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O GOVERNO LULA E A CONTRA-REFORMA PREVIDENCIÁRIA

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Resumo: A reforma previdenciária, proposta pelo governo Lula e aprovada pelo Congresso Nacional, constituimais um passo decisivo na destruição do Estado iniciada no governo Collor. Este artigo tem por objetivodestacar o impacto e os verdadeiros interesses do governo Lula no tocante à reforma, ou melhor, à contra-reforma previdenciária.Palavras-chave: seguridade social; reforma da previdência; governo brasileiro.

Abstract: The social welfare reform, proposed by Lula’s government and approved by the House ofRepresentatives, constitutes one else decisive step to the destruction of the State started in Collor’s government.This paper intends to emphasize both the impact and the true interests of Lula’s government concerned to theReform, rather, the Counter Reformation.Key words: social security; social welfare reform; Brazilian government.

ROSA MARIA MARQUES

ÁQUILAS MENDES

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 3-15, 2004

sociedade brasileira foi surpreendida, ao final deabril de 2003, com o encaminhamento da pro-posta de reforma da previdência pelo governo

Lula ao Congresso Nacional. Ela veio a público em meioa um grande estardalhaço, no qual não faltou uma “mar-cha” formada pelo presidente da República e sua esposa,elementos de sua equipe e governadores, lembrando sim-bolicamente a forma de luta dos movimentos sociais, emespecial do Movimento Sem Terra, para se fazerem pre-sentes na Esplanada dos Ministérios. Mas se a caminhadado presidente evoca os movimentos sociais, o conteúdoda proposta dele se afasta, não encontrando eco junto aosservidores, principal “ator” atingido pelas mudanças. Areforma caracteriza-se por ser mais um passo decisivo nadestruição do Estado (processo iniciado no governoCollor), desconsiderando completamente a necessidade dapromoção da universalização da cobertura do risco-velhicee adotando a agenda do FMI, do Banco Mundial e dosarautos do capital financeiro com relação aos fundos depensão.

Além do conteúdo da reforma proposta pelo governoLula, particularmente chamou a atenção o uso de práticaspassadas, sendo evidente o desprezo aos princípios dadoutrina previdenciária, a argumentação falaciosa e atruculência com que o “debate” foi administrado e a rapi-dez com que a reforma foi aprovada: a “toque de caixa”.A exposição de motivos da Proposta de Emenda Consti-tucional 40 (depois 41, quando examinada no Senado),bem como todas as intervenções públicas dos represen-tantes do governo Lula, constituiu uma verdadeira peçade retórica, em que diferentes fios, de cores e procedên-cias variadas, foram tecidos a fim de defender aquilo quelá não estava escrito, sem nenhum pudor para fazer usoda deturpação, da omissão das informações e do precon-ceito contra os servidores, resultado de um longo proces-so de destruição do serviço público brasileiro.

Para combater essa estratégia de convencimento, naqual foi urdida uma verdadeira frente de guerra para im-pedir qualquer discussão e para promover sua aprova-ção em tempo recorde, mostrou-se insuficiente a resis-

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tência dos servidores,1 da intelectualidade, de militan-tes e de representantes do Partido dos Trabalhadores noCongresso Nacional. O chamado governo “democráticoe popular” completou, em apenas um ano, a agenda doBanco Mundial e do FMI quanto à reforma previ-denciária.2

O governo Lula não sai, contudo, incólume dessa cam-panha: perdeu, em pouco tempo, importante base de apoio,principalmente entre os chamados “formadores de opi-nião”. Mas o desgarrar da intelectualidade de esquerda edos servidores, embora importante, é apenas um primeiropasso do longo caminho que as massas brasileiras preci-sarão trilhar para tomar consciência dos verdadeiros inte-resses do governo por elas eleito. Auxiliar essa compreen-são é o objetivo deste artigo.

Para isso, começa por resgatar os avanços em matériade proteção social consolidados na Constituição de 1988,pois a verdadeira dimensão da “reforma” Lula somente écompreendida se for analisada como parte integrante deum processo que tem início quase imediatamente após asua promulgação e contra ela. Na segunda parte, de ma-neira breve, são analisadas as investidas dos governosanteriores contra o texto constitucional e a reforma pro-movida pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Já aterceira parte é dedicada à proposta do governo Lula, comdestaque para os argumentos, os acordos políticos obti-dos, a resistência e o sentido da reforma.

A DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS E APROTEÇÃO SOCIAL

O movimento político e social contra a ditadura mili-tar – que culmina na democratização do país e na ascen-são à Presidência da República de José Sarney, em 1985– tem na discussão e elaboração da nova Constituiçãoimportante momento. Tratava-se de estabelecer as basesdo novo regime e entre elas a questão social assumia im-portância ímpar. Os constituintes progressistas eram unâ-nimes sobre a necessidade de se dar passos concretos emrelação ao resgate da enorme dívida social brasileira her-dada do regime militar e, para isso, procuraram escreverna Constituição a garantia de direitos básicos e universaisde cidadania, estabelecendo o direito à saúde pública,definindo o campo da assistência social, regulamentandoo seguro-desemprego e avançando na cobertura da previ-dência social. Essas garantias foram objeto de capítuloespecífico – o da Seguridade Social, forma simbólica dorompimento com o passado, quando recursos dos traba-

lhadores foram largamente utilizados para outros fins quenão aqueles da proteção social.3

Os princípios que animaram os setores progressistas daconstituinte foram: ampliação da cobertura para segmen-tos até então desprotegidos; eliminação das diferenças detratamento entre trabalhadores rurais e urbanos; implemen-tação da gestão descentralizada nas políticas de saúde eassistência; participação dos setores interessados no pro-cesso decisório e no controle da execução das políticas;definição de mecanismos de financiamento mais segurose estáveis; e garantia de um volume suficiente de recursospara a implementação das políticas contempladas pelaproteção social, entre outros objetivos.

No campo da previdência social, esses princípios re-sultaram principalmente na criação de um piso de valorcorrespondente ao do salário mínimo e na eliminação dasdiferenças entre trabalhadores rurais e urbanos referentesaos tipos e valores de benefícios concedidos. A Consti-tuição de 1988 manteve, tal como antes, separadas a pre-vidência dirigida aos trabalhadores do mercado formal dosetor privado da economia e aquela dos servidores fede-rais, estaduais e municipais. Ao mesmo tempo, introdu-ziu o regime único de contratação para as três esferas degoverno, o que significou o desaparecimento de vínculosde trabalho, no interior do setor público, não compatíveiscom a categoria de servidor. As contribuições realizadasanteriormente seriam, conforme a legislação, transferidaspara as esferas do governo responsáveis pelo servidor.4

Alguns avanços na universalização, na ampliação dacobertura e na diminuição das desigualdades antecederama Constituição de 1988. No que diz respeito à previdên-cia, especificamente entre 1985 e 1987, portanto duranteo governo Sarney, o valor dos pisos dos benefícios urba-nos foi aumentado,5 o prazo de carência, diminuído e al-guns tipos de benefícios foram estendidos para a clientelarural. Dessa forma, a proteção social definida na Consti-tuição de 1988 pode ser caracterizada como o ápice deum processo de ampliação de cobertura e direitos que haviacomeçado antes, principalmente ao final dos anos 70, nobojo da luta democrática, e mesmo durante o regime mili-tar, pela mão dos ditadores.6

A universalização de direitos e a participação da co-munidade na definição das políticas sociais tinham comoprincípio fundador a superação do caráter meritocrático ea adoção da cidadania como critério de acesso. Essa foi amesma regra que orientou a universalização da proteçãosocial dos países capitalistas desenvolvidos, após a Se-gunda Guerra Mundial e também durante os anos 70 e 80.7

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A cidadania é facilmente reconhecível na área da saú-de. De uma situação em que o serviço público era voltadoapenas aos trabalhadores contribuintes do mercado for-mal, passou-se à garantia do direito para todos. Já na pre-vidência social, tal critério ficou imbricado ao anterior:paralelamente aos trabalhadores contribuintes com apo-sentadoria calculada basicamente a partir de suas contri-buições, existiam os trabalhadores rurais e aqueles comsalários muito baixos que recebiam o piso de um saláriomínimo, valor pago independentemente da ausência decontribuições ou do fraco esforço contributivo anterior.

Na idéia dos constituintes, esse componente cidadãono interior da previdência social deveria ser financiado,por sua natureza, com recursos de impostos. Essa prática,contudo, nunca foi implementada, pois o piso de um salá-rio mínimo é financiado pelas contribuições dos trabalha-dores, constituindo uma redistribuição de renda. Essa dis-torção no financiamento do Regime Geral da PrevidênciaSocial – RGPS, nome assumido pela previdência dos tra-balhadores do setor privado, será mais adiante retomada,pois é um dos principais elementos da chamada crise daprevidência no Brasil.

Para dar conta das despesas de proteção social, agoraampliadas no conceito de seguridade social, e também paratornar o financiamento menos dependente das variaçõescíclicas da economia (principalmente do emprego no mer-cado formal de trabalho), os constituintes definiram queseus recursos teriam como base o salário (contribuiçõesde empregados e empregadores), o faturamento (trazen-do para seu interior o Fundo de Investimento Social –Finsocial8 e o Programa de Integração Social e de For-mação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/Pasep),o lucro líquido das empresas (contribuição nova introdu-zida na Constituição, denominada Contribuição sobre oLucro Líquido – CLL) e a receita de concursos e prog-nósticos. Além dessas fontes, a seguridade contaria comrecursos de impostos da União, Estados e municípios.9

Ainda para garantir o financiamento da seguridade so-cial, os constituintes tiveram o cuidado de definir que es-ses recursos seriam de uso exclusivo da proteção social, oque, após sua promulgação, nenhum governo cumpriu.Também inscreveram na Constituição que o tratamentodos recursos da seguridade social não poderia ser distintode seu conceito de proteção holística, significando que,no interior da seguridade social, não caberia vinculaçãode recursos: a cada ano, por ocasião da discussão do or-çamento, seria definida a partilha do conjunto de receitasprevistas para seus diferentes ramos. A única vinculação

por eles prevista foi a dos recursos do PIS/Pasep, dirigi-dos apenas para o programa seguro-desemprego e para opagamento do abono PIS/Pasep, sendo 40% de sua arre-cadação destinada a empréstimos realizados pelo BNDESpara atender às empresas.

O LONGO DESMONTE DASEGURIDADE SOCIAL

Vários são os aspectos que evidenciam as iniciativas emedidas que foram minando o conceito de seguridadesocial ao longo dos governos que se seguiram à promul-gação da Constituição Cidadã.10 Entre os principais des-tacam-se: a utilização de parte de seus recursos para finsalheios à seguridade social nos dois primeiros anos apósa promulgação da Constituição; a especialização das con-tribuições de empregados e empregadores para a previ-dência social; a criação de mecanismos que permitiram oacesso da União aos recursos da seguridade social e, por-tanto, a institucionalização de seu uso indevido; as altera-ções nos critérios de acesso aos benefícios previdenciários,especialmente da aposentadoria; a inclusão, no plano daanálise e da discussão pública, do regime dos servidores,em claro rompimento ao artigo 194 da Constituição.

Recuperar esse desmonte é essencial para a compreen-são de como foi frágil o consenso que definiu os contor-nos da Constituição de 1988, em especial seu capítulosobre a seguridade social. Mais do que isso, indica comono Brasil as políticas sociais são permanentementesubsumidas aos objetivos e aos constrangimentos econô-micos de toda ordem. A Constituição de 1988, refletindoo anseio por democracia e pelo resgate da então chamadadívida social, foi um daqueles raros momentos em que talpreceito foi contradito. A recuperação desse desmonte,mesmo que de forma resumida, realizada pelos governosSarney, Collor e FHC (nas duas gestões), coloca em pers-pectiva a contra-reforma previdenciária empreendida pelogoverno Lula.

A primeira iniciativa contra o conceito de seguridadesocial aconteceu já no primeiro ano que se seguiu à pro-mulgação da Constituição, quando os recursos do entãoFinsocial e da CSLL foram praticamente alocados em suatotalidade para financiar os Encargos Previdenciários daUnião – EPU. Essa despesa, que corresponde à cota-par-te da União no financiamento da aposentadoria dos servi-dores federais, não diz respeito à Previdência Social daSeguridade Social, pois o regime desses servidores foimantido à parte pelos constituintes (MARQUES, 1989).

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Diante do repúdio recebido, no ano seguinte tal despro-pósito foi extremamente reduzido, desaparecendo em1990. Mas passados apenas três anos, aproveitando-se dasdificuldades do Regime Geral da Previdência Social –RGPS para fazer frente ao aumento despropositado dademanda por benefícios,11 o governo não repassou para aárea da saúde os 15,5% da receita de contribuições deempregados e empregadores previstos na Lei de Diretri-zes Orçamentárias – LDO (MÉDICI; MARQUES, 1994a).Essa decisão, além de obrigar a saúde a solicitar emprés-timo emergencial no Fundo de Amparo do Trabalhador –FAT, implicou o uso exclusivo das contribuições para be-nefícios previdenciários, contrariando o conceito deseguridade social. Essa especialização realizada na prá-tica foi regulamentada na reforma promovida no gover-no FHC.

A terceira medida tomada contra a seguridade socialnão se fez esperar. Em nome da estabilização da moeda,em 1994 foi instituída a desvinculação de parte dos re-cursos da seguridade social com a criação do Fundo So-cial de Emergência. Esse fundo, depois renomeado Fun-do de Estabilização Fiscal em 1997 e, finalmente, paraexpressar seu verdadeiro caráter, Desvinculação das Re-ceitas da União – DRU, em 2000, permite que 20% dasreceitas de impostos e contribuições sejam livrementealocadas pelo governo federal, inclusive para pagamentodos juros da dívida (MÉDICI; MARQUES, 1994b; MAR-QUES; MENDES, 2001). Essa medida recebeu franca opo-sição dos setores comprometidos com a seguridade sociale o Partido dos Trabalhadores fechou questão contra suaaprovação no Congresso Nacional.

Curiosamente, já com Lula na Presidência da Repúbli-ca, esse mesmo partido encaminhou proposta de reformatributária ampliando para 2007 a vigência da DRU. Es-quecendo-se de qualquer princípio antes defendido, pas-sou a argumentar que:

Embora os indicadores da economia nacional estejam, hoje,bem melhores do que no passado, a cautela exige que semantenha vigente tal comando até que as condições macro-econômicas e as incertezas do cenário internacional desa-pareçam (EMI, 2003a, p. 1).

Afora o fato de afirmar que os indicadores da econo-mia nacional estariam melhores do que no passado, quan-do o país apresentava taxas de desemprego recordes (naGrande São Paulo, segundo a Fundação Sistema Estadualde Análise de Dados – Seade, o desemprego atingia 20,6%da população ocupada e, de acordo com o Instituto Brasi-

leiro de Geografia e Estatística – IBGE, 14,6%), a taxanominal de juros básica era de 26,5% e a demanda apre-sentava claros indicadores de retração da economia (di-minuição do Consumo das Famílias e da Formação Brutado Capital, entre outros componentes), chama cinicamen-te de cautela o expediente da desvinculação de recursosda seguridade para engrossar o superávit primário exigi-do pelo FMI para pagamento da dívida pública, interna eexterna.12

Mas a última investida contra a seguridade social, an-tes da ascensão de Lula à Presidência da República, foirealizada pela reforma previdenciária promovida pelogoverno FHC. Esse governo apresentou, em março de1995, proposta que alterava a previdência social tanto dostrabalhadores do setor privado da economia como dosservidores, conhecida como Proposta de Emenda Consti-tucional 33 – PEC 33. A matéria ficou em discussão naCâmara dos Deputados até julho de 1996, mas, em razãoda forte resistência a seu conteúdo, em que não faltou ofirme posicionamento na época da Central Única dos Tra-balhadores – CUT e do Partido dos Trabalhadores – PT,a proposta foi retirada e reformulada, sendo reapresentadaem 1997.13 Ao final de 1998, foi enfim aprovada a Emen-da Constitucional n. 20 – EC 20, alterando a aposentado-ria do RGPS e do regime próprio dos servidores.14

No RGPS, os dispositivos constitucionais levados àrevisão e aprovados pela EC 20 foram:- supressão do teto de dez salários mínimos para o paga-mento da aposentadoria por tempo de serviço e de sua regrade cálculo (a média aritmética dos últimos 36 meses decontribuição);

- a substituição do tempo de serviço pelo tempo de con-tribuição e a criação de condições para que o sistema pú-blico de previdência siga regras que proporcionem o equi-líbrio financeiro e atuarial;

- aprovados esses novos dispositivos constitucionais, ogoverno passou a elaborar as leis ordinárias e as portariasdo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS)que definiram as novas regras e estabeleceram as regrasde transição.

Entre outras medidas, o projeto de lei apresentado aoCongresso Nacional visava, para o RGPS: ampliação doperíodo de contribuição para o cálculo do benefício; e in-trodução de fórmula de cálculo desse benefício; que con-siderasse a idade de quem requisita a aposentadoria e aexpectativa de vida segundo cálculos do IBGE. Essa pro-posta corresponde à Lei n. 9.876/99. A partir da vigên-

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cia dessa lei o valor da aposentadoria não seria mais cal-culado com base na média aritmética dos últimos 36meses de contribuição (ou no máximo um período de 48meses) e sim pela média aritmética dos maiores saláriosde contribuição, corrigidos monetariamente, de, no mí-nimo, 80% do período contributivo do segurado.15 So-bre esse cálculo é aplicado um fator redutor que varia deacordo com a idade do segurado, ou seja, o quanto devida ele terá depois de aposentado, segundo estimativasdo IBGE. Esse fator foi denominado Fator Previdenciá-rio.16 Para aqueles inscritos no RGPS até a véspera dapublicação da EC 20, foi mantida a aposentadoria pro-porcional, aos 25 e 30 anos de contribuição, se do sexofeminino ou masculino, respectivamente, desde que atin-gida a idade de 48 ou 53 anos de idade. Nesse caso ovalor do benefício corresponde a 70% do salário de be-nefício, acrescido de 5% por grupo de 12 contribuiçõesadicionais, até o limite de 100%.

Dada a resistência à introdução da idade como critériopara a concessão da aposentadoria (60 para mulheres e 65anos para homens, como anteriormente proposto e nãoaprovado na EC 20), o fator previdenciário foi a formaencontrada pelo governo FHC de adotá-la, só que no cál-culo do benefício, desestimulando a chamada aposenta-doria precoce e estimulando a permanência na atividade.Nesse sentido, o governo FHC foi vitorioso, conseguin-do, de uma maneira ou de outra, aprovar sua proposta parao RGPS. Mas a implantação do fator significou a introdu-ção, na cobertura do risco-velhice, de graus de iniqüidadeantes não existentes. Isso porque, para trabalhadores coma mesma idade, aqueles que começaram mais cedo são pre-judicados.

Já para o regime dos servidores públicos civis o governoFHC, embora tenha conseguido aprovar modificações, nãoobteve sucesso naquilo que considerava fundamental: asupressão do direito à integralidade (aposentadoria de valorigual ao do provento da ativa) e do direito à paridade nosreajustes (garantia, para o valor da aposentadoria, daaplicação do mesmo indexador e percentual utilizado noreajuste dos proventos dos servidores ativos); e a exigênciade contribuição dos aposentados. Para isso foi fundamentalnão só a mobilização ativa dos servidores, como a votaçãodos deputados de esquerda, com destaque para a atuaçãodo Partido dos Trabalhadores nessa luta.17

As principais modificações obtidas por FHC no regi-me dos servidores foram:- incorporação do conceito de “tempo de contribuição”em substituição ao de “tempo de serviço”;

- extinção da aposentadoria proporcional, conforme re-gras de transição idênticas às do RGPS;

- a introdução do limite de idade para a aposentadoria.

Diferentemente do ocorrido em relação ao RGPS, foramaprovados limites de idade para a aposentadoria por tem-po de serviço, de 55 anos, para as mulheres, e de 60 anos,para os homens.18 A regra de transição permitia, porém,que a mulher se aposentasse após completar 48 anos deidade e os homens 53 anos, desde que cumprido um tem-po adicional de 20% aplicado sobre o tempo que faltava,em 15/12/98, para que o servidor fizesse jus ao referidobenefício. Também foram unificadas as regras aplicadasaos servidores de todos os níveis, isto é, federal, estaduale municipal, e permitida a adoção do teto do RGPS para aaposentadoria dos novos servidores, desde que criada aprevidência complementar para eles. O projeto de lei com-plementar que institui esse regime não teve prosseguimentono Congresso Nacional.

DESTRUINDO O ESTADO: A REFORMA DOGOVERNO LULA

A reforma previdenciária encaminhada pelo governoLula – aprovada na Câmara dos Deputados em 7 de agos-to de 2003 e no Senado em 19 de dezembro de 2003 –retomou os pontos atinentes ao regime dos servidores queforam derrotados durante a reforma promovida por FHC.Caso alguns poucos senadores e deputados não tivessemse rebelado contra a posição do partido, expressando seudescontentamento e sua discordância de diferentes formas,ficaria a impressão de que as manifestações anteriores doPT nunca aconteceram. Mas a bem da verdade, afora al-gumas surpresas, tais como propor a cobrança de contri-buição dos inativos e manifestar um grande desprezo pelaaplicação de regras de transição, seu programa de gover-no já apontava elementos que estariam presentes tanto naproposta como em sua exposição de motivos. Entretanto,na medida em que se constituíam apenas elementos, nãorevelavam a totalidade de suas implicações, principalmentepara quem não é especialista da área. O item sobre a Re-forma da Previdência, a partir do parágrafo 47 do Progra-ma de Governo 2002, diz que:

Um dos maiores desafios políticos e administrativos do fu-turo governo é o equacionamento da questão previdenciária.Para dar conta desse desafio, é necessário um conjunto deiniciativas de curto, médio e longo prazos, a fim de cons-truir soluções estruturais capazes de permitir que a presen-

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te e as futuras gerações de brasileiros possam estar plena-mente conscientes e relativamente tranqüilas quanto aosdireitos que poderão usufruir após o término de uma longadedicação de vida laboral. Essa profunda reformulação deve

ter como objetivo a criação de um sistema previdenciário

básico universal, público, compulsório, para todos os traba-

lhadores brasileiros, do setor público e privado. O sistemadeve ter caráter contributivo, com benefícios claramente es-tipulados e o valor do piso e do teto de benefícios de apo-sentadoria claramente definido (PROGRAMA DE GOVER-

NO, 2002, § 47, grifo nosso).

Quanto ao terceiro pilar do atual sistema previdenciáriobrasileiro, a previdência complementar, que pode ser exer-cida por fundos de pensão patrocinados por empresas ouinstituídos por sindicatos (conforme a Lei Complementar109), voltada para aqueles trabalhadores que querem ren-da adicional além da garantida pelos regimes básicos, deve

ser entendida também como poderoso instrumento de forta-

lecimento do mercado interno futuro e fonte de poupança de

longo prazo para o desenvolvimento do país. É necessáriocrescimento e fortalecimento dessa instituição por meio demecanismos de incentivo (PROGRAMA DE GOVERNO,

2002, § 57, grifo nosso).

Realmente uma surpresa talvez tenham sido a formae o método utilizados pelo governo Lula para o enca-minhamento e a aprovação do projeto. Além do fato deo partido, em suas diferentes instâncias, não ter parti-cipado da elaboração da proposta, todo e qualquerencaminhamento contrário ou com caráter de emenda porparte dos deputados e senadores do PT foi impedido deir adiante, tendo sido definida a adesão ao texto dosrelatores, com as modificações negociadas pela direçãodo partido. Dessa forma, a iniciativa dos 30 deputadosdo partido, que em 29 de maio haviam lançado omanifesto “Retomar o Crescimento Já!”, em que partede seu conteúdo se refere a questões relativas à reformaprevidenciária, não pôde ir adiante. Para isso não faltaramameaças e pressões de toda sorte, impedindo a discussãoe o esclarecimento dos vários pontos polêmicos dareforma. Dada a pressão, na primeira votação realizadana Câmara de Deputados, 24 votaram com o partido (masfizeram declaração de voto criticando a proposta eexplicando que estavam votando devido à disciplinapartidária), três votaram contra19 e oito optaram pelaabstenção.20 Os que votaram contra, junto com a senadoraHeloísa Helena (Alagoas), acabaram sendo expulsos dopartido e os que se abstiveram foram suspensos.

Os Grandes Ausentes na Reforma

A ascensão de Lula à Presidência da República foi in-tensamente comemorada nas ruas das principais cidadesdo país, antes mesmo de ser anunciado o resultado ofi-cial. A alegria que tomou conta de pessoas dos mais dife-rentes estratos sociais indicava, com a mais nítida clare-za, o conteúdo que todos atribuíam ao novo momento doBrasil: a hora de ser promovida uma inflexão na políticaeconômica e social que até então vinha sendo desenvolvi-da, para permitir que o Brasil voltasse a crescer, redis-tribuindo renda e riqueza e resgatando a enorme dívidasocial acumulada. Em matéria de previdência social, aesperança era que o novo governo desse prosseguimentoao processo de universalização da cobertura do risco-ve-lhice iniciado na Constituição de 1988, superando os en-traves que até então circunscreveram essa proteção a umaminoria da população ocupada brasileira, deixandodesprotegidos milhões de trabalhadores e suas famílias.Ao mesmo tempo, esperava-se que o governo resolvessea imensa iniqüidade presente no RGPS, com a aplicaçãodo “fator previdenciário”.

Tal como mencionado anteriormente, a previdênciasocial brasileira é, mesmo considerando todas as suas li-mitações, a mais organizada da América Latina. Entretodos os países latino-americanos, apenas o Brasil conse-guiu criar um sistema único para todos os trabalhadoresdo setor formal da economia, unificando os vários insti-tutos anteriormente existentes e assim garantindo níveisde cobertura iguais para todos, independentemente do ramoem que a atividade fosse exercida. Ao conceder um mes-mo estatuto para esses trabalhadores, o Estado brasileirodeu um importante passo na construção da idéia de na-ção, integrando em um mesmo todo o trabalhador do Nortee do Sul do país. Esse processo, ainda incompleto, avan-çou significativamente com a Constituição de 1988, quan-do, entre outros dispositivos, os benefícios foram esten-didos aos trabalhadores rurais e o piso correspondente aum salário mínimo foi introduzido, o qual, na doutrinaprevidenciária, refere-se à renda de base, aquela que asociedade considera ser o valor mínimo que um trabalha-dor na inatividade deve receber.

Apesar desses avanços, a previdência social brasileiranão conseguiu, ao longo de sua construção, atingir o con-junto dos ocupados. Mas isso não se deveu a alguma “de-ficiência” do desenho da cobertura e sim ao processo eco-nômico vivenciado pelo país nas últimas décadas, com seusinevitáveis reflexos sobre o mercado de trabalho. Em 2001,

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O GOVERNO LULA E A CONTRA-REFORMA PREVIDENCIÁRIA

por exemplo, de acordo com os dados da Pesquisa Nacio-nal por Amostra de Domicílios – PNAD, realizada peloIBGE, 40,7 milhões de ocupados do setor privado da eco-nomia não eram contribuintes do RGPS ou de qualqueroutro tipo de regime, o que correspondia a 57,7% da po-pulação ocupada nesse setor, nesse ano.

Mas nem todos esses 40,7 milhões de ocupados sãopassíveis de serem integrados à cobertura previdenciária.Como alerta o próprio MPAS (2003), entre eles estão:- 20,4 milhões que recebem ou não renda ou recebemmenos de 1 salário mínimo. Desse total, cerca de 5 mi-lhões são trabalhadores rurais, futuramente beneficiáriosespeciais, isto é, com direito a um salário mínimo, e 15,4milhões de potenciais beneficiários de programas de as-sistência social focalizados no combate à pobreza;

- pessoas com idade entre 10 e 16 anos (aquém da idademínima autorizada pela legislação brasileira para o traba-lho e, portanto, para a filiação previdenciária);

- pessoas com mais de 60 anos que dificilmente preen-cherão as condições de elegibilidade relacionadas com acarência e tempo mínimo de contribuição, constituindopotenciais demandantes da assistência social.

Feitas essas deduções, o total de pessoas que poderiamestar protegidas pelo RGPS e não estão é de 18,7 milhões.De acordo com IBGE, entre esses indivíduos, 41% sãoassalariados sem carteira assinada, 10% são trabalhado-res domésticos (sem carteira assinada), 44% são defini-dos como conta-própria21 e 6% são empregadores. Quan-to ao ramo de atividade, os mais baixos níveis de coberturasão encontrados no comércio de mercadorias (38,5% dosocupados não estão protegidos), na prestação de serviços(49,9%), indústria de construção (66,9%) e agrícola(67,9%).

Contudo, apesar do esperado e da urgência em promo-ver a universalização, o governo Lula encaminhou, paraser examinada pelo Congresso Nacional, proposta que serestringiu a propor modificações das condições de acessoe dos valores dos benefícios dos servidores públicos. Nãoforam objeto de sua proposta, portanto, estratégias de in-clusão do amplo contingente de trabalhadores hoje nãocobertos por nenhum tipo de proteção ao risco-velhice.

O Uso da Retórica sem Pejo

Entre os aspectos que caracterizam como o governoLula encaminhou sua luta para fazer passar, a “toque decaixa”, sua proposta de reforma previdenciária, chamou

especial atenção o uso de meias verdades, de preconcei-tos e mesmo de distorção das informações. Essa prática,associada à truculência e à perseguição em relação a todaoposição, principalmente entre suas próprias fileiras, ex-plica e revela, ao mesmo tempo, o significado maior dareforma previdenciária do governo Lula. Vejamos, emprimeiro lugar, quais foram seus principais “argumentos”na discussão relâmpago antes da votação em primeiro turnona Câmara dos Deputados.

O Déficit que não Existia – Na luta por conquistar “co-rações e mentes” para sua proposta de reforma previ-denciária, o governo Lula não se fez de rogado: utilizou-se, no plano da retórica, de tudo que foi construído noimaginário do povo brasileiro. Primeiramente, fez uso dacrença sobre a existência de um grande déficit na previ-dência social, o que foi martelado, anos a fio, pelos go-vernos anteriores, especialmente durantes as duas gestõesde FHC. Depois de algum tempo, contudo, tendo em vistao volume de informações em contrário que começou a seramplamente divulgado, principalmente por formadores deopinião, esse argumento deixou de ser usado nas inter-venções dos representantes do governo Lula e se fez au-sente do relatório encaminhado pelo deputado JoséPimentel ao Congresso Nacional.

No caso do RGPS dos trabalhadores do setor privadoda economia, de fato as contribuições são inferiores àsdespesas. Mas isso acontece porque, no seu interior, hábenefícios que podem ser caracterizados, no todo ou naparte, como assistenciais: 6,9 milhões de rurais, que rece-bem um salário mínimo e que nunca contribuíram, e 5,9milhões de aposentados por idade, para os quais a legis-lação exige menor tempo de contribuição que os 30 e 35anos previstos para os demais trabalhadores. Em outrospaíses, o aporte suplementar, necessário para o financia-mento desses benefícios, é realizado por impostos, deno-tando o esforço do conjunto da sociedade. No Brasil, naausência do Estado no financiamento, esse esforço ficarestrito em grande parte aos assalariados do setor formal,constituindo uma redistribuição de renda entre os traba-lhadores. Mas sua arrecadação é insuficiente para custear,além dos benefícios urbanos, os rurais, uma vez que ascontribuições estão estagnadas em razão do fraco desem-penho econômico e do elevado desemprego.

Como comentado anteriormente, a leitura isolada dascontas do RGPS contraria o espírito dos constituintes de1988. Ao introduzirem o conceito de seguridade social edefinirem seu campo de ação e as fontes de recursos, eles

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concretizaram o tratamento holístico dos riscos sociais,em que não se pode pensar na cobertura do risco-velhicesem a concomitante garantia do risco-doença, por exem-plo. É por isso que, na discussão sobre a existência ounão de déficit, é preciso se considerar o conjunto daseguridade, compreendida pela previdência, saúde e as-sistência, que registrou um superávit de R$ 32,96 bilhõesem 2002. Para esse cálculo, são consideradas todas asreceitas e despesas da previdência, da saúde e da assis-tência, não sendo incluído o PIS/Pasep e o FAT, pois oseguro-desemprego tem receita vinculada.

Se a esse superávit forem acrescidas as despesas comos servidores da União (civis e militares), ainda que o ar-tigo 194 da Constituição não considere seus regimes inte-grantes da seguridade, e se for incluída a contribuição doEstado como empregador, o superávit diminui paraR$ 15,08 bilhões, mas ainda assim continua expressivo.Esse resultado compõe o famigerado superávit primáriode 4,25%, acordado com o FMI como sinalizador do bomandamento das finanças do Estado e como atestado de suacapacidade para honrar o serviço da dívida externa.

Construídos com base em dados oficiais, esses re-sultados não puderam ser contestados e, por isso, o próprioMinistro da Casa Civil, José Dirceu, no seminário orga-nizado pela Fundação Perseu Abramo, nos dias 23 e 24de maio de 2003, em São Paulo, reconheceu que a seguri-dade social é superavitária. Mesmo assim, a desinformaçãoé significativa, principalmente da grande massa da popu-lação. Para isso contribui muito a atitude da grande mídia,que continua a reproduzir o primeiro “discurso oficial”.

Em Nome da “Justiça Social” – O governo Lula, paraindicar a enorme injustiça social consubstanciada no re-gime previdenciário dos servidores civis, comparou, naExposição de Motivos que encaminhou a proposta de re-forma ao Congresso Nacional, a média dos benefícios doRGPS, de R$ 362,00, ao benefício de R$ 50 mil de umservidor. Não fosse pelo fato de esses dados terem sidoexaustivamente repetidos na mídia, num arroubo de inge-nuidade seria possível pensar que se tratou de um “equí-voco”. Afora que não se compara uma média a um valorabsoluto, fato conhecido por qualquer pessoa um poucofamiliarizada com os “mistérios da distribuição”. Para ocálculo da média do RGPS foram indevidamente incluí-dos os benefícios dos rurais (de um salário mínimo) e asaposentadorias por idade, todos de caráter assistencial, comvalores baixos, que “puxam” a média para baixo. Segun-do os dados do próprio MPAS, a média de aposentadoria

por tempo de contribuição é de R$ 812,30, bastante aci-ma dos R$ 362,00 utilizados para respaldar a retórica. Jáa média da aposentadoria da maioria dos servidores fede-rais fica em torno de R$ 1.038,00, conforme divulgadopela CUT, no mesmo seminário mencionado acima.

Mas foi com base nessa comparação espúria que se de-fendeu a adoção do teto de R$ 2.400,00 tanto para os servi-dores como para os trabalhadores do RGPS e, por conse-qüência, a extinção da integralidade para os servidores eo início da unificação dos regimes. Vale lembrar que cui-dados foram tomados: sabendo que os militares seriamfonte de grande resistência a qualquer proposta, o gover-no não os incluiu, tal como foi feito no Chile de Pinochet.22

Embora seja pequeno o número de segurados com apo-sentadorias de valores extremamente elevados,23 diantedo universo dos servidores, governo e mídia trataram dedivulgar exaustivamente sua existência, apresentando-ascomo prova inconteste do tratamento diferenciado dos fun-cionários públicos em relação aos trabalhadores do setorprivado. Perante a realidade da distribuição de renda bra-sileira, a pior do mundo depois da Suazilândia, pequenoreino entre Moçambique e África do Sul, isso foi funda-mental para que a reforma do governo recebesse o maisamplo apoio da massa de trabalhadores brasileiros, poisesses, quando empregados, recebem salários significati-vamente baixos. Mas para conquistar esse apoio tambémnão foi menos importante outra “associação” que o go-verno Lula fez questão de fazer: relacionar a precária si-tuação do serviço público, principalmente na área social,com o funcionalismo público. Foi esse o sentido de seudiscurso, ao dizer que, fazendo a reforma, mais seriaalocado na prestação de serviços de saúde, por exemplo.Dessa forma, somou-se à idéia construída desde o gover-no Collor (de que o funcionário público é “marajá”, ga-nhando sem trabalhar ou trabalhando pouco) aquela queo considera parte integrante de um segmento privilegiadoda população e, por isso, em nome da justiça social, de-veria ser imposta a reforma. Curiosamente, a promoçãodessa justiça social foi defendida a partir do nivelamentopor baixo e nada foi dito quanto a melhorar a situação dosque ganham pouco. E isso não por acaso, pois significariao enfrentamento dos determinantes da má-distribuição derenda existente inclusive entre os trabalhadores, tanto nosetor privado como no setor público.

Na ausência de uma proposta em relação a isso, o go-verno, deliberadamente, discutiu como se fossem uma úni-ca questão a introdução do teto de R$ 2.400,00 e o fato dea distribuição dos proventos dos servidores apresentarem

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um leque acentuado entre o menor e o maior valor. Esteteto tem o único propósito de abrir campo para o desen-volvimento dos fundos de pensão no país e não de limitaro provento máximo no setor público.24

Ainda em nome da justiça social, o governo aprovou acontribuição de 11% para os aposentados, embora, em fun-ção da resistência, tenha sido obrigado a isentar aquelescom aposentadoria até R$ 1.440,00 (para os funcionáriosfederais) e até R$ 1.200,00 (para funcionários estaduais emunicipais).25 A cobrança dos inativos servidores foi der-rotada em três oportunidades durante o governo FHC econtou sempre com o voto contrário do Partido dos Tra-balhadores. Antes dele, somente o último governo militarousou cobrar de aposentados, no caso do então INPS.26

Ontem e hoje os argumentos contrários a essa iniciativasão os mesmos: a contribuição dá origem a um direitofuturo e, por isso, não há como exigir que o aposentadocontribua. Sua cobrança significa a quebra de um dos prin-cípios mais caros da doutrina previdenciária, mesmo con-siderando que os servidores, até 1993,27 participavam dofinanciamento somente para pensão, porém com patama-res bastante altos. Além disso, qual a razão de essa co-brança não ser exigida dos trabalhadores rurais aposenta-dos, que também não contribuíram no passado? Em matériaprevidenciária, argumentar que estes últimos ganham be-nefício de valor igual ao salário mínimo não tem funda-mento, pois o motivo alegado para cobrança dos inativosnão foi o valor da aposentadoria e sim a ausência de con-tribuição anterior.

A Serviço do Capital Financeiro

Se não existe déficit e se a motivação não é promovera justiça social, então por que essa reforma foi encami-nhada a “toque de caixa”? Lembremos, em primeiro lu-gar, que a aplicação do teto de R$ 2.400,00 está associa-da à criação de fundo de pensão.28 O governo Lula está“convencido”29 de que a criação de fundos de pensão, paraos servidores e para os demais trabalhadores, formarápoupança interna expressiva, o que financiará o desenvol-vimento do país. Mais do que isso, manifesta a intençãode utilizar os recursos dos fundos em seus futuros progra-mas de infra-estrutura ou de caráter social, o que não es-taria de acordo com a definição do benefício. Ressalte-seque os fundos de pensão atuais, dos trabalhadores das es-tatais, dias após a aprovação da reforma do primeiro tur-no, manifestaram sua preocupação com relação a esse pro-pósito, exigindo garantias de rentabilidade para realizar

os investimentos. Isso porque esses programas, ao teremrentabilidade baixa,30 nunca foram de interesse do setorprivado e, pelos mesmos motivos, não o são dos fundosde pensão. No caso dos fundos das estatais, cujo benefí-cio deve corresponder à reposição da inflação mais 6%ao ano, a aplicação em programas como esses pode levarà reprodução do passado, quando o governo se viu obri-gado a fazer capitalizações bilionárias na Petros (fundosde pensão dos trabalhadores da Petrobras) e na Previ (fun-do de pensão do Banco do Brasil).

O papel atribuído pelo governo Lula aos fundos de pen-são não difere da compreensão do governo FHC, do Ban-co Mundial e do FMI. Como nos ensina Francisco de Oli-veira (2003, p. 38):

É isso que explica recentes convergências pragmáticas en-tre o PT e o PSDB, o aparente paradoxo de que o governode Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o: nãose trata de equívoco, mas de uma verdadeira nova classesocial, que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e inte-lectuais doublês de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e ope-rários transformados em operadores de fundos de previdên-cia, núcleo duro do PT.

Além disso, na literatura, há aqueles que consideramser essa a maneira de os trabalhadores ganharem poderno atual cenário da mundialização financeira.31 E essaleitura não é estranha a integrantes do governo Lula. Éuma pena que esses mesmos integrantes não consideremas experiências já realizadas na América Latina e a quedaocorrida nos fundos de pensão norte-americanos. Isso semfalar do que aconteceu com os funcionários da Enron, queviram sua poupança virar pó da noite para o dia.

A ilusão de que a classe operária “vai ao paraíso” comos fundos de pensão se choca com o jogo do capital fi-nanceiro, único interessado na proposta do governo Lula.A regra de contribuição definida, sem nenhuma garantiaquanto ao valor do benefício, coloca o futuro de geraçõesa serviço do capital financeiro. Dessa maneira, o Brasil, oúnico que até então havia resistido em abrir as portas paraa criação e o desenvolvimento dos fundos de pensão pormeio de reforma de seu sistema previdenciário, agora ofaz a partir dos servidores públicos e mediante mudançasna legislação que permitirão aos sindicatos e centrais detrabalhadores organizarem fundos de pensão.

Uma das outras razões do empenho do governo Lulana aprovação da reforma da previdência, mas ainda a servi-ço do capital financeiro, é a realização de superávits primá-rios expressivos. Como é sabido, nos últimos anos, por

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força de acordo estabelecido com o FMI, o Brasil tem feitoum esforço sobre-humano para gerar um excedente (receitamenos despesa, desconsiderando os juros), cuja finalidadeé garantir o fluxo de pagamento da dívida externa. O PT,que havia apontado corretamente, no documento “Con-cepção e Diretrizes do Programa de Governo do PT parao Brasil”,32 a necessidade de reduzir a vulnerabilidadeexterna mediante a política, entre outras, de “denunciardo ponto de vista político e jurídico o acordo atual com oFMI, para liberar a política econômica das restriçõesimpostas ao crescimento e à defesa comercial do país” (PTapud BORGES NETO, 2003), passou desde seus primeirosdias de governo a defender e a priorizar o ajuste fiscal,elevando o superávit primário, voluntariamente, para4,25%.33

Em 28 de maio de 2003, portanto um mês após o enviodo projeto de reforma previdenciária ao CongressoNacional, em carta dirigida a Horst Köhler, diretor-gerente do FMI, o ministro da Fazenda, Antônio Palloci,subscreveu:

O governo tem avançado rapidamente no cumprimento desua agenda para a recuperação econômica e implantaçãodas reformas. Depois de um importante esforço para a cons-trução de consensos, uma proposta ambiciosa de reformatributária e previdenciária foi enviada ao Congresso antesdo previsto. A política fiscal tem se concentrado na redu-ção da dívida pública: a Lei de Diretrizes Orçamentárias,enviada ao Congresso, aumenta a meta de superávit primá-rio de médio prazo para 4,25% do PIB. Além disso, a emen-da constitucional que facilita a regulação do setor finan-ceiro – um passo necessário à formalização da autonomiaoperacional do Banco Central – foi aprovada (MINISTÉ-

RIO DA FAZENDA, 2003, p. 1, § 1).

Diante desse claro objetivo, a reforma da previdênciatambém tem o papel de colaborar na continuidade deobtenção de superávits primários expressivos. Segundoestimativas do então ministro da Previdência, RicardoBerzoini, em 20 anos as mudanças aprovadas irão resultarem uma economia de R$ 52 bilhões. Além disso, tambéma cobrança de inativos e o aumento do teto de R$ 1.869,34para R$ 2.400,00 para o RGPS irão gerar aumento daarrecadação.34 Antes das negociações ocorridas na Câ-mara, que aumentaram o limite de isenção para a cobrançada taxa sobre a aposentadoria, o governo esperava comessa medida obter recursos adicionais de R$ 147 milhões(EMI, 2003b). Desnecessário dizer que a geração desuperávits primários com vistas ao pagamento do serviço

da dívida constitui uma verdadeira sangria, mas ela é aindamaior quando se considera que o nível do gasto públicoem determinadas áreas já é extremamente baixo, impe-dindo a ação ativa do Estado.

A Contra-Reforma e a Destruição do Estado

Por tudo isso, a reforma encaminhada pelo governo Lulacaracteriza-se por ser antidemocrática, anti-republicana eainda por promover uma redistribuição de renda às aves-sas, entre servidores e o capital financeiro.35

Ela é antidemocrática principalmente porque descon-sidera a necessidade de regras de transição adequadas paramudanças como as provocadas por uma reforma previ-denciária. No caso específico dos servidores, em que alegislação garantia aposentadoria de valor igual ao da ati-va, significando que ao se aposentar não tinha redução derenda,36 isso era combinado ao fato de os proventos se-rem mais baixos dos que os recebidos pelos trabalhado-res do setor privado da economia, para o mesmo nível dequalificação.

Ao longo da vida, porém, a renda recebida pelos doissegmentos tenderia a ser igual. Isso porque quando ostrabalhadores do setor privado se aposentam sofrem que-da abrupta em sua renda (tanto mais acentuada quantomaior for o salário da atividade), e os servidores que, du-rante a atividade, recebem menos continuariam a receberesse mesmo valor quando aposentados. Em outras pala-vras, o pacto estabelecido entre o Estado brasileiro e seusfuncionários era o de garantir uma renda perpétua, embo-ra mais baixa que a paga pelo mercado para o mesmo ní-vel de qualificação.

Mediante esse mecanismo, o servidor estava afastadoda incerteza em relação a sua renda futura, gerando umarelação consumo/poupança diferente daquela do trabalha-dor assalariado do setor privado da economia. Isso signi-fica que o servidor, considerando que sua renda futura eragarantida, podia fazer um esforço de poupança menordurante sua vida ativa.

A reforma promovida pelo governo Lula significa umrompimento do contrato estabelecido entre o Estado eos servidores atuais. Esse rompimento é de extremaviolência, pois desconsidera que o funcionário públiconão tem como alterar sua atitude passada na relaçãoconsumo/poupança. E serão poucos aqueles que con-seguirão cumprir todas as condições (idade, tempo decontribuição, tempo de exercício no cargo) para ter direitoà aposentadoria integral.

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Em qualquer sociedade democrática, quando leisprevidenciárias são alteradas, as regras de transição sãoaplicadas exatamente para minimizar ao máximo a perdadaqueles já integrantes do mercado de trabalho. Ao queparece, a preocupação do governo Lula em não “quebrar”contratos, manifestada repetidas vezes em várias oportu-nidades, antes e depois das eleições presidenciais, não seaplica aos servidores.

Por outro lado, considerando que a remuneração pagaaos servidores ativos não irá se alterar, porque eles de-vem continuar a ganhar menos do que os trabalhadoresdo setor privado, a mudança nas condições de aposenta-dorias será um desestímulo a que bons profissionais deci-dam fazer concurso público. A única situação para queisso não aconteça é um quadro de extremo desemprego,em que o Estado pode vir a constituir a única alternativade ocupação. Em outras palavras, a reforma previdenciáriado governo Lula é um passo decisivo no longo processode destruição do Estado que vimos acontecer desde o go-verno Collor.

O outro resultado é promover uma ampla redistribui-ção de renda, mas não aquela almejada por todos. Comovimos, a reforma irá provocar ampla transferência de ren-da entre os servidores de proventos mais elevados e o ca-pital financeiro. O que se esperava é que Lula iniciasse aampliação da cobertura do risco-velhice, estendendo a ga-rantia de um salário mínimo a todos os idosos urbanos(atingindo, portanto, os do mercado informal e os combaixa capacidade contributiva). É claro que para isso se-riam necessários recursos não desprezíveis, que somentepoderiam ser pensados a partir de uma mudança no siste-ma tributário brasileiro, no qual o capital especulativo eas grandes fortunas não têm real participação. Mas a re-forma tributária encaminhada pelo governo, e aprovadaquase que simultaneamente à previdenciária, passou lon-ge dessa preocupação.

NOTAS

Este artigo é uma versão modificada daquele apresentado no III Coló-quio de Economistas Políticos da América Latina, realizado em BuenosAires, no período de 16 a 18 de outubro de 2003. Além das contribui-ções recebidas durante esse evento, os autores agradecem os comentá-rios dos professores João Machado Borges Neto e Paulo Nakatani.

1. Esses foram responsáveis pela primeira grande manifestação contrao governo Lula, nos dias 5 e 6 de agosto de 2003, na Esplanada dosMinistérios e na Câmara dos Deputados.

2. Essas agendas preconizam a austeridade fiscal, priorizando o con-trole de suas despesas.

3. É sabido que os recursos de contribuições de empregados e empre-gadores – calculados sobre os salários e dirigidos à aposentadoria dostrabalhadores do segmento formal do setor privado da economia – fo-ram utilizados na construção de Itaipu e da ponte Rio–Niterói, na im-plantação de usinas nucleares em Angra dos Reis, entre outros proje-tos da ditadura militar. Esses recursos nunca foram devolvidos ao en-tão Fundo de Previdência e Assistência Social.

4. As transferências das contribuições foram parcamente realizadas,constituindo um dos motivos de dificuldades apontados pelos Estadose municípios para fazer frente às despesas com a aposentadoria de seusservidores. Embora esse aspecto não deva ser negligenciado, as difi-culdades são mais facilmente atribuídas ao fraco desempenho da arre-cadação dos tributos, refletindo as dificuldades econômicas do con-junto da nação, à política de juros altos exercida em quase todo o pe-ríodo dos diferentes governos, por força da não-resolução do proble-ma da dívida e dos compromissos assumidos com o FMI.

5. A legislação anterior definia pisos diferentes, dependendo do tipode risco coberto.

6. No Brasil, foram os militares que instituíram a previdência socialpara os trabalhadores do mercado formal do setor privado da econo-mia, unificando os antigos institutos corporativos urbanos e assimgarantindo direitos iguais a todos os segurados, independentementedo setor de atividade e da região onde trabalhassem. Também forameles que estenderam a cobertura para os trabalhadores rurais. Essasmedidas, ambicionadas por governos anteriores, somente puderam serpraticadas em razão do regime de exceção. Na formação da unidadenacional, não é desprezível o papel jogado pela criação da previdênciasocial pública do setor privado da economia, constituindo importanteinstrumento de redistribuição de renda. Curiosamente, essa unifica-ção, ímpar em toda a América Latina, gerou o principal entrave parasua privatização. Sobre isso ver Marques (2000).

7. Mesmo com os problemas enfrentados por suas economias duranteessas décadas, os sistemas de proteção social incorporaram novos seg-mentos em sua cobertura. Dois exemplos são emblemáticos: a amplia-ção do conceito de desempregado, reconhecendo como tal o trabalha-dor sem emprego que nunca trabalhou e a concessão de renda mínimacom base no princípio da cidadania e não no assistencialismo.

8. O Finsocial deu lugar, em 1991, à Contribuição para o Financia-mento da Seguridade Social – Cofins.

9. A Constituição de 1988 não definia, entretanto, como seria a parti-cipação dos entes federados no financiamento da seguridade social.Em 1997, foi criada a Contribuição Provisória sobre a MovimentaçãoFinanceira – CPMF, cujos recursos vieram se somar àqueles definidosna Constituição. Somente em 13 de setembro de 2000 foi aprovada aEmenda Constitucional n. 29, estipulando a forma da inserção da União,dos Estados e dos municípios no financiamento do Sistema Único deSaúde.

10. Ulysses Guimarães, líder histórico do Partido do Movimento De-mocrático Brasileiro (PMDB) e presidente da Assembléia NacionalConstituinte, assim “batizou” a Constituição de 1988 em seu discursode 27 de julho desse ano, ao anunciar sua aprovação (Disponível em:<www.persocom.br/fug/c_cidada.htm>. Acesso em: 20 ago. 2003).

11. A demanda por aposentadoria, que havia sido contida por conta dafavorável expectativa que os trabalhos da constituinte criaram, aumen-tou significativamente após a regulamentação do capítulo da seguridadesocial. Em outras palavras, a demanda ocorrida em 1993 correspondiaà demanda somada de vários anos.

12. O superávit primário (excedente entre a receita e a despesa do go-verno federal, excluídos os juros) era de 3,75% do PIB ao final do go-

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verno FHC, conforme negociação realizada com o FMI. Contudo, em28 de fevereiro, na Carta de Intenção enviada ao FMI, o governo Lulaaumentou espontaneamente esse percentual para 4,25%, promovendocortes no orçamento da União de R$ 14,1 bilhões, o que reduziu a dis-ponibilidade dos ministérios da área social em 12,44%, por exemplo(GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM CONJUNTURA, 2003).

13. Mas o governo FHC não ficou parado durante esse tempo todo.Por meio da Medida Provisória n. 1.723, de 29/10/1998 e da Lein. 9.717, de 28/11/1998, agilizou a introdução de novas regras para aorganização e o funcionamento dos regimes próprios de previdênciasocial dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Fe-deral e dos municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Fede-ral. A lógica desses instrumentos jurídicos era imprimir a “responsa-bilidade fiscal”, contendo as despesas desses regimes. Dentre váriasmedidas, eles limitavam as despesas líquidas a no máximo 12% dareceita corrente líquida dos regimes próprios dos entes estatais, em cadaexercício financeiro.

