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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

    colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.

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    Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano

    Dilogos com a epistemologia ps-colonial

    Adelia Maria Miglievich Ribeiro1

    Resumo: Proponho conexes entre o pensamento crtico nascido na Amrica Latina e as propostas

    dessencializadoras que partem dos intelectuais diaspricos, chamados ps-coloniais, na desconstruo

    do projeto iluminista que silenciou as vozes de populaes de diversas partes do globo e buscou ocultar

    a face perversa da modernidade: a colonialidade, entendendo como contribuio mpar s Cincias

    Sociais o ponto de vista do entre-lugarque desnaturaliza um processo histrico, sumamente violento,

    que dividiu, artificialmente, a humanidade em Ocidente e Oriente, civilizao e barbrie. Para tanto,

    releio O Processo Civilizatrio (1968) de Darcy Ribeiro, incluindo-o como partcipe do movimento de

    descolonizao desse campo do saber. Argumento que sua ideia de modernizao, em que pese

    inegveis filiaes tericas modernistas, realiza tambm, na nfase evoluo multilinear, a crtica a

    um modelo nico de modernidade que subestima a auto-determinao dos povos. Construo, ao fim,

    possibilidades de dilogo entre as teses de Darcy Ribeiro e as preocupaes presentes em Appiah e

    Said acerca de um novo universalismo tico marcado pelo hibridismo e por seu reconhecido carter

    discursivo.

    Palavras-chave: Darcy Ribeiro. Modernidade-colonialidade. Ps-colonial. Hibridismo.

    Abstract: I suggest connections between the critical thinking born in Latin America and the proposals

    departing from diasporic intellectuals, called post-colonial ones, on the deconstruction of the

    Enlightenment project that silenced the voices of people from different parts of the globe and sought to

    hide the vicious face of modernity: the coloniality, by understanding as the unique contribution to the

    social sciences the stand point of between-place that denatures a historical process, extremely violent,

    which divided artificially the humanity in East and West, civilization and barbarism. For that, I read again

    "O Processo Civilizatrio (1968) of Darcy Ribeiro by including it as a participant in this movement of

    decolonization of the social sciences. I argue that his idea of modernization, despite undeniable

    modernist theoretical branches, performs as well, in theemphasis on multilinear evolution, the criticism of

    a single model of modernity that underestimates the self-determination of peoples. I construe, at the

    end, possibilities of dialogue between Darcy Ribeiro and the concerns present in Appiah and Said about

    a new ethical universalism marked by hybridity and recognized by its discursive character.

    Keywords: Darcy Ribeiro. Modernity-coloniality. Post-colonial. Hibridity.

    1

    Doutora em Sociologia (UFRJ). Bolsista-Pesquisadora Snior Ipea-Capes. Professora daGraduao em Cincias Sociais e dos Programas de Ps-Graduao em Cincias Sociais e emLetras da Universidade Federal do Esprito Santo (PGCS/PPGL-UFES).

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

    colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.

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    Apresentao

    Nada mais inaceitvel aos estudos ps-coloniais do que se constituir numa matriz

    terica nica. Ao contrrio, o movimento intelectual, que tambm impacta as

    Cincias Sociais hoje, comporta orientaes distintas que, na Amrica Latina,

    une-se ao pensamento crtico que o precede e desconfia das narrativas da

    modernidade que buscam ocultar sua outra face: a colonialidade. Em decorrncia,

    ops-colonialrealiza a crtica epistemolgica dos discursos que, sob a roupagem

    de universalizantes, subestimam outras racionalidades e saberes e, na prtica,

    legitimam violncias mediante a imposio de representaes sociais e vises de

    mundo unilaterais.

    Os intelectuais diaspricos cunham a expresso ps-colonial, trazendo como

    contribuio central s Cincias Sociais o ponto de vista do entre-lugar, que

    expe a perigosa naturalizao de um processo histrico linear e homogneo que

    ignora, em nome do eurocentrismo, a hibridez dos processos humanos de

    constituio da modernidade.

    Um dos fundadores do chamado pensamento ps-colonial, o martinicano Frantz

    Fanon, formado em Psiquiatria, revolucionrioda Frente Nacional de Libertao

    da Arglia, autor, dentre outros, de Pele Negra, Mscaras Brancas, cuja primeira

    edio, em francs, data de 1952, e Os Condenados da Terra, publicado em

    1961, produz uma crtica radical da colonizao mediante a anlise minuciosa das

    estratgias de violncia, subordinao e desumanizao que se produziu sobre o

    colonizado, tornando-o espectador sobrecarregado de inessencialidade (FANON,1979, p. 26). Para Fanon, apenas pelo contra-discurso ps-colonial e pela

    descolonizao podemos, enfim, reinventar o sujeito (ps-colonial) na sua

    verdadeira humanidade, portanto, como homens novos. Explicita-nos Costa:

    A abordagem ps-colonial constri sobre a evidncia de que toda

    comunicao vem de algum lugar, sua crtica ao processo de produo

    do conhecimento cientfico que, ao privilegiar modelos contedos

    prprios ao que se definiu como a cultura nacional nos pases europeus,reproduziria, em outros termos, a lgica da relao colonial. Tanto as

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    experincias de minorias sociais como os processos de transformao

    ocorridos nas sociedades no-ocidentais continuariam sendo tratados a

    partir de suas relaes de funcionalidade, semelhana ou divergncia

    com o que se denominou centro (COSTA, 2006, p. 117).

