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8/2/2019 09_03_Adelia Ribeiro
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RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-
colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.
2
Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano
Dilogos com a epistemologia ps-colonial
Adelia Maria Miglievich Ribeiro1
Resumo: Proponho conexes entre o pensamento crtico nascido na Amrica Latina e as propostas
dessencializadoras que partem dos intelectuais diaspricos, chamados ps-coloniais, na desconstruo
do projeto iluminista que silenciou as vozes de populaes de diversas partes do globo e buscou ocultar
a face perversa da modernidade: a colonialidade, entendendo como contribuio mpar s Cincias
Sociais o ponto de vista do entre-lugarque desnaturaliza um processo histrico, sumamente violento,
que dividiu, artificialmente, a humanidade em Ocidente e Oriente, civilizao e barbrie. Para tanto,
releio O Processo Civilizatrio (1968) de Darcy Ribeiro, incluindo-o como partcipe do movimento de
descolonizao desse campo do saber. Argumento que sua ideia de modernizao, em que pese
inegveis filiaes tericas modernistas, realiza tambm, na nfase evoluo multilinear, a crtica a
um modelo nico de modernidade que subestima a auto-determinao dos povos. Construo, ao fim,
possibilidades de dilogo entre as teses de Darcy Ribeiro e as preocupaes presentes em Appiah e
Said acerca de um novo universalismo tico marcado pelo hibridismo e por seu reconhecido carter
discursivo.
Palavras-chave: Darcy Ribeiro. Modernidade-colonialidade. Ps-colonial. Hibridismo.
Abstract: I suggest connections between the critical thinking born in Latin America and the proposals
departing from diasporic intellectuals, called post-colonial ones, on the deconstruction of the
Enlightenment project that silenced the voices of people from different parts of the globe and sought to
hide the vicious face of modernity: the coloniality, by understanding as the unique contribution to the
social sciences the stand point of between-place that denatures a historical process, extremely violent,
which divided artificially the humanity in East and West, civilization and barbarism. For that, I read again
"O Processo Civilizatrio (1968) of Darcy Ribeiro by including it as a participant in this movement of
decolonization of the social sciences. I argue that his idea of modernization, despite undeniable
modernist theoretical branches, performs as well, in theemphasis on multilinear evolution, the criticism of
a single model of modernity that underestimates the self-determination of peoples. I construe, at the
end, possibilities of dialogue between Darcy Ribeiro and the concerns present in Appiah and Said about
a new ethical universalism marked by hybridity and recognized by its discursive character.
Keywords: Darcy Ribeiro. Modernity-coloniality. Post-colonial. Hibridity.
1
Doutora em Sociologia (UFRJ). Bolsista-Pesquisadora Snior Ipea-Capes. Professora daGraduao em Cincias Sociais e dos Programas de Ps-Graduao em Cincias Sociais e emLetras da Universidade Federal do Esprito Santo (PGCS/PPGL-UFES).
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colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.
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Apresentao
Nada mais inaceitvel aos estudos ps-coloniais do que se constituir numa matriz
terica nica. Ao contrrio, o movimento intelectual, que tambm impacta as
Cincias Sociais hoje, comporta orientaes distintas que, na Amrica Latina,
une-se ao pensamento crtico que o precede e desconfia das narrativas da
modernidade que buscam ocultar sua outra face: a colonialidade. Em decorrncia,
ops-colonialrealiza a crtica epistemolgica dos discursos que, sob a roupagem
de universalizantes, subestimam outras racionalidades e saberes e, na prtica,
legitimam violncias mediante a imposio de representaes sociais e vises de
mundo unilaterais.
Os intelectuais diaspricos cunham a expresso ps-colonial, trazendo como
contribuio central s Cincias Sociais o ponto de vista do entre-lugar, que
expe a perigosa naturalizao de um processo histrico linear e homogneo que
ignora, em nome do eurocentrismo, a hibridez dos processos humanos de
constituio da modernidade.
Um dos fundadores do chamado pensamento ps-colonial, o martinicano Frantz
Fanon, formado em Psiquiatria, revolucionrioda Frente Nacional de Libertao
da Arglia, autor, dentre outros, de Pele Negra, Mscaras Brancas, cuja primeira
edio, em francs, data de 1952, e Os Condenados da Terra, publicado em
1961, produz uma crtica radical da colonizao mediante a anlise minuciosa das
estratgias de violncia, subordinao e desumanizao que se produziu sobre o
colonizado, tornando-o espectador sobrecarregado de inessencialidade (FANON,1979, p. 26). Para Fanon, apenas pelo contra-discurso ps-colonial e pela
descolonizao podemos, enfim, reinventar o sujeito (ps-colonial) na sua
verdadeira humanidade, portanto, como homens novos. Explicita-nos Costa:
A abordagem ps-colonial constri sobre a evidncia de que toda
comunicao vem de algum lugar, sua crtica ao processo de produo
do conhecimento cientfico que, ao privilegiar modelos contedos
prprios ao que se definiu como a cultura nacional nos pases europeus,reproduziria, em outros termos, a lgica da relao colonial. Tanto as
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colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.