14. É bom lembrar que houve uma série de modificações na legislaçãoprevidenciária no período 1994/1996. Isso porque nem todas as pro-posições do governo FHC exigiam, para serem aprovadas e regulamen-tadas, que houvesse alteração de dispositivos constitucionais. Esse foio caso da extinção do abono por permanência de serviço e do pecúlio(o abono era um auxílio financeiro dirigido a quem já tivesse direito ase aposentar, mas optasse por continuar trabalhando; já o pecúlio erapago de uma única vez para o segurado que se incapacitasse para otrabalho, antes de ter completado o período de contribuição necessá-rio para ter direito à aposentadoria por invalidez e, ainda, quando oaposentado que continuava a trabalhar e a contribuir para a previdên-cia pública se afastasse definitivamente do trabalho) e a transforma-ção dos auxílios natalidade e funeral em benefícios assistenciais, so-mente pagos às famílias com renda mensal per capita inferior a umquarto do salário mínimo. Também foi modificada a aplicação dasaposentadorias especiais, as quais permitiam entrar para a inatividadecom tempo de serviço menor do que o exigido para os demais traba-lhadores, tanto os que trabalhavam em empresas cujas atividades eramconsideradas nocivas à saúde (não importando se o trabalho era, porexemplo, administrativo ou não em uma empresa de prospecção depetróleo), como também certas categorias de trabalhadores como jor-nalistas e aeronautas. Segundo a nova legislação, a concessão de apo-sentadoria especial somente é devida aos trabalhadores que compro-vadamente exercem atividade insalubre e/ou de risco.

15. A ampliação do período de contribuições para efeito do cálculo dobenefício provoca, para aqueles que apresentarem evolução salarialpositiva ao longo da carreira, redução do valor da aposentadoria. Des-taca-se que seria aplicado o novo período de base de contribuiçõesmesmo para o segurado que tivesse cumprido as condições para soli-citar aposentadoria até 28 de novembro de 1999.

16. A fórmula de cálculo do valor da aposentadoria por tempo de con-tribuição é a seguinte: FPR=[(TC x a)/Es} x [ 1+ (Id + Tc x a) /100],onde “TC“ é o tempo de contribuição; “a” é a alíquota de contribuiçãodo segurado (incluindo a do empregado e do empregador); “Es” é aexpectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria; e “Id”é a idade do segurado na data da aposentadoria (Dieese, 2001, p. 252).

17. As direções dos seguintes partidos orientaram seus deputados avotar contra a reforma previdenciária encaminhada pelo governo FHC:PT, PDT, PSB, PC do B e PPS. A atitude adotada por esses partidos navotação da PEC 40 no primeiro turno da Câmara, em 2003, contrastacom essa posição.

18. Ressalte-se que a introdução do limite de idade recebeu voto con-trário dos representantes do Partido dos Trabalhadores.

19. Os deputados Babá (Pará), Luciana Genro (Rio Grande do Sul) eJoão Fontes (Sergipe) disseram não, em 6 de agosto de 2003, à refor-ma votada em plenário sem destaques. Um dia depois, os mesmos vo-taram contra a taxação dos inativos. Soma-se a esses a senadora He-loísa Helena, que não cansou de se manifestar em todas as oportunida-des contra a reforma. Na base aliada, no PC do B, destaca-se o voto

contrário de Alice Portugal (Bahia), Sérgio Miranda (Minas Gerais),Promotor Afonso Gil (Piauí) e Jandira Feghali (Rio de Janeiro).

20. Optaram pela abstenção na votação de 6 de agosto: Walter Pinhei-ro (Bahia), João Alfredo (Ceará), Maninha (Distrito Federal), PauloRubens Santiago (Pernambuco), Chico Alencar (Rio de Janeiro), MauroPassos (Santa Catarina), Ivan Valente (São Paulo), Orlando Fantazzini(São Paulo). Pressionados pelo governo, acabaram dizendo sim para acobrança dos inativos.

21. Segundo o deputado José Pimentel, relator da proposta de reformaprevidenciária, em debate promovido pela Escola de Governo, em 18de agosto de 2003, em São Paulo, o grupo de trabalho do governo irábrevemente propor, como forma de incentivar a adesão dessa catego-ria de trabalhadores, que a alíquota do autônomo seja reduzida dosatuais 20% para 8%. Não explicitou, contudo, qual será o nível garan-tido de benefício e tampouco quem arcará com os recursos faltantes (oque é o caso, tendo em vista o cálculo atuarial).

22. É interessante destacar que o próprio presidente Lula, em artigopublicado na Gazeta Mercantil, em 5 de setembro de 2000, ao criticara reforma encaminhada por FHC, defendia uma reforma que incluísseos militares (DA SILVA, 2000).

23. Segundo Lindolfo Machado, elas representam 0,1% do total dasaposentadorias pagas aos servidores (Disponível em: <http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2003/maio/27>).

24. A medida para isso, prevista desde a Constituição de 1988, con-sistia na definição do teto salarial do funcionário público federal (comos respectivos subtetos estaduais e municipais). Para essa medida seradotada seria necessário, no entanto, a formulação de uma lei que exi-giria o concerto entre os três poderes. Junto com a reforma previ-denciária, o governo Lula acabou propondo limites máximos de remu-neração, o que foi objeto de negociação na votação em primeiro turnona Câmara dos Deputados.

25. Essa diferença no valor da isenção certamente irá provocar contes-tação na Justiça.

26. A cobrança de inativos, em nível estadual, é praticada em 7 dos 27Estados da Federação: no Amapá (8%, desde 1999), na Bahia (11%,desde 2001, sendo prevista a aplicação de 12% em 2004), Espírito Santo(10%, desde 1997), no Maranhão (de 8% a 10%, conforme o valor daaposentadoria, desde 1999), Minas Gerais (4,8%, desde 2002), MatoGrosso (de 8% a 12%, conforme o valor da aposentadoria, desde 1999.Diversos servidores obtiveram liminares na Justiça e tiveram sua con-tribuição restituída), Paraná (10%, desde 1998), no Rio de Janeiro, acontribuição de 11% foi suspensa pelo Tribunal de Justiça, Sergipe(10%, desde 2001). Como se pode ver, foi na esteira da discussão pro-movida pelo governo FHC sobre a taxação dos inativos que esses Es-tados passaram a adotá-la. Essa contribuição, no entanto, não pode serconfundida com a existente nos Estados do Rio Grande do Sul, SantaCatarina e São Paulo, que se destinam à pensão, tendo, portanto, fun-damento na doutrina previdenciária.

27. Sobre esse aspecto, mais uma vez se manifesta o uso da desinfor-mação: o governo omitiu, durante todas as discussões, o fato de osservidores contribuírem com 11% do total de seu provento. A contri-buição dos trabalhadores do setor privado da economia consiste de umaalíquota (7,65%, 8,65%, 9% ou 11%) aplicável a salários (atéR$ 560,81, de R$ 560,82 até R$ 720,00, de R$ 720,01 até R$ 934,67,de R$ 934,68 até 1.869,34, respectivamente). A contribuição do em-pregador é de 22% (incluído o acidente de trabalho) sobre o total dafolha de salários.

28. Para os novos servidores. Para os servidores atuais, é mantida aintegralidade desde que preencham, simultaneamente, as seguintescondições: idade de 55 anos (mulheres) e 60 anos (homens); tempo decontribuição de 30 anos (mulher) e 35 anos (homens); 20 anos de tra-balho no serviço público, 10 anos na carreira e 5 anos de efetivo exer-cício no cargo em que se der a aposentadoria. Os servidores que atin-girem o direito à aposentadoria até 31/12/2005, para cada ano anteci-pado em relação aos limites de idade, será efetuada uma redução de

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O GOVERNO LULA E A CONTRA-REFORMA PREVIDENCIÁRIA

3,5% no valor da aposentadoria. A partir dessa data, o redutor será de5%. No texto original, portanto antes da negociação, esse redutor se-ria aplicado a partir da aprovação da emenda constitucional. De qual-quer forma, alterou-se completamente a regra de transição aprovadano governo FHC: aquela exigia complementação de tempo de serviçopara a aposentadoria antes do limite de idade, essa outra utiliza comofator inibidor a redução do valor da aposentadoria, isto é, toca direta-mente na integralidade.

29. Para usar a expressão que quase já virou marca registrada do pre-sidente Lula (“estou convencido”).

30. Com exceção das estradas de rodagem, mas onde a concessão estáfechada.

31. Entre outros, ver Melman (2002).

32. Aprovado no XII Encontro Nacional do partido, realizado em Re-cife, em dezembro de 2001.

33. Para uma análise detalhada da “evolução” da política econômicado PT no governo Lula, ver Borges Neto (2003).

34. A reforma do governo Lula introduz o mesmo teto para o regimedos trabalhadores do setor privado e para o regime dos servidores. Sendoassim, eleva-se o teto no RGPS para R$ 2.400,00.

35. Assim Francisco de Oliveira caracterizou a proposta de reforma deLula em seminário realizado em 15 de agosto de 2003, em São Paulo,por motivo do centenário do XI de Agosto.

36. A integralidade é parte constitutiva das relações de trabalho dosetor público.

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___________________

ROSA MARIA MARQUES: Professora da PUC-SP, especialista em polí-ticas sociais e autora, entre outros, de Proteção Social e o Mundo doTrabalho (Bienal, 1997). Foi presidente da Sociedade Brasileira deEconomia Política (1998 e 2002).

ÁQUILAS MENDES: Professor de Economia da Faap-SP, vice-presidente daAssociação Brasileira de Economia da Saúde e coordenador daCoordenadoria de Gestão de Políticas Públicas da Fundação Cepam.

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A

Resumo: Este texto trata da gestão do sistema previdenciário brasileiro, identificando as posições em confron-to, em dois períodos: o imediatamente posterior à reforma de 1998, do governo FHC, e o do primeiro ano dogoverno Lula.Palavras-chave: política social; seguridade social; previdência social.

Abstract: This text deals with the administration of the Brazilian social welfare system, identifying the oppositepositions in two periods: the period subsequent to the 1998 Reform, in FHC government, and the first year ofLula’s government.Key words: social politics; social security; social welfare.

ADEMIR ALVES DA SILVA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 16-32, 2004

polêmica em torno de alternativas para a gestãodo sistema previdenciário remete aos fundamen-tos do papel do Estado e de sua relação com a

sociedade, pondo em questão o modelo de desenvolvimen-to econômico dominante na América Latina e no Brasilna última década do século XX. Sob a égide do chamadoprojeto neoliberal, malgrado todos os efeitos danosos re-gistrados particularmente no que concerne às políticassociais, esse modelo parece persistir ainda nos primeirosanos deste século.

Este texto1 aborda os principais aspectos do tema,identificando as posições em confronto, em dois pe-ríodos: o imediatamente posterior à reforma de 1998,do governo FHC, e o do primeiro ano do governo Lula.Embora as reformas desses períodos já estejam con-substanciadas em emendas constitucionais, as questõesrelacionadas à gestão, não apenas da previdência so-cial, mas da seguridade social brasileira como um todo,estão longe do cabal e duradouro equacionamento, oque atesta a pertinência e a oportunidade do presente es-tudo.

A PREVIDÊNCIA SOCIALPÓS-REFORMA DE 1998

A Europa e a América Latina têm sido palco de intensapolêmica e de medidas inovadoras em torno da reformade seus sistemas de seguridade social em razão da chama-da crise fiscal do Estado. De fato, o desequilíbrio dascontas públicas vem constituindo o grande argumento emfavor da redução das despesas previdenciárias, como – nocaso da América Latina e, particularmente, do Brasil –uma das formas de liberar recursos para o pagamento dejuros e encargos da dívida pública.

Associados à questão do déficit fiscal, comparecem odesemprego da década de 90 e as mudanças nas relaçõesde trabalho orientadas pelo critério da flexibilização, a parda crescente informalidade. As baixas taxas de crescimentoeconômico, com queda da arrecadação previdenciária,combinadas com o aumento da longevidade da populaçãotêm conduzido ao crescimento desproporcional douniverso de beneficiários inativos em face dos contri-buintes em atividade.

A REFORMA DA PREVIDÊNCIASOCIAL BRASILEIRA

entre o direito social e o mercado

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A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: ENTRE O DIREITO ...

As mudanças até agora ocorreram em contexto de ade-são ao ideário neoliberal, voltado à recuperação ou rea-firmação dos fundamentos da economia capitalista, sobhegemonia da fração financeira do capital, sendo o Esta-do sujeito e objeto da reforma. A ênfase no desequilíbrioorçamentário da seguridade e do próprio Estado privile-gia a criação de condições para a restauração das rela-ções econômicas que oneram o trabalho e desoneram ocapital ou que impedem a ampliação dos custos do siste-ma de seguridade pela taxação do capital, mediante me-canismos de transferência de renda, com um sentidodistributivo.

No Brasil, as novas regras derivadas da Emenda Cons-titucional – EC n. 20/98 representaram, com efeito, a im-posição de perdas aos segurados, uma vez que o eixo dareforma foi o aumento da idade média de concessão dobenefício, implicando extensão do período contributivo,redução dos gastos no curto prazo pela postergação daconcessão e redução dos gastos no longo prazo pela con-cessão por menor período (CECHIN, 2002, p. 23).

Trata-se de trabalhar mais, contribuir mais e recebermenos, estreitando a relação entre contribuições e benefí-cios pela nova regra de cálculo.

Parece haver consenso em torno das medidas moder-nizantes da gestão do sistema, da inversão do ônus da pro-va, do reconhecimento automático de direitos,2 da lei decrimes contra a previdência social,3 do aprimoramento dasmedidas de ampliação de arrecadação, da criação de me-canismos de atração para a filiação,4 do combate à sone-gação e à fraude, do fim dos privilégios e injustiças, danecessidade de ampliação da cobertura, do papel socialpela transferência de renda e combate à pobreza, ou mes-mo da necessidade de previdência complementar, entreoutros aspectos.

O acordo, todavia, logo se desfaz quando os argumen-tos em favor da continuidade e ampliação da reforma sãooutros, tais como: o da reprodução da desigualdade, dasolidariedade invertida, da esperteza corporativista doservidor público, do impacto de benefícios assistenciaissem base contributiva, do déficit incontrolável, da intro-dução de elementos atuariais no sistema por meio do fa-tor previdenciário, da modernização da gestão do sistemaou da superação da “gestão pouco técnica, arbitrária eintransparente” (SCHWARZER, 1999, p. 29).

A seguir, estes últimos argumentos, objeto de intensapolêmica, são analisados separadamente e, depois, emconjunto.

A Reprodução da Desigualdade

Segundo pesquisadores e técnicos da área,

nossos sistemas de proteção social foram mais mecanismosde reprodução da desigualdade estrutural de nossassociedades do que instrumentos de incorporação dossegmentos economicamente excluídos ou de redução dasdiferenças sociais. Com efeito, os gastos com os sistemasde aposentadorias e pensões, incluindo os regimes especiaisdos funcionários públicos, representam a parcela majo-ritária dos dispêndios sociais e ultrapassam, na grandemaioria dos países, 10% do produto nacional, ainda que acobertura em geral seja limitada e tenha fortes aportesfiscais. Não obstante tenha ocorrido um processo gradualde ampliação da cobertura, tanto horizontal como vertical,em geral, esta não abarca a maioria da população econo-micamente ativa. Na verdade, não chegamos a conhecer oEstado de Bem Estar Social. A cultura do privilégio nos levoumuitas vezes ao Estado do mal-estar social que, ao repro-duzir as estruturas de desigualdade do modelo de cres-cimento econômico, em geral não foi capaz de resolver osproblemas das maiorias [...] Com efeito, o custeio do sistemade seguridade social se baseia em recursos tributários ouparafiscais que incidem sobre diversas etapas da cadeiaprodutiva [...] incorporados ao custo da produção, gra-vando, portanto, o preço final de bens e serviços e reper-cutindo na competitividade da economia. Até que ponto sepoderá sacrificar a competitividade em nome da preservaçãoou da implementação de políticas de bem-estar social e vice-versa? (MORAES, 1999, p. 4).

Está aí uma questão que, certamente, divide os inter-locutores. Colocada como oposição entre competitivi-dade e bem-estar social, a seguridade social tende, semdúvida, a sucumbir sob a ditadura do mercado. Mas, sea questão central é, realmente, a ampliação da coberturae a reversão da desigualdade, então prevalece o princí-pio da seguridade universal, cuja aplicação prática de-pende do mercado – retomada do crescimento econômi-co, geração de empregos, filiação à previdência, aumentoda arrecadação e garantia de cobertura –, mas não se su-bordina a ele. Os aportes tributários e parafiscais nãorepresentam fenômeno externo, alheios e autônomos emrelação ao anseio por bem-estar social, mas como par-cela do excedente econômico apropriada pelo Estado,são constitutivos da riqueza social, patrimônio coletivo.E por que dissociar a política social da política econô-mica, opondo-as? Ou, ao contrário do que ocorreu aolongo da segunda metade do século XX, estaria descar-

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tada a perspectiva de compatibilização da seguridadesocial com a economia de mercado, como estratégia es-sencial de regulação social?

A Solidariedade Invertida

Quanto à solidariedade invertida, que se articula à re-produção da desigualdade, segundo o ex-ministro JoséCechin (2002, p. 9-13):

No caso do Brasil, caso não houvesse uma reforma nosistema previdenciário, estaria perpetuando-se uma perversaredistribuição de renda, via Previdência Social, em que osmais pobres financiavam os mais ricos. E um dos meca-nismos que possibilitavam essa espécie de solidariedade àsavessas era a aposentadoria por tempo de serviço. O perfildos beneficiários da aposentadoria por tempo de serviço erao de trabalhadores que tinham em média 48,9 anos,provinham, em grande parte, de postos de trabalho de melhorqualidade, com salários mais elevados e uma vida laboralmais estável, facilitando, portanto, a comprovação,especialmente em termos de documentação, dos requisitospara a obtenção da aposentadoria. O valor médio da aposen-tadoria era de R$ 515,71 – 2,3 vezes superior à média detodos os benefícios. [...] Em outro extremo [...] encontravam-se os trabalhadores que se aposentavam por idade, com,em média, 62,8 anos. Eram pessoas com menor poder aquisi-tivo e apresentavam dificuldade de comprovação do tempode serviço, devido à maior instabilidade de suas vidas labo-rais. Seus postos de trabalho eram mais precários, caracteri-zados por alta rotatividade, baixa qualificação e baixossalários. O valor médio da aposentadoria por idade, de R$145,18, era cerca de 3,6 vezes menor do que o valor médioda aposentadoria por tempo de serviço. Assim, configurava-se um sistema de solidariedade às avessas [...] só existenteno Brasil e em mais três países, Equador, Irã e Iraque.

Desnecessário reafirmar a necessidade de combater osmecanismos pelos quais os pobres financiam os ricos. Enão apenas no interior do sistema previdenciário que, ine-vitavelmente, constitui um reflexo da estrutura socioeco-nômica da qual se alimenta e que ajuda a reproduzir, estasim, profundamente desigual. Em outros termos, as con-dições de trabalho, de inserção ocupacional, de aferiçãode renda e de qualidade de vida na aposentadoria, queopõem “contribuintes mais ricos” a “contribuintes maispobres”, extrapolam o âmbito do sistema previdenciário,embora possam ser – e efetivamente o são – reproduzidaspor ele, como no caso em análise, ao exprimirem um pa-

drão de socialidade em si mesmo iníquo e reprodutor dadesigualdade.

Portanto, o dissenso não decorre do imperioso com-promisso ético-político de combater, no interior do siste-ma previdenciário, os mecanismos reprodutores da desi-gualdade, mas da tendência de se nivelar por baixo a pautade direitos sociais, nesse caso expressos em garantia derenda, a pretexto de combater privilégios, opondo traba-lhadores entre si e transferindo renda de uns para os ou-tros, preservando, em última análise, os ganhos do capi-tal. E quanto à transferência de renda, se é verdade quenão se pretende que os “mais pobres” continuem a finan-ciar os “mais ricos”, é de se perguntar em que medida areforma contribuiu, efetivamente, para inverter a situação,transferindo para aqueles o que não mais será pago a es-tes, além da possível redução da concessão de benefícios,“aliviando” o caixa do sistema por determinado período.

A Esperteza Corporativista do Setor Público

Quanto aos propalados privilégios e disfunções5 daprevidência do setor público, a campanha que se desen-volveu, na década de 90, contra o Estado – acusado deineficiente, corrupto, esbanjador de recursos e mau pa-trão – não poderia deixar de capturar, no argumento peladesarticulação do aparelho estatal e das políticas públi-cas em favor do mercado, a sua figura central – o servidorpúblico. Fortaleceu-se certa concepção de que o funcio-nário público é, por definição, um perdulário do dinheiropúblico, gozando de privilégios jamais sonhados pelo tra-balhador do setor privado.

Ora, não se trata de acabar com o serviço público – ouse trata? – a pretexto de combater a ineficiência e supri-mir privilégios. Sem dúvida, os favorecimentos e as dis-funções têm que ser enfrentados. Porém, a discussão quan-to ao serviço público é eivada de armadilhas, das quais épreciso desvencilhar-se.

Interesses puramente mercantis – e, portanto, privatis-tas –, atentos e fiéis às recomendações do Banco Mundiale do FMI, vêm permeando, na América Latina, os emba-tes em torno da reforma do Estado e da seguridade social.Ora, trata-se de combater o patrimonialismo que, histori-camente, marcou a cultura político-institucional, postulan-do a recuperação do papel do Estado na gestão do inte-resse público, orientada pela busca de excelência naqualidade de serviços prestados ao cidadão. Isso requerinvestimentos na capacitação e consolidação de quadrosde servidores que estejam aptos a responder pela opera-

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A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: ENTRE O DIREITO ...

ção de agências governamentais articuladas em uma redede apoio ao cidadão – portador de direitos civis, políticose sociais – caracterizada pela qualidade e resolubilidadedos serviços prestados. O que implica, evidentemente,combater a corrupção e a ineficiência, ações que não sig-nificam a desqualificação do que se faz para justificar aredução de gastos em relação àquilo que, na realidade, nãose quer fazer – entenda-se –, favorecendo o mercado.

Com efeito, será necessário suprimir privilégios, criarcondições para maior eficiência dos serviços e rever ve-lhas concepções em torno da constituição de feudos nointerior do serviço público. Trata-se, pois, de qualificar oservidor público pelo concurso, pela carreira, pela avalia-ção de desempenho, pela política salarial, pela seguridadesocial, pela preservação de direitos adquiridos.

Sob tal perspectiva, embora temporariamente descar-tada pelo governo, a proposta de unificação de regimes –o do setor privado e o do setor público – teria que consi-derar os critérios que, até agora, vêm orientando a rela-ção do servidor público com o seu trabalho e com a socie-dade: o ingresso por concurso, a investidura em um cargopúblico com direitos e deveres estabelecidos em um esta-tuto da categoria, a participação na gestão de negócios deinteresse público, a estabilidade do vínculo em face daalternância das coalizões governamentais, a ascensão pormérito na carreira.

A contratação de servidores públicos pelo Regime Geralda Previdência Social – RGPS, conforme prevê a Lein. 9.962/2000, submete-os às regras do setor privado, ouseja, com instabilidade no emprego e redução de venci-mentos na aposentadoria. De novo, contrapõem-se os tra-balhadores e agora sob condições antiisonômicas, a pre-texto de combater a desigualdade. E, em ambos os casos,os trabalhadores são forçados a migrar para a previdênciacomplementar privada. No mesmo serviço público have-rá funcionários estáveis, com direito a aposentadoria in-tegral, e outros instáveis, sem vencimentos integrais naaposentadoria, reafirmando a desigualdade dentro do pró-prio serviço público.

É certo que os diversos regimes municipais ou esta-duais deverão ser submetidos a revisão, sob o princípioda responsabilidade fiscal. E em alguns casos terá mes-mo que ser redimensionada a contribuição previdenciáriados servidores ativos.6 Mas, isso não significa com-pactuar com medidas tendentes ao confisco, seja pelaredução dos benefícios, seja pela cobrança de contribui-ção dos inativos, até porque o servidor público, ao con-trário do empregado do setor privado, não dispõe da

poupança compulsória representada pelo FGTS. Trata-se, no caso do FGTS, de uma reserva que, se não utiliza-da para outros fins durante o período laboral, poderácomplementar a renda na aposentadoria, o que tem sidoum dos argumentos para a manutenção dos vencimentosintegrais do servidor público inativo, que não conta comessa poupança.7

O Impacto de Benefícios Assistenciais semBase Contributiva

O impacto negativo de benefícios assistenciais sem basecontributiva – o Benefício de Prestação Continuada – nascontas previdenciárias é tributário da concepção de pro-teção social frente ao risco, reduzida à noção de segurosocial, dependente das oscilações do mercado, em geral,e do mercado de trabalho, em particular.

Um dos avanços da Constituição Federal de 1988 foia inclusão da assistência social no elenco dos direitossociais constitutivos da cidadania – compondo, com asaúde e a previdência, o Sistema de Seguridade Social.Isso é visto por segmentos progressistas como assisten-cialização8 da previdência, e pelos liberais, como agra-vante do déficit, a demandar aportes fiscais. No segun-do caso, os argumentos não conseguem disfarçar aintenção restauradora do mérito individual como garan-tia do acesso a serviços e benefícios, sob a lógica mer-cantil. Há um discurso recorrente contra a incorporaçãoda assistência social ao Sistema de Seguridade Social,como ocorreu na Constituinte de 1988. Trata-se daassistência social “pura e simples” (LAHÓZ, 2003,p. 35-ss), que, segundo os defensores da previdência re-duzida a seguro, deve ser desmembrada da seguridadesocial, especialmente pelo fato de ser um benefício semcontribuição prévia.

Ora, o sistema de seguridade social brasileiro, malgradotratar-se do que apresenta a maior cobertura social nocontinente latino-americano, é

tão acanhado, [...] composto apenas de três políticassociais [...] e sem as necessárias unicidade e orga-nicidade conceitual, institucional e financeira (PEREI-RA, 2000, p. 85).

Então, é preciso resistir à tendência de dissociar a po-lítica social da política econômica e a seguridade socialdo mercado. A seguridade social não pode sucumbir àspressões em favor da liberdade do mercado em face dosconstrangimentos – para este último – de ter que finan-

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ciar e manter a seguridade social, especialmente em seuelenco de benefícios “não contributivos”, pelo que repre-sentam como mecanismos de transferência de renda paraos mais pobres. Contributivos ou fiscais, os recursos cons-tituem parcela da riqueza social, cuja gestão e distribui-ção deve responder a critérios de solidariedade, de uni-versalidade e de justiça social.

Segundo o ex-ministro José Cechin (2002, p. 39-40,grifo meu),

evoluiu-se para o conceito de Previdência como seguro so-cial [...] Previdência é de caráter contributivo, tanto no setorprivado quanto no serviço público. O acesso a um benefíciopressupõe o pagamento dos prêmios do seguro. O esquemaque melhor implementa esta idéia é o modelo de capitali-zação individual do estilo chileno [...] Há muito por se fazerpara que o sistema previdenciário siga de perto critérios deseguro social, que garantam o equilíbrio atuarial.

Na realidade, houve um retrocesso. Reduzir seguridadea previdência e esta a seguro implica passar a utilizar noseu âmbito todas as estratégias tipicamente mercantis,quais sejam: selecionar riscos de menor custo, recusarcertos riscos como objeto de seguro, transferir riscos eprejuízos para o “segurado”. Em suma, trata-se da substi-tuição da seguridade pela incerteza em face do risco – ouseja, mais um risco –, prevalecendo o “salve-se quem pu-der”, sob a égide da rentabilidade, no âmbito individual,sem as garantias de um pacto coletivo.

Quanto ao paradigma chileno, não adianta tergiversar:

Contrariamente ao que se tem difundido, os dados maisrecentes sobre a experiência da reforma no Chile, relativosao ano de 2001, evidenciam fortemente a sua inadequaçãocomo modelo a ser seguido: o gasto público elevou-se emfunção do chamado ‘custo de transição’, a cobertura previ-denciária reduziu-se, o custo administrativo previdenciárioaumentou e o valor dos benefícios oscila de acordo com aflutuação do mercado financeiro, gerando incertezas. Alémdisso, no Chile, a alta concentração dos ativos previden-ciários em mãos de poucas administradoras privadas estágerando oligopolização do mercado (GUSHIKEN et al.,

2002, p. 14, NR 6).

Em outros termos,

a solução chilena parece não ser a mais eficiente.Mas, com certeza, ela é caríssima e um meganegó-cio para o setor financeiro à custa do contribuinte(SCHWARZER, 1997).

Definitivamente – a história já demonstrou à exaus-tão –, aumento de estoque de capital não representa, ne-cessariamente, melhoria de condições de vida e bem-es-tar social.9

Déficit Incontrolável

A recorrente questão do déficit, na verdade o maiormotivo declarado para a reforma, também é objeto dedissenso, desde a concepção até a base de dados.

Segundo o Ipea (2002, p. 15), o déficit foi de R$ 13,3bilhões em 2001, ou seja, 1,08% do PIB. Ocorre que oRGPS foi superavitário durante longo período, até 1995,quando se iniciou a tendência de déficits (GUSHIKEN ETAL., 2002, p. 13, NR 5). De um superávit de R$ 16,6 bi-lhões em 1988, registrou-se um déficit de R$ 9,1 bilhõesem 1998 (CECHIN, 2002, p. 14).

A redução do déficit nos últimos anos é apontada comoefeito da reforma, combinada com outros fatores. Segun-do Pinheiro (2001, p. 34), de janeiro a outubro de 2001, odéficit foi 6,6% menor que o de 2000, considerada tam-bém a recuperação da economia no período, com maiormassa salarial e, conseqüentemente, maior base de arre-cadação.

Afinal, a reforma de 1998 reverteu a tendência de dé-ficit? Há mais dúvidas – no máximo, projeções – do quecertezas.

No caso da previdência do servidor público federal,

a tendência é de decréscimo no déficit. Hoje, nós estamosno fundo do poço em relação à previdência do setor público.Para o futuro, considerando que não vai mais haveringressos no sistema, a tendência é a diminuição do déficit.É lógico que isso ocorrerá em um período muito grande – aprojeção se alastra até 2070. Mas, nesse período, que vaiaté 2015, o déficit fica mais ou menos estável, talvezcrescendo um pouco, mas a partir daí deve diminuir(PINHEIRO, 2001, p. 40).

Já no Regime Geral de Previdência Social,

as medidas implementadas proporcionaram a melhora naperformance da arrecadação e o aprimoramento dosmecanismos de recuperação de créditos, além de teremcondicionado a redução da taxa de crescimento da despesapara patamares inferiores aos observados anteriormente.Neste sentido, os resultados financeiros foram alterados demaneira consistente no curto e longo prazos, revertendo a

trajetória explosiva do déficit previdenciário. Hoje, pode-se

dizer que o déficit do RGPS no curto prazo é relativamente

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controlável, a depender principalmente de variáveispolíticas, como o aumento do salário real para o saláriomínimo, e macroeconômicas, como o ritmo de crescimentodo PIB [...] a relação déficit/PIB apresentará, no períodoentre 2003 e 2005, uma queda em função do rápidocrescimento esperado para o PIB. A partir de 2006, estarelação apresentará uma trajetória de crescimento,estabilizando-se em torno de 1,20% entre 2013 e 2021. Casonão houvesse reforma, o déficit chegaria a 3,6% do PIB nomesmo período (CECHIN, 2002, p. 25, grifos meus).

Portanto, registra-se uma tendência de reversão, tor-nando controlável o déficit, embora persistente.

[...] a previdência social fechou o primeiro ano pós-reformacom um déficit de R$ 10,07 bilhões, equivalente a 0,9% doProduto Interno Bruto – PIB. Esse resultado foi consideradobastante satisfatório, pois estava sendo a primeira vez queo déficit, enquanto proporção do PIB, registrava queda emcinco anos. Contudo, em 2001, o déficit novamente aumentou(R$ 12,8 bilhões), representando 1,08% do PIB (MARQUES

et al., 2003, p. 116).

Todavia, põe-se em questão o próprio conceito dedéficit utilizado pelo Ministério da Previdência e As-sistência Social – MPAS, enfocando setorialmente aprevidência e não a seguridade social em seu conjunto.As citações que se seguem, embora longas, são fun-damentais:

Considerando esse conceito de proteção social (o daConstituição de 1988), não seria apropriado calcular

isoladamente as contas da previdência social, tal comoprevisto na Lei de Responsabilidade Fiscal. [...] seuresultado negativo é reflexo, antes de tudo, do desempenhoda economia brasileira que, se voltasse a crescer e a geraremprego no mercado formal de trabalho, superaria rapida-mente sua situação de déficit. Essa argumentação não des-considera, entretanto, que, em termos contábeis, sejaapurado o resultado da previdência social. O que se estranhaé o fato de o governo federal nunca se preocupar emcontabilizar e divulgar para toda a sociedade o resultado do

conjunto da seguridade social. Em 1999, por exemplo, anoem que a reforma foi aprovada e a previdência registravaum déficit equivalente a 1% do PIB, a seguridade socialapresentava um superávit de R$ 16,3 bilhões, corres-pondendo a 1,7% do PIB. Em 2001, adotando-se o mesmocritério, o superávit da seguridade social aumentou paraR$ 32,1 bilhões, cerca de 2,6% do PIB (MARQUES et al.,

2003, p. 117, grifos meus).

A Constituição de 88 determina que as contribuições sociais,ou seja, Cofins sobre o faturamento das empresas, a CSLL– Contribuição sobre o Lucro Líquido, e de empregados eempregadores sobre a folha salarial devem se destinarexclusivamente para o financiamento da seguridade socialque, no Brasil, congrega as ações de saúde, assistência eprevidência social. A seguridade não inclui os benefíciospropiciados a servidores públicos regidos por estatutospróprios. Considerando essa definição, o Brasil teria um

superávit da seguridade, não fazendo sentido falar em déficit

da previdência. [...] O texto constitucional prevê, ainda, senecessário, a utilização de recursos do Orçamento Fiscalpara completar o montante necessário ao financiamento dosistema, ainda que o Orçamento da Seguridade Social sejaplenamente suficiente para arcar com o custeio dos seusprogramas fins. Assim, ao se falar no déficit ou superávit[...], seria necessário considerar as receitas e despesas deste

conjunto e não somente a arrecadação do INSS e as

respectivas despesas com benefícios previdenciários e assis-

tenciais (ANFIP, 2002, p. 14;24, grifos meus).

Não existe déficit, porque tem de computar nas receitas ascontribuições que foram criadas para isso. Se computar R$45 bilhões de Cofins, quase R$ 9 bilhões de ContribuiçãoSocial sobre o Lucro Líquido, já não há déficit. Em 2001,teria tido um superávit de R$ 34 bilhões na Previdência. Secomputar ainda a contribuição da União que não é feita, aí éque não tem déficit mesmo. Tem que apurar isso. Se pegaremos desvios, dinheiro que foi para obras10 (grifos meus).

Se considerada em seu conjunto – setor privado e setorpúblico –, a seguridade é superavitária e estável. Em 2002,o superávit foi de R$ 15 bilhões (MARQUES, 2003;TAVARES, 2003).

Além da questão quanto ao conceito ou critérioutilizado para contabilizar o déficit, é impossível chegara conclusão inequívoca sobre o comportamento dosbenefícios e afirmar que a tendência de reversão do déficit– se admitida – seja devida ao impacto da reforma ouque expresse o crescimento vegetativo da demanda –contida ou antecipada – de benefícios, em face desituações atípicas desde 1986: as novas regras de cálculoe de acesso a partir da Constituição Federal de 1988, comaumento de benefícios em 1992-93 e a “corrida àaposentadoria” em 1997, face às expectativas quanto àsmudanças que ocorreriam a partir de 1998. E, con-siderando-se as três categorias de demandantes debenefícios – os que já rece- biam benefícios antes da

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reforma; aqueles em transição sob as regras anteriores;e os ingressantes sob as novas regras –, esperava-semesmo pequeno impacto da reforma sobre os benefícios,no curto prazo (MARQUES et al., 2003).

Parece que relativo sucesso pode ser constatado pelolado do aprimoramento dos mecanismos de arrecadação,tais como: a retenção, que consiste na cobrança de contri-buições de empresas terceirizadas; o recolhimento de de-pósitos judiciais na Justiça do Trabalho; a renegociaçãoda dívida de Estados e Municípios; os certificados da dí-vida pública como instrumentos de recuperação de crédi-to (PINHEIRO, 2001, p. 29).

Entretanto, tão remotas quanto atuais, tão recorrentesquanto jamais superadas, recolocam-se as questões dodesvio de recursos11 e de sua má gestão, das fraudes e dasonegação. E não é surpreendente que, no encalço daspropostas de reforma, reacenda a proposta de auditoriaexterna do sistema.

A auditoria deve combinar-se, evidentemente, commedidas administrativas, judiciais e – quando for o caso– policiais para combater o desvio, a fraude,12 a sonega-ção13 e a evasão de recursos constitutivos do patrimôniocoletivo da seguridade social.

Mas o principal desvio refere-se ao pagamento dos ju-ros das dívidas interna e externa,14 o que remete à buscade condições para a renegociação dos débitos, extrapo-lando a alegada crise da previdência.

Impacto do Fator Previdenciário

Quanto ao impacto do fator previdenciário15 há, igual-mente, divergentes avaliações. Em face da resistência desegmentos do Congresso Nacional ao aumento da idademínima para aposentadoria, na ocasião da discussão doprojeto de reforma, o Executivo propôs – e, então, apro-vou – o fator previdenciário. Do ponto de vista do gover-no, tratou-se de um grande avanço em favor do equilíbrioatuarial entre os benefícios e as contribuições. Do pontode vista de organizações representativas de trabalhado-res, o fator representou um confisco parcial do valor daaposentadoria, impondo perdas aos segurados, no caso dosetor privado.

Esse fator prejudica os mais pobres e as mulheres, além deestabelecer em relação ao cálculo anterior um redutor de30% nas aposentadorias, obrigando todos a trabalharemmais para garantir o mesmo nível de aposentadoria da leianterior (CUT, 2002).

O achatamento prejudica, principalmente quem começa atrabalhar mais cedo, o que ocorre com a maioria da massatrabalhadora. A alteração é profunda e afeta homens emulheres. Só que as mulheres perdem mais, caso seaposentem após cumprir 30 anos de contribuição, tempomínimo exigido, terão uma perda de até 50% do valor dobenefício a que teriam direito. Serão obrigadas a renunciarà justa aposentadoria e trabalhar pelo menos 10 anos a maispara recuperar o que está sendo retirado. Os homens tambémperdem muito. Mesmo que tenha cumprido os 35 anos decontribuição, exigidos como tempo mínimo, o trabalhadorque tenha começado sua vida profissional aos 15 anos, aos50 anos, tendo completado o tempo de contribuição, perderá30% do valor no seu benefício. Para recuperar a perda teráque trabalhar mais cinco anos (CUT, s.d.).

Trata-se, portanto, de um redutor (PENNA, 1999), obri-gando todos a trabalhar mais. Pelo fator previdenciário,com o aumento da expectativa de vida, cai o valor da apo-sentadoria. O fator impõe o adiamento da aposentadoria.A postergação significa que quanto mais velho o traba-lhador, mais ele ganha – em princípio –, por menos tem-po. E quanto mais novo se aposenta, menos ganha, pormais tempo. Então, a longevidade é uma punição. Emoutros termos, significa mais anos de vida com menos di-nheiro no bolso. E a aposentadoria por tempo de serviço– e de contribuição, portanto – foi severamente desvalo-rizada.

A introdução do fator previdenciário no cálculo daaposentadoria parece estar longe de equacionar o problemaque a motivou, uma vez que não há suficientes evidênciasde que se esteja em vias de obter o alegado equilíbrioatuarial, a despeito da redução dos futuros benefícios.16

É certo que

apesar de reduções de gasto diminutas nos primeirosanos, os gastos no médio e longo prazo após aaprovação da emenda são maiores do que se nada fossefeito (OLIVEIRA, 2000).

Vale destacar que os “ganhos” com a eliminação daaposentadoria proporcional e a postergação da ap-sentadoria, então com salário integral, são neutralizadospor um acréscimo de 42,86% ao valor médio dos bene-fícios. Além disso, a tentativa de implantar a contribuiçãodos inativos, derrubada por uma liminar no STF, invia-bilizou judicialmente a referida cobrança até para algunsEstados e municípios que já a praticavam. Ao contráriodo que foi anunciado – maior ganho para quem postergara aposentadoria –, o fator previdenciário implicará perdas

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da ordem de 40% quando aplicado na integralidade (apóscinco anos do período de transição, portanto, a partir de2004), em função da “elevadíssima taxa intertemporal comque as pessoas descontam valores futuros” (OLIVEIRA,2000, p. 2).17

Então, por que o fator previdenciário é perverso? Por-que impõe o confisco e posterga, sem resolver, o alegadoproblema, pelo menos na forma em que tem sido formula-do e apresentado à sociedade por representantes do go-verno e pela mídia conservadora.

Modernização da Gestão

A modernização da gestão do sistema é outro pontocontrovertido. Às declarações dos ministros do governode Fernando Henrique Cardoso é possível contrapor aspreocupações do ministro do governo de Luís Inácio Lulada Silva:

Pretendemos fazer uma análise profunda do gargalotecnológico da Dataprev. Para o tamanho das informaçõesdo INSS – são 21 milhões de benefícios e mais de 50 milhõesde contribuintes, entre pessoas físicas e jurídicas –, a Dataprevtem um parque tecnológico sucateado, funcionários mal remu-nerados e uma situação de relacionamento com o INSS tensa,por causa das falhas. Às vezes, as agências ficam duas horassem sistema porque o sistema não agüenta a demandanacional. Os bancos investem centenas de milhões de reaisem informática para ter controle contra fraudes e mesmo assimsão objeto de fraude. Esse tipo de investimento, no Ministério,não vem ocorrendo de forma sistemática.18

Ou seja, o sistema de processamento, nas condições aquiapontadas, favorece a fraude e não assegura a agilidade, aresolubilidade, a confiabilidade e a transparência das in-formações.

E o próprio quadro de pessoal é insuficiente para a açãofiscal. Segundo a Associação Nacional dos Fiscais deContribuições Previdenciárias – Anfip (2002, p. 46-47):

cada fiscal arrecada o equivalente a R$ 2,7 milhões por ano,segundo dados da Diretoria de Arrecadação e Fiscalizaçãodo INSS. Com a quantidade atual de cerca de 3.800auditores-fiscais, o resultado da ação fiscal – RAF chegoua R$ 9,4 bilhões no primeiro semestre de 2002, quantiaequivalente a cerca de 30% da arrecadação líquida total.Com 8 mil, o RAF poderia alcançar um montante duas vezesmaior, contribuindo para a melhoria do equilíbrio financeirodo sistema.

De qualquer modo, a perspectiva de realização de con-curso para a contratação de 3.800 funcionários pareceequacionar, ainda que parcialmente, o problema, consi-derando-se os 18 anos decorridos sem qualquer concur-so para ingresso no quadro de pessoal da Previdência So-cial.19

Admitindo-se a necessidade da reforma – ou de suacontinuidade –, quais seriam os parâmetros? O que é pos-sível depreender da análise da posição dos últimos minis-tros e outros integrantes da gestão de Fernando HenriqueCardoso, no âmbito da Previdência Social?

Para Pinheiro (2001, p. 39), no caso do servidor públi-co, “a bomba está desarmada para o futuro”, uma vez queestão equacionados problemas de fluxo (novos servido-res ingressarão pelo RGPS, estatutários terão a previdên-cia complementar em substituição à aposentadoria inte-gral), mas ainda é necessário equacionar os problemas deestoque relacionados aos atuais ativos e aposentados: au-mentar a contribuição dos ativos, cobrar contribuição dosinativos, punir os maus dirigentes conforme a Lei de Res-ponsabilidade Fiscal, criar incentivos para desistência daaposentadoria integral e migração para o sistema comple-mentar. De modo geral, seria necessário, segundo o au-tor: aprimorar o sistema do RGPS, acabar gradualmentecom a previdência do setor público e desenvolver o siste-ma de previdência complementar.

José Cechin (2002, p. 52), último ministro da Previ-dência da gestão FHC, defende a seguinte agenda para acontinuidade da reforma: revisão das alíquotas decontribuição; estímulo à postergação das aposentadoriaspor tempo de contribuição; especialização das alíquotasem financiamento de benefícios de risco (doença, invali-dez, acidente e morte em serviço) e financiamento de bene-fícios programáveis (aposentadoria); revisão do acúmulode benefícios ou de benefício e salário; separação do finan-ciamento dos benefícios sem a suficiente contrapartidacontributiva; revisão das idades da aposentadoria rural.

Ou seja, o que se preconiza é a unificação dos atuaisregimes de gestão pública, o fortalecimento do seguroprivado (inclusive, abrindo à concorrência a cobertura doseguro de acidentes de trabalho) sob o pretexto da rendacomplementar e, em suma, a continuidade de imposiçãode perdas aos trabalhadores urbanos e rurais: trabalharmais tempo (idade mínima na cidade, revisão da idade nocampo e postergação da aposentadoria), pagar mais (re-visão de alíquotas de ativos, cobrança de inativos) e re-duzir os ganhos (fim da aposentadoria integral, revisãodo acúmulo de benefício e salário). E fica claro o retro-

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cesso na concepção de seguridade social (separação dosbenefícios que não tenham suficiente contrapartidacontributiva).

Ora, a defesa da previdência social solidária, de ges-tão pública, democrática e universal, significa postularmuito mais do que ela é hoje: cobertura restrita e benefí-cios equiparados – para 65% dos beneficiários – ao salá-rio mínimo, que, sabidamente, está muito longe de ser su-ficiente para suprir necessidades humanas vitais de umaunidade familiar que não disponha de outras fontes derenda. E, dentre os argumentos em favor da reforma, omais facilmente defensável é o que se refere à necessida-de de expansão da cobertura.

A atual cobertura é de 39,9% da População Economi-camente Ativa – PEA (MPAS, 2002, p. 17), sendo de77,3% a cobertura de pessoas com mais de 60 anos (IPEA,2002, p. 15). Estão fora da previdência 40,2 milhões depessoas, ou seja, 60% da população ocupada no setor pri-vado (CECHIN, 2002, p. 41). Desse universo de não fi-liados que poderiam, em princípio, filiar-se, 11,3 milhõessão trabalhadores por conta própria, domésticos e empre-sários e outros 7,5 milhões ganham mais de um saláriomínimo, sem carteira assinada, nos setores de serviços,construção civil e agricultura (CECHIN, 2002, p. 42). Tra-ta-se, portanto, de pouco para poucos. A maioria está forado sistema previdenciário.

A POLÊMICA PRÉ-REFORMA – 2003

Após a posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva,a mídia desencadeou um movimento a favor da reformarealizada com a Emenda Constitucional n. 20/98, fazendorecorrentes menções ao próprio programa de governo,no qual a reforma previdenciária figurava entre asprioridades.

Acusado de ser o “maior ralo de dinheiro público dopaís” (EXAME, 2003) ou causador do “desequilíbrio dascontas públicas” (VEJA, 2003), o crescimento do déficité o recorrente argumento em favor da reforma. E, de novo,o alvo é o chamado desequilíbrio atuarial do sistema,20

seja pela queda do número de contribuintes em relaçãoaos beneficiários inativos, pelos privilégios do sistema,pela incorporação à conta da previdência de benefíciosassistenciais não contributivos, ou, especialmente, pelaaposentadoria integral do servidor público. O foco foi,sem dúvida, a aposentadoria do servidor público.

Em janeiro de 2003, o Poder Executivo encaminhouao Congresso Nacional uma proposta de emenda à Cons-

tituição. É possível identificar os pontos centrais da polê-mica, a partir de declarações do ministro Ricardo Berzoiniquanto aos principais aspectos da reforma preconizada pelogoverno.

A proposta consistia, inicialmente, em regime únicopara o setor privado e público, teto único, aposentadoriacomplementar por meio de fundos de pensões, contribui-ção de 20% sobre o faturamento e não sobre a folha sala-rial das empresas, regra de transição pro rata 21 e contri-buição dos inativos. Mas a contribuição de inativos seriadescartada em face da inevitável querela – de difícil su-peração – desencadeada quanto à argüição de inconstitu-cionalidade da medida.

Após a intensa polêmica que marcou o primeiro semes-tre de 2003 – incluindo-se as manifestações de servidorespúblicos contra o projeto de reforma, as pressões dos go-vernadores, os recuos e reposicionamentos do governofederal –, o relatório final da comissão parlamentar defi-niu os seguintes pontos:- aposentadoria integral, desde que cumpridos os requi-sitos de dez anos na carreira, 20 anos de serviço público,35 e 30 anos de contribuição e 60 e 55 anos de idade (parahomens e mulheres, respectivamente);

- benefício calculado pela média das contribuições paraos servidores que não cumprirem as exigências para aaposentadoria integral;

- teto de salário e aposentadoria de R$ 17.170,00 para aUnião, para Estados e municípios, subteto salarial igualao salário do chefe de cada um dos três Poderes, e, para oJudiciário Estadual, teto de 75% do salário do ministrodo STF;

- teto de R$ 2.400,00 para ingressantes no serviço públi-co e trabalhadores da iniciativa privada;

- aposentadoria complementar por meio de fundo de pen-são;

- extinção da aposentadoria proporcional para servido-res que ingressaram até 1998;

- idade mínima de 55 anos para a mulher e de 60 anospara o homem;

- pensões integrais até o valor de R$ 1.058,00 e descontomínimo de 30% sobre a parcela excedente;

- fim da paridade e correção dos benefícios pela inflaçãopara servidores que não cumprirem requisitos para apo-sentadoria integral;

- paridade parcial para aposentadorias integrais com cor-reção restrita ao salário-base;

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- contribuição de 11% de inativos atuais e futuros sobrea parcela de benefícios superior a R$ 1.058,00;

- alíquota mínima de contribuição de 11% para União,Estados e Municípios.22

Com a proposta de extinção da aposentadoria integraldo servidor público, objeto de intensa polêmica, a noçãode direito revelou-se inteiramente dependente da circuns-tância histórica que, ao contrapor interesses e cotejar po-sições na arena jurídico-política, remete, inelutavelmen-te, aos fundamentos da ordem econômica e social.

Ora, a questão da sustentabilidade do sistema previden-ciário não se esgota na esfera do direito, que, se por umlado representa garantias sob a tutela jurisdicional, por outronão se desvencilha dos mecanismos fundamentais de repro-dução e manutenção da ordem socioeconômica. Em outrostermos, não é possível abstrair o direito da base material dasociedade. Não é outro o sentido da polêmica que opõedireito presumido a direito adquirido ou direito acumula-do a direito consolidado, a pretexto de preservação ou deextinção da integralidade da aposentadoria. Está em ques-tão, simplesmente, a irretroatividade da lei.

A insegurança no plano das relações econômicas ex-pressa-se, então, no plano jurídico-político, na forma deinstabilidade de regras, violação ou revogação de princí-pios constitucionais, esgarçamento da expectativa de di-reito como marca do Estado democrático. Trata-se, a ri-gor, da fragilidade de um contrato social à mercê dasexigências da política econômica ou fiscal em vigor.

De novo, procura-se opor os trabalhadores – os do se-tor privado aos do setor público.23 Tenta-se, ainda, nive-lar por baixo os direitos sociais, criando anteparos à ele-vação de custos para o capital, na forma de parcela doexcedente econômico apropriada e gerida pelo Estado,pelos instrumentos fiscais, tributários e contributivos.

É o que se demonstra, a seguir, cotejando as propostasque comparecem ao debate. Após apresentação geral daproposta de reforma, discorre-se sobre as posições iden-tificadas na imprensa conservadora e nas organizaçõesrepresentativas de trabalhadores de diferentes perfis. Noprimeiro caso, foram selecionadas duas matérias, uma darevista Veja e outra da revista Exame. No segundo caso,arrolaram-se as posições da Força Sindical, da CentralÚnica dos Trabalhadores, da Federação Nacional de Ser-vidores do Judiciário Federal – Fenajufe, da AssociaçãoNacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias –Anfip e do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais daReceita Federal – Unafisco Sindical.24

A imprensa conservadora insiste no argumento da in-viabilidade do sistema público de repartição e recupera omérito individual: “cada trabalhador financia seu pró-prio futuro e recebe de acordo com suas contribuições”(AMARAL; BARELLI, 2003), segundo a lógica mercan-til, defende o regime de capitalização e exige que o Esta-do faça a reforma e promova o “ajuste fiscal duradouro”,de modo a “honrar compromissos, fazer cair o risco-país,reduzir o juro interno, retomar o crescimento sustentado”(LAHÓZ, 2003).

