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8/2/2019 01_resenha01microhistori
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RESENHAS
Micro-histria: reconstruindo o
campo de possibilidades
Manoel Luiz Salgado Guimares
Jacques Revel (org.).Jogos deEscala: a
experincia da microanlise. Tra-duo Dora Rocha. Rio de Janei-ro: Editora Fundao GetlioVargas, 1998, 262 pginas.
Aproduo historiogrfica fran-cesa particularmente rica debalanos e avaliaes sobre a produ-o em nossa disciplina como partede um esforo sistemtico para revere discutir os parmetros da pesquisahistrica. Basta que nos lembremosda coletnea Faire lHistoire da d-cada de 70 e da obra Passs Recom-poss duas dcadas mais tarde, para
termos dois significativos exemplosdeste esforo de reflexo a respeitodo prprio campo de trabalho dohistoriador. Pensar sua prpria his-tria pode assim significar um exer-ccio de legitimao para uma comu-nidade de profissionais, cuja identi-dade encontra-se fortemente assen-
tada e construda a partir de lugaressocialmente definidos de produo
desse conhecimento, com suas regras
prprias de consagrao. Pode tam-bm responder s exigncias cont-nuas de uma reflexo sistemtica sobreos mtodos e o lugar da teoria naproduo do conhecimento histri-co como forma de responder satis-fatoriamente aos desafios, tanto da
pesquisa histrica em sentido restri-to, quanto das demandas sociais pos-tas pela contemporaneidade das so-ciedades altamente industrializadas.O trabalho organizado por JacquesRevel Jogos de Escala parece com-partilhar desta tradio, assim comocontribui para legitimar um vis da
pesquisa histrica, hoje com largosespaos de reconhecimento nos se-minrios da cole des Hautes tudesen Sciences Sociales, onde algunsdos participantes da obra coletivadirigem seminrios de pesquisa, ain-da que seus comeos estejam associa-dos historiografia italiana e a no-mes como o do historiador CarloGuinzburg e Giovanni Levi.
Topoi, Rio de Janeiro, n 1, pp. 217-223.
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Resultado das discusses leva-
das a cabo na prpria cole comoresposta a uma demanda ministerialpropondo uma reflexo em torno darelao Antropologia e Histria, olivro traa um rico painel dos pro-blemas envolvendo a micro-histria,permitindo ao seu leitor um primei-ro contato com o universo de ques-
tes subjacentes a esta modalidadeda pesquisa histrica, situando seudesenvolvimento num quadro his-toriogrfico propriamente dito, as-sim como sublinhando tradies fi-losficas a que este tipo de procedi-mento, implcito na micro-histria,se reporta. Na verdade, assistimos reedio de um velho debate entrea Antropologia e a Histria, inaugu-rado de forma exemplar com Lvi-Strauss e Braudel ainda nos finaisdos anos 50, mas que evidentementese reveste agora de caractersticastotalmente diversas, consagrando
definitivamente a vitria de um cer-to olhar antropolgico na pesquisahistrica. Nas palavras de EdoardoGrendi, em seu artigo para o livro,a abordagem micro-histrica estariaindelevelmente marcada pelo signoda antropologia na medida em queeducou seu olhar para ver o passadoa partir de uma perspectiva de estra-nhamento, vendo-o como efetiva-
mente uma terra estrangeira, numa
formulao que sugere o ttulo daobra de David Lowenthal, The Pastis a foreign country.