    Para Stuart Hall (2009), jamaicano de origem que, desde 1951, que mora na Gr-

    Bretanha, onde formou famlia, o prefixo ps na expresso ps-colonial no

    indica, em absoluto, um depois no sentido cronolgico linear da colonizao.

    Considerado o pai dos Estudos Culturais2, uma das vertentes do pensamento

    ps-colonial, refere-se a uma operao de reconfigurao do campo discursivo,

    no qual as hierarquias entre as narrativas ganham significado uma vez situadas

    na lgica colonial (ou neo-colonial) que alude a situaes de opresso diversas,

    definidas a partir de fronteiras de gnero, tnicas, raciais e outras.

    A desconstruo da dicotomia East/West por Rest/West marca, pois, a

    abordagem ps-colonial a exigir a reinterpretao da histria moderna. Ao sujeito

    branco ocidental no basta antepor o negro, colonizado. Atacar o racismo implica

    o desmonte do prprio sistema de representaes que criou polaridades pouco

    crveis numa realidade que da diffrance mltipla, heterognea, incapaz de

    caber em binarismos, mas que expressa intersees entre raa, classe, gnero,

    etnia, dentre outras identificaes, fruto da articulao dessas diferenas, mveis,

    cambiantes, construdas relacionalmente. O sujeito da resistncia anti-racista,

    para o ps-colonial, constitui-se como nova etnicidade (COSTA, 2006).

    Nesta perspectiva, podemos perceber confluncias e singularidades entreas abordagens de Fanon, Lopold Senghor, Aim Csaire e os estudos

    2 Ao estimular, a par do ps-estruturalismo, certa liberdade frente ao rigor epistemolgico naconstruo dos conceitos e o conhecimento indutivo, os estudos culturais deslocaram questesligadas classe e ao marxismo para temas como racismo, etnicidades, gnero e identidadesculturais. Hall, contudo, ironiza a designao de pai-fundador e prefere se perceber comotestemunha ocular do relevante giro hermenutico nas Cincias Sociais que viu acontecer a partirdos anos 1970, em especial, a partir do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), naUniversidade de Birminghan, mas no apenas. significativo que Stuart Hall, em palestra no

    Congresso da Associao Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), em Salvador, em 2000,tenha se referido a Roger Bastide e a Gilberto Freyre que, nos anos 1950, j influenciavam comseus trabalhos o que depois seriam chamados por estudos culturais. Cf. HALL, 2009, p.21.

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    subalternos da ndia; tambm com a reflexo latino-americana de Salazar Bondy,

    Leopoldo Zea, Enrique Dussel e da chamada Filosofia da Libertao. Assim, com

    a rede que se estende de Jos Mart e Jos Carlos Maritegui, do movimento

    terico de razes andinas aos nomes projetados em nvel mundial, a Arturo

    Escobar, Anbal Quijano, Fernando Coronil, Walter Mignolo, dentre outros,

    apontados por Edgardo Lander (2000) como sinal de uma efervescente produo

    intelectual dedicada ao esforo de desconstruo do edificio moderno pela, nas

    palavras de Quijano (2000), descolonizao do saber, do poder e do ser

    (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2009).

    Proponho que possamos relerDarcy Ribeiro como produtor de insights que, emque pese no advir de adeses s epistemologias ps-modernas, ou mais

    especificamente, ps-coloniais, derivam em adeses claras s ideias de uma

    modernidade plural e de auto-determinao dos povos. Sua ideia de nao , por

    exemplo, anloga a de povo pressupe, no a sntese, mas as diferenas; seu

    elogio miscigenao no funda um nico esteretipo de brasileiro mas abre o

    leque de possibilidades do gnero humano, ampliando-o: dos sertes aos

    pampas, do litoral ao cerrado, constroem-se modos de produzir a vida material ecultural inditos, criativos, que afirmam, a partir da negao do mito das trs

    raas, os brasileiros, mais uma vez, no plural.

    Curiosamente, Renato Ortiz (apud. SOARES, 2008) traa um paralelo entre o

    Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o pensamento ps-colonial de

    Frantz Fanon, sem pretender estabelecer qualquer filiao direta entre ambos os

    movimentos intelectuais. Percebendo a independncia entre essas duas linhas deorientao, mostra-se sensvel, entretanto, s suas confluncias presentes no uso

    da metfora do senhor e do escravo, de inspirao hegeliana. Os cientistas

    sociais latino-americanos tinham conscincia do papel que o embate entre

    Estado-nao e imperalismo ocupava na formulao dos rumos dos povos

    subalternizados e, tambm, no recusavam o ponto de vista do colonialismo

    interno, o que nos autoriza a aproximar, com ateno aos distintos contextos

    histricos, a luta que se travou na Amrica Latina e na frica.

