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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-graduação em Letras
Valéria Soares Coelho
CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo
Belo Horizonte
2015
Valéria Soares Coelho
CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção do
grau de Doutor em Letras – Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientadora: Profª. Drª. Melânia Silva Aguiar
Belo Horizonte
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Coelho, Valéria Soares
C672c Chacal: poesia, palavra, margens do corpo / Valéria Soares Coelho, Belo
Horizonte, 2015.
167 f.: il.
Orientadora: Melânia Silva Aguiar
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Chacal, 1951- - Crítica e interpretação. 2. Poesia. 3. Desempenho (Arte).
4. Corpo como suporte da arte. I. Aguiar, Melânia Silva. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.
III. Título.
CDU: 869.0(81)-1
Valéria Soares Coelho
CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção do
grau de Doutor em Letras – Literaturas de Língua
Portuguesa.
________________________________________________________
Profª. Drª. Melânia Silva de Aguiar (orientadora) – PUC Minas
________________________________________________________
Profª. Drª. Nancy Maria Mendes – UFMG
________________________________________________________
Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura – CEFET-MG
________________________________________________________
Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty – PUC Minas
________________________________________________________
Prof. Dr. Johnny José Mafra – PUC Minas
Belo Horizonte, 8 de maio de 2015
À memória de meus pais:
a minha mãe, Elvira Coutinho Soares, pelo prazer da
Literatura;
a meu pai, Joanyhn Soares Coelho, pelo trabalho
como fruto da vida.
AGRADECIMENTOS
A meu marido, Bruno Gonçalves Fonte Boa, pelo apoio.
Às filhas Marina, Letícia e Lívia, pelas alegrias.
À professora primária, Ivanira de Moura Alves, referência no mundo das Letras.
À Professora Melânia Silva Aguiar, por ter acreditado nesse trabalho, pelo zelo sem limites,
pelos conhecimentos e sabedoria preciosos tão sensivelmente compartilhados, nas aulas, no
decorrer de sua orientação, e em atividades e Seminários, no Brasil e no Uruguai, de nosso
saudoso grupo de estudos da poesia moderna nessa universidade, o GEPOM.
À Professora Ivete Walty, pelo enorme apoio recebido no mestrado e pela convivência sempre
muito enriquecedora nas salas de aula e nos grupos de estudos.
Ao professor Márcio Serelle, pela apresentação de obras das últimas gerações, semente desse
trabalho.
À Professora Terezinha Taborda, pela oportunidade da primeira publicação.
A todos os meus professores e colegas desta instituição, pelas aulas com reflexões
importantes, que contribuíram para que eu chegasse a esse texto aqui apresentado.
RESUMO
Esta tese, tendo em foco a obra poética de Chacal, reunida em Belvedere (2007), investiga as
relações entre a tradição e a ruptura na modernidade e os conflitos em torno da legitimação de
um discurso poético “marginal”, em conexão com outras manifestações artísticas dos anos
1960/1970, que trouxeram o corpo em movimento como elemento primordial da expressão
artística. Embaraçando as fronteiras entre forma e conteúdo, poesia e ação, ou entre o real e
sua representação, a obra de Chacal, até suas mais recentes publicações e projetos culturais,
faz repensar o conceito de “performance”. Como potência fundadora da poesia desde os
primórdios da expressão, a arte performática foi resgatada por movimentos da vanguarda
artística europeia, como se deseja mostrar, e o poeta estudado explora essa tradição feita de
processos que expõem a precariedade dos limites entre identidade e alteridade, entre o centro
e as margens, o experimental e o tradicional, a escrita e o gesto, o corpo e a palavra.
PALAVRAS CHAVE: Chacal; legitimação; poesia; performance; corpo
ABSTRACT
This thesis, focusing on the work of Chacal, gathered in Belvedere (2007), investigates the
relationship between tradition and rupture in modernity and the conflicts surrounding the
legitimization of a marginal poetic speech in connection with other artistic manifestations of
the 1960s and 1970s that brought the body in movement as a primordial element of artistic
expression. Entwining boundaries between form and content, action and poetry or between
the real and its representation, the work of Chacal, even their most recent publications and
cultural projects, is rethinking the concept of performance. As a founding power of poetry
since the dawn of expression, performance art was rescued by avant-garde European artistic
movements, as desired to reveal, and the poet studied explores this tradition made of
processes that expose the precariousness of boundaries between identity and otherness,
between the centre and the margins, the experimental and traditional, the writing and the
gesture, the body and the word.
KEY WORDS: Chacal, legitimization, poetry, performance, body
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 MARGENS DO CORPO .................................................................................................... 29
2.1 Corpos e dominação ...................................................................................................... 30
2.2 Modernismos ................................................................................................................. 36
2.3 Modernidades ................................................................................................................ 42
2.4 Corpos e espaços ........................................................................................................... 51
3 A PALAVRA E OUTRAS MARGENS ............................................................................. 74
3.1 Palavra-corpo ................................................................................................................ 74
3.2 Tempos-espaços ............................................................................................................. 79
3.3 Textos/contextos ............................................................................................................ 91
3.4 A palavra em trânsito ................................................................................................. 100
4 POESIA E PERFORMANCE .......................................................................................... 117
4.1 Leituras performáticas ............................................................................................... 117
4.2 Poéticas performáticas................................................................................................ 127
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 154
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 159
9
1 INTRODUÇÃO
O poeta Chacal tornou públicos seus primeiros poemas em 1971, com Muito prazer,
Ricardo. Foram rodados cem exemplares em um mimeógrafo, com o estêncil rudimentar,
escrito com estilete. O seu último livro, Murundum, foi editado em 2012 pela Cia. das
Letras, uma das maiores do Brasil. Investigar o processo de legitimação de sua obra é o
objetivo maior desse trabalho, e, para isso, discute-se como se constitui, na modernidade, o
centro ou a tradição poética, e o que representa sua ruptura, já que as margens e o centro têm
seus limites muitas vezes precários e instáveis. Os estudos literários, como aponta Lopes
(1994), defendem um foco problematizador para essa questão, ao mesmo tempo que assumem
a importância da contribuição da Literatura para a transmissibilidade da tradição, o que torna
a marginalidade um tema necessário para a Teoria da Literatura e muito atual no âmbito geral
das artes e da cultura.