A coletnea de dez artigos encabeada pelo trabalho de JacquesRevel intitulado Microanlise econstruo do social, que realizaigualmente a apresentao da obra
coletiva. Seu texto procura mapeara recepo da micro-histria pelahistoriografia francesa a partir da tra-duo em 1989 do livro de GiovanniLevi, Le pouvoir au village, cujoprefcio ficara a cargo do prprioRevel. Curiosamente, um ano sim-bolicamente marcado por eventos deprofundas significaes para a pes-quisa histrica, quando a tradiohegemnica herdada da Escola dos
Annales, a histria social, sofre pro-fundas crticas por parte mesmo da-queles que se colocavam como seusherdeiros. neste quadro de crtica
da tradio herdada que a micro-his-tria emerge, apontando novas pos-sibilidades para o trabalho do histo-riador, que ainda reafirmando a his-tria como social, procura sofisticare redimensionar a pesquisa a partirde procedimentos que questionamas antigas concepes da histria so-cial. Acossada pelo linguistic turn,a historiografia francesa responde
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com o tournant critique e o reco-
nhecimento e legitimao propor-cionados micro-histria integram
este movimento mais amplo de re-
pensar os caminhos da pesquisa his-
trica. Nas palavras de Jacques Revel,
a micro-histria pode ento ter o va-
lor de sintoma historiogrfico.
Com preocupao semelhante,
ou seja, a de compreender a emer-gncia da micro-histria a partir de
um recorte que poderamos definir
como historiogrfico, o ltimo tex-
to da coletnea, de autoria de Edoar-
do Grendi, avana uma sugesto
interessante no sentido de com-
preender a prtica da micro-histria
como particular ao quadro intelec-
tual da historiografia italiana, repre-
sentando, segundo ele, uma via ita-
liana de uma histria social mais ela-
borada e que procurava fugir aos
aprisionamentos definidos pela tra-
dio italiana de escrita da histria,
pautada por definies rgidas dosobjetos a serem considerados pela
anlise do historiador. Como parte
de um alargamento de horizontes
para o trabalho do historiador, a
micro-histria italiana estaria tam-
bm preocupada com uma narrati-
va visando um pblico mais alarga-
do, combinando assim novas de-
mandas externas ao campo a exign-
cias de refinamento terico. Mas
onde teriam os historiadores italia-nos buscado suas sugestes para o
projeto de uma reescritura da hist-
ria liberta das hierarquias e defini-
es de uma histria feita maneira
tradicional? A resposta pode ser en-
contrada no artigo de Paul-Andr
Rosental, Construir o macro pelo
micro: Frederik Barth e a microstoria,onde o autor sublinha as possveis
sugestes contidas no trabalho do
antroplogo noruegus e que esti-
mularam as reflexes dos historiado-
res italianos. A partir da pesquisa an-
tropolgica de Barth, preocupada
em considerar especialmente as va-
riantes comportamentais dos atores
envolvidos em determinados pro-
cessos sociais, o pressuposto funcio-
nalista de um mundo social perfei-
tamente integrado por suas partes
seriamente abalado. Ao valorizar o
conjunto de variantes comporta-
mentais, Barth aponta para a impor-tncia dos contextos decisrios que
pem em relao atores sociais num
jogo relacional complexo, definin-
do configuraes mltiplas e vari-
veis segundo o carter das decises a
serem tomadas por atores histricos
reais, agindo no mundo social. Esta
sensibilidade parece marcar profun-
damente os micro-historiadores,
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preocupados em captar estes atores
histricos agindo como sujeitos apartir da leitura que empreendero
de suas fontes. Ainda a partir das su-
gestes do antroplogo noruegus,
segundo o artigo de Rosental, os his-
toriadores italianos da micro-hist-
ria incorporaram uma certa dimen-
so de incerteza e imprevisibilidade
presentes nas aes humanas e ne-cessariamente consideradas como
parte da anlise histrica.