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    Percorrendo hoje a Amrica Latina, o nome de Darcy Ribeiro tem indiscutvel

    estatuto nos crculos universitrios (VARGAS, 2003; LPEZ, 2006), sobretudo

    naqueles em que trabalhou nos tempos de exlio real que experimentou por 12

    (doze) anos, em conseqncia do Golpe Militar no Brasil, em 1964, quando era

    Chefe da Casa Civil no Governo deposto de Joo Goulart.

    Edward Said (2005, p. 60) chama-nos ateno para a condio de exlio

    intelectual como geradora, em que pese o inegvel sofrimento, de uma

    inquietao produtiva, delineadora de perspectivas diferentes daquela previsvel

    nas trajetrias intelectuais quando rotineiras, potencializadora de um olhar

    ampliado sobre a diversidade humana.

    O modelo do percurso do intelectual inconformado bem mais

    exemplificado na condio do exilado, no fato de nunca se encontrar

    plenamente adaptado, sentindo-se sempre fora do mundo familiar e da

    ladainha dos nativos, por assim dizer, predisposto a evitar, e at mesmo

    ver com maus olhos as armadilhas da acomodao e do bem-estar

    nacional. Para o intelectual, o exlio neste sentido metafsico o

    desassossego, o movimento, a condio de estar sempre irrequieto ecausar inquietao nos outros.

    A despeito de sua relevncia nos comeos da institucionalizao da antropologia

    na cidade do Rio de Janeiro, sua atuao no Museu do ndio e na criao da

    primeira ps-graduao em antropologia, no ano de 1955; tambm de seu

    trabalho, a convite de Ansio Teixeira, em 1957, no Centro Brasileiro de Pesquisas

    Educacionais (CBPE), efetivamente, foi como estadista que Darcy Ribeiro

    construiu sua carreira e, embora ceifado pelo Golpe Militar. A devoo

    universidade deu-se com mais vigor em suas andanas no exlio, quando tambm

    produziu, em grande parte, sua obra.

    No chega a ser surpreendente, pois, que apesar do dilogo frequente com

    grandes nomes das Cincias Sociais brasileiras, como Florestan Fernandes,

    Guerreiro Ramos, dentre outros, Darcy Ribeiro tenha dado sua contribuio aos

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    estudos do pensamento social no Brasil posteriormente queles. Partcipe de uma

    gerao que fruto da institucionalizao das Cincias Sociais, sua vida e obra,

    contudo, no se vinculam a nenhuma instituio especfica. Ao contrrio, ps-

    anistia, ao retornar ao Brasil, teve fortes discordncias com a comunidade dos

    antroplogos ento estabelecida, bastante afastada da formao que balizava a

    produo darcyniana (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2010).

    Realizo nestas pginas a releitura de O processo Civilizatrio que inaugura e a

    srie de 06 (seis) livros chamados Estudos de Antropologia da Civilizao3.

    Conforme dito, interessa perceber em sua antropologia indcios da preocupao

    que hoje marca a crtica ps-colonial, a saber, a redefinio do universal.

    O processo civilizatrio como histria alternativa da humanidade: conexes

    com a crtica ps-colonial.

    Ainda jovem antroplogo, nos seminrios ministrados por Herbert Baldus na

    Escola de Sociologia e Poltica em So Paulo, Darcy Ribeiro aprendeu que cabia

    antropologia melhorar o discurso dos homens sobre os homens (apudMIGLIEVICH-RIBEIRO, 2009). Abraou, assim, a misso de reescrever o

    processo civilizatrio de modo a propor uma teoria alternativa da histria para

    nela incluir os povos novos. Em seu livro, falar de um novo homem (...), j no

    adjetivvel tnica, racial ou regionalmente. Essa ser a civilizao da humanidade

    (RIBEIRO, D., 2001, p. 253).

    O Processo Civilizatrio nasceu, em 1968, com seu autor j exilado, que diz: um livro latino-americano, brasileiro, escrito no Uruguai (RIBEIRO, D., 2007, p.

    224), apresentando doze processos civilizatrios em suas singularidades, com

    dezoito formaes socioculturais distintas, dentre as quais, os povos americanos.

    3 Seus Estudos de Antropologia da Civilizao, com nfase nas configuraes socioculturais dospovos latino-americanos, esto dispostos em 30 anos de produo intelectual, expressosexponencialmente em O processo civilizatrio. Etapas da evoluo scio-cultural(1 ed., 1968). Aseguir, temos As Amricas e a Civilizao (1 ed., 1969); Os ndios e a civilizao. A integrao

    das populaes indgenas no Brasil moderno (1 Ed,. 1970); O dilema da Amrica Latina (1 ed.,1971); Os brasileiros teoria do Brasil(1 ed., 1978); e, por fim, O povo brasileiro. A formao e osentido do Brasil(1 ed., 1995).

