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1 Ó HOMEM, NÃO HÁ MAIS NINGUÉM QUE SIRVA PARA ISTO? 1 SER GUARDA NACIONAL NA PROVÍNCIA DA PARAÍBA NOS IDOS OITOCENTOS Lidiana Emidio Justo da Costa 2 Doutoranda (PPGH/UFPE- Bolsista Capes) [email protected] RESUMO: Na comédia “O Juiz de Paz na Roça”, escrita pelo autor Martins Pena no século XIX, o personagem Manoel João, lavrador e pertencente à Guarda Nacional, foi intimado pelo juiz de paz, para conduzir um recruta à cidade. Apesar de ser uma narrativa fictícia, ela leva-nos a questionar sobre a função da Guarda Nacional, criada em 18 de agosto de 1831 e os critérios para ser um membro da respectiva instituição, já que um dos requisitos consistia em ser cidadão do Império, conforme estabelecido pela Constituição de 1824. Verticalizando esta análise, será lançado um olhar sobre os cidadãos que compuseram a Guarda na província da Paraíba, na intenção de apreender, a partir das informações presentes na lista de qualificação da vila de Misericórdia-PB, alguns perfis desses milicianos. Por último, será discutido o ônus e o bônus da condição cidadã, no que tange à obrigatoriedade de servir gratuitamente na Guarda Nacional. Palavras-chave: Guarda Nacional; milicianos; milícia; cidadania. O autor Martins Pena, no século XIX, considerado fundador das comédias de costumes no Brasil, conseguiu caracterizar com doses de humor e criatividade os comportamentos dos tipos sociais de seu tempo. Na comédia, em um ato intitulado- O Juiz de Paz da Roça, ele procurou retratar o cotidiano rural e o funcionamento da justiça, que, na figura do juiz de paz, era aplicada em meio à corrupção e abuso de autoridade. Destacaremos, nesta apresentação, a figura de Manoel João, guarda nacional e lavrador, casado com Maria Rosa e pai de Aninha. Este personagem abre 11 Esta indagação foi proferida pelo personagem Manoel João, da peça intitulada “O Juiz de Paz na Roça” escrita pelo autor Martins Pena (2010 [1838]). 2 A autora é integrante do PPGH/UFPE e está vinculada à linha de pesquisa “Norte e Nordeste no Mundo Atlântico” da referida instituição. Encontra-se sob a orientação do Prof. Dr. José Bento Rosa da Silva (UFPE) e coorientação do Prof. Dr. Flávio Henrique Dias Saldanha (UFTM).

Ó HOMEM, NÃO HÁ MAIS NINGUÉM QUE SIRVA PARA ......(UFPE) e coorientação do Prof. Dr. Flávio Henrique Dias Saldanha (UFTM). 2 a possibilidade para refletir sobre a vida de inúmeros

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    Ó HOMEM, NÃO HÁ MAIS NINGUÉM QUE SIRVA PARA ISTO?1 SER

    GUARDA NACIONAL NA PROVÍNCIA DA PARAÍBA NOS IDOS

    OITOCENTOS

    Lidiana Emidio Justo da Costa2

    Doutoranda (PPGH/UFPE- Bolsista Capes)

    [email protected]

    RESUMO: Na comédia “O Juiz de Paz na Roça”, escrita pelo autor Martins Pena no

    século XIX, o personagem Manoel João, lavrador e pertencente à Guarda Nacional, foi

    intimado pelo juiz de paz, para conduzir um recruta à cidade. Apesar de ser uma

    narrativa fictícia, ela leva-nos a questionar sobre a função da Guarda Nacional, criada

    em 18 de agosto de 1831 e os critérios para ser um membro da respectiva instituição, já

    que um dos requisitos consistia em ser cidadão do Império, conforme estabelecido pela

    Constituição de 1824. Verticalizando esta análise, será lançado um olhar sobre os

    cidadãos que compuseram a Guarda na província da Paraíba, na intenção de apreender,

    a partir das informações presentes na lista de qualificação da vila de Misericórdia-PB,

    alguns perfis desses milicianos. Por último, será discutido o ônus e o bônus da condição

    cidadã, no que tange à obrigatoriedade de servir gratuitamente na Guarda Nacional.

    Palavras-chave: Guarda Nacional; milicianos; milícia; cidadania.

    O autor Martins Pena, no século XIX, considerado fundador das comédias de

    costumes no Brasil, conseguiu caracterizar com doses de humor e criatividade os

    comportamentos dos tipos sociais de seu tempo. Na comédia, em um ato intitulado-

    “O Juiz de Paz da Roça”, ele procurou retratar o cotidiano rural e o funcionamento

    da justiça, que, na figura do juiz de paz, era aplicada em meio à corrupção e abuso

    de autoridade. Destacaremos, nesta apresentação, a figura de Manoel João, guarda

    nacional e lavrador, casado com Maria Rosa e pai de Aninha. Este personagem abre

    11 Esta indagação foi proferida pelo personagem Manoel João, da peça intitulada “O Juiz de Paz na Roça” escrita pelo autor Martins Pena (2010 [1838]). 2 A autora é integrante do PPGH/UFPE e está vinculada à linha de pesquisa “Norte e Nordeste no Mundo Atlântico” da referida instituição. Encontra-se sob a orientação do Prof. Dr. José Bento Rosa da Silva

    (UFPE) e coorientação do Prof. Dr. Flávio Henrique Dias Saldanha (UFTM).

    mailto:[email protected]

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    a possibilidade para refletir sobre a vida de inúmeros cidadãos que prestaram

    serviços na Guarda Nacional. Assim sendo, depois de um dia árduo de intenso

    trabalho, Manoel João recebera a seguinte ordem:

    ESCRIVÃO- Venho da parte do senhor Juiz de Paz intimá-lo para levar um

    recruta à cidade.

