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6 É a Modernidade um Projeto Ocidental? No decorrer deste estudo, falei de “modernidade” sem maiores referências aos maiores setores do mundo fora da órbita dos assim chamados países desenvolvidos. Quando falamos de modernidade, contudo, nos referimos a trans formações institucionais que têm suas origens no Ociden te. Em que medida é a modernidade distintivamente oci dental? Ao respondermos esta questão temos que conside rar várias características da modernidade analiticamente se paráveis. Em termos de agrupamento institucional, dois complexos organizacionais distintos são de particular sig nificação no desenvolvimento da modernidade: o estado- nação e a produção capitalista sistemdtica. Ambos têm suas raízes em características específicas da história européia e têm poucos paralelos em períodos anteriores ou em outros cenários culturais. Se, em íntima conjunção, eles têm se pre cipitado através do mundo, é acima de tudo devido ao po der que geraram. Nenhuma outra forma social, mais tradi cional, foi capaz de contestar este poder no que toca à ma nutenção de completa autonomia fora das correntes do de senvolvimento mundial. E a modernidade um projeto oci dental em termos dos modos de vida forjados por estas duas grandes agências transformadoras? A esta pergunta, a res posta imediata deve ser “sim”. Uma das conseqüências fundamentais da modernidade, como este estudo enfatizou, é a globalização. Esta é mais 174 ANTHONY GIDDENS É A MODERNIDADE UM PROJETO OCIDENTAL? 175 do que uma difusão das instituições ocidentais através do mundo, onde outras culturas são esmagadas. A globaliza ção — que é um processo de desenvolvimento desigual que tanto fragmenta quanto coordena — introduz novas for mas de interdependência mundial, nas quais, mais uma vez, não há “outros”. Estas, por sua vez, criam novas formas de risco e

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É a Modernidade um Projeto Ocidental?

No decorrer deste estudo, falei de “modernidade” sem maiores referências aos maiores setores do mundo fora da órbita dos assim chamados países desenvolvidos. Quando falamos de modernidade, contudo, nos referimos a trans formações institucionais que têm suas origens no Ociden te. Em que medida é a modernidade distintivamente oci dental? Ao respondermos esta questão temos que conside rar várias características da modernidade analiticamente se paráveis. Em termos de agrupamento institucional, dois complexos organizacionais distintos são de particular sig nificação no desenvolvimento da modernidade: o estado- nação e a produção capitalista sistemdtica. Ambos têm suas raízes em características específicas da história européia e têm poucos paralelos em períodos anteriores ou em outros cenários culturais. Se, em íntima conjunção, eles têm se pre cipitado através do mundo, é acima de tudo devido ao po der que geraram. Nenhuma outra forma social, mais tradi cional, foi capaz de contestar este poder no que toca à ma nutenção de completa autonomia fora das correntes do de senvolvimento mundial. E a modernidade um projeto oci dental em termos dos modos de vida forjados por estas duas grandes agências transformadoras? A esta pergunta, a res posta imediata deve ser “sim”.

Uma das conseqüências fundamentais da modernidade,

como este estudo enfatizou, é a globalização. Esta é mais

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do que uma difusão das instituições ocidentais através do mundo, onde outras culturas são esmagadas. A globaliza ção — que é um processo de desenvolvimento desigual que tanto fragmenta quanto coordena — introduz novas for mas de interdependência mundial, nas quais, mais uma vez, não há “outros”. Estas, por sua vez, criam novas formas de risco e perigo ao mesmo tempo em que promovem pos sibilidades de longo alcance de segurança global. E a mo dernidade peculiarmente ocidental do ponto de vista de suas tendências globalizantes? Não. Não pode ser, na medida em que falamos aqui de forma emergente de interdependência mundial e consciência planetária. As maneiras pelas quais estas questões são abordadas e conduzidas, contudo, vão inevitavelmente envolver concepções e estratégias derivadas de cenários não-ocidentais. Pois nem a radicalização da mo dernidade nem a globalização da vida social são processos que estão, em algum sentido, completos. Muitos tipos de resposta cultural a tais instituições são possíveis, dada a di versidade cultural do mundo como um todo. Movimentos “além” da modernidade ocorrem num sistema global ca racterizado por grandes desigualdades de riqueza e poder e não podem deixar de ser por eles afetados.

A modernidade é universalizante não apenas em termos de seu impacto global, mas em termos do conhecimento re flexivo fundamental a seu caráter dinâmico. E a moderni dade distintivamente ocidental a este respeito? Esta pergunta tem que ser respondida afirmativamente, embora com cer tos requisitos definidos. A mudança radical da tradição in trínseca para a reflexividade da modernidade cria uma rup tura, não apenas com as eras precedentes, mas também com outras culturas. Desde que a razão se revele incapaz de for

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necer uma justificativa definitiva de si mesma, não faz sen tido fingir que esta ruptura não repousa sobre o compro misso cultural (e o poder). O poder, todavia, não estabele ce inevitavelmente questões que emergem como resultado da difusão da reflexividade da modernidade, especialmen te na medida em que os modos de argumentação discursiva se tornam amplamente aceitos e respeitados. A argumen tação discursiva, inclusive a que é constitutiva da ciência

natural, envolve critérios que suprimem as diferenças cuir turais. Não há nada “ocidental” nisto se o compromisso com tal argumentação, como um meio de resolver disputas, é dis ponível. Quem pode dizer, porém, que limites podem ser pos tos na difusão deste compromisso? Pois a radicalização da dúvida está ela mesma sempre sujeita à dúvida e, portanto, é um princípio que provoca severa resistência.