Para o mercado, em outros termos, a reforma é impor-tante para evitar o colapso fiscal do país; dar visibilidadede longo prazo às contas brasileiras; tirar o país da zonade risco de moratória da dívida; reduzir a avaliação derisco do país; abrir espaço para cortes nas taxas de juros;criar um ambiente mais favorável ao investimento; per-mitir à economia crescer sem causar impacto na inflação(OTTA; MURPHY, 2003).

Qual é a posição das organizações representativas dostrabalhadores?

Segundo a Unafisco Sindical, a reforma tributáriadeveria preceder a reforma previdenciária. O sistema tribu-tário é concentrador de renda, onera a classe média e privi-legia o capital com a “pouca tributação sobre o patrimônioe isenção do juro sobre o capital próprio”. O alegado déficitda previdência precisa ser depurado de valores comodespesas de pessoal. De novo, a proposta de reformaorienta-se pela lógica fiscal e do capital financeiro.25

Para a Anfip (2002), o debate atual oculta o fato de aprevidência pertencer ao Sistema de Seguridade Social.E os maiores problemas para a geração de receitas sãoas renúncias fiscais; as perdas de arrecadação; asonegação fiscal pelo subfaturamento; o estoque da dívidaprevidenciária, com cerca de R$ 125 bilhões da dívidaativa em dezembro de 2001; a debilitação das relaçõesde trabalho; a queda da massa salarial ou a reduzida basede contribuintes regulares e a exclusão da proteção pelalimitação da renda e pela imagem negativa da previdên-cia. Em face de tal situação, as condições para a manuten-ção do sistema seriam: aumento do número de contri-buintes; maior estabilidade das relações de trabalho como crescimento do assalariamento e a regularização decontratos de trabalho; retomada do crescimento do PIB;revisão dos métodos gerenciais; fiscalização da arreca-dação; revisão do regulamento de benefícios; garantiado caráter redistributivo e garantia de direitos sociais,sob pena de elevação da desigualdade já existente noBrasil. Para a Anfip, portanto, a previdência pública é

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viável e o mais promissor mecanismo de articulação entrea economia e a sociedade para promover o desenvolvi-mento. Trata-se de resgatar o papel da seguridade, melho-rando os serviços, concebendo a proteção social comonúcleo da estratégia para a retomada do crescimentoeconômico.

A Fenajufe (2002), com base em ampla análise dos con-textos latino-americano e brasileiro em que se realizamreformas, declara-se contrária à política de privatização,aponta o “declínio do neoliberalismo como saída para oimpasse” da crise capitalista contemporânea e, afinal, re-afirma os princípios da irredutibilidade salarial, da pari-dade entre ativos e inativos, do custeio parcial por em-pregadores privados ou estatais e da responsabilidadeintegral e absoluta do Estado pela manutenção do sistemae pela garantia de um direito social coletivo. Postula, por-tanto, um sistema de previdência social público, único,sob gestão estatal – democrática e transparente – comparticipação de representantes dos trabalhadores nos con-selhos de administração, assegurada a integralidade dosproventos na aposentadoria.

Contestando recomendações do Banco Mundial e im-posições do FMI quanto à previdência nos acordos paraconcessão de empréstimos, a CUT (2002) preconiza umaprevidência geral pública, de gestão paritária, com tetode 20 salários mínimos tanto para o setor privado quantopara o setor público e complementação por meio de fun-dos de pensão. Reitera o combate à sonegação e a renún-cia previdenciária em favor das falsas “filantrópicas”.Defende a gestão pública do Seguro de Acidentes do Tra-balho – SAT e questiona a proposta de fixação de idademínima sem considerar realidades regionais e caracterís-ticas do trabalho realizado. Propõe ainda a ampliação dosbenefícios assistenciais. E, sob a perspectiva da defesa daprevidência pública e solidária, propõe a revogação da ECn. 20/98 e as leis subseqüentes da reforma (CUT, 2002).

O que se depreende da análise das manifestações aquiconfrontadas? De um lado, a crítica ao sistema público deprevidência social, acusado de injusto e perdulário, agoradestacando o regime dos servidores públicos; a exigênciade ajuste fiscal; a pressão para desonerar o capital pelaredução da carga tributária ou para esconjurar pretensasampliações do chamado “custo Brasil”, a pretexto de ge-ração de novos empregos; a defesa da “competitividade”;a restauração da cultura do mérito individual; e a conso-nância com a lógica mercantil pela defesa do regime decapitalização. De outro lado, a defesa da previdência pú-blica, de gestão democrática, propondo padrões e limites

a serem observados no projeto de reforma, não estando,entretanto, suficientemente claras as posições quanto àproposta de regime único.

A seguir, analisam-se os principais aspectos apontados,que remetem aos fundamentos da seguridade social e daeconomia capitalista contemporânea.

Privatização

Toda a reforma do Estado brasileiro orientou-se poruma estratégia de progressivo e crescente favorecimentodo mercado, o que equivale à privatização. No PlanoDiretor da Reforma do Estado, do governo FHC, no setorde atividades exclusivas (não lucrativas) ou monopolistasdo Estado, figura a previdência básica. Básica em relaçãoao conjunto das operações da área, a serem crescentementeassumidas pelas entidades abertas e fechadas de previ-dência privada. Básica no sentido de pagamento mínimopara pessoas cujos ganhos já são mínimos ou inexistentes:trabalhadores de baixa renda com vínculo formal detrabalho filiados ao sistema, idosos e deficientes, nãocontribuintes, admitido, com relutância, o seu direito à se-guridade social.

As baixas taxas de crescimento econômico, o desempregoestrutural,26 a informalidade do mercado de trabalho, a nãofiliação ao sistema (impossibilitando o aumento dearrecadação) e mesmo a falta de credibilidade no sistema –agora agravada com a permanente ameaça de confisco pelareforma – são fatores que contribuem para incentivar, defato, a privatização, a julgar pelo sucesso da previdênciaprivada. O mercado pede flexibilização, desregulação eprivatização. E há um evidente interesse de seguradoras ebancos privados no estoque de recursos geridos pelos fundosde pensão, que, por sua vez, apropriam parcela da rendados trabalhadores a título de capitalização e formação dereservas para complementar a aposentadoria.27

O governo FHC afastou a proposta de substituição doregime de repartição pelo de capitalização individual pri-vada, em razão dos elevados custos da transição, tendocomo modelos o do Chile e o da Argentina.

No caso do Chile, questiona-se mesmo se houve priva-tização ou, em outros termos, quais foram os limites dapropalada privatização, uma vez que

o Estado regula a demanda (através das contribuiçõescompulsórias), regula a oferta (supervisionando as AFPs),financia parte das pensões, administra e financia o antigosistema (OLIVEIRA et al., 1999, p. 47).

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No caso da Argentina,

há margem para acreditar que o sistema de previdênciaprivada [...] venha a ter dificuldades para cumprir suaspromessas de fornecer benefícios mais adequados e paramais pessoas do que um sistema público reformado poderiater sido capaz de proporcionar a um grau de risco financeiromuito inferior. Mantida a tendência, provavelmente aArgentina terá de proceder a uma reestatização do sistemade fundos de pensão privados em momento futuro, assim queas questões mais prementes da estabilização macroeco-nômica tenham sido resolvidas (IPEA, 2002, grifo meu).28

Então, as “soluções de mercado” têm mostrado resul-tados desastrosos não apenas por privilegiarem a rentabi-lidade e reproduzirem a desigualdade social, mas tambémpor serem incapazes de honrarem os próprios postuladose intenções retóricas. É um mercado “livre” que nada fazsem o Estado e que, mais que isso, quer o Estado cúmpli-ce do Diktat mercantil.

Reatualiza-se, destarte, a recorrente questão quanto aocaráter do seguro – no âmbito do mercado e não apenasda previdência social – na sociedade contemporânea: qualo modelo que se postula?

[...] o da solidariedade, onde o seguro significa proteçãoda vida, da saúde, dos bens dos cidadãos brasileiros e noqual há que se inserir a preocupação com o caráter socialdo seguro? Ou o do risco, onde o seguro antes de tudo éconsiderado investimento, mais um serviço financeiroprestado pelos grandes conglomerados? Ou uma combi-nação de ambos? (ALBERTI et al., 1998, p. 296).29

Unificação dos Regimes

Quanto à unificação dos regimes,30 além da relaçãoentre setor público e setor privado, caso venha a ser reto-mada, terão que ser equacionadas algumas bipolaridades,como: filiados e não filiados, contribuintes e não contri-buintes, condições para o homem e condições para a mu-lher, trabalhador urbano e trabalhador rural.

O regime único e universal deve respeitar a diferença,sob pena de reproduzir a desigualdade. Se se trata de con-solidar o sistema de seguridade social brasileiro, então odesafio é ampliar a cobertura – pela inclusão daqueles quepor falta de trabalho, por insuficiência de renda, por ab-soluta impossibilidade de contribuição prévia ou mesmopor desconfiança encontram-se fora do sistema –, aumen-tando o número de filiados e de contribuintes, o que re-

mete à retomada do crescimento econômico e à amplia-ção das oportunidades de emprego.

A composição e o papel da família encontram-se emfranca mudança, valendo ressaltar o desempenho da mu-lher como protagonista – e não apenas na manutenção dacoesão de famílias matriarcais –, pondo em questão asfunções e os efeitos econômicos do trabalho domésticonão remunerado e modificando o perfil do mercado detrabalho. Então, qualquer modelo que se venha a adotarterá que equacionar a diferente inserção da mulher nasrelações de trabalho, sob condições diferenciadas, taiscomo a descontinuidade do vínculo, a maternidade e acondição cultural e histórica – longe de ser superada – decuidadora31 dos demais membros da família. Nas diver-sas condições é a mulher que cuida de criança, idoso, doen-te, portador de deficiência, etc.

Quanto à relação urbano-rural, é sabido que a vida nocampo se urbaniza em vários sentidos, como no acessoaos meios de comunicação, aos serviços e aos hábitosde consumo. E é evidente a tendência de trabalhar nocampo sem viver ali confinado, morando no núcleo ruro-urbano, na agrovila, na pequena cidade. Isso está longede significar condições de trabalho similares às da cidade,a não ser pela informalidade, pela precariedade do contra-to, pela baixa remuneração e pela redução de oportu-nidades em razão da mecanização da produção. Além dereproduzirem o que se passa na cidade no que diz respeitoà debilitação do trabalho, as condições laborais no camposão reconhecidamente mais deletérias, dependendo dainserção ocupacional e do “contrato”. Então, assim comono caso do trabalho urbano, deve-se considerar o graude exposição a riscos sociais, ambientais, ergonômicos,físicos, emocionais, em suma, a salubridade.

A extensão da cobertura previdenciária ao trabalhadorrural, com a criação do Funrural, em 1971, depois incor-porado ao INPS, foi um significativo avanço da seguridadesocial brasileira, ainda que essa cobertura seja freqüente-mente apontada como um fator de agravamento do défi-cit, por se tratar de concessão de benefícios que não tive-ram contrapartida da contribuição.

[...] o Prorural/Funrural representou um múltiplo rompi-mento com os princípios do seguro social de padrãocontributivo bismarckiano, que caracterizaram a históriada previdência social na América Latina no século XX.Houve a ruptura com as noções de que: 1. a um benefíciodeve corresponder uma contribuição; 2. essa contribuiçãodeve ser tripartite (segurado, empregador e Estado); e 3.

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o benefício resultante deve estar vinculado ao padrão derendimentos pregressos do segurado. O próprio fato de obenefício ser de valor constante flat-rate, uma característicamais presente em paradigmas de proteção social univer-salistas, constitui uma inovação em relação à tradiçãobrasileira e latino-americana em geral. Outro elementodiferenciador consiste no fato de que há, no programa,redistribuição de renda no sentido urbano-rural, contra-restando, ao menos parcialmente, o subsídio rural-urbanoimplícito na forma de financiamento dos sistemas urbanosvia contribuição sobre a folha salarial, cuja parcela patro-nal geralmente é repassada para os preços dos bens con-sumidos também na área rural (MALLOY apud DEL-

GADO; SCHWARZER, s.d.).

Então, trata-se de preservar, aprimorar e ampliar acobertura previdenciária do trabalhador rural, como partede uma estratégia de distribuição mais justa da rendanacional.

Piso e Teto de Benefícios

Esta questão remete às condições de existência coleti-va que se deseja preservar, aprimorar ou superar. Refere-se a padrões de vida como expressão das relações sociais.Hábitos de consumo, graus de acesso a bens, recursos eserviços e condições de vida, longe de se restringirem apreferências, escolhas pessoais e adesões seletivas, expri-mem modos de ser socialmente determinados. Direitos sãoexpressões de luta social e política, condensando possibi-lidades e limites de pactos coletivos, sob determinadascondições históricas. Então, as noções de básico, vital,mínimo, razoável, máximo, excelente ou ideal, todasadjetivas, prestam-se a estabelecer os parâmetros paraoutras noções, estas sim substantivas, relacionadas àsvárias formas de apropriação de parcelas da riqueza so-cial, das quais a renda é inequívoca, mas nem por issosuficiente. São noções mutáveis, relativas, dependentes dascondições objetivas em que se dá a produção e a apropria-ção de riqueza.

Integralidade (e não parcialidade), irredutibilidade (e nãoredutibilidade) e paridade (e não disparidade) são princípi-os de justiça social. Por que a aposentadoria tem que serpunida com a redução de renda? Por que o tempo livre temque significar queda do padrão de vida, opondo ativos einativos? Quem estaria impondo tais condições a quem?

Piso e teto não podem ser discutidos em si mesmos,fora das relações econômicas. Observa-se forte tendência

em colocar a questão dos ganhos da aposentadoria no planodos privilégios, para justificar o confisco geral, nivelan-do por baixo a pauta de direitos sociais. Por que a discus-são é tão intensa em torno da renda do trabalho, mas fracaquanto à do patrimônio e do capital?32 Aqui, seria justocompartilhar da posição da Anfip de que a reforma tribu-tária deveria preceder a reforma previdenciária.

Admitindo-se um teto para o valor da aposentadoriado servidor público – o atual teto do setor privado é deR$ 1.561,00 e as propostas em debate oscilaram entre 10e 20 salários mínimos, ou seja, R$ 2.400,00 e R$4.800,0033 –, seria razoável considerar que 67,3% dosfuncionários do Executivo Federal já ganham abaixo deR$ 2 mil.34 Considerado todo o país, estima-se que 80%dos funcionários públicos já recebam abaixo de R$1.561,00 por mês, o teto do INSS.35

Ao propor um teto de 20 salários mínimos, a CUT pro-curou assegurar salários integrais para a maioria dos tra-balhadores do setor público, preservando, na realidade, oprincípio da irredutibilidade salarial, estabelecido pelaConstituição Federal.

Financiamento

Não há como reduzir o problema do financiamento ao“desencaixe atuarial”, à desproporção entre contribuintese beneficiários, à oposição entre trabalhadores do setorprivado e do setor público, ao aumento de contribuições eà redução de benefícios e, em suma, aos mecanismos demaior expropriação do trabalho. O que está em questãonão é apenas o equilíbrio atuarial das contas da previdên-cia, mas o equilíbrio e a coesão da sociedade com baseem formas mais justas de apropriação e fruição da rique-za social.

As pressões pela reforma da previdência social respon-dem a uma estratégia de mercantilização da seguridadesocial, ou seja, a um processo de privatização.36 Assim, aprevidência se converte em um produto, a compor oportfólio de bancos e seguradoras, no caso das entidadesprivadas, ou passa a depender dos investimentos rentá-veis, sem compromisso com o desenvolvimento social, nocaso dos fundos de pensão.

De qualquer modo, há associação – maior ou menor –ao capital internacional, pela observância das recomen-dações do Banco Mundial e do FMI e pela incorporaçãoda experiência européia ou norte-americana, naquilo emque representam poder e sucesso no mercado de capitais.Qual poder? E que sucesso?37

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CONCLUSÃO

Da análise realizada, depreende-se que a polêmica emtorno da reforma oculta, conforme a posição adotada,revela interesses que extrapolam o sistema previdenciáriopúblico, dissocia a política da economia, reduz a con-cepção de seguridade social ao cálculo financeiro eatuarial, isola a questão do déficit da relacionada aofinanciamento das ações do Estado, omite as exigênciasdo Banco Mundial e do FMI, relativiza o caráter redis-tributivo das políticas sociais e representa mais uma formade confisco aos trabalhadores, opondo os do setor privadoaos do setor público. Em última análise, privilegia o capital,particularmente sua fração financeira, e expropria otrabalho.

A previdência é um campo de batalha de uma guerramaior. É inaceitável que seja imputada à previdência so-cial, isoladamente, a responsabilidade pela deterioraçãodas contas públicas. O que está em crise é um modo deorganização e gestão da vida social. O que está em jogosão os interesses de favorecimento da “competitividade”do capital em detrimento das políticas sociais.

A crise econômica é que determina as alegadas difi-culdades da previdência, e não o contrário. A previdênciadepende do crescimento econômico e do mercado de tra-balho, e não o contrário. Inaceitável, portanto, que o ônusda crise, agravada sob as políticas neoliberais, recaia so-bre os funcionários públicos e que o propalado déficit sejaatribuído à não contribuição prévia do trabalhador ruralou dos beneficiários da assistência social, ao reajuste dosalário mínimo que corresponde ao valor dos benefíciosde dois terços dos segurados do setor privado ou ao rea-juste anual das pensões dos demais segurados.

A reforma da previdência é necessária, mas está lon-ge de ser solução para uma crise da qual é apenas umadas expressões. Qual reforma é desejada? A que conce-be a previdência como parte da seguridade social, ex-pressão de um pacto coletivo e solidário e que, portanto,resiste à privatização. Que consolida o democrático Es-tado de Direito, honrando compromissos e respeitandocontratos com os trabalhadores. Que não impõe novasperdas aos segurados por meio de fatores de confisco.Que equacione piso e teto, parâmetros e padrões, iguaise diferentes, na esfera do direito social – portanto, naarena do interesse público – sem reduzir tudo a produ-tos, segundo a lógica mercantil, sabidamente reprodutorada desigualdade social.

NOTAS

1. Este texto foi elaborado com base na tese de doutorado do autor(SILVA, 2003).

2. A Lei n. 10.843, de 08/01/02, estabelece o reconhecimento automá-tico de direitos com base nos registros da Previdência Social, desobri-gando o segurado de apresentar documentos para provar tempo e valordas contribuições.

3. Lei n. 9.983/00 ou Lei de Crimes contra a Previdência Social, versasobre apropriação indébita, sonegação e omissão de informações.

4. Concessão de salário-maternidade para autônomas; compensaçãoentre contribuições de empregados e empregadores (setor rural e con-tribuintes individuais empregados por empresas); retenção da contri-buição que consiste na antecipação da receita em relação a setoresterceirizados; divulgação de informações ao público (PINHEIRO, 2001,p. 38-39).

5. “A lista de disfunções é grande, envolvendo a profusão de regimespróprios criados no âmbito dos municípios e Estados, os quais, de-samparados de controle social, absolutamente não transparentes e des-providos de homogeneização nas regras previdenciárias e administra-tivas, criaram facilidades para fraudes, incentivaram a prática abusivade concessão de aposentadorias extremamente generosas protagonizadaspor grupos corporativos, desviaram recursos para atividades nãoprevidenciárias, não sendo raros os casos em que os Tesouros locaisnão repassavam suas respectivas contribuições à entidade ou ao órgãogestor e mantiveram sob o mesmo abrigo contábil e financeiro benefí-cios assistenciais e previdenciários, financiados, via de regra, por con-tribuições estabelecidas por critérios políticos, sem o menor rigor téc-nico” (GUSHIKEN et al., 2002, p. 19). “Era no setor público onde ocor-ria o maior número de aposentadorias precoces, acumulação de apo-sentadorias, acumulação de aposentadoria com salário de outro em-prego, e onde era maior a duração dos benefícios e menor o prazo decarência [...] No serviço público, os diferentes regimes e critérios per-mitiam que alguns se aposentassem mais de uma vez e ainda voltas-sem a ocupar emprego público. A acumulação de aposentadorias – eestas de valor igual à remuneração da ativa – gerava os super-salários[...] As tendências indicavam gastos com aposentadorias e pensões detal magnitude, que inviabilizariam as administrações públicas, com acompressão dos salários dos trabalhadores da ativa e diminuição dadisponibilidade de recursos para as políticas públicas locais” (CECHIN,2002, p. 14-17).

6. Conforme já ocorreu no Estado de São Paulo, que antes tinha, amenor alíquota de contribuição previdenciária dos servidores ativos(6%), elevada para 11%, aproximando-se da alíquota da maioria dosEstados (de 10% a 14%).

7. Vale registrar, não obstante, que “Em vários Estados da União existecontribuição de inativos, inclusive diferençada por faixa de renda. Deacordo com o Relatório Anual da Previdência Social de 1999, [...] acontribuição dos aposentados é de 3,5% em Minas Gerais, de 4% a5% no Acre, de 5% na Bahia, de 6% em São Paulo, de 7,4% no RioGrande do Sul, de 8% em Roraima, de 9% em Tocantins, de 11% noRio de Janeiro, de 8% a 12% em Santa Catarina e Mato Grosso, de11% (até R$ 1.200,00) a 20% no Amazonas, de 10% (até R$ 1.200,00)a 20% no Paraná e de 10% (até R$ 200,00) a 20% (acima de R$1.200,00) em Pernambuco. Não havia contribuições em Roraima, Pará,Amapá, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, MatoGrosso do Sul, Goiás e Distrito Federal. Como existem ações na Justi-ça relativas a essas contribuições, a situação pode ter mudado. AlgunsEstados (12) também impõem contribuições aos pensionistas”(FALEIROS, 2000, p. 111-112, grifos meus).

8. É desalentador constatar, mesmo nos governos de coalizões de cen-tro-esquerda, o embate entre a afirmação e a recusa da assistência so-cial como política pública provedora de bens e serviços no âmbito daseguridade social.

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9. Ao analisar três modelos teóricos para a previdência social, Miranda(1997, p. 49, grifos meus) conclui que: “é importante frisar que aadoção de um ou outro modelo tem sérias implicações sobre as for-mulações de política econômica e, em especial, sobre os resultadosa serem esperados de uma reforma no sistema previdenciário. Nomodelo de Diamond, uma migração do sistema Pay-as-you-go parao fully funded poderia ampliar o estoque de capital da economia, masnão necessariamente ampliaria o bem-estar, pois poderia levar o sis-tema econômico a um estado de ineficiência dinâmica. Sob a pers-pectiva do modelo de Barros, essa reforma seria incapaz de ampliaro estoque de capital da economia, uma vez que os agentes privadoscompensariam por completo a redistribuição intergeracional de ri-queza promovida pelo governo. No modelo de Martins, por sua vez,uma reforma desse teor aumentaria a acumulação de capital, mas,não necessariamente ampliaria o bem-estar, pois nesse caso haveriaum decréscimo nas heranças doadas. De qualquer forma, o incrementoda poupança gerado no modelo de Diamond estaria amplamente su-perestimado quando contrastado com aquele obtido a partir do mo-delo de Martins”.

10. Presidente da Unafisco Sindical, Paulo Gil Introíni, em entrevistaà Folha de S.Paulo, 21/01/03.

11.Casos mencionados com freqüência: a construção de Brasília, daRodovia Transamazônica e da Ponte Rio–Niterói.

12. Para Antoninho Marmo Trevisan, auditor, há três pontos vulnerá-veis à fraude: o sistema eletrônico, o processo de concessão de benefí-cios e a sonegação pelas empresas.

13. Especialmente de grandes empresas e bancos.

14. Conforme admitido pelo ministro-chefe da Casa Civil José Dirceuem seminário do PT (MARQUES, 2003).

15. Fator previdenciário, estabelecido pela Lei n. 9.876, de 29/11/99,é uma fórmula que considera os seguintes elementos: tempo de contri-buição; alíquota de contribuição (0,31); idade e expectativa de vidado segurado, na data da aposentadoria (MPAS, 2002:23). A regra decálculo do valor dos benefícios, pós-reforma de 1998, é a seguinte:Sb = Mx [(TC x a)/Es] x [1+ (Id + Tc x a) /100]Sb = salário de benefícioM = média dentre os 80% dos salários de contribuição apurados entrejulho de 1994 e o momento da aposentadoria, corrigidos pela inflaçãoTc = tempo de contribuição do seguradoa = alíquota de contribuição do segurado e do empregador = 0,31Es = expectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria,medida anualmente pelo IBGE, considerando-se a média única nacio-nal para ambos os sexosId = idade do segurado na data da aposentadoria

16. Ver, a propósito, texto de Luís Nassif publicado na Folha de S.Paulo(13/10/00), que aponta as conseqüências da utilização da “tábua davida”, argumentando que “o poço continuará sem fundo enquanto nãose fizer um corte radical, implantando o novo sistema para quem en-trar agora e aportando ativos para garantir o atual passivo previden-ciário” e que a “grande revolução que está ocorrendo na Previdência égerencial”.

17. São constatações de um ardoroso defensor da reforma – ChicoPrevidência, o autor aqui citado, para o qual “trata-se de alterar a pró-pria lógica de funcionamento, substituindo-se, pelo menos parcialmen-te, o inexoravelmente falido regime de repartição pelo de capitaliza-ção” (OLIVEIRA, 2000, p. 2, grifos meus).

18. Ministro Ricardo Berzoini em entrevista ao Correio Brasiliense,10/01/03.

19. Conforme entrevista do ministro Ricardo Berzoini ao CorreioBrasiliense, 10/01/03.

20. O equilíbrio seria alcançado pela equivalência do valor presentedas contribuições ao valor presente dos benefícios (MPAS, 1999, p. 4,NR 6).

21. Direito à aposentadoria integral para o tempo já trabalhado, sendoque o tempo restante seria igual à soma do tempo de serviço anterior àreforma dividido por 35 anos e do tempo de serviço posterior à refor-ma dividido por 35 anos.

22. Conforme a reportagem “Como ficou o relatório da reforma daPrevidência”, Folha de S.Paulo, 18/07/03 (grifos meus): “Já o textovotado em segundo turno apresentou as seguintes alterações: umredutor de ganhos para quem antecipar a aposentadoria, de 5% paracada ano até o máximo de 35%; aumento do subteto do JudiciárioEstadual para 90,25% do salário do ministro do STF; além das demais,exigência de permanência de cinco anos no último cargo, para aposen-tadoria integral; aumento de 70 para 75 anos da idade para aposenta-doria compulsória a partir de 2012; teto de R$ 2.400,00 para futurospensionistas e desconto de 30% sobre a parcela excedente; contri-buição de 11% sobre a parcela da aposentadoria ou pensão (inativos)que exceder a R$ 1.200,00, no caso dos Estados e Municípios, eR$ 1.400,00, no caso da União. Para atuais servidores o teto deisenção, quando se aposentarem, será de R$ 2.400,00. O teto do INSSsobe de R$ 1.869,34 para R$ 2.400,00. Os fundos de pensão a seremcriados após a reforma serão fechados, públicos e com contribuiçãodefinida, ou seja, o beneficiário saberá quanto pagar, mas nãoquanto receber de aposentadoria. Militares e policiais militares detodos os Estados terão, segundo o governo, projeto específico dereforma”. Conferir “Como ficou a proposta”, Folha de S.Paulo, 15/08/03. Em 19/12/03, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 41pelo Congresso Nacional. Entre outros aspectos, acima descritos, otexto estabelece a contribuição dos inativos e aumenta a idade mínimapara a aposentadoria (60 anos para o homem e 55 para a mulher).Mas o Senado fez modificações no texto original da reforma e aprovouem segundo turno a PEC paralela, a ser apreciada pela Câmara dosDeputados, contendo aspectos favoráveis aos atuais servidorespúblicos, trabalhadores informais, pessoas com deficiência física eaposentados e pensionistas com doenças incapacitantes. Até oencerramento deste artigo a Câmara ainda não tinha votado a PECparalela.

23. Em favor da preservação da integralidade dos vencimentos, osmilitares arrolam as condições sob as quais exercem a sua função:dedicação exclusiva, disponibilidade permanente, transferências cons-tantes, horas extras não remuneradas, não pagamento de adicionalnoturno, ausência de FGTS, proibição de exercício de atividade pro-fissional paralela, possibilidade de convocação na reserva, baixos sa-lários na ativa, contribuição de 7,5% pelos inativos. Os juízes, porsua vez, apontam a carreira específica com limitações funcionais, oacúmulo de cargo somente pela docência, a proibição de filiação apartidos políticos, o impedimento de participar de sociedades comer-ciais. Já os funcionários da Justiça Federal destacam o contrato deadesão no ingresso, as regras predefinidas, o exercício de funçõescom implicações sobre o jurisdicionado, a contribuição previdenciáriasobre o total dos vencimentos e não sobre um teto, como no caso doINSS, e, como exemplo, a situação dos oficiais de justiça que se su-jeitam a riscos para fazer cumprir as decisões judiciais (cf. Folha deS.Paulo, 14/01/03, p. A-4; O Estado de S.Paulo, 17/01/03, p. A-7;teses aprovadas na plenária da Federação Nacional de Servidores doJudiciário Federal – Fenajufe, Agência Fenajufe de Notícias, Brasília,04/12/02).

24. Trata-se de artigo assinado por Marco Aurélio de Freitas Lisboa,publicado no sítio da organização: <http://www.unafisco.org.br>.

25. Segundo o Presidente da Unafisco Sindical, Paulo Gil Introíni, ementrevista à Folha de S.Paulo, 21/01/03. O sindicato representa 16mil pessoas entre ativos, aposentados e pensionistas.

26. Por oposição ao desemprego voluntário, friccional, temporário,ocasional ou sazonal.

27. Ver, a propósito, a reportagem “Lobby quer gerir pensão do funcio-nalismo”, Folha de S.Paulo, 26/05/03, segundo a qual bancos e segu-radoras criticam teto de R$ 2.400,00 e tentam influir na reforma dosistema complementar público.

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A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: ENTRE O DIREITO ...

28. Ocorre que, segundo a mesma fonte, vem caindo o percentual deinscritos efetivamente contribuintes, de 55,3%, em 1995, para 30,3%,em 2001, o que inviabiliza o regime de capitalização individual.

29. É interessante a apresentação de duas concepções de seguro: aanglo-saxã (seguro marítimo – navegação de longo curso –, de merca-do) e a alpina (seguro institucional, solidário, mutualista).

30. O governo desistiu do regime único, que não consta do relatórioda comissão parlamentar concluído em meados de julho de 2003.

31. Na América Latina, especialmente no Peru, na Guatemala e naBolívia, 20% dos lares – uma em cada cinco famílias – são chefiadospor mulheres. No Brasil, inúmeros estudos vêm apontando o crescentepapel feminino na gestão da família, a par da “feminização” da pobre-za. Entre os idosos, a maioria é do sexo feminino, conforme o IBGE.

32. Tanto no plano nacional como no internacional. Para o âmbito in-ternacional, considera-se atual, oportuna e pertinente a proposta do pro-fessor americano James Tobin, de 1972, de criação de um tributo sobreas operações de câmbio. “Tributar as operações de câmbio para penali-zar a especulação, controlar o movimento de capitais de curto prazo sig-nifica fazer uma séria advertência política aos principais agentes eco-nômicos e afirmar que o interesse geral deve prevalecer sobre os inte-resses particulares e a necessidade de desenvolvimento sobre a especu-lação internacional [...] O economista americano Howard Watchell sus-tenta que seria preciso pelo menos três taxas para controlar o capital:além do tributo sobre as operações cambiais, um sobre os investimentosdiretos no exterior e, por fim, um tributo internacional uniforme (ou ‘tri-buto único’) sobre os lucros. Ademais, é óbvio que o parasitismo finan-ceiro não poderá ser estrangulado sem que se ataquem os mecanismosque o sustentam. O que está em jogo é o caráter sistêmico do processode mundialização dos mercados financeiros, bem como os fundamentosrentistas dos mecanismos de apropriação e de transferência internacio-nal do valor e da riqueza” (CHESNAIS, 1999, p. 12;15).

33. Em julho de 2003, o salário mínimo era de R$ 240,00.

34. Conforme Balbi (2003, p. A-6): “só 1,5% dos servidores civis doExecutivo receberam mais de R$ 8.500,00 mensais nos 12 meses en-cerrados em setembro passado”, citando Sonoe Sugahara, do Ipea. Milservidores ganham acima de R$ 20 mil por mês, segundo Amaral eBarelli (2003, p. 36).

35. Caldas (2003, p. A-4), citando estimativa feita pelo Partido dosTrabalhadores.

36. A propósito, foi de 74,6% o aumento da captação dos planos deprevidência privada no primeiro trimestre de 2003, em comparaçãoa igual período de 2002 (Folha de S.Paulo, 26/5/03). A proposta dereforma, antes mesmo de sua votação no Congresso Nacional, pro-vocou uma corrida à previdência privada, que tem crescimento mé-dio anual no setor entre 35% e 40% (conforme a Associação Nacionalde Previdência Privada – ANAPP no Diário do Nordeste, 19/04/03).

37. Ver, a propósito, Chesnais (1999, p. 31-ss), sobre o poderio dasinstituições financeiras e sua perversa participação nos ataquesespeculativos que provocaram as crises cambiais de 1992 e 1993. De-les participaram: os 30 maiores bancos, os fundos especulativos espe-cializados – hedge funds –, dentre os quais a sociedade Quantum Funds,de George Soros, os fundos de pensão (investidores institucionais) eos fundos mútuos de investimento “que decidem o resultado do con-flito travado no mercado cambial, em detrimento dos governos e a fa-vor do melhor meio de lhes impor suas exigências [...] o efeito deses-tabilizador sobre os mercados (de câmbio e de títulos) desencadeadopor esses investidores institucionais é incomensurável”.

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PREVIDÊNCIA DO TRABALHADOR: UMA TRAJETÓRIA INESPERADA

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Resumo: Este texto apresenta a trajetória da previdência social administrada pelo INSS e os motivos que in-fluenciaram sua evolução até a promulgação da Constituição. Destaca também, a influência dos contextosinternacional e nacional, político e econômico do período pós-constituinte sobre as possibilidades da aplica-ção dos princípios de proteção social, estabelecidos em 1988.Palavras-chave: previdência; proteção social; seguridade social.

Abstract: This text deals with the course of the social welfare management process administered by the NationalInstitute of Social Security and describes the facts that influenced its development until the Constitutionpromulgation. It also shows up the influences of the international and national, political and economical contextof the post Constitution period on the principles of social protection established in 1998.Key words: social welfare; social protection; social security.

MARIANA BATICH

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 33-40, 2004

s sistemas previdenciários podem diferir de umasociedade para outra, pois fatores de ordem po-lítica, econômica, social e cultural interferem na

história de sua formação e desenvolvimento, mas em to-das possuem uma função comum: assistir com recursosfinanceiros a população adulta quando afastada do mer-cado de trabalho, por motivos alheios à sua vontade, comodoença, invalidez e idade avançada.

No Brasil o seguro social, que protege a maior parteda população inserida no mercado de trabalho do setorprivado, é administrado pelo Estado, todavia, surgiu gra-ças à iniciativa dos trabalhadores. Nas primeiras décadasdo século XX, empregados de uma mesma empresa, sema participação do poder público, instituíam fundos de au-xílio mútuo, nos quais também o empregador colaborava,de forma a garantirem meios de subsistência quando nãofosse possível se manterem no trabalho por motivos dedoença ou velhice.

A assunção do Estado na gerência do sistema previ-denciário brasileiro foi lenta e gradual. O primeiro ato go-

vernamental de intervenção nesta área ocorreu em 1923,com a promulgação da Lei Eloy Chaves, determinando acriação de uma Caixa de Aposentadorias e Pensões – CAP,para os trabalhadores de ferrovias. Entretanto, eram so-ciedades civis em que a ingerência do setor público eramínima, cabendo sua administração a um colegiado com-posto de empregados e empregadores.

As CAPs expandiram-se para outras categorias funcio-nais assalariadas, chegando a serem instaladas cerca de180 caixas de aposentadorias no Brasil. A ordem de cria-ção deste tipo de instituição previdenciária sempre foideterminada pela capacidade de mobilização e reivindi-cação dos trabalhadores por melhores condições de tra-balho. Assim, o fato de os trabalhadores de ferrovia te-rem inaugurado o sistema deve-se menos à importância,para a economia nacional das atividades que desenvolviam,baseadas na exportação de produtos primários, do que àsua capacidade de mobilização para reivindicações denatureza trabalhista. Por este motivo, a previdência parao trabalhador rural não era cogitada, embora fosse ele-

PREVIDÊNCIA DO TRABALHADORuma trajetória inesperada

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mento fundamental na produção do café, principal produ-to de exportação do país.

Com as transformações econômicas da década de 30 ea crise no mercado internacional do setor de exportaçãocafeeira, toma corpo um processo de crescimento indus-trial intenso, em que é marcante a presença das classesassalariadas urbanas reivindicando melhores condições devida, o que levou o Estado a iniciar um processo de inter-ferência nas relações trabalhistas, de forma a conciliarconflitos entre capital e trabalho. Nesse contexto, o poderpúblico expandiu sua interferência como responsável pelaproteção social dos trabalhadores, determinando que asCAPs, baseadas em vínculos de trabalhadores por empre-sa, fossem substituídas por outro tipo de instituição,aglutinando categorias profissionais e abrangendo todo oterritório nacional.

A administração previdenciária deixou de ser então deresponsabilidade de cada CAP, passando para a alçada doEstado, que instituiu, pela primeira vez na história do seuorçamento de custeio,1 os recursos necessários para de-sempenhar as novas tarefas, tornando necessária e legíti-ma sua intervenção sobre os mecanismos de arrecadaçãoe gestão das entidades previdenciárias.

A primeira instituição desse tipo, o Instituto de Aposen-tadorias e Pensões dos Marítimos – IAPM, surgiu em 1933e destinava-se a agregar as CAPs dos marítimos. Ao longoda década, foram criados outros institutos para as catego-rias dos comerciários (1934), bancários (1935), industriários(1938) e os empregados em transportes e cargas (1938).

Os tipos e valores dos benefícios previdenciários dosIAPs não eram uniformes. Cada categoria de atividade osestabelecia livremente e eram dependentes do percentualde contribuição que os participantes pagavam ao institutodurante sua vida ativa. As categorias com salários maiselevados tinham mais recursos para as provisões previ-denciárias e incluíam até serviços de assistência médica.E tal como acontecia com as CAPs, os participantes dosIAPs conduziam-se pautados por laços de solidariedade,uma vez que as contribuições dos trabalhadores da ativaeram utilizadas para a cobertura de quem se afastava dotrabalho por doença ou velhice, porém, agora, além decontarem com a contribuição dos empregadores, passa-vam a ser financiados também pelo Estado, que cuidariaprincipalmente das despesas com a administração. Entre-tanto, como se verá adiante, os recursos dos IAPs eramcapitalizados pelo governo.

Os recursos dos IAPs não eram poucos, porque tratava-se de instituições previdenciárias jovens, inseridas numa

sociedade em que era recente a utilização da mão-de-obra operária em larga escala e crescente a arre-gimentação de novos trabalhadores, graças ao cres-cimento do parque industrial. Nestas condições, poucostrabalhadores haviam atingido o direito de se apo-sentarem, o que permitia que a receita dessas instituiçõesfosse superior às despesas. O montante das reservasfinanceiras, para se ter uma idéia, entre 1930 e 1949,representava em média 67% da arrecadação, pois osgastos com benefícios atingiam 43%, segundo Andrade(2003).

Os recursos não utilizados pelos IAPs foram largamenteutilizados pelo governo, para aplicação em investimentosdiretos em vários setores da economia, beneficiando osempreendimentos industriais com tamanha amplitude que,segundo Eli Gurgel Andrade (2003), transformaram “aPrevidência no principal ‘sócio’ do Estado no financia-mento do processo de industrialização do país”.

Esta afirmação não é gratuita. Vários decretos gover-namentais impuseram aos IAPs a subscrição de ações pre-ferenciais de empresas, como a Companhia SiderúrgicaNacional (CSN), a Companhia Hidro Elétrica do São Fran-cisco (CHESF), a Companhia Nacional de Álcalis (CNA)e a Fábrica Nacional de Motores (FNM). O decreto decriação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-mico (DL 1.628/52), em seu artigo 7o, obrigava as insti-tuições previdenciárias a concederem empréstimos emmontantes fixados pelo Ministério da Fazenda.

As instituições previdenciárias dos assalariados, por umlado, atendiam aos interesses dos trabalhadores, dando-lhes garantias de recursos para a subsistência no momen-to em que eram obrigados a se afastarem do trabalho, e,por outro, respondiam também aos interesses do empre-sariado, quer atendendo uma reivindicação dos emprega-dos, tornando a situação assalariada atraente e mais tran-qüila, quer pela obtenção de poupança destinada ainvestimentos em setores fundamentais para implementa-ção do processo industrial.

Em 1960, depois de 14 anos de discussão, o Congres-so Nacional promulgou a Lei Orgânica da Previdência So-cial – Lops, instituindo um sistema previdenciário únicopara todos os trabalhadores do setor privado, por meio daunificação da legislação que regia os IAPs e da elimina-ção das disparidades quanto ao valor e tipos de benefíci-os existentes entre eles. Isto ocorreu, saliente-se, mesmoa despeito da resistência de certas categorias profissio-nais, que sofreram diminuição na quantidade e no valordos benefícios previdenciários.

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PREVIDÊNCIA DO TRABALHADOR: UMA TRAJETÓRIA INESPERADA

Em 1966, consolidou-se a unificação do sistema pre-videnciário, com a criação do Instituto Nacional de Pre-vidência Social – INPS, agregando todos os IAPs e dei-xando definitivamente de existir diferenças entre ossegurados do setor privado da economia quanto à insti-tuição previdenciária que os assistia. Lembra-se que, na-quele ano, o país era dominado por uma ditadura militar,iniciada em 1964, quando foram suprimidos os direitospolíticos e civis dos cidadãos, perdurando até 1985.

Nos anos 70, foram instituídos novos tipos de benefí-cios previdenciários, como o salário-família2 e o salário-maternidade,3 e incluída no sistema categorias que antesnão tinham nenhuma cobertura, como o jogador de fute-bol profissional, os trabalhadores autônomos e temporá-rios, a empregada doméstica e o trabalhador rural. Quan-to a este último, saliente-se que passou a ter direito dereceber o benefício do seguro social mesmo sem ter con-tribuído para o sistema, quebrando-se assim o padrão vi-gente que garantia a cobertura previdenciária somente paraquem fosse contribuinte. Desta forma, a previdência tor-nou-se um instrumento oficial de redistribuição de rendaentre trabalhadores, uma vez que todos os contribuintesurbanos deviam pagar essa nova despesa.

Na década de 70, foi criado, ainda, um benefício denatureza assistencial, à custa dos recursos da previdên-cia, pois, para recebê-lo, não havia a necessidade de tercontribuído para a manutenção do sistema,4 mas sim teridade superior a 70 anos ou ser inválido, desde que fossecomprovado que o solicitante não tinha recursos para suasubsistência. Além disso, a previdência assumiu a respon-sabilidade pela prestação da assistência médica, primeiropara os trabalhadores contribuintes do INPS e depois paraos trabalhadores não contribuintes em casos de urgência,utilizando largamente a rede privada.

A ampliação inusitada do sistema de proteção socialpor parte do Estado ditatorial ocorreu para aliviar tensõespresentes na sociedade brasileira, algumas das quais eramprovenientes do período anterior ao golpe militar e queeste havia contido, como os conflitos no campo, enquan-to outras decorriam da política econômica adotada, queprivilegiava o crescimento econômico em detrimento dodesenvolvimento social, exigindo alguma atenção palia-tiva por parte do governo militar que impedia qualquertipo de reivindicação trabalhista ou popular.5 Entretanto,lembra-se que as medidas de expansão da proteção so-cial, citadas anteriormente, também foram facilitadas pelocrescimento da economia nacional no período, favorecidapelo bom desempenho do comércio mundial e dos fluxos

financeiros internacionais que se dirigiam ao país, por meiode empréstimos com juros atraentes, largamente utiliza-dos em investimentos diretos.

Os recursos previdenciários, que na primeira metadedo século XX já haviam sido largamente utilizados eminvestimentos que favoreciam o empresariado industrialbrasileiro, durante a ditadura também serviram para ali-mentar o ideal de construção de um “Brasil grande”. As-sim, a previdência financiou a construção da UsinaHidroelétrica de Itaipu, Ponte Rio-Niterói, Transama-zônica e usinas nucleares de Angra dos Reis. Estes em-preendimentos, somados aos recursos da previdência queforam utilizados inclusive para a construção de Brasília,segundo cálculos da professora da UFMG, Eli Gurgel,equivaliam a 69,7% do PIB, em 1997 (UNAFISCO–SIN-DICAL, 2003). E, como ocorreu com os recursos utiliza-dos no início do século para propiciar a industrializaçãodo país, o dinheiro utilizado nunca voltou para os cofresda previdência.

Entretanto, foi na década de 70, quando o Brasil ocu-pava o 8o lugar entre as economias capitalistas do mundoe se propalava sobre o “milagre brasileiro”, que os recur-sos previdenciários começaram a sofrer reduções, querporque o sistema tinha alcançado níveis de maturidade queelevavam as despesas com aposentados, quer porque ovolume de gastos com a assistência médica por meio deredes privadas6 eram muito altos, a ponto de se permitirque fossem estruturados no país grandes complexos deserviços médicos particulares.

A expansão do campo da proteção social tornou ne-cessária a existência de um órgão específico paraadministrá-la. A área da previdência, que desde o períododas CAPs estava ligada ao Ministério do Trabalho, Indús-tria e Comércio, passou então a ser organizada de formaindependente. Assim, em 1974, foi criado o Ministério daPrevidência e Assistência Social. Em 1977, a fim de di-minuir gastos e racionalizar a administração das váriasinstituições7 sob sua responsabilidade, foi organizado oSistema Nacional de Previdência e Assistência – Sinpas,que, entre outras medidas, restringiu as atribuições do INPSa gerência do sistema de benefícios previdenciários e criouo Instituto Nacional de Assistência Médica – Inamps, paracuidar exclusivamente dos assuntos relativos à assistên-cia médica.

O estabelecimento de diretrizes mais amplas para aproteção social, na sociedade brasileira, ocorreu na déca-da de 80, graças ao término do regime ditatorial em 1984,tornando possível a abertura do Congresso Nacional e a

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elaboração de nova Constituição para o país, em 1988,pautada por princípios de cidadania segundo os quais todocidadão tem garantido direitos de bem-estar social e se-gurança, independentemente de qualquer mérito. Assim,por determinação constitucional, a assistência social, pelaprimeira vez na história, passou a ser reconhecida comoum direito da cidadania e os serviços de saúde, que antesse destinavam especialmente a quem estivesse no merca-do formal de trabalho, foram estendidos para toda a po-pulação. Na área da previdência, os trabalhadores ruraispassaram a ter o mesmo tratamento concedido aos urba-nos, independentemente de terem contribuído para o sis-tema, estabelecendo-se ainda o salário mínimo como pisodos benefícios, previdenciário e assistencial.

Os constituintes consideravam a previdência, ao ladoda saúde e assistência, um conjunto integrado, e coloca-ram as três áreas em um mesmo capítulo da Carta Magna,denominado da Seguridade Social. E ainda, para garanti-rem a execução do aparato de proteção social instituído,estabeleceram nos dispositivos constitucionais os recur-sos do orçamento, que em conjunto deveriam financiar aseguridade social , a saber: as contribuições de emprega-dos e empregadores; o faturamento e o lucro líquido dasempresas; e a receita de concursos e prognósticos. Desta-ca-se, porém, que o artigo 195 da Constituição, que esta-belece estes recursos orçamentários para a seguridadesocial, determina ainda que “ela será financiada por todaa sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,mediante recursos provenientes dos orçamentos da União,dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

A FASE PÓS-CONSTITUINTE

As forças democráticas presentes na elaboração daConstituição, seguindo os princípios da Declaração dosDireitos do Homem, elaborada em 1948 pela Organiza-ção das Nações Unidas, e os modelos de Estados de Bem-Estar Social, construídos após a Segunda Guerra Mundialnos países desenvolvidos, procuraram assegurar ao povobrasileiro uma gama de direitos sociais respeitados emoutras sociedades construídas nos moldes das economiasde mercado, tal como a brasileira.

Quanto à proteção social, os constituintes tinham con-cordado que ela deveria abranger as áreas da previdência,saúde e assistência social, definindo no capítulo daSeguridade Social não só os princípios que deveriam pautaras ações a serem desenvolvidas pela sociedade brasileirasobre esses aspectos, mas também os recursos financei-

ros a serem utilizados, de forma a garantir que estivessema salvo de restrições de possíveis opositores a sua aplica-ção e que também não fossem afetados por variações cí-clicas da economia.

No período pós-constituinte, entretanto, surgiram inú-meros obstáculos para aplicação dos pilares econômicosdestinados à Seguridade Social, muitos dos quais origi-nados fora de suas fronteiras. Ventos soprados da Ingla-terra e Estados Unidos, originados, respectivamente, nosgovernos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, desdeo início de 1980, chegaram ao Brasil, apregoando os be-nefícios dos princípios neoliberais. Os cânones desta ideo-logia apregoavam a globalização da economia, gerandoum mercado único, com a queda de barreiras comerciaisentre nações, a redução geral de tarifas e permissão delivre acesso de bens e serviços, a privatização do setorpúblico e a redução da presença do Estado em todos ossetores. Na área social, as interferências governamentaiscaberiam somente sobre as populações de mais baixa ren-da, utilizando-se o termo focalização para expressar a di-reção a ser seguida nessa área, excluindo-se, portanto,medidas de proteção social de caráter universal.

A propagação da filosofia sintetizada na frase do pre-sidente Reagan “o Estado não é a solução é o problema”foi reforçada por mudanças na correlação de forças so-ciais no plano internacional, iniciadas com a queda do murode Berlim, em 9 de novembro de 1989, e o colapso dosistema comunista do Leste Europeu, em 1991, consagran-do os Estados Unidos como nação hegemônica e, portan-to, os princípios do figurino neoliberal propiciadores denovos meios para o processo de acumulação e concentra-ção capitalista.

Em 1990, depois de praticamente trinta anos sem elei-ções diretas, foi eleito, para a Presidência da Repúblicado Brasil, Fernando Collor de Mello, representante dasforças conservadoras do país, que, apesar de ter sido de-posto após um ano e nove meses de mandato, implantou oideário neoliberal na política econômica brasileira. As-sim, foram quebradas as barreiras que protegiam o mer-cado nacional contra a concorrência estrangeira, tal comohavia ocorrido em outros países da América Latina, acre-ditando-se que assim seria possível promover a supera-ção de problemas nacionais gerados pela presença de al-tas taxas de inflação, estagnação econômica e aumento dodesemprego, presentes na sociedade brasileira durante osanos 80, a chamada década perdida.

A internacionalização da economia brasileira pode tertrazido algumas vantagens para os consumidores, que

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PREVIDÊNCIA DO TRABALHADOR: UMA TRAJETÓRIA INESPERADA

puderam contar com produtos de melhor qualidade e pre-ços mais baixos que os nacionais, porém, provocou criseem vários setores da indústria nacional, que, se não fe-charam, tiveram que passar por um processo de profundareestruturação industrial, o que acarretou grande reduçãode postos de trabalhos, agravando ainda mais o problemado desemprego, que já era grave no país desde os anos80, quer por motivos econômicos, quer pela introduçãode inovações tecnológicas, que substituem homens pormáquinas.

Todos estes componentes de ordem política e econô-mica afetaram sobremaneira a previdência, caso se consi-dere que ela deva contar somente com os recursos prove-nientes das contribuições de empregados, calculadas sobreo salário, e dos empregadores, que incidem sobre o totalda folha de salários. Tome-se como exemplo o decrésci-mo de 4,5% do valor da receita real8 das contribuiçõesprevidenciárias entre 1996 (R$ 72,04 bilhões) e 2002(R$ 68,84 bilhões), enquanto as despesas com benefícios,no período, aumentaram 24%.

Assim, enquanto reduziam-se os postos de trabalho,como conseqüência da conjuntura econômica e das con-tribuições previdenciárias, o número de benefícios previ-denciários aumentava sobremaneira. Entre 1988 e 2000,para se ter uma idéia, todas as espécies de benefíciosprevidenciários em manutenção, excluindo-se as aposen-tadorias, aumentaram 66%, passando de 5.585.817 para8.461.016. Considerando-se um único tipo de benefício,o da aposentadoria – o mais numeroso9 e de maior pesono orçamento da previdência – entre aqueles dois anos, oaumento foi da ordem de 87%, passando de 6.100.746 para11.413.959.

