12
176 Ttíulo II — A funçãit dií direito penal S 35 De um ponlo de vísia li tico-c rim i n ai, o requisitório a favor das penas privadas corno forma de limitação do âmbito do direito penal isto é, a aplicação de penas privadas, em certos casos, em vez rfe penas criminais não tem parado de crescer nos nossos tempos. Para além da referida sugestão de se obviar aos gran- des e novos riscos da sociedade pós-industrial não através de meios penais, mas jurí- dico-civis (supra, 6. c Cap., S 63), lembrc-se a proposta de fazer das sanções civis o modelo sancionatório da justiça na empresa relativamente a pequenos delitos (patri- moniais, contra a honra, etc.i. bem como o especial saneio n a mento de furtos cm grandes superfícies (super e hipermercados, shopping*, etc.} ( 42 >. operando-se na outra vertente a respectiva descriminaiização. de direito ou de facto. Proposta consubs- tanciada na Alemanha em dois projectos, da autoria de Art? et alii, o Efitwurf cines Gesetz?!, gegen de.n iMileiidiehsiahl (1974) e o Entwurf eines Gesetzes zur Regehtng der Betriebsjtistii (1975), e que, a partir da concepção que atrás se defendeu sobre a definição do comportamento crimina] e das suas sanções, não pode deixar de ser em princípio saudada < 43 ). Deve reconhecer-se todavia que muitos problemas de con- cretização desta justiça "privada" e de consistente defesa dos direitos, liberdades e garan- tias das pessoas esperam ainda por uma sua adequada resolução. Talve? por isso as mencionadas tentativas de reforma não tenham sido até hoje — com excepção dos "tri- bunais de camaradas" próprios dos antigos regimes comunistas reconhecidas pelos legisladores ( 44 ). l 4 --) BIIRGSIALT.IÍR, Der Uiílendiebsiahl iind s fine privaie Bekàm[>fHtjf>. 1981. c K\i- ER / MinzGEK-PRi-jsifiLR, fíeiriebsju.itiz. 1976 C") Cf., também, L-ARU, Paula Ribeiro de. noia 40. P . 420 e s s ( 44 ! Sobre a questão. Di-\s / ANDRADR. pp. 136,415 s.. 426. TITULO III A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO 8." CAPITULO O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL 1. O princípio nulhitn crimen, nutta pcena sine lege 1. Função, sentido e fundamentos § ] O princípio do Estado de Direito conduz, como na exposição anterior já por várias vezes se revelou, a que a protecção dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo não apenas através do direito penal, mas também peraníe o direito penal f 1 ). Até porque uma eficaz pre- venção do crime, que o direito penal visa em último termo atingir, pode pretender êxito se à intervenção estadual forem levantados limites estritos cm nome da defesa dos direitos, liberdades c garantias das pes- soas perante a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva. A esta possibilidade de arbítrio ou de excesso se ocorre sub- metendo a intervenção penal a um rigoroso princípio de legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz cm que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nulium crimen, nuUíi ptenti sine lege). 52O princípio da legalidade da intervenção penal encontra já de algum modo expressão na May,nu Charla Liberlutum de João sem Terra (1215) e mais tarde, de forma particular, no Sill of Rightx (16891. Mas a sua consagração em termos modernos ocorre pela primeira vez — fruto, também ela. dos princípios do Iluminismo Penal e A ulimiação paradigmática a Roxix l, S 5. n." 1.

1. Função, sentido e fundamentos - ESMEG · mos do processo e as sanções aplicáveis, A ideia de que o direito inter- ... de lei. e na verdade, entre ... a própria função de

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176 Ttíulo II — A funçãit dií direito penal

S 35 De um ponlo de vísia pó li tico-c rim i n ai, o requisitório a favor das penasprivadas corno forma de limitação do âmbito do direito penal — isto é, a aplicaçãode penas privadas, em certos casos, em vez rfe penas criminais — não tem paradode crescer nos nossos tempos. Para além da referida sugestão de se obviar aos gran-des e novos riscos da sociedade pós-industrial não através de meios penais, mas jurí-dico-civis (supra, 6.c Cap., S 63), lembrc-se a proposta de fazer das sanções civis omodelo sancionatório da justiça na empresa relativamente a pequenos delitos (patri-moniais, contra a honra, etc.i. bem como o especial saneio n a mento de furtos cmgrandes superfícies (super e hipermercados, shopping*, etc.} (42>. operando-se na outravertente a respectiva descriminaiização. de direito ou de facto. Proposta consubs-tanciada na Alemanha em dois projectos, da autoria de Art? et alii, o Efitwurf cinesGesetz?!, gegen de.n iMileiidiehsiahl (1974) e o Entwurf eines Gesetzes zur Regehtngder Betriebsjtistii (1975), e que, a partir da concepção que atrás se defendeu sobre adefinição do comportamento crimina] e das suas sanções, não pode deixar de ser emprincípio saudada <43). Deve reconhecer-se todavia que muitos problemas de con-cretização desta justiça "privada" e de consistente defesa dos direitos, liberdades e garan-tias das pessoas esperam ainda por uma sua adequada resolução. Talve? por isso asmencionadas tentativas de reforma não tenham sido até hoje — com excepção dos "tri-bunais de camaradas" próprios dos antigos regimes comunistas — reconhecidas peloslegisladores (44).

l4--) BI IRGSIALT. I ÍR , Der Uiílendiebsiahl iind s fine privaie Bekàm[>fHtjf>. 1981. c K \ i -ER / MinzGEK-PRi-jsifiLR, fíeiriebsju.itiz. 1976

C") Cf., também, L-ARU, Paula Ribeiro de. noia 40. P. 420 e s s(44! Sobre a questão. Di-\s / ANDRADR. pp. 136,415 s.. 426.

TITULO III

A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO

8." CAPITULO

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADEDA INTERVENÇÃO PENAL

1. O princípio nulhitn crimen, nutta pcena sine lege

1. Função, sentido e fundamentos

§ ] O princípio do Estado de Direito conduz, como na exposiçãoanterior já por várias vezes se revelou, a que a protecção dos direitos,liberdades e garantias seja levada a cabo não apenas através do direitopenal, mas também peraníe o direito penal f1) . Até porque uma eficaz pre-venção do crime, que o direito penal visa em último termo atingir, sópode pretender êxito se à intervenção estadual forem levantados limitesestritos — cm nome da defesa dos direitos, liberdades c garantias das pes-soas — perante a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária ouexcessiva. A esta possibilidade de arbítrio ou de excesso se ocorre sub-metendo a intervenção penal a um rigoroso princípio de legalidade, cujoconteúdo essencial se traduz cm que não pode haver crime, nem pena quenão resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nulium crimen,nuUíi ptenti sine lege).

5 2 O princípio da legalidade da intervenção penal encontra já de algum modoexpressão na May,nu Charla Liberlutum de João sem Terra (1215) e mais tarde, de formaparticular, no Sill of Rightx (16891. Mas a sua consagração em termos modernosocorre pela primeira vez — fruto, também ela. dos princípios do Iluminismo Penal e

A ulimiação paradigmática a Roxix l, S 5. n." 1.

178 7'ítulo 111 — A lei penal e ti sua apticaçaii

era especial da doutrina do "contraio social" (') — na Constituição de alguns dosEstados Unidos da América (Virgínia, Maryland) no ano de 1776 e encontra a suaexpressão definitiva na Déclaration dês droiis de 1'homme et du citown francesade 1787, daí tendo derivado para. pode dizer-se, a totalidade dos instrumentos inter-nacionais de protecção dos direitos humanos (v, %.. art, 1 1 ,"-2 da Declaração Univer-sal dos Direitos do Homem de 10-12-1948. art. 7."-l da Convenção Europeia dosDireitos do Homem de 4-11-1950, art. 15.°-1 do Pacto Internacional sobra os Direi-tos Civis e Políticos de 19-i 2-1966, etc.l e das Constituições dos Estados democráti-cos. Entorses declaradas ao princípio encontravam-se em textos legais como o do§ 2 do CP alemão nacional-soe i alista (que permitia a punição criminal de acordo como pensamento fundamentai de uma lei penal e com o são sentimento do povo!') ou comoo dos arts. l." e 16." do CP da URSS de 1924 e 1926 (que permitiam a punição deactos, mesmo não expressamente previstos, que ofendessem "a ordem jurídica esta-belecida pelo Governo dos operários e agricultores para a época de transição para oEstado comunista" (3)). Entre nós o princípio encontra hoje consagração no art. 29."-!da CRP ("Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei ante-rior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujospressupostos não estejam fixados em lei anterior"), aliás materialmente correspon-dente ao art. ]." do CP (nomeadamente aos seus n.111 l e 2).

