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    RESENHAS

    Micro-histria: reconstruindo o

    campo de possibilidades

    Manoel Luiz Salgado Guimares

    Jacques Revel (org.).Jogos deEscala: a

    experincia da microanlise. Tra-duo Dora Rocha. Rio de Janei-ro: Editora Fundao GetlioVargas, 1998, 262 pginas.

    Aproduo historiogrfica fran-cesa particularmente rica debalanos e avaliaes sobre a produ-o em nossa disciplina como partede um esforo sistemtico para revere discutir os parmetros da pesquisahistrica. Basta que nos lembremosda coletnea Faire lHistoire da d-cada de 70 e da obra Passs Recom-poss duas dcadas mais tarde, para

    termos dois significativos exemplosdeste esforo de reflexo a respeitodo prprio campo de trabalho dohistoriador. Pensar sua prpria his-tria pode assim significar um exer-ccio de legitimao para uma comu-nidade de profissionais, cuja identi-dade encontra-se fortemente assen-

    tada e construda a partir de lugaressocialmente definidos de produo

    desse conhecimento, com suas regras

    prprias de consagrao. Pode tam-bm responder s exigncias cont-nuas de uma reflexo sistemtica sobreos mtodos e o lugar da teoria naproduo do conhecimento histri-co como forma de responder satis-fatoriamente aos desafios, tanto da

    pesquisa histrica em sentido restri-to, quanto das demandas sociais pos-tas pela contemporaneidade das so-ciedades altamente industrializadas.O trabalho organizado por JacquesRevel Jogos de Escala parece com-partilhar desta tradio, assim comocontribui para legitimar um vis da

    pesquisa histrica, hoje com largosespaos de reconhecimento nos se-minrios da cole des Hautes tudesen Sciences Sociales, onde algunsdos participantes da obra coletivadirigem seminrios de pesquisa, ain-da que seus comeos estejam associa-dos historiografia italiana e a no-mes como o do historiador CarloGuinzburg e Giovanni Levi.

    Topoi, Rio de Janeiro, n 1, pp. 217-223.

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    Resultado das discusses leva-

    das a cabo na prpria cole comoresposta a uma demanda ministerialpropondo uma reflexo em torno darelao Antropologia e Histria, olivro traa um rico painel dos pro-blemas envolvendo a micro-histria,permitindo ao seu leitor um primei-ro contato com o universo de ques-

    tes subjacentes a esta modalidadeda pesquisa histrica, situando seudesenvolvimento num quadro his-toriogrfico propriamente dito, as-sim como sublinhando tradies fi-losficas a que este tipo de procedi-mento, implcito na micro-histria,se reporta. Na verdade, assistimos reedio de um velho debate entrea Antropologia e a Histria, inaugu-rado de forma exemplar com Lvi-Strauss e Braudel ainda nos finaisdos anos 50, mas que evidentementese reveste agora de caractersticastotalmente diversas, consagrando

    definitivamente a vitria de um cer-to olhar antropolgico na pesquisahistrica. Nas palavras de EdoardoGrendi, em seu artigo para o livro,a abordagem micro-histrica estariaindelevelmente marcada pelo signoda antropologia na medida em queeducou seu olhar para ver o passadoa partir de uma perspectiva de estra-nhamento, vendo-o como efetiva-

    mente uma terra estrangeira, numa

    formulao que sugere o ttulo daobra de David Lowenthal, The Pastis a foreign country.

    A coletnea de dez artigos encabeada pelo trabalho de JacquesRevel intitulado Microanlise econstruo do social, que realizaigualmente a apresentao da obra

    coletiva. Seu texto procura mapeara recepo da micro-histria pelahistoriografia francesa a partir da tra-duo em 1989 do livro de GiovanniLevi, Le pouvoir au village, cujoprefcio ficara a cargo do prprioRevel. Curiosamente, um ano sim-bolicamente marcado por eventos deprofundas significaes para a pes-quisa histrica, quando a tradiohegemnica herdada da Escola dos

    Annales, a histria social, sofre pro-fundas crticas por parte mesmo da-queles que se colocavam como seusherdeiros. neste quadro de crtica

    da tradio herdada que a micro-his-tria emerge, apontando novas pos-sibilidades para o trabalho do histo-riador, que ainda reafirmando a his-tria como social, procura sofisticare redimensionar a pesquisa a partirde procedimentos que questionamas antigas concepes da histria so-cial. Acossada pelo linguistic turn,a historiografia francesa responde

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    com o tournant critique e o reco-

    nhecimento e legitimao propor-cionados micro-histria integram

    este movimento mais amplo de re-

    pensar os caminhos da pesquisa his-

    trica. Nas palavras de Jacques Revel,

    a micro-histria pode ento ter o va-

    lor de sintoma historiogrfico.