    MANOEL JOÃO- Ó homem, não há mais ninguém que sirva para isto?

    ESCRIVÃO- Todos se recusam do mesmo modo, e o serviço no entanto há

    de se fazer.

    MANOEL JOÃO- Sim, os pobres é que o pagam.

    ESCRIVÃO- Meu amigo, isto é falta de patriotismo.

    (PENA, 2010, [1838], p. 71, fac-similar).

    Como se pode perceber, a partir do tenso diálogo travado entre o escrivão da

    justiça e o cidadão Manoel João, a intimação para levar um recruta à cidade,

    chegara em uma hora bastante importuna. E a negação em cumprir a determinação

    do referido juiz de paz, podia acarretar na prisão do mesmo. Porém, isso não

    impediu que Manoel João se impusesse. Nota-se, pelo diálogo, que ele não recebera

    a ordenação de forma passiva e subserviente - ao questionar se não havia outra

    pessoa que fizesse aquele serviço, tendo que ouvir do escrivão da justiça - que todos

    se recusavam (estas recusas não costumavam ser explícitas, os discursos eram

    justificados como estar adoentado, sentido mal estar, negócios a tratar e coisas do

    tipo). Logo, ele concluiu que as tais negativas dos companheiros de farda, tinham

    uma razão de ser, afinal, o serviço sempre era requerido dos mais pobres. Negar-se

    a realizá-lo também era falta de patriotismo, conforme o escrivão.

    O fato é que, mesmo a contragosto, naquele dia, aprontou-se Manoel João

    com sua calça de ganga azul, a mesma que usava nos trabalhos na lavoura, jaqueta

    de chita, tamancos, barretina da Guarda Nacional, cinturão com baioneta e um

    grande pau na mão, estava pronto para levar mais um recruta à cidade. Sua esposa,

    Maria Rosa, em diálogo com a filha, compadecida com a situação em que se

    encontrava o marido, assim falou:

    Pobre homem! Ir à cidade somente para levar um preso! Perder um dia de

    trabalho... [...] Não se dá maior injustiça! Manoel João está todos os dias

    vestindo farda. Ora para levar presos, ora para dar nos quilombos... É um

    nunca acabar (PENA, 2010, [1838] p.72).

  • 3

    Maria Rosa traz informações interessantes sobre o serviço prestado pelo

    marido na Guarda Nacional, que ia desde a transferência de réus de uma cidade para

    outra e repressões aos quilombos. Mas, não se restringia a essas atividades,

    conforme observou o autor Fernando Uricoechea (1978), além dessas funções,

    mencionadas por ela, outras obrigações pesavam sobre os milicianos, tais como:

    patrulhamento, policiamento, guarda de cadeias, transporte de dinheiro público,

    participação em procissões religiosas e paradas oficiais (quando requisitadas pelas

    autoridades). Em função disso, precisamos concordar com a angustiada

    companheira de Manoel João, o serviço como guarda nacional apresentava-se como

    “um nunca acabar”.

    Isto posto, deve-se recordar que a Guarda Nacional foi criada pela Lei de 18

    de agosto de 1831, durante a gestão do ministro da justiça, Diogo Antonio Feijó,

    sendo inspirada na lei de criação da Garde Nationale francesa. A força brasileira

    nascera com a missão precípua de defender - “a Constituição, a Liberdade, a

    independência, e a Integridade do Império”. Naqueles tempos conturbados da

    abdicação e suspeição em torno do Exército, período caracterizado como de

    vacância do trono, pelo autor Marcelo Basille (2009), a Guarda Nacional foi

    organizada em todo o Império por municípios. Atendendo dessa maneira, aos

    interesses do momento político - marcado por diversos projetos para a construção

    do Estado nacional, bem como por diversas revoltas provinciais, as quais, em nome

    da paz interna e defesa da unidade territorial, eram de fundamental importância

    reprimir.3

    Dessa maneira, pacificar e garantir a estabilidade do então governo

    regencial, foi imperioso para a milícia cidadã. Nessa conjuntura, o Estado brasileiro

    pôs a responsabilidade de restabelecer a ordem social sobre os ombros dos ditos

    cidadãos. É necessário mencionar que os critérios para ser reconhecido como

    3 Dentre as revoltas que ocorreram durante o período regencial, pode-se destacar: Mata-Marotos, na Bahia; Setembrada, no Maranhão e em Pernambuco; Novembrada, em Pernambuco; Revolta de Pinto

    Madeira e Benze-Cacetes, Ceará; Abrilada, Pernambuco; Cabanada, Pernambuco e Alagoas; Carneiradas,

    Pernambuco; Malês, na Bahia; Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul; Sabinada, na Bahia e

    Balaiada, no Maranhão. Estas foram algumas das revoltas ocorridas durante o período regencial

    (BASILE, 2009).