§ 3 A norma contida no art. 29.°-2 da CRP confere jurisdição aos tri-bunais portugueses para conhecerem de certos crimes contra o direitointernacional (os crimina iuris genfium), mesmo que as condutas visa-das não sejam puníveis à luz da lei positiva interna. Necessário cporém que se trate de crimes à luz dos "princípios gerais de direito inter-nacional comummente reconhecidos" (cf., também, o art. 8.°-1 da CRP) ea punição só pode ter lugar "nos limites da lei interna", que define os ter-mos do processo e as sanções aplicáveis, A ideia de que o direito inter-nacional pode impor directamente deveres de natureza penal aos indivíduosconsolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, ondeas potências aliadas julgaram e condenaram membros das forcas do Eixopor violações graves do direito internacional (crimes contra a paz e ahumanidade e crimes de guerra) que não eram punidas pela lei internadesses países. Deste modo, no art. 29°-2 da CRP parece ter-.se adoptado

(2) Fundamentais, LOCKE, Two treaiues tif guvernment. 1690, II. S 137. e MONTESQUFU,De 1'eiprít dês lois, 1748. l, l, 11." Cap., 6. Uniu história do princípio c uma informação maisminuciosa!, encontram-se em JLSCHECK / Wrmr.ND, § 15. II.

(•) Cf., sobre o ponto, SANTOS, Beleza dus. Interpretação e integração das lacunas fialei em direito c processo penul. BFD XI, 1929. p. 112, c CORRFIA. Eduardo lÀc-ôes p 147 e sc !.n."33.

8.- Capítulo — O princípio da legalidaitf da intervenção penal 179

a concepção segundo a qual a responsabilidade por crimes contra o direitointernacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto noart. 29."-!, válido apenas para a lei estadual. Porém, hoje c seguro que oprincípio nullum crimen sine lege constituí um princípio geral de direitointernacional, embora o seu "modo" seja diverso, uma vez que no termolege se inclui também o direito (internacional) costumeiro; o que nãodeixa de trazer problemas graves quanto à exigência de determinabilidadedas condutas puníveis (4). De toda a maneira, a importância do problematem vindo a reduzir-se progressivamente desde o fim da Tl Guerra porforça da cristalização positiva do direito costumeiro em várias convençõesinternacionais, cujas normas os Estados vão incorporando no seu direitointerno. Nesses casos a lei interna deve servir a protecção do direito inter-nacional. Dever que se tornou ainda mais claro com o Estatuto de Romae o princípio de subsidiariedade da jurisdição do TPI em relação às juris-dições nacionais, aí contido (supra, 2." Cap., § 4), nomeadamente, quandoesteja em causa a aplicação extraterritorial das normas de acordo com o prin-cípio da universalidade (art. 5,"-2/bí e infra, 9." Cap., § 39 e ss.).

§ 4 O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma plu-ralidade de fundamentos, uns externos (isto é, ligados à concepção fun-damental do Estado), outros internos (se., de natureza especificamentejurídico-penal) (5). Entre os primeiros avultam o princípio liberal, oprincípio democrático e o princípio da separação dos poderes. Deacordo com o princípio liberal, toda a actividade intervencionista do Estadona esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas tem de ligar-se àexistência de uma lei e mesmo, entre nós, de uma lei geral, absrracla eanterior (CRP, art. 18.°-2 e 3). De acordo com os princípios democráticoe da separação dos poderes (na sua compreensão actual, onde a separaçãoé pensada nos quadros da interpenetração e da corresponsahilização), paraa intervenção penal, com o seu particular peso e magnitude, só se encon-tra legitimada a instância que represente o Povo como titular último do iuspuniendi; donde a exigência, uma vez mais, de lei. e na verdade, entre

í4) Cf. LAMH, Susan, Nullum crimen. nulla ptena sine lego in internacional criminal law,m: Cassese.A .et alii. The Rume Stíiíute of the Inlernational Criminal Court: a Cotnmentury, T,2002, p. 734 e í s

(5I NLVES, Castanheiia, O princípio tia legalidade criminal. Estudos Eduardo Correia, l,1989, fala a propósito, respectivamente, de •'fundamemci político" (p. 362 e ss.! e de "fundamentodogmático-jurídico" (p. 368 e ss.,).

180 Título I!/ — A lei penal e a sua aplicação

nós, de lei formai emanada do Parlamento ou por ele competentemente auto-rizada (CRP, art. 165.M/CJ).

§ 5 Entre os fundamentos interno!, costumam apontar-se a ideia daprevenção geral e o princípio da culpa. Cora razão (fi). Não pode espcrar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento dageneralidade dos cidadãos — seja na sua vertente "negativa" de intimida-ção, seja sobretudo na sua vertente positiva de estabilização das expecta-tivas — se aqueles não puderem saber, através de lei anterior, estrita ecerta, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminal-mente puníveis dos não puníveis. Como não seria legítimo dirigir a alguéma censura por ter actuado de certa maneira se uma lei com aquelas carac-terísticas não considerasse o comportamento respectivo como crime. Valesó acrescentar que, contra o que ainda maioritariamente se pensa, tambéma própria função de prevenção especial positiva ou de ressocialização, noseu entendimento actual, confirma a exigência do princípio da legalidade:o comportamento que indicia a perigosidadc não é (não pode ser) apenassintoma ou índice da carência de socialização e ensejo para que esta inter-venha, mas tem de ser co-tundamento e limite da intervenção criminal; nestamedida ressurgindo a exigência de legalidade estrita daquela (supra, 5." Cap..§ 7 e s.).

2. Nullum crímen sine lege

§ 6 O princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior quecomo tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmentenocivo c reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador deo considerar como crime (descrevendo-o e knpondo-lhe como consequên-cia jurídica uma sanção criminal) para que ele possa corno tal ser punido.Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacçãofuncionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade,por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir fina-lidade da norma) abranger na punibiHdade também certos (outros) com-portamentos. Neste sentido se tornou célebre a afirmação de v. Liszt

í,6) Nesle sentido. ROXTN 1. § 5, n.° 22 e ss.. e MARiuurn / HOLCINI. Corso. p. 12 e s.Diferentemente. NEVES. Castanheira, nota 5, pp. 369 e ss. e 383 t- ss.: fundamento é ;i axinlo-gica normiitivUiiulc do próprio direito.

S." Capítulo — O princípio da legalidade da intervenção penal 181

segundo a qual a lei penal constitui a "magna Charta do criminoso".Tem-se argumentado que. sendo assim, a lei penal representa uma espéciede carta de alforria para o agente mais hábil, mais refinado e (às vezes) maisrico e poderoso, numa palavra (própria da ciência crimino lógica), para oagente dotado de maior "competência de acção". Será verdade. Masimporta fazer neste contexto duas precisões; a primeira é a de que um talagente não é, em definitivo, um "criminoso" se não for como tal consideradopor uma sentença passada em julgado (supra, 6.° Cap., § 41 e ss.); asegunda a de constituir este, apesar de tudo, um razoável preço a pagar paraque possa viver-se numa democracia que proteja minimamente o cidadãodo arbítrio, da insegurança e dos excessos de que de outro modo inevita-velmente padeceria a intervenção do Leviathan estadual.