    Com preocupao semelhante,

    ou seja, a de compreender a emer-gncia da micro-histria a partir de

    um recorte que poderamos definir

    como historiogrfico, o ltimo tex-

    to da coletnea, de autoria de Edoar-

    do Grendi, avana uma sugesto

    interessante no sentido de com-

    preender a prtica da micro-histria

    como particular ao quadro intelec-

    tual da historiografia italiana, repre-

    sentando, segundo ele, uma via ita-

    liana de uma histria social mais ela-

    borada e que procurava fugir aos

    aprisionamentos definidos pela tra-

    dio italiana de escrita da histria,

    pautada por definies rgidas dosobjetos a serem considerados pela

    anlise do historiador. Como parte

    de um alargamento de horizontes

    para o trabalho do historiador, a

    micro-histria italiana estaria tam-

    bm preocupada com uma narrati-

    va visando um pblico mais alarga-

    do, combinando assim novas de-

    mandas externas ao campo a exign-

    cias de refinamento terico. Mas

    onde teriam os historiadores italia-nos buscado suas sugestes para o

    projeto de uma reescritura da hist-

    ria liberta das hierarquias e defini-

    es de uma histria feita maneira

    tradicional? A resposta pode ser en-

    contrada no artigo de Paul-Andr

    Rosental, Construir o macro pelo

    micro: Frederik Barth e a microstoria,onde o autor sublinha as possveis

    sugestes contidas no trabalho do

    antroplogo noruegus e que esti-

    mularam as reflexes dos historiado-

    res italianos. A partir da pesquisa an-

    tropolgica de Barth, preocupada

    em considerar especialmente as va-

    riantes comportamentais dos atores

    envolvidos em determinados pro-

    cessos sociais, o pressuposto funcio-

    nalista de um mundo social perfei-

    tamente integrado por suas partes

    seriamente abalado. Ao valorizar o

    conjunto de variantes comporta-

    mentais, Barth aponta para a impor-tncia dos contextos decisrios que

    pem em relao atores sociais num

    jogo relacional complexo, definin-

    do configuraes mltiplas e vari-

    veis segundo o carter das decises a

    serem tomadas por atores histricos

    reais, agindo no mundo social. Esta

    sensibilidade parece marcar profun-

    damente os micro-historiadores,

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    preocupados em captar estes atores

    histricos agindo como sujeitos apartir da leitura que empreendero

    de suas fontes. Ainda a partir das su-

    gestes do antroplogo noruegus,

    segundo o artigo de Rosental, os his-

    toriadores italianos da micro-hist-

    ria incorporaram uma certa dimen-

    so de incerteza e imprevisibilidade

    presentes nas aes humanas e ne-cessariamente consideradas como

    parte da anlise histrica.