  • 4

    cidadão no oitocentos, estavam especificados na Constituição de 1824 que “regulou

    os direitos políticos, definiu quem teria direito de votar e ser votado”

    (CARVALHO, 2011, p. 29). Portanto, estavam aptos para votar, os indivíduos do

    sexo masculino que tivessem 25 anos ou mais e renda líquida de 100 mil réis

    anuais. No entanto, caso se tratasse de pessoas chefes de famílias, oficiais militares,

    bacharéis, clérigos, empregados públicos ou mesmo, se tivessem cabedal

    econômico, o limite de idade podia ser reduzido para 21 anos.

    Ainda a respeito do critério censitário, José Murilo de Carvalho (2011)

    chamou-nos atenção de que a maior parte dessa “população trabalhadora ganhava

    mais de 100 mil-réis por ano”. Com isso, percebe-se que o critério de renda presente

    na Constituição, não excluía de todo a população do exercício da cidadania política

    ou do direito do voto.4 Porém, não significa dizer que era uma cidadania desfrutada

    por todos, tendo em vista que mulheres (cidadãs civis, mas sem direitos políticos) e

    pessoas escravizadas (não-cidadãos) eram excluídos da condição plena da

    cidadania. A categoria dos libertos, por exemplo, só podiam votar nas eleições

    primárias, ou seja, vivenciavam uma sub-cidadania.

    Assim, nesse universo oitocentista, pode-se enxergar a Guarda Nacional

    como um canal de relacionamento desses cidadãos brasileiros com o Estado. E essa

    relação se concretizou de múltiplas maneiras. Segundo Carvalho (2007), elas se

    realizaram por meio do poder judiciário, policial, legislação civil, código comercial,

    recenseamento, recrutamento e/ou modificações dos pesos e medidas –

    instrumentos que visavam não apenas normatizar os cidadãos, mas revelavam as

    atitudes racionalizadoras do Estado-nação.

    Por outro lado, em meio ao enquadramento desses indivíduos, o Estado

    buscou também cooptá-los através de “empregos e favores de natureza

    clientelística” (2007, p. 12) e/ou concedendo postos honoríficos na milícia. O que se

    vê é que, os valores e práticas de uma sociedade escravagista, patriarcal e da grande

    propriedade, delinearam a cidadania no Brasil, esses valores contraditoriamente

    4 As eleições eram feitas em dois turnos: “No primeiro, os votantes escolhiam os eleitores [...] que deviam ter renda de 200 mil-réis, elegiam deputados e senadores” (CARVALHO, 2011, p. 30).

  • 5

    misturaram-se aos de liberdade e igualdade contidos na constituição (CARVALHO,

    2007).

    Em meio a essas problemáticas da condição cidadã, entende-se que ser

    qualificado5 na Guarda Nacional, acabou se constituindo como um bônus, que podia

    ser a isenção no serviço ativo do Exército, por exemplo.6 Para Fábio Faria Mendes

    (2010, p. 56) a milícia representava uma “rede de proteção contra o recrutamento”

    mesmo que, em muitas localidades, a Guarda só existisse no papel, a simples

    justificativa de ser um guarda nacional, dava ao detentor do posto, imunidades,

    conforme lembrou-nos o autor. Por aí, entende-se a importância dessa condição.

    Na lei de sua criação de 18 de agosto de 1831, ficou estabelecido que o

    serviço na Guarda deveria ser permanente e obrigatório, cabendo a todos os

    cidadãos brasileiros que fossem eleitores com menos de 60 anos e maiores de 21

    anos. Estavam incluídos também cidadãos filhos famílias7 de pessoas que

    possuíssem renda para serem eleitores, os quais, deveriam apresentar 21 anos de

    idade ou mais.8 Os cargos incompatíveis com o serviço eram aqueles referentes às

    funções administrativas e judiciárias. Não seriam alistados na milícia os militares do

    Exército e Armada que se encontrassem no serviço ativo; os clérigos de ordens

    sacras, que não quisessem se alistar voluntariamente; carcereiros e encarregados da

    vigilância das prisões, bem como os oficiais de justiça e a polícia.

    5 É interessante perceber que costumava-se utilizar o termo qualificado quando se tratava do alistamento na Guarda, e o termo recrutado para indivíduos do Exército, (COSTA, 2013). 6 Esta isenção foi eliminada em 1850, quando a Guarda Nacional passou por uma reformulação. A sua lei

    de reforma, Lei n. 609 de 19 de setembro de 1850, em seu artigo 133, determinou que o guarda nacional

    que se recusasse a prestar o serviço no destacamento auxiliando o Exército, seria obrigado a servir no

    Exército pelo dobro do tempo de duração do destacamento, ou ser recrutado se não tivesse motivo legal

    de isenção. Alterou-se também o critério censitário para cidadãos eleitores nas eleições primárias no valor

    de 200 mil réis (Art. 9, parágrafo 1 e 2). 7 Os filhos famílias eram indivíduos maiores de 18 anos que trabalhavam com sua família e/ou eram dependentes da renda paterna. (MACHADO, 2013). 8 O Decreto de 25 de outubro de 1832 modificou o critério censitário para compor a milícia, estabelecendo que o cidadão deveria ter uma renda mínima de 200 mil réis para o Rio de Janeiro, o

