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O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE APÓS A REFORMA PROCESSUAL DE 2008
Rogerio Schietti Machado CruzDoutor e Mestre em
Direito Processual Penal (USP)Procurador de Justiça
I. INTRODUÇÃO
A análise sobre qualquer reforma legislativa reclama, do intérprete e aplicador
do novo texto, uma cuidadosa reflexão sobre a teleologia e o alcance da modificação,
tendo como pano de fundo a ambiência científica – manifestada na crítica doutrinária e
na construção pretoriana – presente no cenário não apenas nacional como também
mundial.
A afirmação deriva da constatação de que, aqui e alhures, busca-se um crescente
aperfeiçoamento da ciência do direito e, mais particularmente, do Direito Processual
Penal, para que cumpra seu duplo papel, a saber, concretizar o direito penal (ante a
indispensabilidade da jurisdição penal para a inflição de sanção criminal, conforme o
axioma nulla poena nulla culpa sine iudicio) e proteger o cidadão contra eventuais
abusos da potestade punitiva.
Equivale isso a dizer que, cada vez mais, preocupam-se os povos em construir
diplomas legais que encontrem o ponto de equilíbrio entre a necessidade de punir, com
eficiência e sem delongas, autores de condutas criminosas, e a necessidade, por outro
lado, de aperfeiçoar mecanismos de proteção do indivíduo ante as iniciativas estatais
que possam interferir em bens e interesses fundamentais, como a liberdade, a honra, a
imagem etc.
A reforma de 2008, ao menos no que diz respeito às modificações no Livro II
(Dos Processos em Espécie), introduzidas sobretudo pela Lei nº 11.719, de 23 de junho
de 2008 (vigente 60 dias depois), caminhou em tal direção, estabelecendo outros
critérios – porém ainda não satisfatórios – para o procedimento de apuração dos crimes
e contravenções.1
1 Vale recordar que, dos projetos de reformas pontuais do Código de Processo Penal, remetidos ao Congresso Nacional em 2001, três projetos estão pendentes de aprovação, perante o Senado (PLCs nºs 111/08, 205/08 e 8/09). Além disso, já se encontra tramitando no Senado Federal o PLS 156/09, fruto de anteprojeto elaborado por Comissão de Juristas instituída no âmbito do próprio Senado.
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No que diz respeito à fase preliminar dos procedimentos (comum e especial,
previstos no Código ou em leis extravagantes), buscou-se uniformizar o rito de
verificação da admissibilidade da demanda2, impondo aos sujeitos processuais novas
iniciativas, direitos e obrigações, voltadas a alargar a amplitude e a profundidade da
cognição inerente a essa fase da persecução penal, sem, contudo, como procuraremos
demonstrar, ceifar a distinção que sempre se há de fincar entre o juízo de
admissibilidade da acusação e o juízo de mérito.
II. O JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE EM DOIS ATOS
Uma das incertezas que a reforma de 2008 produziu diz respeito à duplicidade
de momentos em que o magistrado concretiza o juízo de admissibilidade da acusação.
Mais ainda, constata-se que a mesma categoria jurídica – condições da ação – serve ora
para ensejar a rejeição da denúncia (art. 395, inciso II, do Código de Processo Penal),
ora para gerar a absolvição sumária do acusado (art. 397).
A controvérsia teve origem na redação adotada pelo legislador, que não seguiu a
dicção do projeto original, no qual
Havia somente um momento para o juiz receber a denúncia ou queixa, aquele posterior à apresentação da resposta pelo réu. A intenção era a de criar a possibilidade da apresentação de defesa pelo acusado antes do recebimento ou rejeição da peça acusatória, nos moldes existentes no procedimento especial previsto para os crimes praticados por funcionário público.3
Preferiu-se, então, dispor, no artigo 396 do CPP, que, “nos procedimentos
ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar
liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação,
por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”, ao passo que, mais adiante, no artigo 399, após
esgotadas as providências relativas ao juízo de admissibilidade da acusação, afirma-se
que “recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência,
ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o
caso, do querelante e do assistente.”
O que antes era, portanto, carestia agora é abundância. É dizer, no sistema
derrogado contentava-se o legislador com o recebimento da denúncia em um singelo 2 Art. 394. O procedimento será comum ou especial.(...) § 4º As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código.3 FERNANDES, Antonio Scarance; LOPES, Mariângela. O recebimento da denúncia no novo procedimento. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 2-3, set. 2008.
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ato, desprovido de fundamentação, feito usualmente por meio de um protocolar carimbo
de recebimento da denúncia ou queixa4. Já no sistema introduzido com a Reforma de
2008, não somente se verticaliza o juízo de admissibilidade, como também é ele
distendido, ao ponto de ensejar dupla análise judicial, a saber, no momento em que
examina a peça acusatória logo após ser protocolada (artigo 396), como também, em
ulterior análise, em seguida à atividade defensiva preliminar, após a qual cumprirá ao
magistrado volver ao exame, perfunctoriamente realizado, sobre a viabilidade da
acusação.
E tem mais: determina a lei que se concentre o juiz tanto na análise dos
pressupostos processuais e condições para o exercício da ação penal – que, juntamente
com o exame da correção formal da peça exordial, constituem o natural objeto do juízo
de admissibilidade da acusação – quanto na verificação, se for o tema suscitado na
resposta da defesa, da possível ocorrência de absolvição sumária, verdadeira
antecipação do julgamento da pretensão punitiva (art. 397).
Nesse novo cenário, consideramos mais consentânea à lógica e ao espírito da
reforma a posição sustentada, inter alia, por Antônio Scarance Fernandes e Mariângela
Lopes, para quem está configurada a existência de dois momentos para a
admissibilidade da demanda, algo que, na verdade, já ocorria em relação ao
procedimento relativo aos crimes dolosos contra a vida (com o inicial recebimento da
denúncia e a posterior decisão de pronúncia).