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experincias de minorias sociais como os processos de transformao
ocorridos nas sociedades no-ocidentais continuariam sendo tratados a
partir de suas relaes de funcionalidade, semelhana ou divergncia
com o que se denominou centro (COSTA, 2006, p. 117).
Para Stuart Hall (2009), jamaicano de origem que, desde 1951, que mora na Gr-
Bretanha, onde formou famlia, o prefixo ps na expresso ps-colonial no
indica, em absoluto, um depois no sentido cronolgico linear da colonizao.
Considerado o pai dos Estudos Culturais2, uma das vertentes do pensamento
ps-colonial, refere-se a uma operao de reconfigurao do campo discursivo,
no qual as hierarquias entre as narrativas ganham significado uma vez situadas
na lgica colonial (ou neo-colonial) que alude a situaes de opresso diversas,
definidas a partir de fronteiras de gnero, tnicas, raciais e outras.
A desconstruo da dicotomia East/West por Rest/West marca, pois, a
abordagem ps-colonial a exigir a reinterpretao da histria moderna. Ao sujeito
branco ocidental no basta antepor o negro, colonizado. Atacar o racismo implica
o desmonte do prprio sistema de representaes que criou polaridades pouco
crveis numa realidade que da diffrance mltipla, heterognea, incapaz de
caber em binarismos, mas que expressa intersees entre raa, classe, gnero,
etnia, dentre outras identificaes, fruto da articulao dessas diferenas, mveis,
cambiantes, construdas relacionalmente. O sujeito da resistncia anti-racista,
para o ps-colonial, constitui-se como nova etnicidade (COSTA, 2006).
Nesta perspectiva, podemos perceber confluncias e singularidades entreas abordagens de Fanon, Lopold Senghor, Aim Csaire e os estudos
2 Ao estimular, a par do ps-estruturalismo, certa liberdade frente ao rigor epistemolgico naconstruo dos conceitos e o conhecimento indutivo, os estudos culturais deslocaram questesligadas classe e ao marxismo para temas como racismo, etnicidades, gnero e identidadesculturais. Hall, contudo, ironiza a designao de pai-fundador e prefere se perceber comotestemunha ocular do relevante giro hermenutico nas Cincias Sociais que viu acontecer a partirdos anos 1970, em especial, a partir do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), naUniversidade de Birminghan, mas no apenas. significativo que Stuart Hall, em palestra no
Congresso da Associao Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), em Salvador, em 2000,tenha se referido a Roger Bastide e a Gilberto Freyre que, nos anos 1950, j influenciavam comseus trabalhos o que depois seriam chamados por estudos culturais. Cf. HALL, 2009, p.21.
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subalternos da ndia; tambm com a reflexo latino-americana de Salazar Bondy,
Leopoldo Zea, Enrique Dussel e da chamada Filosofia da Libertao. Assim, com
a rede que se estende de Jos Mart e Jos Carlos Maritegui, do movimento
terico de razes andinas aos nomes projetados em nvel mundial, a Arturo
Escobar, Anbal Quijano, Fernando Coronil, Walter Mignolo, dentre outros,
apontados por Edgardo Lander (2000) como sinal de uma efervescente produo
intelectual dedicada ao esforo de desconstruo do edificio moderno pela, nas
palavras de Quijano (2000), descolonizao do saber, do poder e do ser
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2009).
Proponho que possamos relerDarcy Ribeiro como produtor de insights que, emque pese no advir de adeses s epistemologias ps-modernas, ou mais
especificamente, ps-coloniais, derivam em adeses claras s ideias de uma
modernidade plural e de auto-determinao dos povos. Sua ideia de nao , por
exemplo, anloga a de povo pressupe, no a sntese, mas as diferenas; seu
elogio miscigenao no funda um nico esteretipo de brasileiro mas abre o
leque de possibilidades do gnero humano, ampliando-o: dos sertes aos
pampas, do litoral ao cerrado, constroem-se modos de produzir a vida material ecultural inditos, criativos, que afirmam, a partir da negao do mito das trs
raas, os brasileiros, mais uma vez, no plural.
Curiosamente, Renato Ortiz (apud. SOARES, 2008) traa um paralelo entre o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o pensamento ps-colonial de
Frantz Fanon, sem pretender estabelecer qualquer filiao direta entre ambos os
movimentos intelectuais. Percebendo a independncia entre essas duas linhas deorientao, mostra-se sensvel, entretanto, s suas confluncias presentes no uso
da metfora do senhor e do escravo, de inspirao hegeliana. Os cientistas
sociais latino-americanos tinham conscincia do papel que o embate entre
Estado-nao e imperalismo ocupava na formulao dos rumos dos povos
subalternizados e, tambm, no recusavam o ponto de vista do colonialismo
interno, o que nos autoriza a aproximar, com ateno aos distintos contextos
histricos, a luta que se travou na Amrica Latina e na frica.