    Maranhão, São Paulo e a Bahia, e 100 mil réis para o restante das províncias, foi este o caso da província

    da Paraíba, objeto deste trabalho. Este decreto ainda alterou o limite de ingresso, sendo assim, o cidadão

    que tivesse completado18 anos e menos de 60, estaria apto para integrar as fileiras da Guarda. Disponível

    em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/203385-altera-a-lei-de-18-de-agosto-de-1831-da-

    creauuo-das-guardas-nacionaes-do-imperio.html. Acesso: 8 de agosto de 2020.

    https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/203385-altera-a-lei-de-18-de-agosto-de-1831-da-creauuo-das-guardas-nacionaes-do-imperio.htmlhttps://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/203385-altera-a-lei-de-18-de-agosto-de-1831-da-creauuo-das-guardas-nacionaes-do-imperio.html

  • 6

    Em um primeiro momento, o processo de qualificação e/ou alistamento,

    deveria ocorrer nos municípios das províncias e ser presidido pelos juízes de paz,

    bem como a eleição dos oficiais, que ocorriam nas paróquias e curatos das

    localidades. O juiz de paz deveria formar um conselho de qualificação, com seis

    eleitores mais votados do distrito, incumbidos de aferir a idoneidade dos cidadãos.

    O referido conselho deveria se reunir todos os anos, no mês de janeiro, quando se

    confeccionaria o livro de matrícula geral com os cidadãos que apresentassem idade

    de ingresso e aqueles que estivessem residindo na localidade. Por outro lado,

    deveriam ser excluídos do livro de matrícula, aqueles indivíduos que tivessem

    completado 60 anos; mudado de domicílio; falecido ou aqueles que, por outras

    circunstâncias, não apresentassem condições de pertencer aos quadros da Guarda

    Nacional.9

    Uma vez finalizada a matrícula geral, formaria-se uma lista designando os

    que comporiam o serviço ordinário (com todos os considerados aptos) e outra com

    os que estavam na reserva. Conforme estipulado pela lei de 1831, estes, incluídos

    no serviço da reserva, seriam os cidadãos para quem o serviço fosse extremamente

    oneroso. Nessa lista também estariam os empregados públicos, advogados,

    médicos, cirurgiões, boticários que assim requeressem, estudantes dos cursos

    jurídicos ou escolas de medicina, seminários episcopais e demais escolas, bem

    como os empregados nos arsenais e oficinas nacionais.

    As substituições eram expressamente proibidas pela lei, mas podia haver

    exceções, tais como: pai pelo filho, irmão pelo irmão, tio pelo sobrinho, sendo

    também recíproco. Com relação aos que podiam solicitar dispensas, encontravam-

    se: os senadores; deputados; membros dos Conselhos Gerais; presidências;

    conselheiros do Estado; magistrados; cidadãos que tivessem 50 anos de idade;

    oficiais de milícias que contassem com 25 anos de serviço; reformados do Exército

    e Armada, e empregados nas administrações dos Correios. A dispensa ainda era

    conferida a indivíduos enfermos e/ou inabilitados para o serviço.

    9 Lei de 18 de agosto de 1831, Art. 16.

  • 7

    Pelo exposto até o momento, observa-se que havia algumas possibilidades

    para que um indivíduo conseguisse ser dispensado do serviço ativo, desde que

    exercessem funções políticas, administrativas, acadêmicas (uma parcela bem

    diminuta da população) e/ou apresentassem problemas de saúde que o inabilitasse.

    O que não vem expresso em lei é que, se o indivíduo tivesse um padrinho influente,

    isso ajudaria muito em caso de solicitação para ser transferido para a reserva, ou

    seja, dependendo das teias de relacionamentos que esses indivíduos se

    encontrassem, eles conseguiriam ou não a almejada isenção.

    Não se pode perder de vista que se tratava de uma sociedade marcada pelas

    relações clientelísticas e a política do favor costumava ser ativada sempre que

    conviesse ao momento político e social. Hendrik Kraay (1999) tem uma colocação

    muito interessante a esse respeito. Refletindo sobre as práticas e comportamentos no

    XIX, notadamente a respeito do recrutamento militar, o autor argumentou que:

    Senhores de engenho e donos de escravos dominavam a sociedade provincial;

    alianças familiares e ligações entre patronos e clientes uniam donos de terras

    aos governos provincial e imperial, enquanto laços semelhantes ligavam

    patronos e proprietários rurais aos seus protegidos (KRAAY, 1999, p. 116).

    Sendo assim, observa-se que tais práticas estiveram presentes na condução e

    participação na milícia. Os laços que ligavam patronos e seus protegidos podiam

    livrar um correligionário do recrutamento, como analisou Kraay (1999). A lei que

    criou a Guarda, conferia isenção ao cidadão alistado a isenção do recrutamento,

    uma vez conseguindo isso, escapar do serviço ordinário e ter o nome na lista da

    reserva era algo almejado por muitos deles. Sendo assim, percebe-se que ter um

    correligionário ou obter a proteção de alguém influente, acabava sendo muito

    vantajoso. De acordo com José Iran Ribeiro (2005), nesse contexto, a figura dos

    juízes de paz, eram imprescindíveis. Segundo o autor, por eles serem autoridades

    máximas na qualificação, caberiam aos mesmos a designação daqueles que iriam

    para o serviço ativo ou reserva.