Chacal nasceu no Rio de Janeiro em 1951, é um dos mais representativos poetas da
chamada “poesia marginal” dos anos 1970, no Brasil, e um dos que mais souberam sintetizar
aqui as contribuições do movimento beat1 e seu caráter revolucionário, ao mesmo tempo que
dialoga em profundidade com outros dois pilares da inquietação poética brasileira do século
XX: a antropofagia2 e o concretismo
3.
Os textos de Chacal analisados aqui estão contidos no volume intitulado Belvedere,
(2007). O livro traz uma reunião de toda a obra de Chacal, publicada até essa data, com os
seguintes títulos, a partir dos mais recentes:
Belvedere (2007)
A vida é curta para ser pequena (2002)
1 A palavra tem em si vários sentidos: batida country, blues, rap, poesia e música. O mais comum é associá-la a
um grupo de amigos em San Francisco nos anos 1950, Allen Ginsberg, Kerouac, Neal Cassady, Carl Salomon,
Burrroughs, entre outros, que se reuniam para falar de poesia, arte, liberdade e vida. Fotografavam, ouviam
música e discutiam concepções políticas e culturais diante da Guerra Fria e do reacionarismo burguês. 2 O “Manifesto Antropófago”, 1928, bandeira rebelde, de Oswald de Andrade, mistura gracejos filosóficos a
críticas à sociedade patriarcal, trazendo reflexões importantes sobre a questão colonial brasileira. 3 O “Plano Piloto para Poesia Concreta”, assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de
Campos em 1958, propõe um método “ideogrâmico” de compor, baseado em elementos não discursivos, e
aponta como precursor, entre outros, Mallarmé, un coup de dés, de 1897.
10
Letra Elétrika (1994)
Comício de Tudo (1986)
Drops de Abril (1983)
Boca Roxa (1979)
Nariz Aniz (1979)
Olhos vermelhos (1979)
Quampérius (1977)
América (1975)
Preço da Passagem (1972)
Muito Prazer, Ricardo (1971)
Temos o objetivo de situá-los como uma importante e original contribuição poética
para a literatura brasileira atual, já que, não se limitando à denominada “poesia marginal”, dos
livros impressos pelo mimeógrafo, apresentam um trabalho reiterado com a tradição, através
de uma síntese criativa de várias vertentes da poesia do século XX. Além da antropofagia, do
movimento beat, e do concretismo, há ainda a presença das vanguardas artísticas europeias,
na irreverência do Dadaísmo e em um poder onírico surreal. Constrói com esses múltiplos
elementos uma palavra performática, que reapresenta inusitadas propostas estéticas e éticas no
corpus multifacetado do ainda imprevisível século XXI.
É recorrente na obra de Chacal a preocupação com a acelerada perda do lugar de
referência ou reverência que a palavra poética já possuiu no espaço cultural. A indústria do
entretenimento e o marketing, ocupando o imaginário coletivo, criando identidades e
memórias recortadas por apelos construídos a partir de estereótipos desejáveis para o
consumo imediato e irrefletido, são reflexões trazidas pelos textos. Nessas mídias, as
representações do corpo pela palavra são preconcebidas, meras adequações da mesma
imagem. Na contramão dessa trajetória, a produção poética denominada “poesia marginal”,
no Brasil, e os chamados beats, nos Estados Unidos em meados do século XX, resgataram a
convivência da palavra poética com o corpo, no presente vivido, no cotidiano. Esse vínculo
intensificado com o aqui/agora marcaria tanto a palavra quanto o comportamento, e seria um
ato de resistência a esse processo de desvalorização da poesia e massificação da sensibilidade.
11
A arte da palavra é, em ambos os movimentos, uma representação coletiva desse tempo em
que a poesia tensiona seu próprio corpo para sobreviver, como em uma vigília instintiva.
Em performances4 públicas ou em contato presencial com o leitor pelas cidades dos
outdoors, esses poetas/atores urbanos utilizaram vários traços da própria linguagem midiática
em seus textos. Escreveram, imprimiram e se colocaram nas ruas, buscando o residual e o
coletivo de uma palavra poética ancestral, anterior ao seu descolamento da práxis vital. Essa
representação primeira, em sua performance, presença corporal e oral, dialogava com outras
manifestações artísticas e transitava por várias formas de expressão. O desejo de resgate de
uma linguagem múltipla em um mesmo instante seria uma resposta-síntese, uma
intensificação do valor do momento artístico, para se contrapor à banalização e
superficialidade da produção artística industrial que dizima a imaginação e programa as
multidões à esterilidade criativa.
Essa palavra em ação atualizaria também, através do corpo, da atitude, o sentido da
arte enquanto eterna irreverência criadora do ser humano, que perscruta em seu tempo/ espaço
estratégias e táticas para desestruturar raciocínios e práticas dominantes, desvelando novas
trilhas do pensamento que criam novos passos e formatos para a expressão. Ao analisar a obra
de Chacal como um instigante trabalho sobre a fissura da linguagem poética no século XX,
que rompe em vários momentos com os limites dos gêneros discursivos e das expressões
artísticas, identifica-se e descreve-se como se conectam nos textos diversas vozes na era de
uma linguagem midiática, persuasiva, ágil e sintética, que explora a reiteração, os elementos
sonoros e a imagem.