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Percorrendo hoje a Amrica Latina, o nome de Darcy Ribeiro tem indiscutvel
estatuto nos crculos universitrios (VARGAS, 2003; LPEZ, 2006), sobretudo
naqueles em que trabalhou nos tempos de exlio real que experimentou por 12
(doze) anos, em conseqncia do Golpe Militar no Brasil, em 1964, quando era
Chefe da Casa Civil no Governo deposto de Joo Goulart.
Edward Said (2005, p. 60) chama-nos ateno para a condio de exlio
intelectual como geradora, em que pese o inegvel sofrimento, de uma
inquietao produtiva, delineadora de perspectivas diferentes daquela previsvel
nas trajetrias intelectuais quando rotineiras, potencializadora de um olhar
ampliado sobre a diversidade humana.
O modelo do percurso do intelectual inconformado bem mais
exemplificado na condio do exilado, no fato de nunca se encontrar
plenamente adaptado, sentindo-se sempre fora do mundo familiar e da
ladainha dos nativos, por assim dizer, predisposto a evitar, e at mesmo
ver com maus olhos as armadilhas da acomodao e do bem-estar
nacional. Para o intelectual, o exlio neste sentido metafsico o
desassossego, o movimento, a condio de estar sempre irrequieto ecausar inquietao nos outros.
A despeito de sua relevncia nos comeos da institucionalizao da antropologia
na cidade do Rio de Janeiro, sua atuao no Museu do ndio e na criao da
primeira ps-graduao em antropologia, no ano de 1955; tambm de seu
trabalho, a convite de Ansio Teixeira, em 1957, no Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais (CBPE), efetivamente, foi como estadista que Darcy Ribeiro
construiu sua carreira e, embora ceifado pelo Golpe Militar. A devoo
universidade deu-se com mais vigor em suas andanas no exlio, quando tambm
produziu, em grande parte, sua obra.
No chega a ser surpreendente, pois, que apesar do dilogo frequente com
grandes nomes das Cincias Sociais brasileiras, como Florestan Fernandes,
Guerreiro Ramos, dentre outros, Darcy Ribeiro tenha dado sua contribuio aos
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RIBEIRO, Adelia M Miglievich. Darcy Ribeiro e o pensamento crtico latino-americano: dilogos com a epistemologia ps-
colonial. In: SINAIS Revista Eletrnica- Cincias Sociais.Vitria: CCHN, UFES, Edio n.09, v.1, Junho. 2011. pp.2-21.
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estudos do pensamento social no Brasil posteriormente queles. Partcipe de uma
gerao que fruto da institucionalizao das Cincias Sociais, sua vida e obra,
contudo, no se vinculam a nenhuma instituio especfica. Ao contrrio, ps-
anistia, ao retornar ao Brasil, teve fortes discordncias com a comunidade dos
antroplogos ento estabelecida, bastante afastada da formao que balizava a
produo darcyniana (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2010).
Realizo nestas pginas a releitura de O processo Civilizatrio que inaugura e a
srie de 06 (seis) livros chamados Estudos de Antropologia da Civilizao3.
Conforme dito, interessa perceber em sua antropologia indcios da preocupao
que hoje marca a crtica ps-colonial, a saber, a redefinio do universal.
O processo civilizatrio como histria alternativa da humanidade: conexes
com a crtica ps-colonial.
Ainda jovem antroplogo, nos seminrios ministrados por Herbert Baldus na
Escola de Sociologia e Poltica em So Paulo, Darcy Ribeiro aprendeu que cabia
antropologia melhorar o discurso dos homens sobre os homens (apudMIGLIEVICH-RIBEIRO, 2009). Abraou, assim, a misso de reescrever o
processo civilizatrio de modo a propor uma teoria alternativa da histria para
nela incluir os povos novos. Em seu livro, falar de um novo homem (...), j no
adjetivvel tnica, racial ou regionalmente. Essa ser a civilizao da humanidade
(RIBEIRO, D., 2001, p. 253).
O Processo Civilizatrio nasceu, em 1968, com seu autor j exilado, que diz: um livro latino-americano, brasileiro, escrito no Uruguai (RIBEIRO, D., 2007, p.
224), apresentando doze processos civilizatrios em suas singularidades, com
dezoito formaes socioculturais distintas, dentre as quais, os povos americanos.
3 Seus Estudos de Antropologia da Civilizao, com nfase nas configuraes socioculturais dospovos latino-americanos, esto dispostos em 30 anos de produo intelectual, expressosexponencialmente em O processo civilizatrio. Etapas da evoluo scio-cultural(1 ed., 1968). Aseguir, temos As Amricas e a Civilizao (1 ed., 1969); Os ndios e a civilizao. A integrao
das populaes indgenas no Brasil moderno (1 Ed,. 1970); O dilema da Amrica Latina (1 ed.,1971); Os brasileiros teoria do Brasil(1 ed., 1978); e, por fim, O povo brasileiro. A formao e osentido do Brasil(1 ed., 1995).