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    Narra-nos, assim, nada menos que os ltimos dez milnios da histria dos

    homens e desenha um esquema da evoluo sociocultural, a fim de estabelecer

    algumas ordens possveis de sucesso de formaes socioeconmicas concretas

    (2001, p. 29), ainda no includas nos grandes tratados de seu tempo.

    A originalidade d-se, de incio, por sua releitura indita de Marx e Engels visando

    apreender a lgica do movimento da auto-transfigurao humana, recusando a

    ideia de sequncia evolutiva linear, mas enfatizando as rupturas. Abre com isso

    um campo de possibilidades ilimitadas que tenta ensaiar em sua tipologia das

    configuraes histricas. Assim, a evoluo humana adquire feies tecnolgica,

    social e ideolgica, antes desconhecidas no processo de mudana social,marcado pelo contato conflituoso entre os plos dominador e dominado, que se

    imiscuem e se confundem.

    Focaliza, como marxista sua maneira, as revolues tecnolgicas sabendo,

    porm, que estas jamais descrevem em sua totalidade as revolues culturais,

    mais amplas e complexas, citadas por Gordon Childe e Leslie White. irnico,

    porm, diante dos que contestam sua opo metodolgica:

    Conforme se verifica, foi Marx quem me pediu que escrevesse O

    processo civilizatrio. Obviamente, ele esperava uma obra mais lcida e

    alentada do que minhas foras permitiam. Ainda assim, fico com o direito

    de crer que, apesar de tudo, o herdeiro de Marx sou eu (RIBEIRO, D.,

    2001, p.31).

    Elabora uma tipologia a contemplar o que chamou: 1) sociedades arcaicas; 2)

    civilizaes regionais; 3) civilizaes mundiais, alm dos subtipos. Na primeira

    formao, designou formaes sociais como aldeias agrcolas indiferenciadas e

    hordas pastoris nmades; na segunda, denominou configuraes sociais que

    nomeou de estados rurais artesanais, as chefias pastoris nmades, os imprios

    teocrticos de regadio, os imprios mercantis escravistas e os imprios

    despticos salvacionistas; no ltimo grupo, aliou as formaes progressivamentemais hbridas, a saber, os imprios mercantis salvacionistas e o colonialismo

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    escravista; o capitalismo mercantil e os colonialismos modernos; o imperialismo

    industrial e neocolonialismo; a expanso socialista; por fim, projetou a civilizao

    da humanidade (RIBEIRO, 2007).

    Nada mais distante de sua proposta do que pretender a coincidncia entre as

    sociedades concretas e os modelos criados. Sua recepo do conceito de

    evoluo multilinearde Steward abre para Darcy a percepo de que a realidade

    mais complexa, hbrida, do que qualquer conceito. Seu conceito de acelerao

    evolutiva, por sua vez, formulado em contraposio modernizao reflexa ou

    atualizao histrica 4, bem demonstra as variaes nos processos de cada

    sociedade particular, configurada pelo tipo de relao que desenvolve com asdemais sociedades e pela forma como que conquista, ou no,sua autonomia. Em

    suas palavras:

    Esta construo ideal (diagnsticos homogneos referentes aos

    sistemas adaptativo, associativo e ideolgico que atravessassem todas

    as formaes. Apresentando em cada uma delas certas alteraes

    significativas) est muito distante do possvel, em virtude do mbito de

    disperso das variaes de contedo de cada cultura (RIBEIRO, 2001, p.

    47-8).

    Em acordo com Vargas (2003) e Lpez (2006), pode-se afirmar que o

    materialismo histrico e dialtico orienta e d unidade narrativa de Darcy

    Ribeiro, com a finalidade, porm, de marcar a pluralidade, a interdependncia e a

    simultaneidade dos processos de constituio das sociedades humanas. Emoposio ao aspecto dicotmico das representaes modernas, O Processo

    Civilizatrio (2001, p. 47-8) explicita uma pliade de formaes socioculturais

    concretas, em sincronicidade, que questionam as hierarquizaes esprias do

    colonizador.

    A Europa mesma desconstruda como bloco monoltico a contrastar com um

    4 Conferir, dentre outros, MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M. & SILVA JR. (2008); MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M. (2009, 2010).

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    outro igualmente uniforme. Tambm em oposio aos julgamentos dos

    fenmenos culturais em condies de subdesenvolvimento, como determinados

    porcausas atvicas das respectivas formaes socioeconmicas, Darcy Ribeiro

    (2001, p. 135) buscou evidenciar que a posio em que se encontra uma

    sociedade no corresponde a qualidades inatas ou a qualidades imutveis de sua

    cultura, seno, em larga medida, a circunstncias susceptveis de transformao,

    destacando os elementos de criatividade nas culturas como, por exemplo, os

    modos de interveno na natureza para a produo de bens e para a

    institucionalizao de novas relaes sociais. Escapa, por fim, de qualquer

    pretenso positivista e totalizadora em seu livro, ao justificar-se em um de seus

    artigos em Carta... (1991, p. 45) seu informe como Senador da Repblica:

    Tentaremos (...) estabelecer as bases e os limites dentro dos quais nos

    propomos formular um esquema evolutivo geral (...) uma explanao

    terica ideal construda pela reduo conceitual da multiplicidade de

    situaes concretas registradas pela arqueologia, pela etnologia e pela

    histria, a um paradigma simplificado da evoluo global das sociedades

    humanas, mediante a definio de suas etapas bsicas e dos processos

    de transio de uma a outra dessas etapas.