§ 7 Um exemplo — a par de tantos oulros que poderiam ser dados — retiradoda experiência legislativa portuguesa anterior ao CP de 1982 ilustrará exemplarmenteO que ficou dito. No CP de 1886 dispunha o art. 451." (relativo ao crime de burla ouíiefraudação) que '•será punido... aquele que defraudar a outrem, fazendo que se lheentregue dinheiro ou móveis, ou quaisquer fundos ou títulos, por algum dos seguin-tes meios...". Isto só podia significar que era unicamente punível a burla a favor dopróprio agente, já não a burla a favor de terceiro, v. %.. a favor do pai, da mulher, dofilho ou de urfl sócio ou amigo do agente. Restrição esta que nem teleológica. nemfuncionai, nem racionai menti: se podia justificar c que revelava, na verdade, pura e sim-plesmente uma lacuna (grave) de punibilidade, só explicável por um erro do legisla-dor. E todavia: a consequência. Jogo jurídico-constitucionalrnente imposta, só podiaser (como a nossa jurisprudência dominante muito bem decidiu então) a de deixarimpune a burla a favor de terceiro! Outro caso ilustrativo, eslc recente, ocorrido con-cretarnente nas Filipinas, foi o do cidadão que a partir desse país difundiu o vírusinformático "i lovt you", com datios irreparáveis no mundo inteiro, tendo escapadoimpune dada a inexistência de um qualquer tipo legal de crime na ordem jurídica doseu país que prcvisse c punisse tal conduta.

3. Nulla pfEna sine lege

§ 8 A fórmula "não há crime sem lei" é complementada pela fórmula"não há pena [rectior. não há sanção criminal, pena ou medida de segu-rança] sem lei". Na interpretação desta fórmula veriflcam-se todavia algu-mas dificuldades que devem ser consideradas. Desde logo cumpre dizerque — diversamente do que sucede em muitas outras ordens jurídicas,onde a conclusão tem de ser alcançada por via ímerpretativa — entre nóstambém este segmento do princípio tem expressa consagração jurídico-cons-tiíucional e legal. Nesse sentido afirma logo o art. 29.°-3 da CRP que

182 Titulo III — A lei penal e a sua aplicação

"não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejamexpressamente cominadas em lei anterior". No que loca às penas, esta exi-gência de lex prcevia corresponde à doutrina internacional dominante. Nãoassim já porém no que toca às medidas de segurança, relativamente àsquais se pensava que o seu fundamento de estrita prevenção especial deve-ria conduzir a que pudesse aplicar-se a medida de segurança vigente aotempo da aplicação, porque isso seria apenas sinal de um entendimentolegislativo "melhor" para o (se., "mais favorável'' ao) agente,

§ 9 Uma tal concepção foi recusada pela CRP, como se disse, e, nasua esteira, pelo art. 2.ú-l do CP (7). Em detrimento da ideia paternalistade que ao legislador pertenceria dizer o que seria "melhor" para o agente,porquanto só considerações ilimitadas de prevenção especial estariam nabase das medidas de segurança, veio a legislação constitucional e ordi-nária portuguesa dar prevalência a uma consistente protecção dos direi-tos, liberdades e garantias d;is pessoas também face à aplicação de medi-das de segurança, conferindo assim ao facto (como supra, 5.° Cap.,' § 7e s,, se acentuou já) uma função de co-fundamento da respectiva aplicação.E, por esta via. veio assegurar a extensão do princípio da legalidade àsmedidas de segurança com âmbito análogo àquele que ele tradicionalmenteassume para as penas. Com esta extensão, o CP de 1982 e a nossalei constitucional deram um passo decisivo — e mesmo pioneiro (s) —numa compreensão moderna e democrática destes instrumentos sancio-

natórios (y).

§ 10 O princípio ern exame significa, por ouiro lado. ser complelamente vedadoao juiz, seja embora na base da mais esclarecida e avançada consciência político-cri-minal, criar instrumentos sancionatórios criminais que se não encontrem estritamenteprevistos em lei anterior. E este perigo não é tão teórico que uma situação destas não

(7) Em rigor, ambos na esteira do disposto no aii. 1." do PrujPG, que conexionavii oprincípio com a imposição de uma "reacção criminal" e pur conseguinte tanto com a pena,como com a medida de segurança (v. ;i longa — c a muitos títulos elucidativa — discussão em

Actas L p. 33 e ss.)(s) P. ex,, o § 2, VI, do CP alemão ainda hoje dispõe que "ern maléria de medidas de segu-

rança deve decidir-se, se outra coisa não !"or determinada legalmente, segundo a lei que vale aolempo da decisão", í) que leva — com razão — autores como SIRATENWF.RTH / Kunu;>,, 5 3,n.1' !2. a considerarem esta regulamentação não só "materialmente errónea" (precisamente comestas mesmas palavras também Ruxiv I. 5 5, n." 56j, como "inconstitucional",

fí Desenvolvidamente. DIAS. Kigueiredn, DP II, íj 685 e ss.. e CARVALHO. Taipa de.Sucessão de Leis Penais, :1Q97. p. 208 e ss

S." Captado — O principia da iegaiidtuíe tia intervenção penal 183

tenha ocorrido entre nós ainda não há rnuilo (empo, O CP de 1982, antes da Reformade 1995, previa por uma parte, uma puna de substituição da suspensão da execução daprisão, com ou sem condições, e por outra, sob diferentes e mais estritos pressupos-tos formais, a pena de substituição do redime de prova; mas não previa a possibilidadede "combinação" destas duas penas. Ora, uma parte da nossa jurisprudência, motivadapelo desejo (político-criminal mente louvável, repete-se) de poder aplicar a substânciado regime de prova à pena de suspensão da execução da prisão cm casos em quetodavia os pressupostos formais daquela o não permitiam, condenava por vezes napena de suspensão, mas submetida a condições específicas do regime de prova. O que,no fundo, constituía unia violação ilegal e inconstitucional do princípio nu.Ua posna unelege. A situação foi resolvida pela Reforma de 1995, ao eliminar o regime de provacomo pena de substituição autónoma e ao fazer dele uma modalidade da pena desubstituição da suspensão da execução da prisão ( lo).

§11 O princípio da legalidade assume consequências ou efeitos emcinco planos diversos: no plano do âmbito ou da extensão, no plano dafonte, no plano da determinabilidíide, no plano da proibição da analogia cno plano da proibição de retroactividade. Cada um deles será em seguidaconsiderado.

II. O plano do âmbito de aplicação

§ 12 Neste plano cumpre assinalar que o princípio da legalidade nãocobre, segundo a sua função e o seu sentido, toda a matéria penal, mas ape-nas a que se traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade doagente. Sob pena, de outra forma — isto é, se abrangesse também a maté-ria da exclusão ou da atenuação da responsabilidade —, de o princípio pas-sar a funcionar contra a sua teleologia e a sua própria razão de ser: a pro-tecção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão face à possibilidadede arbítrio e de excesso do poder estatal. Por isso, para se avançar ape-nas com um exemplo, o princípio cobre toda a matéria relativa ao tipo deilícito ou ao tipo de culpa, mas já não a que respeita às causas de justifi-cação ou às causas de exclusão da ctilpa. De tal forma é importante estarestrição do âmbito do princípio que ela se estende a todas as suas con-sequências — seja no plano da fonte (maléria em todo o caso discutível:infra, § 13), seja no da determinabilidade, seja no das proibições de ana-logia e de retroactividade.

Sobre a questão anles da Reforma (fc 1995, no sentido do texto, o nosso DP II. S 532.

184 Título III - A lei penal e a .lua aplicação

III. O plano da fonte

§ 13 Neste plano o princípio conduz à exigência de lei formal: só umaíei da AR ou por ela competentemente autorizada pode definir o regime doscrimes, das penas e das medidas de segurança e seus pressupostos. A estepropósito podem todavia suscitar-se alguns problemas que não devem dei-xar de ser referidos, ainda que só per summa capita. Desde logo o de que,em rigor, o conteúdo de sentido do princípio da legalidade, ainda aqui,só deveria cobrir a actividade de crimínalização ou de agravação, não ade descri minai ização ou de atenuação. O que deveria conduzir, por seu lado,a considerar que o Governo possui competência concorrente com a da ARpara descriminalizar ou atenuar a responsabilidade criminal. Posto perantea questão, o nosso TC respondeu-lhe negativamente ("}, interpretando a"definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pres-supostos" no sentido de abranger tanto a função de cri minai ização (ou demaior criminal ização), como a de descriminali/ação (ou de menor crirni-naíização). Não é impossível excogitar razões jurídicas de política geral,relacionadas nomeadamente com a definição dos círculos de competênciade órgãos de soberania dotados de poderes legiferantes. que ofereçam umqualquer fundamento a esta doutrina. O que sempre será errado é invocar,ainda aqui, o principio da legalidade penal na sua teleologia e na suafuncionalidade específicas.