O aumento do número de pessoas que entram para aaposentadoria, deve-se em parte, à trajetória dos sistemasprevidenciários. Isto porque, nos primeiros anos de suaexistência, o número de contribuintes é crescente e sãopoucos os segurados que atendem aos requisitos para seaposentarem, a não ser alguns por invalidez ou doença,como aconteceu nos primeiros tempos das CAPs e dosIAPs. Na maturidade do sistema, ao contrário, é grande onúmero dos que atingiram as condições para requerer odireito da aposentadoria por idade ou tempo de serviço.Assim, o crescimento do número de aposentados entre1988 e 2000 deve-se ao nível de maturidade do sistemaprevidenciário brasileiro, pois a população que entrou nomercado de trabalho entre 1950 e 1960 – período de ex-pansão da economia brasileira – já podia responder à exi-gência legal para se afastar de suas atividades.

Outro fator responsável pelo aumento das aposentado-rias no período pós-constituinte refere-se ao fato de te-rem sido colocados em discussão no Congresso Nacio-nal, logo no início dos anos 90, projetos de lei visando areforma da previdência, que foram largamente noticiadospelos meios de comunicação de massa. Diante do perigode verem alteradas as regras estabelecidas para a obten-ção da aposentadoria, foi grande o número de pessoas queprocuraram obter este benefício, pois já tinham tempo deserviço necessário para se aposentarem.

A redução das contribuições previdenciárias, provocadapor elevadas taxas de desemprego ao lado do aumento donúmero de aposentados, agravou a relação entre contri-buintes e segurados da previdência, uma vez que aquelesconstituem uma das principais fontes de recursos destina-dos ao pagamento dos benefícios. Segundo estudo doMinistério da Previdência Social, na década de 50, oitocontribuintes financiavam um aposentado. Na de 70, essarelação era de 4,2 para um e, nos anos 90, baixou para 2,3pessoas trabalhando para um aposentado (BRASIL, 1997).

Além dos problemas derivados da conjuntura interna,o Brasil pós-constituinte, devido ao cenário político in-ternacional, defrontou-se com imposições de organismosinternacionais, dominados pela nação hegemônica (Fun-do Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial e Or-ganização Mundial do Comércio – OMC), no sentido deaplicar medidas de política econômica, visando o ajustefiscal e de tal forma que as despesas não superassem asreceitas, obtendo-se assim um superávit que permitisse aopaís cumprir o compromisso de pagar dívidas assumidaspelo governo brasileiro no exterior, inclusive em perío-dos anteriores à Assembléia Constituinte, como condiçãopara a obtenção de novos créditos, quando o país preci-sasse. A estas medidas somavam-se pressões externasagravadas pelas internas, em favor da estabilidade damoeda, a fim de evitar o descontrole da economia causa-do por altas taxas de inflação, durante os anos de 80, e sóestancado em 1994, graças ao Plano Real.

Se as determinações constitucionais fossem obedeci-das, os recursos destinados à Seguridade Social, em 2001,seriam da ordem de R$ 137,52 bilhões e a despesa,R$ 105,41 bilhões, restando um saldo de R$ 32,11 bilhões.Considerando-se somente as receitas previdenciárias lí-quidas, advindas das contribuições obrigatórias (R$ 62,49bilhões) versus o total de pagamento de benefícios(R$ 78,70), a previdência, entretanto, passa a apresentarum déficit da ordem de R$ 16,21 bilhões (MARQUES etal., 2002), pois os recursos da Seguridade Social são uti-

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lizados pelo governo para cobrir outros tipos de compro-missos, como o de gerar superávit no critério das contasprimárias no orçamento federal (receitas menos as despe-sas, desconsiderando os juros) para atender exigências doFMI.

Entretanto, ao tratar da previdência, afora as variáveisde natureza sociopolítico e econômica, é preciso obser-var que ela também sofre influências derivadas das trans-formações em curso na estrutura demográfica do país. Umadelas refere-se ao aumento da expectativa de vida da po-pulação, reflexo do desenvolvimento técnico científico queatinge todos os povos, independentemente do seu grau dedesenvolvimento, permitindo o prolongamento, cada vezmaior, do número de anos de vida da população adulta. Aoutra refere-se à queda da taxa de crescimento da popula-ção, provocada pela diminuição da taxa de fecundidade,devido às transformações econômicas e sociais do mundomoderno e ao avanço de métodos contraceptivos. Assim,os estudos demográficos mostram que a composição daestrutura etária da população mudará substancialmente.No lugar de predominarem os jovens (idades inferior a 15anos) passará a se destacar, de maneira crescente, a popu-lação em idade ativa (15 a 64 anos) e será cada vez maiora participação dos idosos na população total.

Ilustram esse comportamento demográfico os resulta-dos dos dois últimos censos. Em 1991, a taxa de cresci-mento anual da população brasileira era de 1,9% e, em2000, passou para 1,6%. O segmento de crianças de 0 a14 anos no total da população diminuiu de 34,73%, em1991, para 29,60%, em 2000, e o grupo com mais de 65anos aumentou de 4,83% para 5,85%, no mesmo período(IBGE, 1994; 2001).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No período pós-constituinte o Estado, por meio do po-der que lhe confere a lei, tem criado vários expedienteslegais, que lhe permitem utilizar o superávit da SeguridadeSocial para fins diversos daqueles para os quais legisla-dores de um período recente da nossa história haviam des-tinado.

Assim, enquanto o número de contribuintes não cres-cer – porque a economia não cresce e, conseqüentemente,o mercado de trabalho não tem vagas suficientes para ofe-recer à população que procura emprego –, a previdênciaapresentará déficits. É preciso, entretanto, lembrar a his-tória desse sistema de proteção social do trabalhador. Foipor determinação do Estado que o gerenciamento do se-

guro social passou para suas mãos, pois era extremamen-te vantajoso, para ele, poder dispor dos enormes recursosfinanceiros que apresentava. Assim, como a previdênciapassou a fazer parte do orçamento do Estado, no momen-to em que esta apresenta déficit, seja quem for o gover-nante, ele é obrigado a lhe repassar recursos para cobri-lo. Neste momento, então, o governo afirma que é precisoalterar as regras estabelecidas. Como? Propondo reformara previdência.

As primeiras propostas de reformar a previdência fo-ram elaboradas em 1990, no Executivo, sob o comandodo presidente Fernando Collor, antes mesmo de estar con-cluído o processo de regulamentação dos preceitos cons-titucionais visando sua regulamentação (COELHO;SCHATTAN, 1999).

Em 1992, mal haviam sido promulgadas as Leis nos

8.212 e 8.213, de dezembro de 1991, regulamentando,respectivamente, o custeio e os benefícios previdenciários,de modo a permitir a operacionalização das determina-ções constitucionais, formou-se no Congresso Nacionaluma comissão especial para estudo do sistema previden-ciário. Em 1995, o Executivo, agora sob o comando deFernando Henrique Cardoso, apresentou proposta de emen-da Constitucional, a fim de modificar os preceitos queimpediam a reforma da previdência.

Em 1998, depois de um longo processo de tramitaçãono Congresso Nacional, foi obtido acordo para a apro-vação da proposta de alteração da Constituição, a EmendaConstitucional n. 20, que permite a elaboração de leispossibilitando mudanças para atingir, especialmente, obenefício da aposentadoria. O piso de um salário míni-mo, para todos os benefícios, não sofreu alteração. Asmodificações, certamente mais significativas, ocorreramcom a desvinculação do valor do teto com o salário mí-nimo, que os constituintes de 1988 haviam determinado,e as mudanças introduzidas na fórmula de cálculo do valorda aposentadoria, que deixou de ser calculada pela mé-dia das contribuições dos últimos trinta e seis meses,passando a se considerar a média correspondente a 80%de todo o período contributivo e ainda a idade e a ex-pectativa de vida de quem a requisita, de forma a dimi-nuir seu valor, dependendo da estimativa do número deanos que o segurado irá sobreviver dentro do sistema debenefício.

É preciso salientar, ainda, que alterações dos benefí-cios da previdência do trabalhador, que não dependiamde mudanças na Carta Magna, também foram realizadas.Assim, entre 1994 e 1996, foram extintos alguns tipos de

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PREVIDÊNCIA DO TRABALHADOR: UMA TRAJETÓRIA INESPERADA

benefícios, como o abono, o pecúlio,10 os auxílios natali-dade e funeral11 e limitada a concessão das aposentado-rias especiais.12

Enfim, o governo, utilizando os argumentos relaciona-dos com o desempenho das contas governamentais, a si-tuação da economia e seus reflexos sobre o mercado detrabalho e a evolução demográfica do país, tem consegui-do, senão destruir, pelo menos reduzir os propósitos deconstrução do sistema de proteção social, que a Consti-tuição de 88 havia estabelecido.

As modificações legais do sistema de previdência dostrabalhadores, administrado pelo Instituto Nacional doSeguro Social – INSS, que desde 1990 substituiu o INPS,apesar de tudo continua a se estruturar segundo o modeloconstruído pelos trabalhadores, isto é, baseia-se em laçosde solidariedade entre gerações. Assim, a população ocu-pada, que contribui para sua manutenção, é a principalresponsável pelos recursos destinados ao pagamento dosbenefícios atuais, e tem por isso garantido o direito detambém utilizar o sistema quando for se retirar do merca-do de trabalho.

O Estado Brasileiro, contudo, além de tornar a velhicedo trabalhador mais sofrida e pobre, continua a utilizar osrecursos da sua previdência para outros fins. Tal como jáaconteceu em épocas passadas, o caixa da previdênciaserve para financiar as atividades econômicas do país. Emmaio de 2004, a dívida ativa13 de empresas e bancos quenão pagaram o que é legalmente devido ao INSS era daordem de R$ 78,7 bilhões (MPS, 2004). Desta importân-cia, excluem-se as empresas que estão questionando seusdébitos na justiça e os devedores que estão pagando emparcelas o que devem à previdência.14 Em fevereiro de2004, o jornal Folha de S.Paulo noticiava em mancheteque o conjunto de empresas em débito com a previdênciaterão 8.900 séculos para quitarem suas dívidas.

O artigo 88 da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991,determina a divulgação da lista de devedores do INSS.Essa exigência foi cumprida, pela primeira vez, em junhode 2003, permitindo que a sociedade tomasse conhecimen-to do tamanho da prodigalidade do Estado brasileiro. Estaatitude seria uma indicação de mudança de rumos em re-lação à previdência que assiste o trabalhador?

Não há respostas imediatas sobre o caminho que aprevidência seguirá. Entretanto, teme-se que as manifes-tações de Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve,o banco central dos Estados Unidos – diante do crescentedéficit público americano, recomendando ao Congressonorte-americano que corte os gastos sociais do país,

principalmente da previdência e da assistência médica, comoforma de evitar riscos para as atividades econômicas, casotenham que sofrer aumento de impostos –, constituam umnorte para a política social de outros países, como o Brasil.

NOTAS

1. A participação do Estado era correspondente a 2% de um impostoobtido da taxação de produtos importados, constituindo um incentivodireto à transformação das Caixas em Institutos (ANDRADE, 2003).

2. O salário-família é um valor mensal dado a cada filho de segurado(de até 14 anos de idade, ou de qualquer idade se inválido) ativo ouaposentado, exceto dos empregados domésticos e trabalhadores avulsos.

3. O salário-maternidade é concedido a todas as seguradas da previ-dência social, para se ausentarem do trabalho vinte oito dias antes doparto e noventa e um dias depois, sem prejuízo de vencimentos.

4. Inicialmente era necessário que o beneficiado comprovasse ter con-tribuído para a previdência durante cinco anos seguidos ou não, po-rém, posteriormente, esta exigência foi eliminada.

5. Sob a ditadura militar, foram cerceadas as atividades política e sin-dicais, impedindo manifestações contra a manutenção do salário mí-nimo abaixo dos índices de inflação. Segundo dados do Departamentode Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – Dieese, entre 1964 e 1974,a perda do poder aquisitivo do salário mínimo foi de 42% (DIEESE,2001; REGO; MARQUES, 2000, p. 262).

6. De acordo com Braga e Paula (1986 apud ANDRADE, 2003), “en-tre 1969 e 1976, os gastos do INPS com assistência ambulatorial cres-ceram 400%, enquanto na área hospitalar a expansão foi de 184,7%”.

7. Subordinavam-se ao MPAS, entre outros, o Fundo de Assistênciaao Trabalhador Rural – Funrural, a Legião Brasileira de Assistência –LBA e a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – Funabem.

8. Valores a preços constantes de 2002, corrigidos pela média anualdo Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna – IGP-DI da Fun-dação Getúlio Vargas.

9. Em 2002, as aposentadorias em manutenção representavam 66% dototal de benefícios em manutenção.

10. O abono era um auxílio financeiro que beneficiava quem tivessedireito à aposentadoria por tempo de serviço, mas optava por conti-nuar trabalhando. O pecúlio era pago de uma única vez para o segura-do que se incapacitasse para o trabalho, antes de ter completado o pe-ríodo de contribuição necessário para ter direito à aposentadoria porinvalidez e, ainda, quando o aposentado que continuava a trabalhar econtribuir para a previdência pública se afastava definitivamente dotrabalho.

11. Os auxílios natalidade e funeral transformaram-se em benefíciosassistenciais, isto é, são concedidos apenas às famílias com rendamensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo.

12. As aposentadorias especiais permitem entrar para a inatividade comtempo de serviço menor do que o exigido para os demais trabalhado-res. Era concedida para todos aqueles que trabalhavam em empresascujas atividades são nocivas à saúde, como também para certas cate-gorias de trabalhadores, como jornalistas e aeronautas. A aposentado-ria especial foi mantida exclusivamente para os trabalhadores quecomprovadamente exercem atividade insalubre e/ou de risco.

13. Débitos contraídos pelos contribuintes junto ao governo e aptos àcobrança judicial ou à execução fiscal.

14. Em novembro de 2004, o total da dívida ativa era da ordem deR$ 119 bilhões (FOLHA DE S.PAULO, 20 nov. 2004).

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ESTADO E SAÚDE: OS DESAFIOS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

T

Resumo: O artigo trata da relação entre Estado e saúde apresentando as dificuldades para a sua conceituaçãoe a retomada da sua trajetória na Europa e no Brasil. Mostra aspectos para a reflexão desta relação com aconsagração da saúde como direito social e dever do Estado pela Constituição Federal e indica os desafiospostos ao Sistema Único de Saúde.Palavras-chave: política de saúde; política social; Sistema Único de Saúde.

Abstract: This article deals with the connection between State and Health regarding to the difficulties ofconception and concerning to the retaking of its trajectory, both in Europe and Brazil. It also provides elementsto the reflection that Health is not only a social right but also a State’s duty guaranteed by Federal Constitution.This paper also points out the challenges set to the United Health System.Key words: Health Politics; Social Politics; United Health System.

PAULO EDUARDO ELIAS

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 41-46, 2004

ratar das relações entre Estado e saúde é um de-safio intelectual de porte, pois Estado admitevárias conceituações segundo as distintas cor-

rentes e escolas sociológicas e políticas (BOUDON;BOURRICAUD, 2001), enquanto a noção de saúde ain-da carece de definição satisfatória, isto é, fundada paraalém das referências à doença ou à linearidade biologis-ta e histórica contida na clássica formulação da Organi-zação Mundial de Saúde – OMS, por representar “o com-pleto bem-estar físico, psíquico e social”. Até porque asconexões entre Estado e saúde não se estabelecem deforma linear, mecânica, e não constituem vínculos de tipocausal. Antes, compõem relações complexas de nature-za socioeconômica e histórica.

Desse modo, o esforço a ser desenvolvido neste tra-balho é o de buscar situar tal relação, ainda que generi-camente, a partir de uma breve recomposição dessa tra-jetória desde a emergência do Estado moderno na Europa,tomado como referência maior da natureza dessa liga-

ção. A seguir, a recomposição contemplará o caso brasi-leiro até as conjunturas mais recentes e os desafios quedesta perspectiva se colocam ao Sistema Único de Saú-de – SUS.

Neste trabalho, o SUS é entendido como a principalpolítica pública para o setor de saúde e o projeto maiordo movimento sanitário brasileiro. No momento históri-co atual tem o desafio principal de efetivar-se como Po-lítica de Estado. Isso representa (re)significar o SUScomo expressão da negociação Estado/sociedade consa-grada na Constituição Federal e, portanto, imune em seusfundamentos às naturais alternâncias de poder. É um gran-de desafio, a julgar as práticas políticas históricas e cor-rentes, vigentes nas três esferas de governo, de partida-rização da máquina pública e apropriação das políticassociais pelos governantes em prol da lógica de sua re-produção política. Ao se recompor a trajetória do setorsaúde no Brasil, serão apontados fenômenos que expres-sam a natureza dessa relação Estado/saúde.

ESTADO E SAÚDEos desafios do Brasil contemporâneo

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O ESTADO E A SAÚDE

Para apresentar os pressupostos que orientam esta abor-dagem, cabe explicar a noção de Estado utilizada. Comojá assinalado, definir Estado é uma tarefa quase impossí-vel, uma vez que o seu conceito não é universal, comonos ensina Schiera (1998), mas serve apenas para indicare descrever uma forma de ordenamento político surgidana Europa a partir do século XIII na base de pressupostose motivos específicos da história européia, que se esten-deu a todo mundo civilizado, libertando-se das condiçõesoriginais e concretas de nascimento.

A história do surgimento do Estado moderno é a histó-ria da tensão do complexo sistema de poder dos senho-rios de origem feudal – policêntrico e, em decorrência,pulverizado – indo até o Estado territorial concentrado eunitário, por meio da racionalização da gestão do poder eda própria organização política imposta pela evolução dascondições históricas materiais. Segundo Weber (1980), talcentralização se traduz no monopólio da força legítima,apontando a dimensão propriamente política do Estadopara além de seu aspecto organizativo e funcional. Issoimplica a pesquisa de forças históricas – para Marx, aburguesia e o proletariado – que interpretaram o novo cursoe se tornaram portadoras dos novos interesses políticosem jogo. Assim, o Estado também expressa relações depoder entre interesses sociais conflitantes.

Com o advento da era moderna, a saúde torna-se maté-ria de Estado, isto é, das políticas públicas. É justamenteno grande movimento compreendido pelo processo histó-rico do século XV ao XIX, em que se estabelece a ordemcapitalista na Europa, é que a saúde passa a ser objeto daintervenção estatal por meio de políticas públicas(FOUCAULT, 1977).

Esse processo histórico se caracteriza pela transição deuma lógica territorial – materializada no feudo e nas rela-ções sociais dele decorrentes – para uma lógica setorial –assinalada na formação das categorias profissionais disso-ciadas do território, materializada nas corporações profis-sionais e nas relações sociais originadas por elas –, queimpera a partir do século XIX. Da perspectiva da economiapolítica (SINGER, 1975), essa passagem traduz a disso-ciação entre produção e reprodução e assim estabelece acontradição entre lógicas globais e setoriais. Em tal situação,a política pública torna-se o mecanismo de intermediaçãoentre o global (todo) e o setorial (as categorias profissionais),transformando-se em instrumento privilegiado do Estadopara minimizar as contradições e os conflitos sociais geradospelo confronto entre as duas lógicas.

Por esse aspecto, as políticas públicas constituem instru-mentos para a atuação do Estado e a Política Social écentral para a regulação estatal. Já os pressupostos teóricosdo Estado para se pensar a área social estão centrados nareprodução da força de trabalho. Dessa forma, a PolíticaSocial como tipo particular de Política Pública promovea regulação entre Estado, economia e sociedade, e ao seformularem as políticas de saúde pública, como as do SUS,é exatamente esta a natureza da regulação envolvida.

Em suma, a gênese da relação Estado/saúde na era mo-derna é a expressão da regulação estatal da saúde para anova ordem social e econômica emergente – a ordem bur-guesa – e centrada na reprodução da força de trabalho.No entanto, tal regulação expressa as contradições e con-flitos entre o global (todo) e o setorial (parte).

Assim, na Inglaterra do século XVII, são clássicos ostrabalhos iniciais de William Petty indicando a importânciado estudo quantitativo do fato social e incentivando seuamigo John Graunt, comerciante londrino de roupas masculi-nas, a se colocar como um dos pioneiros da estatística comsua obra sobre mortalidade publicada em 1662. Ela envolvea busca de regularidades matemáticas em acontecimentoshumanos como nascimentos, mortes e incidência de doenças.Em 1714, Bellers publica um tratado no qual estabelece umplano para um serviço nacional de saúde, que caracterizaos primórdios da estatística vital (REGONINI, 1998).

Posteriormente, no século XIX, a Lei dos Pobres (1834)documenta uma das primeiras incursões do Estado mo-derno no campo da saúde. Mediante essa edição, o Esta-do provia esses indivíduos por considerá-los tendencial-mente perigosos para a ordem e higiene públicas. É tambémclássico o projeto levado adiante na Prússia entre 1883 e1889, por Bismark, para a construção de um sistema deseguridade social voltado para o proletariado e centradonas corporações profissionais (lógica setorial), que con-templava a assistência médica individual. Tal movimentoabrange outros países europeus, como França, Itália, paí-ses nórdicos, mas é na Inglaterra do início do século XX,no período entre 1905 e 1919, que, sob um alinhamentopolítico progressista de inspiração igualitária, institui-seum seguro nacional de saúde aliado a um sistema fiscalfortemente progressivo.

No conjunto da Europa, a relação Estado/saúde terá suaexpressão mais notável após a Segunda Guerra Mundial,com a constituição do Welfare State, representando o de-senvolvimento desse tipo particular de Estado que se de-nomina Estado Social e ainda hoje é muito vigoroso na-quele continente. Seu princípio fundamental é expresso pelopostulado de que, independentemente da renda, todos os

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ESTADO E SAÚDE: OS DESAFIOS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

cidadãos têm direito a ser protegidos, com pagamento emdinheiro ou serviços, contra situações de dependência lon-ga, tais como velhice ou invalidez, e curta, como doença,desemprego e maternidade. O slogan dos trabalhistas in-gleses em 1945, “participação justa de todos”, resume oconceito do universalismo da contribuição que é o funda-mento do Welfare State (REGONINI, 1998).

A explicação para a gênese desse tipo particular de Es-tado divide os autores em duas correntes principais: osque ressaltam o papel desempenhado pelos fatores eco-nômicos (o crescimento da economia como seu impul-sionador) e aqueles que acentuam a política (a ameaça àordem capitalista representada pela Revolução de 1917na Rússia), tema para outra oportunidade. Importa assi-nalar aqui que os estudiosos consideram o desenvolvimentodo Welfare State uma quebra da separação entre a socie-dade (ou mercado, ou esfera privada) e o Estado (ou polí-tica, ou esfera pública), tal como concebido no modelode sociedade liberal.

Nos países capitalistas periféricos esse movimento re-percute desigualmente em função das especificidades pre-sentes em cada um deles; no entanto, em todos apresentaum padrão mitigado perante o movimento originário(LAURELL, 1995). Desse modo, desenvolvem-se siste-mas de proteção específicos geralmente vinculados ao mer-cado formal de trabalho, compondo na maioria das vezessistemas previdenciários solidários sob a égide do méto-do de repartição simples.

No caso brasileiro, como veremos, o esmaecimento daseparação entre a esfera privada e a pública explicita-seno âmbito do econômico, quando o Estado se apresentacomo uma espécie de sócio do capital privado, ainda queno plano das políticas públicas não se tenha verificadonenhuma iniciativa comparável ao modelo do Estado deBem-Estar Social.

Quanto à relação Estado/saúde, o advento do Estadode Bem-Estar Social significa a desmercantilização dasaúde com a elevação de seu estatuto a direito universal enuclear para a cidadania plena.

A RELAÇÃO ESTADO/SAÚDE NO BRASIL

No Brasil, apesar de a intervenção estatal no setor dasaúde ocorrer desde o período colonial, mais precisamenteno início do século XIX (MACHADO et al., 1978), asformas mais incisivas da intervenção se dão a partir doperíodo republicano. Na dimensão coletiva da saúde, sãoexemplos clássicos da especificidade da regulação Estado-sociedade-economia, as intervenções sanitário-urbanas

realizadas no início do século XX nas cidades dos principaisportos brasileiros – Rio de Janeiro e Santos – e as campanhaspela erradicação da febre amarela, que na época assolavaessas cidades, resultando na insurgência popular conhecidacomo revolta da vacina e a fúria dos moradores dirigida aseu idealizador, o sanitarista Oswaldo Cruz (COSTA, 1985).

Dados os interesses mais específicos em jogo, é na di-mensão individual da saúde representada pela assistênciamédica que a relação Estado/saúde vai revelar melhor asua especificidade no caso brasileiro.

A origem da intervenção estatal na assistência à saúdeno Brasil tem na Lei Elói Chaves um significativo marco.Editada em 1923 – período no qual o Estado Social já seconsolidara na Europa, e após as movimentações operá-rias do período 1910 a 1920 –, estabelecia os marcos re-gulatórios para as aposentadorias, pensões e assistênciamédica, numa espécie de arremedo ao que se passava naEuropa desde o século anterior.

Vejamos os motivos dessa qualificação. Tal qual osmodelos europeus, essa política pública nasce vinculadaao mundo do trabalho, portanto submetida à lógica seto-rial corporativa. Entretanto, no caso brasileiro, não se efe-tivou para abranger o conjunto dos trabalhadores, masapenas parte deles: justamente aqueles vinculados aospólos mais dinâmicos da economia, como os ferroviáriose os portuários. Seu financiamento dava-se exclusivamentepor desconto compulsório na folha de salário, sem qual-quer participação de recursos fiscais do Estado.

Assim, a assistência médica previdenciária emerge noBrasil mercantilizada sob a forma de seguro, no qual a garan-tia do acesso aos serviços de saúde é feita com pagamentomediante desconto compulsório, ao mesmo tempo em quese estrutura um sistema urbano de assistência quando amaioria da população era rural. Da mesma forma, configu-ra-se segmentado e socialmente excludente, isto é, privilegiaa população urbana em detrimento da maioria rural. Na áreaurbana atinge apenas a força de trabalho e, entre ostrabalhadores, favorece os vinculados aos pólos dinâmicosde acumulação capitalista. A saúde assim estruturadaconcorre para o padrão de regulação social denominada porSantos (1979) de cidadania regulada, mantendo-se pratica-mente intocada até o final da década de 80.

Esse modelo centrado na lógica setorial (corporações)tem sua expressão mais completa nos anos 30 e 40. Inicial-mente, com a estruturação dos Institutos de Aposentado-rias e Pensões – IAPs por categoria profissional, foi man-tida a contribuição compulsória sobre a folha de salário e avinculação ao trabalho formal, possibilitando um duplopadrão na relação público/privado. São exemplos, o Instituto

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de Aposentadoria e Pensões dos Bancários – IAPB, queinvestia em serviços próprios, e o Instituto de Aposentadoriae Pensões dos Industriários – Iapi, que comprava serviçosde terceiros. Eis a tensão que irá marcar o sistemaprevidenciário brasileiro, com a poupança previdenciáriaservindo de base para a reprodução do capital pela via daassistência à saúde, que desta maneira inicia seu processode mercantilização.

Nos anos 40, o modelo setorial é estendido aos traba-lhadores do setor público por meio dos sistemas de previ-dência fechados nas diferentes esferas de governo, taiscomo o do Instituto de Previdência dos Servidores – Ipase,no âmbito federal, e o do Instituto de Assistência Médicado Servidor Público Estadual – Iampse, abrangendo osfuncionários paulistas.

A configuração público/privado na saúde como expres-são da sua mercantilização tem sua expressão maior nacriação do Instituto Nacional da Previdência Social – INPS(pós-golpe militar de 1964), que por meio da imple-mentação de políticas voltadas para o setor privado dasaúde se constituirá em potente instrumento para aampliação da dinâmica de acumulação no setor (COHN,1980). Esse novo ajuste revela a organicidade da relaçãoEstado/saúde em prol dos interesses dos produtoresprivados, pois ao Estado se reservava a função de organizara clientela, financiar a produção de serviços e subsidiar oinvestimento privado para ampliação da capacidadeinstalada (COHN, 1995). Eis aí o processo sociopolíticoe histórico que engendra a privatização precoce do sistemade saúde brasileiro com a conseqüente estruturação daprodução de serviços de saúde em moldes privados elucrativos, fenômeno que na América Latina se iniciaráapenas na década de 80 com o golpe militar no Chile.

A CONTEMPORANEIDADE E OADVENTO DO SUS

No Brasil, o movimento de consolidação do setor pri-vado na saúde ganha velocidade a partir do final da déca-da de 80, com o fechamento do ciclo de industrializaçãopropiciado pelo projeto nacional desenvolvimentista queorientou a ação estatal desde os anos 30.

Pois é justamente nesse momento histórico de grandeindefinição para o projeto econômico do Estado e em plenoprocesso de saída da ditadura militar com a redemocrati-zação da relação Estado/sociedade, que a noção deseguridade social é consagrada na Constituição Federal.Tal fato assinala um importante ponto de inflexão nasPolíticas Públicas de saúde vigentes.

Pela primeira vez nas Cartas Constitucionais brasilei-ras, a de 1988 apresenta uma seção específica para a saú-de, consagrando-a como direito do cidadão e dever do Es-tado. Esse procedimento desloca a noção de seguro social,vigente desde os anos 20, pela de seguridade, isto é, à se-melhança do que ocorre no Estado de Bem-Estar Social,está previsto que o acesso pleno ao sistema de saúde pas-sa a não depender da renda, buscando-se garantir um novopadrão de cidadania.

Tal deslocamento, ao mesmo tempo em que constituium ponto de apoio para a redefinição radical das políti-cas públicas, por exigir a desmercantilização da saúde,revela-se fonte de enormes tensionamentos e conflitos aose confrontar com a realidade do acelerado processo demercantilização da saúde como tendência mundial. NoBrasil, esse movimento se expressa no crescimento rápi-do do sistema privado de saúde (BAHIA; VIANA, 2002).Em escala progressiva, a área da saúde vai se firmandocomo fonte para acumulação de capital.

Ademais, o tema da reforma do Estado, em moldesprevistos pelo Consenso de Washington ou pela denominadaAgenda Neoliberal, começa a fazer parte do temário dapolítica brasileira já no início dos anos 90 (OLIVEIRA,1999). A entrada se principia justamente pelo ajuste fiscaldo Estado, o que resulta em violento “desfinanciamento”das políticas sociais e particularmente das de saúde.

O SUS, a mais ambiciosa e abrangente política públicade saúde já formulada no país, emerge completamentesitiado pela disposição da relação Estado/sociedade nessemomento histórico. De um lado, acossado pelo que pode-ríamos denominar de a nova agenda de problemas, expressãoda atual conformação do Estado, representada peloacolhimento da mercantilização da saúde – caracterizada,sobretudo, pela regulamentação do sistema privado de saúde(planos e seguro-saúde) –, pela ótica do consumidorcompletamente à margem do SUS, pela adoção de parâme-tros de gestão permeados pela noção de custo/efetividadeou custo/benefício e pela flagrante insuficiência do financia-mento perante os compromissos previstos na ConstituiçãoFederal na área da saúde (COHN; ELIAS, 2003).

De outro, assomam os tradicionais problemas que com-põem persistentemente a agenda do Estado brasileiro, ex-pressos pelo patrimonialismo, pela reprodução das iniqüi-dades sociais nas políticas públicas, pela persistência deum padrão infenso a qualquer forma de controle público,pela ineficiência social da máquina pública e por suasdebilidades na regulação de áreas e setores estratégicospara a emancipação social, com o objetivo de mitigar aimensa dívida acumulada com amplos setores da popula-ção (OLIVEIRA, 1999).

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ESTADO E SAÚDE: OS DESAFIOS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Como construção política e histórica, vinculado ao pro-jeto de desenvolvimento do capitalismo, o SUS permeiae é permeado por essas contradições em sua trajetória deafirmação como política pública. Nessa medida, à seme-lhança do Welfare State, não se presta a constituir um meiopara o questionamento da ordem social capitalista, comoimaginado por setores do movimento da reforma sanitá-ria brasileira (ESCOREL, 1998).

Ademais, durante 67 anos ajustou-se uma relaçãoEstado/saúde fundada na noção de seguro e no acessocontra pagamento dos serviços, construindo uma culturada saúde como mercadoria a ser mediada pelo mercado,realçando o pagamento como fonte de legitimação doserviço prestado e transformando o usuário em consumidorem detrimento do seu estatuto de cidadão. Há apenas 17anos, desde 1988, intenta-se a mudança nessa cultura – oque demanda horizontes do tempo histórico – por meioda noção de seguridade e da afirmação da saúde comodireito universal, ainda que, como se viu, sem contar coma conformação de um Estado voltado para estes objetivos.

No entanto, a efetivação do SUS tem apenas 12 anos,iniciando-se com a implementação da Norma Operacio-nal Básica – NOB 01-93, significativamente intitulada “Aousadia de cumprir e fazer cumprir a Lei”, marcando tam-bém um ato de vontade política do movimento pela muni-cipalização da saúde. Em complemento a esse processo,somente a partir de 1998, com a efetivação da NOB-01-96, ampliam-se as transferências financeiras fundo a fun-do, isto é, do Fundo Nacional de Saúde para os fundosestaduais e municipais, o que irá caracterizar o grau deautonomia dos entes subnacionais e qualificar a descen-tralização da saúde em curso.

Portanto, o SUS constitui uma política pública cujoprincípio fundamental é a consagração da saúde comodireito universal. Em razão de seu pequeno curso históri-co, encontra-se em estruturação e, por isso, vulnerável atoda sorte de investidas para consagrá-lo ou para abortá-lo em seu fundamento maior.

A efetivação da saúde, portanto, em conformidade comos ditames constitucionais, exige providências de váriasordens, a começar pela reforma do Estado para torná-locapaz de realizar a saúde como direito universal. A conse-cução desse objetivo exigirá do Estado a formulação depolíticas voltadas à desmercantilização da saúde – o queno âmbito mais imediato da assistência médica implica oincentivo a formas não lucrativas, em detrimento das mo-dalidades lucrativas na produção de serviços –, e à buscaincessante de novas modalidades de gestão na relação pú-blico/privado, capazes de viabilizar a eficácia social do sis-tema de saúde.

Somente dessa maneira se criam as condições para aconstrução de uma nova e potente consciência sanitária,fundada na noção da saúde como necessidade social a serprovida nos marcos da regulação estatal e, portanto, emcontraposição ao ideário corrente da saúde como bem aser satisfeito nos parâmetros de mercado.

A exigência dessa nova consciência sanitária univer-salista e cidadã torna-se indispensável para que o projetode mudança na saúde, com o pleno desenvolvimento doSUS, aconteça ancorado em bases sociais sólidas e nãoem imposição do Estado por meio de estratos políticos eou de técnicos iluminados, encastelados no aparelho deEstado. A nova consciência sanitária será o elemento defortalecimento da relação Estado/sociedade renovada e emprol da efetivação da saúde como direito universal, im-portante passo para a vigência de um outro padrão de ci-dadania na sociedade brasileira. Ao contrário do ideáriovigente em algumas instâncias decisórias do governo, oprojeto “mudancista” passa também por uma regulação decaráter setorial, abarcando as corporações – médicos àfrente – sem ultrapassá-las ou negá-las, a fim de efetivarum tipo de regulação que, ao englobar o conflito, seja tam-bém capaz de afirmar o interesse geral sobre o particularem prol da eficácia social da ação estatal.

No entanto, nos anos 90 acentuam-se os conflitos quan-do a agenda passa a ser pautada por uma certa reforma doEstado influenciada pelo movimento da globalização e pe-los postulados do neoliberalismo. Principalmente no terçofinal da década de 90, essa reforma promove o esmae-cimento da linha que separa o Estado do mercado, influen-ciada por iniciativas internacionais de “parceria” ou, me-lhor dizendo, de verdadeira sociedade entre os entes públicoe privado, como a expansão das linhas de metrô em Lon-dres e a construção de rodovias em Portugal e Espanha. Ilus-tra essa tendência a recente Lei Federal que institui normasgerais para a parceria entre os setores público e privado,denominada de Parceria Público-Privado – PPP, inicialmen-te dirigida para as áreas de infra-estrutura. Transpostas paraa área da saúde, essa nova configuração representaria umaampliação do conceito vigente nas Organizações Sociaisde Saúde – OSS ou mesmo das Ocips federais que funcio-nam sob os fundamentos da concessão. No caso do estatu-to da PPP, trata-se do compartilhamento no investimento,que resulta em participação na propriedade do equipamen-to – daí a designação de sociedade –, situação até o mo-mento inexistente no âmbito das políticas sociais atuais. Taltendência denota a crescente aproximação Estado/capita-lismo, revelada com grande crueza para os padrões liberaisvigentes até meados do século XX, talvez expressão dessemomento histórico em que os capitais privados se impõemdiante dos Estados nacionais (FURTADO, 2000).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que toca mais de perto a saúde, verifica-se o acirra-mento das contradições perante o processo de globalizaçãoem curso, no qual o complexo médico-industrial – a indústriafarmacêutica, a de equipamentos e a de insumos médicos –destaca-se como um dos mais ativos pólos do capitalismo,pressionando pelo crescimento da saúde como mercadoriae como setor de realização do lucro (GADELHA, 2003).

No entanto, para afastar o ceticismo exacerbado e o desâ-nimo paralisante, convém assinalar que a política e sua açãonão se esgotam na razão, pois a política não é uma ciênciaexata como ensina Bismark. Antes de tudo ela é movidapor emoção, sangue, vontade férrea, utopias e projetos.

O SUS, desafiando racionalidades, vem se mantendocomo um projeto que busca avançar na construção de umsistema universal de saúde na periferia do capitalismo, numpaís continental populoso e marcado por enorme desigual-dade social, caso raro ou talvez único entre as nações. Noentanto, as possibilidades para a saúde no futuro mais ime-diato encontram-se inexoravelmente atreladas ao êxito doEstado na formulação de políticas públicas voltadas aoenfrentamento da exclusão social, de longe a maior ma-zela brasileira. Isso envolve a reformulação do padrãohistórico de compromissos do Estado brasileiro com osinteresses do capital, no momento atual implicando a dis-cussão política mais ampla para o encaminhamento dasformulações possíveis na área econômica em detrimentodo tratamento essencialmente tecnicista vigente nas esfe-ras governamentais.

Na situação de manutenção ou mesmo de aprofunda-mento da exclusão social, tem-se a persistência do atualsistema de saúde segmentado, seletivo no acesso aos ser-viços segundo padrões de mercado, seguindo-se no SUSa universalização da assistência básica com o Piso daAssistência Básica – PAB. Esse piso serve de mecanismode controle de gastos e racionalização do setor, resultan-do em baixa eficácia social e num verdadeiro apartheidsocial na saúde. No plano da relação Estado/saúde essetipo de arranjo configura uma certa “desresponsabilização”do Estado para com a saúde, ao mesmo tempo em que secristaliza a mentalidade privada no setor.

Na situação de enfrentamento da exclusão social, o SUSganha grande alento compondo um projeto para a áreasocial centrado na distribuição de renda e articulador, pelomenos, das funções estatais na educação, na saúde e nosaneamento básico, a fim de promover a aproximação entreas razões social e econômica, que significa resgatar a eco-nomia para o plano da política.

Nesse último caso o SUS pode representar uma enor-me contribuição genuinamente brasileira para a AméricaLatina e para os países emergentes – o grupo de paísesque compõem o G20 –, além de manter acesa a chama daesperança por uma outra sociedade possível, justa, equâ-nime e emancipadora para os seres humanos.

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PAULO EDUARDO ELIAS: Professor do Departamento de Medicina Preven-tiva da Faculdade de Medicina da USP e Pesquisador do Cedec.

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REFORMA DO SISTEMA DE SAÚDE E AS NOVAS ATRIBUIÇÕES DO ...

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Resumo: As políticas sociais brasileiras têm sido submetidas, ao longo das últimas décadas, a profundas trans-formações e reformas. Nesse cenário, destaca-se a criação, o processo de estruturação e de reestruturação doSistema Único de Saúde, enfatizando as mudanças nas atribuições do gestor estadual enquanto fornecedor deserviços e administrador do sistema.Palavras-chave: política de saúde; políticas públicas; descentralização.

Abstract: The Brazilian social politics have suffered, in the last decades, deep transformations and reformssuch as the creation of the United Health System and its structuring transformations process, with emphasison the changes of the state’s management attributions as services supplier and system manager.Key words: health politics; public politics; decentralization.

IRINEU FRANCISCO BARRETO JUNIOR

ZILDA PEREIRA DA SILVA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 47-56, 2004

este artigo, analisa-se a recente reforma das po-líticas sociais no Brasil e, particularmente, noEstado de São Paulo, tomando como objeto de

discussão e norte analítico a descentralização das políti-cas de saúde, bem como a premissa de que esse proces-so, intensificado após a Constituição de 1988 com a cria-ção do Sistema Único de Saúde – SUS, apontou para umaumento da responsabilidade e da participação dos mu-nicípios na gestão da saúde e, nos últimos anos, acarre-tou uma transformação nas atribuições e competênciasdo gestor estadual, que adquiriu nova centralidade nosistema.

Esse gestor, especialmente a partir da implantação daNorma Operacional de Assistência à Saúde – Noas, em2002, teve sua responsabilidade ampliada, uma vez que aregionalização da atenção à saúde adquire espaço na agen-da do SUS e ele deve ser o grande articulador e gerentedo processo. É necessário diferenciar essa atuação em pelomenos duas frentes: o papel como “articulador” do siste-ma e como prestador de serviços de saúde.

Abordam-se, na primeira seção, aspectos teóricos eanalíticos sobre o processo recente de reforma e reestru-turação das políticas sociais – em especial no período quecompreende a segunda metade dos anos 90 até 2002, quan-do findou o governo de Fernando Henrique Cardoso – para,em seguida, tratar-se dos aspectos normativos e regula-dores do sistema de saúde no Brasil. Enfatizam-se, então,a Noas e as novas atribuições do gestor estadual e, porfim, a descentralização das políticas de saúde no Estadode São Paulo.

APONTAMENTOS TEÓRICOS E ANALÍTICOSSOBRE O PROCESSO RECENTE DE REFORMADAS POLÍTICAS SOCIAIS

O processo de reestruturação do Estado e, conseqüen-temente, das políticas sociais desenvolvidas ao longo dadécada de 90, teve no Sistema Único de Saúde um de seuscasos mais emblemáticos. Concluída a transição democrá-tica e no período que sucedeu a promulgação da Consti-

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GESTOR ESTADUAL

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tuição Federal de 1988, o sistema passou por uma sériede rearranjos e reformas em seu modelo na procura demaior eficácia e efetividade. Por ser um sistema financia-do publicamente, pelos diferentes níveis de governo –União, Estados e municípios –, esteve sujeito às oscila-ções econômicas que afetaram o país, particularmente aofinal dos anos 90, após a crise cambial de 1998.

A análise de Tapia e Henrique (1995) revela que o de-bate recente sobre as políticas sociais e seu reordenamentona América Latina tem sido crescentemente dominado porquestões associadas à adequação do gasto e de seu finan-ciamento às necessidades de ajuste fiscal. Isso significa-ria, segundo eles, um deslocamento das preocupaçõesdominantes nos processos de democratização, em que oreordenamento das políticas sociais estava diretamenteassociado à participação (popular), à gestão democráticae ao ajustamento da estrutura de gasto e financiamento àgeração de igualdade e proteção social com evidentes ten-dências universalistas.

Análise bastante crítica sobre o desenvolvimento doarranjo institucional das políticas sociais pode ser encon-trada no pensamento de Behring (2003, p. 23), ao defen-der a hipótese de que, “durante o período em análise, opaís esteve diante de uma contra-reforma do Estado, queimplicou num profundo retrocesso social, em benefíciode poucos”. Segundo a autora, ao abandonar a perspecti-va clássica do Welfare State, os Estados nacionais, incluin-do o Brasil, restringem sua ação a cobrir o custo de obrasde infra-estrutura sobre as quais não há interesse de in-vestimento privado, a aplicar incentivos fiscais e garantirescoamentos suficientes e a institucionalizar o processode liberalização e desregulamentação em nome da com-petitividade de suas economias.

Essa crítica é centrada nas medidas liberalizantes edesregulamentadoras da economia adotadas pelos paísesperiféricos, na década de 90, por orientação de organis-mos multilaterais como o Banco Mundial, que se torna-ram conhecidas como o Consenso de Washington. Nosacordos de refinanciamento de suas dívidas e de obten-ção de novos empréstimos, os países periféricos aderiramao receituário que preconizava, entre outros aspectos, aobtenção contínua e gradualmente elevada de superávitsprimários em suas contas externas, para saldar os venci-mentos de dívidas internas e externas e equilibrar as con-tas públicas. Nesse cenário, as políticas sociais caracteri-zam-se como gastos públicos e fazem parte do cômputototal das contas nacionais, objeto de auditoria e controlediante dos acordos firmados entre os Estados periféricos

e os organismos internacionais. Para Behring (2003, p. 64),nesse cenário as políticas sociais são analisadas por umdiscurso meramente ideológico, que as caracteriza comopaternalistas, geradoras de desequilíbrio fiscal, causado-ras de custo excessivo do trabalho e que devem seracessadas via mercado, perdendo assim, segundo a auto-ra, sua marca de direitos sociais, conforme preconiza aConstituição Federal e todo o ideário que levou à cons-trução, por exemplo, do Sistema Único de Saúde.

Esse posicionamento ideológico procura tirar a respon-sabilidade do Estado pelas políticas sociais, assim comopor seu financiamento, orientando-as para a focalização emobilização da sociedade por meio de ações individuaise voluntárias, oferecendo estímulos à procura de novosmodelos de gestão, em especial de parcerias entre Esta-do, mercado e sociedade civil, como as organizações não-governamentais prestadoras de serviços de atendimento,que na área da saúde encontram seu formato nas organi-zações sociais.

Para Cohn (2000), em análise sobre o mesmo período,prevalece a contraposição entre política econômica e so-cial, embate no qual se estabelece o ditame absoluto daeconomia sobre as formas de o país gerir a questão dapobreza e das desigualdades sociais, além de uma contra-dição de base entre a política de ajuste e de estabilizaçãoeconômica adotada pelo governo e a possibilidade de sepromover políticas sociais com impacto efetivo sobre odesenvolvimento social no país. No mesmo sentido apon-ta o diagnóstico proferido por Braga e Barros Silva (2001,p. 20), segundo o qual houve uma específica e perversarelação entre política econômica e política social nosanos 90 e que não seria exagero afirmar que ela é incom-patível com o desenvolvimento de uma política social queassegure a qualidade de vida e que não seja comprometi-da pelas instabilidades, crises e desigualdades promovi-das pela dinâmica econômica capitalista.

A submissão da política social à econômica geraria umcartel de ações que não combateriam efetivamente a desi-gualdade, uma vez que, diante das restrições orçamentá-rias para a intervenção pública e a oferta de serviços uni-versais, esse cartel priorizaria e investiria de formamajoritária em políticas voltadas aos segmentos mais po-bres da sociedade: a citada focalização das políticas so-ciais, traduzida na universalidade apenas de um conjuntobásico de serviços sociais, como aqueles preconizados nosprogramas de Agentes Comunitários de Saúde e de Saúdeda Família, gerando seletividade nos níveis mais comple-xos das redes de serviços.

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Segundo Cohn (2000, p. 87), reduz-se, desse modo, aquestão social à da pobreza e as políticas sociais aoproblema da parca disponibilidade de recursos orça-mentários para o setor, arranjo no geral associado aoposicionamento ideológico anteriormente apontado porBehring (2003) e que classifica os serviços públicosestatais como perdulários, paternalistas, ineficientes ecaros e não como provedores dos direitos sociais básicose da cidadania. O grande entrave que esse modeloapresenta é não enfrentar o principal problema do Brasil,que é a desigualdade, o que implicaria não apenas a adoçãode políticas direcionadas ao combate à pobreza mas simsua superação, por meio de mecanismos diretos ouindiretos de distribuição de renda.

Para Braga e Barros Silva (2001, p. 20-21), a políticaeconômica de contenção do gasto público –, marca dadécada de 90, que não apresenta perspectivas de altera-ção em cenário mais recente, bem como as reformas libe-ralizantes e desreguladoras/desregulamentadoras não dei-xaram espaço para uma política social vigorosa ao negarema instituição de uma base fiscal sólida, a estabilidade definanciamento, a remuneração adequada dos serviços pú-blicos, a manutenção de investimentos e a inovação nosaparatos públicos, deteriorando a situação social e elevan-do a demanda por serviços públicos. É inegável que o sis-tema de saúde também padece desses males, apesar doimenso avanço na construção de um arranjo institucional,regulador e norteador dessa política – desde o processode municipalização até o esforço recente no sentido daregionalização da assistência.

Discutindo o processo de descentralização do sistemapúblico de saúde no Brasil, Costa (2001, p. 307) apontaque essa agenda teve uma relação direta com a percepçãogeneralizada sobre o déficit de eficiência e de responsa-bilização da política social, agravada pela baixa defini-ção dos papéis para os níveis de governo que atuam nosetor (União, Estados e municípios). Essa descentraliza-ção, que será discutida a seguir, teve como diretriz au-mentar a eficiência, aproximando o gestor político do ci-dadão e criando mecanismos para o controle público esocial, na definição das prioridades locais e na melhor fis-calização e controle da aplicação dos recursos municipaise daqueles recebidos mediante transferências intergover-namentais para aplicação na saúde. Essa aproximação sedaria da seguinte forma: municipalização das políticas;maior controle público por meio da criação dos conselhosmunicipais de saúde, que devem apresentar composiçãoparitária entre a sociedade civil e o poder público munici-

pal, prestadores de serviços e trabalhadores da saúde; es-tabelecimento das prioridades locais no Plano Municipalde Saúde; e centralização dos recursos financeiros parafinanciamento da política municipal no Fundo Municipalde Saúde.

Ressalta-se que esse mecanismo de controle público foiexpandido e aperfeiçoado ao longo da década de 90 com arealização das conferências municipais de saúde e a criaçãodos conselhos locais ou gestores de unidades de saúde.

O gestor estadual foi aquele que sofreu o maior impac-to no processo de descentralização ao ter seu papel origi-nal de executor de ações e de contratante de serviços pri-vados e filantrópicos substituído por uma função decoordenação, apoio e regulamentação do sistema estadualde saúde (COSTA, 2001, p. 318).

O Banco Mundial, conforme aquele autor, sugere umconjunto de ações para o gestor estadual a fim de aprimo-rar e fortalecer suas funções de articulador regional depolíticas. São elas:- desenvolver um modelo eqüitativo de distribuição derecursos entre municipalidades ajustando os modelos dedistribuição per capita e o baseado na produção deserviços;

- fortalecer a utilização compartilhada de serviços e es-pecializações de referência entre municípios para promo-ver a economia de escala e estimular as oportunidades deespecialização municipal, entre os quais os consórciosintermunicipais;

- estimular a definição de prioridades nas intervençõesde saúde;

- estabelecer combinação de preços, orçamento global eoutros instrumentos para a definição de prioridades pelosgestores locais, considerando que as transferências inter-governamentais tendem a ser de um a outro fundo;

- estudar a ineficiência alocativa em decorrência da au-sência de estratégias de tratamento preventivo;

- planejar os investimentos futuros em incorporação tec-nológica e equipamentos de acordo com as novas funçõesna gestão de custos dos governos federal e estadual;

- estimular que as organizações e serviços públicos sejammais autônomos e responsáveis, introduzindo mecanismosde flexibilidade nas relações de trabalho, contratos de ges-tão e competição para a prestação de serviços específicosdemandados pelo gestor (Costa, 2001, p. 318-319).

Costa (2001), ao analisar o processo de descentraliza-ção setorial, conclui que são poucas as evidências que ela

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tenha afetado de modo negativo a qualidade dos serviços,que a municipalização tenha causado negligência de me-canismos de responsabilização dos governos locais oumesmo que ela possa ter produzido uma crise de legitimi-dade do sistema público de saúde. O processo, na verda-de, teria: projetado as secretarias municipais de saúde naesfera dos governos municipais; ampliado a capacidadede gestão em razão das novas responsabilidades; aumen-tado a força de trabalho em saúde, a oferta de serviçosambulatoriais e as ações de saúde coletiva; e induzido amaior comprometimento de recursos do orçamento muni-cipal com o setor saúde.

A seguir, discute-se a trajetória recente da descentrali-zação da política de saúde no Brasil, seus principais mar-cos normativos e regulatórios e as mudanças de atribui-ções dos gestores públicos, particularmente o estadual.

ASPECTOS NORMATIVOS E REGULADORESDO SISTEMA DE SAÚDE NO BRASIL

A descentralização da política da saúde constituiu-senuma peça central da agenda reformista brasileira ao longoda década de 80 e seguintes porque a centralização carac-terística do autoritarismo burocrático do regime militar pós-1964 converteu a descentralização, por um lado, num prin-cípio ordenador das mudanças para os setores de esquerdae, por outro, em uma peça também importante para o pen-samento liberal de oposição ao regime (MELO, 1996).