Prevê-se, na fase preliminar do procedimento comum, que, se não houver
liminar rejeição da peça exordial, e após a resposta do acusado, “o juiz fará o juízo final
de admissibilidade da acusação, quando poderá, aí sim, num juízo mais aprofundado,
absolver sumariamente o acusado, repelir a acusação ou receber a denúncia ou queixa.”5
4 A jurisprudência, a despeito das críticas da doutrina, chancelava tal praxe. Veja-se, como exemplo, decisão do STJ, que, inobstante já sob nova regência normativa, ainda consagra, quiçá pelo forte hábito, o entendimento de que (...) 1. A doutrina e a jurisprudência têm se manifestado no sentido de que, como regra, é dispensável a fundamentação quando do recebimento da peça exordial acusatória, vez que tal provimento jurisdicional não é classificado como decisão, mas sim, como despacho meramente ordinatório, não se submetendo, dessa forma, ao disposto no artigo 93, IX da Constituição da República (...) HC 113094/BA. DJe 18/05/20095 Fernandes e Lopes. op. loc. cit.. Pensam diferentemente outros autores. Rômulo Andrade (A reforma do Código de Processo Penal – procedimentos In www.metajus.com.br – seção Textos Jurídicos, acesso em 29/06/09), por exemplo, considera que a denúncia ou queixa é recebida logo no primeiro momento a que alude o artigo 396 do Código de Processo Penal, ao passo que
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Em suma, terá o juiz duas oportunidades de verificar a admissibilidade da
demanda: a primeira, de modo bem superficial, apoiado tão somente nos elementos
constantes do inquérito policial ou das peças de informação; o segundo, já em grau de
cognição mais vertical – mas ainda sumário – com suporte não apenas no material
colhido inquisitorialmente mas também nas alegações e nos documentos eventualmente
apresentados pela defesa técnica do denunciado, no prazo que lhe foi disponibilizado
por força do comando do artigo 396 do Código de Processo Penal.
O propósito parece ter sido o de conferir maior grau de proteção ao acusado
contra acusações infundadas e até temerárias, que, se não constituem a regra, podem
ocorrer como fruto do açodamento, errônea interpretação dos fatos apurados na
investigação preliminar ou, quiçá, de distorcida concepção dos fins do processo penal.
Não parece desnecessário acrescer que, muito embora não prevista
expressamente em lei, a abertura de vista dos autos ao titular da ação penal, após a
resposta do réu, será medida a impor-se nas hipóteses em que não se limitar a defesa a
simplesmente repudiar a acusação, como na maior parte dos casos, imagina-se, vai
ocorrer. Com efeito, se a defesa técnica, ao ser ouvida, apresenta argumentação de que
possa resultar a rejeição da denúncia ou a absolvição sumária, quer-nos parecer
indispensável, em homenagem ao contraditório e à paridade de armas, que se oportunize
à parte contrária pronunciar-se a respeito.6
Não se refute a alvitrada possibilidade com a afirmação de que o Ministério
Público ou o querelante já falou nos autos ao oferecer a denúncia ou queixa, porquanto,
como se sabe, tal peça não se reveste de cariz argumentativo, sendo espaço dedicado
apenas à narrativa de um fato criminoso, de sorte que ao titular da ação penal há de
reservar-se oportunidade de, se necessário, sustentar a pretensão punitiva deduzida na
peça acusatória.
Lenio Streck (O impasse na interpretação do artigo 396 do CPP in http://www.conjur.com.br/2008-set-18/impasse_interpretacao_artigo_396_cpp, acesso em 29/06/09) propõe uma interpretação “conforme à Constituição”, de modo a eliminar a possibilidade de uma duplicidade de “fases”, sustentando que o artigo 396 deve ser entendido no sentido de que “não rejeitada liminarmente a denúncia ou a queixa, o juiz recebê-la-á e ordenará a notificação do acusado para responder a acusação no prazo de dez dias, por escrito”. 6 O Supremo Tribunal Federal, em raciocínio similar, já decidiu que, mesmo após haver apresentado suas alegações finais, o Ministério Público ainda terá o direito a nova vista dos autos se a defesa, em seu arrazoado final, argüir questão preliminar, aplicando-se, analogicamente, o disposto no art. 327 do Código de Processo Civil (Habeas Corpus nº 76.420-4/SP, 2ª T., Rel. Min. Maurício Correa, j. 16/06/98, DJU 14/08/98, p. 155).
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III. EFEITOS PRECLUSIVOS DO JUÍZO NEGATIVO DE
ADMISSIBILIDADE
No que concerne aos efeitos preclusivos da decisão que rejeita a peça acusatória
preambular, não há discordância doutrinária e jurisprudencial quanto à inexistência de
qualquer impedimento à renovação do pedido, quando a rejeição – fulcrada no artigo
395, inciso I – foi motivada pela desatenção aos requisitos essenciais do artigo 41 do
CPP. Isso porque, à toda evidência, ali se cuida apenas de componentes formais da
denúncia ou da queixa, cuja inobservância pode gerar sua inépcia, mas de nenhum
modo interfere com o mérito da pretensão punitiva ou mesmo com as condições
(genéricas e específicas) de procedibilidade.
Também inexiste dissenso quanto à possibilidade de repetir-se a acusação,
quando, depois de rejeitada a denúncia ou a queixa, por ser manifesta a ilegitimidade da
parte ou por faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal, sanar-se o
erro quanto à pertinência subjetiva da lide ou suprir-se a faltante condição de
procedibilidade7.
De outro lado, afirma-se que, se "já estiver extinta a punibilidade pela prescrição
ou outra causa" (inciso II do artigo 395), a rejeição da peça acusatória será coberta pelo
manto da coisa julgada, pois, embora sem analisar a procedência ou não da imputação, a
decisão extingue a pretensão punitiva e, portanto, é considerada decisão de mérito.