    Não foram poucos os casos em que houve interferências, seja em

    atendimento ao pedido de uma personalidade influente da localidade ou de seus

    partidários. Flávio Saldanha (2009) também registrou as arbitrariedades dessas

  • 8

    autoridades, ao destacar o caso de um juiz de paz, em Barra-Longa – MG, que

    costumava inserir na reserva da Guarda seus correligionários. E, quanto àqueles

    cidadãos mais abastados, eles “[...] sempre conseguiam, de uma maneira ou de

    outra, evitar o serviço ativo, de forma que esse recaía inteiramente sobre as classes

    trabalhadoras” (URICOECHEA, 1978, p. 185).

    De outro modo, na ausência de uma rede de relacionamentos que

    garantissem a isenção e/ou de recursos financeiros, encontrar subterfúgios para

    escapar do serviço ordinário constituía-se numa forma estratégica para burlar as

    ordenações. Como analisou Jeanne B. de Castro (1979 [1977]), a maior parte do

    contingente da milícia era formada por cidadãos pobres, que dependiam de seus

    próprios esforços para manter a sobrevivência de seus familiares. A rotina na

    milícia “alterava o seu cotidiano, seja no trato da lavoura, nas feiras, no comércio,

    ou até mesmo em suas diversões que, muitas vezes, desembocavam em

    embriaguez” (COSTA, 2013, p. 97). Sendo assim, foram vários os casos nos quais,

    guardas alegavam doenças, “achaques” e moléstias. E isso não escapava das críticas

    dos presidentes de província que pediam mais atenção a respeito dessas

    justificativas (COSTA, 2013).

    A maior parte dos guardas nacionais paraibanos, trabalhavam como

    lavradores, porteiros, ferreiros, oficial de sapateiros e pedreiros, enquanto os mais

    abastados, geralmente em menor número, exerciam funções como negociantes,

    juízes de paz, negociantes/criadores, administradores/sócios de engenhos e

    proprietários de engenhos (COSTA, 2013).

    A fim de construir um perfil, ainda que parcial, dos guardas nacionais

    paraibanos, foi selecionado para este breve artigo, a lista de qualificação da vila de

    Misericórdia.10

    10 Em 1938, Misericórdia passou a chamar-se Itaporanga, permanecendo com este nome até o presente. A então vila de Misericórdia, estava situada à margem esquerda do rio Piancó e alcançou sua emancipação

    de Piancó, no ano de 1863, passando a denominar-se Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de

    Misericórdia. Sua configuração como município, com aparato político-administrativo, ocorreu em 1865.

    Para informações sobre esta localidade e outros municípios paraibanos, consultar: Almanack do Estado da

    Parahyba, 1899. Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/almanak-paraiba/820261. Acesso: 6

    de agosto de 2020.

    http://bndigital.bn.br/acervo-digital/almanak-paraiba/820261

  • 9

    Quadro 1: Matrícula do serviço ativo da Guarda Nacional na vila de Misericórdia

    (1858)

    Total % Idade % Estado % Renda %

    18-39= 616

    85,79%

    Casado=

    573

    79,80%

    200-250=

    664

    92,48%

    718

    pessoas

    100% Solteiro=

    140

    19,50%

    300-500=

    48

    6,68%

    40-50= 102

    14,20%

    Viúvo= 5

    0,69%

    600-800=

    6

    0,83%

    Fonte: Matrícula do serviço ordinário da Guarda Nacional de Misericórdia. AHWBD. Cx: 36, Ano:

    1858.11

    O responsável pela matrícula dos guardas nacionais do município de

    Misericórdia, em 1858, foi o tenente-coronel Praxedes Rodrigues dos Santos. As

    informações incluiu os moradores de diversos quarteirões da localidade. Pode-se

    perceber que, do total dos 718 indivíduos alistados, 85,79% possuíam entre 18 e 39

    anos, enquanto 14,20% encontravam-se entre 40 e 50 anos de idade. O que deixa

    evidente que a maior parte estavam em idade produtiva.

    Em relação ao estado civil, o maior número eram de casados, um percentual

    de 79,80%; em seguida, os solteiros, com 19,50% indivíduos e, por último, os

    viúvos, com apenas 0,69% indivíduos. Quanto à renda dos 718 guardas, um total

    92,48%, possuíam renda líquida em torno de 200 a 250 mil réis anuais; 6,68%

    recebiam entre 300 a 500 mil réis e, apenas 0,83%, possuíam uma renda em torno

    de 600 a 800 mil réis. Portanto, predominavam àqueles menos abastados. No

    gráfico a seguir, ter-se-á uma noção a respeito das ocupações desses indivíduos.

    Vejamos.

    11 Esta lista do serviço ordinário de Misericórdia, encontra-se no Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte-PB (AHWBD). A mesma elaborada conforme às diretrizes contidas na Lei n. 609 de 19 de

    setembro de 1850, que reformou a Guarda Nacional e padronizou as informações das listas, especificando

    que as mesmas deveriam constar: nome, idade, estado, profissão, renda líquida e observações. Ver ainda

    nota 5.

  • 10

    Profissões dos guardas nacionais do serviço ativo da vila de Misericórdia (1858)

    Fonte: Matrícula do serviço ordinário da Guarda Nacional de Misericórdia. AHWBD. Cx: 36, Ano: 1858.