Nesse cenário, iniciou-se, no Estado de São Paulo, oprocesso de descentralização no setor de saúde, que pas-sou por uma série de desdobramentos, como o desenvol-vimento das Ações Integradas de Saúde – AIS e o surgi-mento do Movimento da Reforma Sanitária, que por suavez desempenharia papel decisivo nas negociações quecriaram o Sistema Único de Saúde – SUS, na AssembléiaNacional Constituinte. Entre os diversos capítulos daConstituição Federal, um deles determinou as linhas ge-rais do que viria a se configurar no novo sistema de saúdebrasileiro. Draibe (1997) descreve sua configuração, quan-do afirma que a Constituição de 1988 redefine o conceitode Seguridade Social, incluindo previdência, saúde e as-sistência social e tendo como princípios e objetivos: auniversalidade da cobertura e do atendimento; a unifor-midade e equivalência dos benefícios e serviços a toda apopulação; a seletividade e distributividade na prestaçãodos benefícios e serviços; a irredutibilidade do valor dosbenefícios; a eqüidade na forma de participação do cus-teio; a diversidade da base de financiamento; a democra-

tização e descentralização da gestão, com participação dacomunidade.

É fundamental, ainda para Draibe (1997), que, em relaçãoà saúde, o princípio da universalização da cobertura e doatendimento seja o mais diferenciado do sistema anterior,garantindo o acesso igualitário a toda a população, o quedeveria ser afirmado também pelas futuras proposições emtermos organizacionais – a definição de uma rede integrada,descentralizada, regionalizada e hierarquizada.

As negociações e os conflitos para a consolidação danova política não se encerraram com a nova Constituição.Além da criação do SUS e de suas diretrizes, era necessárioregulamentá-lo e torná-lo realidade. O processo de regula-mentação do sistema de saúde obtém significativo avançocom a promulgação da Lei Orgânica de Saúde, Lei n. 8.080,de setembro de 1990, que define o SUS como um conjuntode ações e serviços de saúde prestados por órgãos einstituições públicas de todos os níveis de governo – comcaráter complementar para a iniciativa privada; determinaa atuação permanente na análise das condições de saúde eseus determinantes; atribui a responsabilidade pelaformulação das políticas de saúde e pela assistência àspessoas; determina seus princípios e diretrizes, ressaltando-se, entre outros, universalidade de acesso, integralidadeda assistência, eqüidade, participação da comunidade,descentralização político-administrativa, com direçãoúnica em cada esfera de governo e articulação dos recursosfinanceiros, tecnologia, material e recursos humanos detodos os níveis.

Essa lei definiu, também, as atribuições e competênciasde cada nível de governo. Aos municípios, coube o geren-ciamento e execução dos serviços públicos de saúde, criandoos sistemas locais. Aos Estados, coube promover a descen-tralização dos serviços e ações de saúde, prestando apoiotécnico e financeiro aos municípios. Apenas supletivamen-te os Estados executarão ações e serviços de saúde. Suasatribuições referem-se, principalmente, ao acompanhamen-to, ao controle e à avaliação das redes hierarquizadas doSUS, bem como à gestão dos sistemas públicos de alta com-plexidade, de referência regional e estadual.

Em dezembro de 1990 foi sancionada a Lei n. 8.142,que dispõe sobre a participação da comunidade na gestãodo SUS e sobre as transferências intragovernamentais derecursos financeiros na área da saúde. Durante o governode Fernando Collor de Mello (1990-92), porém, ocorreuuma paralisação no processo de descentralização das po-líticas de saúde. Nesse período, foram alteradas as rela-ções entre as diferentes esferas de governo definidas no

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SUS, estabelecendo o pagamento pela produção dos ser-viços públicos de saúde. Essa alteração transformou osprestadores públicos – Estados e municípios – em merosvendedores de serviços para a União. O que estava pre-visto para ser uma parceria transformou-se numa relaçãode compra e venda, configurando um movimento de re-centralização, segundo Junqueira (1997).

A Norma Operacional Básica – NOB SUS 93, editadana gestão de Jamil Haddad no Ministério da Saúde, nogoverno de Itamar Franco, procurou desmontar a lógicaentão prevalecente na relação entre União, Estados emunicípios, que contradizia os princípios do SUS. Procurou-se, por meio da NOB, disciplinar a construção do SistemaÚnico de Saúde. Sem desmontar o pagamento por produção– disfunção herdada do governo Collor, mas que contavacom apoio dos municípios por permitir o repasse dosrecursos diretamente de Brasília, sem a intermediação dosgovernos estaduais –, foi instituída uma nova forma derelação, retomando a descentralização. Essa norma é oreferencial de implantação do SUS desde aquele momento,sistematizando a gestão do sistema e dos serviços, numesquema de transição com diferentes níveis de respon-sabilidade de estados e municípios e, por relação, do próprionível federal. Arretche (1996) afirma que a NOB-93fortalece a relação entre governo federal e municípios esupõe graus distintos de responsabilidade sobre a gestãodos serviços. A norma estabeleceu que a habilitação somentepode ocorrer por solicitação municipal, a qual pode se darmediante três formas de adesão: a gestão incipiente; a gestãoparcial; e a gestão semiplena dos serviços.

Cumpridos os requisitos básicos e aprovada a adesãoao processo de municipalização das políticas de saúde, ascidades passam a ter inúmeras atribuições na gestão dosistema local de saúde, que diferem de acordo com omodelo selecionado.

A partir de janeiro de 1998, o sistema de saúde brasi-leiro foi submetido a uma profunda reestruturação, com aentrada em vigor de uma nova regulamentação, a NormaOperacional Básica do Sistema Único de Saúde – 1996, aNOB-96.1 Esta foi editada na gestão de Carlos CésarAlbuquerque à frente do Ministério da Saúde, mas as ne-gociações acerca de seu conteúdo e forma tiveram iníciodurante a gestão do ministro Adib Jatene, ambas no primei-ro governo de Fernando Henrique Cardoso. A NOB-96inicia-se com o dístico “Gestão plena com responsabili-dade pela saúde do cidadão” e com a citação dos marcoslegais que a norteiam, ou seja, os princípios e diretrizesconsubstanciados na Constituição Federal e nas Leis

nos 8.080/90 e 8.142/90. Com isso, reafirmam-se, ao me-nos formalmente, os princípios da universalidade, da eqüi-dade, da integralidade da assistência e da responsabiliza-ção do Estado pela saúde dos cidadãos.

Apesar da importância da reafirmação desses princí-pios, a mais significativa diretriz da NOB-96 consiste noradical avanço na responsabilidade dos municípios pelagestão da política de saúde:

A presente NOB tem por finalidade promover e consolidaro pleno exercício, por parte do poder público municipal edo Distrito Federal, da função de gestor de atenção à saú-de de seus munícipes, com a conseqüente redefinição dasresponsabilidades dos Estados, do Distrito Federal e daUnião, avançando na consolidação dos princípios do SUS.Esse exercício compreende, portanto, não só a responsabi-lidade por algum tipo de prestação de serviços de saúde,como, da mesma forma, a responsabilidade pela gestão deum sistema que atenda, com integralidade, a demanda daspessoas pela assistência à saúde e às exigências sanitáriasambientais. Busca-se, dessa forma, a plena responsabili-dade do poder público municipal (MINISTÉRIO DA SAÚ-

DE, 1997).

Redefinindo também o papel dos Estados e da Uniãona gestão do sistema, a NOB-96 determina que estes sãosempre co-responsáveis pelo SUS em suas respectivascompetências ou na ausência da função municipal.

A NOB-96 avança mais ainda na responsabilização dosmunicípios pela gestão da política de saúde com a criaçãodo SUS municipal, que consiste em subsistemas, um paracada município, que devem responder pela totalidade dasações e de serviços de atenção à saúde no âmbito do SUS.O SUS municipal responde ainda pela relação entre o SUSe os estabelecimentos prestadores de serviços – sejamestatais, sejam privados – e sua gerência é, necessaria-mente, da competência do poder público e exclusiva daesfera municipal de governo. Com a criação do SUS muni-cipal e o conseqüente aumento da responsabilização dosmunicípios quanto à gestão da política de saúde, fez-senecessária a redefinição das atribuições dos Estados e daUnião na gestão do SUS. Quatro atribuições básicas – nãoexclusivas ou seqüenciais – foram direcionadas aosEstados:- exercer a gestão do SUS no âmbito estadual;

- promover as condições e incentivar o poder municipalpara que assuma a gestão da atenção à saúde de seusmunícipes, sempre na perspectiva da atenção integral;

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- assumir em caráter transitório a gestão da atenção à saú-de das populações pertencentes a municípios que aindanão tomaram para si essa responsabilidade;

- ser o promotor da harmonização, da integração e damodernização dos sistemas municipais, compondo assimo SUS estadual (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1997).

Dentre as mudanças definidas pelo Ministério da Saú-de por meio da edição da NOB-96, destaca-se a alteraçãonos modelos de gestão municipal da saúde. Essa novanormatização extingue os três modelos então vigentes ecria duas novas categorias distintas de gestão às quais osmunicípios podem se habilitar. Os modelos diferenciam-se diante das responsabilidades que serão atribuídas aogestor municipal, dos requisitos necessários para sua apro-vação e das prerrogativas relativas a cada uma dessasmodalidades. Os dois novos modelos são: Gestão Plenada Atenção Básica e Gestão Plena do Sistema Municipal.O modelo da Gestão Plena do Sistema Municipal é maiscomplexo e exige maior capacidade do município em geri-lo do que o modelo da Gestão Plena da Atenção Básica,mas, nos dois formatos, transfere-se uma significativaparcela da responsabilidade pelas condições de saúde daspopulações para os municípios.

Além de redefinir a inserção no Sistema Único de Saú-de, a NOB-96 redefine os mecanismos de financiamentode ações e serviços de saúde até então vigentes, na tenta-tiva de reverter a lógica anterior, fundada na compra evenda de serviços entre a União e os demais prestadoresdo SUS, enquadrando-se nessa categoria, até então, osmunicípios. Nos moldes da NOB-93, revogada com a edi-ção da NOB-96, apenas os municípios habilitados na ges-tão semiplena recebiam recursos via transferência regulare automática – fundo a fundo – e eram os únicos a pos-suírem maior autonomia na gestão do sistema local de saú-de. A NOB-96 objetiva reverter essa lógica, aumentandoa participação na transferência entre fundos dos recursosfederais a Estados e municípios e reduzindo a transferên-cia por remuneração por serviços produzidos. O financia-mento do SUS continua de responsabilidade das três es-feras de governo e cada uma delas deve assegurar o aporteregular de recursos ao respectivo Fundo de Saúde.

No novo sistema de transferência de recursos passama existir o Incentivo ao Programa de Saúde da Família –PSF e o Incentivo ao Programa e Agentes Comunitáriosde Saúde – PACS. O Programa de Saúde da Família con-siste na criação de equipes de saúde em regime de dedi-cação exclusiva e que vivam no mesmo local em que exer-

cerão a atenção a uma comunidade entre 800 e 1.000 fa-mílias, priorizando as ações de proteção e promoção àsaúde dos indivíduos e da família de forma integral e con-tínua (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1994). O Programa deAgentes Comunitários da Saúde objetiva – mediante açãode lideranças locais, contratadas e capacitadas para atua-rem como agentes visitadores na sua região – melhorar acapacidade da população de cuidar da sua saúde indivi-dual e da saúde de sua comunidade, transmitindo-lhe in-formações e conhecimentos (MINISTÉRIO DA SAÚDE,1994).

O PSF significa reorientação na política de saúde, per-mitindo que as ações focalizem adequadamente os pro-blemas, ampliando o acesso da população aos serviços desaúde e aumentando a cobertura assistencial, em especialem áreas de baixa renda, nas quais a oferta é mais escas-sa. O PACS é considerado, nessa proposta de governo,um componente da estratégia de saúde da família.

A NOAS E AS NOVAS ATRIBUIÇÕESDO GESTOR ESTADUAL

Diante do exposto, verifica-se que a regulação do sis-tema de saúde brasileiro entre a promulgação da Consti-tuição Federal, em 1988, e até o final da década de 90,em que vigoraram as NOBs 93 e 96, foi fortemente orien-tada para a descentralização da política pela munici-palização das ações e dos serviços de saúde. Exitosa emprincípio, a municipalização passou a apresentar limitese restrições ao final da década, em especial no que serefere à organização da atenção dos serviços regionais,de referência intermunicipal e de alta complexidade. Parareorganizar a atenção regional em sistemas de saúde nãonecessariamente confinados aos territórios municipais e,portanto, sob responsabilidade coordenadora dos gover-nos estaduais, o Ministério da Saúde, após cerca de umano de debates que envolveram ainda as representaçõesdos secretários estaduais e municipais de saúde e o Con-selho Nacional de Saúde, editou, a princípio em 2001 e,numa edição aperfeiçoada, em 2002, a Norma Operacio-nal de Assistência à Saúde – Noas SUS 01/2002. Seusprincipais objetivos foram ampliar a responsabilidade dosmunicípios na atenção básica; estabelecer a regiona-lização como estratégia de hierarquização dos serviçosde saúde e de busca de maior eqüidade; criar mecanis-mos para o fortalecimento da capacidade de gestão doSUS e atualizar critérios de habilitação dos Estados emunicípios.

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Dentre os principais aspectos e inovações advindos daimplantação Noas, destaca-se a diretriz de regionalizaçãodos sistemas como estratégia de hierarquização dosserviços de saúde e de busca de maior eqüidade, com aelaboração do Plano Diretor de Regionalização – PDR,que se fundamenta na conformação de sistemas funcionaise resolutivos de assistência à saúde, por meio da orga-nização dos territórios estaduais em regiões/microrregiõese módulos assistenciais; da conformação de redeshierarquizadas de serviços; do estabelecimento demecanismos e fluxos de referência e contra-referênciaintermunicipais, com o objetivo de garantir a integralidadeda assistência e o acesso da população aos serviços e açõesde saúde de acordo com suas necessidades (MINISTÉRIODA SAÚDE, 2002).

Considerando a regionalização como novo princípio ediretriz da descentralização da saúde, a expectativa é detransformações em um contexto que anteriormente apon-tava para a municipalização e para o fortalecimento deuma perspectiva regional e intermunicipal para a assis-tência à saúde. Nessa nova perspectiva, as secretarias es-taduais de saúde adquirem papel central no estabelecimen-to de novos pactos intermunicipais e na distribuição dosrecursos financeiros, uma vez que a antiga formulação detransferências baseadas em valores per capita e por pro-dução considerará também os municípios que são pólosde atendimento regional e que oferecem equipamentos pararealização de procedimentos de alto custo ou complexi-dade. Caberá aos Estados, de acordo com a ProgramaçãoPactuada e Integrada – PPI e dentro do limite financeiroestadual, prever a parcela dos recursos a serem gastos emcada município para cada área de alta complexidade, des-tacando a quantidade a ser utilizada com a população dopróprio município e aquela a ser gasta com a populaçãode referência.

Ainda segundo a Noas, os municípios que tiverem emseu território serviços de alta complexidade ou custo ele-vado, quando habilitados em Gestão Plena do SistemaMunicipal, deverão desempenhar as funções referentes àorganização dos serviços de alta complexidade em seuterritório, para assegurar o comando único sobre os pres-tadores. A programação da Atenção de Alta Complexida-de deverá ser precedida de estudos da distribuição regio-nal de serviços e da proposição pela Secretaria Estadualde Saúde – SES de um limite financeiro claro para seucusteio. O Plano Diretor de Regionalização apontará asáreas de abrangência dos municípios-pólo e dos serviçosde referência na Atenção de Alta Complexidade.

Nessa nova ênfase atribuída à regionalização e ao papeldo gestor estadual, destaca-se que caberá a ele a coordenaçãoda Programação Pactuada e Integrada no âmbito do Estado,por meio do estabelecimento de processos e métodos queassegurem, dentre outras, a operacionalização do PlanoDiretor de Regionalização e de estratégias de regulação dosistema, mediante a adequação de critérios e instrumentosde alocação e pactuação dos recursos assistenciais e a adoçãode mecanismos que visem regular a oferta e a demanda deserviços, organizar os fluxos e garantir o acesso àsreferências. A PPI, aprovada pela Comissão IntergestoresBipartite, deverá nortear a alocação de recursos federaisda assistência entre municípios pelo gestor estadual,resultando na definição de limites financeiros para todosos municípios do Estado, independentemente da suacondição de habilitação.

A garantia de acesso da população aos serviços nãodisponíveis em seu município de residência é de respon-sabilidade do gestor estadual, de forma solidária com osmunicípios de referência, observados os limites financei-ros, e ele deverá organizar o sistema de referência, utili-zando mecanismos e instrumentos necessários, compatí-veis com a condição de gestão do município onde osserviços estiverem localizados.

DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICASDE SAÚDE NO ESTADO DE SÃO PAULO

A municipalização dos serviços de saúde estaduaiscomeçou, em 1987, com a transferência de Unidades Bá-sicas de Saúde – UBS e de laboratórios locais no interiordo Estado; concomitantemente, a Secretaria Estadual co-meçou a assumir os serviços hospitalares e ambulatoriaisdo antigo Instituto Nacional de Assistência Médica daPrevidência Social – Inamps. Essa etapa foi concluída em2002, com todas as unidades de atenção primária transfe-ridas para a gestão dos municípios. Fato que ocorreu ape-nas nesse ano em razão da adesão tardia do município deSão Paulo ao processo de descentralização, em decorrên-cia da opção da prefeitura paulistana pela adoção do mo-delo cooperativado do Plano de Assistência à Saúde – PAS,entre 1996 e 2001.

A reforma do sistema de saúde brasileiro, que culminoucom a implantação do SUS, em 1988, garantiu uma expres-siva ampliação da rede de serviços no âmbito do setor pú-blico. Em 1986, no Estado, havia 2.157 estabelecimentospúblicos de saúde, número que praticamente dobrou em2002, atingindo mais de 4 mil unidades. Esse movimento

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se deu particularmente na rede municipal, espelhando umdos pilares do SUS, que é a diretriz de descentralizaçãodos serviços, com transferência de unidades para a esferamunicipal, especialmente da rede ambulatorial. As esferasfederal e estadual apresentaram diminuição importante nonúmero de unidades sem internação sob sua gerência, noperíodo 1986-2002, enquanto a rede municipal passou de969 para 3.738 estabelecimentos, o que significa que asprefeituras assumiram o gerenciamento de cerca de 96%das unidades públicas em 2002 (Tabela 1).

dora para assegurar a organização de redes assistenciaisregionalizadas, hierarquizadas.

Como citado anteriormente, a Noas vem em resposta aessa preocupação, centrada na questão da regionalizaçãoe com revalorização do papel do gestor estadual.

Como os municípios devem garantir o primeiro nível deatenção à saúde dos cidadãos e garantir a universalidadede acesso ao SUS, cabe ao gestor estadual o papel de avaliare acompanhar essas atividades, visando a melhoria daqualidade e resolubilidade da assistência primária desen-

TABELA 1

Estabelecimentos de Saúde, por Regime de Atendimento, segundo Esfera AdministrativaEstado de São Paulo – 1986-2002

Esfera Administrativa Com Internação Sem Internação Total1986 1992 2002 1986 1992 2002 1986 1992 2002

Total 96 179 186 2.061 3.081 3.907 2.157 3.260 4.093

Federal 11 8 5 112 38 12 123 46 17Estadual 51 65 62 980 519 157 1.031 584 219

Municipal 34 106 119 969 2.524 3.738 1.003 2.630 3.857

Fonte: IBGE. Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária – AMS.

Na rede hospitalar, os movimentos mais importantesforam a transferência dos hospitais do Inamps para o go-verno estadual, no começo da década de 90,2 e a am-pliação dos serviços municipais, que evoluíram de 34 uni-dades com internação, em 1986, para 119 em 2002.Apesar de a rede municipal de estabelecimentos cominternação ser maior do que a estadual, é importante res-saltar que a maioria das unidades municipais é de pe-queno e médio portes, incluindo as unidades mistas desaúde, enquanto a rede estadual reúne hospitais maiorese de nível terciário.

No balanço dos avanços e limitações da descentraliza-ção, a questão da regionalização passa a se destacar nodebate setorial, no final dos anos 90, como possibilidadede promover a descentralização com eqüidade no acessoaos serviços. Segundo Souza (2001, p. 453)

os grandes avanços no âmbito da descentralização políti-co-administrativa, com fortalecimento dos gestores locaise as mudanças na organização da atenção básica induzidaspela NOB SUS 01/96, evidenciam a necessidade de maiorarticulação entre os sistemas municipais e de fortalecimen-to das secretarias estaduais de saúde na sua função regula-

volvida pela esfera municipal (BARATA et al., 2003). NoEstado de São Paulo, praticamente toda a atenção básicaestá sob gestão municipal, o que inclui ações de vacinação,consultas médicas básicas como de pediatria, ginecologiae pré-natal, controle de hipertensão e diabetes, açõescoletivas de saúde bucal, etc. (Tabela 2).

A integralidade da assistência deve ser garantida, alémda atenção básica, pelos serviços de atenção secundária eterciária, desenvolvida em ambulatórios de especialidadese em hospitais gerais e especializados, incluídos osuniversitários. Nesses níveis de atenção são realizadosprocedimentos de média e alta complexidade, tais como:exames especializados (ultra-sonografia, mamografia,ressonância magnética), consultas especializadas (ortope-dia, neurologia, etc.), cirurgias das mais simples aostransplantes. Na gestão municipal de atenção básica, osserviços hospitalares e os ambulatórios de especialidadesficam sob administração direta do gestor estadual e emalguns casos, sob sua gerência, independentemente de seremserviços de referência regional ou local, enquanto na gestãoplena do sistema municipal apenas os serviços terciários eespecializados mais complexos ficam na gestão estadual.

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Em 2003, no Estado de São Paulo, 55% dos procedi-mentos especializados realizados em ambulatórios esta-vam sob gestão estadual e 45% sob gestão municipal, sen-do a quase totalidade em municípios habilitados na GestãoPlena do Sistema Municipal. Os procedimentos assisten-ciais de alta complexidade estão também em maior partesob a gestão estadual (70%), entre os quais destacam-sealguns serviços em que a concentração na rede estadual émaior como hemoterapia (81%), ressonância magnética(86%) e radiologia intervencionista (88%).

A distribuição dos recursos de maior complexidade peloterritório paulista é historicamente desigual. Na rede hos-pitalar, por exemplo, observa-se que 70% dos leitos dehospitais universitários localizam-se nas regiões metropo-litanas de São Paulo e de Campinas (FUNDAÇÃO SEADE,2004). Na rede ambulatorial, destaca-se, por exemplo, queos exames de ressonância magnética realizados no SUS,em 2003, no Estado, ocorreram em apenas 21 municípios;57% do total foi realizado no município de São Paulo. As-sim, observa-se que o gestor estadual tem importante pa-pel na busca pela garantia de eqüidade entre os municípios,no acesso aos serviços de maior complexidade, de forma agarantir a integralidade na atenção à saúde para todos osusuários do SUS no Estado (BARATA et al., 2003). Nessecontexto, assume relevância o papel da Secretaria Estadualde coordenação do processo de planejamento regional e dedesenvolvimento de mecanismos de regulação tanto para aassistência hospitalar e ambulatorial como para o atendi-mento de urgência/emergência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Sistema Único de Saúde pode ser considerado o maisemblemático caso de reforma das políticas sociais no Bra-

sil nos anos recentes. Desde a segunda metade da décadade 80, quando de sua criação, o sistema foi submetido auma série de rearranjos institucionais que procuraramefetivá-lo, tornando-o realidade e não apenas um projetoe, ao mesmo tempo, solucionando os conflitos e entravesinerentes à distribuição de competências entre os gesto-res federal, estadual e municipal. Esse desenvolvimentofez parte do grande processo de reforma das políticas so-ciais estabelecido pelo governo brasileiro e, dessa maneira,esteve submetido às crises que o Estado atravessou nesseperíodo, em especial as crises financeiras e fiscais que emdiversos momentos atrasaram a marcha das reformas eimpediram que elas tivessem resultados mais efetivos nocombate às desigualdades econômicas e sociais que mar-cam o país.

Diante dos entraves advindos da municipalização daspolíticas de saúde, foi possível verificar que a regio-nalização da atenção conquistou espaço na agenda doSUS e que para articular o sistema regionalizado ogestor estadual, através das secretarias estaduais desaúde, adquiriu papel central na gestão do sistema. NoEstado de São Paulo, em particular, o gestor estadualpraticamente deixou de atuar na atenção básica. Noentanto, ainda é responsável por parcela significativada oferta de procedimentos especializados e de altacomplexidade, principalmente em estabelecimentosuniversitários. A principal atribuição do gestor estadualpaulista, no novo desenho do sistema de saúde, éarticular os sistemas municipais e organizar as redesassistenciais regionalizadas, estabelecendo comoprincipal objetivo combater as desigualdades regionaise intermunicipais, para que a oferta de serviços sejadistribuída de maneira mais equânime entre a populaçãodo Estado.

TABELA 2

Procedimentos Ambulatoriais, por Tipo de Gestão, segundo Grupos de ProcedimentosEstado de São Paulo – 2003

Grupos de Procedimentos Gestão Municipal Gestão Estadual TotalNos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos %

Total 344.890.334 67,47 166.278.203 32,53 511.168.537 100,00

Atenção Básica 255.270.899 99,99 13.684 0,01 255.284.583 100,00Especializados 85.749.147 44,71 106.038.658 55,29 191.787.805 100,00

Assistenciais de Alta Complexidade (1) 3.485.404 30,31 8.015.589 69,69 11.500.993 100,00

Fonte: Ministério da Saúde/Secretaria de Assistência à Saúde – SAS. Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS – SIA/SUS.(1) Exclui medicamentos.

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NOTAS

1. A Norma Operacional Básica SUS 01/96 foi editada em janeiro de1997 e passou a vigorar em janeiro de 1998.

2. As unidades que, em 2002, continuam com a gerência do governofederal referem-se a hospitais universitários e aqueles ligados às for-ças armadas, que atendem clientela fechada.

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TERCEIRO SETOR: A ORGANIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS ...

A

Resumo: A forma como vem se configurando o “Terceiro Setor”, no Brasil, indica a presença de agentes polí-ticos, culturais, econômicos e sociais, com ações nem sempre convergentes para a criação de modelos dinâmi-cos de organização. No campo das políticas sociais, visualiza-se hiato entre o conjunto de carências e a emer-gência de novo papel da sociedade civil, com base em pesquisas do autor no Vale do Paraíba.Palavras-chave: terceiro setor; administração pública; organização social.

Abstract: The Third Sector in Brazil brings together political, cultural, economical and social agents throughactions not always focused to create dynamic patterns of organization. In the field of social politics there is agap between the people needs and the new society role, according to the author’s research in Vale do Paraíba.Key words: third sector; public administration; social organization.

JOSÉ ROGÉRIO LOPES

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 57-66, 2004

Nos anos 90, importa menos a presença de movimentos sociaiscomo estruturas específicas, e importam mais as novas instituições,

os novos quadros de pessoal, a nova mentalidade sobre a coisapública; em suma, importa mais a nova cultura política gerada.

Maria da Glória Gohn (2000, p. 51)

sentes na configuração de novas esferas públicas da so-ciedade brasileira.

Desta feita, desdobrar-se-ão alguns questionamentossobre as imbricações entre tais esferas públicas, conside-rando-se que a concepção de ONG aqui em discussão se-gue a tipologia definida por Gohn (2000). Analisam-se,principalmente, as relações entre o poder público munici-pal e as ONGs, com as quais este desenvolve suas ações,na efetivação de políticas públicas.

DECODIFICANDO OS TERMOS

A relação entre o Estado e as ONGs, no plano da ad-ministração “pública”, remete necessariamente ao princí-pio, ao planejamento e à execução da gestão das políticassociais públicas – refere-se, aqui, ao campo específico dasações das “ONGs cidadãs”, não das ONGs assistencialis-

TERCEIRO SETORa organização das políticas sociais

e a nova esfera pública

epígrafe refere-se à conclusão a que a autora che-ga, na análise do cenário brasileiro de lutas so-

ciais na era da globalização. Os termos colocados em evi-dência nessa citação servirão como ponto de partida paradecodificarmos o significado das relações propostas notítulo deste texto.

Vale ressaltar desde já que esta reflexão atenta aos prin-cípios que transcendem as práticas sociais das ONGs, quevêm sendo amplamente analisadas, buscando situar suaimportância em um conjunto mais amplo de referências,sugerindo que elas compõem somente um dos termos pre-

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tas ou desenvolvimentistas, como as denomina Gohn(2000, p. 53-64). Entretanto, expor reflexões sobre a ges-tão das políticas sociais não é tão simples quanto se pen-sa, mesmo para aqueles que se dedicam ao exercício dainvestigação sobre a questão social ou ao exercício dasações de governo.

As demandas sociais da população e as ações de go-verno em resposta geralmente são mediadas por procedi-mentos que possuem significados desconhecidos ou in-conscientes para muitas pessoas, a começar pelo que seentende como público, gestão e política social. Primeira-mente, então, buscam-se as definições: o que é a coisapública? O que é gestão? O que é política social?

Segundo os significados grafados no Dicionário bra-sileiro de língua portuguesa, do Jornal da Tarde:

Público, adj. Relativo ou pertencente ao povo; que pertenceou se refere à massa geral dos habitantes de uma localida-de; popular; comum; que serve para uso de todos; [...] fon-

te pública; relativo à governação de um país; conhecido detodos; notório; vulgar; a que todos podem assistir; [...] (Dolat. publicu).

Noção regularmente encontrada em outros dicionáriosacessíveis à população, o termo “público” significa a es-fera de fatos, relações e recursos que pertencem ou se re-ferem aos habitantes de uma localidade, no sentido de quelhes interessam e servem à efetivação da organização doseu princípio de governo. Nesse sentido, “coisa pública”é todo fato, recurso e relação que tem sua origem na “fon-te pública” e se direciona para configurar a governaçãode um município, estado ou país.

“Gestão, s.f. Ato de gerir; gerência; administração;direção. Do latim gestione”. Quando se buscam outros sig-nificados, encontra-se: “Gerir, v. tr. dir. Administrar; dirigir;governar. (Conjuga-se como o verbo aderir.) (Do latimgerere)” (DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUAPORTUGUESA, DO JORNAL DA TARDE). Vê-se, aqui,que os significados das palavras desdobram-se nos termosinformativos que os descrevem. Em princípio, não háeqüidade de um termo para outro, senão quando meca-nicamente articulados. O significado da palavra é ideológico,tanto quanto a ação que corresponde à sua idéia.

Para tornar essa concepção mais problemática, diz oModerno dicionário da língua portuguesa Michaelis:“Gestão, s.f. (lat. gestione) 1. Ato de gerir. 2. Administra-ção, direção. G. de negócio: administração oficiosa denegócio alheio, feita sem preocupação”. Por que sem preo-cupação? É o Novo dicionário da língua portuguesa, de

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que explica: “Ges-tão [Do lat. gestione] s.f. Ato de gerir; gerência, adminis-tração. Gestão de negócios. Jur. Administração oficiosade negócio alheio, sem mandato ou representação legal”.

Em contrapartida, segundo Pereira (1998, p. 60-61,grifos meus),

quando falamos de política social, estamos nos referindoàquelas funções modernas do Estado capitalista – imbri-cado à sociedade – de produzir, instituir e distribuir bens

e serviços sociais categorizados como direitos de cidadania.

Trata-se, portanto, de política associada a um padrão de

organização social e política que, desde os fins do séculoXIX e, mais precisamente, depois da Segunda GuerraMundial, foi distanciando-se dos parâmetros do laissez-

faire e do legado das velhas leis contra a pobreza [...] paratransformar-se num esquema de proteção social queincumbe ao Estado decisiva responsabilidade pelo bem-estar dos cidadãos. [...] [Ela] envolve o processo deprovisão social [...][e] uma expressiva atividade regula-mentadora [que visa] a garantia de acesso do cidadãocomum a benefícios e serviços de natureza pública.

Agora, averigua-se que articulações podem ser feitasentre os termos do enunciado: “O princípio de gestão e aconstrução da esfera pública”.

AFINANDO A IDÉIA OUREARTICULANDO OS TERMOS

A gestão das políticas sociais pode ser pensada segun-do dois princípios orientadores – elaborados aqui como“tipos ideais” –, conforme estejam articulados em tornodos sentidos que originam o substantivo gestão e o verbogerir. Isso não significa, necessariamente, uma divisãoentre teoria e prática, mas sobretudo uma distinção entremétodos de gestão, ou seja, substantivamente, a gestão éadministração e direção da coisa pública; no sentido ver-bal, é governar e aderir à coisa pública. Tais princípiossão complementares e procura-se mostrar que alguns go-vernos optam somente pelo tipo substantivo de gestão.

Para tanto, pode-se começar perguntando: administrare dirigir o quê? Governar para quê? Aderir a quê?

Na medida em que a política social, no sentido aquidefinido, implica uma “política associada a um padrão deorganização social e política”, deve-se entender que essaassociação se configura como o efeito contraditório de umaintervenção político-econômica sobre a sociedade, paraimplantação de um modelo de desenvolvimento que or-

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TERCEIRO SETOR: A ORGANIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS ...

dene a organização social e política. A política social é,assim, a contraface do próprio modelo de desenvolvimento,agindo sobre os efeitos negativos gerados em sua implan-tação e manutenção.

Se há uma contradição de fundo na própria necessidadede gerir uma política social associada a um modelo de de-senvolvimento, é porque se constata que a intervenção po-lítico-econômica que o sustenta não é extensivamente diri-gida a todos, ao menos positivamente. Políticas sociais sóexistem, dessa forma, em sociedades que reconhecem asdesigualdades geradas pelo seu modelo de desenvolvimen-to e só são implantadas por governos comprometidos (oupressionados pela população) com a diminuição ou com asuperação dessas desigualdades. “Política social, assim iden-tificada, integra um complexo político-institucional deno-minado seguridade social” (PEREIRA, 1998, p. 61) e con-figura o que conhecemos como Estado de bem-estar social.

Nas palavras de Sposati (1999, p. 10),

as políticas sociais revelam o empenho de uma sociedade emafirmar um patamar de civilidade. Por que civilidade? Porquedemonstra o que esta sociedade vem assegurando para todosos seus cidadãos. Nós conhecemos o padrão de civilidade deuma sociedade pelo que ela faz, o que ela propõe para assuas crianças e seus velhos. Em outras palavras, como estasociedade no presente se relaciona com a história, o passadoe o futuro. Então, quando discutimos política social, temosque sair dessa visão corriqueira de só olhar qual é oprograma, o que está sendo feito imediatamente, mas entenderque por trás daquela ação está em questão um padrão decivilidade que esta sociedade está construindo. Por quecivilidade? Por conta de um respeito à dignidade humana,por conta de assegurar um dado padrão de dignidade humanaao coletivo de cidadãos de uma sociedade.

Não é à toa que o governo FHC, dessa forma, conver-gia suas ações para procedimentos político-econômicos enão para uma política social: a ausência desta encobre oreconhecimento efetivo dos efeitos desiguais e contradi-tórios de sua intervenção político-econômica. No mesmosentido, quando governos estaduais e municipais de basedemocrática e popular, comprometidos com as demandasde suas populações, investem em política social e mos-tram quantitativa e qualitativamente os procedimentos deexclusão social gerados por aquela intervenção, são taxa-dos de ineficazes. Quando se endividam para cumprir seuscompromissos, são taxados de caloteiros. Ou seja, quan-do os governos agem segundo a opção de “governar ade-rindo à satisfação das necessidades públicas”, são acusa-

dos de tramarem contra o modelo de desenvolvimento.Outra forma de eximir-se dessas contradições é priva-

tizar o patrimônio público, sob a alegação de dar novaorientação ao Estado, tornando-o eficiente no que é suaobrigação. Opção coerente com o primeiro princípio degestão anteriormente descrito, essa argumentação escon-de um fato de peso relevante: o Estado compõe, com asociedade civil, a esfera pública. Diminuir a presença doEstado é diminuir seu peso na definição das necessidadessociais. Embora essa estratégia dê a impressão de maiorautonomia da sociedade civil na determinação de suasnecessidades sociais, o que ocorre efetivamente é que oEstado busca estabelecer, cada vez mais, sua funçãoregulamentadora, o exercício de administrar e dirigir, masse exime progressivamente da provisão social, de garan-tir “o acesso do cidadão comum a benefícios e serviçosde natureza pública”, que é governar e aderir.

Conforme já mostraram Lessa et al. (1997, p. 83-84),

em alguns campos da política social, a questão não é sequera de falta de recursos. No caso dos programas de habitaçãoe saneamento, por exemplo, a necessidade de redefinirmodelos institucionais e estratégias de financiamentojustificou a retração do gasto federal do governo FHC,nesses programas literalmente paralisados no governoCollor. Pode-se dizer que, até aqui, foram os governoslocais os responsáveis pelos investimentos neles realizados,com o aporte de financiamentos externos de instituiçõesmultilaterais, como BID e Bird.

Temos, então, no Brasil, um governo federal que optapelo primeiro tipo de gestão e que procura impor por elenão uma política social, mas um modelo de desenvolvimentodirigido preferencialmente por intervenções político-econômicas. Em compensação – e aí deve-se proceder aum inventário mais rigoroso –, há vários governos estaduaise municipais que rompem com essa direção, apontando paraoutro modelo de desenvolvimento, aderindo às necessidadespúblicas e governando segundo interesses democráticos epopulares. Logo, constata-se não haver uma gestão depolítica social no país, mas gestões de políticas sociais. Damesma forma, não existe uma esfera pública instituída, massubesferas localizadas e instituintes.

A GESTÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS EMESFERAS PÚBLICAS INSTITUINTES: AS ONGS

Este é o cerne da questão: gerir políticas sociais é maisque governar e satisfazer as necessidades públicas, pois é

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também aderir ao projeto de instituição de uma esferapública. Esse objetivo é central, sob pena de confundiraté mesmo o que são as necessidades públicas, ou derelativizá-las sob perspectivas ideológicas distintas.1

A constituição da esfera pública é parte integrante doprocesso de democratização da vida social, pela via dofortalecimento do Estado e da sociedade civil, de forma ainscrever os interesses das maiorias nos processos de

decisão política. É um movimento que pretende conferirníveis crescentes de publicização no âmbito da sociedadepolítica e da sociedade civil, no sentido da criação de uma

nova ordem democrática valorizadora da universalização

dos direitos de cidadania. [...] Os caminhos de formaçãodessa esfera comum são construídos pelo discurso e pelaação dos sujeitos sociais que, estabelecendo uma inter-

locução pública, possam deliberar em conjunto as questões

que dizem respeito a um destino coletivo (RAICHELIS,

1998, p. 78, grifos meus).

Dentro desse conceito, uma esfera pública se estabelecenos fóruns coletivos, cujas deliberações definirão gradual-mente sua instituição. Tais decisões resultam da inter-locução entre segmentos da população local preocupadoscom as problemáticas sociais que dizem respeito às neces-sidades públicas. E essa interlocução deve se consolidarnum movimento de continuidade e de expansão. Por quê?Porque a trajetória das políticas sociais no Brasil é diferen-ciada: a saúde, a previdência e a assistência social, porexemplo, possuem trajetórias históricas diferentes e, embo-ra elas componham o tripé da Seguridade Social, segundoa Constituição de 1988, ainda não estão suficientementeagregadas. Torna-se necessário, dessa forma, articular taispolíticas em torno de esferas públicas ampliadas para alémde encontros, fóruns e conferências setorizados.

Essa articulação deve promover um modelo de organi-zação de segmentos participativos da sociedade que im-plique uma nova configuração das políticas sociais, ca-paz de produzir estratégias amplas de enfrentamento daexclusão social, de forma a inscrever os interesses dasmaiorias nos processos de decisão política. Ocorre que,no movimento contemporâneo de ampliação da esferapública, proliferam presenças diversificadas de agentespolíticos, culturais, econômicos e sociais, com ações oudiscursos nem sempre convergentes na criação de mode-los dinâmicos de organização. Assim, o estabelecimentoda interlocução pública nem sempre se direciona para pos-sibilidades de deliberação em conjunto das questões quedizem respeito a um destino coletivo.

Na medida em que tais presenças têm adquirido umavisibilidade diferenciada na sociedade, pela ação de di-versos fatores, torna-se necessária uma pequena revisãode suas projeções, de forma a compreender alguns aspec-tos da formação dessa nova esfera pública.

Inicialmente, há um duplo registro histórico a enfati-zar: de um lado, o deslocamento progressivo da “luta declasses” da esfera das relações capital versus trabalho paraa esfera do fundo público (OLIVEIRA, 1998), provocadopela crescente metamorfose da sociedade do salariado(CASTEL, 1997); de outro, a passagem das manifestaçõescoletivas de caráter amplo, organizadas nos movimentossociais reivindicatórios (como entre a década de 60 emeados da de 80), para as manifestações estruturadas emações coletivas combinadas em organizações sociais ins-tituídas, de caráter restrito, que se expandiram de meadosda década de 80 até a de 90 (GOHN, 2000).

Esse registro histórico permite supor que um critériopara estabelecer as projeções das presenças de sujeitos,categorias e segmentos sociais em interlocução pode sero “pluralismo” das manifestações e reivindicações expres-sas pelos mesmos na contemporaneidade. Vejamos algunsexemplos.

Um elemento característico das esferas públicas insti-tuintes tem sido identificado nas ONGs. Ocorre que estaesfera não é tão pública como parece, à primeira vista,visto que as ONGs se articulam em torno de interessespúblicos, mas regularmente se constituem em uma esferaprivada, visando gerir necessidades públicas específicasou atuar sobre elas utilizando recursos advindos geralmenteda fonte pública. É o que ocorre em São José dos Campose Taubaté, municípios situados na região do Vale do Pa-raíba (SP), onde as receitas das ONGs advêm prioritaria-mente do fundo público. Trata-se de uma administraçãooficiosa de negócios públicos, sem mandato ou represen-tação legal definidos na esfera pública.

À diferença dos sindicatos, das associações de moradoresou mesmo dos movimentos sociais, as ONGs não podem falarou agir em nome de terceiros. Fazem-no somente em nomepróprio (FERNANDES, 1996).

A essa forma de administrar o negócio público, Vieira(1999, p. 24) tem denominado

terceiro setor organizacional, ele é apenas terceirosetor do ponto de vista organizativo, ele não é umapropriedade. Por que não é uma propriedade? Porqueos recursos públicos são recursos vindos de taxas e

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impostos, são recursos que vêm daquilo que chamamosde subsídios e, portanto, eles saem do tesouro e doorçamento da nação. Então não é um terceiro setornão estatal, ele é um terceiro setor público organi-zacional, não uma propriedade nova que foi criada,já que os subsídios são públicos, é o setor incentivado.

A posição de Vieira polemiza com outras posições oti-mistas, que vêem na emergência do Terceiro Setor umaabertura dos canais de decisão à participação da socieda-de civil. Sem enfatizar a origem do suporte financeiro demanutenção das ONGs, o discurso dos apologistas doTerceiro Setor tem geralmente recaído numa argumenta-ção que desqualifica o Estado como esfera de efetivaçãodas políticas sociais e públicas. Tal argumentação, visan-do sobretudo realçar o papel e a importância das ONGs,muitas vezes obscurece o fato de que muitas delas nãodefiniram sua posição no confronto entre os projetos so-ciais hoje em pauta, no campo das políticas sociais.

Dessa maneira, não se trata efetivamente de um campoinstituído, ou de uma esfera pública instituinte, mas de“formações culturais” constituídas por uma associação desujeitos, como definido por Wiliams (1992), que se iden-tificam por “seu foco de missão”.2

Essa idéia sugere que há uma teleologia operativa es-truturada em tais “formações culturais”, que ganha visi-bilidade sobretudo nas propostas de “atividades sociais”que as ONGs assistencialistas e desenvolvimentistas ge-ralmente desenvolvem. Tais atividades sociais podem serdefinidas como “atividades que estimulam, reforçam, in-fluenciam ou direcionam práticas de sociabilidade”, ca-racterizadas por um fundo ideológico-político diversifi-cado.

Nas pesquisas realizadas na região do Vale do Paraí-ba,3 por exemplo, constatou-se que: as ONGs assisten-cialistas e desenvolvimentistas realizam uma variedade deações profissionalizantes tradicionais e artesanais ou ma-nuais, mas poucas delas proporcionam geração de recur-sos financeiros aos usuários; regularmente, estes não par-ticipam da gestão das ONGs ou, quando o fazem, estãolimitados a um dos procedimentos, como planejamento,execução, acompanhamento ou avaliação de atividades;os trabalhos geralmente reproduzem estruturas dife-renciadoras das relações sociais de gênero; a divulgaçãodas ações das ONGs é realizada de forma restrita, dire-cionada a seus próprios usuários e participantes; a maio-ria das ONGs avalia seus trabalhos com reuniões; nenhu-ma organização pretende manter a sociedade do jeito que

está, propondo idealizações de melhoria, porém justifica-das pelas restrições que as próprias enfrentam na efetiva-ção de suas atividades.

Na maioria dos casos pesquisados, as ONGs realizamatividades mínimas de manutenção, recorrentes a um mo-delo de atuação com a pobreza reproduzido desde os pro-gramas estatais. Assim, mais de 50% dos usuários atendi-dos nas ONGs estão na faixa de renda familiar de menosde 1 salário mínimo, enquanto os demais recebem de 1 a6 salários mínimos. Aqui, surge uma hipótese interessan-te: a proximidade das faixas de renda dos usuários atendi-dos, abaixo e acima de 1 salário mínimo, pode significarque as organizações direcionam suas atividades predomi-nantemente para os sujeitos que estão abaixo da linha dapobreza, mas também para aqueles que vivenciam o pro-cesso de empobrecimento ou precarização das condiçõesde via.

Os critérios para separar tais usuários por classes dis-tintas estão sendo definidos pelos serviços ou atendimen-tos prestados aos mesmos pelas ONGs. Se a hipótese forverdadeira, os tipos de serviços ou atendimentos devemser semelhantes, conforme as classes de renda se aproxi-mem, frente a essa linha de corte (os extremos das faixasde renda atendidas). Caso se confirme tal hipótese, pode-se supor que as organizações estão se tornando a porta deentrada dos sujeitos que empobrecem aos serviços e benspúblicos de manutenção de suas necessidades básicas, oque abre oportunidade para uma série de questionamen-tos derivados.

Já as atividades das ONGs cidadãs também se dire-cionam para a estruturação de práticas de sociabilidade,mas com uma dimensão ideológica, ética e política dis-tinta. Aqui, são expostos sucintamente três casos acom-panhados, visando analisar como se opera a interlocuçãoentre as organizações, o poder público e a sociedade civilpara a ampliação da esfera pública.

O primeiro caso é o de uma ONG de ambientalistas deTaubaté, município da região do Vale do Paraíba que vemrecebendo muitos investimentos privados na última déca-da, com a instalação de indústrias. O crescimento da ati-vidade produtiva gerou desdobramentos diversos que obri-garam a prefeitura local a realizar reformas urbanísticasem várias regiões da cidade. Essa necessidade relaciona-se com a ONG estudada, que tem sede e estrutura de fun-cionamento garantidas pela Prefeitura local há vários anos.Suas ações resumiam-se, até 1994, a campanhas de infor-mação sobre problemas ambientais da região e de mobili-zação para a recuperação de áreas degradadas. Após essa

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data, a ONG passou a denunciar problemas ambientaiscausados por toda ordem de situações, desde a instalaçãode indústrias até a ação de portos de areia na região.

Recentemente, um agente dessa ONG fez uma denún-cia ao Ibama contra a Prefeitura de Taubaté, pela canali-zação do córrego Convento Velho, cujo curso corta omunicípio e pelo lançamento de esgoto domiciliar nele. Aobra foi embargada e a ONG foi ameaçada pelo governolocal de ter sua sede desativada e de cortes nos recursosrepassados pelo município.

Após discutirem sobre o acontecido, os agentes da ONGassumiram posturas diferenciadas sobre o objeto da de-núncia. O agente denunciante (um agrônomo) defendia queo curso do córrego, na cidade, deveria ter suas matasciliares preservadas, pois se trata de uma questão ambien-tal; outro agente (agrônomo e professor universitário)defende que o córrego já está poluído demais e que, por-tanto, pode ser canalizado. Este último argumenta que acanalização do córrego não deve ser tratada como ques-tão ambiental – justificando que “o problema passa a sero da vazão da água do córrego (em caso de enchentes ur-banas) e da poluição, requerendo ações mitigadoras e com-pensatórias” – mas paisagística e que as obras de esgotosão de responsabilidade da Sabesp, não da prefeitura.

O debate que sucedeu o evento da denúncia tornou-setécnico e restrito ao âmbito da ONG, gerando poucos es-clarecimentos públicos, enquanto a obra permaneceembargada pelo Ibama.

Os outros dois casos vêm de Campos do Jordão, mu-nicípio situado na Serra da Mantiqueira, entre o Valedo Paraíba e o sul de Minas Gerais. Conhecida como a“Suíça Brasileira”, o município apresenta problemasambientais e urbanísticos sérios devido a sua localiza-ção, como, por exemplo, a captação de água para abas-tecimento da população, o destino do lixo, a ocupaçãoirregular de áreas de proteção ambiental e a expansãode periferias e favelas, causada pelo aumento da mi-gração. Nesse contexto, duas ONGs vêm se destacandorecentemente.

A primeira é uma ONG de ambientalistas, formada porvários agentes de classe média da cidade, como empresá-rios, professores, profissionais liberais, entre outros, e quetem como principal meta, atualmente, a preservação doRibeirão Capivari, principal recurso de captação de águapara a cidade. Sua estratégia foi primeiramente realizaruma campanha ampla de comunicação, de caráter infor-mativo e educativo, que inclui cartazes, cartilhas e vinhetasem uma rede de emissoras de rádio da região. Tal campa-

nha iniciou-se em janeiro de 2001, com depoimentos deagentes locais e esclarecimentos sobre a importância doRibeirão para o município e foi, progressivamente, incor-porando depoimentos de agentes regionais, estaduais enacionais, de agências e órgãos dedicados à questão am-biental, em instâncias governamentais ou fora delas, e es-clarecimentos sobre a problemática contemporânea dosrecursos hídricos, que chegou a incluir o problema do ra-cionamento de energia elétrica no país.4

Em outro momento, com a ampliação e diversificaçãoda campanha, a ONG passou a buscar recursos financei-ros para a elaboração de projetos de recuperação e pre-servação do Ribeirão Capivari, solicitando apoio institu-cional aos agentes mais destacados que participaram dacampanha, sobretudo nas instâncias de governo estaduale federal e aos empresários que possuem residências nomunicípio.

A intenção da ONG, entretanto, não é a de realizar osprojetos, mas entregá-los à prefeitura local para que elaos realize, ficando em uma condição de parceira no pla-nejamento e no controle, mas não na execução dos servi-ços necessários.

A segunda ONG em destaque é uma associação civilformada basicamente por pessoas que possuem proprie-dades no município, mas residem na capital paulista. Sãoempresários ou profissionais liberais de sucesso, que sedeslocam para Campos do Jordão para férias de invernoou viagens ocasionais de lazer.

Essa ONG foi criada com a finalidade de propor e ela-borar projetos de melhorias para o município, tendo emvista seus problemas. Nesse sentido, seus agentes apre-sentaram uma proposta de elaboração gratuita do PlanoDiretor do município, o que vem sendo muito discutidonas instâncias de governo e entre segmentos da sociedadelocal, mas que já foi aceita pelo prefeito atual, que tam-bém é empresário.

Antes mesmo de a proposta ser implantada, surgiu umaquestão de fundo: como conjugar nesse Plano Diretor osinteresses dos proprietários/investidores com as diretrizesde desenvolvimento social necessárias ao município?A resposta veio com um problema prático que se instalouno desenvolvimento dos debates em torno da proposta. Emuma matéria sobre problemas de infra-estrutura na região,publicada no jornal Folha de S.Paulo (29/04/2001, p. C3),o assessor técnico do gabinete da prefeitura foi questio-nado sobre a reivindicação da população pobre residenteem algumas áreas periféricas do município, que solicita-va do prefeito o asfaltamento do acesso a seus bairros, ao

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que respondeu: “Há turistas que não querem nem asfaltonem iluminação. Dizem que isso acabaria com a belezanatural de Campos”.

Ora, para um município com um contingente de po-breza alto, que “tem somente 30% de suas ruas asfaltadasou calçadas e 20% delas iluminadas” (FOLHA DES.PAULO, 29/04/2001, p. C3), a noção de preservaçãoda beleza natural da cidade, expressa por esses turistas, éno mínimo segregadora.

Vê-se então, em tais casos descritos, que alguns as-pectos apresentam referências comuns:- os agenciamentos das ONGs explicitam dimensões di-versificadas da questão social contemporânea, exte-riorizando problemas muitas vezes velados nas relaçõesentre o Estado e a sociedade civil, o que é característicado seu exercício emergente de mediação nessas relaçõesde organização social;

- seus agenciamentos também sugerem um distanciamentoentre o saber necessário (que as organizações possuiriam)para a resolução dos problemas dos municípios e a capa-cidade para tanto explicitada pelos governos locais;

- aos governos locais é reconhecida, entretanto, a capa-cidade de execução dos projetos elaborados e agencia-dos pelas ONGs;

- as instâncias de governo são caracterizadas, também,como fontes de financiamento (na forma dos fundos pú-blicos) ou de intermediação para manutenção das ONGse de seus projetos;

- a informação da população, visando a manifestação daopinião pública, é vista ora como recurso estratégico paracaptação de investimentos ou para sustentação política,pois agrega valor às ações das ONGs, ora como depositá-ria de discussões técnicas ou econômicas restritas, compouca repercussão na formação de uma esfera públicaefetiva.

