economia informacional e global. Projeta a Sociedade em Rede108. O mercado organiza leis e normas prprias. Quem desobedece a essas leis permanece excludo da economia globalizada. Considera-se o desemprego estrutural como normal. Arrisca-se na competitividade desenfreada. Culpam-se os excludos e valoriza-se o ser

    105 Cf. http://resistir.info/mur/firenze.html, acessado no dia 02/08/2008.

    106 Cf. PARRA CARRASCO, F. O. Modernidad, utopa e historia en Amrica Latina. Santiago: San Pablo,

    1995. p. 17-54. 107

    Cf. GONZLEZ-CARVAJAL, L. Ideas y creencias del hombre actual. 2. ed. Santander: Sal Terrae, 1991. p. 153-178; Cf. MARDONES, J. M. Postmodernidad y cristianismo: el desafo del fragmento. Santander: Sal Terrae, 1988. p. 17-57. 108

    Cf. CASTELLS, M. A era da informao: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. 2. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1, p. 21-47.

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    humano por aquilo que consome no mercado mundial. Quem no consome faz parte da massa descartvel. O enraizamento local tende a ser suplantado pelo espao de fluxos e o tempo cronolgico pelo tempo virtual. Desenvolve-se a cultura internacional que

    desvaloriza as expresses culturais nacionais e regionais109.

    Ao repensar a f crist luz da realidade salvadorenha e a partir do evento Jesus de Nazar, surgem interrogaes: Que dialtica se desdobra no aprendizado que consiste em ver Deus a partir do mundo de vtimas, e em ver o mundo de vtimas a partir de Deus? Em que Deus se cr? E em que dolo no se cr?110 Quais so as situaes de dor e de sofrimento dos pobres que questionam a f crist?

    1.2.4 Equiparao da realidade salvadorenha com a latino-americana

    Morrer crucificado no consiste em simplesmente morrer, mas em ser morto, no contexto latino-americano. Para J. Sobrino, sobreviver constitui a maior dificuldade e a morte lenta o destino mais prximo111. Como compaginar o senhorio de Cristo e a misria nesse mundo?112 Essa perspectiva abre horizontes para a leitura dos textos cristolgicos e o conhecimento melhor de Jesus Cristo?113 Como o telogo salvadorenho e a Igreja latino-americana v a situao dos pobres na Amrica Latina? Que significa trabalhar pela justia em nome do amor para com a maioria injustamente oprimida? Como colocar a servio da justia a capacidade humana, intelectual, religiosa, cientfica, tecnolgica...?114

    Responde-se a essas perguntas a partir da anlise da situao desumana dos pobres latino-americano na viso de alguns telogos e da Igreja latino-americana, destacando a concepo de J. Sobrino com relao s vtimas deste mundo.

    1.2.4.1 Faces de dor e de sofrimento dos pobres na Amrica Latina

    Os pobres ocupam lugar privilegiado na teologia latino-americana. Revelam, no mundo, o rosto de Deus desfigurado pela opresso, marginalizao e injustia social.

    109 Cf. Idem., p. 457-496.

    110 Cf. SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 24.

    111 Cf. SOBRINO, A F em Jesus Cristo, p. 13.

    112 Cf. Idem., p. 18.

    113 Cf. Ibidem., p. 18-19.

    114 Cf. SOBRINO, O Princpio Misericrdia, p. 25-27.

  • 36

    Desafiam o cristo a reagir, clamam por justia e por vida humana mais digna. No contexto latino-americano convivem situaes de injustias que afetam a

    imensa maioria do povo. As elites detm o poder, o saber e o ter, e confiscam para si os destinos de povos inteiros, impondo seus interesses e mantendo seus privilgios com todas as armas disponveis. Os pobres se situam em condio desumana de sobrivncia, clamando por dignidade, por direitos fundamentais, por relaes igualitrias na sociedade e por mecanismos de participao mais efetivos. Esse clamor eleva-se at o corao de Deus115.