    A partir do gráfico anterior, é possível destacar que os guardas nacionais

    matriculados em Misericórdia, ocupavam-se da agricultora, negócios, criação de

    animais, ofícios diversos (na designação de artistas, é possível que estivessem

    indivíduos que trabalhavam como carpinteiros, ferreiros, artesão e/ou pedreiros) e

    proprietários. Sendo em maior percentual a categoria de agricultores, chegando a

    89% de pessoas; os negociantes constituíam 2%; criadores 1%, assim como os

    artistas e, a categoria de proprietários 7%.

    O agricultor José Ferreira da Cruz, solteiro de 26 anos, possuía uma renda de

    200 mil réis anuais, ao lado de seu nome, foi registrado que ele era filho único da

    vúva Antônia a quem servia de companhia. É interessante destacar que apenas três

    agricultores da referida lista, possuíam uma renda acima de 200 mil réis, são eles:

    Manoel Roque da Fonseca, 38 anos e casado; Salviano de Araújo da Fonseca, 30

    anos e solteiro e Antonio Gabriel de Moreira, o mesmo contava com 40 anos de

    idade e era casado (os três foram os únicos agricultores que possuíam uma renda

    líquida de 300 mil réis, os demais não ultrapassaram os 200 mil réis anuais).

    O mais abastado da lista, com renda de 800 mil réis anuais, foi o proprietário

    Manoel Bizerra Leite, de 40 anos de idade e casado. A categoria de proprietários da

    89%

    2%

    1%

    7%

    1%

    Agricultor

    Negociante

    Criador

    Proprietário

    Artista

  • 11

    referida lista possuía uma renda que podia variar de 300 a 800 mil réis anuais. A

    renda dos negociantes era acima dos 250 mil réis, podendo alcançar até 600 mil réis

    anuais, conforme registrou o tenente-coronel Praxedes Rodrigues dos Santos. Outra

    categoria, que merece observação, são os criadores, a exemplo dos negociantes,

    possuíam uma renda que podia variar entre 250 a 600 mil réis e, apenas dois deles,

    contavam com uma renda de 200 mil réis, Manoel do Nascimento Aranha, de 41

    anos e casado, e o guarda Galdino de Souza Leite, que à época, contava com 26

    anos e era solteiro.

    Miquéias Mugge (2018) em sua análise sobre os perfis dos milicianos na

    Guarda Nacional rio-grandense, durante o período de centralização da milícia,

    concernentes aos anos de 1850 e 1873, percebeu que cerca de 95% dos guardas

    designados para o serviço ativo, possuíam entre 18 e 44 anos, havendo certo

    equilíbrio entre casados e solteiros. Diferente do que analisou Flávio Saldanha

    (2013) em sua investigação sobre a Guarda em Mariana e São João Del Rei, em

    Minas Gerais. Segundo o autor, a quantidade de milicianos casados formavam a

    maior parte do efetivo, bem parecido com o que foi demonstrado no batalhão de

    Misericórdia, na província da Paraíba.

    O serviço ordinário nesse município paraibano era executado, em sua maior

    parte, por guardas casados, os quais, assim como o personagem Manoel João,

    deviam sacrificar seus afazeres, família e filhos, para prestar o serviço requerido

    pelas autoridades responsáveis. A respeito dos postos ocupados pelos milicianos,

    apenas cinco, possuíam postos na Guarda Nacional do município de Misericórdia,

    pelo menos, foi isso que registrou o tenente-coronel Praxedes.

    Quadro 2: Oficiais da Guarda Nacional de Misericórida: idade,

    profissão, renda e posto (1858)

    Nome Idade Profissão Renda Posto

    Antonio

    Gabriel de

    Moreira

    40 anos

    Agricultor

    300 mil réis

    2º Sargento

  • 12

    Manoel

    Bizerra Leite

    40 anos

    Proprietário

    800 mil réis

    2º Sargento

    Antonio

    Joaquim

    Pereira

    Virgulino

    38 anos

    Proprietário

    300 mil réis

    Alferes

    José Furtado

    de Lacerda

    37 anos

    Proprietário

    500 mil réis

    Alferes

    José Pedro de

    Figueiredo

    49 anos

    Proprietário

    600 mil réis

    Capitão

    Fonte: Matrícula do serviço ordinário da Guarda Nacional de Misericórdia. AHWBD. Cx: 36, Ano:

    1858.

    A partir do quadro acima exposto, é possível identificar alguns traços dos

    perfis dos oficiais daquela localidade: 1. No que concerne a condição financeira,

    todos eles apresentavam uma renda superior a 200 mil réis; 2. Sendo o 2º sargento

    Manoel Bizerra Leite o de maior renda líquida, 800 mil réis; 3. Com exceção do

    oficial Antonio Gabriel de Moreira, que era agricultor, os demais eram proprietários

    e 4. O de mais idade, o capitão José Pedro de Figueiredo, contava com seus 49 anos

    e o de menor idade, contando com 37 anos, era o alferes José Furtado de Lacerda.

    Feitas essas observações, percebe-se que os indivíduos que compuseram o

    oficialato presentes na lista de matrícula de Misericórdia, possuíam uma renda mais

    elevada quando se compara com o percentual da maior parte dos guardas nacionais

    alistados. Para ser oficial da milícia, o cidadão presisava ter a qualidade de eleitor.