    No era uma frivolidade que tal estudo partisse do Terceiro Mundo. Segundo

    Heinz Rudolf Sontag, no Eplogo Edio Alem (2001, p. 283), foi uma ousadia

    sem paralelo poca revisitar a histria da humanidade sem reforar a crena de

    que o umbigo do mundo se situa ainda em algum lugar em Viena, Berlim, Bonn,

    Moscou, Washington ou Roma:

    Que Ribeiro atribua ao Primeiro Mundo um papel no relevante na

    realizao das sociedades futuras e no lhe reserve seno insuficincias

    como o socialismo evolutivo, significa um desafio com o qual tem que se

    defrontar a teoria crtica no mundo desenvolvido imediata e seriamente,

    se no quiser correr o risco de desaparecer (SONTAG, 2001, p. 283).

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    Ansio Teixeira (2001, p. 13), na apresentao de O processo Civilizatrio,

    tambm faz referncia ao fato desta obra ter sido escrita a partir do terceiro

    mundo, sem que tal condio impusesse ao autor espcie alguma de

    subordinao mental. Darcy Ribeiro relata-nos, no prefcio quarta edio

    venezuelana de O processo Civilizatrio, que sentiu medo do desastre de uma

    empreitada daquela magnitude: reescrever a teoria da histria. Foi, em suas

    palavras, sua raiva possessa contra todos os que pensam que intelectual do

    mundo subdesenvolvido tem que ser subdesenvolvido tambm (2001, p.23) que

    salvou da morte precoce seus primeiros escritos, aps o recebimento de um

    primeiro e arrasadorparecer de uma importante editora internacional. Em 1968,

    seu livro era editado pela primeira vez pela Smithsonian Institution, a mesma dasobras de Lewis Morgan, de quem era leitor. Viriam depois quinze novas edies

    em vrios idiomas que espalharam pelo mundo cerca de 160 mil exemplares.

    Em sua obra, Darcy Ribeiro alia-se matriz culturalista de Franz Boas em sua

    diferenciao fundamental entre raa e cultura,que abriu espao na antropologia

    para se pensar a transculturao no mais como rebaixamentocultural, mas em seu

    papel criativo tal como a inveno da nova cultura mestia latino-americana. Mais

    tarde, Randeria, sociloga indiana hoje na Universidade de Zurique (apud.

    COSTA, 2006, p. 90), postularia os conceitos, afins proposta de Darcy Ribeiro,

    de histrias partilhadas ou modernidade entrelaada, na nfase ao carter hbrido

    e no-essencialista da histria dos povos. Ainda que a metanarrativa da

    modernidade insista nas dicotomias moderno e pr-moderno, ocidente e oriente,

    norte e sul, dentre outras, as culturas, contudo, se interpenetram, transpondo

    fronteiras de quaisquer espcies, e se co-determinam. Disto j sabia Darcy

    Ribeiro (2001, p. 46):

    A evoluo sociocultural tal como conceituada at aqui um processo

    interno de transformao e auto-superaro que se gera e se desenvolve

    dentro das culturas, condicionado pelos enquadramentos extraculturais a

    que nos referimos. Na realidade, porm, as culturas so construdas e

    mantidas por sociedades que no existem isoladamente, mas em

    permanente interao umas com as outras.

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

    colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.

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    A percepo das histrias partilhadas no ofusca as assimetrias de poder que

    marcam deslocamentos e trnsitos, tampouco afirma que tudo est entrelaado

    na mesma medida. Ao contrrio: impe ao conhecimento que atente para as

    assimetrias e desigualdades mesmas, construdas no interior do projeto histrico

    da modernidade pela crena no binmio entre atraso e moderno, que nega ao

    primeiro plo a condio de sociedade e autoriza que se tornem campos de

    experimentao da modernidade pela expanso colonial. As abordagens ps-

    coloniais rejeitam os binarismos e ampliam a percepo da realidade que se

    constri, na relao colonial, pelas cadeias de significaes que hibridizam a

    reivindicada identidade pura do colonizador ou do colonizado.