    Um dos pontos centrais que

    atravessa o conjunto dos textos reu-

    nidos no livro em questo a afir-

    mao de que a micro-histria se

    coloca em frontal oposio pers-

    pectiva das anlises macro-histri-

    cas, que situavam a possibilidade de

    explicao dos fenmenos histricos

    a partir da localizao de causas si-

    tuadas num plano macro-estrutural,

    responsvel pela modulao dos fe-

    nmenos em escala micro. Trata-se

    de fato de um ataque frontal a umdos pressupostos mais caros da his-

    tria social francesa maneira dos

    Annales: a preeminncia da dimen-

    so macro-estrutural para a explica-

    o dos fenmenos histricos. Na

    verdade, o que est em jogo pelo par

    de oposies macro e micro, segun-

    do as perspectivas esposadas pelos

    autores do livro, no apenas uma

    mera diferena de escala tomada

    para a anlise dos fenmenos hist-ricos, mas um redimensionamento

    de objetos e questes que pem em

    dvida as certezas estabelecidas pela

    histria social de corte marcada-

    mente macro-estrutural. Como afir-

    ma Giovanni Levi em seu artigo

    para o livro, intitulado Comporta-

    mentos, recursos, processos: antes darevoluo do consumo, a escala resul-

    ta de uma escolha e como tal mar-

    car profundamente a pesquisa,

    uma vez que condicionar aquilo

    que ser visto pelo historiador. Seu

    interlocutor no artigo um dos

    monstros sagrados da histria social

    francesa concebida a partir de uma

    perspectiva macro-estrutural: Fer-

    nand Braudel. O que est em jogo:

    a capacidade do historiador traba-

    lhar com categorias altamente gene-

    ralizantes extraindo delas conheci-

    mento. Ainda com relao ao con-

    ceito de escala, fulcral para o traba-lho da micro-histria, Bernard Lepetit

    em seu texto Sobre a escala na his-

    tria, no livro organizado por

    Revel, afirma a necessidade imperio-

    sa da escolha da escala como condi-

    o mesma para o conhecimento

    que se pretende, constituindo-se

    portanto num ponto de vista de co-

    nhecimento. Da mesma forma que

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    atravs do seu trabalho o historiador

    formula problemas ao passado apartir de questes de seu presente

    a velha lio aprendida com os pais

    fundadores dos Annales , a esco-

    lha de uma escala engendra objetos

    que no existem como entes subs-

    tantivados no mundo. Desta manei-

    ra, Lepetit formula uma das crticas

    mais contundentes a um realismosimplista do trabalho do historiador,

    assegurado pelo registro deste real

    em fontes consultveis.

    E a delineiam-se com clareza

    as heranas filosficas acionadas

    pelos defensores da micro-histria e

    que significaro uma crtica radical

    a um positivismo subjacente na tra-

    dio da histria social francesa e

    detectado por estes historiadores.

    Neste sentido, e sublinhando sobre-

    tudo os aspectos filosficos do de-

    bate em torno da micro-histria, o

    texto de Marc Abls, O racionalis-

    mo posto prova da anlise, parti-cularmente interessante e estimu-

    lante. Partindo de rpidas conside-

    raes a respeito do lugar das anli-

    ses microscpicas entre os antrop-

    logos, que por vezes chegam mesmo

    a fetichizar o micro como sendo o

    lugar do desvendamento pleno dos

    fenmenos sociais, o autor nos cha-

    ma ateno para o fato de que o

    debate em torno da micro-histria

    obriga-nos a repensar os rgidos c-nones de uma interpretao cartesia-

    na da racionalidade e dos procedi-

    mentos decorrentes desta forma

    particular de racionalidade. A sim-

    plificao do debate em torno de

    posturas ditas racionalistas contra

    aquelas tidas como relativistas no

    podem mais satisfazer a complexifi-cao exigida para as anlises dos

    fenmenos sociais. Desta forma, as

    anlises propostas pelos micro-his-

    toriadores tenderiam a desnaturali-

    zar os objetos, o que para o caso da

    pesquisa histrica implica necessa-

    riamente numa reviso do papel das

    fontes.

    Neste aspecto, o texto de

    Maurizio Gribaudi, Escala, perti-

    nncia, configurao, que se cons-

    tri a partir de uma crtica perspec-

    tiva de histria social segundo os

    contornos presentes no clssico tra-

    balho de Adeline Daumard, apontapara os riscos de se tomar os docu-

    mentos com o sentido de uma evi-

    dncia imediata, vendo neles a ins-

    crio de um real dado observao

    e anlise dos historiadores. Desta

    forma, e sem perceber, o historiador

    acabaria por ficar prisioneiro das

    formas passadas de inscrio dos fe-

    nmenos que estuda. E como tal,

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    no seria capaz de repensar estas ins-

    cries historicamente a partir deuma multiplicidade e da no linea-ridade dos fenmenos que estuda.Eis aqui outro dos elementos cen-trais sublinhados como uma dasmarcas da micro-histria praticadapelos autores do livro: a impossibi-lidade da formulao de leis gerais