    Além disso, uma vez indicado pelo comandante ao presidente de província,12

    deveriam pagar pela sua aquisição e outros emolumentos e, em caso de serem

    promovidos para um novo posto, deveriam pagar pelo novo direito.13

    12 Lei n.609 de 19 de setembro de 1850, Art. 51 e 57. 13 Os valores arrecadados pelas compras de patentes deveriam ser depositados nos cofres provinciais, a fim de serem investidos na manutenção da própria instituição, pelo menos, era esta a normativa presente

    na lei, consultar: Lei n.609 de 19 de setembro de 1850, Art. 57-58.

  • 13

    Sendo assim, era preciso que o cidadão dispusesse de capital econômico ou

    fizesse um esforço a mais para conseguir pagar a sua patente, sacríficio que lhes

    daria retorno – como a distinção e visibilidade, se partimos da premissa de Norbert

    Elias (2008, p. 20), quando argumentou que o indivíduo, enquanto ser social, é

    indentificado com a imagem ou representação que “lhe é dada por ele próprio ou

    pelos outros”. É provável que, para esses milicanos, exibir a patente de oficial da

    Guarda Nacional, tornava-os reconhecidos pelos membros de sua comunidade,

    tendo em vista que a nomeação “recaía preferencialmente sobre indivíduos de

    reconhecido prestígio socioeconômico e fidelidade político-partidária” (2009, p.12).

    Este parece não ter sido o caso do guarda nacional Manoel João e de muitos

    guardas paraibanos. Para eles, o status de guarda nacional, acabava sendo

    suficiente, ao menos, não era um alvo preferencial dos recrutadores. O fato de ser

    cliente leal de um patrono influente podia conferir a almejada proteção, fazendo

    com que muitos desses pobres honrados, que viviam da agricultura ou de pequenas

    propriedades para quem “faltava-lhes a capacidade de proteger suas lavouras,

    escravos, ou gado de pilhagem, [ficassem] satisfeitos quando o recrutamento recaía

    sobre os homens considerados vadios” (KRAAY, 1999, p. 126, grifo meu).

    Na década de 1850, com a reforma da Guarda Nacional, os milicianos

    perderam a isenção do recrutamento em tempos de guerra, portanto, a Guarda não

    era um abrigo tão seguro como fora anteriormente. Peter Beattie (2009, p. 68)

    lembra-nos que as “autoridades há muito reclamavam que até os vadios conseguiam

    obter postos na Guarda, comprometendo assim o recrutamento forçado”. Nesse

    período, os recrutadores para o Exército,14 procuravam guardas nacionais ditos

    transgressores, para justificarem sua apreensão, isso ocorreu na província da Paraíba

    e em outras partes do território nacional (BEATTIE, 2009).

    A este respeito, vale a pena conferir o caso do guarda paraibano Manoel

    Joaquim, que se encontrava preso no “Quartel do comando do 3º batalhão da

    14 O autor Peter Beattie (2009, p. 68) discutiu a respeito da reforma que ocorreu no Exército no ano de 1850. Segundo o autor, dentre outras modificações, as autoridades tentaram instituir a noção de

    “senioridade” para a promoção de oficiais, para cadete ficou estabelecido a idade de 18 anos, ser

    alfabetizado e ter sido praça por dois anos, ou ter sido aluno da escola preparatória da instituição, porém,

    é preciso dizer que o baixo status dos soldados não foi eliminado com a reforma.

  • 14

    Guarda Nacional de Livramento” nos idos 1858. Segundo o tenente-coronel

    Antonio Camillo de Holanda, o referido guarda costumava ser – “remisso para o

    serviço, pois que todas as vezes que é avisado, nega-se, não é bom cidadão, e nem

    tão pouco bom marido, por quanto, há quase três anos, abandonou a mulher

    sujeitando-a a viver segundo as vicissitudes do tempo”.15

    Seu companheiro de farda, Antonio Manoel Freire, também havia sido preso

    no mesmo quartel. No dia 6 de fevereiro de 1858, o então comandante Antonio

    Camillo de Holanda, endereçou um ofício ao presidente da província Beaurepaire

    Rohan, recomendando-o que deveria: “dar-lhe praça em algum dos corpos do

    Exército, visto que a sua insubordinação e mao comportamento assim o exigem”.16

    No mesmo documento, estava registrado que no dia nove do mesmo mês o guarda

    fora punido com a transferência para a Polícia.

    As duas situações são bem pertinentes, Manoel Joaquim fora preso por ser

    remisso/negligente e também por se negar, quando intimado, a prestar serviço na

    milícia, o que levou o comandante a colocar em questão sua cidadania. Vê-se

    também que essa autoridade quis reforçar sua argumentação, dizendo que ele era

    um mal marido, ou seja, recorreu à esfera íntima no intuito de desmoralizá-lo,

    estratégia que costumava ser utilizada pelos recrutadores na captura dos ditos

    “vadios” pelo discurso oficial. O guarda Antonio Manoel considerado

    insubordinado e mal comportado, recebera como punição a inserção na Polícia.