    O lugar de enunciao , de sada, um lugar heterogneo, de modo que as

    releituras da histria das gentes e dos povos ho de transgredir as fronteiras

    culturais traadas pelo pensamento colonial e romper, enfim, com as adscries

    essencialistas. Negando o silenciamento dos povos novos, que co-habitam o

    mesmo planeta dos europeus, Darcy Ribeiro (2001, p. 08-9) pergunta:

    Como classificar, uns em relao aos outros, os povos indgenas, quevariavam desde altas civilizaes at hordas pr-agrcolas e que

    reagiram conquista segundo o grau de desenvolvimento que haviam

    alcanado? Como situar, em relao aos povos indgenas e aos

    europeus, os africanos desgarrados de grupos em distintos graus de

    desenvolvimento para serem transladados Amrica como mo-de-obra

    escrava? Como classificar os europeus que regeram a conquista? Os

    ibricos, que chegaram primeiro, e os nrdicos, que vieram depois

    sucedendo-os no domnio de extensas reas , configuravam o mesmo

    tipo de formao sociocultural? Finalmente, como classificar e relacionar

    as sociedades nacionais americanas por seu grau de incorporao aos

    modos de vida da civilizao agrrio-mercantil e, j agora, da civilizao

    industrial?

    Para Darcy Ribeiro (p. 65-6), as etnias so definidas como coletividades humanas

    singulares, assim constitudas pelo convvio de seus membros, gerao aps

    gerao, formando uma comunidade de lngua e cultura. Fala em etnia nacional,

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

    colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.

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    por sua vez, quando esta pretende o domnio de um territrio. Quando os estados

    (organizaes de base territorial) expandem sua dominao sobre populaes

    multitnicas, a fim de absorv-las pela transfigurao cultural, chama-os de

    macroetnias. Ao designar algumas formaes sociais como civilizaes em

    distino a outras, aponta exclusivamente para seu potencial de expanso

    territorial, dominao poltico-econmica e influncia cultural, jamais para deduzir

    que as civilizaes sejam superiores moral ou intelectualmente s demais formas

    sociais.

    Assim, capaz de narrar o processo civilizatrio que teve lugar nos ltimos 10 mil

    anos da histria humana (RIBEIRO, 2001, p. 65), sem que seu estudo sirva paralegitimar a ordem global contempornea. Tanto que o autor, descontente com os

    modelos civilizatrios descritos, dedicou o ltimo captulo de seu livro para

    imaginar uma nova sociedade, ponto em que se encontrou novamente com a

    dialtica marxista, crtico, porm, ao modelo socialista sovitico - em razo do que

    sofreu duros ataques dos marxistas de sua gerao. No declinou, porm, de sua

    crena de que est em marcha cada vez mais aceleradamente um novo

    processo civilizatrio de mbito universal (p. 245).

    A utopia de Darcy, sob a designao de Revoluo Termonuclear, parece

    contrariar o ps-modernismo e o ps-estruturalismo em que bebem as

    abordagens ps-coloniais. Em 1968, na Amrica Latina, importava

    fundamentalmente a Darcy Ribeiro (2001, p. 246) apostar na reversibilidade

    dialtica de um processo evolutivo que levara hegemonia do capital global. Fez

    isto com as categorias e os conceitos que lhe estavam mo, atentando para asnovas e diferenciadas formas de difuso e de generalizao dos progressos

    tecnolgico-culturais que pudessem, enfim, contrapor-se s espoliaes dos

    povos colonizados. Discutia, tambm, nesta chave, as chances de substituio da

    modernizao reflexa e artificial por oportunidades de desenvolvimento autnomo

    tecnologias tambm autctones - das vrias sociedades visando emancipao

    das sociedades exploradas e redefinio do sistema global.

    Se teorizar implica reduzir a experincia s prioridades e s categorias

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    conceituais do marco analtico escolhido, ento, Darcy Ribeiro ousou propor uma

    teorizao em oposio quela hegemnica que se expressara, at ento, em

    violncia sobre o no-europeu tambm no plano do discurso cientfico como

    estratgia legitimadora.

    Em que pesem as dissonncias em geral mais evidenciadas, h conexes entre a

    utopia darcyniana e alguns ps-coloniais que, mesmo crticos do modernismo

    recusando, pois, o sujeito centrado, como uma totalidade positiva, fixa e

    ontolgica no abandonaram a esperana num humanismo tico, articulado

    por vrias vozes.

    O ps dops-colonialno significa como ops dops-moderno tambm no

    a efetivao de novos patamares de humanidade, mas se constitui num

    discurso a fazer frente s narrativas legitimadoras anteriores, (...) escolados nos

    seus abusos pela experincia do eurocentrismo e do imprio (SAID, 2007, p.

    29),. Disto resulta que o ps-colonial no descr, exatamente, nas energias

    utpicas sabemos que na luta sul-africana contra o apartheid havia ideais

    humanistas presentes , mas submete-as crtica. Diz-nos Said (2007) que aprtica humanista revisitada um aspecto integrante e parte operante do mundo

    hoje, no como mero ornamento de erudio ou de nostalgia, mas como apelo

    contemporneo num mundo que se quer ainda ps-colonial e genuinamente

    cosmopolita, portanto, marcado por uma curiosidade intelectual visceralmente

    internacionalista, liberta, portanto, do eurocentrismo.