Também se reclamam iguais efeitos – impedir a renovação da imputação,
tornando absolutamente imutável o conteúdo do decisum – para a decisão que rejeita a
denúncia ou a queixa, sob o fundamento na atipicidade da conduta (nos termos do artigo
395, II; redação anterior do artigo 43, I, do Código de Processo Penal). Assim, não
apenas casos de atipicidade da conduta narrada, mas também quaisquer outras situações
em que falte elemento constitutivo da figura delitiva, em sua generalidade, podem ser
amoldadas a esse dispositivo.8
7 Ainda que se tenha revogado o parágrafo único do artigo 43 do Código de Processo Penal, que previa expressamente a repropositura da demanda “desde que promovida por parte legítima ou satisfeita a condição”, não se cogita de mudança de entendimento sobre tal possibilidade..8 Em linhas gerais, essa é a opinião de José Joaquim Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, v. III, p. 247; Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, v. 1, p. 444; Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho. As nulidades no processo penal. 6. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 66; Vicente Greco Filho.Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 342; José Antônio Paganella Boschi. Ação penal. Rio
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O tema já mereceu, de nossa parte, detalhado estudo acadêmico9, voltado a
demonstrar, com apoio nos níveis de cognição dos atos decisórios e nas peculiaridades
da persecução penal, que não se pode igualar os efeitos preclusivos negativos de uma
decisão final de mérito aos efeitos que podem decorrer de decisões tomadas no limiar do
procedimento. Decerto que as modificações recentemente promovidas no Código de
Processo Penal demandariam uma nova abordagem, com igual vagar e extensão, o que,
todavia, postergamos para um outro momento. Por ora, afigura-se possível expor alguns
dos argumentos já sustentados, adaptando-os à nova regência normativa do juízo de
admissibilidade da acusação.
IV. NÍVEIS DE COGNIÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS
Nos termos do artigo 395 do CPP, são objeto da cognição judicial10 a
regularidade formal da denúncia (inciso I), as condições para o exercício da ação (aí
incluída a justa causa) e os pressupostos processuais (incisos II e III).
Referentemente ao inciso I do artigo 395, nada mais se pretendeu do que instar o
juiz, no exame da admissibilidade da acusação, a conferir se os requisitos formais a que
alude o artigo 41 do Código de Processo Penal foram observados. Cuida-se de atividade
cognitiva superficial, sem preocupação com a correspondência dos fatos narrados ao
conteúdo das peças de informação ou do inquérito policial, mas apenas, insista-se, com
a adequação formal da petição inicial, como peça que deve conter a indicação das partes
(acusador e acusado), da causa de pedir (narrativa do fato criminoso com todas as suas
circunstâncias) e do pedido (condenação a infração penal prevista em lei).
de Janeiro: Aide, 1993, p. 50; Eugênio Pacelli de Oliveira; Curso de processo penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 83; Carlos Frederico Coelho Nogueira. Comentários ao Código de Processo Penal. Bauru: Edipro, 2002, v. I, p. 661; Júlio Fabbrini Mirabete. Processo penal. 16. ed. rev. e atual. por Renato N. Fabbrini. São Paulo: Atlas, 2004, p. 106; Helio Tornaghi. A relação processual penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 261; Marcellus Polastri Lima. Ministério Público e persecução criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 260; Maria Thereza Rocha de Assis Moura. Justa causa para a ação penal. São Paulo: RT, 2001, p. 257, entre outros.9 Rogerio Schietti M. Cruz. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 10 A cognição judicial, na lição clássica de Kazuo Watanabe, vista no plano horizontal "pode ser plena ou limitada (ou parcial), segundo a extensão permitida". Já no plano vertical, "a cognição pode ser classificada, segundo o grau de sua profundidade, em exauriente (completa) e sumária (incompleta)". Kazuo Watanabe. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987, p. 83. (grifos do autor)
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Para desincumbir-se de tal mister, não deverá o magistrado emprestar excessivo
rigor aos aspectos formais da petição, a ponto de exigir-lhe a perfeição. Não poderá
também tolerar que qualquer conjunto lacônico de palavras, ou, de outro extremo, um
quilométrico arrazoado acusatório (como, vez por outra, se verifica quando peças
narrativas apresentam-se mais como peças argumentativas), turbe ou até inviabilize o
exercício da defesa.
Não é, portanto, qualquer irregularidade da peça acusatória que poderá gerar sua
liminar rejeição, mas apenas a irregularidade que, de tão grave – e aí teremos,
tecnicamente, uma verdadeira inépcia da inicial – não permite ao denunciado
compreender os exatos termos da acusação e dela se defender.11
No que concerne às condições para o exercício da ação penal, cumpre ao juiz,
quando examina a petição inicial, averiguar, no plano lógico e da mera asserção do
direito", a presença das referidas condições, cabendo-lhe "simplesmente confrontar a
afirmativa do autor com o esquema abstrato da lei", não sendo esse o momento para
proceder "ao acertamento do direito afirmado."12
A afirmação é inteiramente verdadeira para o processo civil, mas merece
ressalva ante as peculiaridades do processo penal, no qual estão em jogo interesses mais
caros ao ser humano, como a liberdade, a honra, a imagem etc 13. Por isso é que deve o
juiz empreender alguma análise sobre o conteúdo da petição inicial e confrontá-lo não
apenas com o Direito – para certificar-se de que o fato narrado constitui crime, que pode
seu autor ser punido e que as partes são legitimadas para a causa – mas também com os
fatos, para aferir se há alguma verossimilhança do direito que se pretende exercer. É
dizer, compete ao magistrado verificar, em exame por óbvio não exauriente, se a
narrativa acusatória encontra algum amparo nos elementos informativos coletados no
inquérito policial ou nas peças de informação que acompanham a denúncia ou a queixa.11 Vale rememorar que constitui direito do acusado, em processo penal, à comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada (artigo 8.2.b, da CADH – Decreto 678/92)12 Kazuo Watanabe. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987, p. 69.13 Em parecer publicado em 2001, Ada Pellegrini Grinover reviu posicionamento anterior, de acordo com o qual "a ocorrência das condições da ação mede-se frente à efetiva existência das mesmas (não importa o momento procedimental em que for examinado), e não em face de sua simples afirmação – ou prospettazione". Após melhor reflexão, a professora das Arcadas reconheceu que "a distinção entre as categorias das condições da ação e do mérito pode e deve ser feita segundo o grau de cognição empregado no julgamento." (Ada Pellegrini Grinover. Efeito devolutivo do recurso especial. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 34, ano 9, p. 223-236, abr./jun. 2001 – grifo nosso).
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Igualmente deve o magistrado verificar a existência dos pressupostos
processuais necessários para a relação processual constituir-se (pressupostos de
existência) e também desenvolver-se regularmente (pressupostos de validade),
merecendo destaque, entre esses últimos, a inexistência de coisa julgada ou de
litispendência (pressuposto processual negativo).