    A pobreza como carncia de meios para produzir e reproduzir a vida com o mnimo de dignidade humana torna-se, inegavelmente, a chaga mais dolorosa da histria humana. Os pobres, sem os meios necessrios para a sobrevivncia, no so produto do acaso, mas sim gerados por estruturas econmicas, sociais e polticas injustas (cf. Puebla, 30; 509; 1.160; 1.264). O pobre nasce inserido num sistema social no qual, estrutural e historicamente, foi-lhe tirada a capacidade de vestir-se, alimentar-se e desenvolver-se fisiolgica, psicolgica e intelectualmente116. As linhagens amerndias e africanas empobreceram quando foram colonizadas pelo capitalismo mercantilista, industrial, imperialista e ciberntico atmico117.

    No atual contexto histrico de economia livre de mercado, os pobres no contam nem como mo-de-obra nem como consumidores: so os excludos, os sobrantes, os descartveis. As causas da excluso so econmicas e sociais, de gnero (mulheres), de raa ou cor (ndios, afro-americanos), de gerao (crianas, jovens, idosos) ou por outras razes (incapacidades, homossexualidade). A excluso social e a destruio da natureza corroboram como brechas profundas do atual sistema de economia global de mercado. Torna-se cada dia mais profunda a fenda entre includos e excludos, vinculados e desvinculados118.

    Os pobres so definidos em relao, pois no existem ricos e pobres em si mesmos. Num sentido econmico, pobre se contrape a rico; num sentido poltico, pobre se ope a poderoso; num sentido cultural, pobre se distingue do letrado. Os opressores

    115 Cf. Documento de Puebla, 27-70.

    116 Cf. FENGER, A. L. Pobreza. In EICHER, P. (org.). Dicionrio de Conceitos Fundamentais de Teologia.

    So Paulo: Paulus, 1993. p. 708. 117

    Cf. Idem. 118

    Cf. RICHARD, P. A Igreja que opta pelos pobres e contra o sistema de globalizao neoliberal. Convergncia. Rio de Janeiro, n. 342, p. 203-204, 2001.

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    foram a pobreza por mecanismos econmicos sociais de explorao que violam a justia119. Pesa sobre os pobres violenta cultura de dominao que se sobrepe s culturas locais. Em quase todos os pases latino-americanos morrem prematuramente milhares de seres humanos120.

    A pobreza desumaniza ricos e pobres. Aos pobres traz toda sorte de carncias, desestrutura a vida emotiva, as relaes com os outros. Impede a vocao essencial do ser humano de desenvolver-se e expandir capacidade para alm do instinto da sobrevivncia. Leva-os violncia contra os mantenedores da misria. Aos ricos desumaniza, ao considerar os pobres incapazes, sobrantes da sociedade121.

    Aos pobres faltam as pr-condies para a vida humana digna. Reduz-se a vida situao de fome e explorao, de ateno insuficiente sade e moradia, de acesso difcil educao, de baixo salrio e desemprego, de lutas pelos prprios direitos e de represso. Por outro lado, os pobres latino-americanos interpelam a Igreja a se converter (cf. Puebla, 1.147) e, na f, expressam a exigncia de formas de convivncia humana digna e livre (cf. Puebla, 1.154)122.

    1.2.4.2 A Igreja latino-americana ante a realidade dos pobres

    Fala-se do destino comum da humanidade e das relaes entre os povos. A sociedade ignora o fato fundamental e antagnico da diviso entre os que tm e os que no tm. Com isso, aumenta a diviso e o antagonismo entre os opressores e as vtimas123.

    Os bispos latino-americanos assumem a dor e o sofrimento das vtimas da histria. Lembram que existem muitos estudos sobre a situao do ser humano latino-americano. Neles se descreve a misria que marginaliza grandes grupos humanos em nossos povos. Essa misria, como fato coletivo, se qualifica de injustia que clama aos

    119 Cf. BOFF, L. Do lugar do pobre. Petrpolis: Vozes, 1984. p. 19-24.

    120 Cf. BOFF, L. Nova Evangelizao. Perspectiva dos oprimidos. Fortaleza: Vozes, 1990. p. 63.

    121 L. Boff comenta que as classes dominantes consideram os pobres desqualificados socialmente, evitam-

    lhes o contato fsico, passam ao largo, insensveis s suas misrias. Os governos dos pases latino-americanos, controlados pelas classes dominantes, brutalizadas em seus sentimentos de humanidade, desconsideram, em seus planej