§ ] 4 Outro problema é o de saber se a exigência de legalidade noplano da fonte deverá abranger só a lei penal sensu stricto ou ainda tam-bém a lei extra-penal, na medida em que esta venha a ser chamada pelalei penal à fundamentação ou à agravação da responsabilidade criminal.Para esta fundamentação ou agravação serve-se muitas vezes a lei penal,com efeito, de procedimentos de reenvio para ordenamentos jurídicos nãopenais, v. g., o civi l , o administrativo, o fiscal, etc.; ordenamentos estes ondenão vale, logo no plano da fonte, urn princípio de legalidade equivalente

(") Ac. do TC 173/85. de 9-íO-t'«5, I)R, II. de 8-1-1986, p. 215: "A competência daAssembleia da República, prevista na ai. c) do n." l do art. 1(58." [actual art. l65.°-l/cJJ da LeiFundamental {"dei inic. ao de crimes"), exerce-se quer pela positiva, isto é. pela modelação,por via legislativa, dos crimes e penas era sentido próprio, quer pela negativa, isto é. pelasupressão do quadro criminal de tipos de ilícito e respectivas pena1;". Jurisprudência suces-sivamente reiterada pelo PC. \: g., nos Aes. 427'87. de 4-11-1987: 337<'92, de 27-10-1992;441/93. de Í4-7-1993; 787/93. fle 30-j 1-1993; e K.V7.'93. de 16-12-199.*.

8." Capítulo — O princípio da legalidade da intervenção penal 185

ao que aqui se considera e onde, por isso, o Governo e a Administração têmcompetência geral, ou mais lata do que em matéria penal, para legislar.O que acaba por fazer crise nas chamadas normas penais em branco,sobretudo abundantes no âmbito do direito penal secundário, que cominamunia pena para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam atra-vés de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou inclusi-vamente actos administrativos autonomamente promulgados em outrotempo ou lugar (12). Pressuposto porém, evidentemente, que a normapenal em branco consta de lei formal, não se vêem. razões teleológico-funcionais decisivas para considerar em causa, no plano da fonte, o respeitopelo princípio da legalidade.

§ 15 O que fita dito no parágrafo anterior vale também paia os casos em que

um regulamento comunitário (directamente aplicável na ordem jurídica portuguesa:

art, 8,°-4 da CRPI í chamado a preencher, por remissão, o "espaço em branco" de uma

norma penal interna; para este efeito o regulamento encontra-se no mesmo plano dos

instrumentos legislativos nacionais não legitimados para criar proibições penais (l3}.

O problema já não se põe relativamente às directivas comunitárias e às decLsões-qua-dro, pois estes instrumentos carecem sempre de uma actividade de transposição por partedos legisladores nacionais, a quem caberá proceder de acordo com o princípio dalegalidade (14).

IV. A deterntinabilidade do tipo legai

§ 16 No plano da determinahilidade do tipo legal ou tipo de garan-tia — precisamente, o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixa-

(]2) Há divergências doutrinais significativas sobre o próprio conceito de lei penal embranco, podendo divisar-se uma acepção estrita (na qual cabe ainda a formulação do texto) e umaacepção ampla: cf., de uma parte, SILVA. Marques da, 1. ti.0 65. c CARVALHO, Taipa de. g 29.1 e ss.:e. da outra. BU.EZA, Teresa / PINTO, Costa, O Regime l.egttl tio Eiró c as Normas Penais emFiranco. 1999, p. -19 e ss

(nj No sentido de que os regulamentos comunitários só poflein ler efeitos positivos, emmatéria penal, através da lei interna e do "jogo" das normas penais cm branco, CALIRU, Pedro,Pcwpecluas de formação de um direito penal da União Europeia. RPCC 6, 1996, p. 192 e ss.

(14) E jurisprudência Urine do TJ que as directivas comunitárias não transpostas não sãolítkíiies nos ordenamentos internos e não podem, poi isso. criar deveres de índole penal para oscidadãos (Acs tio TJ de S-10-1987 c, por último, de 7-1-2004). Parece, alem disso, que no cusode um listado transpor incorrectamente uma directiva o jjii: não pode recorrer àquela para fazeruma interpretação "correctiva" da norma interna que a transpôs se assim ampliai- a área dapi in ib i l idade icf. as conclusões rio Advogado-Geral Colomer, de 18-6-1996, nos processo*, apen-sos C-74/95 e C-I29<9?>. Relativamente às decisões-q u adro. o sut 34 ."-2'1/» do Tratado daUnião Huropeia nega-lhes expressamente "efeito directo".

186 Título III — A lei penal e u sua aplicação

cão se torna necessária para uma correcta observância do princípio dalegalidade (infra, lí.° Cap., § 3) —, importa que a descrição da matéria proi-bida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto umapunição seja levada até a um ponto em que se tornem objectivamentedetermináveis os comportamentos proibidos c sancionados e, consequen-temenle, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cida-dãos. Considerar crime — para usar de exemplos que já atrás foram assi-nalados — as condutas que ofendem o "são sentimento do povo" ou a"ordem dos operários e agricultores" tornaria supérfluo um grande númerode incriminações dos códigos penais; mas não cumpriria minimamente asexigências de sentido ínsitas no princípio da legalidade. Do mesmo modo,se é inevitável que a formulação dos tipos legais não consiga renunciar àutilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados, de cláu-sulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua uti-lização não obste à determinabilidade objectiva das condutas proibidas edemais elementos de punibilidade requeridos, sob pena de violação irre-missível, neste plano, do princípio da legalidade e sobretudo da sua teleo-logia garantística. Nesta acepção se afirma, com razão, que a lei penal fun-damentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certae determinada; e se chama muito acertadamente a atenção, nos novostempos, para que é mais aqui até do que no plano da proibição da analo-gia ou da retroactividade que reside o grande perigo para a consistência doprincípio nullum crimen ( l5), que é neste ponto que reside o verdadeirocerne do princípio da legalidade (16).

§ 17 Os exemplos de hipóteses duvidosas sob o prisma em consideração podemmultiplicar-se quase ad nauseam, por mais perfeita c cuidadosa que seja a técnicalegislativa. O seu campo de eleição será o do direito penal secundário. Mas nãofaltam exemplos mesmo no âmbito do direito pena! primário: elementos como os dos"bons costumes" do art. 38.°-!. do "motivo torpe ou fútil" ou do "meio insidioso"do art. 132", do "censurável" do art. l54.°-3/í(J, do "abuso grosseiro dos poderes'" doart. 15H." são só alguns dos maia citados. O critério decisivo para aferir do respeitopelo princípio da legalidade (e da respectiva constitucional idade da regulamentação)residirá sempre em saber se. apesar cia indeterminarão inevitável resultante da utilizaçãodestes elementos, do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área K umfim de protecção da norma claramente determinados.

(i5) WELZEL, § 5, II. 3("''f ScuuNEMAKN, ,'Vn/ííf pa-mi sinf lege. 1978. p. ó.

1878." Capítula — O princípio da legalidade da intervenção penai

V. A proibição da analogia

§ 18 Toma-se neste contexto o conceito de analogia como aplicaçãode uma regra jurídica a um caso concreto nào regulado pela lei através deum argumento de semelhança substancia! com os casos regulados: a cha-mada analogia legis, não a analogia iuris. Depois de quanto ficou ditolorna-se evidente que o argumento de analogia, largamente admitido nageneralidade dos ramos de direito como procedimento adequado à aplica-ção da lei, tem em direito penai de ser proibido, por força do conteúdo desentido do princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra oagente e vise servir a fundamentação ou a agravação da sua responsabili-dade. Esta conclusão já resultaria evidente do texto do art. 29.°-! da CRP(e também do art. l ."-l do CP), porque nestas hipóteses se não pode afir-mar que a lei declara punível o acto ou a omissão. Mas o CP entendeu— e bem — reforçar a proibição, estatuindo expressis verbis, no art. l.0-3,que "não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto comocrime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou a medidade segurança que lhes corresponde".