Caberá, desse modo, ao órgão jurisdicional responsável por esse juízo de
admissibilidade identificar a "ipotetica accoglibilità" da demanda, permitindo-se-lhe
"começar a desenvolver aquela atividade que deverá conduzi-lo à decisão sobre o
mérito da demanda, por meio do exame da verdade do que foi afirmado (mais
precisamente: dos fatos constitutivos afirmados) na própria demanda."14
É de enfatizar-se, sobre essa fase de cognição preliminar, que o exame das
condições da ação não envolve o mérito da pretensão punitiva. Equivale isso a dizer que
a categoria identificada como condições da ação (ou melhor, condições para o exercício
da ação) tem natureza processual e não diz respeito ao mérito, mesmo porque o mérito
de uma pretensão somente é possível de ser examinado após haver-se concluído
preliminarmente pela existência daquelas condições.
Logo, a decisão que, no limiar de uma ação (civil ou penal), reconhece a falta de
uma ou mais das condições necessárias para o julgamento de mérito, é uma decisão
terminativa, de natureza processual, que não faz coisa julgada.
De qualquer sorte, na análise do direito derrogado, foi possível intuir que, ao
prever, como fundamento da rejeição da denúncia, a circunstância de "o fato narrado
evidentemente não constituir crime" (inc. I, do artigo 43, do CPP), o legislador deixou
transparecer a diferença entre tal decisão e a que, ao final do processo, julga
improcedente o pedido do autor, absolvendo o réu, por "não constituir o fato infração
penal" (inciso III, do artigo 386, do CPP).
A locução se repetiu ante o novo dispositivo, que prevê não mais a rejeição da
denúncia, mas a absolvição sumária, ante a constatação, após a resposta à acusação, de
“que o fato narrado evidentemente não constitui crime” (art. 397, III).
14 Crisanto Mandrioli. Corso di diritto procesuale civile. 7. ed. Turim: Giappichelli, 1989, v. 1, p. 47.
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No dispositivo legal relativo à fase inicial do procedimento, falava-se e se fala
em fato narrado; no segundo, ainda se fala tão somente de fato que não constitui
infração penal, conclusão a que, como é de todos sabido, chega o julgador somente ao
final do processo, no momento de sentenciar.
V. OBJETO DO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE
O juízo de admissibilidade tem como objeto o exame do aspecto formal da peça
acusatória, consistente em averiguar se ela preenche os requisitos elencados no artigo 41
do Código de Processo Penal, ou seja, se não é “manifestamente inepta” (inciso I do art.
395), bem como se lhe falta “pressuposto processual ou condição para o exercício da
ação penal15” (inciso II) ou “justa causa para o exercício da ação penal” (inciso III).
Não se cuida, nesse incipiente momento da persecução penal, de examinar se,
concreta e efetivamente, os fatos narrados na denúncia ou queixa ocorreram e se o
indigitado denunciado foi, verdadeiramente, o autor do crime a ele imputado. Essa
matéria é objeto de outra modalidade de juízo, o juízo de mérito, que somente será
possível de ocorrer ao cabo do processo, quando já expostas as razões das partes e
produzidas as respectivas provas, sob o crivo do contraditório.
Sendo positivo o juízo de admissibilidade da acusação, a denúncia ou queixa
deverá ser recebida, em decisão fundamentada (como determina o artigo 93, IX, da
Constituição Federal), dada a importância do ato para o status dignitatis do indivíduo
contra quem se ofereceu a imputação.16
15 Incluem-se na expressão "condições para o exercício da ação penal" tanto as condições genéricas quanto as condições específicas de procedibilidade, quais sejam: a) representação do ofendido e requisição do Ministro da Justiça; b) entrada do agente no território nacional; c) autorização do Legislativo para a instauração de processo contra presidente e governadores, por crimes comuns; d) trânsito em julgado da sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento, no crime de induzimento a erro essencial ou ocultação do impedimento (Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho. As nulidades no processo penal. 6. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 63). Outrossim, aceita-se, ao menos para fins didáticos (sem menoscabo à tradicional classificação de Liebman, que inclui a idéia de justa causa dentro do conceito de outra condição da ação, o interesse de agir), a classificação sustentada por Afrânio Silva Jardim, que destaca a justa causa (suporte probatório mínimo que deve lastrear toda e qualquer acusação penal) como uma das condições para o exercício da ação penal, ao lado do interesse de agir, da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade para a causa (Afrânio Silva Jardim. Teoria da ação penal pública. In: Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 95). 16 Luis Wanderley Gazoto. O princípio da não-obrigatoriedade da ação penal pública. Uma crítica ao formalismo do Ministério Público. Barueri: Manole, 2003, p. 184.
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Já a decisão que rejeita a denúncia expressa um juízo negativo de
admissibilidade, que tem como objeto a aferição das condições genéricas e específicas
para o exercício da ação penal, bem assim dos pressupostos de existência e validade da
relação processual em formação.
Como decorrência dessa diferença de objetos do juízo, a admissibilidade da
demanda, feita, como já dito, in statu assertionis, possui grau superficial de cognição,
limitada quanto à sua extensão no plano horizontal (porquanto se adstringe ao exame
das condições da ação e dos pressupostos processuais) e sumária quanto ao
aprofundamento vertical dessa investigação.
A reforma de 2008 uniformizou essa etapa preliminar dos procedimentos,
comum (ordinário, sumário e sumaríssimo) e especiais da competência do juízo de
primeiro grau, que passam a seguir o mesmo iter, qual seja, o disposto nos artigos 395 a
398 do Código de Processo Penal, ex vi do que prevê o § 4º do artigo 394 (“As
disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos
penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código”).17
Convém recordar que, mesmo nas hipóteses em que o legislador estabeleceu
procedimento mais alongado para essa fase preliminar do processo, continua o órgão de
jurisdição imbuído do propósito de examinar não o mérito da pretensão, mas
unicamente os requisitos para que seja este enfrentado em momento posterior.