A obra contundente dos “poetas marginais” são produções que reagiram à era da
padronização cultural e da arte como um mero objeto de consumo e construíram expressões
poéticas marcadas pela ação e por criações muito mais integradas ao cotidiano e às outras
artes (a música, a expressão corporal e a imagem). Os papéis tradicionais da poesia e dos
poetas mudaram e tornaram-se mais independentes dos meios hegemônicos de circulação,
alternativos até; desde a concepção ao despojamento da realização, comprovando que a
energia e a pulsão da poesia podem engendrar novos espaços e construções, traduzidos em
movimento, imagem, som e corpo. Essas realizações poéticas, que iam além da palavra escrita
4 A palavra aparece nos limites entre as artes cênicas e as artes plásticas, quebrando convenções estéticas e
éticas, em Zurique, 1916, no Cabaret Voltaire, onde artistas ligados ao Dadaísmo, experimentavam recitais
poéticos, música e leituras de manifestos, resgatando características rituais da arte, tirando-a dos espaços mortos
(museus), trazendo-a para celebrações dionisíacas.
12
e propunham outros lugares e formas para a poesia, eram uma atitude transgressora diante do
processo de banalização da arte para um consumidor passivo.
Desconstruindo ainda a ideia de que o corpo é parte material em contraposição a uma
essência espiritual, os poetas “beatniks”, nos EUA, e os “marginais”, no Brasil, propuseram
uma síntese Waltwhitmaniana5 do homem, da natureza e da criação; criticaram o
maniqueísmo político e a redução do ser humano às ideologias, à burocracia e ao
consumismo.
Assim, ao estudar a obra de Ricardo de Carvalho Duarte, nome de batismo de
Chacal, percebemos uma poesia tão rica de referências à tradição modernista brasileira,
quanto de um imaginário coletivo, artístico e cultural da década de 1970, profundamente
marcado pelos norte-americanos, sua música e sua literatura, inseparáveis de um
comportamento de ruptura/negação do mundo reificado pela sociedade da mercadoria.
Possuidores de uma atitude mais autêntica diante da vida, esses jovens propuseram uma
relação mais sensorial e anárquica com o corpo, acreditando ser ele parte integrante de uma
natureza ultrajada pela produção industrial e pela alienação consumista.
Pensando nas aproximações entre os sentidos e a sonoridade das palavras,
observaremos que, como bem salientou Alfredo Bosi (1993), em seu estudo sobre o ritmo e o
metro, as simetrias e assimetrias no fluxo das palavras e de seus sons fazem a conexão entre o
material e o sensível. O efeito sonoro é muito mais poderoso do que se supõe, ou seja, há nele
uma intensa complexidade semântica. Paul Zumthor (2005) alarga ainda mais a exploração
dessa vocalidade para nos lembrar os traços sócio-corporais contidos na palavra poética.
Portanto, não podemos nos esquivar de repensar o ritmo na poesia dos beats e de Chacal,
enquanto um movimento corporal, que, com sua imagem performática, vai estabelecer
identidades/dissonâncias de tempo e espaço.
Vemos que, na poesia de Chacal, a vertigem beat, uma liberdade e espontaneidade
antropofágica, e uma sintaxe analógica concretista, com sua rica capacidade de acolher as
ambiguidades e operar fragmentos sem finalizações, não vão instaurar para o nosso tempo o
consolo de uma ideia de universalidade humana ou artística, mas vão trazer um incômodo que
desestrutura conceitos previamente demarcados e homogeneidades superficiais. Refletir sobre
seu próprio lugar de poeta e o da arte na dispersão urbana é a opção do autor, que usa muito
5 Walt Whitman (1819-1892), poeta norte-americano, que, por sua coragem humanitária e estilo livre de viver e
fazer poesia, é cultuado por vários dos grandes poetas do séc. XX.
13
dos recursos que essas três poéticas lhe ofereceram e do universo sensível que elas elucidaram
para o adensamento da expressão.
A maneira como esses três movimentos encontram-se praticados nos textos de
Chacal, sua dinâmica, sua tessitura e suas imagens são fundamentais para compreendermos
com mais propriedade toda uma geração de poetas, e suas relações com a tradição e com a
ruptura modernista no devir da poesia brasileira. É importante, para isso, recorrer à discussão
feita por Paz (2013), em Os Filhos do Barro, cuja primeira edição é de 1974, em que a
modernidade é vista como uma tradição de rupturas, de interrupções e retomadas, pois com
esse raciocínio, podemos pensar que os beats, por exemplo, retomaram muitos dos aspectos
transgressivos das vanguardas, e os “poetas marginais” também, assim como reelaboraram a
antropofagia e o concretismo.
Ao relacionar as ideias contidas nos textos aos espaços criados pelos contornos dos
versos no papel, às imagens, ao movimento e ao som, e suas conexões inusitadas com o corpo
e a palavra, identifica-se como esse procedimento é similar ao “verbivocovisual” proposto por
Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, em 1958, no “Plano Piloto para a
Poesia Concreta”. Reconhecemos então em que grau se dá a presença da oralidade, da voz, e
por extensão do próprio corpo na linguagem performática utilizada por Chacal. Para isso,
podemos associá-la também a algumas referências musicais dos anos de 1960 e 70, Janis
Joplin, Hendrix e Bob Dylan, presentes em versos e com importância ideológica na poética do
autor que pertence à geração do “sexo, drogas and rock in roll”.