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Narra-nos, assim, nada menos que os ltimos dez milnios da histria dos
homens e desenha um esquema da evoluo sociocultural, a fim de estabelecer
algumas ordens possveis de sucesso de formaes socioeconmicas concretas
(2001, p. 29), ainda no includas nos grandes tratados de seu tempo.
A originalidade d-se, de incio, por sua releitura indita de Marx e Engels visando
apreender a lgica do movimento da auto-transfigurao humana, recusando a
ideia de sequncia evolutiva linear, mas enfatizando as rupturas. Abre com isso
um campo de possibilidades ilimitadas que tenta ensaiar em sua tipologia das
configuraes histricas. Assim, a evoluo humana adquire feies tecnolgica,
social e ideolgica, antes desconhecidas no processo de mudana social,marcado pelo contato conflituoso entre os plos dominador e dominado, que se
imiscuem e se confundem.
Focaliza, como marxista sua maneira, as revolues tecnolgicas sabendo,
porm, que estas jamais descrevem em sua totalidade as revolues culturais,
mais amplas e complexas, citadas por Gordon Childe e Leslie White. irnico,
porm, diante dos que contestam sua opo metodolgica:
Conforme se verifica, foi Marx quem me pediu que escrevesse O
processo civilizatrio. Obviamente, ele esperava uma obra mais lcida e
alentada do que minhas foras permitiam. Ainda assim, fico com o direito
de crer que, apesar de tudo, o herdeiro de Marx sou eu (RIBEIRO, D.,
2001, p.31).
Elabora uma tipologia a contemplar o que chamou: 1) sociedades arcaicas; 2)
civilizaes regionais; 3) civilizaes mundiais, alm dos subtipos. Na primeira
formao, designou formaes sociais como aldeias agrcolas indiferenciadas e
hordas pastoris nmades; na segunda, denominou configuraes sociais que
nomeou de estados rurais artesanais, as chefias pastoris nmades, os imprios
teocrticos de regadio, os imprios mercantis escravistas e os imprios
despticos salvacionistas; no ltimo grupo, aliou as formaes progressivamentemais hbridas, a saber, os imprios mercantis salvacionistas e o colonialismo
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escravista; o capitalismo mercantil e os colonialismos modernos; o imperialismo
industrial e neocolonialismo; a expanso socialista; por fim, projetou a civilizao
da humanidade (RIBEIRO, 2007).
Nada mais distante de sua proposta do que pretender a coincidncia entre as
sociedades concretas e os modelos criados. Sua recepo do conceito de
evoluo multilinearde Steward abre para Darcy a percepo de que a realidade
mais complexa, hbrida, do que qualquer conceito. Seu conceito de acelerao
evolutiva, por sua vez, formulado em contraposio modernizao reflexa ou
atualizao histrica 4, bem demonstra as variaes nos processos de cada
sociedade particular, configurada pelo tipo de relao que desenvolve com asdemais sociedades e pela forma como que conquista, ou no,sua autonomia. Em
suas palavras:
Esta construo ideal (diagnsticos homogneos referentes aos
sistemas adaptativo, associativo e ideolgico que atravessassem todas
as formaes. Apresentando em cada uma delas certas alteraes
significativas) est muito distante do possvel, em virtude do mbito de
disperso das variaes de contedo de cada cultura (RIBEIRO, 2001, p.
47-8).
Em acordo com Vargas (2003) e Lpez (2006), pode-se afirmar que o
materialismo histrico e dialtico orienta e d unidade narrativa de Darcy
Ribeiro, com a finalidade, porm, de marcar a pluralidade, a interdependncia e a
simultaneidade dos processos de constituio das sociedades humanas. Emoposio ao aspecto dicotmico das representaes modernas, O Processo
Civilizatrio (2001, p. 47-8) explicita uma pliade de formaes socioculturais
concretas, em sincronicidade, que questionam as hierarquizaes esprias do
colonizador.
A Europa mesma desconstruda como bloco monoltico a contrastar com um
4 Conferir, dentre outros, MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M. & SILVA JR. (2008); MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M. (2009, 2010).