No conjunto de tais referências, duas possibilidadesse configuram: de um lado, os problemas

propostos pela experiência [das ONGs] contribuem paratornar retrátil a ação e cada vez mais manifesta a intenção:assim o ator social se convence até mesmo do ainda-não-verdadeiro ou do quase-falso que constituem os ordenamen-tos conjeturais do conhecimento (CAMPA, 1985, p. 15);

de outro, as ações das ONGs reproduzem modelos em que

as variáveis independentes da ação são computadas esta-tisticamente nos resultados da própria ação: qualquer coi-

sa pode ser justificada se não se esboçam forças capazes decontrastá-la. De fato, entende-se o todo como aquele mo-mento magmático e indiferencial a que são congênitas aadesão, a filiação virtual de todos, sem que a consciênciada totalidade ou da maioria dos componentes comunitáriosse explicite ou se manifeste (CAMPA, 1985, p. 14).

De qualquer forma, a presença marcante das ONGsreforça a concepção de García-Pelayo (1977, p. 25), deque

Estado e sociedade não são mais sistemas autônomos, auto-regulados, unidos por um número limitado de relações, eque recebem ou enviam impulsos e produtos definidos, masantes dois sistemas fortemente inter-relacionados entre siatravés de relações complexas, com fatores de regulaçãoque se encontram fora dos respectivos sistemas e com umconjunto de subsistemas interseccionados, de que dão provao cumprimento de funções estatais através de empresas deconstituição jurídica privada, a realização de importantesfunções públicas por meio de contratos, a presença de repre-sentantes do setor privado nas comissões estatais e noscentros de decisão.

Se a presença difusa de diversos agentes coloca em cenanecessidades e expectativas concretas definidas nos ter-mos de “exercício de liberdade”, como as configuradasnas ONGs, em contrapartida provoca-se uma crise de re-gulação das “garantias formais que [...] constituem as pré-condições lógicas para a mudança efetiva das relaçõesintersubjetivas” (GARCÍA-PELAYO, 1977, p. 19).

Dessa forma, reconhecendo o escopo restrito e focali-zado dessa análise, é necessário inventariar os tipos deONGs que emergem e suas articulações em torno de umprojeto social, para configurar o caráter instituinte de es-fera pública que se enforma entre as organizações e emsuas relações com a sociedade civil e o Estado.

Um bom critério para começar consiste na identifica-ção do alinhamento das finalidades das ONGs com o “Pla-no de Reforma do Estado” proposto pelo governo fede-ral, como também na investigação e análise das diversasações e dos projetos em desenvolvimento das ONGs, nastrês instâncias de governo. Deve-se avaliar se tais açõesrealmente aderem às necessidades públicas ou se repro-duzem demandas de grupos e segmentos restritos, organi-zados em torno da captação dos recursos públicos e dadefesa de seus interesses.

Essa avaliação torna-se necessária porque, pela media-ção das ONGs,

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enquanto a sociedade civil perde a capacidade de auto-regulação, o Estado não adquire nesse mesmo contexto alegitimação de sua intervenção. De fato, a desautorizaçãodo Estado depende da crise do saber, da extrema relatividadedo conhecimento que, em níveis complementares e portantopotencialmente conflituais, determina processos produtivosde grande monta [...]. Uma confluência de interesses, geradapor uma co-participação criativa caótica, determina acomplexidade das decisões investidas de poder (CAMPA,

1985, p. 18).

E aqui, sem desconsiderar a importância que as açõesde várias ONGs vêm mostrando no cenário contemporâ-neo, devemos reconhecer que o aumento gradativo donúmero de organizações, sobretudo em âmbito local, nãotem correspondido às expectativas sociais de produção deuma esfera pública ampliada e efetiva.

OUTRAS MODELAÇÕES DA ESFERA PÚBLICA

Um exemplo mais efetivo de esfera pública instituinteé o orçamento participativo, uma vez que

permite que a cidadania conheça [e exercite] a estruturade receita pública, de onde ela se origina, quem paga e quemnão paga. A população, a partir de critérios deliberadoscoletivamente, decide onde esses recursos são gastos, quaisas prioridades e quais as obras a serem feitas com eles. [...]o orçamento participativo supera a alienação, aprofunda ademocracia e forma uma cidadania viva, crítica e parti-cipativa, capaz de decidir conscientemente sobre as questõesque lhe dizem respeito (DUTRA, 1999).

Ultrapassando a participação e deliberação, o orçamen-to participativo também permite aos segmentos da popu-lação reconhecer os interesses de classe que se expres-sam na luta pela apropriação dos recursos públicos;interesses que, fora de tais esferas públicas, mantêm-segeralmente ocultos. Todavia, a população precisa supe-rar alguns aspectos restritivos à deliberação popular so-bre o orçamento público, porque geralmente as plenáriasdeliberam somente sobre a rubrica do orçamento destina-do aos investimentos, que em média correspondem a 10%do orçamento municipal, por exemplo. É necessário am-pliar o limite de participação popular, de forma a tornartal esfera mais pública do que já é, aumentando não só aautonomia da sociedade civil nesse processo, mas tam-bém sua responsabilidade.

O orçamento participativo pode ser igualmente um ca-nal de ampliação da esfera pública quando, possibilitan-

do à população o reconhecimento e a discussão dos pro-blemas locais e garantindo-lhe o direito de decidir cons-cientemente sobre as questões que lhe dizem respeito,possibilita a visualização, o acompanhamento e o contro-le das ações e dos projetos sociais públicos. Somente emuma esfera pública ampliada com esse mecanismo de con-trole há a possibilidade de criar um programa integradode inclusão social. Não é à toa que as propostas de orça-mento participativo, tanto quanto as experiências de pro-gramas integrados de inclusão, são coordenadas direta-mente pelos gabinetes dos prefeitos municipais, mas sãogeridas segundo modelos descentralizados e participati-vos.5 Atualiza-se a opção política de gestão dos gover-nantes, fazendo os problemas chegarem diretamente aogoverno, tanto quanto se facilita a tomada de direção nosentido de aderir à satisfação das necessidades públicas.

Um outro exemplo de esfera pública instituinte são osconselhos de gestão, sobretudo os municipais, cada vezmais caracterizados como modelos de gestão das políti-cas sociais. Sua importância está no fato de constituíremformas de descentralização das deliberações sobre as açõesdo governo e de coordenação das ações da sociedade ci-vil em torno da efetivação das políticas sociais necessá-rias para o enfrentamento da exclusão social. Nesse senti-do, os conselhos são grandes canais de interlocução entrea esfera estatal e a sociedade civil.

Desde a promulgação da Constituição de 1988 a so-ciedade brasileira vem reestruturando as esferas de parti-cipação popular, buscando o reordenamento das instân-cias decisórias acerca das políticas sociais públicas. Em16 anos de mudanças, porém, poucas delas já estão insti-tucionalizadas como canais efetivos de expressão das de-mandas da população, o que pode ser explicado por di-versos fatores e condições hoje presentes na experiênciados sujeitos envolvidos com a questão social.

Entre as esferas de participação popular e de expres-são de suas demandas pela cidadania, os conselhos degestão formam um locus privilegiado de análise, uma vezque nessa esfera explicitam-se conflitos decorrentes daconvivência de concepções e formas tradicionais, hege-mônicas e emergentes de controle social.

Os conselhos apresentam concepções tradicionais ehegemônicas, que ficam claras na sua forma de composiçãoe nas suas atribuições em suas relações com o governo.Tais características são identificadas tanto na relutânciade vários governantes em admitir as decisões e resoluçõesdos conselhos quanto no padrão tutelado que muitosgovernos reproduzem na manutenção dos conselhos.

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Na busca de referenciais para a ação dos conselheiros,com vistas a dinamizar procedimentos da administraçãopública e atender às demandas dos segmentos representa-dos, em muitos casos confundem-se as atribuições dosconselhos com as do Estado. Tal confusão desdobra-sena fusão das estruturas de funcionamento de ambos, o queinibe o desenvolvimento de relações fiscalizadoras ereivindicatórias coerentes e eficazes.

O desconhecimento acerca do funcionamento da buro-cracia estatal e de suas inconsistências nas relações entreinstâncias diferentes de governo tem impedido o desen-volvimento de composições pluralistas nos conselhos, umavez que as concepções de descentralização ficam mal re-solvidas. Nessa condição, os conselheiros acabam tornan-do-se elementos mandatários que se envolvem alternada-mente nas decisões governamentais, sem exercer um poderde controle social mais efetivo na estrutura organizacio-nal da administração pública, num sentido amplo.

Efetivados como burocracia, mas relegados à condi-ção de apêndice nas decisões governamentais, os conse-lhos prestam-se a procedimentos errôneos, mesmo que suasações busquem o bem comum.

As experiências dos conselhos dos direitos da criança edo adolescente já implantados em muitos municípios, po-rém, têm mostrado que eles são capazes de superar essesentraves, alcançando o status do que alguns analistas têmchamado de “o quarto poder”. Embora essa denominaçãoenvolva concepções complexas acerca do exercício dasações de governo, mesmo que restrita à esfera municipal,deve-se considerar ao menos que as ações desses conse-lhos têm contribuído decisivamente para a reorganizaçãode algumas estruturas da administração pública, pela am-pliação de canais de vocalização dos segmentos popularesque deles participam. Em alguns casos, essa ampliação co-loca demandas que, quando atendidas ou negociadas, de-tonam um processo de cidadania em construção, que per-mite pensar a emergência de um “Welfare State Municipal”,como indica Manzini-Covre (1996, p. 57-85).

FECHANDO CIRCUITOS DE ANÁLISE

Seguindo as reflexões anteriores, é necessário afirmarque a identificação das esferas públicas instituintes carecede uma distinção a ser feita entre os modos de objetivaçãoe subjetivação da realidade que se operam acerca das“necessidades públicas”. O discurso comum daqueles queconsideram as ações de Estado como propostas homoge-neizadoras, que anulam as subjetividades produzidas nas

relações entre os segmentos sociais, geralmente recai naproposta de uma “sociedade de risco” (BECK, 1995), onde“o que está em risco” não são mais as próprias necessidadespúblicas, mas os interesses privados.

Vivemos hoje em uma sociedade de riscos diferencia-dos, sem dúvida, mas sua resolução não prescinde de umaesfera pública, pois é nela que as subjetividades encon-tram-se como elementos diferenciadores, mas ainda comocódigos comuns de convivência entre sujeitos que que-rem exercer a cidadania.

NOTAS

Para Aldaíza Sposati.

Este artigo é uma versão revisada e ampliada da comunicação homô-nima apresentada no GT “Terceiro Setor: teoria e prática”, no Con-gresso Estadual de Sociólogos do Estado de São Paulo – ASESP, rea-lizado em outubro de 2001 na PUC (SP).

1. Nesse sentido, conferir os artigos sobre mínimos sociais publicadosna revista Serviço Social & Sociedade, números 55 e 58.

2. Termo utilizado por uma agente de ONG em São Leopoldo (RS),durante o Colóquio de Pesquisa “Município e pobreza: ações do Esta-do e da sociedade civil”, realizado na Unisinos, em 17/05/2001: “elanão substitui as obrigações do poder público. A ONG atende seu focode missão”.

3. Os dados aqui descritos referem-se às pesquisas realizadas peloNIPPC, para “Caracterização da rede de proteção social/assistencial”dos municípios de São José dos Campos (1996), Taubaté (1998), eAreias (2000).

4. As estratégias de ampliação e diversificação dos temas dessa cam-panha ambiental estão sendo comparadas, no momento, com uma se-melhante realizada em Poços de Caldas (MG), promovida por outraONG de ambientalistas. Este município apresenta característicasgeofísicas e problemas ambientais e urbanísticos semelhantes aos deCampos do Jordão, mas as estratégias ideológicas e políticas das cam-panhas são diferenciadas e adequadas às relações sociais locais, bus-cando mais “eficácia simbólica”.

5. Um caso exemplar dessa estratégia de governo é o “Programa Inte-grado de Inclusão Social” implantado pela Prefeitura Municipal deSanto André (SP), na gestão do prefeito Celso Daniel.

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EDUCAÇÃO: DIREITO UNIVERSAL OU MERCADO EM EXPANSÃO

N

Resumo: Este artigo sintetiza estudo exploratório sobre educação e comércio, com o objetivo de mapearo estado da privatização da educação no Brasil, bem como as políticas e regras criadas pelo governobrasileiro concernentes às negociações comerciais internacionais e à participação do capital estrangeironeste setor.Palavras-chave: educação; comércio; mercado de serviços.

Abstract: This article synthesizes an exploratory study on Education and Commerce to show the stateof privatization of Education in Brazil, as well as to show both the rules created by the Brazilian governmentconcerning to international commercial negotiations, and the sharing of foreign capital in this sector.Key words: Education; Commerce; Services’ Market.

SÉRGIO HADDAD

MARIÂNGELA GRACIANO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 67-77, 2004

as últimas décadas, o Brasil ampliou considera-velmente a possibilidade de acesso à educaçãobásica. Entre 1920 e 2000, enquanto a popula-

ção cresceu 5,6 vezes, o número de crianças matriculadasaumentou 6,5 vezes, inicialmente nos quatro anos do anti-go primário e posteriormente nos oito anos do atual ensi-no fundamental.

Esse crescimento se deu prioritariamente pela amplia-ção de vagas em escolas públicas municipais e estaduais,que dividem entre si a responsabilidade sobre a educaçãobásica. A participação do ensino privado é minoritária emtodos os níveis, não passando de 10% em média. No en-tanto, essa realidade se inverte no superior, que registra69,78% das matrículas na iniciativa privada (MEC/INEP,2002).

Nas quatro primeiras séries do ensino fundamental,64,58% das vagas são ofertadas pelos municípios; os Es-tados respondem, sobretudo, pelas quatro últimas sériesdessa modalidade, concentrando 57,51% das vagas, e tam-

bém pelo ensino médio, 83,77% (MEC/INEP, 2002). O go-verno federal é responsável pelo superior e por algumasescolas técnicas de nível médio.

O resultado dessa configuração se reflete na possibili-dade de acesso à educação: enquanto o ensino fundamen-tal é freqüentado por aproximadamente 97% da popula-ção entre 7 e 14 anos, o superior atende apenas cerca de8% das pessoas entre 18 e 24 anos. Na Argentina, esseporcentual está próximo de 40% e é elevado também emoutros países: Alemanha (50%), França (60%), EUA (80%)e Canadá (quase 90%).

Nos últimos anos, em particular na gestão FHC, o go-verno federal instituiu uma reforma educacional que bus-cou adaptar o sistema de ensino à reforma do Estado, emconsonância com as orientações das instituições financei-ras multilaterais que, além de destacar essa área como prio-ritária, indicaram uma série de medidas para o setor.

A conseqüência foi uma política educacional carac-terizada por “focalização” no ensino fundamental regular

EDUCAÇÃOdireito universal ou mercado em expansão

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apenas para as crianças e jovens dos 7 aos 14 anos;“flexibilização” do sistema, tornando-o “menos afeito aoslimites estabelecidos por legislações anteriores, muitasdelas produtos de direitos sociais conquistados”; “pri-vatização” de alguns setores, particularmente o ensinosuperior; busca de parcerias com organizações dasociedade civil (ONGs, fundações empresariais, movi-mentos sociais) “menos nas definições de políticas e nocontrole das ações, mais na assessoria técnica e no trabalhodireto” (HADDAD, 2003).

A focalização dos recursos no ensino fundamental é umaorientação que atende duplamente às necessidades domercado. De um lado, permite que a população mais po-bre tenha acesso a um mínimo de conhecimento para seinserir no mercado de trabalho e, de outro, deixa um vas-to campo (mercado) a ser explorado pela iniciativa priva-da, nos ensinos técnico e superior.

O Banco [Mundial] sabe que a iniciativa e os recursos pri-vados preencherão a lacuna deixada pela retirada parcialdo subsídio de outros níveis de educação pública e, princi-palmente, sabe que esta é a melhor situação porque, se todosdevem pagar pelo que recebem, não serão gerados compor-tamentos considerados perversos do ponto de vista do mer-cado (CORAGGIO, 1996).

As orientações das Instituições Financeiras Multilate-rais – IFMs, no entanto, não têm produzido os resultadosanunciados. O acesso à escola não garante melhores con-dições de vida à população pobre, porque não há cresci-mento de empregos. Nos últimos dez anos, o Brasil per-deu 40% da mão-de-obra na indústria. O crescimento,insuficiente, ocorreu, fundamentalmente, no setor de ser-viços e em especial na informalidade.

Entre 1992 e 2002, o crescimento médio do ProdutoInterno Bruto – PIB foi de 2,9%, índice que caiu para 1,6%nos últimos cinco anos do período. Em 2003, seguindo atendência de encolhimento, o PIB caiu 0,2% em relaçãoao ano anterior. Entre 2000 e 2002, a indústria registrouseu pior desempenho, passando de um crescimento de 5,5%em 2000 para -0,8% em 2001 e 1,5% em 2002; em 2003,apresentou crescimento de apenas 0,3% na produção emrelação ao ano precedente. O desempenho da economiateve reflexos perversos sobre o mercado de trabalho. Ataxa de desemprego saltou de 7,1% em 2001, para 10,5%em 2002 e 12,5% em 2003.

O cenário econômico incidiu sobre as demandas porescolarização, tida como critério fundamental na disputapor postos e melhores salários no restrito mercado de tra-

balho, embora tenha havido redução na remuneração. En-tre 1992 e 1999 (IBGE/PNAD, 1999), o ganho de uma pes-soa com ensino fundamental completo passou de 1,03 para0,89 do salário médio, e de 1,49 para 1,25 para concluintesdo ensino médio.

Mais de 60% das vagas oferecidas no mercado de tra-balho requerem no máximo o ensino fundamental (MINIS-TÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO/RAIS, 1999;IBGE/PNAD, 1999). Dentre os 40 milhões de trabalha-dores com oito anos ou menos de escolaridade, apenas 10%possuem diploma de ensino fundamental; pouco mais de20% dos empregos oferecidos exigem curso médio e es-tão concentrados nas regiões mais industrializadas; e me-nos de 10% exigem curso superior completo.

O MERCADO DA EDUCAÇÃO

Se a política educacional adotada nos últimos anos noBrasil não logrou melhorar as condições de vida da popu-lação mais pobre, reduzindo a concentração de renda,conforme anunciado pelas IFMs, certamente atingiu umoutro objetivo desses organismos: criou um mercado ex-tremamente atraente para a iniciativa privada, sobretudono ensino superior.

De acordo com estudo realizado pela Consultoria MerrillLinch (CHANNEL NEWSASIA, s.d.), anualmente a edu-cação, em geral, movimenta cerca de US$ 2,2 trilhões, e em2001 empregava cerca de 5% da mão-de-obra mundial. Amesma instituição afirma que a demanda atual mundial porensino superior é de 84 milhões de pessoas, número quedeve chegar a 160 milhões em 2025, com maioria concen-trada em países em desenvolvimento. Nestes, nos últimos50 anos, a educação secundária cresceu oito vezes, en-quanto o ensino superior cresceu 14 vezes. Em movimen-to contrário, o gasto público no setor tem-se mantido cons-tante ou até decresceu (MERRILL, s.d.).

O maior índice de privatização da educação superiorpertence às Filipinas, com 94% das matrículas sob a res-ponsabilidade da iniciativa privada, seguidas por Coréia(78%); Brasil (70%); Indonésia (63%); Colômbia (61%);Índia (60,5%); Nicarágua (42%); Peru (33%); Chile (28%);Nepal (24%); Guatemala (18%); Tailândia (17%); Méxi-co (16%); Argentina (15%) e Malásia (12%), conformeMerrill.

De acordo com a consultoria Education Developmentand Investment Company of Switzerland – Edics, emestudo publicado em 2001, a iniciativa privada movi-mentava, em todo o mundo, 20% do mercado da educação

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– cerca de US$ 400 bilhões; Brasil, China e Índia, além dospaíses-membros da Organization for Economic Co-operation and Development – OCDE, seriam os mercadosmais prósperos para investimentos no ensino superior, emvirtude de seu grande contingente populacional, aliado àinsuficiência da oferta nacional para o setor (EDICS, s.d.).

Nos EUA, 32% da população entre 18 e 30 anos cursa oensino superior; na UE esse índice é de 20% (EDICS, s.d.)e, no Brasil, 8%. Em relação aos cursos de pós-graduação,o diagnóstico é que nos países da OCDE existe um gra-duado em doutorado para cada 5 mil habitantes, enquantoessa relação é de um para 70 mil no Brasil, 140 mil no Chilee 770 mil na Colômbia (GILLES, 2002).

Em 2001, a educação superior na União Européia tinha13 milhões de estudantes, em 900 faculdades, com gastosde aproximadamente $ 112 bilhões. Nos EUA, no mesmoano, eram 15,3 milhões de estudantes, 1.100 faculdades egastos de $ 255 bilhões. Dessa forma, o custo-aluno nosEUA era significativamente maior que nos países da UE(EDICS, s.d.).

No Brasil, o ensino superior movimenta cerca deR$ 20 bilhões e conta com 3,4 milhões de universitários;cerca de 2,4 milhões (dois terços) estão em instituições pri-vadas de ensino, cuja margem de lucro é estimada em 25%.Estima-se que até 2011, o número de universitários chega-rá a 6 milhões (PAJARA, 2003; STUDART, 2002).

Estima-se que entre o final da década de 90 até 2002, acada semana foram abertas, em média, três instituiçõesparticulares de ensino superior no Brasil, a maioria depequeno porte. Há enorme concentração do mercado:menos de 5% das instituições de ensino superior parti-culares agregam quase metade das matrículas do setorprivado, enquanto as 50% menores detêm apenas 5% dototal de matrículas. As dez maiores universidades parti-culares têm mais de 440 mil alunos matriculados (18,1% dototal), e a somatória de seus faturamentos gira em torno de21% do total do mercado. O gasto com propaganda dessasinstituições foi estimado em R$ 400 milhões em 2002(MONTEIRO; BRAGA, 2003).

A ampliação da rede privada de ensino superior foiacompanhada por amplo investimento em marketing feitopor essas instituições. Na década passada, os gastos compropaganda aumentaram 105,6% e, apenas nos dois primei-ros anos desta, cresceram mais 15,5%, segundo estudo feitopela Hoper Consultoria & Pesquisa junto a 78 instituiçõesde ensino superior das regiões Sul e Sudeste do país (INS-TITUTO MONITOR, 2003).

Ao lado do aumento contínuo de vagas no ensino su-perior, o Brasil registra alta ociosidade, tendência que temse mostrado crescente. Em 1991, a taxa de ocupação era decerca de 83%. Já em 2000, passou para 75%, embora o nú-mero de estudantes que ingressaram no ensino superiortenha quase dobrado (crescimento de 95%), segundo aFolha OnLine (SOBRAM..., 2003).

Além de ampliar-se, o “mercado” também vem se “di-versificando” quanto aos cursos ofertados: em cem anos,o número de carreiras cresceu de 3 – medicina, engenhariae direito – para 350, dos quais 20 são considerados “tradi-cionais” e os demais foram criados para atender às deman-das do mercado de trabalho.

Entre os novos cursos destacam-se os de empreen-dedorismo (FONSECA, 2003), uma demanda colocada nãopelo mercado de trabalho, mas por sua retração: o desem-prego. São cursos voltados para a criação de negóciospróprios e, de acordo com pesquisa realizada pelo GlobalEntrepreneurship Monitor – GEM, coordenada peloBabson College, dos Estados Unidos, e pela LondonBusiness School, da Inglaterra, o Brasil ocupa a sétimaposição no ranking mundial dos países com maior nívelde empreendedorismo.

A disseminação do uso da Internet, a indústria culturale a presença de empresas transnacionais têm aumentado abusca por profissionais de tradução, principalmente doinglês (COM MERCADO..., 2003). Atualmente, 18 univer-sidades oferecem graduação em tradução; 10 estão situa-das no Estado de São Paulo e 3 na capital.

Os cursos de pós-graduação vêm constituindo-se emoutro pólo para comercialização da educação. Pesquisarealizada pela empresa de recursos humanos Adecco(RIBEIRO, 2003), indica que do total de gerentes contrata-dos em 2002 por 210 companhias, 60% apresentavam pós-graduação em seu currículo, o que representou aumentode 40% em relação a 2001. Pesquisadores da UniversidadeFederal Fluminense – UFF apontam tendência ainda maisespecífica no “mercado” da pós-graduação, que são oscursos Master in Business Administration – MBA, carac-terizados por difundirem práticas adotadas em empresasde vários países, representando um modelo de gestão “glo-balizada”.

O mercado brasileiro de ensino superior oferece aindaa possibilidade de serem constituídos centros universitá-rios que, diferentemente das universidades, não precisamdesenvolver atividades de pesquisa, o que pode reduzirem até 40% a folha de pagamentos da instituição(STUDART, 2002). O Brasil é o 17o colocado no ranking

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de pesquisa mundial, com forte crescimento entre 2001 e2002 (CRISTINA, 2003). No entanto, a proporção atual éde 0,25 pesquisadores para cada mil habitantes, enquantonos Estados Unidos essa relação é de 3,5 (MEC DEFEN-DE..., 2003).

O “mercado promissor” em que se constitui o ensinosuperior brasileiro já foi descoberto e está sendo explora-do pelo capital internacional, associado ao nacional. Aempresa Apollo International, um dos maiores grupos deensino dos Estados Unidos, associou-se à FaculdadePitágoras, de Minas Gerais. Com investimento de US$ 30bilhões, o grupo possui 1,2 mil alunos, distribuídos emtrês unidades, duas em Minas Gerais e uma em Curitiba, etem como meta ampliar seu público para 100 mil alunos,em dez anos (PAJARA, 2003).

Além do Brasil, o grupo atua na Holanda, na Alemanha,no México e na Índia. Nos Estados Unidos, a holding temquatro universidades – entre elas, a University of Phoenix,com 135 mil alunos e faturamento de US$ 1 bilhão. A ex-pectativa da empresa é faturar, até 2010, US$ 100 milhõesno território brasileiro (PAJARA, 2003).

Outra estratégia de entrada do capital estrangeiro naárea da educação é por meio da compra de instituiçõesnacionais já consolidadas. O Sylvam Group, que utilizouessa estratégia para se instalar em países como México,Chile, Espanha, Suíça, Índia e França, já demonstrou in-teresse em investir no Brasil (PAJARA, 2003).

O NOVO – E AMPLO – MERCADO ON LINE

Em 2000, o Ensino à Distância – EAD movimentou, pe-las vias virtuais, US$ 49,4 bilhões e atingiria US$ 53 bilhõesem 2003, segundo a consultoria Merrill Lynch (INFORMEUNIREDE, 2003).

De acordo com especialistas, a aceitação do ensino vir-tual está relacionada à difusão dos meios eletrônicos paraas mais diversas atividades cotidianas – desde o trabalhoaté o entretenimento. Nos Estados Unidos, segundo da-dos do U.S. Departament of Education, 850 mil alunos fre-qüentavam aulas virtuais em 2001.1 A empresa de con-sultoria Market Data Retrieval afirma que, atualmente, 96%das escolas públicas norte-americanas têm acesso à Internetde alta velocidade e mais de 51% das salas de aulas des-sas escolas estão conectadas. Em 1994, esses índices eram,respectivamente, 35% e 4%.

No Canadá, 100% das escolas e bibliotecas estãoconectadas à Internet, num modelo em que todas essasinstituições são interligadas por um portal. Estima-se que

75% da população daquele país utiliza a Internet (SAYAD,2003a).

O EAD por meios virtuais envolve, principalmente, asatividades do chamado e-learning – que inclui univer-sidades, capacitação de funcionários e sites de educaçãopara entretenimento – e as videoconferências. Além de nãoprecisar de investimentos físicos, esse empreendimentopermite aproveitar conteúdos e estruturas já existentes.O investimento realizado fica por conta da estrutura tec-nológica necessária para seu funcionamento.

De acordo com o International Data Corporation – IDC,em 2002 o e-learning movimentou, em todo o mundo,US$ 6,6 bilhões; desse total, US$ 5,2 bilhões foram gera-dos pelos EUA. Sua projeção para 2006 é que esse mon-tante cresça para US$ 23,7 bilhões.

A e-Marketer, uma das principais analistas internacio-nais da Internet, aponta fortes tendências de crescimentoda educação virtual nos EUA e no Japão e a projeção éque o e-learning movimente, em todo o mundo, US$ 50bilhões até 2010 (E-LEARNING BRASIL, out. 2003).

De acordo com o IDC, os mercados mais fortes para o e-learning estão nos países com elevado nível de inserçãona Internet. Na Europa, conforme dados dessa mesma ins-tituição, o mercado de e-learning deve movimentar US$ 4milhões em 2004, o que representaria um crescimentoanual de 96% do setor; 50% desse total deve ser destina-do à área de Tecnologias da Informação (E-LEARNINGBRASIL, set. 2003). Na Ásia, excluindo o Japão, a movi-mentação do mercado de e-learning deve ser de US$ 233milhões até 2005, com uma taxa de crescimento anual de25% (E-LEARNING BRASIL, jul. 2003).

No Brasil, de acordo com informações disseminadas noCongresso E-Learning Brasil, em 2003, o setor movimen-tou US$ 80 milhões, num crescimento de 33% em relação a2001. A educação, juntamente com as indústrias das tele-comunicações e farmacêutica, são as que mais contribuí-ram para esse aumento (E-LEARNING BRASIL, nov. 2001).

Existia no país, em 2003, cerca de 283 organizações queutilizavam o E-Learning, segundo informações disponibi-lizadas no portal “E-learning Brasil” (E-LEARNING BRA-SIL, 2003a). A utilização dos meios virtuais para capacitaçãode funcionários é recente, mas apresenta intensa taxa decrescimento: em 1999, cinco instituições utilizavam essatecnologia; em 2000 o número saltou para 48; em 2001 para100 e, em 2002, para 253. Dessas empresas e instituiçõesde ensino, 50% estão no Estado de São Paulo e 16% noRio de Janeiro (E-LEARNING BRASIL, 2003a). As receitasgeradas para os fornecedores de tal tecnologia foram esti-

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madas pelo IDC em US$ 53 milhões em 2002, com cresci-mento médio anual de 362%.

Além da capacitação de funcionários, o E-Learning temsido utilizado em universidades virtuais. Segundo a UnitedNations University – UNU, o custo estimado para a cria-ção de uma universidade totalmente on line, para cercade 2 mil estudantes, é de US$ 15 milhões, incluindo pes-soal, computadores e localização, e o valor unitário doscursos varia de US$ 50 mil a US$ 500 mil, com uso de siste-mas avançados (BARRET, 2003). A dimensão do mercadopara as universidades virtuais pode ser mensurada pelolucro da University of Phoenix, que em 2002 foi de US$ 23,6milhões (SAYAD, 2003b).

A UNU aponta a existência de quatro tipos de universi-dades virtuais. O primeiro reúne as instituições baseadasem campi tradicionais, que combinam ensino presencialcom aquele à distância, como a Stanford University eWestern Governors University. O segundo grupo é forma-do por instituições abertas, que oferecem educação à dis-tância para grupos restritos de alunos, em tempo parcial,como a UK University. O terceiro grupo consiste nas uni-versidades virtuais, propriamente ditas, que não pos-suem campus e utilizam a Internet como principal meio deatuação, a exemplo da African Virtual University e JonesInternational University. O último grupo é constituídopelos consórcios de educação on line, formados por re-des de universidades e instituições não-acadêmicas, comoa Virtual Learning Consortium – University of Cambridge.

Esta última forma tem se mostrado especialmente atraentepara os investidores por possibilitar a divisão de custos entreos envolvidos nos consórcios, que, na maioria das vezes,são formados por instituições privadas e públicas.

Sobre a oferta de ensino virtual por instituições social-mente reconhecidas no ensino presencial, o pesquisadoringlês Paul Delany, da Simon Fraser University, alerta parao que denomina “The Brand-Name University”, que per-mite às instituições de ensino superior freqüentadas pelaselites econômicas dos países ricos utilizarem seu nome –sua “marca” – para disponibilizarem parcialmente, e combaixa qualidade, seus serviços para os estudantes dos paí-ses pobres: “Nomes de universidades de elite assumiramo status de marcas comerciais como Coca e Pepsi”, afirmao autor, que aponta os cursos de pós-graduação do tipoMaster in Business Administration – MBA como o prin-cipal serviço oferecido por essas instituições (DELANY,1996). De acordo com Delany, os alunos esperam que a “mar-ca” da universidade os credencie para melhores postos esalários no mercado de trabalho.

Seguindo a tendência mundial, o ensino por meios vir-tuais – E-Learning – surgiu no Brasil no final da décadade 90, com a organização de consórcios formados por ins-tituições – públicas ou privadas – , como forma de reduziros custos iniciais.

Entre 1999 e 2001 foram formados grandes consórci-os para a constituição de universidades virtuais, entreeles, a Universidade Virtual Pública Brasileira – Unirede,que envolve universidades públicas federais, estaduaise municipais; o Centro de Educação Superior à Distân-cia do Estado do Rio de Janeiro – Cederj; a Rede Brasi-leira de Educação à Distância, composta por dez insti-tuições privadas; o Projeto Veredas, liderado pelogoverno do Estado de Minas Gerais e integrado por 18instituições públicas, particulares, comunitárias econfessionais; e a Rede de Instituições Católicas deEnsino Superior – Ricesu.

O levantamento apresentado pelo Instituto Internacio-nal da Unesco para a Educação Superior na América e noCaribe – Iesalc indica que o Brasil possui atualmente84.713 alunos que cursam o ensino superior por meiosvirtuais, o que representa cerca de 2,6% dessa modalida-de de ensino. Desse total, 54.757 (65%) freqüentavamcursos virtuais autorizados pelo MEC; 21.141 (25%) es-tavam em cursos credenciados por conselhos estaduais deeducação; e os demais (10%) acompanhavam cursos emfase final de credenciamento.

Até 2002, 33 instituições públicas e privadas brasilei-ras ofereciam 60 cursos de graduação e pós-graduação nãopresenciais. Cerca de 99% dos inscritos em cursos de en-sino à distância estudam em universidades públicas, fe-derais ou estaduais. E a metade dos alunos está matricula-da nos cursos de pedagogia, normal superior, magistérioe educação básica. Quanto às faculdades privadas, suaoferta é de dois cursos seqüenciais e dois cursos de gra-duação, com o total de 831 alunos. Já na pós-graduação,o maior público é de profissionais da área da saúde(VIANNEY et al., 2003).

As universidades virtuais do país que concentram omaior número de alunos são a Universidade do Estado deSanta Catarina – Udesc, que na graduação registra 14.320matrículas, e a Universidade Federal de Lavras – Ufla,com 8.500 alunos na pós-graduação (VIANNEY et al., 2003).

De acordo com a Secretaria Nacional de Ensino àDistância, do Ministério da Educação, a meta é ampliar onúmero de vagas das atuais 84 mil para 250 mil nos cursossuperiores à distância. O órgão afirma que essa modalidadede ensino é uma estratégia

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eficiente e apropriada para diminuir a exclusão social nasuniversidades do país; elevar a média de escolaridade dapopulação – a segunda pior da América Latina, perdendoapenas para o Haiti – e estimular a inclusão digital(ALVARENGA, 2003)

– atualmente, 87% dos computadores ligados à Internet en-contram-se nas classes média alta e alta (VIANNEY et al.,2003).

Ainda de acordo com a Secretaria Nacional de Ensino àDistância, o primeiro passo para o estímulo ao ensino su-perior virtual é a utilização desse sistema na formaçãode professores. A medida atenderia a três diferentes de-mandas: cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases, queprevê formação superior para todos os professores da redepública; o déficit de 200 mil professores de Matemática,Física e Biologia; e, por último, a inclusão digital.

De fato, a formação de professores tem sido o pontocentral do ensino superior à distância no Brasil. Dadosapresentados durante o Seminário Universidades Virtuaisna América Latina e Caribe, realizado em Quito (Equa-dor), em fevereiro de 2003, indicam que 77% dos 84.723alunos dessa modalidade cursam licenciatura para as sé-ries iniciais do ensino fundamental (VIANNEY et al., 2003).

A educação à distância, como alternativa de formaçãoregular, foi introduzida no sistema educacional brasileiroao final de 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizese Bases da Educação (Lei n. 9.394, de 20/12/1996), em es-pecial nos artigos 80 e 87.

O Decreto n. 2.494/1998 estabelece critérios comuns decredenciamento para instituições nacionais e estrangeirasde ensino à distância. A diferença de tratamento reside noreconhecimento do diploma.

Em 2002, o MEC divulgou relatório (MINISTÉRIO DAEDUCAÇÃO, 2002) elaborado por comissão assessora for-mada por técnicos da instituição e especialistas no ensinoà distância. O documento apresenta uma síntese da atualregulação dessa modalidade de ensino, aponta falhas epropõe algumas alterações, ainda não implementadas.

Em relação à certificação, o documento recomenda que:

os diplomas de educação à distância emitidos por instituiçõesestrangeiras, mesmo quando realizados em cooperação cominstituições sediadas no Brasil, para gerarem efeitos legais,deverão ser revalidados por universidades públicas bra-sileiras, no caso da graduação, e por universidades quepossuam cursos de pós-graduação reconhecidos, no caso dapós-graduação stricto sensu, todas devidamente creden-ciadas para a oferta de cursos em nível correspondente,

preferencialmente com a oferta equivalente em educação àdistância, respeitando-se os acordos internacionais dereciprocidade e equiparação. Deve-se, ainda, observar comopré-requisito para sua validade estar o diploma em confor-midade com a legislação do país em que a instituição deorigem estiver devidamente credenciada ou autorizada, alémde ter plena validade nos países das instituições emitentes,inclusive no que se refere ao exercício de profissões querequeiram formação e diplomação específica, como é o casoquase universal das profissões da área de saúde e de direito,e outras cujas práticas envolvam riscos sociais consideradossignificativos (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2002).

EDUCAÇÃO: DIREITO OU SERVIÇO?

Todos os esforços para regulamentar a participação dasuniversidades estrangeiras no Brasil, no entanto, podemnão gerar resultados caso a educação seja incluída entreos serviços submetidos às regras da Organização Mundialdo Comércio – OMC, por meio do Acordo Geral sobre Co-mércio de Serviços – Gats, que está sendo negociado en-tre os países e deve ser concluído até 2006.

A OMC adota uma ampla definição de serviços: cons-trução, computação, arquitetura, propaganda, audiovisual,consultoria, distribuição, educação, energia (inclusive “ser-viços” de petróleo e gás), serviços ambientais (que abran-gem saneamento, abastecimento e distribuição de água),entrega rápida, financeiros, legais, logística, movimento depessoas, correios, serviços profissionais, esportes, tele-comunicações, turismo (e suas respectivas cadeias dehotéis, restaurantes, agências de viagens e serviços deguias turísticos), transportes (aéreo, marítimo, inclusiveadministração de aeroportos e portos).

Especificamente quanto à educação, ainda não há re-gras definidas para o estabelecimento das transações en-tre os países, tampouco em relação à pertinência da utili-zação do conceito de “serviço” para essa área.

A Declaração Mundial sobre a Educação Superior noSéculo XXI: Visão e Ação, aprovada durante a Conferên-cia Mundial sobre o Ensino Superior,2

teve por fundamento básico o fato de que o acesso à educa-ção, inclusive no ensino superior, é um direito humano, nãopodendo pois ser tratada como mercadoria comercial (DIAS,

2002).

No artigo 14o, a Declaração afirma a educação superiorcomo um serviço público e, no artigo 6o, indica que estadeve basear suas orientações de longo prazo em objeti-

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EDUCAÇÃO: DIREITO UNIVERSAL OU MERCADO EM EXPANSÃO

vos e necessidades sociais, incluindo o respeito às cultu-ras e à proteção do meio ambiente.

Com sentido contrário, em setembro de 1998, a OMClançou o documento S/C/W/49 (WTO, 1998), definindonovas regras para o ensino superior. Nesse texto, os ser-viços educacionais são divididos em quatro categorias:serviços de educação primária; serviços de educação se-cundária; serviços de ensino superior (terciário); e educa-ção de adultos. O documento faz referência a “transfor-mações” que vêm ocorrendo no ensino, “que podem afetarde maneira significativa a finalidade e o conceito mesmoda educação”. Também menciona inovações “nas estru-turas domésticas e internacionais” do mercado que estãofazendo “surgir atividades muito próximas às dos servi-ços educativos”, como “os serviços de testes educacio-nais, programas de intercâmbio de estudantes e os servi-ços para facilitar o estudo no estrangeiro”.

Dias (2002) afirma que, na perspectiva das inovações, oensino à distância é visto pela OMC como um “setor ultra-dinâmico” e a Internet como “contribuinte importante paraas mudanças recentes na educação superior”, com a consti-tuição das universidades virtuais. A instituição tambémaponta a emergência de “acordos inovativos” entre institui-ções privadas e públicas, em âmbito nacional, mas tambémenvolvendo as estrangeiras – os conhecidos “consórcios”.

Sobre a responsabilidade estatal, diz o documento:

a educação é normalmente vista como um item de “atribui-ção pública”, produzida freqüentemente livre de encargosou a preços que não refletem o custo de sua produção. Gas-tos públicos permanecem, então, como a principal fonte definanciamento de muitos países.

Por último, constata que a educação existe também comoitem de “atribuição privada”, com preços determinadoslivremente pelas instituições provedoras. De acordo com Dias(2002), a OMC entende que “a partir do momento queinstituições particulares são admitidas como provedoras deensino, este é comercial, aplicando-se, pois a ele, as regras daOMC”, ou seja, é um serviço.

A defesa da presença da iniciativa privada como forma desubstituição, ou complementação, da ação e responsabilida-de do Estado, sobretudo nas áreas sociais, contradiz a pró-pria noção de direito universal inscrita na Constituição Fede-ral. No caso da educação, a jurisprudência brasileira consideraos serviços, mesmo quando prestados por particulares, comoatividade de natureza pública, portanto delegada ao Estado,o que, em princípio, eliminaria a possibilidade da participaçãode estrangeiros nesse setor (DALLARI, 2003).

No âmbito da OMC, os serviços são considerados umamercadoria que deve obedecer ao critério da máxima libe-ralização e abertura ao capital estrangeiro, de forma amaximizar os lucros das empresas que investem nessessetores, particularmente as transnacionais (REDE BRASI-LEIRA PELA INTEGRAÇÃO DOS POVOS, 2002).

No caso do ensino superior, por exemplo, mesmo apli-cados esses princípios, os representantes da “indústriaeducativa” (expressão da OMC apud DIAS, 2002) queremmais, e vêm reclamando das dificuldades encontradas porestudantes para alcançar a equivalência nacional para osdiplomas obtidos em instituições estrangeiras. Isso signi-fica, reclamar dos critérios adotados pelos países parareconhecer a validade de um curso, nacional ou estran-geiro; os representantes da “indústria educativa” argumen-tam que os critérios são “subjetivos”.

A OMC, por sua vez, não reconhece a prerrogativa dospaíses em decidir sobre os padrões de qualidade e aceitabi-lidade da educação disponibilizada a seus estudantes. Aocontrário, afirma que a solução é o estabelecimento de “acor-dos” internacionais para garantir a aceitação dos diplomasestrangeiros. Ainda relativizando a importância do controlenacional sobre a educação ofertada, a OMC afirma que ascompanhias internacionais não consideram as certificaçõesformais:

em outras palavras, entre o diploma legalizado de umauniversidade nacional e uma formação não reconhecida de umaindústria educativa que tenha a mesma origem que a companhia,esta pode dar preferência à última (DIAS, 2002).

O mercado de trabalho internacional, neste caso, seria oregulador dos cursos estrangeiros.

Até o momento, EUA, Austrália, Nova Zelândia e Ja-pão manifestaram-se sobre a inclusão da educação noâmbito da OMC. Desses, apenas o Japão dispõe sobremecanismos governamentais com o objetivo de protegeros valores culturais locais. Já os países da ComunidadeEuropéia, em abril de 2003, divulgaram “lista negativa”,3

excluindo da liberalização em seu mercado os serviços deaudiovisual, saúde e educação.

Em dezembro de 2000, os EUA entregaram ao Conselhode Comércio de Serviços da OMC proposta (Nota S/CSS/W9 – WTO, 2000) para comercialização do ensino supe-rior, educação de adultos e formação. O documento reco-nhece a responsabilidade do Estado sobre a educação, masreforça a premissa da OMC que sua comercialização inter-nacional é coerente com a coexistência, em âmbito nacio-nal, entre redes privadas e públicas.

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As propostas encaminhadas à OMC pela Nova Zelândia(WTO, 2001a), em junho de 2001, e pela Austrália (WTO,2001b), em outubro do mesmo ano, reforçam os pressupos-tos e proposições dos EUA que, talvez não por acaso,coincidem com a Nota da OMC sobre o tema, divulgadaem 1998 e citada anteriormente.

A nota encaminhada pelo Japão (WTO, 2002) à OMC,em março de 2002, acentua, entre outros aspectos, a ne-cessidade de

manutenção e melhoria da qualidade das atividades de pesqui-sa de cada Estado Membro [...] proteger os consumidores quantoà prestação de serviços de baixa qualidade [...] medidas paragarantir a equivalência internacional dos diplomas [...] levarem consideração as diferentes funções dos governos nacionais,em razão das diferentes estruturas administrativas, contextossociais e níveis de desenvolvimento (DIAS, 2002).

Quanto à equivalência dos diplomas, a nota japonesaalerta para a necessidade de proteger os consumidorescontra as fábricas de diplomas, e propõe a construção deuma rede internacional de informação sobre os serviçosdo ensino superior e investimentos em pesquisas de ava-liação universitária.

Ainda que aceite a concepção da educação como ser-viço, o Japão é o único país que reconhece a prerrogativados governos nacionais de controlar as ações para melho-ria da qualidade de ensino e a necessidade de criar regraspara proteger os estudantes quanto à oferta de ensino debaixa qualidade.

O tema do reconhecimento internacional dos diplomasestá em aberto, sobretudo porque se discute qual, ou quais,seriam as instituições com legitimidade para tal atribui-ção. De acordo com Dias (2002), algumas delas, como aAssociação Internacional de Presidentes de Universida-des – Iaup, fazem gestões para que sejam estabelecidosconceitos e padrões básicos de qualidade e de critérios deanálise dos cursos ministrados em âmbito internacional,legitimados pela Unesco.

Em documento divulgado em 2001 (DANIEL, 2001), aUnesco afirma que “não tem absolutamente a intenção dese transformar numa agência internacional de acreditaçãono campo do ensino superior” e justifica que

enfrentaria problemas insuperáveis de legitimidade e de efi-cácia, caso se transformasse em um instrumento para emitirjulgamentos sobre instituições nos Estados Membros.

Em abril de 2003, o Brasil indicou a inclusão de cincoáreas de serviços no Gats: limpeza, serviços veterinários,

fotográficos, de empacotamento e organização de conven-ções. A inclusão da educação não foi cogitada pelo go-verno brasileiro (BRASIL..., 2003).

A quinta conferência da OMC, realizada em setembrode 2003, em Cancun, não resultou em acordo entre os paí-ses, mas colocou em cena uma nova conjuntura.

Durante o encontro, o Brasil assumiu a liderança naconstituição do G-214 e há gradual abertura do governo nãoapenas para os empresários, mas também para o diálogo ea participação de ONGs e movimentos sociais na delega-ção brasileira.

Ainda que o governo não tenha sequer manifestado aintenção de incluir a educação nas rodadas de negociaçãoda OMC, sua inércia em adotar medidas reguladoras maisobjetivas e contundentes, combinada à atual política eco-nômica, feita em consonância com as orientações dasIFMs, especialmente FMI e Banco Mundial, concorre paraque, na prática, a educação, sobretudo o ensino superior,esteja vulnerável à voracidade com que as grandes em-presas internacionais vêm atuando nessa área, conformejá demonstrado.

No documento Gastos Sociais do Governo Central 2001-2002, divulgado pelo Ministério da Fazenda em novembrode 2003, há críticas sobre a destinação dos investimentosfederais para o ensino superior:

A canalização de grande parte do orçamento da educaçãopara o financiamento das instituições federais de ensinosuperior reduz o montante de recursos disponível para osdemais estágios da educação. Considerando a questão daeqüidade, essa política produz distorções relevantes, consti-tuindo-se no componente do gasto em educação de maiorregressividade. Cerca de 46% dos recursos do Governo Cen-tral para o ensino superior beneficiam apenas os indivíduosque se encontram entre os 10% mais ricos da população(MINISTÉRIO DA FAZENDA, 2003).

O documento afirma ainda que cerca de 70% do gastodireto do Governo Central com Educação e Cultura, em2001 e 2002, foi destinado ao ensino superior, em contra-posição aos 13% com ensino fundamental, 8% com ensi-no médio e 4,5% com educação de jovens e adultos.

Tal afirmação coincide com a avaliação do Banco Mun-dial, expressa no texto Brasil: Equitable, Competitive,Sustainable – Contributions for Debate (BANCO MUN-DIAL, 2004), que diz, em relação ao ensino superior:

as universidades gratuitas e de alta qualidade atraem mui-tos candidatos, mas somente um em cada nove consegue umavaga. Estudantes qualificados, mas em desvantagem –

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EDUCAÇÃO: DIREITO UNIVERSAL OU MERCADO EM EXPANSÃO

geralmente de famílias pobres – são atendidos por institui-ções privadas.

No mesmo documento, entre as indicações de políticaseducacionais para a melhoria da qualidade do ensino, écitada a necessidade de maiores investimentos na educa-ção infantil, com a devida recomendação de realocação derecursos:

o retorno dos investimentos feitos nessa área (educação pré-escolar) é suficientemente alto para justificar a reorientaçãode recursos, possivelmente vindo de reduções aos subsídiospúblicos em outras áreas, como a educação superior.

Além do problema de concepção, de considerar “gas-tos” os recursos destinados ao ensino superior, e não “in-vestimentos” para o desenvolvimento do país, os doisdocumentos partem de premissas equivocadas, tanto comrelação ao financiamento desta modalidade de ensino,quanto ao público beneficiado.

Estudo realizado pela Secretaria de Desenvolvimento,Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo, di-vulgado em novembro de 2003, revela que

80% dos gastos públicos com educação, esportes e culturase deveram a governos municipais e estaduais [...] Dessaforma, ao se mencionar que 70% do gasto social direto dogoverno federal com educação (incluindo empréstimos esubsídios) vão para o ensino superior, supostamente privi-legiando as famílias com altos níveis de renda, deve-se res-saltar que se leva em conta tão-somente 20% do gasto totalcom educação (SECRETARIA MUNICIPAL DO DESEN-

VOLVIMENTO, TRABALHO E SOLIDARIEDADE,

2003).

O estudo também contradiz o documento do Ministérioda Fazenda quanto ao custo elevado do ensino superior,quando comparado a outros países. No período analisa-do, o Brasil destinou apenas 0,5% do PIB para essa área,enquanto o Chile aloca 2,1%; a Holanda, 1,8%; a Inglater-ra, 1,1%; a Itália, 1,2%; e a Finlândia, 2%.

Quanto ao público beneficiado, a sistematização dosdados do Exame Nacional de Cursos 2003, o “Provão”,divulgadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-sas Educacionais Anísio Teixeira – Inep (MEC/INEP, 2003),revela que os universitários com renda familiar de até R$2.400,00 representam 70,8% dos alunos das instituiçõespúblicas de ensino superior e 58,4% das privadas. As ins-tituições públicas têm ainda 26,5% de seus alunos oriun-dos de famílias com renda de até R$ 720,00, enquanto nasprivadas esse grupo corresponde a 12,9%.

A conclusão está no próprio estudo:

Fica evidente, independentemente da forma de apresentaçãodos dados, que nas IES públicas é significativamente maioro percentual de alunos com renda familiar mais baixa; in-versamente, nas IES privadas é significativamente maior opercentual de alunos com renda familiar mais alta, desfa-zendo-se a percepção generalizada de que os filhos dos ri-cos estudam nas instituições públicas e os filhos dos pobresnas instituições privadas (MEC/INEP, 2003, p. 25, resumo

técnico).

Os dados expostos acima indicam, então, que as orien-tações das IFMs, seguidas pelo governo brasileiro, quetêm levado à privatização do ensino superior, baseiam-seem concepções e premissas totalmente equivocadas que,em última análise, beneficiam apenas a “indústria educa-tiva” do ensino superior. Tal tema torna-se particularmenterelevante neste momento, em que a reforma universitáriaestá em pauta, e com ela o sentido público da educação.