Observações Finais

Que me seja permitido, para concluir, tentar um sumá rio dos temas deste estudo. Nas sociedades industrializadas, acima de tudo, mas em certa medida no mundo como um todo, entramos num período de alta-modernidade, solto de suas amarras no resseguro da tradição e no que foi por muito tempo uma “posição de vantagem” fixa (tanto para os “de dentro” como para outros) — o domínio do ocidente. Em bora seus iniciadores procurassem certezas para substituir os dogmas preestablecidos, a modernidade efetivamente en volve a institucionalização da dúvida. Toda reivindicação de conhecimento, em condições de modernidade, é ineren temente circular, embora “circularidade” tenha uma cono tação diferente nas ciências naturais em comparação com as sociais. Nas primeiras, ela diz respeito ao fato de que a ciência é puro método, de modo que todas as formas subs tantivas de “conhecimento aceito” estão em princípio aber tas a serem descartadas. As ciências sociais pressupõem uma circularidade num duplo sentido, que é constitutivamente fundamental às instituições modernas. As reivindicações de conhecimento que elas produzem são todas em princípio re visáveis, mas são também “revisadas” num sentido práti co conforme elas circulam dentro e fora do ambiente que descrevem.

A modernidade é inerentemente globalizante, e as con seqüências desestablizadoras deste fenômeno se combinam com a circularidade de seu caráter reflexivo para formar um universo de eventos onde o risco e o acaso assumem um novo caráter. As tendências globalizantes da modernidade são

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simultaneamente extensionais e intensionais — elas vincu lam os indivíduos a sistemas de grande escala como parte da dialética complexa de mudança nos pólos local e global. Muitos dos fenômenos freqüentemente rotulados como pós- modernos na verdade dizem respeito à experiência de viver num mundo em que presença e ausência se combinam de maneiras historicamente novas, O progresso se torna esva ziado de conteúdo conforme a circularidade da moderni dade se firma, e, nunf nível lateral, a quantidade de infor mação que flui diariamente para dentro, envolvida no fato de se viver em “um mundo”, pode às vezes ser assoberbante. E no entanto isto não é primordialmente uma expressão de fragmentação cultural ou da dissolução do sujeito num “mundo de signos” sem centro. Trata-se de um processo simultâneo de transformação da subjetividade e da organi zação social global, contra um pano de fundo perturbador de riscos de alta-conseqüência.

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A modernidade é inerentemente orientada para o futu ro, de modo que o “futuro” tem o status de modelador con trafatual. Embora haja outras razões para isto, este é um fator sobre o qual fundamento a noção de realismo utópi co. Antecipações do futuro tornam-se parte do presente, ri cocheteando assim sobre como o futuro na realidade se de senvolve; o realismo utópico combina a “abertura de jane las” sobre o futuro com a análise das correntes institucio nais em andamento pelas quais os futuros políti’ estão imanentes no presente. Retornamos aqui ao tema do tem po com o qual o livro se abriu. Como poderia ser um mun do pós-moderno no que diz respeito aos três conjuntos de fatores antes referidos comó subjacentes à natureza dinâ mica da modernidade? Pois se as instituições modernas fo rem um dia amplamente transcendidas, eles seriam neces sariamente alterados de modo fundamental. Alguns comen tários sobre isto constituem a minha conclusão.

As utopias do tipo realista são antitéticas tanto à reflexi vidade como à temporalidade da modernidade. Prescrições ou antecipações utópicas estabelecem uma linha básica pa ra futuros estados de coisas que bloqueiam o caráter infini t aberto da modernidade. Num mundo pós-moderno,

o tempo e o espaço já não seriam ordenados em sua inter- relação pela historicidade. Se isto implicaria um ressurgi mento da religião numa forma ou em outra é difícil dizer, mas ocorreria supostamente uma renovação da fixidez em alguns aspectos da vida que lembrariam certas característi cas da tradição. Tal fixidez por sua vez propiciaria um em basamento para o sentido de segurança ontológica, refor çado pela consciência de um universo social sujeito a con trole humano. Este não seria um mundo que “desmorona para fora” em organizações descentralizadas, mas entrela çaria o local e o global de uma maneira complexa. Tal mun do envolveria uma reorganização radical do tempo e do es paço? Parece provável. Com este tipo de reflexão, porém, começamos a dissolver a conexão entre especulação utópi ca e realismo. E isto está além de até onde um estudo deste tipo deve ir

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