Com ênfase na materialidade do verso, no ritmo e na sonoridade, Bosi (2004), em O
ser e o tempo na poesia, afirma que “A ideia, no momento em que aporta ao concreto da
expressão (à frase), produz ou reaviva algum efeito rítmico da língua que, em virtude de novo
contexto, se torna significativo. É a análise do estilo que desvenda as correlações possíveis
entre ritmo e sentido.” (BOSI, 2004, p.104)
Há uma presença marcante da oralidade, da voz, e por extensão do próprio corpo,
permeando toda a obra de Chacal, como um desejo de insubordinação ao estabelecido apenas
pela dimensão das letras impressas no papel plano e bidimensional. É nesse espaço que
encontramos a ousadia de uma palavra inquieta, que, apesar de possuir o desejo de uma
totalidade ancestral, performática, que transitava por várias expressões artísticas, fragmenta-se
em vozes e lugares superpostos para representar o caos de um terceiro milênio, com suas
inúmeras posições, formas, contornos e lacunas dos sentidos. Cabe ao poeta, como no
14
proposto pelo dinamismo da palavra-coisa no espaço-tempo da poesia concreta dos irmãos
Campos e Décio Pignatari, arquitetar a cena, montar no texto/espaço/papel formas múltiplas
de expressão do real vertiginoso da modernidade, de um tempo que escapa, que se transforma
ininterruptamente enquanto tentamos apreendê-lo.
Essa estratégia foi usada por Cummings (1894-1962), poeta norte-americano que
encantou Augusto de Campos, e com o qual o poeta paulista correspondeu, traduzindo-o para
o português. Sua leitura se torna importante para entendermos o movimento concreto em suas
relações com uma produção que se marca também pelo trabalho com o aspecto icônico da
palavra. Observar através de quais procedimentos textuais o poeta carioca representa essa
vertigem avassaladora da expressão poética dos finais do século XX é também uma maneira
de discutir o papel da arte que se desestabiliza, que foge do convencional ou ordinário e cria
uma experiência sensível que tenta decifrar intuitivamente o mundo, o homem e suas
contradições na sociedade brasileira, de capitalismo tardio e periférico.
Chacal expressa uma inquietude desestabilizadora de muitas convenções dos gêneros
textuais, como também ocorreu na antropofagia oswaldiana, e constrói uma palavra ágil,
escorregadia, de difícil rotulação. Assim, o dom da palavra performática enquanto
representação cultural, além dos limites de uma só expressão artística, extrapola, na obra do
poeta, o que se espera de um texto poético, estabelecendo ritmos em que os sentidos se
integram, como ele próprio esclarece na primeira página de Belvedere (2007): “Espero que
você, leitor, possa se alimentar e se divertir, possa ler, ver e ouvir.” O autor usa um
vocabulário comum, popular, o de todos, e às vezes o tom, um ritmo binário utilizado traz
uma imediata ressonância percussiva. E nesse trabalho, quase musical, combina temas, formas
e outros ritmos que, de fato, estão circulando diária e espontaneamente na boca das pessoas,
de várias classes sociais. Em A vida é curta pra ser pequena, vê-se:
diz na lata chuta lata vira lata
diz na mão diz no pé diz que diz
todo poder vira lata
todo poder chuta lata
todo poder para lata
(CHACAL, 2007, p.48)
Dessa forma, Chacal evidencia a plurissignificação de expressões, a multiplicidade
dos sentidos que uma cultura pode atribuir a um mesmo significante e a versatilidade dos usos
15
e costumes das palavras no cotidiano. Eagleton (2006) observou que não é especificidade da
Literatura essa “estranheza” da linguagem, como acreditavam os formalistas, já que no
discurso diário utilizam-se os mesmos recursos das figuras de linguagem; ou seja, não
podemos atribuir objetivamente uma qualidade discursiva ao literário. E o poeta joga com
esses conceitos e com os seus tênues limites em construções inusitadas, demonstrando a
sutileza do exercício da poesia e a sua força catalisadora dos sentidos e do raciocínio crítico.
Analisar textos como os de Chacal seria também identificar de que forma a poesia
contribui para uma compreensão mais aprofundada do homem do século XXI. Que reflexões
poderemos fazer, a partir dos textos, a respeito dessa condição humana, em uma sociedade do
excesso, do superficial, do consumo, do desperdício e da pobreza? Não há tempo para o
contemplativo, como já denunciavam os beats. As imagens são torrentes que, como em um
ato de expulsão dos excessos, fazem jorrar as expressões, saturadas, saturantes, que não
cabem mais em si. Ao estudarmos esses processos semânticos e estilísticos, os caracteres e as
imagens que advêm dessas torrentes, as relações que podemos estabelecer entre elas em nosso
contexto social, e de que forma essas imagens estão expressas, encontraremos também
respostas/questões que enriquecerão a compreensão das condições/ expressões das produções
artísticas atuais.
É preciso dar vazão ao excedente, e de uma forma escatológica, nada venerável.
Como na literatura carnavalizada de Bakhtin (1993) que “caracteriza-se principalmente pela
lógica original das coisas “ao avesso”, ao contrário, das permutações constantes do alto e do
baixo (a roda), da face e do traseiro e pelas diversas formas de paródia, travestis, degradações,
profanações” (p. 10). O sério, o cômico, o coletivo e o corporal estão inseparáveis e
reintegram-se na eterna movimentação da ambivalência de se unir ao que se exclui. A
literatura segue aqui novo rumo, já previsto por Zumthor (2005) “A idéia da literatura como
algo venerável, contendo autoridade e valor estético, merecendo uma atenção particular, vai
se esmaecer, sem dúvida.” (ZUMTHOR, 2005, p.103)
Da mesma maneira que a cultura popular e a literatura são exploradas e modificadas
pela indústria cultural, nos versos de Chacal vemos essa interação e sobreposição, mas de
forma tensa, cubista, quase plástica:
new york, fratura exposta, flor obscena de henry miller,
gothan city, babilonest de hélio oiticica, musa de
woody allen, campos de centeio forever
(CHACAL, 2007, p.17)
16
Seriam esses versos o resultado de uma adição de elementos díspares que formam o
imaginário coletivo ocidental? As referências usadas são uma sucessão de imagens do
universo das artes plásticas e da literatura, compostas na mesma cena do cinema, do teatro e
dos espetáculos das multidões. Assim Chacal demonstra como se processam a reutilização de
ideias e a composição de novos objetos, sem que necessariamente se reconheça a matéria de
que são feitos. Para o autor de Belvedere (2007) (como o era para os beats), a criação artística
não seria entendida mais como uma revelação súbita e brilhante dos românticos, mas como
algo residual, que se recompõe de estratos diversos, de vários tempos e espaços diferentes. A
letra e o som, a imagem e a tela, o ritmo e o movimento compõem essa palavra performática
do séc. XXI. Reconhecer, analisar e relacionar esses elementos em sua poesia também será
tarefa de que nos ocuparemos.