    Chega perto de ser escandaloso, por exemplo, que quase todo programa

    de estudos medievais em nossa universidade omita rotineiramente um

    dos pontos altos da cultura medieval, a saber, a Andaluzia muulmana

    antes de 1492, e que, como Martin Bernal mostrou para a antiga Grcia,

    a mistura complexa das culturas europia, africana e semtica tenha sido

    purgada dessa heterogeneidade to perturbadora para o humanismo

    corrente (SAID, 2007, p. 78).

    Appiah, em seu livro Na casa de meu pai. A frica na filosofia da cultura (1997),

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    postula que os ideais iluministas e seus critrios de avaliao do certo e do

    errado, do bom e do mau, do desejvel e do indesejvel, do belo e do feio, do

    familiar e do extico, do culto e do inculto nascem num lugar histrico como

    autoconscincia deste lugar, ignorando outros discursos igualmente locais. Pior,

    seu transplante para outras realidades materiais e simblicas imps-se

    violentamente por meio do colonialismo.

    O clamor ps-colonial que repercute no humanismo de Edward Said encontra eco

    em Darcy Ribeiro na sua busca de compreenso da sociedade brasileira, latina,

    ibrica. Em convergncia com o humanismo provisrio de Appiah, Darcy no

    desconhecia as exigncias sobre a agncia humana num mundo depossibilidades quase absolutas no plano do conhecimento e da ao, tanto

    destrutiva, quanto construtiva e constritiva, de modo que as capacidades no se

    voltem contra o homem. Seria contraditrio, portanto, se seu universal tico

    tambm no se considerasse provisrio, historicamente contingente, anti-

    essencialista, fruto das vontades, como diz Appiah, definidas em atos de vontade

    que desguam no compromisso vigoroso com a preocupao de evitar a

    crueldade e a dor (1997, p. 216). O humanismo dos escritores ps-coloniais, porconseguinte, est em toda parte: em Mudimbe, em Achebe, Fahha, lista difcil de

    completar.

    Darcy Ribeiro tambm temia os maus-tratos e as guerras, apelando em seu

    escrito, para a criao de um sistema mundial de poder estruturado segundo

    princpios supranacionais que permitam da representatividade s populaes

    humanas. Insistiu, assim, no desenvolvimento de rgos internacionais decontrole dos meios de comunicao de massa e de modelao da opinio

    pblica (2001, p. 247. Grifos meus). Participa, pois, dos debates candentes e

    ainda insolveis acerca de como se garantir as narrativas simtricas das diversas

    populaes em tais organismos supranacionais.

    O empenho de Darcy Ribeiro marca incontestvel da produo de modelos

    interpretativos de nossa modernidade pelos intelectuais brasileiros. Nesta senda,

    inscreve-se hoje o ps-colonialao efetuar uma leitura desconstrutora de textos

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    colonialistas e a produo de contra-discursos que expressam projetos de

    resistncia do colonizado na rdua luta por sua auto-determinao.

    Consideraes finais

    Na publicao citada, Uma antropologia mameluca a partir de Darcy Ribeiro,

    Arruti chamava ateno para o fato de O Povo Brasileiro (1995) apresentar-se

    com um texto de Cincias Sociais sem ser assim recebido entre os pares. O

    aparente desinteresse contrastava, a seu ver, com sua condio de novo

    fenmeno editorial.

    justo dizer que o livro expressava um Darcy Ribeiro assumidamente hbrido:

    acadmico, homem pblico e literato, alis, esta ltima vocao j havia sido

    reconhecida por Antonio Candido, impressionado com Mara, publicado pelo

    antroplogo em 1976. Talvez, aqui tambm se possa pensar a conexo entre

    Ribeiro e o ps-colonial que, no casualmente, recusa as fronteiras no

    apenas geogrficas, polticas e culturais, mas tambm daquelas que organizam o

    conhecimento moderno em cincia e no-cincia e em disciplinasestanques.

    O ensasta de O povo brasileiro havia sido o autor do tratado, trinta anos antes,

    dos tipos estruturais de processos civilizatriosna histria da humanidade sob a

    perspectiva da evoluo multilinear, na trilha de Steward, Marx, Engels, dentre

    outros. Tambm foi o ficcionista e romancista hoje aplaudido. No esquecendo, foi

    o homem pblico que se dedicou ao tema da Educao, fundou universidades,

    atuou em cargos executivos no Governo e no Congresso, como parlamentar. Nostempos do exlio poltico, viveu em vrios pases e aprofundou as relaes

    acadmicas. Seus trnsitos, deslocamentos e disporas trazem consigo a marca

    dops-colonial.

    Escreveu livros a exigir de si e de seus leitores a imerso na histria dos povos de

    onde viemos. No caso latino (e brasileiro), uma histria marcada pela opresso

    que, at o sculo XIX, era contada apenas da perspectiva do colonizador, mas

    que se proclamava absoluta. A fora do discurso nico ocultava a outra face,

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    deixada ao obscurantismo, da histria da modernidade: a colonialidade. Seus

    sujeitos narradores, alm de ter suas narrativas subalternizadas e silenciadas na

    histria pela assimetria na disposio dos recursos necessrios para se ter a fala

    ouvida pelos outros, tambm se calavam, por vezes, pela dor que a rememorao

    traz. Como diz Bhabha (2007, p. 101), relembrar nunca um ato tranqilo de

    introspeco. um doloroso se relembrar, uma reagregao do passado

    desmembrado para compreender o trauma do presente.