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outro igualmente uniforme. Tambm em oposio aos julgamentos dos
fenmenos culturais em condies de subdesenvolvimento, como determinados
porcausas atvicas das respectivas formaes socioeconmicas, Darcy Ribeiro
(2001, p. 135) buscou evidenciar que a posio em que se encontra uma
sociedade no corresponde a qualidades inatas ou a qualidades imutveis de sua
cultura, seno, em larga medida, a circunstncias susceptveis de transformao,
destacando os elementos de criatividade nas culturas como, por exemplo, os
modos de interveno na natureza para a produo de bens e para a
institucionalizao de novas relaes sociais. Escapa, por fim, de qualquer
pretenso positivista e totalizadora em seu livro, ao justificar-se em um de seus
artigos em Carta... (1991, p. 45) seu informe como Senador da Repblica:
Tentaremos (...) estabelecer as bases e os limites dentro dos quais nos
propomos formular um esquema evolutivo geral (...) uma explanao
terica ideal construda pela reduo conceitual da multiplicidade de
situaes concretas registradas pela arqueologia, pela etnologia e pela
histria, a um paradigma simplificado da evoluo global das sociedades
humanas, mediante a definio de suas etapas bsicas e dos processos
de transio de uma a outra dessas etapas.
No era uma frivolidade que tal estudo partisse do Terceiro Mundo. Segundo
Heinz Rudolf Sontag, no Eplogo Edio Alem (2001, p. 283), foi uma ousadia
sem paralelo poca revisitar a histria da humanidade sem reforar a crena de
que o umbigo do mundo se situa ainda em algum lugar em Viena, Berlim, Bonn,
Moscou, Washington ou Roma:
Que Ribeiro atribua ao Primeiro Mundo um papel no relevante na
realizao das sociedades futuras e no lhe reserve seno insuficincias
como o socialismo evolutivo, significa um desafio com o qual tem que se
defrontar a teoria crtica no mundo desenvolvido imediata e seriamente,
se no quiser correr o risco de desaparecer (SONTAG, 2001, p. 283).
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Ansio Teixeira (2001, p. 13), na apresentao de O processo Civilizatrio,
tambm faz referncia ao fato desta obra ter sido escrita a partir do terceiro
mundo, sem que tal condio impusesse ao autor espcie alguma de
subordinao mental. Darcy Ribeiro relata-nos, no prefcio quarta edio
venezuelana de O processo Civilizatrio, que sentiu medo do desastre de uma
empreitada daquela magnitude: reescrever a teoria da histria. Foi, em suas
palavras, sua raiva possessa contra todos os que pensam que intelectual do
mundo subdesenvolvido tem que ser subdesenvolvido tambm (2001, p.23) que
salvou da morte precoce seus primeiros escritos, aps o recebimento de um
primeiro e arrasadorparecer de uma importante editora internacional. Em 1968,
seu livro era editado pela primeira vez pela Smithsonian Institution, a mesma dasobras de Lewis Morgan, de quem era leitor. Viriam depois quinze novas edies
em vrios idiomas que espalharam pelo mundo cerca de 160 mil exemplares.
Em sua obra, Darcy Ribeiro alia-se matriz culturalista de Franz Boas em sua
diferenciao fundamental entre raa e cultura,que abriu espao na antropologia
para se pensar a transculturao no mais como rebaixamentocultural, mas em seu
papel criativo tal como a inveno da nova cultura mestia latino-americana. Mais
tarde, Randeria, sociloga indiana hoje na Universidade de Zurique (apud.
COSTA, 2006, p. 90), postularia os conceitos, afins proposta de Darcy Ribeiro,
de histrias partilhadas ou modernidade entrelaada, na nfase ao carter hbrido
e no-essencialista da histria dos povos. Ainda que a metanarrativa da
modernidade insista nas dicotomias moderno e pr-moderno, ocidente e oriente,
norte e sul, dentre outras, as culturas, contudo, se interpenetram, transpondo
fronteiras de quaisquer espcies, e se co-determinam. Disto j sabia Darcy
Ribeiro (2001, p. 46):
A evoluo sociocultural tal como conceituada at aqui um processo
interno de transformao e auto-superaro que se gera e se desenvolve
dentro das culturas, condicionado pelos enquadramentos extraculturais a
que nos referimos. Na realidade, porm, as culturas so construdas e
mantidas por sociedades que no existem isoladamente, mas em
permanente interao umas com as outras.
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A percepo das histrias partilhadas no ofusca as assimetrias de poder que
marcam deslocamentos e trnsitos, tampouco afirma que tudo est entrelaado
na mesma medida. Ao contrrio: impe ao conhecimento que atente para as
assimetrias e desigualdades mesmas, construdas no interior do projeto histrico
da modernidade pela crena no binmio entre atraso e moderno, que nega ao
primeiro plo a condio de sociedade e autoriza que se tornem campos de
experimentao da modernidade pela expanso colonial. As abordagens ps-
coloniais rejeitam os binarismos e ampliam a percepo da realidade que se
constri, na relao colonial, pelas cadeias de significaes que hibridizam a
reivindicada identidade pura do colonizador ou do colonizado.