Chacal trabalha com essas referências na medida em que mostra, com criatividade,
com uma ironia e um humor oswaldiano, seu processo de criação no próprio ato do fazer
poético. A integração suplanta a fragmentação da era digital, mas os vários elementos
entrecortados estão todos lá, não há em momento algum a tentativa de dissimulação ou de nos
dissuadir da incompatibilidade aparente, e acompanhamos a adição com o ritmo da
respiração, passo a passo. A poesia é colocada então como resultado de uma soma na qual
cada elemento é também suplemento que modifica o resultado; e a inovação não é repentina e
individual, mas gradual e coletiva; não há mais, portanto, espaço ou tempo para a ingenuidade
ou para os purismos ressentidos de uma origem perdida.
Mas, da maneira como é disposta essa soma, não temos como escapar da escansão de
um ritmo engajado aos movimentos do corpo, pois, segundo Bosi, há textos que,
necessariamente, para serem entendidos, transformam-se em voz; ou seja, retornam ao caráter
primitivo da poesia, à sua unidade corpórea; a garganta e a respiração cadenciam por todo o
corpo da palavra que trepida à luz dos sentidos.
Se a presença da cultura midiática é irreversível, sendo de várias formas parte do
cotidiano, aprimorar o senso crítico significa denunciar suas táticas ou assimilá-la de outra
maneira? A leitura literária também depende da mídia? Divertir significa estar de acordo? O
entretenimento é sinônimo de abandono irrefletido? A elaboração da linguagem é uma forma
de opacidade da arte moderna? Se na sociedade da indústria cultural há o predomínio da
imagem do corpo como espetáculo, teremos uma mudança de como ele é representado pela
17
arte e pela literatura? A crítica tem se dedicado a essas reflexões? O conceito de Literatura
está sendo modificado por tudo isso?
Analisar a poesia de Chacal é uma forma de tentar responder a essas perguntas, e
então podemos pensar que a poesia e o corpo mantêm entre si margens mal delineadas, que se
interseccionam muitas vezes. A palavra poética seria sopro, pneuma, ar em deslocamento,
onda sonora, então veremos nela uma síntese do corpo que a pronuncia; ou se a temos como
matéria impressa no papel branco, com seu contorno, sua materialidade, podemos enxergar
seu espaço ocupado traçando silhuetas. Mas se nos debruçamos sobre as poesias de Chacal,
que pertence à geração que colocou o corpo em movimento como a realidade maior da
precária existência, esses elementos se mesclam ainda mais, de tal forma que a expressão
artística e um impulso vital, agônico convertem-se em um só ímpeto.
Discutindo essa atitude performática, Paulo Andrade (2005), em seu texto sobre os
acontecimentos culturais no Brasil após o profético “the dream is over”, revela uma mudança
radical que substitui as grandes rebeliões por um ataque mais sorrateiro ao sistema, próximo
das ações de guerrilha, mais pontuais, com a presença de uma atitude poética repleta de
artimanhas, via resistência e ocupação de espaços em microeventos, que passam a priorizar as
minorias, o cotidiano, o corpo e a sexualidade:
A valorização das sensações, dos acontecimentos efêmeros e múltiplos, favorecia o
desenvolvimento de uma arte do instinto e do gesto. Ao mobilizar recursos do corpo
até a teatralidade, os artistas na virada da década (1960/1970) confirmavam traços
fundamentais da estética pós-tropicalista. (ANDRADE, 2005, p.211)
O interesse em pontuar na obra de Chacal a distensão da palavra poética enquanto
uma reação resultante do processo desestabilizador da tradição na sociedade de consumo é
também nosso objetivo. Sabe-se que a poesia é uma prática simbólica atravessada pela
memória coletiva que, em momentos de crise, como o dos anos de 1960/1970, da sociedade
brasileira de capitalismo tardio e periférico, pode aflorar em sobressaltos bruscos, alimentada
por conflitos que interagem entre si e se sobrepõem. Concebemos essa palavra artística como
uma reconfiguração visceral e abrupta de si, como a de um corpo que se debate em
convulsões febris para sobreviver.
Na era do consumo, a tentativa de traçar uma separação entre os suportes de
produção e divulgação de uma chamada arte comercial e os de uma outra, que conserva a
18
tradição, está cada vez mais fadada ao fracasso. E também, cada vez mais, os espaços fora do
sistema hegemônico são apenas gestos (infinitamente válidos) que tornam sua lógica visível
para provocar inquietações. A própria tarefa de separar parece temerária, pois um corte rígido
pode apenas classificar esses suportes superficialmente; análises mais aprofundadas sempre
nos levarão à valorização do trânsito e da diversidade dos meios pelos quais temos acesso à
arte.
E a tradição vem, desde as vanguardas, sendo questionada como a própria natureza
da arte, do artista e do escritor geniais, que deixam de ser dogmas para terem seus papéis
sociais confrontados. Mas, como afirma Lopes (1994), o problema da legitimação em
literatura vem desde a crise da oposição entre razão e mito, no século XVIII. Haveria, a partir
daí, uma duplicidade na atitude moderna em relação ao conhecimento; a curiosidade e o terror
do Dr. Fausto, de Goethe. Se Deus não é mais o mediador absoluto, resta ao homem um novo
modo de legitimação do conhecimento; a realização científica e seus métodos e processos de
verificação seriam novas formas de legitimar.