1. Interpretação e analogia em direito penal

§ 19 A proibição de analogia pressupõe a resolução do problemados limites da interpretação admissível em direito penal. Está hojeafastada definitivamente a convicção íluminista de que o princípio da sepa-ração de poderes conduziria logo à proibição de qualquer processo deinterpretação jurídica (Montesquieu; "Lês juges ne sont que Ia bouche quiprononce lês paroles de Ia loi" (l7); ou Beccaria: "Para qualquer delitodeve o juiz construir um silogismo perfeito: a premissa maior deve ser alei geral; a menor, a acção conforme ou não à lei; a conciusão, a liberdadeou a pena" ( l8)) c a concepção da função judicial que lhe subjazia. Eaceita-se, pelo contrário, que praticamente todos os conceitos utilizadosna lei são susceptíveis e carentes de interpretação: não apenas os concei-tos "normativos", mas mesmo aqueles que à primeira vista se diria carac-

ol MoNTF.SQf.ubu, nota 2, ibidem.('") BFIX-ARIA. Dm Delitos f ifas Penas (tradução portuguesa de Faria Cosia. 1998), IV;

e também XIV: "Quando as leis ião durai, c precisas, a tarefa do jui? não consiste em oulra coisa.senão em constatar um lacto".

188 Título III — A lei penal e. a sua aplicaçun

terizadamente "descritivos" e por isso apreensiveis através dos sentidos(infra, 11.° Cap., § 11 e s.). Deste modo se torna inarredável a questão desaber o que pertence ainda à interpretação permitida e o que pertence jáà analogia proibida ein direito penal pelo princípio da legalidade.

§ 20 O critério de distinção teleológica e funcionalmente impostopelo fundamento e pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidadesó pode ser o seguinte: o legislador pena! é obrigado a exprimir-se atravésde palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único sentido, maspelo contrário se apresentam quase sempre polissémicas. Por isso o textolegal se torna carente de interpretação (e neste sentido, atenta a primaziada teleologia legal, de concretização, complementação ou desenvolvimentoiudicial), oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentidocomum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significa-ções dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optai- -sem ultra-passar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob nãoimporta que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínioda analogia proibida. Um tal quadro não constitui por isso critério ou ele-mento, mas limite da interpretação admissível em direito penal (19).

§ 21 (1) Caso exemplai- c ouirora muito discutido foi o de saber se a ener-gia eléctrica poderia considerar-se uma '"coisa mover para efeito do crime de furto(art. 203."-]) consistente na manipulação dos contadores. Em Portugal a jurisprudên-cia prevalentc respondeu afirmativãmente à questão f20); na Alemanha a jurisprudênciado Reichsgerichl, seguida pela doutrina, considerou que se trataria aqui de analogiaproibida, não tfe interpretação permitida (2 I). Aceitando esta opinião, o legislador ale-mão criou (e ainda hoje conserva) uma específica incriminação da subtracção de ener-gia eléctrica (CP alemão, § 248c). A ser assim também no nosso direito, e na falia deuma incriminação correspondente, parece que as condutas conducentes ao desvio de ener-gia eléctrica alheia só poderiam ser punidas por via da (eventual) falsificação, danifi-

I19) Neste sentido a jurisprudência e a doutrina hoje dominantes na Alemanha: indica-ções cm ROXTN I, g 5. n.'J 26 e ss. E completamente neste sentido, também, entre nós, o At.do STJ 1/2002. de 5-11-2002. De alguma forma pode afirmar-se que o critério proposto não estarámuito afastado do entendimento que a doutrina civilista i az do disposto no art. 9."-2 do CC: ''Nãopode porém ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na leira dalei um mínimo de correspondência verbal", se bem que (cf. a seguir no testo) seja diversa a leleo-logia, a função e o fundamente do critério juridico-penal aqui em causa.

(Z") Cf., por outros, Ac. do STJ de 20-4-1955, BM3 4%, p. 44.(-') Sinteticamente sobre o caso. ROXTN I, § 5. n." 33. Considerando as energias "mecâ-

nicas", controláveis e quantificáveis, como "coisas" para o direito penal e. concreta m ente. paraeleito do tipo do furto, COSTA. Fana. Comentário Conimbríccrtw, II, art. 203.". p. 39.

8," Capítulo — O princípio da legalidade da imervençao penal 189

cação ou subtracção de notação técnica (arts. 258."-! e 2 e 259.°-l) e (eventualmentetambém) da burla (íirt. 217.° e ss.). (2) Uma violação da proibição de analogia terá pra-ticado a jurisprudência portuguesa no domínio do CP de 1886, ao considerar comoburla por deíraudação, punível nos termos do art. 451.'1, o atear fogo a coisa própriaa fira de receber o seguro respectivo (22). Não parecia, com efeito, que coubesse noteor literal da expressão típica artificio fraudulento — como porventura mesmo noactual "erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou" do art. 217.°-1 — asimples comunicação do incêndio (realmente existente e por conseguinte verdadeira).Considerando que aqui se verificava, efectivamente, uma lacuna da lei que não podiaser preenchida por recurso à analogia, o CP de 1982 veio colmatá-la incriminandoexpressamente a burla relativa a seguros (hoje art. 219.") (:3). (3) Hoje muito discutida,ciilre nós e lá fora, é a questão de saber se podem ser considerados como armas. p. cx.,um ácido (24) ou uma seringa (possivelmente infectada pelo vírus da SIDA) (25).

§ 22 A doutrina aqui defendida não é, contra o que poderia pen-sar-se, arbitrária, nem muito menos filha de uma metodologia crassamentepositivista (26). É, pelo contrário, a posição teleológica e funcionalmenteimposta pelo conteúdo de sentido próprio do princípio da legalidade. Fun-dar ou agravar a responsabilidade do agente em uma qualquer base que caiafora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limitao poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pes-soas. Por isso falta a um tal procedimento legitimação democrática e temde lhe ser assacada violação da regra do Estado de Direito. É claro que,dito isto, não ficam ainda apontados os critérios de que o intérprete sedeve servir para eleger, de entre os sentidos possíveis das palavras, aqueleque deve reputar-se jurídico-penalmente imposto. Se o caso couber em umdos sentidos possíveis das palavras da lei nada há, a partir daí, a acres-centar ou a retirar aos critérios gerais da interpretação jurídica. O quesimplesmente sucede, pois, é que — como escrevemos já há mais de umquarto de século (27) — "há de facto, em toda a construção — e muito par-

(2;) Cf., p. ex., o Ac. da RL de 9-10-1954. BMJ 41, p. 159.(-') Criticamente, todavia. COSIA, A. M. Almeida, Comentário Conimbriíense, 11, art. 219.",

§ 5 c s.(?4)P5)

Cf. Ac. do TC 205/99, de 7-4-1999. (SMJ 486. 1999, p. 56.Cf. Ac. do STJ de 8-2-1996, BMJ 454, 1996, p. 370 c ss.

(3(l| Como o não é, em nosso entendimento, uma tese tão (contessadamente) "provocató-ria" como a de KJM, U-Su, Die Gesetzlichkeitsgrundsatz im Licht der Reehtsidee, Roxin-FS, 2001.p. 142: a da ''prioridade da segurança face à lei, prioridade da lei lace à torça e prioridade do legis-lador face ao juiz". Cf., todavia, por muitos outros. NEVF^, Castanheira, nota 5, p. 410 e ss.

("l DIAS, Figueiredo, DireiU) Penai — A Infracção Pena! (relatório do concurso para pro-fessor catedrático), 1976, p. 105 e s.

190 Titulo III — A lei penal e a sua aplicação

ticularmente na aplicação — do direito penal um momento 'inicial' de merasubsunção formal, imposta por aquele princípio [da legalidade] e pela fun-ção de garantia ou. se quisermos, pelo 'tipo de garantia' que daquele prin-cípio resulta. Ultrapassado porém este momento inicial, correspondente àoperação lógico-jurídica da incriminação, toda a posterior construção e apli-cação não está submetida àquelas exigências e deve integrar-se completa-mente nas duas ideias fundamentais da impostação metodológica sugerida".Decisivo será assim, por um lado, que a interpretação seja feleologicamentecomandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pelanorma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, ade-quada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assumeno sistema. Sobre tudo isto já se disse o suficiente (supra, 3." Cap.. § 15e ss.) para neste contexto poder renunciar-se a maiores desenvolvimentos.