    para o desenvolvimento histrico apartir da observao de um fenme-no atravs da Histria. O exemploretomado por Gribaudi, a partir dassugestes de Giovanni Levi, procu-ra mostrar como o advento do Es-tado Moderno, quando tratado apartir de uma perspectiva micro,mostra uma pluralidade de possibi-lidades e realizaes histricas, di-versas entre si, cuja explicao de-manda uma anlise refinada e minu-ciosa dos contextos de emergnciadestes Estados em diferentes situa-es e lugares. Por este procedimen-

    to, uma reviso de certas afirmaese generalizaes acerca do EstadoModerno tornaram-se possveis enecessrias. O conceito de contex-to adquire ento uma centralidadeimportante, ainda que evidente-mente no seja percebido da mesmaforma que a histria social de recor-te macro o trata. Para esta, no con-texto localiza-se a rede de causas ex-

    plicativas para os fenmenos sociais

    capaz de unificar a diversidade dasexperincias histricas, enquantopara a pesquisa micro-histrica ocontexto sempre e necessariamen-te diverso e o lugar de um jogo rela-cional onde a ao dos sujeitos his-tricos efetivos, agindo, capaz dedefinir solues e propor encami-

    nhamentos que a priorino estariamdados. Neste sentido a narrativa his-trica no apenas o relato do efe-tivamente acontecido porque neces-srio razo histrica, mas tambmo relato das alternativas possveispostas num jogo a ser decidido pe-los atores histricos em questo.Como no deixar de sentir aqui asmarcas do clssico trabalho edmarcheE.P.Thompson sugeridos em seu li-vro de 1963 e que Simona Ceruttiem seu texto Processo e experincia:indivduos, grupos e identidades em

    Turim no sculo XVII faz questo de

    marcar? maneira sugerida porThompson, a anlise do historiadordeveria cruzar elementos processu-ais de anlise com trajetrias indivi-duais, o que a autora procurou em-preender em sua anlise dos gruposprofissionais na cidade de Turim. Se-gundo o caminho escolhido, Ceruttidescolou a anlise social de umahomologia entre as esferas tcnicas

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    e produtivas e os comportamentos

    e relaes sociais. Partindo das su-gestes do historiador social ingls,

    que sublinhavam especificamente o

    papel processual na construo dos

    objetos que sero interrogados pe-

    los historiadores, a autora radicaliza

    sua anlise no sentido de perceber,

    atravs do estudo das trajetrias in-

    dividuais, as respostas histricas for-muladas pelos protagonistas em

    ao, procedimento este que, segun-

    do a autora, implicou numa reinter-

    pretao do prprio processo geral.

    Esta parece ser tambm a pers-

    pectiva adotada por Sabina Loriga

    no artigo intitulado A biografia

    como problema, onde a aposta bio-

    grfica pode se constituir em impor-

    tante vis para a interpretao dos

    fenmenos macro, a partir de uma

    perspectiva que obriga a uma rein-

    terpretao das tradies herdadas

    de anlise. Para o caso das biografias,

    durante longo tempo expulsas docampo da pesquisa histrica, torna-

    va-se imprescindvel ainda legitim-

    las frente comunidade de profissio-

    nais como um problema para a pr-tica de pesquisa. Com o desloca-

    mento do foco de anlise das estru-

    turas macro-sociais para as experin-

    cias vividas pelos atores histricos,

    a trajetria biogrfica pode assim en-

    contrar um lugar legtimo na refle-

    xo dos historiadores e o olhar de

    Sabina Loriga busca recuperar napesquisa biogrfica sua dimenso

    heurstica para o conhecimento da

    histria.

    Jogos de escalas. A experincia

    da microanlise leitura importante

    para compreendermos os caminhos

    da produo em nosso campo de co-

    nhecimento e, combinando uma re-

    flexo terica sofisticada pesquisa

    documental, sublinha a importn-

    cia desta dupla dimenso do traba-

    lho do historiador, podendo tam-

    bm contribuir para uma crtica

    contundente dos diferentes matizes

    positivistas a que nossa disciplinaesteve sujeita.