Veja-se o que ocorre no procedimento do Tribunal do Júri, onde é prevista
inicialmente toda uma fase de colheita de provas, a partir da qual poderá encerrar-se o
iudicium accusationis com a emissão de uma pronúncia, que nada mais é do que a
decisão de admissibilidade da demanda (convencido o juiz da existência do crime e
17 Outros procedimentos previstos no Código de Rito e em leis extravagantes já se caracterizavam por prever atividade instrutória preliminar e sumária, antes do recebimento da denúncia ou queixa. Mencionem-se, para exemplificar, (a) o procedimento para apuração de crimes funcionais (que exige a notificação do funcionário público para responder à acusação – artigo 514 do CPP); (b) o procedimento para apuração dos crimes de imprensa (artigo 43 da Lei 5.250/67, que trata da defesa prévia do réu, antes do recebimento da denúncia); (c) o procedimento sumaríssimo da Lei dos Juizados Especiais Criminais (cujo artigo 81 faculta ao acusado usar da palavra para responder à acusação, antes de ser ela recebida); (d) o procedimento da Lei 11.343/06, cujo artigo 55 instaura contraditório prévio ao recebimento da denúncia; (e) o procedimento dos crimes de competência originária dos tribunais, que, de todos, é o que realiza o maior número de atos processuais nessa fase inicial da persecução penal (notificação e resposta do acusado, produção de documentos, manifestação da parte contrária e sustentação oral em sessão, conforme artigos 4º, 5º e 6º da Lei 8.038/90).
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indícios de que o réu é o seu autor), de modo a propiciar o julgamento pelo juiz natural
da causa, o Tribunal do Júri.
É de lembrar-se que a decisão de impronúncia se assemelha à decisão que rejeita
a denúncia, por “faltar justa causa para o exercício da ação penal” (artigo 395, ou, na
terminologia anterior, mais aberta, do parágrafo único do artigo 43, por "faltar condição
exigida pela lei para o exercício da ação penal"), i.e., um somatório mínimo de
elementos informativos suficientes para dar plausibilidade à acusação.18
De outro ângulo, a diferença principal entre a decisão que rejeita a denúncia e a
que impronuncia o acusado reside no grau de cognição de cada uma delas, notoriamente
maior na hipótese desse último decisum, tendo em vista a atividade instrutória
desenvolvida ao longo da primeira fase do procedimento bifásico do Tribunal do Júri. 19
O juízo de admissibilidade é, assim, quer em sua versão mais enxuta (típica do
procedimento comum), quer na mais alongada (como se dá no procedimento da
primeira fase do Tribunal do Júri), indispensável para evitar imputações temerárias. Ao
proteger o inocente, leciona Mendes de Almeida, "dá à defesa a faculdade de dissipar
as suspeitas, de combater os indícios, de explicar os atos e de destruir a prevenção no
nascedouro; propicia-lhe meios de desvendar prontamente a mentira e de evitar a
escandalosa publicidade do julgamento".20
Mas em nenhum procedimento, enfatize-se, o juízo de admissibilidade da
acusação tem por objeto examinar, com profundidade e amplitude somente compatíveis
com um juízo de procedência do pedido, se, efetivamente, o acusado é o autor do crime
narrado na denúncia ou queixa.
18 Aceita-se, desse modo, ao menos para fins didáticos, a classificação proposta por Afrânio Silva Jardim, que destaca a justa causa (suporte probatório mínimo que deve lastrear toda e qualquer acusação penal) como uma das condições para o exercício da ação penal, ao lado do interesse de agir, da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade para a causa (Afrânio Silva Jardim. Teoria da ação penal pública. In: Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 95). Todavia, não se desconsidera a tradicional classificação de Liebman, que inclui a idéia de justa causa dentro do conceito de outra condição da ação, o interesse de agir.19 Sem contar a diferença tópica e temporal, relativa ao momento em que as duas decisões são proferidas – uma, logo no limiar da persecutio criminis in iudicium, a outra, ao encerramento da primeira fase do procedimento dos crimes da competência do Tribunal do Júri, após toda uma atividade jurisdicional praticada no juízo de acusação.20 J. Canuto Mendes de Almeida. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: RT, 1973, p. 11.
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VI. A ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA
Impõe, então, analisar a inovação introduzida com a reforma de 2008, qual seja,
a de permitir o encerramento do processo com julgamento do mérito já no limiar da
persecução penal, quando manifesta a presença de causa excludente de ilicitude do fato
ou de culpabilidade do agente, quando o fato narrado evidentemente não constituir
crime ou, ainda, quando estiver extinta a punibilidade do agente.
Tais hipóteses, na regência normativa anterior, ou não eram consideradas como
razões para a cessação da atividade persecutória, ou apenas davam ensejo a decisão de
natureza terminológica, processual, isto é, a rejeição da denúncia ou queixa. Deveras, a
percepção de que o fato narrado não constituía crime ou de que havia causa extintiva de
punibilidade do agente rendiam azo à decisão de rejeição da denúncia, ainda que, em
todas essas hipóteses, se postulasse, como visto linhas atrás, a impossibilidade de
renovação do juízo, assegurando-se, dessa feita, a imutabilidade da decisão judicial.
Assim, o alargamento das hipóteses de absolvição sumária – antes restrita aos
crimes da competência do Tribunal do Júri, como decisão possível de ser tomada,
enfatize-se, somente ao encerramento do juízo de acusação, depois de toda uma
atividade probatória das partes, ante a presença de “circunstância que exclua o crime ou
isente de pena o réu” (redação anterior do artigo 411 do Código de Processo Penal) –
para cuidar de hipóteses antes tratadas como ensejadoras de simples rejeição da
denúncia, há de implicar reflexões sobre os efeitos preclusivos a derivarem da decisão a
que alude o novo artigo 397 do Código de Rito.
Parece, sim, não haver dúvidas de que, como dito acima, iguais categorias
jurídicas foram colocadas como objeto de duas decisões de natureza diversa. Já
percebeu a doutrina que as condições da ação servem tanto para liminarmente rejeitar a
denúncia (artigo 395) como para, em momento posterior, mas ainda dentro do juízo de
admissibilidade da acusação, absolver sumariamente o acusado.21 Haveria, então,
diferença entre as duas decisões, quanto aos seus efeitos?
21 Ver, a propósito, Nereu José Giacomolli. Reforma (?) do Processo Penal: Considerações Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, PP. 74/75.