    O que chama atenção nos dois casos é que, a cidadania no século XIX,

    exigia sacrifícios, negar-se a obedecer tal convocação, colocava o cidadão em uma

    situação embaraçosa; principalmente, por testar a autoridade dos indivíduos aos

    quais estavam subordinados. É importante ressaltar que essas autoridades eram

    escolhidas pelo governo e, por isso, também estavam cientes quanto à necessidade

    15 Ofício do tenente-coronel do Quartel do Comando do 3º Batalhão da Guarda Nacional do Livramento, Antonio Camilo de Hollanda, no dia 29 de janeiro de 1858, ao presidente da província da Paraíba,

    Beaurepaire Rohan. O comandante informava a respeito do mal comportamento do guarda nacional

    Manoel Joaquim, colocando em questão sua dedicação cívica na Guarda. AHWBD. Cx: 36, Ano: 1858. 16 Ofício do tenente-coronel do Quartel do Comando do 3º Batalhão da Guarda Nacional do Livramento, Antonio Camilo de Hollanda, no dia 6 de fevereiro de 1858, ao presidente da província da Paraíba,

    Beaurepaire Rohan. O comandante solicitava a punição para o Exército do guarda nacional, Antonio

    Manoel Freire. AHWBD. Cx: 36, Ano: 1858.

  • 15

    de preenchimento dos corpos militares. Com o poder que a lei, de certa maneira,

    conferia aos mesmos – sobre o destino de um guarda dito remisso ou insubordinado

    – eles não deixavam de enviar um sinal de alerta a quem ousasse atrapalhar seu

    comando, da mesma forma, é possível que perseguissem desafetos políticos e seus

    clientes, como também notou Amanda Both (2016) na sua investigação referente ao

    município de Jaguarão-RS.

    Dito isto, pode-se conjecturar que ser um guarda nacional no oitocentos

    podia ser um bônus, quando estar inserido na milícia representou a escapatória do

    recrutamento. Mas tornava-se um ônus, quando o serviço ocorria em momentos

    inconvenientes, acarretando prejuízos econômicos e pessoais. A cidadania nesse

    contexto possuía peculiaridades, no que concerne ao entendimento sobre pátria,

    liberdade e constituição; afinal, ela teve que se acomodar a uma sociedade marcada

    pela dependência pessoal nas relações sócio/políticas, bem como pela existência da

    escravidão.

    Pode-se perceber neste breve artigo que a maior parte dos guardas

    paraibanos, alistados em Misericórdia-PB, exerciam a profissão de agricultor. Com

    relação à renda majoritária dos indivíduos alistados, ela estava em torno de 200 mil

    réis anuais – o que parece sinalizar que não se tratavam de pessoas abastadas, a

    maior parte estava em uma idade produtiva. Sendo assim, é possível conjecturar

    que, para muitos deles, prestar serviço na milícia, atrapalhava suas atividades

    cotidianas. No entanto, quando intimados pelas autoridades, deviam fazer como

    Manoel João que preferia obedecer – ainda contra vontade – a ter que se tornar um

    “soldado do infortúnio” 17 ou ver-se numa prisão, como foi o caso dos guardas

    paraibanos Manoel Joaquim e Antonio Manoel Freire. Era o ônus e o bônus da

    condição cidadã. E, “os pobres é que pagavam”, já dizia o personagem Manoel

    João.

    17 Beattie (2009).

  • 16

    Referências

    a) fontes primárias

    Almanack do Estado da Parahyba, 1899. Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-

    digital/almanak-paraiba/820261. Acesso: 6 de agosto de 2020.

    Lista de matrícula do serviço ordinário da Guarda Nacional de Misericórdia. AHWBD.

    Cx: 36, Ano: 1858.

    Ofício do tenente-coronel do Quartel do Comando do 3º Batalhão da Guarda Nacional

    do Livramento, Antonio Camilo de Hollanda, no dia 29 de janeiro de 1858, ao

    presidente da província da Paraíba, Beaurepaire Rohan. O comandante informava a

    respeito do mal comportamento do guarda nacional Manoel Joaquim, colocando em

    questão sua dedicação cívica na Guarda. AHWBD. Cx: 36, Ano: 1858.

    Ofício do tenente-coronel do Quartel do Comando do 3º Batalhão da Guarda Nacional

    do Livramento, Antonio Camilo de Hollanda, no dia 6 de fevereiro de 1858, ao

    presidente da província da Paraíba, Beaurepaire Rohan. O comandante solicitava a

    punição para o Exército do guarda nacional, Antonio Manoel Freire. AHWBD. Cx: 36,

    Ano: 1858.

    b) fontes bibliográficas

    BASILE, Marcello. “O Laboratório da Nação: a era regencial (1831-1840)”. In:

    GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. (orgs.). O Brasil Imperial (1808-1831). Vol.

    II, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 53-120.

    BEATTIE, Peter M. Tributo de Sangue: Exército, Honra, Raça e Nação no Brasil

    (1864-1945). Tradução de Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de

    São Paulo, 2009.

    BOTH, Amanda Chiamenti. A Trama que sustentava o Império: Mediação entre as

    elites locais e o Estado imperial Brasileiro (Jaguarão, Segunda Metade do Século XIX).

    Dissertação (Mestrado em História). Rio Grande do Sul: PCRS, 2016.

    http://bndigital.bn.br/acervo-digital/almanak-paraiba/820261http://bndigital.bn.br/acervo-digital/almanak-paraiba/820261

  • 17

    BRASIL, Leis e decretos. Leis s/n de 18 de agosto de 1831. Rio Janeiro, Typografia

    Nacional, 1875. 49-79.

    CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. 2

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