O lugar de enunciao , de sada, um lugar heterogneo, de modo que as
releituras da histria das gentes e dos povos ho de transgredir as fronteiras
culturais traadas pelo pensamento colonial e romper, enfim, com as adscries
essencialistas. Negando o silenciamento dos povos novos, que co-habitam o
mesmo planeta dos europeus, Darcy Ribeiro (2001, p. 08-9) pergunta:
Como classificar, uns em relao aos outros, os povos indgenas, quevariavam desde altas civilizaes at hordas pr-agrcolas e que
reagiram conquista segundo o grau de desenvolvimento que haviam
alcanado? Como situar, em relao aos povos indgenas e aos
europeus, os africanos desgarrados de grupos em distintos graus de
desenvolvimento para serem transladados Amrica como mo-de-obra
escrava? Como classificar os europeus que regeram a conquista? Os
ibricos, que chegaram primeiro, e os nrdicos, que vieram depois
sucedendo-os no domnio de extensas reas , configuravam o mesmo
tipo de formao sociocultural? Finalmente, como classificar e relacionar
as sociedades nacionais americanas por seu grau de incorporao aos
modos de vida da civilizao agrrio-mercantil e, j agora, da civilizao
industrial?
Para Darcy Ribeiro (p. 65-6), as etnias so definidas como coletividades humanas
singulares, assim constitudas pelo convvio de seus membros, gerao aps
gerao, formando uma comunidade de lngua e cultura. Fala em etnia nacional,
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por sua vez, quando esta pretende o domnio de um territrio. Quando os estados
(organizaes de base territorial) expandem sua dominao sobre populaes
multitnicas, a fim de absorv-las pela transfigurao cultural, chama-os de
macroetnias. Ao designar algumas formaes sociais como civilizaes em
distino a outras, aponta exclusivamente para seu potencial de expanso
territorial, dominao poltico-econmica e influncia cultural, jamais para deduzir
que as civilizaes sejam superiores moral ou intelectualmente s demais formas
sociais.
Assim, capaz de narrar o processo civilizatrio que teve lugar nos ltimos 10 mil
anos da histria humana (RIBEIRO, 2001, p. 65), sem que seu estudo sirva paralegitimar a ordem global contempornea. Tanto que o autor, descontente com os
modelos civilizatrios descritos, dedicou o ltimo captulo de seu livro para
imaginar uma nova sociedade, ponto em que se encontrou novamente com a
dialtica marxista, crtico, porm, ao modelo socialista sovitico - em razo do que
sofreu duros ataques dos marxistas de sua gerao. No declinou, porm, de sua
crena de que est em marcha cada vez mais aceleradamente um novo
processo civilizatrio de mbito universal (p. 245).
A utopia de Darcy, sob a designao de Revoluo Termonuclear, parece
contrariar o ps-modernismo e o ps-estruturalismo em que bebem as
abordagens ps-coloniais. Em 1968, na Amrica Latina, importava
fundamentalmente a Darcy Ribeiro (2001, p. 246) apostar na reversibilidade
dialtica de um processo evolutivo que levara hegemonia do capital global. Fez
isto com as categorias e os conceitos que lhe estavam mo, atentando para asnovas e diferenciadas formas de difuso e de generalizao dos progressos
tecnolgico-culturais que pudessem, enfim, contrapor-se s espoliaes dos
povos colonizados. Discutia, tambm, nesta chave, as chances de substituio da
modernizao reflexa e artificial por oportunidades de desenvolvimento autnomo
tecnologias tambm autctones - das vrias sociedades visando emancipao
das sociedades exploradas e redefinio do sistema global.
Se teorizar implica reduzir a experincia s prioridades e s categorias
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conceituais do marco analtico escolhido, ento, Darcy Ribeiro ousou propor uma
teorizao em oposio quela hegemnica que se expressara, at ento, em
violncia sobre o no-europeu tambm no plano do discurso cientfico como
estratgia legitimadora.
Em que pesem as dissonncias em geral mais evidenciadas, h conexes entre a
utopia darcyniana e alguns ps-coloniais que, mesmo crticos do modernismo
recusando, pois, o sujeito centrado, como uma totalidade positiva, fixa e
ontolgica no abandonaram a esperana num humanismo tico, articulado
por vrias vozes.
O ps dops-colonialno significa como ops dops-moderno tambm no
a efetivao de novos patamares de humanidade, mas se constitui num
discurso a fazer frente s narrativas legitimadoras anteriores, (...) escolados nos
seus abusos pela experincia do eurocentrismo e do imprio (SAID, 2007, p.
29),. Disto resulta que o ps-colonial no descr, exatamente, nas energias
utpicas sabemos que na luta sul-africana contra o apartheid havia ideais
humanistas presentes , mas submete-as crtica. Diz-nos Said (2007) que aprtica humanista revisitada um aspecto integrante e parte operante do mundo
hoje, no como mero ornamento de erudio ou de nostalgia, mas como apelo
contemporneo num mundo que se quer ainda ps-colonial e genuinamente
cosmopolita, portanto, marcado por uma curiosidade intelectual visceralmente
internacionalista, liberta, portanto, do eurocentrismo.