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VII. DIVERSIDADE DOS GRAUS DE COGNIÇÃO
Para tentar responder a essa indagação, convém recordar que a cognição sumária
(sem profundidade) e limitada (à verificação tanto das condições para o regular
exercício da ação penal quanto dos pressupostos de existência e validade da relação
processual), inerente ao juízo de admissibilidade da demanda, não é compatível, nessa
quadra do iter procedimental indicado na lei, com o exame aprofundado das provas
(rectius: dos elementos informativos) coletadas na fase investigatória, pela autoridade
policial, pelo Ministério Público, por outros órgãos públicos e autoridades e,
excepcionalmente, até por particulares.22
Ainda que se possa extrair desse material informações importantes para a
compreensão da dinâmica do crime investigado e de sua autoria, o certo é que o seu
aproveitamento para fins de posterior decisão sobre o mérito é limitado, a despeito da
tolerância de alguns setores da jurisprudência, que admitem a "prova"
inquisitorialmente colhida, desde que não infirmada pela prova produzida em juízo. Em
verdade, daquilo que se produz durante o inquérito policial somente possuem eficácia
probatória as assim chamadas provas cautelares, irrepetíveis e antecipadas, cuja
produção não poderia aguardar o início da ação penal – até porque eventualmente
poderia ela nem mesmo vir a existir – sob pena de perecimento ou de comprometimento
de sua confiabilidade e precisão científica (o exemplo mais citado é o das perícias
realizadas no local do crime).23
Insta enfatizar que a preocupação que subjaz à atividade investigatória
preambular – onde não há uma pretensão, mas o exercício de uma potestas estatal – não
é a de esgotar todos os detalhes do fato criminoso, sendo suficiente à autoridade
policial, quando instrui o inquérito policial, colher dados idôneos a esclarecer a efetiva
ocorrência de infração penal e da provável participação do indiciado na empreitada
22 Ao contrário do que ocorre no Brasil, em alguns sistemas a lei permite e regula a atividade investigativa particular, como, v.g., ocorre na Itália, por meio do próprio defensor do indiciado, ou por investigador privado, tanto na fase do inquérito quanto durante o processo ou mesmo na execução da sentença. A permissão foi introduzida no sistema italiano em 2001, acrescentando-se o artigo 327 bis (Attività investigativa del difensore) ao Codice de Procedura Penale.23 Muito embora a redação conferida ao artigo 155 do Código de Processo Penal pela reforma de 2008 continue a permitir que juízes e tribunais se apóiem, para julgar o mérito, do material produzido na fase inquisitorial, ainda que não exclusivamente, o legislador demonstrou perceber a clara diferença entre “prova” produzida em contraditório judicial, e “elementos informativos” colhidos na investigação.
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criminosa. A investigação criminal consubstanciada no inquérito policial não comporta,
saliente-se, cognição plena, profunda e completa sobre a existência do delito, pois se
assim fosse, haveria uma indevida duplicidade de atividade cognitiva em relação ao
processo, um completo desvirtuamento da persecução penal.24
Feitas essas observações, parece não restarem dúvidas de que a rejeição da
denúncia é considerada decisão interlocutória mista terminativa, de natureza processual,
o que implica dizer que não produz coisa julgada, de modo a permitir nova imputação,
desde que promovida pela parte legítima ou suprida condição exigida pela lei para o
exercício da ação penal (como dito expressamente na redação anterior ao artigo 43,
inciso III, do Código de Processo Penal). Também não há impedimento a que,
corrigidos os erros formais da peça acusatória por tal motivo recusada, seja ela
reapresentada, nos termos devidos (artigo 41 do Código de Processo Penal).
Em suma, como afirmado por Helio Tornaghi, "o desprezo da demanda não
prejudica o pedido, não significa decisão sobre o mérito e, portanto, não preclui a via
judiciária a novo exercício da ação, desde que satisfeito o requisito que faltou
anteriormente".25
Entretanto, as duas hipóteses a seguir analisadas merecem ponderações
tendentes a demonstrar insatisfação quanto à solução jurídica dada pela doutrina e pela
jurisprudência nacionais, por expressiva e qualificada maioria.
VIII. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA OU DA QUEIXA POR ESTAR
EXTINTA A PUNIBILIDADE
A primeira dessas hipóteses é a da rejeição da denúncia por estar a punibilidade
extinta, situação que, dizendo respeito à possibilidade de impor sanção por conduta
prevista como crime ou contravenção, ajusta-se ao conceito de condições da ação
(inciso II do artigo 395 do Código de Processo Penal).
Tal decisão é considerada de mérito, porquanto reconhece a inexistência do
direito material de punir o autor da infração penal. Logo, nada mais natural do que
adquirir tal decisão a qualidade da imutabilidade, pela autoridade da coisa julgada.
24 Aury Lopes Júnior. Sistemas de investigação preliminar no processo penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 94.25 Helio Tornaghi. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. II, p. 20.
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Entretanto, nem sempre esse decisum é prolatado após a verificação dos fatos
imputados ao réu. Vale dizer, há ocasiões em que a extinção da punibilidade ocorre após
a prolação da sentença final, estando o processo pendente de julgamento de recurso
interposto contra a sentença, ou mesmo já em fase de execução da pena, casos em que o
mérito da pretensão punitiva foi enfrentado.
No entanto, é possível – como na hipótese de que se cuida agora – que a decisão
terminativa de mérito que declara extinta a punibilidade seja prolatada logo no limiar da
ação penal, antes de ter-se oportunidade de apurar a veracidade dos fatos descritos na
petição inicial.
A hipótese ajusta-se ao pensamento de Kazuo Watanabe, para quem
a consideração da intensidade da cognição, na perspectiva vertical, vale dizer, da profundidade, é de elevada relevância para a correta colocação do problema. Assim: 1. Se o juiz reconhecer desde logo a prescrição, sem verificar antes se o direito alegado existe ou não, o pronunciamento que ele fará é de prescrição de um direito hipotético, e por isso o julgamento não será de mérito (o autor seria carecedor da ação por ausência do interesse de agir). No caso, a extinção do processo será sem apreciação da matéria de fundo. 2. Todavia, se reconhecer primeiro que o direito discutido existe, mas esse direito já está prescrito, então estaremos diante da declaração de prescrição de um direito existente, e o julgamento será inquestionavelmente de mérito.26 (grifos do autor)
O raciocínio, além de ponderável, preserva a justiça criminal de decisões que,
em juízo precário e sumário, poderiam sepultar a possibilidade de reavaliação do fato
criminoso, em decorrência de mera narrativa acusatória, que, como a prática demonstra,
nem sempre corresponde ao que efetivamente aconteceu na vida real, ou ao que foi
esclarecido, a despeito das limitações já apontadas, durante a fase investigativa.27
Para os que aderirem ao raciocínio de Kazuo Watanabe, o pronunciamento
judicial que reconhecer, com base na análise perfunctória inerente ao juízo de
admissibilidade da demanda, a prescrição do alegado direito de punir do Estado,
produzirá seus efeitos preclusivos desde que fatos novos não infirmem a realidade sobre
a qual se apoiou o magistrado para decidir.