    Darcy Ribeiro participa como intelectual pblico do esforo de

    rememorao/reinveno da histria das gentes e do Brasil. Em O Processo

    Civilizatrio, escreveu a histria da humanidade como histrias partilhadas,entrecruzadas e interdependentes assimtricas, sim; em rota de coliso, no

    poucas vezes. Inseriu, em carter definitivo, os povos americanos no mapa-

    mndi, no como pr-estgios civilizatrios, mas como plos atualizados de um

    mesmo sistema econmico moderno. So cerca de 10 mil anos da histria da

    humanidade que ganham inteligibilidade no esforo hercleo de Darcy que, pela

    instrumentalizao dos conceitos de acelerao evolutiva e de atualizao

    histrica (modernizao reflexa) desvelou a coetaneidade dos povos ditosavanados e dos atrasados, sob o ponto de vista da histria crtica das

    tecnologias.

    Miglievich-Ribeiro e Silva Jr. (2008) registraram que o desenvolvimento

    tecnolgico critrio bsico da construo do esquema de evoluo sociocultural

    darcyniano, o qual lhe possibilita distinguir as sociedades autnomas daquelas

    que so derivam de um processo de incorporao histricaaniquilador de suaspotencialidades.

    A acelerao evolutiva desejvel por Darcy Ribeiro no , todavia, o

    desenvolvimentismo e a industrializao predatria de alguns receiturios

    econmicos. Se algo pode ser dito de sua obra sua carga visionria, que lhe

    permite antecipar debates hoje em voga. Darcy nos fala de sociedades futuras e

    sabe que estas no sero as mesmas pensadas pelos clssicos do sculo XIX.

    Seu neoevolucionismo no o condena a repetir prognsticos de outrora, uma vez

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    que a histria no mecnica, seno que conta com a agncia humana em seu

    devir. A preocupao com um estudo de tal monta no lhe faz refm de quaisquer

    dos processos civilizatrios inventariados, mas deixa claro algumas das mltiplas

    possibilidades de desdobramentos histricos.

    (...) quando no se conta com uma teoria explcita da evoluo, se corre

    o grave risco de cair num evolucionismo irresponsvel por si mesmo,

    porque inexplcito (...). Isso , alis, o que se faz habitualmente sem

    maiores conseqncias. Faz-lo, porm, pretendendo ser

    expressamente antievolucionista pecado de indigncia terica (Ribeiro,

    2001, p.29).

    No h em O Processo Civilizatrio respaldo tese da histria unilinear. Ao

    contrrio, o rompimento evolutivo da condio primitiva assume nele

    inevitavelmente diversas feies (2001, p. 36). Conceitos como escravismo,

    feudalismo, capitalismo e socialismo ajudaram a explicar a histria europia, mas

    no so analiticamente teis, sem uma reviso crtica, para dar conta das

    populaes egpcia, rabe, maia, inca e outras. Seu livro foi escrito a fim debuscar informaes que subsidiem novas escolhas humanas, suas lutas, suas

    trajetrias. Para Darcy Ribeiro (p. 08-9), h que se pensar, sobretudo, a

    incorporao autnoma das contribuies dos povos diversos nos fluxos

    histricos da humanidade.

    Mesmo para as formaes correspondentes ao perodo que se segue

    conquista e avassalamento dos povos pr-colombianos, no contamos

    com categorias tericas adequadas. Seriam escravistas as sociedades

    coloniais e os estados estruturados depois da Independncia? Seriam

    feudais ou semifeudais? Seriam capitalistas?

    Concordando com Boaventura Santos em sua acepo da crtica ps-colonial

    como (...) um conjunto de prticas e discursos que desconstroem a narrativa

    colonial como foi escrita pelo colonizador, (que) tenta substitu-la por narrativasescritas do ponto de vista do colonizado (2002, p. 13), pode-se postular que a

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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    Amrica Latina soma a este empenho com um leque amplo de pesquisas em

    torno da proposta de descolonizao do conhecimento.

    Para tanto, a releitura de autores-chave do pensamento latino-americano a

    exemplo de Darcy Ribeiro que, no de hoje, fazem do par

    modernidade/colonialidade importante eixo de anlise, leva produo de

    reavaliaes vlidas dos caminhos e descaminhos de nossa constituio como

    povo, Estado-nao e membro de uma sociedade global. Dito de outro modo, nas

    inquietaes ps-coloniais, as Cincias Sociais hoje tambm podem encontrar

    ricas perspectivas de estudo sobejamente orientadas para a ampliao dos

    cnones da disciplina a dotar seus esforos interpretativos de mais chances de seconstituir em diagnsticos vlidos da complexidade da vida e da histria dos seres

    humanos.

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    RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-

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