§ 23 Ultrapassada por esta via fica a velhíssima querela hermenêutica e meto-

dológica entre interpretação subjecti vista — acolhida à (real ou pretensal vontade do

legislador histórico (2S) — e interpretação objectivista — fundada nos sentidos que a

regulamentação assume no momento em que o processo hermenêutico é levado a

cabo. Que o intérprete está indissoluvelmente ligado aos juízos de valor, aos sentidos,

às finalidades ou ao tkeio.t — não às representações fácticas! — do legislador histó-

rico, c coisa que deve ter-se por adquirida e fora de questão. Mas igualmente óbvio

é que o interprete pode (e deve) tomar em conta novas realidades, novas descobertas,

novos instrumentos c mesmo novas concepções que não poderiam ter estado no campo

de representação do legislador histórico, desde que o toma-las em conta não impliqueultrapassar o teor literal da regulamentação c o seu campo de significações adequadas

ao entendimento comum das palavras que naquela foram utilizadas,

§ 24 Perante a concepção aqui defendida parecem improceder asobjecções que se seja tentado a opor-lhe. E desde logo a velha — mas sem-pre renovada — objecção segundo a qual não é logicamente possível, nemmetodologicamente legitimo distinguir entre interpretação e analogia (25).

('«) CORRETA, Eduardo- Lições, p. 145 e ss. e t, n.u 32, II.!29| De forma peremptória, NEVES. Caslanheira, nota 5, p. 451, entendendo que a proi-

bição da analogia eonsliíui um "erro legislativo", porque a analogia já não tem que ver cora alei, mas com íi realização do direito. A literatura sobre a questão, seja como questão metodo-lógica geral, seja especialmente à luz do direito penal e do nutíum crimen é já hoje praticamenteinabarcável. Entre nós, cf., por último, NEVES, Castanheiro, O Aciuat Problema Meli.idulOKii.-iida Interpretação Jurídica, I. 2003, c BRONZE, Pinto, Lições de Introdução ao Direito, :2006,pp. 875 e ss., 906 e ss., onde aliás considera expressamente os exemplos referidos supra, § 21, (1;c (3). Nesles AÃ. cnconlra-se uma vastíssima menção da principal literatura estrangeira sobre olema. Também DIAS, Siíva, "/Jcííc/u in se'' f "lielicta mere prohihita": nina Análise daí /Jpj-

8." Capítulo — O princípio da legalidade da intervenção penal 191

Decerto que o processo lógico é o mesmo; decerto que interpretação eintegração são momentos, ambos, de um processo metodológico de aplicaçãofundamentalmente unitário. Mas nada disto ofusca a circunstância de queexistem processos hermenêuticos cuja conclusão se mantém no quadrodos significados comuns atribuídos às palavras utilizadas pelo legislador eprocessos cuja conclusão o ultrapassa: e é isto o essencial para observân-cia do conteúdo de sentido legitimador do princípio da legalidade. Todoo resto acaba por reduzir-se a uma questão lerminológica desinteressante(30), qual seja a de saber se em vez de distinguir a "interpretação" da"analogia" não se torna preferível distinguir uma interpretação jurídico-penalniente permitida de uma outra proibida.

§ 25 Não parece, por outro lado. que deva substituir-se a funçãolimitadora que aqui se assinala ao teor literal da norma incriminadora pelosentido e finalidade da lei, em suma, pelo apelo à ratio legis (3I). Claroque este sentido e finalidade assume na interpretação (também na jurí-dico-penal, como assinalámos) uma função primordial. Mas, antes de eleentrar ern jogo, a interpretação admissível tem de passar a "prova de fogo"— para a qual pode servir a imagem do "funil invertido'' — da sua admis-sibilidade face ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele com-parta. De outro modo csfuma-se a função de garantia da lei penal — a pro-tecção das pessoas perante a lei penal, a que logo aludimos no § l — , nãoé possível encontrar qualquer especificidade do princípio da legalidadecrimina/ face ao princípio da legalidade lout court e o disposto no arí. 29.°-!da CRP perde inteiramente a sua função e o seu significado.

§ 26 O que acaba de dizer-se não significa porém que deva aceitar-seuma cisão f32) entre o princípio da legalidade e a sua função político-crimi-

rontirmídades do Ilícito Pena! Moderno à Ijiz da Reconstrução de uma Distinção Clássica, 2003,p. 414 e ss., apesar de uma postLira críliea perante o critério que defendemos, acaba por concluirpela possibilidade de distinção entre interpretação e analogia "tanto por razões político-jurídicasrelacionadas com o Estado de Direito (...), quanto por razões metodológicas" e — ao que nos pare-ceu — por chegar a soluções prãiico-iiormativas análogas às que defendemos (p. 422 c ss.).

l311) Assim, também, ROXIN I. § 5, n." 36.(!|) Assim todavia, entre outros, STRATENWERTH ,' KUHI.RV, S 3, n." 31 e -A., c, de uma

forma mais complexa e limitadora mas substancialmente análoga, lambem, JAKOBS, 4/41. Con-tra, no sentido do texto, A.vniMnh, Coita. O princípio constitucional <<nul!um critnen sine lege»e a analogia no campo das causas de justificação, RLJ 134, 2001. p. 76.

(1!) Crítico quanto a cia. htANCO, Silva. 711: Franco / Stoco, p. 62.

192 Título III — A lei penal e a ma aplicação

naf, sujeito a uma compreensão metódica estritamente lógico-formal, de umlado, e a dogmática do crime, orientada por uma consideração substancial, deoutro; de tal modo que àquele princípio, uma vez ultrapassado o momento ini-cial de subsunção incriminatória, não mais houvesse que reverter. Antes o con-teúdo e a função pohtico-criminal do princípio da legalidade devem a cadamomento estar presentes na construção dogmática do crime. E. antes detudo, no seu elemento constitutivo que se acolhe sob a epígrafe da tipicidadeou, mais concretamente, do tipo de ilícito (infra, ll.° Cap. e ss.). sendo nesteque se fazem sentir de forma mais intensa e devem portanto encontrar traduçãomais cabal as exigências de determinabilidade inerentes ao princípio da lega-lidade. Temas como os da exigência de uma "conexão de risco" em maté-ria de imputação objectiva (infra, 12 " Cap., § 21 e ss.), de determinação doque sejam "actos de execução" em matéria de tentativa, ou de preferência pelasdoutrinas do "domínio do facto" em matéria de autoria (sobre aqueles eestas, infra, 28." Cap., § 13 e ss., e 30.° Cap., § 16 e ss.) são só algunsexemplos que esperamos tornarem claro aquilo que aqui se quis significar (3Í).

2. Âmbito da proibição de analogia

§ 27 Face ao fundamento, à função e ao sentido do princípio dalegalidade a proibição de analogia vaie relativamente a todos os elemen-tos, qualquer que seja a natureza, que sirvam para fundamentar a respon-sabilidade ou para a agravar; a proibição vale pois contra reum ou inmalem partem, mofavore reum ou in boruim panem (supra, § 12).

§ 28 Concretamente, a proibição abrange antes de tudo os elementosconstitutivos dos tipos legais de crime descritos na PE do CP ou emlegislação penal extravagante. Como vale relativamente às leis penaisem branco não só rio que toca à parte sancionatória (especificamentepenal) da norma, mas ainda mesmo na parte em que esta remete para aregulamentação externa. Coisa diferente só deverá dizer-se relativamentea conceitualizações extra-penais utilizadas pelo legislador penal que, emprincípio, este terá querido usar de forma puramente acessória e, por con-seguinte, com o sentido que elas possuem no ramo de direito a que per-tencem; caso em que se compreende que devam "aceitar-se os resultados

('•'j Assim, DIAS, Figueiredo, Legalidade c tipo em Direito Penal, Escritos em Homena-gem a Alberto Silva Franco. 2003, p. 213.