26 Kazuo Watanabe. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987, p. 70.27 Vale o conselho de Helio Tornaghi no sentido de que "o juiz somente pode repelir a demanda se evidente a extinção da punibilidade", razão pela qual, "argüida por qualquer das partes, o juiz poderá mesmo reservar-se para apreciar a alegação, a réplica da parte contrária e a prova na sentença final." (Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. II, p. 19).
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IX. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA OU DA QUEIXA POR ATIPICIDADE
DA CONDUTA
A doutrina e a jurisprudência majoritárias, a despeito de identificar a tipicidade
da conduta como uma das condições para o exercício da ação penal – a possibilidade
jurídica do pedido – considera o ato judicial de rejeição da denúncia por atipicidade da
conduta ali narrada (com fulcro no artigo 43, inc. I, do CPP) uma decisão que produz
coisa julgada, por dizer respeito ao mérito. Esse é o pensamento, inter alia, de Ada
Grinover, Afrânio Jardim, Araújo Cintra, Calmon de Passos, Cândido Dinamarco, Helio
Tornaghi, Julio Mirabette, Magalhães Gomes Filho, Pacelli de Oliveira, Paganella
Boschi, Pollastri Lima, Scarance Fernandes, Tourinho Filho, Vicente Greco Filho, já
referidos.
Vale, todavia, sublinhar que, seguindo essa corrente doutrinária amplamente
majoritária, Eugênio Pacelli de Oliveira (que considera tal decisão um verdadeiro
julgamento antecipado28) e Carlos Frederico Coelho Nogueira (que atribui à rejeição da
denúncia, sob tal fundamento, a natureza de sentença terminativa de mérito29), não
vislumbram impedimento a que, apresentando-se realidade fática diferente da que foi
objeto da decisão de rejeição da denúncia, seja renovada a acusação, com narrativa
ajustada à nova fattispecie.
Não resta claro se para esses autores bastaria mudança na narrativa do fato
criminoso imputado ao denunciado ou querelado, ou se seria necessário, tal qual ocorre
em relação ao arquivamento de inquérito policial por falta de elementos informativos
bastantes para iniciar ação penal, que se coletassem provas substancialmente novas, de
modo a alterar a compreensão jurídica sobre a fattispecie. Nesse último caso, ainda que
se pudesse falar de coisa julgada, o ato de rejeição da denúncia ou da queixa se
apresentaria como decisão que faz "caso julgado rebus sic stantibus"30, inalterável
apenas se o quadro fático sobre o qual ela se apoiou não vier a inovar-se.
28 Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de processo penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 83 e 629.29 Carlos Frederico Coelho Nogueira. Comentários ao Código de Processo Penal. Bauru: Edipro, 2002, v. I, p. 661.30 Jorge de Figueiredo Dias. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 410.
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Acerca dessas duas possibilidades posiciona-se Feu Rosa, ao destacar que as
decisões judiciais meramente processuais produzem efeitos de coisa julgada "enquanto
não se modifiquem os fatos ou as circunstâncias que deram lugar à resolução. O não
recebimento de uma denúncia ou queixa não impede a apresentação de outra, suprindo-
se as lacunas que ocasionaram sua rejeição". Na hipótese ora em análise – rejeição da
acusação por atipicidade dos fatos narrados na inicial – "só pode se dar a instauração de
nova ação penal com a apresentação de novos elementos."31
É o que correspondentemente acontece na Itália em relação à decisão que rejeita
a imputação do Ministério Público – decisão de non luogo a procedere – nos termos do
artigo 425 do Código de Processo Penal.32 As hipóteses ali previstas recebem tratamento
uniforme, mesmo se disserem respeito a situações que a doutrina brasileira, de modo
geral, costuma diferenciar para fins de assegurar ou não o ne bis in idem. Assim, quer
quando se rejeita a inicial porque o fato não é previsto pela lei como crime, quer quando
se rejeita a inicial porque se apurou que o fato não ocorreu, a solução dada pelo direito
peninsular será a mesma, a saber, a decisão permanecerá estável desde que não surjam
novas provas a autorizar a revogação daquela decisão terminativa.33
Daí porque assinala Franco Cordero que, escoado o prazo recursal ou não tendo
sido acolhido o recurso do Ministério Público interposto contra a decisão que rejeitou a
peça acusatória, o processo se encerra; porém, destaca, "o ex-imputado não frui de um
absoluto ne bis in idem. Aqui o non luogo a procedere tem efeitos diversos de uma
31 Antônio José M. Feu Rosa. A coisa julgada penal. Revista Forense, ano 86, v. 311, p. 307-312, jul./set. 1990.32 "Art. 425 Sentenza di non luogo a procedere – 1. Se sussiste una causa che estingue il reato o per la quale l’azione penale non doveva essere iniziata o non deve essere proseguita, se il fatto non è previsto dalla legge come reato ovvero quando risulta che il fatto non sussiste o che l’imputato non lo ha commesso o che il fatto non costituisce reato o che si tratta di persona non punibile per qualsiasi causa, il giudice pronuncia sentenza di non luogo a procedere, indicandone la causa nel dispositivo." 33 "Art. 434 (Casi di revoca) 1. Se dopo la pronuncia di una sentenza di non luogo a procedere sopravvengono o si scoprono nuove fonti di prova che, da sole o unitamente a quelle già acquisite, possono determinare il rinvio a giudizio, il giudice per le indagini preliminari, su richiesta del pubblico ministero, dispone la revoca della sentenza." Similar providência prevê o Código de Processo Penal da Alemanha (StPO), ao tratar da decisão sobre o pedido de abertura do procedimento principal (que corresponderia à nossa decisão de receber ou não a denúncia), após concluída a "instrução preliminar". Com efeito, dispõe o § 211 que "Si rechazada la apertura del procedimiento principal por un auto ya irrecurrible, la acción puede ser continuada sólo con fundamento en nuevos hechos o medios de prueba" (Julio B. J. Maier. La ordenanza procesal penal alemana. Buenos Aires: Depalma, 1982, v. II, p. 182. Ver também Claux Roxin. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 440).