Mas se todo ponto de vista é arbitrário, “a verdade não resulta da adequação de uma
proposição a um objeto, mas do jogo de diferenças entre as proposições” (LOPES, 1994,
p.44). Fica então a instabilidade dos valores, os jogos nietzscheanos de força e poder. A
literatura vai explorar esses mecanismos de uma forma privilegiada, por poder incorporar em
seu próprio espaço/discurso essa multiplicidade de vozes e os conflitos de uma realidade
fluida e mutável, e ela mesma não será mais um reduto isolado em meio a tudo isso.
E parte desse processo de incorporação consiste na ampliação dos espaços de
divulgação/circulação do texto poético, como propôs Chacal e o grupo da poesia marginal,
como um gesto que contribui para o enfrentamento da massificação pelo poder, oportunizando
contraposições e disponibilizando o acesso a uma maior diversidade de construções
imagéticas pela palavra. Hoje, a poesia não está somente nos livros ou na voz do poeta; o
corpo está cada vez mais presente em instalações e trabalhos performáticos e as telas servem
de canal para o texto poético. As publicações via internet tornam a veiculação dos textos
independente do crivo da academia, que se baseia, sobretudo, na relação da produção do autor
com a tradição como critério para estabelecer o valor da obra. E alguns escritores, por não se
preocuparem em evidenciar essa relação, e por ela não ser então reconhecida de imediato,
como em Chacal, acabam não sendo valorizados como merecem.
19
E essa sua palavra em ação atualizaria também, através do corpo, da atitude, o
sentido da arte enquanto eterna irreverência criadora do ser humano, que perscruta em seu
tempo/espaço estratégias e táticas para desestruturar raciocínios e práticas dominantes,
desvelando novas trilhas do pensamento, criando novos passos e formatos para a expressão.
Sabemos que essa relação com o corpo é uma marca da arte na contemporaneidade nos cinco
continentes, o que foi demonstrado em profundidade por Veneroso (2012), quando ela
trabalha com a visualidade da escrita e com a relação entre as artes visuais e poesia. Mas essa
conexão torna-se imediatamente evidente também na arte brasileira, se nos lembramos de
produções mais próximas dos anos de 1970, como os Parangolés tropicalistas de Hélio
Oiticica6, ou ainda os mantos cuidadosamente bordados por Artur Bispo do Rosário
7, em que,
em ambos, a vestimenta guarda uma estreita similaridade com a ideia de abrigo, hábito, ou
costume no qual a cultura e a experiência de vida se articulam como produto de códigos,
comportamentos e significados vestidos e praticados pelos corpos e pelas palavras em seus
deslocamentos.
Na obra de Chacal observamos também essa relação de forma rica e criativa; a
espontaneidade e o desapreço aparente pela tradição é uma tática de que o autor se utiliza para
propor um projeto estético afinado com os movimentos de contracultura da década de 1970,
que apresentava exatamente o desejo de reoxigenar a arte em favor de uma experimentação
mais livre, que fragilizasse as bases de uma arte reconhecida como artefato, para propor
sinapses momentâneas e tensas com o tempo da arte da sociedade de consumo. Como em
curtos-circuitos entre a produção de massa, a tradição e a contracultura, ele critica a postura
burguesa de transformar a arte em consumismo, usando recursos da própria linguagem
midiática, como os cortes bruscos da sintaxe, a síntese, a rapidez e o simultaneísmo, o que
poderemos ver também no texto de Hélio Oiticica abaixo, que é transcrito por Paulo de
Andrade em artigo já citado aqui:
6 Hélio Oiticica, RJ (1937-1980), pintor, escultor, artista performático anarquista, cuja obra inovadora é
reconhecida no Brasil, EUA e Europa. Propôs experiências sensoriais, junto com a amiga e também artista
plástica, renomada professora universitária, Lygia Clark. A partir de 1967, usaram processos estimulantes para
buscar, no intelecto e nos comportamentos, respostas além de condicionamentos éticos e estéticos. 7 Artur Bispo, sergipano nascido em 1909, artista vanguardista genial internacionalmente reconhecido, dado
como louco esquizofrênico, foi internado como indigente no Hospital Pedro II no Rio de Janeiro, onde morreu,
em 1989. Bordava zelosamente capas e mantos, usando materiais talvez tão descartáveis quanto ele na sociedade
de consumo.
20
Pintura passou a ser o pet da burguesia conservadora
Cachorro bombom e pintura tapete
cortina ir ao museu à madison vernisagens
simpósios exposições ões ões
coisas inventadas pra dar lugar aos
fracos talentos não inventivos
(OITICICA apud ANDRADE, 2005, p.209)
Esse uso irreverente faz parte dos significados socioculturais dos integrantes da
contracultura, que vão experimentar outras formas de trabalhar com a tradição, mediada agora
pelo instante, que revela, como num flash instantâneo, o passado e a memória, passando pelo
sensorial e involuntário, como as máscaras da artista plástica Lygia Clark, que colocavam o
corpo do espectador participando do objeto artístico. Paulo Andrade diz da importância do
comportamento, do gesto, do instinto e do corpo na elaboração performática da arte dos anos
1970. E todos esses elementos estão esteticamente construídos nos textos de Chacal, que
podem ser pensados, portanto, como preciosa revelação de uma memória coletiva, entendida
aqui como nos propõe Silverstone (2002):
É onde os fios privados do passado se entrelaçam no tecido público, oferecendo uma
visão alternativa às versões oficiais da academia e do arquivo. Essas memórias
inauguram outros textos, não menos históricos que os primeiros, mas, não obstante,
outros. Elas emergem do popular e do pessoal e são o produto de nossos próprios
tempos. Na fluidez de tais memórias, o passado surge como uma realidade
complexa, e não singular; e, como outros já disseram, a pluralidade da memória é,
ela mesma, prova da pluralidade da realidade. (SILVERSTONE, 2002, p.233)
Os elementos de pertencimento e coesão social funcionam em processo de contínua
negociação com as memórias individuais, que estão sempre se manifestando, além mesmo do
silêncio imposto pela ditadura militar dos anos 1970. Portanto, analisar a rebeldia corporal da
contracultura como uma tática desestruturadora do poder de controle ditatorial torna-se
instigante. Como na teoria dos passos perdidos de Certeau (1999), o deslocamento, o sair do
lugar estabelecido enquanto uma prática transgressora é elemento da própria enunciação. Se
vamos ler a poesia de Chacal como uma revisão irreverente de uma memória coletiva,
observaremos que vários tabus orquestrados pela memória oficial durante a repressão serão
vilipendiados, e o controle do corpo para vigiar e punir é o primeiro deles.