Um dos pontos centrais que
atravessa o conjunto dos textos reu-
nidos no livro em questo a afir-
mao de que a micro-histria se
coloca em frontal oposio pers-
pectiva das anlises macro-histri-
cas, que situavam a possibilidade de
explicao dos fenmenos histricos
a partir da localizao de causas si-
tuadas num plano macro-estrutural,
responsvel pela modulao dos fe-
nmenos em escala micro. Trata-se
de fato de um ataque frontal a umdos pressupostos mais caros da his-
tria social francesa maneira dos
Annales: a preeminncia da dimen-
so macro-estrutural para a explica-
o dos fenmenos histricos. Na
verdade, o que est em jogo pelo par
de oposies macro e micro, segun-
do as perspectivas esposadas pelos
autores do livro, no apenas uma
mera diferena de escala tomada
para a anlise dos fenmenos hist-ricos, mas um redimensionamento
de objetos e questes que pem em
dvida as certezas estabelecidas pela
histria social de corte marcada-
mente macro-estrutural. Como afir-
ma Giovanni Levi em seu artigo
para o livro, intitulado Comporta-
mentos, recursos, processos: antes darevoluo do consumo, a escala resul-
ta de uma escolha e como tal mar-
car profundamente a pesquisa,
uma vez que condicionar aquilo
que ser visto pelo historiador. Seu
interlocutor no artigo um dos
monstros sagrados da histria social
francesa concebida a partir de uma
perspectiva macro-estrutural: Fer-
nand Braudel. O que est em jogo:
a capacidade do historiador traba-
lhar com categorias altamente gene-
ralizantes extraindo delas conheci-
mento. Ainda com relao ao con-
ceito de escala, fulcral para o traba-lho da micro-histria, Bernard Lepetit
em seu texto Sobre a escala na his-
tria, no livro organizado por
Revel, afirma a necessidade imperio-
sa da escolha da escala como condi-
o mesma para o conhecimento
que se pretende, constituindo-se
portanto num ponto de vista de co-
nhecimento. Da mesma forma que
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atravs do seu trabalho o historiador
formula problemas ao passado apartir de questes de seu presente
a velha lio aprendida com os pais
fundadores dos Annales , a esco-
lha de uma escala engendra objetos
que no existem como entes subs-
tantivados no mundo. Desta manei-
ra, Lepetit formula uma das crticas
mais contundentes a um realismosimplista do trabalho do historiador,
assegurado pelo registro deste real
em fontes consultveis.
E a delineiam-se com clareza
as heranas filosficas acionadas
pelos defensores da micro-histria e
que significaro uma crtica radical
a um positivismo subjacente na tra-
dio da histria social francesa e
detectado por estes historiadores.
Neste sentido, e sublinhando sobre-
tudo os aspectos filosficos do de-
bate em torno da micro-histria, o
texto de Marc Abls, O racionalis-
mo posto prova da anlise, parti-cularmente interessante e estimu-
lante. Partindo de rpidas conside-
raes a respeito do lugar das anli-
ses microscpicas entre os antrop-
logos, que por vezes chegam mesmo
a fetichizar o micro como sendo o
lugar do desvendamento pleno dos
fenmenos sociais, o autor nos cha-
ma ateno para o fato de que o
debate em torno da micro-histria
obriga-nos a repensar os rgidos c-nones de uma interpretao cartesia-
na da racionalidade e dos procedi-
mentos decorrentes desta forma
particular de racionalidade. A sim-
plificao do debate em torno de
posturas ditas racionalistas contra
aquelas tidas como relativistas no
podem mais satisfazer a complexifi-cao exigida para as anlises dos
fenmenos sociais. Desta forma, as
anlises propostas pelos micro-his-
toriadores tenderiam a desnaturali-
zar os objetos, o que para o caso da
pesquisa histrica implica necessa-
riamente numa reviso do papel das
fontes.