NOTAS

Agradecemos a Carolina Macedo Galvani pela pesquisa de documentos.

1. Ver o site: <http://www.elearningbrasil.com.br>.

2. Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, realizada em Paris,em outubro de 1998, com a participação de mais de 180 países.

3. Relação dos serviços excluídos – ou protegidos – da possibilidadede negociações no comércio internacional, permanecendointegralmente sob o controle e responsabilidade dos respectivosEstados nacionais, ainda que internamente sejam ofertados tambémpela iniciativa privada.

4. Países integrantes do G-21 em 12 set. 2003: Argentina; Bolívia;Brasil; China; Chile; Colômbia; Costa Rica; Cuba; Equador; Egito;Guatemala; Índia; México; Nigéria; Paquistão; Paraguai; Peru; Filipi-nas; África do Sul; Tailândia; Venezuela.Fonte: <www.news.bbc.co.uk>.

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MARIÂNGELA GRACIANO: Jornalista, Assessora da Relatoria Nacionalpara o Direito à Educação ([email protected]).

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N

Resumo: O artigo discute a recente onda de reformas da gestão educacional no Brasil e nos países desen-volvidos de língua inglesa que visam ampliar a participação comunitária na administração da escola. Apartir de várias análises, argumenta-se que tais reformas têm sido pouco eficazes na promoção doempowerment de pais e alunos.Palavras-chave: descentralização da educação; reformas; conselhos escolares.

Abstract: This article deals with the recent wave of reforms on the educational administration in Braziland in the English-speaking developed countries that intend to expand the community participation inthe school administration. Based on several analyses, it argues that such reforms are not effective enoughto empower students and their parents.Key words: education decentralization; reforms; school councils.

ANDRÉ BORGES

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 78-89, 2004

LIÇÕES DE REFORMASDA GESTÃO EDUCACIONAL

Brasil, EUA e Grã-Bretanha

as últimas duas décadas tem se observado ummovimento de dimensões mundiais rumo a padrõesdescentralizados de gestão dos sistemas

educacionais. Reformas implementadas tanto nos paísesem desenvolvimento como nos desenvolvidos vêmbuscando repassar poderes administrativos e financeirospara as escolas e promover o empowerment da comunidadeescolar por meio de estruturas de gestão colegiadas erepresentativas. Em certa medida, a difusão das reformasdescentralizadoras refletiu o descontentamento gene-ralizado com os modelos burocráticos e centralizados degestão das políticas sociais associados ao Estado-providência europeu e ao desenvolvimentismo no TerceiroMundo, razão para sua rápida aceitação nos mais variadoscontextos.

Na medida em que a descentralização e o “empo-deramento” (empowerment) da comunidade escolar têmsido advogados por grupos de variados matizes ideológi-cos, indo da direita neoconservadora à esquerda socialis-ta e social-democrata, os argumentos em torno destas pro-

postas têm sido com freqüência díspares. Entretanto, emque pesem as divergências ideológicas entre os defenso-res das reformas descentralizantes, é possível identificar umclaro ponto de convergência. Trata-se da crença de que énecessário desestatizar a escola pública e submetê-la ao con-trole da comunidade, reduzindo, inversamente, o poder dosvários agentes do Estado – políticos, administradores eprofessores – sobre a instituição educacional. De fato, tantoas perspectivas de esquerda quanto de direita parecemapostar na “libertação” da sociedade civil das amarras es-tatais (BECKMAN, 1993) como o remédio mais adequadopara os males do centralismo burocrático.

A partir de algumas análises desenvolvidas sobre otema, o artigo busca demonstrar que as políticas de des-centralização e reforma da governança escolar são com fre-qüência ineficazes na promoção do empoderamento dosgrupos menos favorecidos e excluídos do processo deci-sório no interior das escolas, não obstante as expectativascriadas em torno dessas políticas. Diante dessa constata-ção, o texto procura examinar algumas das possíveis razões

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LIÇÕES DE REFORMAS DA GESTÃO EDUCACIONAL: BRASIL, EUA E GRÃ-BRETANHA

para as limitações observadas no processo de descentra-lização da educação.

Fazendo uma crítica aos argumentos da literatura espe-cializada em torno das “falhas” do empoderamento, o arti-go observa como a política da descentralização reflete, noplano macro, uma disputa intra-estatal pelo poder, na me-dida em que professores, administradores educacionais epolíticos eleitos buscam manter ou mesmo melhorar suasposições, em detrimento dos grupos que se espera“empoderar”. No plano da micropolítica, de forma comple-mentar, a tentativa de reordenar as relações de poder nointerior da escola esbarra na lógica de disciplina e autori-dade que caracteriza a instituição educacional, lógica estapersonificada no professor.

Para desenvolver tais pontos, o artigo traça um brevepanorama de variantes de empoderamento na educação edos argumentos em torno destas. Em seguida, apresentaalgumas evidências recolhidas em pesquisas realizadas naGrã-Bretanha e nos EUA. Por fim, são discutidas algumasexperiências de reforma realizadas no Brasil, no âmbito dosEstados e municípios. O artigo centra a análise em duaspolíticas de empoderamento da comunidade escolar: osconselhos escolares e a eleição de diretores de escola.

EMPODERAMENTO E GESTÃO EDUCACIONAL

Variedades de Empoderamento na Educação

O conceito de empoderamento vem associado na litera-tura à criação de estruturas independentes e autogeridas.De modo geral, o termo pode ser definido como a capaci-dade de determinado grupo ou indivíduo controlar seupróprio ambiente, envolvendo não apenas o acesso a re-cursos materiais e o controle sobre as decisões relevan-tes, mas também uma disposição psicológica compatívelcom o autogoverno (HANDLER, 1996). O empoderamentovem associado à descentralização política, na medida emque esta envolve a transferência de poder decisório a gru-pos ou indivíduos previamente sub-representados oudesfavorecidos e à criação de unidades administrativasrelativamente independentes. A descentralização de cará-ter administrativo, em contraste, é mais limitada, pois ten-de a levar apenas à desconcentração de poder dentro dasestruturas burocráticas existentes (por exemplo com a trans-ferência de tarefas administrativas do Ministério da Edu-cação para as escolas), não levando ao empoderamentodos grupos previamente excluídos do processo decisório(SAMOFF, 1990; SUNDAR, 2001).

O conceito de “empoderamento”, assim como “demo-cracia” ou “poder”, é essencialmente contestável, revelan-do uma interminável disputa teórica em torno da sua defi-nição. Nesse sentido, a depender da orientação teórica ouideológica do analista, são enfatizados determinados as-pectos ou modalidades de “empoderamento”. No que tan-ge às reformas da educação, o debate em torno do concei-to reflete uma disputa mais ampla sobre o controle dasescolas e do processo educacional, que por sua vez serelaciona a distintos modelos de organização do Estado eda sociedade.

Na tradição das pedagogias progressistas, o empode-ramento vem associado à tomada de consciência, à mobili-zação coletiva e à radicalização da democracia. O mais impor-tante nestas perspectivas é garantir a mudança efetiva nasestruturas de poder no interior das escolas, quebrando ospadrões hierárquicos e autoritários da relação educador–educando (FREIRE, 1972; GANDIM; APPLE, 2002;FISCHMAN; MCLAREN, 2000). De modo geral, tais pers-pectivas se amparam em variadas versões do “socialismodemocrático” – anarquista, sindicalista ou cristão – paradefender o empoderamento da comunidade escolar e a revi-são dos métodos tradicionais de ensino (LAUGLO, 1995).

A perspectiva do liberalismo econômico, por sua vez,assume que as escolas devem tornar-se mais accountableperante os pais e alunos com a introdução de mecanismosde mercado. Do ponto de vista dos liberais, o sistema de“controle democrático” da escola pública é ineficaz, namedida em que transforma as escolas num espaço de lutapolítica entre vários grupos – sindicatos de professores,políticos e administradores educacionais – cujos interes-ses não necessariamente refletem as preferências dos“usuários da escola”, i.e., pais e alunos (CHUBB; MOE,1988). Na formulação original de Milton Friedman (1965),se os pais e os estudantes pudessem escolher entre esco-las públicas e privadas usando “cupons” (vouchers) finan-ciados por recursos governamentais, a competição entreas escolas pelos “consumidores” as forçaria a refletir aspreferências individuais.

Os defensores da criação de mecanismos de escolha nosistema educacional (school choice) argumentam que aampliação do poder de escolha reduz as desigualdadeseducacionais, permitindo que os estudantes pobres tenhamacesso à educação de maior qualidade, isto é, à educaçãoprivada (WORLD BANK, 1995a). Além disso, argumenta-se que o empoderamento dos usuários da escola via mer-cado minimizará a segregação em linhas classistas ou ra-ciais (CLUNE; WITTE, 1990).1

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Um último e importante modelo de empoderamento,sobre o qual este artigo se debruça mais detalhadamente,envolve a transferência da autoridade dos professores eburocratas para pais, estudantes e outros representantesda comunidade escolar. Esta modalidade envolve a trans-ferência do poder decisório para conselhos escolares com-postos por representantes da comunidade e a eleição dire-ta dos administradores educacionais. A introdução deestruturas colegiadas e democráticas é normalmentecomplementada com o reforço da “autonomia” da escola,por meio da transferência direta de recursos a serem apli-cados pelos conselhos.2 O argumento para esse tipo deempoderamento é geralmente construído a partir da críticaantiburocrática e antiprofissões ao Estado em suas va-riantes de esquerda e de direita.

Na visão da esquerda, a criação de estruturas co-legiadas e democráticas no interior da escola deve levarnecessariamente à radicalização da democracia e ao res-gate das formas de vida comunitárias solapadas por for-mas de controle burocrático ou de mercado (FISCHMAN;MCLAREN, 2000). No caso brasileiro, vale dizer, a defe-sa da “democratização” da escola pela esquerda confun-diu-se com a crítica ao Estado autoritário e seu modelode gestão de políticas sociais privatista e centralizador(CUNHA, 1991; RODRIGUES, 1997). É assim que, dada ainexistência prévia de um modelo universalista de provi-são de serviços sociais, a crítica ao estatismo centrou-seno combate ao clientelismo, ao corporativismo e àcorrupção, mais do que à burocratização stricto sensu.

Na perspectiva da direita neoconservadora, particular-mente nos países anglo-americanos, a defesa da escola“autogerida” ocorreu em termos dos possíveis impactossobre a eficiência administrativa, redução de custos e maiorresposta dos professores e administradores aos usuáriosda escola (LEVACIC, 1995; WHITTY; HALPIN; POWER,1998). Os governos da Nova Direita que adotaram este mo-delo buscavam introduzir incentivos de mercado e reduzir opoder dos professores e seus sindicatos, ao mesmo tempoem que restabeleciam controles centralizados sobre os cur-rículos (WHITTY; POWER, 2000; RAAB, 2000).3

Conferindo Poder à Comunidade Escolar:Diversidade e Consenso

De modo geral, as reformas contemporâneas da educa-ção em vários países têm sido caracterizadas pela substi-tuição dos modelos de controle profissional e burocráticotradicionais por mecanismos de quase-mercado e pela

transferência do poder decisório para as comunidadesescolares. Na América Latina, as agências internacionaisde financiamento tiveram papel importante na difusão donovo consenso, na esteira dos seus programas de “ajus-tamento estrutural” (ARNOVE, 1997; TOMMASI et al.,1998). Na Grã-Bretanha, Austrália, Nova Zelândia e nosEUA, foram principalmente os partidos conservadores eos think-tanks associados a estes os responsáveis peladifusão das propostas (WHITTY; POWER, 2000). É assimque tanto nos países desenvolvidos de língua inglesaquanto nos países latino-americanos os quase-mercadose o empoderamento da comunidade tornaram-se tendên-cias hegemônicas na recente onda de reformas da gover-nança escolar (ARNOVE, 1997; ARNOTT; RAAB, 2000;CLUNE; WITTE, 1990; WHITTY et al., 1998; WORLDBANK, 1995a; 1995b).

Entretanto, em que pese a tentativa de alguns analis-tas de associar a nova ortodoxia das reformas a um movi-mento amplo e homogêneo de caráter “neoliberal” ouneoconservador (APPLE, 2001; ARNOVE, 1997), o fato éque a promoção da “autonomia da escola” não encontraapoio apenas entre políticos da direita. De fato, há umaambigüidade fundamental na administração baseada naescola (school-based management), na medida em que odiscurso da “comunidade” que consubstancia tais pro-postas é suficientemente elástico para obter o apoio degrupos dos mais variados matizes ideológicos (WHITTYet al., 1998).

A ambigüidade ideológica desse modelo de empode-ramento é menos surpreendente quando se consideram asraízes antiestatistas das críticas tanto da esquerda quantoda direita neoconservadora aos sistemas educacionaiscentralizados e administrados de forma burocrática(LAUGLO, 1995). Ao contrário de reformas mais polêmi-cas, como a introdução de mecanismos de escolha na edu-cação (school choice), a submissão da escola ao controleda “comunidade” é uma proposta capaz de angariar amploapoio, refletindo a força do discurso em torno da socieda-de civil e de sua “libertação” das amarras estatais. O temada sociedade civil está presente na retórica de defensoresdo capitalismo desregulado, tanto quanto dos adeptos dosocialismo democrático e da social-democracia, de modogeral (BECKMAN, 1993).

O ponto a ser ressaltado por este artigo é que osdefensores de formas colegiadas e democráticas de gestãoescolar, independentemente das suas posições ideoló-gicas, parecem concordar quanto à idéia de que asreformas promoverão o empoderamento dos pais e dos

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LIÇÕES DE REFORMAS DA GESTÃO EDUCACIONAL: BRASIL, EUA E GRÃ-BRETANHA

alunos, beneficiando sobretudo os grupos socialmentedesfavorecidos. No Brasil, os pedagogos de esquerdaviram na introdução de formas colegiadas e democráticasde gestão escolar a possibilidade de submeter a escola à“hegemonia” das classes trabalhadoras, desmantelandoos padrões clientelistas e elitistas anteriormente vigentes(PRAIS, 1996; RODRIGUES, 1997).

Nos Estados Unidos, tanto grupos conservadores e tra-dicionalistas quanto a esquerda liberal argumentaram queo reforço da “autonomia da escola” daria mais “voz” a mi-norias étnicas e outros grupos marginalizados, contribu-indo para a reversão de padrões prévios de segregação raciale de classes no interior do sistema educacional (CLUNE;WITTE, 1990; COOKSON, 1994; HESS, 1991). Na Inglater-ra, Nova Zelândia e Austrália, os governos da Nova Direi-ta defenderam que formas de gestão participativas e des-centralizadas aumentariam a capacidade de pais e alunosintervirem nas políticas internas da escola, reduzindo a in-fluência de professores e burocratas e suas práticascorporativistas (JACOBS, 2000; THOMAS, 1993; WHITTYet al., 1998).

Em que pesem as expectativas criadas em torno dessaspropostas, o fato é que as evidências disponíveis para oscasos citados mostram que, na prática, o efetivo empo-deramento dos grupos desfavorecidos e sub-representa-dos tem sido mais uma exceção do que a regra. Na visãodos críticos de esquerda das recentes reformas da gover-nança educacional, há uma tensão inevitável entre a abor-dagem “gerencialista” e “economicista” hoje hegemônicae o discurso da “comunidade” e da “participação” quetornaria improvável a democratização efetiva da gestãoescolar. Nessa perspectiva, o processo de descentralizaçãoora em curso estaria sendo implementado de acordo comuma agenda neoconservadora ou “neoliberal” (no caso daAmérica Latina), cujo real objetivo seria introduzir, em con-sonância aos modelos de gestão corporativos, novos emais rígidos controles sobre os professores e administra-dores educacionais, muito mais do que promover oempowerment e a participação (MARTINS, 2001;WHITTY; POWER; HALPIN, 1998; RAAB, 2000;WATKINS, 1993).4 Se esta análise estiver correta, o su-cesso das políticas de empoderamento dependeria da suaassociação a agendas de esquerda genuinamente compro-metidas com a radicalização da democracia e o combate àsiniqüidades sociais.

Um segundo argumento, mais comumente aplicado aoBrasil e aos países da América Latina de modo geral, vemenfatizando as dificuldades da institucionalização de

experiências participativas e de empoderamento em con-textos marcados pela persistência de relações clientelistase corporativistas e pela debilidade das instituiçõespolíticas representativas (JACOBI, 2000; MELO, 2003;MENDONÇA, 2000). De acordo com essa visão, a “fra-queza” da sociedade civil e a falta de instituições e práticasuniversalistas contribuiriam para dificultar o enraizamentodas estruturas participativas e democráticas.

Com o intuito de avaliar os argumentos em torno daslimitações das reformas descentralizadoras, foram selecio-nados alguns casos de reformas implementadas em trêspaíses: Brasil, EUA e Grã-Bretanha. Na escolha dos casos,buscou-se obter substancial variabilidade em termos docontexto social e político em que foram desenvolvidas aspolíticas de descentralização, bem como em termos daorientação ideológica dos grupos que defenderam taispolíticas. Por meio da análise dos dados secundáriosdisponíveis e da crítica aos argumentos presentes naliteratura, busca-se desenvolver um raciocínio alternativoa respeito das “falhas” do empoderamento a ser apre-sentado na conclusão.

REESTRUTURANDO A GESTÃO ESCOLARNA GRÃ-BRETANHA

Na Grã-Bretanha, os governos da Nova Direita defen-deram a descentralização da gestão educacional em termosdos benefícios das soluções de mercado para a provisãode bens e serviços públicos. O primeiro governo Thatcherbuscou tirar vantagem da atmosfera criada pela coberturada mídia a respeito de supostas falhas e excessos come-tidos por professores e administradores educacionais,particularmente no âmbito das autoridades educacionaislocais – LEAs, controladas por administrações trabalhistas.Em tal contexto, a lei de educação de 1986 reformou osconselhos locais de administração educacional de modo areverter a maioria de representantes das LEAs (até entãogarantida de forma institucional) e ampliar a participaçãode representantes dos pais e da comunidade de negócios.5

Mudanças mais radicais estavam para vir com a lei deeducação de 1988, que transferiu poderes extensivos paraos conselhos escolares e aumentou o poder de escolha dospais e alunos (THOMAS, 1993). As reformas vieramacompanhadas por um movimento de recentralização, namedida em que o governo central aumentou seus poderescom o estabelecimento de padrões nacionais de currículoe mecanismos concentrados de avaliação (WHITTY et al.,1998, p. 20). A lei determinava que os conselhos escolares

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recebessem poderes deliberativos sobre vários assuntos,incluindo contratação de professores, currículo e disciplina(MUNN, 2000, p. 96). Os conselhos também ficaramresponsáveis pela aprovação do orçamento da escola(LEVACIC, 1995).6

Na Inglaterra e no País de Gales, a lei determinava queos conselhos escolares tivessem representantes de pais ealunos da escola, professores e pessoas nomeadas pelaLEA. Desde o início, os governos conservadores busca-ram estimular a participação de pais provenientes do meioempresarial nos conselhos. Assim, dos cerca de 75 mil pais-conselheiros nas escolas públicas da Inglaterra e do Paísde Gales, estima-se que aproximadamente 20% provenhamdo meio de negócios (WHITTY; POWER, 2003). Em com-plemento às estruturas colegiadas de gestão, foram intro-duzidos elementos de “escolha” e accountability de mer-cado. A “matrícula livre”, isto é, a possibilidade de os paisescolherem a escola de seus filhos independentemente dolocal de residência, foi combinada com uma fórmula de fi-nanciamento baseada no número e na idade dos estudan-tes, forçando as escolas a competirem pela atração destes(LEVACIC, 1995; THOMAS, 1993).

Apesar do discurso em torno do empoderamento dos“usuários da escola”, o fato é que os conselheiros leigos,isto é, representantes dos pais e alunos têm sido não maisque atores coadjuvantes na gestão dos conselhos. Umarevisão das várias pesquisas sobre o tema realizada porMunn (2000, p. 104) observou que muitos conselheiros sequeixam da falta de conhecimento sobre os assuntos emdiscussão e da falta de tempo para se informar. SegundoWhitty e Power (2003, p. 797), mesmo quando os conse-lheiros leigos desejam se manifestar, sentem dificuldadepara serem levados a sério ou mesmo para terem suas opi-niões ouvidas. Pesquisas empíricas realizadas por Arnotte Raab (2000) e Levacic (1995) revelam ainda que a maiorparte dos conselhos escolares depende bastante dos di-retores e apenas aprovam, de forma passiva, os orçamen-tos preparados por estes.

Muitas análises sobre a “reestruturação da escola” naGrã-Bretanha parecem concordar que as reformas imple-mentadas contribuíram para enfraquecer o profissionalis-mo pedagógico e introduzir novos mecanismos de contro-le administrativo e de mercado. Também tem se observadoum movimento de recentralização do poder nas mãos doórgão principal de educação, o Departamento de Educa-ção e Ciência, na esteira dos currículos e sistemas de ava-liação centralizados (ARNOTT; RAAB, 2000; THOMAS,1993; WHITTY et al., 1998).

De certo modo, o caso da Grã-Bretanha e de outrospaíses de língua inglesa (WHITTY; POWER, 2003) parececonfirmar os argumentos de esquerda sobre a existênciade uma tensão irresoluta entre o tema da participação dospais e uma abordagem individualista e mercantilista, orien-tada para a satisfação utilitária e para mecanismos de“saída”, em oposição a mecanismos de “voz”. Entretanto,como se verá adiante, a tentativa de atribuir a recente ondade reformas a uma agenda estritamente neoconservadoraé problemática, mesmo naqueles casos em que não épossível falar, com absoluta certeza, da presença do seuoposto, isto é, de uma perspectiva de esquerda.

EMPODERAMENTO A PARTIR DA “BASE”?A REFORMA DAS ESCOLAS DE CHICAGO

Nos Estados Unidos, o debate sobre a reestruturaçãodas escolas evoluiu especialmente por conta da crescentepreocupação popular com o estado lastimável do sistemaeducacional americano, especialmente após a publicaçãodo relatório nacional sobre educação pública Nation atRisk (Nação em Risco), em meados dos anos 80. Dado osistema de governo federal e descentralizado do país, asrespostas à crise da educação variaram bastante entre osEstados ou mesmo no interior destes. As políticas dedescentralização e empoderamento têm envolvido o incre-mento da possibilidade de escolha dos pais (school choice),o reforço das normas de controle profissional e a atribui-ção de força à comunidade escolar por meio da introduçãode conselhos escolares (COOKSON, 1994; FERNANDEZ,1990; MOORE, 1990; MUNN, 2000).

Em contraste com a experiência da Grã-Bretanha, onde areestruturação das escolas esteve claramente associada auma agenda neoconservadora, nos EUA as políticas dedescentralização e empoderamento contaram com o apoiode um vasto arco de forças políticas, envolvendo agendase interesses variados. Comentando sobre a cruzada em fa-vor da ampliação do poder de escolha dos pais e alunos,Cookson (1994) observou a formação de coalizões bastanteheterogêneas, compreendendo educadores católicos e evan-gélicos, defensores de escolas “alternativas” e movimen-tos de defesa dos direitos civis. Na cidade de Chicago, umaexperiência relativamente bem-sucedida de descentralizaçãoda gestão educacional foi apoiada por uma aliança singularenvolvendo organizações de minorias negras e hispânicas,grupos de pais da classe média branca, liberais da velhaguarda e neoconservadores adeptos da reestruturação ra-dical das escolas (WHITTY et al., 1998, p. 33; HESS, 1991).

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LIÇÕES DE REFORMAS DA GESTÃO EDUCACIONAL: BRASIL, EUA E GRÃ-BRETANHA

A experiência de reforma em Chicago é digna de notapor duas razões. Primeiro por ter eclodido a partir da “base”,com a pressão de grupos de pais de classe média e mino-rias étnicas insatisfeitos com o sistema educacional públi-co. Segundo porque essa experiência, ao levar às últimasconseqüências uma visão radical sobre empoderamento,tornou-se modelo para outras reformas ao redor do mun-do (WORLD BANK, 1995a).

A mobilização pública em favor da reestruturação dasescolas de Chicago foi motivada pelo estado lamentávelda rede educacional local: falta de verbas, segregação ra-cial e altas taxas de evasão (HESS, 1991). Visando enfren-tar esses problemas, as associações de moradores dosbairros da classe média branca se uniram às representaçõesde pais de alunos negros e hispânicos, formando o movi-mento Chicago Unida pela Reforma da Educação – Cure.Posteriormente, o Cure obteria apoio de grupos de empre-sários com envolvimento em questões sociais. A aliançadefendia um amplo programa de reforma calcado na trans-ferência de amplos poderes decisórios – inclusive o poderde nomear o diretor – para conselhos escolares e a amplia-ção da capacidade de escolha das famílias (MOORE, 1990).

Após intenso processo de lobbying realizado pelo Cure,a Assembléia Legislativa do Estado de Illinois aprovou a leide reforma em 1988, com o apoio de parlamentares dospartidos Republicano e Democrata. Os conselhos escolaresobtiveram amplos poderes programáticos, orçamentários ede administração de pessoal. A lei estabelecia que osconselhos deveriam ser compostos majoritariamente porrepresentantes dos pais (seis de um total de onze, incluindoo diretor). O novo órgão colegiado tinha o poder de definiro plano de melhoria da escola, aprovar o orçamento (combase nos recursos repassados em razão do número dealunos) e nomear diretamente o diretor da escola para umcontrato de quatro anos, cuja renovação dependeria deanálise de performance ulterior (HESS, 1991). Apesar dosamplos poderes dos diretores para contratar e demitir pessoal,todas as suas decisões importantes deveriam ser aprovadasno conselho (MOORE, 1990).

Diferentemente dos governos neoconservadores noReino Unido, a preocupação dos reformadores em Chica-go era garantir a inclusão racial e o apaziguamento dosconflitos, não introduzir controles administrativos e demercado.7 Além disso, a reforma norte-americana refletiusobretudo a expressão política de profundas divisões ra-ciais e de classe no interior dos sistemas escolares, em vezde uma “resposta” consistente a tais conflitos articuladapor elites partidárias e burocráticas.

Entretanto, em que pese a enorme capacidade demobilização demonstrada pelas organizações da sociedadecivil que apoiaram a descentralização do sistema educa-cional local, os resultados do “modelo de Chicago”parecem ter sido pouco animadores no que tange ao em-poderamento dos pais e dos alunos. Uma pesquisa realizadaa partir de uma amostra representativa das escolas deChicago observou que o grande problema encontrado naimplementação das reformas adveio do fato de que os paise os alunos, na maioria dos casos, não acreditavam quepoderiam participar de forma efetiva do processo demelhoria das suas escolas. Além disso, em 46% dos casosanalisados, os conselhos tinham papel meramente sim-bólico, “carimbando” as decisões tomadas pelo diretor(HANDLER, 1996, p. 203). Embora a reforma tivesse comouma das suas metas a inclusão racial, os casos maisfreqüentes de empoderamento foram encontrados entrepais brancos e de classe média (LEWIS; NAKAGAWA,1995). Os mesmos autores argumentam que “a própriaparticipação dos pais legitima a dominação dos profis-sionais sobre a formulação de políticas e a operação dasescolas” (LEWIS; NAKAGAWA, 1995, p. 149).

A reforma de Chicago demonstra, em resumo, que mesmono caso da construção do controle comunitário sobre aescola a partir da organização e mobilização da sociedadecivil, não há garantia de obtenção dos resultados esperadosno que diz respeito ao empoderamento. De forma sin-tomática, como observado por Whitty e Power (2003, p. 802),as reformas subseqüentes em Chicago afastaram-sebastante do controle comunitário e substituíram osconselhos escolares por formas de intervenção política eprofissional mais convencionais, na medida em que o de-partamento de educação local recuperou parte das suasatribuições em 1995.

O que se pode inferir, com base nas análises citadas, éque a luta pelo empoderamento e pela descentralizaçãoencontra a resistência de estruturas de poder consolida-das no interior das escolas e da burocracia educacional,independentemente da ideologia dos grupos pró e contraas reformas. Assim, a crítica da esquerda que considera o“seqüestro” da agenda do empoderamento pelo racio-nalismo econômico neoconservador como o principal cal-canhar-de-aquiles dessas políticas pode estar deixando delado uma parte importante do problema. Na seção seguin-te, esse ponto é desenvolvido de forma mais detalhada apartir da análise de algumas reformas da gestão educacio-nal implementadas no Brasil, completando o elenco decomparações deste trabalho.

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“DEMOCRATIZANDO” A ESCOLA:A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

No caso do Brasil, como já observado, a luta pela des-centralização da administração educacional e peloempoderamento da comunidade escolar se confundiu, aomenos no início, com o processo de redemocratização dopaís e com a crítica ao Estado autoritário e seu modelo degestão das políticas sociais. Assim como nos EUA, a exis-tência de um sistema federal em que Estados e municí-pios detêm poder significativo sobre a administração dassuas redes educacionais favoreceu a fragmentação daspolíticas descentralizadoras. Ademais, de meados dosanos 80 até o início do governo Fernando Henrique Car-doso (1994-02), o governo federal não se empenhou deforma consistente na promoção de formas descentraliza-das de gestão estadual e municipal ou no repasse de re-cursos e atribuições para as demais unidades federadas(ALMEIDA, 1995). Assim, a introdução de formas inova-doras de administração dependeu, a princípio, dos gover-nos estaduais e municipais, variando muito em termos denatureza, ritmo e intensidade.8

Entre as inovações institucionais no campo da educa-ção se destacam os conselhos escolares com representan-tes dos professores, pais e estudantes e a eleição diretados diretores de escola. Desde meados dos anos 80, algunsEstados vêm transferindo recursos diretamente para a es-cola, conferindo aos conselhos escolares o poder de pre-parar e aprovar os orçamentos, com o apoio do diretor(BARROS; MENDONÇA, 1998; PARENTE; LUCK, 1999).9

Por sua vez, a seleção de diretores via eleição direta, im-plantada em diversos Estados e municípios, marca aespecificidade da experiência brasileira de descentralização,fortemente associada à luta contra o regime autoritário esuas políticas de controle ideológico da escola (CUNHA,1991; PARO, 1996).

Buscando capturar a variedade das experiências deempoderamento e descentralização desenvolvidas pelosEstados e municípios, esta seção analisa duas experiên-cias de reforma que podem ser consideradas representati-vas de visões polares sobre o processo educacional e suaarticulação com a economia de mercado. De um lado, noMunicípio de São Paulo, a administração do Partido dosTrabalhadores – PT adotou um programa de descen-tralização calcado na “pedagogia da libertação” defendi-da pelo educador Paulo Freire, então nomeado secretárioda educação. De outro, no Estado de Minas Gerais, a in-trodução de formas colegiadas e “democráticas” de ges-

tão escolar foi apoiada por consultores e formuladores depolíticas ligados ao Banco Mundial e ao BID, adeptos dosmodelos gerencialistas e de quase-mercado defendidos porestas instituições.

Na cidade de São Paulo, a introdução de mecanismosde empoderamento nas escolas ocorreu durante a adminis-tração do secretário Paulo Freire, no período 1989-91. Co-nhecido internacionalmente por seu trabalho sobre edu-cação popular, Freire estabeleceu como medida prioritáriaa democratização da gestão escolar. Seguindo sua própriaprodução teórica, o secretário buscou associar a políticaeducacional a um projeto histórico de emancipação social(FREIRE, 1972; O’CADIZ et al., 1998, p. 50). Tal agenda eracondizente com o programa de governo da prefeita LuízaErundina, estruturado para promover a formação de con-selhos populares autônomos e a “inversão de prioridades”,reorientando os investimentos públicos de modo a aten-der às necessidades e aos direitos sociais dos setores maiscarentes da população (JACOBI, 2000, p. 22).

Em contraste com outras experiências contemporâneasde reestruturação da gestão educacional, a proposta do PTem São Paulo objetivava a descentralização radical do pla-nejamento curricular. Os professores, juntamente com osalunos, passavam a ter a possibilidade de desenvolver seuspróprios planos curriculares, de acordo com os princípiosteóricos desenvolvidos pelo secretário-educador PauloFreire. Com tal processo, buscava-se também repensar arelação educador–educando, tornando os alunos sujeitos,não mais objetos, do processo de ensino (O’CADIZ et al.,1998, p. 236).

Além da descentralização do currículo, as políticas deempoderamento adotadas no setor educacional envolverama transferência de poder decisório sobre orçamentos e al-guns aspectos de administração de pessoal para conselhosescolares representativos. Os conselhos eram compostosde professores, funcionários da escola e alunos. Para cada40 conselhos de escola foram eleitos delegados que tinhamassento nos conselhos dos departamentos regionais deeducação, então denominados Núcleos de Ação Educativa– NAEs (O’CADIZ, et al., 1998, p. 53). A estrutura colegiadae participativa dos NAEs visava aproximar a população docorpo diretivo da secretaria, quebrando a lógica autoritáriae hierárquica da burocracia educacional. A idéia da admi-nistração petista era criar um novo movimento social nointerior das escolas, de modo a garantir apoio às políticasimplementadas (O’CADIZ, et al., 1998, p. 82).

Entretanto, em que pese o desejo da administração PauloFreire de empoderar a sociedade civil, em particular os seus

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LIÇÕES DE REFORMAS DA GESTÃO EDUCACIONAL: BRASIL, EUA E GRÃ-BRETANHA

segmentos mais desfavorecidos, os resultados das refor-mas implementadas em São Paulo ficaram muito aquém dodesejado. Na prática, a proposta dos NAEs e dos conse-lhos de escola enfrentou a oposição dos professores e ad-ministradores educacionais, que resistiam à divisão do po-der propiciada pelas estruturas colegiadas (JACOBI, 2000,p. 23). A lógica hierárquica e centralizada da rede de ensi-no, somada ao corporativismo do funcionalismo públicomunicipal, contribuiu para dificultar enormemente aimplementação das políticas de empoderamento. De formasintomática, uma das mais importantes propostas da ad-ministração Paulo Freire relativas à democratização da ges-tão educacional – a eleição direta dos diretores e vice-di-retores de escola – foi derrubada por sindicalistas,professores e diretores que se opunham a tal processo,temendo a perda de vários direitos trabalhistas gozadospelos diretores. Devido à pressão eficiente destes grupos,o novo estatuto do magistério proposto pela secretaria foiderrotado na Câmara Municipal, com o apoio dos verea-dores que temiam perder o direito de nomear os diretoresde escola (O’CADIZ et al., 1998, p. 82).

Em muitos casos, os NAEs e os conselhos de escolaficaram sujeitos à manipulação por parte dos professorese outros funcionários das escolas, dificultando a partici-pação autônoma dos pais. Apenas nas regiões em que haviamaior mobilização foi possível obter melhores resultadosem termos da integração da proposta participativa(JACOBI, 2000, p. 23). O programa de descentralização doplanejamento curricular, apesar de ter sido bem-sucedidoem alguns casos, também não logrou se institucionalizar,enfrentando sérias resistências por parte dos professores.A baixa institucionalização das propostas de reforma podeser observada tendo em vista a facilidade com que a novaadministração, eleita em 1990, desarticulou as formas departicipação inovadoras, introduzindo em seu lugar umprograma de gestão educacional baseado nos princípiosdo controle de qualidade total (O’CADIZ et al., 1998;JACOBI, 2000, p. 24).

O caso da reforma educacional em São Paulo coloca emquestionamento, de forma bastante clara, os argumentosem torno dos limites do empowerment apresentados peloscríticos de esquerda. Isto é, mesmo quando implementadaspor governos de orientação socialista ou social-democra-ta, as políticas de empoderamento da comunidade escolarenfrentam dificuldades concretas, associadas à resistên-cia dos vários atores que detêm o poder de fato sobre aescola: professores, políticos e burocratas. Ironicamente,os maiores opositores das propostas de reforma da admi-

nistração petista de Luíza Erundina não eram os partidospolíticos conservadores, minoritários na Câmara Munici-pal, mas os professores e sua representação sindical, osquais têm constituído, via de regra, importante base elei-toral do PT e demais partidos de esquerda no Brasil.

O último caso de reforma educacional analisado nesteartigo ocorreu em Minas Gerais, a partir de 1991. A reformamineira envolveu o fortalecimento dos conselhos de es-cola, com o aumento de seus poderes administrativos efinanceiros. A Secretaria da Educação do Estado instituiufundos vinculados e não-vinculados a serem transferidosdiretamente às escolas e gerenciados pelos conselhosescolares (GUEDES et al., 1997; GUIA NETO, 1994).

Em Minas Gerais, o processo de descentralização da ges-tão educacional contou com o crucial apoio técnico e finan-ceiro de agências internacionais e consultores ligados aessas instituições, refletindo uma perspectiva que enfatizaos impactos do investimento educacional sobre o crescimen-to econômico e a redução de custos propiciada pela des-centralização, muito mais do que outros aspectos, relativosà ampliação da participação popular. A reestruturação dosistema de ensino visava torná-lo mais acessível, eficientee menos oneroso, criando incentivos para a melhoria daqualidade das escolas (GUIA NETO, 1994; OLIVEIRA, 2000).

Apesar da ênfase em aspectos de aumento da eficiên-cia e redução de custos, a reforma mineira logrou respon-der a uma das principais demandas dos sindicatos de pro-fessores e movimentos sociais ligados à educação,instituindo a eleição direta de diretores de escola. Desdemeados dos anos 80, a principal entidade sindical dos pro-fessores e demais trabalhadores da educação do Estado,o Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação – Sindi-UTE, havia colocado em sua pauta de reivindicações aintrodução de eleições nas escolas, recorrendo a paralisa-ções e greves como forma de pressão sobre os governa-dores eleitos. No entanto, embora as lideranças sindicaisdefendessem a eleição de diretores como forma de “demo-cratizar” a escola, a representação do professorado tinhacomo objetivo primordial acabar com a prática de nomea-ção de diretores afinados com o partido no poder e inva-riavelmente hostis às mobilizações grevistas. Era espera-do que diretores eleitos e, portanto, dependentes dos votosda categoria, acabassem por ser mais simpáticos aos sin-dicatos, ampliando a capacidade de mobilização destes(BORGES, 2004).10

Se é verdade que as representações sindicais dos pro-fessores mineiros não se colocaram explicitamente contraa participação de pais e alunos no processo eleitoral, o fato

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é que havia o temor, sobretudo da parte do governo esta-dual, de que a instituição das eleições acabaria por deixaras escolas “nas mãos” dos sindicatos e dos partidos deesquerda associados a estes últimos, em particular o PT(ROCHA, 2000). De forma sintomática, a partir da terceiraeleição de diretores realizada em Minas Gerais, no ano de1996 (as duas primeiras ocorreram em 1991 e 1993), retirou-se o critério de proporcionalidade dos votos, instituindo-se o voto universal (até então professores e funcionáriostinham 50% dos votos, ao passo que pais e alunos, outros50%). O objetivo era claramente aumentar o peso dos vo-tos dos pais e dos alunos no processo eleitoral, reduzindoa possibilidade de manipulação por professores e funcio-nários (BORGES, 2004).

Embora não existam dados sistemáticos sobre o impac-to desta última medida, parece haver evidência de que osprofessores e funcionários têm tido influência significati-va na política interna das escolas. Pesquisa realizada porGuedes et al. (1997) em algumas escolas mineiras obser-vou que muitas comunidades escolares demonstram “fal-ta de amadurecimento político”, no sentido de que boa partedos pais e estudantes não participa do processo eleitoral.Assim, os diretores acabam sendo eleitos pelos professo-res e funcionários, tornando-se mais sensíveis às pressõesdeste último grupo. Se a amostra de escolas recolhidas napesquisa não é representativa, as evidências são compa-tíveis com o observado em outras unidades da Federação.As pesquisas sobre o tema mostram que os diretores elei-tos muitas vezes se tornam “reféns” dos professores efuncionários, adotando medidas que visam agradar o seu“eleitorado”, como, por exemplo, relaxando no controle dasfaltas dos professores (VIEIRA et al., 1996; PARO, 1996).11

No que tange aos conselhos escolares, a experiência deMinas Gerais também traz evidências de que os professo-res e a direção da escola tendem a dominar as novas estru-turas de gestão. Guedes et al. (1997) observaram que mui-tos conselhos atuam de forma simbólica, apenas aprovandopassivamente as decisões do diretor. Também foi verifica-do que, em alguns casos, os professores e os diretoresintimidam os alunos a votarem “com eles”, valendo-se doseu poder disciplinar. Em outras instâncias, os professo-res e os diretores buscam garantir a maioria dos votos antesde agendar uma reunião de conselho, tornando irrelevantea ação dos seus opositores. Pesquisa empírica realizadapor Mattos (1998) em algumas escolas de ensino funda-mental observou ainda que os membros mais ativos docolegiado são os professores mais politizados, alguns in-clusive com experiência em atividade sindical.

Algumas lições importantes podem ser extraídas da ex-periência de empowerment da comunidade escolar em MinasGerais e São Paulo. O primeiro ponto a ser ressaltado dizrespeito ao papel crucial desempenhado por administrado-res educacionais, professores e seus sindicatos no senti-do de manter ou transformar as estruturas de gestão daescola. A experiência de São Paulo, em particular, contras-ta fortemente com o caso de Chicago, onde a descen-tralização foi defendida por uma ampla rede de organiza-ções de pais e estudantes de origens étnicas e de classesvariadas. Em São Paulo, os pais e os estudantes eram nãomais que atores coadjuvantes em uma arena decisória ondepredominavam as agendas e os interesses, nem sempreconvergentes, da administração municipal do Partido dosTrabalhadores, de um lado, e dos professores e adminis-tradores educacionais, do outro. Em Minas Gerais, em quepese a existência de uma associação representativa dos paise estudantes – a Federação das Associações dos Pais eMestres, FapaeMG – esta última era uma organização frá-gil, restrita quase exclusivamente à cidade de Belo Hori-zonte e arredores, cujo poder de pressão nem de longe seigualava ao dos sindicatos (BORGES, 2004; ROCHA, 2000).

Em outras palavras, ambos os casos sugerem que apolítica de descentralização reflete uma disputa pelo podersobre as escolas e o processo educacional, na qual os gru-pos que se espera “empoderar” – pais e estudantes –desempenham papel apenas secundário. Tal inferência nãocorrobora, no entanto, a tese de que o fracasso das expe-riências participativas na educação pode ser creditadoapenas ao baixo nível de organização da sociedade civil.Mesmo no caso de Chicago, onde as políticas de empo-deramento se seguiram à mobilização de uma densa redede organizações de minorias étnicas e associações debairro, os resultados das novas estruturas descentralizadasrevelaram-se decepcionantes vis-à-vis as expectativas. Issoleva a atentar para o segundo nível das políticas de descen-tralização, isto é, o nível da escola, onde ocorre a implemen-tação dos novos procedimentos decisórios. No âmbito damicropolítica educacional, a cultura hierárquica e autoritáriaque permeia as relações entre professores, administradores,pais e alunos limita seriamente as tentativas de se promovera efetiva democratização da gestão escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De modo geral, o discurso em torno das reformas quevisam descentralizar e democratizar a gestão educacionaltem sido marcado por um forte viés anti-Estado e antibu-

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rocracia, refletindo um amplo consenso em torno dasvirtudes do empowerment da sociedade civil. Entretanto,mesmo nas suas versões “radical-democráticas” e deesquerda tais reformas vêm enfrentando a dura realidadeda disputa pelo controle da escola e do processo educa-cional entre vários atores intra-estatais – administradores,professores e políticos eleitos. Assim, se há um “defeitode origem” nas políticas de empoderamento para a educa-ção, como sugerido pela crítica de esquerda, este não seencontra na visão gerencialista e economicista de muitosdos seus proponentes, mas no fato mais corriqueiro de quetais políticas enfrentam arranjos de poder bastante crista-lizados e não passíveis de enfrentamento por meio apenasda criação de estruturas decisórias colegiadas e representa-tivas. Em resumo, a crítica radical às reformas “neoliberais”e neoconservadoras da gestão educacional tende a ignoraraspectos que escapam à dicotomia direita-esquerda,estando portanto sujeita a sérios questionamentos.

Outro argumento sobre os limites do empoderamentoaplicado ao Brasil tem enfatizado a debilidade dasinstituições políticas representativas, a persistência depráticas clientelistas e a fraqueza das organizações dasociedade civil como fatores responsáveis pela dificuldadede institucionalização de práticas genuinamente par-ticipativas e democráticas. Se esse argumento encontraalguma confirmação empírica no caso brasileiro, a expe-riência de Chicago mostra que mesmo reformas realizadasa partir da mobilização da sociedade civil enfrentamdificuldades significativas para promover o efetivoempoderamento da comunidade escolar. É preciso levar emconta a especificidade das burocracias educacionais e suasestruturas internas de poder, calcadas numa lógica dedisciplina e autoridade bastante arraigada. As pedagogiaslibertadoras pelo menos têm reconhecido o problema,vendo na mudança dos padrões hierárquicos carac-terísticos da relação professor–aluno o eixo fundamentalda reestruturação da escola. O caso da reforma paulistamostra, no entanto, as enormes dificuldades de se colocarem prática tais propostas.

Apesar do tom um tanto pessimista da conclusão desteartigo, o que se quer é compreender os limites das políticasde empowerment na educação, e não rejeitá-las de todo.Dessa forma, busca-se repensar a agenda que tem domina-do as reformas contemporâneas da gestão educacional, aten-tando para os seus vieses e problemas de implementação.

Como observado por Handler (1996), a idéia deempowerment embute uma contradição fundamental, aoprescrever um processo democrático e igualitário entre

participantes desiguais em termos de poder e recursos. Emoutros termos, se a realização plena da democracia requerum certo nivelamento das diferenças sociais e de status,como já observado por pensadores como Tocqueville eAristóteles, o problema não pode jamais se resumir à cria-ção de estruturas colegiadas e formalmente democráticas.Mesmo numa situação ideal em que tais estruturas fossemcapazes de “empoderar” pais e alunos de maneira unifor-me no interior do sistema educacional, ainda assim seriade se esperar que os indivíduos de maior renda e escolari-dade acabassem por ter mais “voz” no processo parti-cipativo.12 A questão se torna ainda mais premente emsociedades como a brasileira, marcadas por profundasdesigualdades sociais.

Um dos aspectos que cumpre observar, nesse sentido,é até que ponto a perspectiva antiestatista que tem domi-nado o debate intelectual em torno das reformas contem-porâneas da gestão educacional não tem contribuído paracegar os acadêmicos e formuladores de políticas quanto àimportância do papel de políticas de Estado centralizadase uniformes no sentido da correção das desigualdadessociais e inclusão de grupos marginalizados. O desafio quese coloca, portanto, é como lidar com a tensão entre polí-ticas descentralizadoras, com potencial para reproduzir ereforçar as desigualdades e a fragmentação social, e a cria-ção de novos espaços comunitários a partir de políticaspúblicas de minimização das desigualdades desenvolvidasna linha dos programas universalistas e centralizados doWelfare State. Enfrentar tal dilema é certamente a tarefa fun-damental a que se devem dedicar todos aqueles que acre-ditam na possibilidade da criação de espaços solidá-rios, democráticos e de resistência ao racionalismo eco-nômico de velhos e novos apologistas dos mercadosdesregulados.

NOTAS

1. Whitty e Power (2000) argumentam, no entanto, que o efeitodessas reformas costuma ser exatamente o contrário do esperado,na medida em que as escolas de melhor performance selecionamintencionalmente os melhores estudantes, os quais provêm, quasesempre, das famílias de maior renda e escolaridade. Assim, os argu-mentos em torno dos modelos de school choice são baseados maisna preferência ideológica por mecanismos de mercado do que nacomprovação empírica dos benefícios esperados.

2. Apesar do uso indiscriminado do conceito de “autonomia daescola” para descrever tais reformas, a aplicação do termo é pro-blemática, já que em muitos casos o que se processou foi uma redu-ção da autonomia no que tange a aspectos cruciais no processo deensino, quais sejam, a definição dos currículos e a avaliação doprocesso de ensino-aprendizagem, que passaram a ser impostos deforma centralizada para o conjunto das escolas.

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3. O caráter conservador das reformas educacionais implementa-das em países como Inglaterra, Nova Zelândia e Austrália revela-se na tentativa de restaurar os valores tradicionais e reintroduzir adisciplina e a ordem nas escolas, envolvendo um ataque frontal à“ortodoxia progressista” no interior do sistema educacional(APPLE, 2001). No caso da Nova Zelândia, por exemplo, osreformadores buscaram criar um clima de histeria na opinião pú-blica, apresentando os sindicatos “feministas” e a burocracia edu-cacional como grupos inimigos dos valores morais “corretos”, queteriam “capturado” o processo educativo para seu próprio benefí-cio (JACOBS, 2000).

4. O termo “neoliberalismo” tem sido utilizado de forma impreci-sa nas ciências sociais, conotando uma ampla e heterogênea gamade fenômenos: desde a “americanização” cultural até agendas depolíticas públicas que seriam melhor caracterizadas comoneoconservadoras. No texto, o conceito é utilizado de forma maisrestrita, em referência às formas contemporâneas assumidas peloliberalismo econômico clássico. Embora, em muitos casos, a defe-sa do “novo” liberalismo tenha vindo associada à agenda da direitaconservadora, a rigor existem diferenças importantes entre as po-sições liberais e conservadoras “puras”. Por conta disso, é necessá-rio cuidado no uso do termo.

5. As autoridades educacionais locais seriam equivalentes àssecretarias municipais da educação no Brasil, embora as primeirasnem de longe detenham a autonomia destas últimas. Como é comumem muitos países unitários, na Grã-Bretanha a gestão do sistemaeducacional é fundamentalmente de competência do governocentral. Assim, as LEAs não possuíam o poder de formular políticaspróprias como têm as secretarias municipais de educação no Brasil.

6. É interessante observar que na Escócia as mudanças foram me-nos radicais do que na Inglaterra e no País de Gales. A lei escocesade educação de 1988, que se seguiu à lei nacional aprovada no par-lamento em Londres, transferia poucos poderes para os conselhose preservava bastante a autonomia profissional dos professores,diminuindo o papel efetivo dos conselhos e dos diretores de escola(MUNN, 2000, p. 96).

7. Não por acaso, a reforma de Chicago recebeu críticas tanto dadireita neoconservadora quanto da esquerda liberal, dada a falta decoerência ideológica da aliança pró-reforma. Em defesa do modelode Chicago, no entanto, Hess (1994) ponderou que as suas raízesintelectuais estavam claramente na abordagem igualitária da pers-pectiva liberal tradicional, com a diferença da rejeição da aborda-gem centralizada defendida pelos “antigos” liberais.

8. Desde 1994 tem havido uma maior preocupação do governofederal no sentido de harmonizar a política educacional das trêsesferas de governo e induzir a adoção, pelos Estados e municípios,de formas participativas de gestão escolar – e.g., conselhos de es-cola (CASTRO et al., 2000). No entanto, deve-se ressaltar que, acapacidade do governo federal de produzir políticas homogêneasno setor educacional é provavelmente limitada comparativamen-te a outros países da América Latina, dada a existência de redeseducacionais relativamente autônomas em lugar de um sistema únicoe nacional de educação. Assim, se é verdade que o modelo de gestãodas políticas educacionais defendido pelo Banco Mundial e pelo BIDfoi claramente o vencedor dos embates político-ideológicos no planonacional ao longo dos anos 90 (TOMMASI et al., 1998), isso nãoimpediu que governos municipais ou estaduais de esquerda ou cen-tro-esquerda implementassem políticas e reformas da educação nãonecessariamente condizentes com o pregado pelo governo federal.

9. Essas experiências foram posteriormente aproveitadas peloprograma federal Dinheiro Direto na Escola, que envolve a trans-ferência de fundos para escolas municipais e federais, condiciona-da à criação de conselhos escolares (CASTRO et al., 2000).

10. Essa não era uma peculiaridade da representação sindical dosprofessores mineiros, vale dizer, mas reflete o caráter corporati-vista que a luta pela eleição de diretores assumiu, em muitos casos.

Uma das experiências pioneiras de eleição de diretores no país, re-alizada em 1984 no município de Volta Redonda (RJ), por exem-plo, conferia o direito de voto apenas aos professores e funcioná-rios da escola. Naquele momento, a seção municipal do Sindicatodos Professores do Estado do Rio de Janeiro se colocou contra aparticipação de pais e alunos, vendo a eleição apenas como umaforma de assegurar um bom relacionamento entre a categoria e osdiretores (OLIVEIRA, 1998, p. 29).

11. Em que pesem suas limitações como instrumento deempowerment, no entanto, a eleição de diretores tem representa-do um avanço considerável, por colocar fim às interferências po-líticas que marcavam o sistema de nomeação do diretor pelas se-cretarias estaduais e municipais de educação. Além disso, parecehaver evidências de que os diretores eleitos demonstram maiorpreocupação em prestar contas à comunidade escolar e realizar umaboa gestão.

12. De fato, várias pesquisas sobre empoderamento nos países de-senvolvidos de língua inglesa mostram o caráter elitista das novasestruturas participativas, na medida em que os pais de classe médiae alta costumam ser mais bem-sucedidos na defesa dos seus interes-ses. Para uma revisão desta literatura ver, Whitty; Power (2000;2003).