Chega perto de ser escandaloso, por exemplo, que quase todo programa
de estudos medievais em nossa universidade omita rotineiramente um
dos pontos altos da cultura medieval, a saber, a Andaluzia muulmana
antes de 1492, e que, como Martin Bernal mostrou para a antiga Grcia,
a mistura complexa das culturas europia, africana e semtica tenha sido
purgada dessa heterogeneidade to perturbadora para o humanismo
corrente (SAID, 2007, p. 78).
Appiah, em seu livro Na casa de meu pai. A frica na filosofia da cultura (1997),
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postula que os ideais iluministas e seus critrios de avaliao do certo e do
errado, do bom e do mau, do desejvel e do indesejvel, do belo e do feio, do
familiar e do extico, do culto e do inculto nascem num lugar histrico como
autoconscincia deste lugar, ignorando outros discursos igualmente locais. Pior,
seu transplante para outras realidades materiais e simblicas imps-se
violentamente por meio do colonialismo.
O clamor ps-colonial que repercute no humanismo de Edward Said encontra eco
em Darcy Ribeiro na sua busca de compreenso da sociedade brasileira, latina,
ibrica. Em convergncia com o humanismo provisrio de Appiah, Darcy no
desconhecia as exigncias sobre a agncia humana num mundo depossibilidades quase absolutas no plano do conhecimento e da ao, tanto
destrutiva, quanto construtiva e constritiva, de modo que as capacidades no se
voltem contra o homem. Seria contraditrio, portanto, se seu universal tico
tambm no se considerasse provisrio, historicamente contingente, anti-
essencialista, fruto das vontades, como diz Appiah, definidas em atos de vontade
que desguam no compromisso vigoroso com a preocupao de evitar a
crueldade e a dor (1997, p. 216). O humanismo dos escritores ps-coloniais, porconseguinte, est em toda parte: em Mudimbe, em Achebe, Fahha, lista difcil de
completar.
Darcy Ribeiro tambm temia os maus-tratos e as guerras, apelando em seu
escrito, para a criao de um sistema mundial de poder estruturado segundo
princpios supranacionais que permitam da representatividade s populaes
humanas. Insistiu, assim, no desenvolvimento de rgos internacionais decontrole dos meios de comunicao de massa e de modelao da opinio
pblica (2001, p. 247. Grifos meus). Participa, pois, dos debates candentes e
ainda insolveis acerca de como se garantir as narrativas simtricas das diversas
populaes em tais organismos supranacionais.
O empenho de Darcy Ribeiro marca incontestvel da produo de modelos
interpretativos de nossa modernidade pelos intelectuais brasileiros. Nesta senda,
inscreve-se hoje o ps-colonialao efetuar uma leitura desconstrutora de textos
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colonialistas e a produo de contra-discursos que expressam projetos de
resistncia do colonizado na rdua luta por sua auto-determinao.
Consideraes finais
Na publicao citada, Uma antropologia mameluca a partir de Darcy Ribeiro,
Arruti chamava ateno para o fato de O Povo Brasileiro (1995) apresentar-se
com um texto de Cincias Sociais sem ser assim recebido entre os pares. O
aparente desinteresse contrastava, a seu ver, com sua condio de novo
fenmeno editorial.
justo dizer que o livro expressava um Darcy Ribeiro assumidamente hbrido:
acadmico, homem pblico e literato, alis, esta ltima vocao j havia sido
reconhecida por Antonio Candido, impressionado com Mara, publicado pelo
antroplogo em 1976. Talvez, aqui tambm se possa pensar a conexo entre
Ribeiro e o ps-colonial que, no casualmente, recusa as fronteiras no
apenas geogrficas, polticas e culturais, mas tambm daquelas que organizam o
conhecimento moderno em cincia e no-cincia e em disciplinasestanques.
O ensasta de O povo brasileiro havia sido o autor do tratado, trinta anos antes,
dos tipos estruturais de processos civilizatriosna histria da humanidade sob a
perspectiva da evoluo multilinear, na trilha de Steward, Marx, Engels, dentre
outros. Tambm foi o ficcionista e romancista hoje aplaudido. No esquecendo, foi
o homem pblico que se dedicou ao tema da Educao, fundou universidades,
atuou em cargos executivos no Governo e no Congresso, como parlamentar. Nostempos do exlio poltico, viveu em vrios pases e aprofundou as relaes
acadmicas. Seus trnsitos, deslocamentos e disporas trazem consigo a marca
dops-colonial.
Escreveu livros a exigir de si e de seus leitores a imerso na histria dos povos de
onde viemos. No caso latino (e brasileiro), uma histria marcada pela opresso
que, at o sculo XIX, era contada apenas da perspectiva do colonizador, mas
que se proclamava absoluta. A fora do discurso nico ocultava a outra face,
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deixada ao obscurantismo, da histria da modernidade: a colonialidade. Seus
sujeitos narradores, alm de ter suas narrativas subalternizadas e silenciadas na
histria pela assimetria na disposio dos recursos necessrios para se ter a fala
ouvida pelos outros, tambm se calavam, por vezes, pela dor que a rememorao
traz. Como diz Bhabha (2007, p. 101), relembrar nunca um ato tranqilo de
introspeco. um doloroso se relembrar, uma reagregao do passado
desmembrado para compreender o trauma do presente.