8." Capítulo — O princípio da legalidade da intervençãd pena! 193

a que legilimamente se chegue pelos métodos de interpretação permitidosnesse ramo de direito" (34).

§ 29 Também relativamente à matéria das consequências jurídicas docrime vale a proibição de analogia em tudo quanto possa revelar-se desfa-vorável ao agente, isto é, no fundo, em tudo o que signifique restrição (acres-cida) da sua liberdade no sentido mais compreensivo. Por isso não tem hojerazão de ser uma doutrina, outrora dominante, segundo a qual a proibição vale-ria em matéria de penas, mas já não de medidas de segurança, por estaremaqui era causa finalidades estritas de prevenção especial positiva. O mesmose diga, de resto, para a parte sancionatória das leis penais em branco.

§ 30 A proibição de analogia vale ainda para certas normas da PGdo CP: para aquelas que constituem alargamentos da punibilidade de com-portamentos previstos corao crimes na PE, nomeadamente em matéria detentativa (art. 22."; ex.: não é admissível o recurso à analogia para quali-ficar um certo acfo como acto de execução), de comparticipação (art. 26.°e ss.; ex.: não é admissível o recurso à analogia para qualificar comodoloso o auxílio), etc. Um problema especial é aqui constituído pelascausas de justificação e pelas causas de. exclusão (ou atenuação) da culpae da punibilidade. Tratando-se nelas de situações que não fundamentamou agravam a responsabilidade do agente, mas pelo contrário a excluem oua atenuam, o recurso à analogia é legítimo sempre que o resultado seja odo alargamento do seu campo de incidência; mas já será ilegítimo se tivercomo consequência a diminuição daquele campo (35), se bem que hajaaqui razões para determinar de forma mais restritiva os limites da analo-gia proibida (infra, 14.° Cap., § 3 e ss.).

VI. A proibição de retroactividade. O âmbito de validade temporalda lei penal ou problema da "aplicação da lei penal no tempo"

1. Aplicação da lei penal no tempo e princípio da irretroacíividade

§ 31 O plano porventura praticamente mais significativo de refracçãodo princípio da legalidade e aquele que origina problemas mais complexos

C54} CORREÍA, Eduardo. 1. S 7, E ° 32; e lambem ROXIN l, i) 5, n." 40.C') Assim, sem restrições, ANDRADL, Costa, nota 31, p. 130 e ss.

i j

194 Tíiuln III — A lei penal e o sua aplicação

é o da proibição de retroactividade in inalem partem, isto é, contra oagente. Pode suceder, na verdade, que após a prática de um facto, que aotempo não consliluía crime, uma lei nova venha criminalizá-lo; ou, sendoo facto já crime ao tempo da sua prática, uma lei nova venha prever paraele uma pena mais grave, ou qualitativamente (y. g., pena de prisão quandoera apenas de multa) ou quantitativamente (v. g,, prisão até 8 anos quandoera somente até 5 anos). O problema da aplicação da lei no tempo éresolvido através das normas chamadas de direito inter-iemporal. Estedireito como que se reduz, no âmbito penal, ao princípio que traduz umadas consequências mais fundamentais do princípio da legalidade: o daproibição de retroactividade em tudo quanto funcione contra reuni ouin malem partem. Através dele se satisfaz a exigência constitucional elegai de que só seja punido o facto descrito e declarado passível de penapor lei anterior ao momento da prática do facto. Com este conteúdo eesta extensão a proibição de retroactividade da lei penal fundamentadoraou agravadora da punibilidade constituí uma das traves mestras de todo oEstado democrático contemporâneo (•">).

2. Determinação do tempus delicti

§ 32 Pressuposto de actuação do princípio da i [retroactividade é poisa determinação do tempus delicti, isto é, daquele que deve considerar-se omomento da prática do facto. O que está longe de ser em todos os casosisento de dúvidas: quer porque o "facto" pode analisar-se em uma acção, mastambém em uma omissão; quer porque nele se pode compreender não só aconduta, mas também o resultado, podendo uma e outro ter lugar emmomentos temporal mente (muito) distintos; quer porque tanto a conduta,como o resultado se podem arrastar no tempo. Para obviar a estas difi-culdades dispõe o art. 3." que "o facto considera-se praticado no momentoem que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, inde-pendentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido".

§ 33 Da referida disposição legal resulta que decisivo para determi-nação do momento da prática do facto é a conduta, não o resultado.

(•">} CAUVALHO. Taipa Je, I, § 314 e ss1.. e noto 9, passim, e COSTA, Faria. O DireitoPenal e o Tempo {algumas reflexões dentro do nosso tempo e em redor ;la piescrição), BFD,Volume Comemarasivo, 2002. p. 12. Sobre o (ema. cf., lambem. CALMA, Fernanda, A aplicaçãoda lei no tempo: a proibição da retioacthidade in pejut. Jornadas FDljL, p. 413.

S." Capítulo — O principio du legalidade da intervençãi/ penal 195

O que bem se justifica à luz da função e do sentido do princípio da lega-lidade í37), P^r 'sso quc é no momento em que o agente actua (ou, nocaso de omissão, deveria ter actuado) que releva a função tutelar dos direi-tos, liberdades e garantias da pessoa que constitui a razão de ser daqueleprincípio. Fosse decisivo a propósito só o momento em que o resultado,a ser ele jurídico-penalmente relevante (o que nem sempre sucede: infra,J l." Cap., § 37 e ss.), tem lugar e estaria aberta a porta ao arbítrio e ao pos-síveí excesso da intervenção punitiva do Estado.

§ 34 A segunda conclusão a retirar da regulamentação é a de que elavaie para todos os comparticipantes no facto criminoso, venha a sua res-ponsabilização a ter lugar a título de autores ou apenas de cúmplices(arts. 26 ° e 27."). Porque tanto aqueles como estes, obviamente, são credo-res da protecção e garantia que o princípio da legalidade se propõe oferecer.

§ 35 Problema especial é constituído por todos aqueles crimes em quea conduta se prolonga no tempo, de tal modo que uma parte ocorre nodomínio da lei antiga, outra parte no da lei nova: e de que é exemploparadigmático o dos crimes duradouros, também chamados "permanen-tes" (infra, I I . " Cap., § 54), p. cx. o crime de sequestro (art. 158.").A melhor doutrina parece ser aqui a de que qualquer agravação da leiocorrida antes do término da consumação (sobre este conceito, infra, 27.°Cap., § 11 e s.) só pode valer para aqueles elementos típicos do compor-tamento verificados após o momento da modificação legislativa (í8). E solu-ção paralela parece dever defender-se para o chamado crime continuado(art. 30."-2; cf. infra, 43." Cap., §§ 37 e ss. c 59 e ss.) (3y).

*3. Âmbito de aplicação da proibição

§ 36 Tal como vimos suceder com a proibição de analogia — e pelasmesmas razões substanciais — . também a proibição de retroactividade

(37) CARVALHO, Taipa de. nula 9, p. 84 e ss.O*) Assim, também. CARVALHO, Taipa de. nota "í. p. 92 e ss.: aplicação da lei nova (mais

grave) apenas quando "a totalidade dos pressupostos dii lei nova se tenham verificado na vigên-cia desta". Assim lambem, apesar do lexto, pelo menos equívoco, do S 2 (2) do CP alemão.JAKOBS, 4/58 e s., c STRATFNWLRTH / Kim FM. 5 3, n."" 8.

( i y) Mais longe no que respeita á aplicação da lei nova (agravante) parece ir ROCHA.Lopes. Aplicação da lei criminal 110 tempo c no espaço. JDC 1983, p. 103 c s.

196 Tíluln III — A lei penai e a sua apíicaçãii

funciona apenas a favor do agente, não contra ele. Por isso a proibiçãovale relativamente a todos os elementos da punibilidade, à limitação de cau-sas de justificação, de exclusão ou de diminuição da culpa e às conse-quências jurídicas do crime, qualquer que seja a sua espécie (penas, medi-das de segurança, consequências penais).