Neste aspecto, o texto de
Maurizio Gribaudi, Escala, perti-
nncia, configurao, que se cons-
tri a partir de uma crtica perspec-
tiva de histria social segundo os
contornos presentes no clssico tra-
balho de Adeline Daumard, apontapara os riscos de se tomar os docu-
mentos com o sentido de uma evi-
dncia imediata, vendo neles a ins-
crio de um real dado observao
e anlise dos historiadores. Desta
forma, e sem perceber, o historiador
acabaria por ficar prisioneiro das
formas passadas de inscrio dos fe-
nmenos que estuda. E como tal,
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no seria capaz de repensar estas ins-
cries historicamente a partir deuma multiplicidade e da no linea-ridade dos fenmenos que estuda.Eis aqui outro dos elementos cen-trais sublinhados como uma dasmarcas da micro-histria praticadapelos autores do livro: a impossibi-lidade da formulao de leis gerais
para o desenvolvimento histrico apartir da observao de um fenme-no atravs da Histria. O exemploretomado por Gribaudi, a partir dassugestes de Giovanni Levi, procu-ra mostrar como o advento do Es-tado Moderno, quando tratado apartir de uma perspectiva micro,mostra uma pluralidade de possibi-lidades e realizaes histricas, di-versas entre si, cuja explicao de-manda uma anlise refinada e minu-ciosa dos contextos de emergnciadestes Estados em diferentes situa-es e lugares. Por este procedimen-
to, uma reviso de certas afirmaese generalizaes acerca do EstadoModerno tornaram-se possveis enecessrias. O conceito de contex-to adquire ento uma centralidadeimportante, ainda que evidente-mente no seja percebido da mesmaforma que a histria social de recor-te macro o trata. Para esta, no con-texto localiza-se a rede de causas ex-
plicativas para os fenmenos sociais
capaz de unificar a diversidade dasexperincias histricas, enquantopara a pesquisa micro-histrica ocontexto sempre e necessariamen-te diverso e o lugar de um jogo rela-cional onde a ao dos sujeitos his-tricos efetivos, agindo, capaz dedefinir solues e propor encami-
nhamentos que a priorino estariamdados. Neste sentido a narrativa his-trica no apenas o relato do efe-tivamente acontecido porque neces-srio razo histrica, mas tambmo relato das alternativas possveispostas num jogo a ser decidido pe-los atores histricos em questo.Como no deixar de sentir aqui asmarcas do clssico trabalho edmarcheE.P.Thompson sugeridos em seu li-vro de 1963 e que Simona Ceruttiem seu texto Processo e experincia:indivduos, grupos e identidades em
Turim no sculo XVII faz questo de
marcar? maneira sugerida porThompson, a anlise do historiadordeveria cruzar elementos processu-ais de anlise com trajetrias indivi-duais, o que a autora procurou em-preender em sua anlise dos gruposprofissionais na cidade de Turim. Se-gundo o caminho escolhido, Ceruttidescolou a anlise social de umahomologia entre as esferas tcnicas
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e produtivas e os comportamentos
e relaes sociais. Partindo das su-gestes do historiador social ingls,
que sublinhavam especificamente o
papel processual na construo dos
objetos que sero interrogados pe-
los historiadores, a autora radicaliza
sua anlise no sentido de perceber,
atravs do estudo das trajetrias in-
dividuais, as respostas histricas for-muladas pelos protagonistas em
ao, procedimento este que, segun-
do a autora, implicou numa reinter-
pretao do prprio processo geral.
Esta parece ser tambm a pers-
pectiva adotada por Sabina Loriga
no artigo intitulado A biografia
como problema, onde a aposta bio-
grfica pode se constituir em impor-
tante vis para a interpretao dos
fenmenos macro, a partir de uma
perspectiva que obriga a uma rein-
terpretao das tradies herdadas
de anlise. Para o caso das biografias,
durante longo tempo expulsas docampo da pesquisa histrica, torna-
va-se imprescindvel ainda legitim-
las frente comunidade de profissio-
nais como um problema para a pr-tica de pesquisa. Com o desloca-
mento do foco de anlise das estru-
turas macro-sociais para as experin-
cias vividas pelos atores histricos,
a trajetria biogrfica pode assim en-
contrar um lugar legtimo na refle-
xo dos historiadores e o olhar de
Sabina Loriga busca recuperar napesquisa biogrfica sua dimenso
heurstica para o conhecimento da
histria.
Jogos de escalas. A experincia
da microanlise leitura importante
para compreendermos os caminhos
da produo em nosso campo de co-
nhecimento e, combinando uma re-
flexo terica sofisticada pesquisa
documental, sublinha a importn-
cia desta dupla dimenso do traba-
lho do historiador, podendo tam-
bm contribuir para uma crtica
contundente dos diferentes matizes
positivistas a que nossa disciplinaesteve sujeita.