Darcy Ribeiro participa como intelectual pblico do esforo de
rememorao/reinveno da histria das gentes e do Brasil. Em O Processo
Civilizatrio, escreveu a histria da humanidade como histrias partilhadas,entrecruzadas e interdependentes assimtricas, sim; em rota de coliso, no
poucas vezes. Inseriu, em carter definitivo, os povos americanos no mapa-
mndi, no como pr-estgios civilizatrios, mas como plos atualizados de um
mesmo sistema econmico moderno. So cerca de 10 mil anos da histria da
humanidade que ganham inteligibilidade no esforo hercleo de Darcy que, pela
instrumentalizao dos conceitos de acelerao evolutiva e de atualizao
histrica (modernizao reflexa) desvelou a coetaneidade dos povos ditosavanados e dos atrasados, sob o ponto de vista da histria crtica das
tecnologias.
Miglievich-Ribeiro e Silva Jr. (2008) registraram que o desenvolvimento
tecnolgico critrio bsico da construo do esquema de evoluo sociocultural
darcyniano, o qual lhe possibilita distinguir as sociedades autnomas daquelas
que so derivam de um processo de incorporao histricaaniquilador de suaspotencialidades.
A acelerao evolutiva desejvel por Darcy Ribeiro no , todavia, o
desenvolvimentismo e a industrializao predatria de alguns receiturios
econmicos. Se algo pode ser dito de sua obra sua carga visionria, que lhe
permite antecipar debates hoje em voga. Darcy nos fala de sociedades futuras e
sabe que estas no sero as mesmas pensadas pelos clssicos do sculo XIX.
Seu neoevolucionismo no o condena a repetir prognsticos de outrora, uma vez
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que a histria no mecnica, seno que conta com a agncia humana em seu
devir. A preocupao com um estudo de tal monta no lhe faz refm de quaisquer
dos processos civilizatrios inventariados, mas deixa claro algumas das mltiplas
possibilidades de desdobramentos histricos.
(...) quando no se conta com uma teoria explcita da evoluo, se corre
o grave risco de cair num evolucionismo irresponsvel por si mesmo,
porque inexplcito (...). Isso , alis, o que se faz habitualmente sem
maiores conseqncias. Faz-lo, porm, pretendendo ser
expressamente antievolucionista pecado de indigncia terica (Ribeiro,
2001, p.29).
No h em O Processo Civilizatrio respaldo tese da histria unilinear. Ao
contrrio, o rompimento evolutivo da condio primitiva assume nele
inevitavelmente diversas feies (2001, p. 36). Conceitos como escravismo,
feudalismo, capitalismo e socialismo ajudaram a explicar a histria europia, mas
no so analiticamente teis, sem uma reviso crtica, para dar conta das
populaes egpcia, rabe, maia, inca e outras. Seu livro foi escrito a fim debuscar informaes que subsidiem novas escolhas humanas, suas lutas, suas
trajetrias. Para Darcy Ribeiro (p. 08-9), h que se pensar, sobretudo, a
incorporao autnoma das contribuies dos povos diversos nos fluxos
histricos da humanidade.
Mesmo para as formaes correspondentes ao perodo que se segue
conquista e avassalamento dos povos pr-colombianos, no contamos
com categorias tericas adequadas. Seriam escravistas as sociedades
coloniais e os estados estruturados depois da Independncia? Seriam
feudais ou semifeudais? Seriam capitalistas?
Concordando com Boaventura Santos em sua acepo da crtica ps-colonial
como (...) um conjunto de prticas e discursos que desconstroem a narrativa
colonial como foi escrita pelo colonizador, (que) tenta substitu-la por narrativasescritas do ponto de vista do colonizado (2002, p. 13), pode-se postular que a
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Amrica Latina soma a este empenho com um leque amplo de pesquisas em
torno da proposta de descolonizao do conhecimento.
Para tanto, a releitura de autores-chave do pensamento latino-americano a
exemplo de Darcy Ribeiro que, no de hoje, fazem do par
modernidade/colonialidade importante eixo de anlise, leva produo de
reavaliaes vlidas dos caminhos e descaminhos de nossa constituio como
povo, Estado-nao e membro de uma sociedade global. Dito de outro modo, nas
inquietaes ps-coloniais, as Cincias Sociais hoje tambm podem encontrar
ricas perspectivas de estudo sobejamente orientadas para a ampliao dos
cnones da disciplina a dotar seus esforos interpretativos de mais chances de seconstituir em diagnsticos vlidos da complexidade da vida e da histria dos seres
humanos.
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