Pensando nessas relações, torna-se necessário discutir o próprio sentido do que se
constituiu “Poesia Marginal”, já que o termo passou a ter outras abordagens posteriormente, o
que nos obriga a rever a terminologia, verificando pontos de interseção, contatos e fricções
21
entre os usos feitos pela expressão “marginal” na década de 1970 e outros usos posteriores até
agora, no século XXI. Até mesmo a utilização do termo para se referir aos poetas do
mimeógrafo traz controvérsias, porque há críticos que discordam da inclusão de algum nome
na lista dos poetas marginais, refutando a colocação desse nome no grupo, por acharem sua
poesia mais elaborada que a da maioria dos poetas daquela geração. Ser poeta marginal é
então indesejável, o adjetivo é depreciativo? Ou descreve um conjunto de traços que já podem
ser definidos pela história do movimento, através de afinidades estilísticas, de opções
estéticas, de posições e ações políticas? Acreditamos que pensar no termo como uma
categoria que deve ficar subordinada ao tempo específico em que foi gerada, anos de 1970, é
mais coerente, uma vez que soaria equivocado, por exemplo, chamarmos de poeta marginal,
hoje, um professor universitário cuja obra poética é elogiada pela academia.
Para discorrer sobre a “poesia marginal”, devemos primeiramente fazer algumas
reflexões para não sermos levados a cometer equívocos. Se com o adjetivo pensamos em
jovens poetas que, na década de 1970, fizeram da vida uma experiência poética, e que, através
de uma linguagem coloquial, repleta de ironias e brincadeiras irreverentes, com temas ligados
ao cotidiano, às sensações e vivências libertárias, criticavam o consumismo e o capitalismo
predador, e propunham uma forma alternativa de produzir, distribuir e ler poesia, estamos
usando o sentido mais comum do termo. Mas podemos também pensar em uma poesia que
está à margem da história da literatura oficial, dos manuais didáticos, e nesse sentido, há uma
imprecisão também, uma vez que essa história se modifica em função da crítica, e autores que
em seu tempo não foram suficientemente valorizados, podem adquirir notoriedade a partir de
uma nova abordagem, como Sousândrade (Maranhão, 1833-1902) ou Pedro Kilkerry (Bahia,
1855-1917), por exemplo; e outros, que receberam atenção da crítica no momento de sua
publicação, podem, mais tarde, ser pouco lembrados, como Guilherme de Almeida (São Paulo
1890-1969).
Mas ser “poeta marginal”, para os escritores da década de 1970, significava, além
disso, um intento deliberado de atuar à margem da produção editorial. A tiragem era mínima,
a concepção, criação, feitura do objeto e a comercialização eram independentes. Mas hoje,
vemos pipocarem pelo país várias pequenas editoras, com edições pagas por seus autores,
escritores desconhecidos, desinteressantes economicamente, que também cuidam de todos os
detalhes da editoração, e, da mesma forma, mantêm uma publicação e distribuição à margem
das grandes livrarias e dos comentários acadêmicos, sem que isso os faça marginais, como por
22
exemplo, Código Editora, em Belo Horizonte, Aldrava Letras e Artes em Mariana, ou ainda
Lamparina Editora, no Rio de Janeiro, entre outras.
E há ainda a produção poética de autores que estão em situação de marginalidade
social e que residem em regiões de periferia nos grandes centros urbanos. Em 2008, Érica
Peçanha publicou Vozes marginais na literatura, em que trata de mobilizações de
afirmações culturais da periferia de São Paulo, fazendo análise da revista independente Caros
Amigos, resultado de sua pesquisa no programa de pós- graduação em Antropologia na USP.
E esse interesse pela voz, pela palavra e pela expressão em geral daquele que se declara à
margem da sociedade encontra muita repercussão no momento, tanto na grande mídia, quanto
na academia. Mas as perspectivas agora são outras, não mais aquela do intelectual orgânico
gramsciano da esquerda dos anos de 1960, que queria “dar a voz a”, mas a que ajuda a
construir espaços, ou a que oferece espaços glamourizados para que ela se dê, investida muito
comum na mídia, o que pode conduzir ao esvaziamento da discussão sobre essa complexa
questão, como aponta Santos (2010).
Por outro lado, ajudando a construir espaços a esse frutífero debate, em Belo
Horizonte, na PUC (unidade São Gabriel), em 18/09 de 2012, Elisa Rezende, então
coordenadora do curso de Comunicação da mesma Faculdade, proferiu a conferência “A
periferia como voz emergente,” dando abertura à Quarta Semana de Arte e Política, que
contou com a exposição de trabalhos artísticos, shows e oficinas, que extrapolaram os muros
da universidade e ocuparam também a rua. Rezende afirma abaixo, muito em consonância
com o pensamento de Doreen Massey (2008), autora que reconhece o espaço como “produto
de inter-relações, (...) baseado na existência da pluralidade” (p.29).