§ 37 Em muitas ordens jurídicas vigora ainda hoje (por vezes expres-samente: cf., p. ex., o § 2 (6) do CP alemão) a ideia de que a proibição nãovale relativamente às medidas de segurança; na base, uma vez mais, deque se trata aí de medidas de prevenção especial positiva comandadaspelo "verdadeiro bem" do agente f40). E a ideia teve também curso entrenós (4I) até à CRP actual e ao CP de 1982. Hoje porém existem injunçõeslegais, constitucionais (CRP, art. 29.°-1 e 3) e ordinárias (art. l.°-2), que ter-minantemente afastam uma tal doutrina. Com razão, como já supra, § 8e s., se expôs. Também relativamente às medidas de segurança se fazemsentir exigências de protecção dos direitos, liberdades e garantias das pes-soas atingidas que substancialmente se identificam com as que se fazem sen-tir ao nível das penas (42). De considerar é agora todavia a doutrinadiferenciadora proposta por Maria João Antunes: "se no tocante ao pres-suposto 'prática de facto ilícito típico' vale a lei vigente no momento daprática do facto, já quanto ao pressuposto 'fundado receio de que o agentevenha a cometer outros factos ilícitos típicos' poderá valer a lei vigente nomomento da formulação deste juízo de perigosidade". Por isso "a medidade segurança só é aplicável se o facto for descrito e declarado passível depena por lei anterior ao momento da sua prática; a medida de segurançanão é aplicável se o facto punível segundo a lei vigente no momento da suaprática deixar de o ser, por uma lei nova o eliminar do número das infrac-ções, ainda que haja decisão transitada em julgado; a medida de segu-rança a aplicar, em concreto, deterrnina-se pela lei vigente no momento da

(w) V., por último, para concluir, criticamente, num sentido próximo ao do texto. BEST,13ominik, Die Riskwirkimgsverbiít nach Art. 3 Abs, 2 GG und die Massrcgeln der Besserung undSicherung (§2 Abs. 6 StGB). ZStW 114, 2002, p. 88.

(41i Por outros. CORREIA, Eduardo, I, n." 36, 11, 5, e, na sua esteira, GON:ALVES, Maia,S1980. art. 6.°, anot. 6.

<42'i CARVALHO, Taipa de, nota 9. p. 208 e ss.; DIAS. Figueiredo, DP II, § 685 e ss.; FLR-REIRA, Cavaleira de, 1. 1981, p. 127; SILVA, Marques da. Algumas notas sobre a consagração dosprincípios da legalidade e da jurisdicionalidadc na Constituição da República Portuguesa, Estu-dos sobre a Constituição, 11, 1978, p. 262; GOI-PM.VES, Maia. U1997, pp. 50 e s. e 57 e s.;PALMA. Fernanda, nota 36, p. 416 e s.

S." Capítulo — O princípio do legalidade da intervenção penai 197

decisão (o momento do preenchimento do pressuposto da perigosidadecriminal do agente), excluindo-se, portanto, a lei vigente no momento daexecução; a medida de segurança a aplicar, em concreto, determina-se pelalei vigente no momento da decisão, ainda que a íei vigente no momentoda prática do facto ilícito típico não determinasse a mesma medida" (43).

§ 38 Questão interessante é a de saber se submetida à proibição deretroactividade está só a lei ou também a jurisprudência. Deverá admi-tir-se que uma corrente de aplicação jurisprudencial definida e estabilizadapossa ser alterada — mesmo sem alteração da lei — contra o agente'?Exemplos concretos desta questão foram o da mudança de entendimentojurisprudencial na Alemanha quanto à taxa de álcool no sangue, de 1,3 g/1para l ,1 g/1, para efeitos de condução sob o efeito do álcool ou na Itáliaquanto ao jogo das três cartas (por cá vermelhinha), que de jogo dehabilidade passou a ser considerado como de azar e por isso penalmente

punível.

§ 39 A aplicação da nova corrente jurisprudência! que determina apunição do facto praticado ao tempo da jurisprudência anterior, que o con-siderava criminalmente irrelevante, não constitui propriamente uma vio-lação do princípio da legalidade í44); mas — como conclui tambémNuno Brandão em estudo recente — não deixa de pôr em causa valores quelhe estão associados, pela frustração das expectativas quanto ã irreievân-cía penal da conduta, formadas cora base numa interpretação judicial, entrenós eventualmente publicada no DR, quando se trate de entendimento defi-nido em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência (art. 444.°-1do CPP) (45). E na verdade, o que se alterou foi o conhecimento (emdirecção pressupostamente a um melhor conhecimento) da teleologia e dafuncionalidade de uma certa norma jurídica: de outro modo, seria o pró-prio fundamento da separação de poderes que se poria em causa. Além deque parece ser essa a solução que de jure constiluto resulta da lei proces-

(41) ANTUNES, Maria João, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimpuíá-

vel em Razão de Anomalia Psíquica, 2002, p. 180 c ss. {p. 183).l44) NEVES, Castaiiheira, nota 5, p. 325, CARVALHO, Taipa, nota 9, p. 343 c ss., PALMA,

Fernanda, nota 36, p. 415, e RoxiN I, § 5, n." 59(4í) BRANDÃO, Nuno, Contrastes jurisprudências s: problemas e respostas processuais

penais, Líber Disciputorum Figueiredo Dias, 2003, p. 1302 e ss. Cf. MAURACH / ZIPF, 12/8,

e S / S / BSER, S 2, n."" 8 e 9.

Titulo III — A iei pena! t a sua aplicação

aal penal (arts. 445.° e 446.° do CPP) (4(l). Todavia, devem os tribunais;r extremamente cuidadosos (sobretudo onde — o que infelizmente não0 caso de Portugal — existam fortes, seguras e geralmente conhecidas

rientações jurisprudenciais fundamentais) na modificação de uma cor-:nte jurisprudência! contra o agente, mostrando-se em tais circunstânciasinda mais exigentes no respeito pelo círculo máximo de significaçõesuc imputem ao texto da lei e não se furtando a um "particular ónus de con-a-argumentação" (47). Deverá, finalmente, assinalar-se que o cidadãolie actuou com base em expectativas fundadas numa primitiva correnteirisprudencial não estará completamente desprotegido, já que poderá porizes amparar-se numa falta de consciência do ilícito não censurável, queíterminará a exclusão da culpa e, em consequência, da punição {art. 17.°-!infra. 23." Cap., § 11 e ss.) (48).

§ 40 Questão muito discutida é, por fim, a de saber se a proibição de retroac- •/idade se estende aos pressupostos da punição, positivos e negativos, e aos pres-ipostõs processuais. O problema concretamente mais relevante situa-se cm maté-1 de prazos de prescrição (4y). Urge considerar, por outro lado, que em matériaocc.ssual o nosso ordenamento jurídico dispõe, no CPP, de uma norma especificamenterígida â questão: a do art. 5.", que contém o princípio da aplicação imediata da lei>va, mas lhe introduz decisivas limitações quando dele derive — no que ao pre-nte enquadramento interessa — um ''agravamento sensível e ainda evitável da situa-o processual do arguido, nomeadamente utna íimitação do seu direito de defesa" (so).

4, O princípio da aplicação da lei mais favorável

§ 41 A consequência teórica e praticamente mais importante do prin-pio segundo o qual a proibição de retroactividade só vale contra o agente,io a favor dele, consubstancia-se no principio da aplicação da lei (ou) regime) mais favorável (lex mellior). Esta consequência é de talodo significativa que assume expressão não só ao nível da lei ordinária

(*) Assim. BRANDÃO, Nuno, nota 44, p. 1306 e s., que todavia preconiza de legeferenda:hamada cláusula ex mmc, peia qual a nova corrente jurispradencial só se aplicaria aos t'ai>praticados a partir do momento em que foi emanada. Contra esta solução, NF.VRS, Castanheira,

Ia 5, p. 33', e s.(4"| NEVES. Castanhcira, nota 5. p. 33.1,(JS) Deste modo. RO.XIN 1. tj S. n." 59, MAURAOH / 'Lm, 12/8. NEVES. Castanheira, nota 5,

333. e BRANDÃO. Nuno, nota 44, p, 1307.C">) Cf. já o nosso fíP II, 58 1128 e 1135.C*>) Sobre isto. ia, o nosso DPP, 5 3, III, 4.