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autêntica absolvição: vale até que os dados permaneçam como eram; se mudam, a
decisão decai".34
Seguindo o mesmo raciocínio que já externamos em outro trabalho de maior
fôlego35, o que verdadeiramente importa assentar, para fins de exame dos efeitos
preclusivos da decisão que rejeita a denúncia por atipicidade do fato ali narrado, é se
esse ato diz respeito ao mérito da pretensão punitiva ou, simplesmente, se tem ele como
objeto a verificação de condição para o exercício da ação penal.
E, conforme sustentado linhas atrás, a diferença entre essas categorias jurídicas é
tão clara, mormente quanto ao nível de cognição que cada qual comporta, que não é
possível identificar, como iguais, os seus efeitos.
Para a decisão qualificada como de mérito e expressa por meio de uma sentença,
o espectro cognitivo é pleno e exauriente; para o ato qualificado como decisão
interlocutória, de natureza terminativa, o campo de cognição é sumário e limitado.
O juízo de mérito efetuado na sentença tem por escopo julgar a procedência ou
não da imputação contida na denúncia ou queixa; o juízo de admissibilidade, realizado
na decisão terminativa prolatada no limiar da ação, objetiva aferir a viabilidade da
imputação, por meio do exame das condições (genéricas e específicas) da ação e dos
pressupostos processuais.
O juízo de mérito apóia-se nos fatos provados durante a instrução criminal, sob
o pálio do contraditório das partes, em procedimento público e predominantemente oral,
na presença do juiz da causa, com todas as garantias defensivas preservadas; o juízo de
admissibilidade tem como lastro elementos informados de modo inquisitorial, sem a
presença das partes (ou interessados), de modo sigiloso e escrito, sem a plenitude dos
direitos que somente a condição de acusado reclama.
A sentença que absolve ou condena o acusado pode ser atacada por recurso
típico para atos decisórios finais: a apelação. A decisão que rejeita a denúncia é
impugnável por recurso em sentido estrito, correspondente ao agravo de instrumento
utilizado no processo civil para combater decisões interlocutórias.
34 Franco Cordero. Procedura penale. Milão: Giuffrè, 1991, p. 781.35 Rogerio Schietti M. Cruz. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
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O problema que agora se enfrenta em relação a tal raciocínio, voltado a
contrapor-se à doutrina que via – e vê – na rejeição da denúncia os mesmos efeitos que
derivam da sentença final de mérito, é que a reforma de 2008 passou a tratar tal hipótese
(sem prejuízo de reconhecimento liminar de falta de condição da ação – art. 395, II)
como passível de ensejar outra decisão, a absolvição sumária.
É dizer, será que se pode continuar sustentando, como fizemos, que uma decisão
judicial com tal nomenclatura, aparentemente prevista para ser algo mais do que uma
simples rejeição de denúncia, não impede, diante de realidade nova apurada
posteriormente ao seu trânsito em julgado, a renovação da acusação, sob imputação
fática que, nesse segundo momento, encontre correspondência em uma figura típica
delitiva?
Sob a roupagem de “absolvição sumária”, poderíamos entender que tal decisão,
tomada na largada do processo, tendo em vista "que o fato narrado evidentemente não
constitui crime" (artigo 597, III do CPP), possui os mesmos efeitos de uma sentença
que, na linha de chegada, julga improcedente a pretensão punitiva por "não constituir o
fato infração penal" (artigo 386, III, do CPP)?
Não é despiciendo recordar que o instituto da absolvição sumária foi concebido
para impedir que acusados de crimes dolosos contra a vida fossem levados a julgamento
pelo Tribunal do Júri quando, após extensa e aprofundada instrução (interrogatório,
oitiva de testemunhas, perícias) e mediante o amplo debate das partes (alegações finais),
restasse caracterizada a presença de circunstância excludente do crime ou da
culpabilidade do agente.
A nova redação dada ao procedimento do Tribunal do Júri é, além de mais clara,
mais abrangente, ao dispor, verbis:
Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:I – provada a inexistência do fato;II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;III – o fato não constituir infração penal; IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.
Perceba-se que, ao contrário do que se dá na situação positivada no artigo 397 do
Código de Processo Penal, em que não houve produção de prova, mas apenas de uma
“resposta à acusação”, aqui se fala em situação que foi “provada” (ou “demonstrada”).
Mesmo no que se refere ao item III, há de entender-se que houve “prova” (produzida em
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contraditório judicial, tal qual definido no artigo 155 do Código de Processo Penal) de
que o fato não constitui infração penal.
Então, por ser uma das decisões que encerram o juízo de admissibilidade no
procedimento do Tribunal do Júri, poder-se-ia até afirmar, em juízo apressado, que a
absolvição sumária não se reveste da autoridade da coisa julgada. Porém, é exatamente
porque decorre ela de toda uma atividade cognitiva exauriente e plena – conquanto
voltada a prioritariamente recolher provas da materialidade do crime e de sua autoria –
que se lhe permite atribuir o qualificativo de sentença de mérito, por meio da qual o réu
é sumariamente absolvido.
Na verdade, não é propriamente sumária tal absolvição, porquanto foi ela o
resultado das provas e das argumentações produzidas durante toda a primeira fase do
procedimento escalonado do Tribunal do Júri.
Parece evidente, portanto, que somente a cognição que ultrapasse a sumariedade
inerente ao mero juízo de admissibilidade da demanda poderá conferir à respectiva
decisão a imutabilidade absoluta inerente à autoridade da coisa julgada e assegurar ao
réu o direito de não ser submetido a nova persecução penal em virtude do mesmo fato
criminoso.
São essas as conclusões lógicas a que chegamos, sempre sujeitas, é certo, a
confrontações acadêmicas, voltadas ao aprimoramento científico de nosso Direito
Processual Penal.