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N

Resumo: Este artigo apresenta um panorama dos pensamentos que moldaram a forma de se abordar os proble-mas referentes à sustentabilidade a partir da década de 70. De uma visão estritamente pontual e tecnicista,passou-se por uma ênfase na gestão, atingindo-se, ainda que de forma muito incipiente, uma melhor percep-ção do papel da cultura.Palavras-chave:desenvolvimento sustentável; políticas públicas; cultura.

Abstract: This article presents the main thoughts that patterned the sustainability problems’ approach in the70’s: a process that started in a strict and technical point of view, passed by a management-like step andreached a good, though incipient, perception of culture role.Key words:sustainable development; public politics; culture.

KARIN VECCHIATTI

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 90-95, 2004

ão é preciso uma investigação detalhada para sedar conta do paradoxo no qual o século XX ter-minou e o século XXI se inicia: por um lado, o

crescimento econômico e a transformação tecnológica semprecedentes, por outro, a dramática condição social deinúmeras pessoas, além de problemas ambientais assusta-dores. Se ao longo desses anos desenvolveu-se um apara-to científico-tecnológico capaz de resolver grande partedos principais problemas ecológicos, ficou também cadavez mais notável a incapacidade das formas sociais orga-nizadas de se apropriarem desses meios.

Uma das conclusões óbvias que pode ser extraída des-se quadro de contrastes é que o crescimento econômico,por si só, não traz automaticamente o desenvolvimento.Na prática, a equação que relaciona crescimento e desen-volvimento ainda não está com suas variáveis equilibra-das; ela ainda desafia os economistas questionando se odesenvolvimento socialmente justo e ambientalmente sus-tentável estaria realmente na contramão do crescimentoeconômico.

Para um dos grandes nomes no debate, o economistaIgnacy Sachs, o crescimento econômico, se colocado aserviço de objetivos socialmente desejáveis e repensa-do de forma adequada, de modo a minimizar os impac-tos ambientais negativos, continua sendo uma condiçãonecessária para o desenvolvimento. Aliás, taxas signifi-cativas de crescimento são necessárias, uma vez que émuito difícil redistribuir bens e renda numa economiaestagnada (SACHS, 2001). A importância, então, esta-ria em se distinguir diferentes tipos de crescimento. Avariedade mais freqüente é a “selvagem”, com custossociais e impactos ambientais insuportavelmente altos.Hoje, sabe-se que esse tipo de crescimento impulsiona-do pelo mercado é inaceitável dos pontos de vista so-cial e ambiental, além de não estabelecer, por si só, umasituação empregatícia satisfatória. Os mercados são pordemais míopes para transcender os curtos prazos e ce-gos para quaisquer considerações que não sejam lu-cros e eficiência “smithiana” de alocação de recursos(SACHS, 2002).

TRÊS FASES RUMO AODESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVELdo reducionismo à valorização da cultura

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TRÊS FASES RUMO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: DO REDUCIONISMO ...

As variedades “benignas” de crescimento, em contra-partida, requerem justamente o pensamento contrário. Ouseja, a consideração da sustentabilidade do desenvolvi-mento requer que nosso horizonte de tempo seja expandi-do (MORIN, 2001). Enquanto os economistas estão habi-tuados a raciocinar em termos de anos, no máximo décadas,a escala de tempo da ecologia abrange séculos. Além dis-so, a expressão “desenvolvimento sustentável” não advertesomente dos danos causados por poluição e erosão doambiente físico de um lado e da pobreza do outro, comose fossem dois fenômenos independentes. O tipo “benig-no” de desenvolvimento desejável propõe uma concilia-ção entre o desenvolvimento e o crescimento econômico,sendo, simultaneamente, sensível à dimensão social,ambientalmente prudente e economicamente viável.

É claro que essa tarefa de conciliação não é fácil. Masuma observação mais atenta ressalta que a busca pela sus-tentabilidade requer a articulação entre três “registrosecológicos”: do meio ambiente, das relações sociais e dasubjetividade humana (GUATTARI, 1990). Em outraspalavras, essa proposta sugere que o rumo à sustentabili-dade é:- incompatível com o jogo sem restrições das forças demercado;

- dependente de um aparato tecnológico eficiente;

- dependente, em grande parte, das ações geradas a par-tir de percepções individuais e culturais da sociedade.

É justamente nesse ponto em que reside a importânciadas políticas públicas. Somente uma articulação ético-política entre essas dimensões poderia direcionar uma re-volução social e cultural, reorientando a produção de bensmateriais e imateriais, reconciliando o crescimento eco-nômico com as formas de desenvolvimento sustentável.

Essa realidade ainda está distante. Mas não se podenegar que avanços foram obtidos no campo das políticaspúblicas desde os anos 70. O início da tomada de cons-ciência social sobre os inúmeros problemas ambientaisnaquela década conduziu à redação de relatórios, cujosobjetivos eram essencialmente esboçar avaliações globais,fazer emergir as questões consideradas urgentes e formu-lar recomendações imediatas às diferentes instâncias dopoder político. Desde então, o conceito de meio ambientecomo objeto de pesquisa e de políticas públicas aos pou-cos está se alterando, de forma que seja possível identifi-car ao longo desse período três fases no pensamento. Es-ses períodos podem ser caracterizados por diferentesmaneiras de abordar os problemas referentes à sustenta-

bilidade, que por sua vez se refletem na formulação eimplantação de políticas públicas. São eles:- período inicial, de transição de uma visão pontual parauma visão abrangente dos problemas ambientais;

- período de ênfase na gestão, na informação e na articu-lação territorial;

- período incipiente com a atenção voltada para a cultura.

Essa divisão não indica, necessariamente, que as idéiase as políticas públicas características da primeira fase nãovigorem nos anos seguintes, como é o caso, por exemplo,do Código Florestal, tampouco que uma preocupação atualnão estivesse presente anos atrás. Contudo, a compreen-são dessas três fases (aqui brevemente apresentadas), se-gundo a abordagem dominante em cada uma delas, pare-ce ser fundamental para traçar um panorama do caminhopercorrido e identificar o quão longe se está ainda de umaconciliação entre o crescimento econômico e o desenvol-vimento sustentável.

DO PONTUAL AO ABRANGENTE

A primeira fase reflete a noção de que os problemasreferentes à sustentabilidade não podem ser analisados deforma pontual. O embrião dessa idéia começou a ser for-mado ainda na década de 70, tendo como marco a Confe-rência de Estocolmo, primeira reunião oficial a tratar dasquestões ambientais no âmbito mundial. Organizada pelaONU, a conferência reuniu 113 países e 250 organizaçõesnão-governamentais. Tinha como objetivos: fazer um ba-lanço dos problemas ambientais em todo o mundo; bus-car soluções e novas políticas governamentais no sentidode reduzir o grande número de problemas causados pelodesenvolvimento das sociedades, tais como poluição, de-terioração dos ambientes e limitação dos recursos natu-rais; discutir a urbanização acelerada, mal concebida ecaótica; debater o caráter global dessas perturbações deorigem humana.

Nessa época, entretanto, acreditava-se que a moderni-zação dos processos produtivos seria suficiente para re-solver os problemas ambientais e que a solução dependiaapenas da legislação e de técnicas de controle de polui-ção (estratégia que ficou conhecida como “comando-con-trole”), conforme postulavam os representantes dos paí-ses industrializados. Mas, ao longo do tempo, percebeu-seque essa é uma visão tecnicista e reducionista, sendo ne-cessária uma abordagem mais ampla dos problemas e dassoluções, discutindo-se, necessariamente, o modelo dedesenvolvimento internacional.

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O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu so-mente na década de 80 e foi consagrado em 1987 pelaComissão Mundial sobre o Meio Ambiente – CMMA dasNações Unidas, conhecida como Comissão Brundtland,que produziu um relatório considerado básico:

[...] um processo de transformação no qual a exploraçãodos recursos, a direção dos investimentos, a orientação dodesenvolvimento tecnológico e a mudança institucional seharmonizam e reforçam o potencial presente e futuro [...] éaquele que atende às necessidades do presente sem com-prometer a possibilidade de as gerações futuras atenderemàs suas próprias necessidades (IBGE, 2002).

Esse conceito foi decisivo para se repensar as dimen-sões do desenvolvimento e para a conscientização da so-ciedade, questionando se as práticas econômicas e sociaisdesenvolvidas até então não estavam limitando a capaci-dade dos ambientes naturais de suportar a vida no plane-ta. Assim, começava a se discutir se o modelo de desen-volvimento adotado seria insustentável ao logo do tempo,comprometendo a vida de futuras gerações (WEBER,1997).

Foi com esse pano de fundo que a revista São Pauloem Perspectiva (FUNDAÇÃO SEADE, 1989) publicouseu primeiro volume referente aos problemas ambientais.Os artigos chamam a atenção para a ocupação não-plane-jada e predatória do Estado de São Paulo, para o conflitogerado a partir do uso da água nas diferentes baciashidrográficas do Estado e para o uso indiscriminado deagrotóxicos no combate de pragas agrícolas. Os textosalertam também para o processo de transformações dametrópole, contribuindo para a deterioração da qualidadede vida da população, sobretudo de sua saúde. Ficava cadavez mais óbvia a gravidade dos altos níveis de poluiçãohídrica e atmosférica em diversos municípios da RegiãoMetropolitana de São Paulo, além da formação das ilhasde calor e das enchentes, em grande parte provocadas pelaescassez de áreas verdes.

Por trás do alerta, entretanto, os artigos trazem a idéiade que, à medida que os problemas ambientais se agrava-vam, havia necessidade de se desenvolver metodologiase teorias que enxergassem o objeto de pesquisa de formamais ampla. Os textos relatam que os problemas anterior-mente analisados e tratados de forma pontual tanto doponto de vista científico, como do ponto de vista da ad-ministração pública (poluição hídrica e atmosférica,desmatamento, etc.), começavam a ser vistos a partir deuma óptica distinta. Sobretudo porque a solução para gran-

de parte dos problemas ambientais não estava somente naeficiente implantação de algumas leis restritivas. Apesarda importância da tecnologia, das restrições ambientais edas multas aplicadas às ações que tinham impacto negati-vo sobre o meio ambiente, um outro componente não po-deria ser descartado: a gestão a longo prazo, que em grandeparte depende dos variados tipos de relações microssociais.Assim, aplicar o mesmo tipo de multa a um agricultor doEstado de São Paulo ou a uma madeireira no Estado doPará, sem um suporte informacional e, posteriormente, umincentivo a atividades sustentáveis, dificilmente resolve-ria o problema a longo prazo. Na tentativa de solucionaresses impasses (muitos presentes até hoje), o foco voltou-se para a gestão, sendo a qualidade do meio ambiente vis-ta a partir de um enfoque territorial.

GESTÃO E ARTICULAÇÃO TERRITORIAL

A elaboração da Agenda 21, no início da década de90, contribuiu para impulsionar a criação de abordagensterritoriais a partir de redes de comunicação, buscando-se soluções para os problemas referentes à sustentabili-dade e à tentativa de conciliar o crescimento econômicocom o desenvolvimento. Os princípios do desenvolvimentosustentável formaram a base da Agenda 21, um documen-to aprovado por mais de 180 países durante a conferênciadas Nações Unidas sobre meio ambiente no Rio de Janei-ro, em 1992. Desde então, esses preceitos têm sido pro-gressivamente incorporados à agenda de numerosos paí-ses, principalmente no âmbito local. Assim, ampliou-se aconsciência de que os problemas ambientais não são as-sunto de um setor restrito da economia ou da sociedadenem se restringem aos danos causados ao ambiente físiconatural, mas envolvem as relações sociais em um deter-minado território.

Como reflexo da Agenda 21, surgiu uma grande ne-cessidade de geração e divulgação de informações para aresolução de problemas locais. Um dos melhores exem-plos de ações resultantes dessa percepção são os progra-mas estaduais de gerenciamento de microbacias hidro-gráficas, introduzidos tanto no Estado de São Paulo comoem outros Estados brasileiros. De acordo com essas inicia-tivas, a responsabilidade de gerenciamento dos recursoshídricos de uma região está a cargo das agências estaduaisde meio ambiente e recursos hídricos e também dos mu-nicípios, representados por governos locais e agentes dasociedade civil. Embora o incentivo às iniciativas locaispor si só não seja suficiente, sem sólidas estruturas locais

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participativas e democratizadas não há financiamentosexternos ou de instituições centrais que produzam resul-tados efetivos.

A idéia do desenvolvimento local transferiu o foco deatenção da poluição para a gestão, da ênfase na moléculapoluidora para a educação ambiental e da técnica de co-mando-controle para as políticas territoriais. A transiçãopara uma abordagem territorial e informacional da sus-tentabilidade é extremamente importante para a eficiên-cia na geração e implantação de políticas públicas, pois opotencial de desenvolvimento de um país depende, prin-cipalmente, de sua capacidade cultural de pensar de for-ma endógena sobre seus futuros desejáveis (SACHS,2001). Essa característica, por sua vez, está ligada ao graude percepção, ao conhecimento e à consciência que a so-ciedade tem de sua história, sua situação presente e seurumo futuro. Tal estado de consciência coletiva requer queos indivíduos enxerguem suas responsabilidades por fa-zerem parte de um conjunto maior de ações, como acon-tece com as propostas de desenvolvimento local. Ideal-mente, essa capacidade impulsiona a geração de políticaspúblicas nas mais diferentes esferas do desenvolvimento.Na maioria das vezes, no entanto, uma combinação defatores históricos e culturais faz com que os indivíduosprivilegiem sua sobrevivência ou suas necessidades indi-viduais, em vez de tomarem parte em um todo, o que di-minui a eficiência da criação e implantação das políticaspúblicas.

Outro mérito referente às políticas territoriais reside napossibilidade de promoção da convivência com a nature-za. A conservação da biodiversidade não pode serequacionada com a opção do não-uso dos recursos natu-rais. Por importante que seja, a instituição das reservasnaturais praticamente intocadas é apenas uma das estraté-gias de conservação. O conceito de reservas de biodiver-sidade da Unesco nasceu da compreensão de que a con-servação da biodiversidade deve estar em harmonia comas necessidades das sociedades que vivem em determina-do ecossistema (SACHS, 2002). Daí a necessidade de seenxergar essas regiões a partir do ponto de vista da ges-tão do território, que inclui os recursos naturais, as ativi-dades econômicas, o acesso às condições básicas de saú-de e educação e o respeito a costumes e tradições.

Ainda vive-se uma fase que requer maior aplicação daspolíticas territoriais, pois em diversas áreas esse tipo deenfoque ainda não desempenhou seu papel por completo.Muitas regiões rurais paulistas, por exemplo, poderiambeneficiar-se enormemente desse tipo de gestão. É

importante lembrar que o meio rural não se restringe àagricultura, mas constitui efetivamente um territóriopermeado por relações sociais, não se reduz a um setor daeconomia. A valorização do meio rural pode ser um doscaminhos importantes para atenuar os explosivos pro-blemas que atingem hoje as cidades, sobretudo nos paísese nas regiões onde o peso da população que vive no campoé importante. A valorização do campo não implica arejeição do papel dinamizador que as cidades desempe-nham na sociedade (ABRAMOVAY, 2000; VEIGA,2002). Significa incentivar, por meio de políticasterritoriais, um grupo de municípios rurais a se articular edefinir seu rumo, vivendo, conservando e recuperando suaspaisagens menos afetadas pelas mazelas do desenvolvi-mento. Isso é muito diferente de pregar uma forma de“volta ao meio rural” ou de sugerir a fixação do homemno campo. A chave está na ampliação dos horizontes davida social, econômica e cultural dos habitantes dessemeio, o que leva à terceira fase rumo ao desenvolvimentosustentável: a cultura.

A CULTURA COMO FATOR DESUSTENTABILIDADE

A ênfase na cultura como fator de sustentabilidade aindaé muito recente especialmente nas políticas públicas. Oseu desenvolvimento pode ser um importante fator noperíodo em que vivemos, pois não se restringe a um seg-mento específico, mas permeia diversas ações da socie-dade; lida com a criatividade que transita entre o novo e oantigo e impulsiona a sociedade a construir um quadro dereferência com relação a seu futuro. Apesar de raramentepensadas em termos de sustentabilidade, as políticas cul-turais são de suma importância, porque suas ferramentasde intervenção geralmente se aproximam da subjetivida-de humana, o terceiro registro ecológico sugerido porGuattari (1990) e componente fundamental da articulaçãoético-política capaz de conciliar o desenvolvimento aocrescimento econômico.

Sabe-se que a cultura muda muito lentamente. Apesarde a perspectiva do desenvolvimento sustentável pressu-por uma atitude psicológica essencialmente futurista, épraticamente impossível que qualquer geração seja capazde prever todas as contingências implicadas na evoluçãocultural. Mas, à medida que o indivíduo se conscientizada repercussão de seus atos nas gerações futuras e se preo-cupa com isso, desenvolve-se uma preocupação atravésdas gerações capaz de enxergar uma responsabilidade

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comum. Para alcançar esse estado ideal, entretanto, o de-senvolvimento cultural deve partir do reconhecimento doscenários nos quais os atores sociais interagem, constroemespaços, mudam os valores e os “olhares” sobre a vidaem sociedade. A partir daí, incentivar o desenvolvimentoda cultura não corresponde a apenas realizar produtos comviabilidade de mercado que dêem visibilidade a empre-sas, muito menos a vender a cultura como um produto aser consumido. Trata-se de compreender a cultura comoum processo de criação de significados que oferecem sen-tido ao modo de vida das comunidades humanas.

Pensar na cultura como fator de desenvolvimentosignifica valorizar identidades individuais e coletivas,promover a coesão em comunidades e levar em con-sideração que as características da cultura podem ser umfator de crescimento em determinado território, como é ocaso de diferentes regiões rurais com relação aos seusprodutos agrícolas, seus costumes e paisagens aproveitadaspelo turismo. Assim, não há fronteiras territoriais. A culturaé tão essencial em grandes metrópoles como em áreasrurais. Em cada local, diferentes agentes são envolvidos,com tarefas e formatos variados e, conseqüentemente,resultados distintos. Mas os processos são sempre muitosimilares, envolvendo, por meio de parcerias de médio elongo prazos, os agentes públicos, privados e do terceirosetor.

O papel fundamental da cultura pode beneficiar o de-senvolvimento de outras políticas públicas, acentuando suaeficiência, tanto nos aspectos econômicos, como nas di-mensões social e ambiental (RUIZ, 2003). Diversos tra-balhos desenvolvidos pela Unesco (1995) ressaltam que,especialmente nos chamados “territórios periféricos” daEuropa Oriental, o desenvolvimento não caminha sem umaespecial ênfase ao desenvolvimento da cultura local, ouseja, é preciso reforçar a consciência dessas culturas emrelação ao seu desenvolvimento.

Hoje, as políticas culturais devem contribuir para gerarpertencimentos a partir do resgate da auto-estima indivi-dual e coletiva. Sem a auto-estima não é possível o desen-volvimento humano [...] e sem o pertencimento, não há odesenvolvimento integral,

ressalta o Instituto Pólis (FARIA, 1999) no relatórioproduzido a partir de um seminário em São Paulo, queapresentou como diversas ações culturais e artísticas sãocapazes de beneficiar o desenvolvimento humano, comu-nitário e municipal. A área produtiva, as redes de infra-estrutura e de serviços não funcionam de maneira adequada

se não houver investimento no ser humano, em suaformação, saúde, cultura, lazer e informação.

Incentivar o desenvolvimento da cultura em um paíscomo o Brasil ainda é visto como um elemento supérfluo,de “perfumaria”, e pode ser considerado um trabalho di-ficílimo e infinito, devido a verbas restritas, incapazes deatender à efervescência de incontáveis manifestações. Masa proposta fica mais clara se pensarmos que o desenvol-vimento e sua conciliação com o crescimento econômiconão se darão a partir da implantação de um elemento es-pecífico da cultura, mas sim pela interação entre diferen-tes centros de influência (as artes, as escolas, as institui-ções públicas e privadas, por exemplo) e pelas políticaspúblicas, como balizadoras e direcionadoras das açõesgovernamentais, certamente capazes de impulsionar oaperfeiçoamento e a interação desses centros.

O incentivo à formação de público para a OrquestraSinfônica do Estado de São Paulo, a Pinacoteca e o Mu-seu de Arte Sacra na capital paulista, a recuperação daEstação da Luz e a implantação de um museu destinado àlíngua portuguesa, além das diversas ações da Secretariade Estado da Cultura procurando transformar São Pauloem um Estado de leitores são exemplos de interação entreesses centros de influência. Eles demonstram que as polí-ticas culturais podem e devem desempenhar um papel sig-nificativo na promoção da sustentabilidade, o qual podeser entendido como a recriação de uma teia de comunica-ção no espaço público.

Existem diferentes frentes nas quais as políticas públi-cas culturais podem agir, segundo essa óptica. Os traba-lhos artísticos compõem uma delas. A arte, entretanto, éexemplar quando confere um novo tipo de signo à exis-tência e

opera transformações a partir de linguagens que valorizama vida como um todo e criam um outro discurso, diferentedaquele que já não sabe comunicar-se ou comunica-se malcom a sociedade (FARIA, 1999, p. 15).

A arte é constituída da vida social e impulsiona rela-ções entre pessoas e grupos, renovando vivências, laçosde solidariedade, criando imagens e poéticas imprescin-díveis para o conhecimento de si mesmo e do outro e con-tribuindo para a criação de um rico imaginário local apoi-ado nas raízes e na criatividade coletivas.

Ainda pouco explorados nas ações promotoras da sus-tentabilidade, os trabalhos artísticos que tocam o imagi-nário e a subjetividade humana fazem parte de um impor-tante registro ecológico de nossas ações. Isso porque as

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novas idéias são visões imaginativas originais, não somenteporque elas envolvem imagens particulares inéditas, masno sentido de que envolvem mudanças na nossa visão demundo, a forma geral pela qual percebemos a vida. Aimagem da máquina, por exemplo, transformou a visãode mundo profundamente durante a Renascença, sobretu-do porque máquinas estão sob o controle humano. E a idéiade se poder separar essa máquina (o mundo) em partes éo que fez a ciência parecer possível. E precisava parecerpossível na imaginação antes que qualquer pessoa come-çasse efetivamente a praticá-la (MIDGLEY, 2001). Omesmo pode ser válido para o desenvolvimento sustentá-vel: primeiro é preciso imaginá-lo possível.

PRÓXIMOS PASSOS

Se uma conciliação entre o crescimento econômico e odesenvolvimento sustentável ainda parece remota, enxer-gar e compreender o caminho percorrido pode ser impor-tante, principalmente para a formulação de políticas pú-blicas que tenham como propósito incentivar formassustentáveis de desenvolvimento. Esse percurso indica queé necessária uma visão abrangente da sustentabilidade eque as políticas públicas sejam integradas dentro de umaperspectiva de longo prazo de gestão territorial, na qual acultura seja um importante elemento impulsor. Em outraspalavras, além de impor leis restritivas, as políticas pú-blicas devem procurar criar um ambiente favorável à sus-tentabilidade ao direcionarem as ações do Estado referen-tes a seus mais diversos setores de atuação.

Como o século XXI pede urgência na derrubada decontradições que marcaram o final do século passado, nãose pode tardar a direcionar o foco das políticas públicaspara a sustentabilidade e para a geração de informações,ambas partes de um conjunto de objetivos que pautam econdicionam a ação governamental. À medida que as po-líticas públicas contemplarem propostas que articulem omeio ambiente, a sociedade e a subjetividade humana, o

abismo que separa o crescimento econômico do desen-volvimento poderá não parecer tão grande e a sustentabi-lidade, não tão distante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KARIN VECCHIATTI: Engenheira Agrônoma, Mestre em Ciência Ambientalpela Procam/USP.

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A

Resumo: Buscou-se compreender em que termos se coloca a controvérsia em torno da adoção das plantastransgênicas no Brasil. Foram objeto de especial atenção as práticas instituídas pelos órgãos públicos, particu-larmente as da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, e pelas organizações da sociedadecivil. Concluiu-se que a forma de atuação das instâncias governamentais brasileiras constituiu um importantefoco gerador de conflitos.Palavras-chave: plantas transgênicas; legislação em biossegurança; políticas públicas.

Abstract: This paper focuses the controversy around the adoption of transgenic crops in Brazil. It emphasizesthe actions of the public companies, especially the National Technical Commission on Biosafety (CTNBio),and the actions of the non-governmental organizations. It concludes that the Brazilian governmental actionsgenerate conflicts.Key words: transgenic crops; biosafety legislation; public politics.

CARMEM L.C. MARINHO

CARLOS MINAYO-GOMEZ

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(3): 96-102, 2004

aplicação da engenharia genética, principal fer-ramenta da moderna biotecnologia, à agricultu-ra vem provocando profundas controvérsias

quanto a possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente, as-sim como sobre suas implicações nos âmbitos político,socioeconômico e ético. No Brasil, apesar da existênciade significativos instrumentos legais e instâncias decisó-rias específicas sobre a questão, práticas não condizentescom a legislação em vigor geraram uma acirrada polêmi-ca entre diversos atores envolvidos, como cientistas, agri-cultores, ambientalistas e representantes do governo. Talpolêmica foi proveniente, em grande parte, da atuação daComissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) edos Ministérios, a quem a legislação atribuiu responsabi-lidade clara sobre a temática.

Este artigo tem como referência esse contexto e foi rea-lizado com o intuito de desvendar algumas das razões ca-pazes de justificar as decisões assumidas pelas principaisinstâncias responsáveis pela biossegurança no país, noperíodo de 1995 a 2002.

MATERIAL E MÉTODOS

Analisou-se o tratamento dado a solicitações para libe-ração ambiental de transgênicos pela CTNBio. A discussãocentrava-se nos questionamentos suscitados pelos proce-dimentos de biossegurança utilizados na aprovação das pri-meiras liberações ambientais, experimentais e comerciais.

A documentação coletada sobre os procedimentos se-guidos pela CTNBio – enquanto principal instância deci-sória na avaliação do uso dos transgênicos – referente aoperíodo de 1995 a 2002, foi de fundamental importância paraelucidar a origem dos conflitos gerados pela sua atuação,nem sempre em consonância com a legislação vigente.Foram reunidos dados sobre os processos encaminhadosà comissão e autorizações concedidas para liberações ex-perimentais no meio ambiente e, no caso da soja, para finscomerciais.

A rede mundial de computadores (Internet), particular-mente os sites dos Ministérios, revelou-se também umafonte importante para avaliar, em parte, o tratamento con-

DECISÕES CONFLITIVAS NA LIBERAÇÃODOS TRANSGÊNICOS NO BRASIL

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DECISÕES CONFLITIVAS NA LIBERAÇÃO DOS TRANSGÊNICOS NO BRASIL

ferido à temática. A atuação dos órgãos ministeriais res-ponsáveis por fiscalizar a aplicação dessa tecnologia foiobjeto de especial atenção.

As matérias divulgadas na imprensa revelaram-se umafonte profícua e indispensável para uma permanenteatualização, com fatos, das posições e práticas con-flitantes em relação à biotecnologia agrícola. Comoobserva Wolf (1997), temas de significativa importânciapública têm que ser abordados pela imprensa escrita e commenor grau de fragmentação que a mídia falada. Enquanto“quarto poder”, como habitualmente é qualificada, adquirelegitimação na medida em que favorece a expressão deidéias diferentes e, inclusive, exerce um poderosocontraponto ao que Hobsbawn (1995) denomina de“segredos dos governos”.

A consulta ao conteúdo de determinadas ações acolhi-das pelo Ministério Público, pela farta e consistente argu-mentação com que este órgão fundamentou seus pareceres,acrescentou elementos substantivos para caracterizar as po-sições conflitantes em torno da questão. Da mesma forma,o acesso às transcrições das Audiências Públicas realiza-das por diversas comissões da Câmara dos Deputados so-bre o assunto constituiu valioso subsídio.

Recorreu-se ainda aos textos e informativos divulgadospor organizações da sociedade civil que mais se destaca-ram – entre as integrantes da campanha “Por um Brasil Li-vre de Transgênicos” – na defesa da legislação pertinenteao campo da biossegurança, particularmente o InstitutoBrasileiro de Defesa do Consumidor – Idec e o Greenpeace.Nesse sentido, um instrumento privilegiado foi o boletimeletrônico disponibilizado pela campanha, desde 1999, coma principal finalidade de “disseminar idéias e informaçõessobre os impactos e riscos dos Organismos Geneticamen-te Modificados – OGM no meio ambiente, na saúde doconsumidor e na agricultura”.

O valioso acervo contido em artigos, editoriais e notíciaspublicados na grande imprensa possibilitou o acesso, entreoutras informações, a declarações e atuação de autoridadesgovernamentais, de representantes de setores empresariais,de associações corporativas, de organizações não-gover-namentais e análises da produção agrícola e de suacomercialização. Alguns dos principais jornais utilizadosforam O Estado de S.Paulo e Valor Econômico.

A BIOSSEGURANÇA NO BRASIL

A lei brasileira de biossegurança (Lei n. 8.974) definiuas diretrizes para o controle das atividades e dos produtos

originados pela biotecnologia moderna ou tecnologia deDNA recombinante. Estabeleceu

normas de segurança e mecanismos de fiscalização no usodas técnicas de engenharia genética na construção, cultivo,manipulação, transporte, comercialização, consumo, libe-ração e descarte de organismo geneticamente modificado(OGM), visando proteger a vida e a saúde do Homem, dos

animais e das plantas, bem como o meio ambiente (grifo nosso).

O Decreto n. 1.752/95, que regulamentou a Lei n. 8.974,dispôs sobre a competência e composição da ComissãoTécnica Nacional de Biossegurança – CTNBio.

Mais recentemente, o governo editou a Medida Provi-sória n. 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, na qual foicorrigida uma questão legal que envolvia a comissão, umavez que os artigos relacionados à sua criação na Lei deBiossegurança tinham sido vetados na época. Com essaMP, o governo buscou assegurar a legitimidade jurídicada comissão, conferindo-lhe novas atribuições e fortale-cendo-a enquanto fórum privilegiado de tomada de deci-são. A CTNBio, além de continuar emitindo pareceres téc-nicos conclusivos, passava a exercer funções queanteriormente pertenciam aos Ministérios.

De acordo com o decreto que regulamentou a Lei deBiossegurança, compete à CTNBio:

propor a Política Nacional de Biossegurança; acompanharo desenvolvimento e o progresso técnico e científico naBiossegurança e em áreas afins, objetivando a segurançados consumidores e da população em geral, com permanen-te cuidado à proteção do meio ambiente.

Todas as atividades de manipulação, transporte, impor-tação, comercialização e liberação no meio ambiente deorganismos geneticamente modificados, ou derivados,devem ser autorizadas previamente pela comissão.

A comissão era composta por especialistas de notóriosaber científico e técnico em biotecnologia, tendo repre-sentante de cada uma das áreas: humana, animal, vegetale ambiental. Conta também com representação dos Minis-térios da Ciência e Tecnologia, da Saúde, do Meio Am-biente, da Educação e das Relações Exteriores, bem comodo Ministério da Agricultura e do Abastecimento, tantoda área vegetal quanto da animal. Os órgãos de Defesa doConsumidor e de Proteção à Saúde do Trabalhador, assimcomo o setor empresarial de biotecnologia, têm tambémrepresentação na comissão.

Em síntese, a regulamentação brasileira relativa àengenharia genética e a seus produtos, para alguns autores

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como Fontes et al. (2000), era considerada criteriosa,abrangente e capaz de atender às necessidades/interessesdo país. Essa avaliação parecia partilhada por diferentesórgãos do governo responsáveis pelo seu cumprimento,mas restava confirmar se a prática adotada era condizentecom tais atributos.

A criação da CTNBio, em 1995, foi vista como umavanço para assegurar que a tecnologia dos transgênicosfosse avaliada de acordo com os conhecimentos técnico-científicos. No entanto, ao longo de sua atuação enquantoórgão responsável pelo controle dessa tecnologia, a co-missão foi sendo questionada.

No site da comissão na Internet, percebiam-se sinaisde que os problemas já começavam com os referenciaisutilizados. A comissão definia a biossegurança como “umaciência surgida no século XX”, cujo fundamento básicoera “assegurar o avanço dos processos tecnológicos e pro-teger a saúde humana, animal e o meio ambiente.” Asse-gurar o avanço dos processos tecnológicos não pode sertarefa da biossegurança, pois, em decorrência da utiliza-ção de critérios adequados de avaliação, pode limitar, re-tardar ou até impedir tal avanço.

A comissão não conseguiu desempenhar uma dasatribuições que lhe foi conferida pelo Decreto n. 1.752,de 20 de dezembro de 1995: propor a Política Nacionalde Biossegurança. Durante esses dez anos de sua existên-cia, tal proposta não foi elaborada e tampouco foram esta-belecidos critérios mínimos para avaliação das solicitaçõesde liberação ambiental dos OGMs, tais como as dimensõesconsideradas aceitáveis para uma área experimental. Asáreas liberadas nos diversos processos de solicitação nãopermitiam entender o objetivo das empresas requerentes,assim como a lógica utilizada pela comissão no seudeferimento. Essas áreas oscilavam entre valores de rigornumérico surpreendente, como 0,006, 0,010496, 0,030016,0,025088 hectares, até uma liberação de 110 hectares, emque a conotação “experimental” ficava sob suspeita.

As dimensões solicitadas para experimentação nãopareciam ser motivo de questionamento pela comissão,como pode comprovar-se no processo n. 675/98-51, quepropôs uma extensão de nada menos que 1.869,78 hecta-res. Esse processo foi indeferido, mas do conjunto de jus-tificativas para o indeferimento não constou nenhuma re-ferência ao tamanho inadequado da área.

Uma liberação de 110 hectares, segundo estimativas,pode produzir em torno de 33.300.000 plantas. Com di-mensões de tal porte, é difícil encontrar razões para argu-mentar que não se tratasse de uma liberação para fins co-

merciais, sendo dispensável a declaração dessa intenção.Nesse processo, a requerente Monsanto informa à comis-são que

os procedimentos e cuidados a serem utilizados para produ-ção de sementes de soja Roundup Ready serão os mesmosadotados para produção de sementes de soja não transgênica(CTNBIO, 2002),

desconsiderando, explicitamente, a necessidade de ado-ção de medidas específicas de biossegurança.

Finalmente, no mesmo processo, a empresa Monsantoacrescenta que a produção resultante desse experimentoseria: “inicialmente, armazenada na própria Estação Expe-rimental de Morrinhos – GO, sendo posteriormente desti-nada às áreas de produção” (CTNBIO, 2002). Como seevidencia, a empresa não omite sua intenção de, na vigên-cia de uma moratória, encaminhar o que a princípio seriaum experimento para as áreas de produção. A comissão,ao examinar o processo para emitir o parecer, ignorou es-sas discrepâncias.

Em relação à empresa solicitante, o relatório final daComissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente eMinorias da Câmara dos Deputados alertava:

Vale registrar que todos os ensaios autorizados pela CTNBioem grandes áreas, o são para um mesmo grupo econômico:Monsanto. As áreas experimentais autorizadas para asdemais empresas e para as instituições públicas sãosignificativamente menores, todas dentro de padrõesaceitáveis pelo bom senso e, salvo melhor juízo, pela práxiscientífica (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

Algumas liberações para “demonstração” também eramquestionáveis, entre outros motivos, pela dificuldade defiscalização, devido a sua dispersão em Estados e municí-pios. Diversos processos autorizaram liberações de milhotransgênico no meio ambiente, para diferentes fazendas,com o objetivo de demonstrar a “nova tecnologia” aosagricultores e técnicos, bem como avaliar o desempenhode linhagem geneticamente modificada. As liberações comesse propósito incluíram, por processo, de 20 a 40 diferen-tes fazendas, sítios, granja, campo demonstrativo de coo-perativa, sociedade rural, fazenda experimental de coope-rativa, fundação para assistência agropecuária e pesquisa,centro tecnológico de cooperativa, sociedade agrícola ecooperativa agropecuária – localizados em diversos muni-cípios.

Esse conjunto de liberações, até onde se tem conheci-mento, não foi alvo de qualquer plano especial de fiscali-

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zação e, em conseqüência, podem ter contribuído para adisseminação de sementes transgênicas no país, proibidaspor decisão judicial.

Sobre essas liberações “demonstrativas”, o relatórioanteriormente referido concluía que essa prática

tangencia a irresponsabilidade, a leviandade. Uma comissãoque tem a confiança da sociedade, que a institui como guardiãda biossegurança, a quem confia o papel de zelar por suasegurança, cede à sedução das empresas de biotecnologia epermite-lhes fazer demonstração de uma tecnologia nãoautorizada e ainda pendente de avaliações e estudos quepermitam concluir por sua liberação ou não. Só faz sentidouma CTNBio que assuma o papel de juíza, que julgueem função dos aspectos técnicos conclusivos. A socie-dade delegou-lhe a função de juíza da biossegurança,não de promotora da biotecnologia (CÂMARA DOS

DEPUTADOS, 2000).

Outro tipo de liberação considerada problemática, comose constata numa solicitação do Ministério da Agricultura– Comunicado n. 113, publicado em 3 de julho de 2000 –para que a comissão

em caráter de urgência, em virtude da quebra da safra demilho no país, emita parecer técnico conclusivo sobre a se-gurança alimentar para animais, dos eventos/híbridos degrãos de milho geneticamente modificado disponíveis nomercado mundial para comercialização.

A solicitação obteve parecer favorável e as providên-cias para a importação foram imediatamente adotadas,embora contrariassem a Lei de Biossegurança que deter-minava que

produtos contendo OGM, destinados à comercialização ouindustrialização, provenientes de outros países, só poderãoser introduzidos no Brasil após o parecer prévio conclu-sivo da CTNBio e a autorização do órgão de fiscalizaçãocompetente, levando-se em consideração pareceres técni-cos de outros países, quando disponíveis (CÂMARA DOS

DEPUTADOS, 2000).

Entretanto, no parecer favorável emitido pela comissãonão há qualquer alusão à necessidade dessa autorização,embora as empresas responsáveis pelo transporte e pro-cessamento final do grão não dispusessem de Certificadode Qualidade em Biossegurança – CQB, exigência estabe-lecida na Lei de Biossegurança para qualquer entidadenacional, estrangeira ou internacional, que desenvolvaatividades com OGMs e seus derivados (CÂMARA DOSDEPUTADOS, 2000).

O relatório aponta, ainda, a ocorrência de falhas nos cui-dados com a segurança alimentar. Analisando a correspon-dência entre a CTNBio e o Departamento de AgriculturaAmericano, a fim de obter informações sobre as linhagensde milho incluídas na solicitação, o estudo conclui que,embora a comissão tenha autorizado a importação de setediferentes linhagens de milho, apenas em três delas apre-sentavam-se documentos que atestavam a segurança ali-mentar.

Soma-se a isso o fato de que, nessa época, já havia umadecisão judicial proibindo a liberação dos transgênicos. Emconseqüência, mais uma vez, decisões em desacordo com alegislação vigente acabaram por provocar uma série de açõesjudiciais, tentando evitar a importação desse milho, numacontínua realimentação da polêmica instaurada.

A atuação dos Ministérios é fundamental no cumprimentoda legislação de biossegurança. Além da responsabilidadepela fiscalização, embora a CTNBio fosse a responsável porelaborar o parecer técnico sobre os cultivos transgênicos, adecisão final caberia aos Ministérios da Agricultura, MeioAmbiente e Saúde. Essa fiscalização, no entanto, não ocor-reu de maneira satisfatória. Nenhum dos Ministérios cum-priu adequadamente o papel previsto na lei.

O Ministério da Saúde mostrou-se omisso, no que tan-gia a suas atribuições legais sobre os transgênicos. AAgência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, alémde eximir-se de sua função fiscalizadora, não tomou provi-dências diante das inúmeras denúncias de entidades, comoo Idec e o Greenpeace, sobre a comercialização de diver-sos produtos com ingredientes transgênicos no país.

Como exemplo, pode-se mencionar a lei conhecida comoLei dos Agrotóxicos, de 1989, aplicada também aos orga-nismos geneticamente modificados para adquirir caracte-rística de agrotóxico, como no caso do milho Bt. Entretan-to, a Anvisa só adotou as medidas cabíveis quando instadapela Justiça, em virtude de uma liminar obtida, em abril de2001, por procuradores da República, determinando a sus-pensão de todas as autorizações para liberações experimen-tais de transgênicos com características agrotóxicas.

Logo após a decisão judicial, a Anvisa, juntamente como Ministério da Agricultura e o Ibama, estabeleceu parâ-metros para elaboração de uma proposta de critérios parao fornecimento do Registro Especial Temporário – RET, quedeveria ser emitido pelo Ministério da Agricultura (Secre-taria de Defesa Agropecuária), pelo Ibama e pela própriaAnvisa. O RET não foi exigido em nenhuma das autoriza-ções que a CTNBio havia concedido até aquele momento(CAMPANHA..., 2001).

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A deficiência no controle e monitoração das plantastransgênicas foi expressa, de forma clara, pelo responsá-vel da Divisão de Controle do Trânsito e Quarentena Ve-getal – DTQ, do Ministério da Agricultura. Indagado so-bre os procedimentos técnicos adotados por esseMinistério para identificar se um produto é geneticamentemodificado ou não, afirmou que o mesmo não estava tec-nicamente aparelhado para essa identificação, dependen-do de declaração do exportador a respeito (ZAHLER, 1997).Esse cenário permaneceu inalterado até 2001, quandoZahler, em comunicação pessoal, explicava que, em suaopinião, faltou uma legislação complementar à legislaçãode biossegurança, pois a lei estabeleceu as competênciasdos Ministérios para a fiscalização sem fixar um períodopara a formação de uma infra-estrutura compatível com aexecução dessa tarefa.

Em audiência pública na Câmara dos Deputados, o di-retor do Programa Nacional de Conservação da Biodiver-sidade e de Recursos Genéticos/Ministério do Meio Am-biente reconheceu que existiam deficiências em todos osórgãos de fiscalização, afirmando que “Não se consegue,no campo, distinguir o que é e o que não é transgênico”(BRASIL, 2001).

A própria CTNBio admitia que a fiscalização dos or-ganismos geneticamente modificados no país era deficien-te e que algumas empresas e laboratórios desrespeitavamas normas de biossegurança (CTNBIO..., 2001). No entan-to, o reconhecimento não era suficiente, sendo necessárioadotar medidas que modificassem esse quadro ou interrom-pessem as liberações até que fosse implementada uma ro-tina eficaz de fiscalização. Afinal, o governo, através deseus órgãos competentes, liberou sistematicamente testescom plantas transgênicas, perfazendo uma área de 943,88hectares (VIGNA, 2001). Numa estimativa feita no final de2001, chegou-se a aproximadamente 1.300 hectares libera-dos.

Como resultado, foram-se delineando, ao longo dosúltimos anos, as dimensões da irresponsabilidade no to-cante ao conjunto de ações capazes de garantir a condu-ção criteriosa de um processo marcado pela controvérsia.As conseqüências da indefinição de critérios constatadanas liberações concedidas pela CTNBio, assim como daatuação dos Ministérios, ao se eximirem em intervir numcenário que poderá resultar em graves conseqüências parao país, adquiriam total e irrefutável concretude, provocan-do grande tumulto entre os atores envolvidos e uma fartaprofusão de artigos e editoriais na imprensa.

Embora não se conheça o real volume da soja clan-destina cultivada – o que reflete o descontrole sobre a

questão pelos órgãos responsáveis por seu encaminha-mento –, observa-se que todas as fontes apresentamnúmeros extremamente altos. Não existe certeza da origemdessa soja: se contrabandeada da Argentina, se disse-minada pelas empresas à revelia do governo, ou mesmocom o seu aval, diante das inúmeras liberações para“demonstração”, como mencionado anteriormente.

Foi notório o empenho demonstrado pelo Ministério daAgricultura na liberação de um alimento controverso e,especialmente, sob moratória judicial. O próprio ministroda pasta em 2001 assegurava, numa entrevista, que a au-torização para comercialização dos transgênicos sairia nasemana seguinte. Chegou, inclusive, a cogitar a possibili-dade de liberar a soja transgênica à revelia da decisão ju-dicial (PRATINI..., 2001a).

Poucos dias depois da entrevista, os jornais noticiaramos bons resultados da empresa Monsanto, no ano de 2001(LUCRO..., 2001). Diante dessas incisivas afirmações, o Mi-nistério Público entrou na Justiça com uma denúncia con-tra o ministro, que o levou a recuar, alegando a existênciade pendências judiciais (PRATINI..., 2001b). Tal episódioteve repercussões negativas no preço das ações dessa em-presa (MONSANTO..., 2001).

A Embrapa, na época da solicitação da Monsanto paraa liberação comercial da soja transgênica, pronunciou-sefavoravelmente, explicitando seu apoio ao uso e à desre-gulamentação da soja resistente ao glifosato, por cartaenviada por seu presidente à CTNBio e anexada ao pro-cesso de liberação da soja (CPR n. 233/1998, SE-PADCT/GAB n. 369). É incompreensível que um órgão do Minis-tério da Agricultura se pronunciasse, de forma tão con-tundente, diante de decisão dessa complexidade.

O Ministério do Meio Ambiente, apesar de não ter exer-cido adequadamente sua tarefa de fiscalização, foi o únicoque tentou adotar uma posição independente na avaliaçãodos transgênicos. No Fórum Nacional de Secretários daAgricultura, o ministro, reconhecendo que os transgênicosofereciam impactos ambientais ainda desconhecidos,alertava para a importância do cumprimento, pelas empre-sas, das exigências legais de licenciamento ambiental. E res-saltava: “não se pode visar apenas o atendimento de inte-resses econômicos imediatistas” (MINISTRO..., 2000).

O Ministério teve também participação relevante no im-pedimento de liberação comercial da soja RR. O Ibama jun-tou-se, embora posteriormente, ao processo judicial impe-trado pelo Idec e o Greenpeace. No entanto, para evitarconflitos entre setores governamentais, acabou solicitan-do sua retirada da ação. De qualquer maneira, é inegável o

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peso político que teve sua inserção momentânea, não ape-nas como fator de reforço ao questionamento técnico apre-sentado pelas organizações não-governamentais, mas tam-bém por colocar em evidência os conflitos existentes dentrodas diferentes esferas do governo envolvidas na questão.

O Ministério da Ciência e Tecnologia, abrigando aCTNBio e com poder de nomeação da maioria dos mem-bros da comissão, manteve sempre uma posição de apoioirrestrito ao trabalho desenvolvido pela comissão e favo-rável à liberação dos transgênicos.

O CASO EMBLEMÁTICO DA LIBERAÇÃOCOMERCIAL DA SOJA

Além dos questionamentos relativos ao elevado núme-ro de liberações experimentais sem critérios claros, a co-missão sofreu também severas críticas por ocasião da pri-meira solicitação, no Brasil, para liberação do cultivo, emescala comercial, da soja Roundup Ready, encaminhadapela Monsanto. A CTNBio emitiu um parecer favorável,atestando a ausência de risco ambiental e/ou para saúdehumana, sem exigir o EIA e seu respectivo Relatório deImpacto no Meio Ambiente – Rima.

O comunicado n. 54 expressa, de forma contundente,sua avaliação sobre a soja Roundup Ready:

A CTNBio concluiu que não há evidências de risco ambientalou de riscos à saúde humana ou animal, decorrentes da uti-lização da soja geneticamente modificada em questão,

esclarecendo, ao final, que aquele ato constituía um “pa-recer conclusivo de caráter técnico do ponto de vista dabiossegurança (BRASIL, 1998, p. 56).

Evidentemente, a CTNBio deixou de observar a impor-tante premissa de que a não comprovação de riscos nãoimplica necessariamente a ausência dos mesmos, além denão aplicar o consagrado Princípio da Precaução. E, princi-palmente, desconsiderou a própria Constituição brasileira.

Dois cientistas, responsáveis pela área ambiental jun-to à comissão, discordaram da decisão final da CTNBio,considerando que não havia informações relevantes so-bre a interação planta/ambiente nas condições brasilei-ras, nem sobre o comportamento e as características doscultivos de soja Roundup Ready plantadas no país. Aempresa proponente baseava suas informações unicamen-te na soja cultivada nos Estados Unidos (CAMÂRA DOSDEPUTADOS, 2000).

Mesmo assim, a comissão aprovou a soja transgênica paracomercialização. Em desacordo com essa avaliação impro-cedente, entidades da sociedade civil recorreram à Justiça e

obtiveram decisão favorável a seu pleito. Em função dessadecisão judicial, transcorridos mais de quatro anos do pare-cer conclusivo da CTNBio, o plantio não se efetivou. Esta-beleceu-se, em contrapartida, uma grande polêmica em tor-no da questão, que revelou diversas contradições naspolíticas públicas, ao que se soma a carência de canais deinformação para a população em geral, condizentes com aimportância social e econômica que o tema encerra.

CONCLUSÕES

Não se trata de rejeitar a tecnologia dos transgênicos.Tal postura seria indefensável e colocaria o país à mar-gem do progresso científico e da possibilidade de resol-ver, no futuro, problemas que afetam a população. Aocontrário, é prioritária uma política de fomento às inves-tigações de universidades e institutos tecnológicos quetenham por objetivo o melhor aproveitamento da expres-siva biodiversidade brasileira, de modo que o conhecimen-to produzido redunde na geração de patentes e se evite aapropriação estrangeira dessa riqueza.

Alguns parâmetros fundamentais deveriam, no entanto,pautar a aceitação da biotecnologia agrícola. Além darealização prévia de estudos científicos conclusivos queassegurem a ausência de riscos ambientais e para a saúde,bem como a preservação dos recursos naturais – emconsonância com as premissas básicas de uma práticaagrícola ecologicamente sustentável –, é imprescindívelponderar suas repercussões econômicas, tanto para os agri-cultores como para o conjunto do país.

O arcabouço legal brasileiro relativo à biossegurançaera bastante amplo, contendo um conjunto de medidasadequadas a serem observadas por instituições e empresasque realizem atividades envolvendo transgênicos. Noentanto, as instâncias governamentais responsáveis nãoconseguiram assegurar seu cumprimento, adotando umapostura negligente no estabelecimento das exigênciastécnicas legais.

A Política Nacional de Biossegurança, uma das atribui-ções da CTNBio, conforme determinou a Lei de Biosse-gurança de 1995, não foi elaborada. Careceu-se de instru-ções normativas concernentes, entre outros aspectos, àsdimensões aceitáveis das áreas para liberação experimen-tal. Entretanto, mesmo na ausência de diretrizes claras, fo-ram concedidas liberações com OGMs no meio ambiente, emáreas cuja extensão varia de 0,006 a 110 hectares para ummesmo transgênico e com idêntica finalidade. É impossíveldeduzir quais critérios científicos justificariam tal dispa-

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ridade. Decisões igualmente irresponsáveis encontram-senas várias liberações de experimentos para “fins de demons-tração”, chegando uma mesma concessão a contemplar maisde 40 diferentes fazendas particulares. Desse cenário caóti-co, emergia uma total desconexão entre o trabalho das di-versas instâncias envolvidas com a questão da biosse-gurança dos transgênicos no país. Os Ministérios eximiam-seda fiscalização e assistiam, sem intervir, as constantes libe-rações por parte da CTNBio. Entretanto, a comissão, mes-mo ciente da ausência de fiscalização, prosseguia nas auto-rizações para experimentos no meio ambiente.

Essa ausência de critérios explícitos para o deferimentode liberações experimentais no meio ambiente, bem comoa omissão dos órgãos de vigilância e fiscalização, poderáconstituir a gênese de eventuais danos ao meio ambiente.Se a dimensão e as possibilidades de reversão dessesdanos configuram desafios ao estabelecimento de pre-visões irrefutáveis, sua ocorrência certamente imporá atodos – críticos ou adeptos da decisão tomada – umimponderável ônus.

Tais omissões, inclusive, tornaram-se fato consumado:aflorou a situação criada pelo plantio, sem nenhum con-trole estatal, de soja transgênica no país. Diante desse fatoconsumado e previsível, o atual governo, sob argumentosde ordem eminentemente econômica – não desprezíveis,mas certamente também não incontestáveis – valendo-sede uma medida provisória, liberou a comercialização dessasoja para consumo interno e exportação. Ao interromperabruptamente um processo que ainda mantinha, mesmoque com base numa decisão judicial, a possibilidade decontemplar o Princípio da Precaução, reforçam-se as pre-missas que vêm sustentando a repetida tolerância comações que ferem a legalidade.

Em fevereiro de 2003, a Câmara dos Deputados apro-vou o Projeto de Lei n. 2.401/03, que substituirá, se apro-vado pelo Senado, a legislação de biossegurança atual, es-tabelecida em 1995. Tal projeto, embora implicandoalterações significativas à legislação vigente, não se mos-tra, até o presente momento, como instrumento capaz deamenizar a discordância entre os diversos atores envolvi-dos com a temática.

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