Os espaços públicos hoje afastam as pessoas por estarem abandonados ou
monumentalizados. Isso significa que a cidade, lugar primordial onde se travam
encontros, deixa de ter essa função. Por outro lado, nós percebemos a formação de
outros territórios que surgem em torno da palavra ocupar, e chamam a atenção para
essas relações entre o centro e a periferia. (O Tempo, 18/9/2012)
Também ocupando as ruas e ressignificando-as enquanto espaço primeiro de
convivência e cultura, em um período nebuloso, quando qualquer aglomeração era alvo de
suspeita e repressão, em desfiles, com estandartes poemas, o grupo marginal dos anos de 1970
promovia as Artimanhas, performances teatrais, musicais e poéticas coletivas. E Chacal
mantém há vinte anos o Cep 20000, espaço de experimentação poética aberto, onde escritores,
23
músicos, atores e aspirantes encontram um lugar à margem dos espaços hegemônicos para o
exercício de seu ofício, formando lá artistas expressivos e talentosos, como, por exemplo,
Michel Melamed (2005), ator/autor da intrigante e inusitada obra/espetáculo, Regurgitofagia,
entre outros.
Como podemos notar, devemos estar atentos ao significado de “poesia marginal”
quando trabalhamos com o termo, já que podemos estar falando de propostas distintas, que
muitas vezes se cruzam. Se enfocamos a questão editorial para falar dos anos de 1970, estar
“à margem” significava autonomia do artista na produção e distribuição do objeto livro,
significava confeccionar manualmente, de forma rudimentar, imprimindo, encadernando e
comercializando seus próprios poemas. Era de uma opção de ordem ideológica também.
Assim como no movimento beat norte-americano, anos 1950, e o hippie, mais universal, nos
anos de 1960, o jovem queria sair do sistema, ter uma vida fora do consumismo do mundo
capitalista. Esses poetas marginais também queriam construir uma arte alternativa, a partir do
espaço de dentro da cultura, já que os artistas eram jovens de classe média universitária. Mas
até essa marca ideológica pode ser relativizada, uma vez que os próprios poetas divergiam
entre si no entendimento dessas questões. Observem-se depoimentos de alguns deles sobre o
assunto, publicados no livro O que é poesia marginal?, escrito por Mattoso (1981),
considerado por alguns como também “ marginal”. O primeiro depoimento é do poeta é
Afonso Henriques Neto, o segundo, de um integrante do grupo carioca Folha de Rosto, não
nomeado por Mattoso (1981), e o terceiro, Eudoro Augusto:
1- Entendo que o livro deve ser transado pelo autor em todas as suas etapas,
transformando-se assim em um objeto artesanal, no sentido de algo que traga a
marca do artista, ou seja: o poeta deve estar fora da república do poder.
2- Tem muita gente que acha que publicar dessa maneira é uma passagem até
ele conseguir ganhar um nominho e chegar a uma grande editora. Não acho isso, eu
acho que o passo adiante dessas publicações é a criação de cooperativas, dessas
próprias pessoas.
3- Sendo poeta, ser ou não ser marginal. Há quem diga que não existe escolha.
Mas, perdido o acesso às vias de trânsito tradicional (o livro assumido
comercialmente pela editora, exposto e vendido em livrarias, reconhecido por
colunas e suplementos), o poeta de hoje enfrenta e tem que superar, a sua condição
de marginalidade. (...) Mesmo porque, sejamos óbvios e realistas, a vontade de
escrever envolve muito da necessidade de ser lido. (MATTOSO, 1981, p.76-77)
Como podemos notar, há três opiniões distintas sobre a relação entre os poetas e as
editoras: o primeiro tem uma postura à margem por motivos ideológicos, ou seja, faz uma
24
crítica ao poder do sistema capitalista, em que os editores seriam representantes, e coloca o
poeta como aquele que deveria estar fora desse sistema. O segundo critica os colegas que
estão à margem por puro oportunismo, marcando a presença e a vez de entrar, e faz uma
proposta concreta, a criação de cooperativas de autores. E o terceiro já coloca a marginalidade
como uma imposição do sistema, a qual ele deseja superar. Vimos, portanto, que a
homogeneidade passava longe das margens. Há ainda uma curiosidade revelada por Mattoso
(1981), no texto acima citado, que expõe um “centro” de poder investindo na “margem”,
fazendo-a oscilar, o que pode acontecer outras vezes, também em sentido inverso. O poeta
marginal Ulisses Tavares “cedeu” seus poemas a um personagem, também poeta, de uma
novela da Rede Globo na época, O amor é nosso, e passou a receber por isso um bom direito
autoral, nada compatível com a Pindaíba, nome da revista alternativa da qual participava.
A poesia dos anos 1970 estaria então, à margem, por três razões principais: por não
fazer parte do circuito comercial de produção e distribuição, por não ser acadêmica, ou seja,
por não almejar uma aceitação dos críticos dentro das universidades, e por trabalhar com
várias linguagens artísticas, sem que houvesse margens limitando-as, ou seja, pretendiam uma
interação e uma realimentação constante entre a música, o cinema, a poesia, o palco e as artes
visuais, proposta que segue um caminho já começado pelo experimentalismo e pelo
“verbivocovisual” dos irmãos Campos e Décio Pignatari no “Plano Piloto para a Poesia
Concreta”, de 1958, cuja ideia chave está em Maiakovski: “sem forma revolucionária não há
arte revolucionária”.
Mas, se atentarmos também para as relações entre essa poesia marginal e as
principais propostas estéticas das vanguardas, poderemos enxergar várias outras intersecções,
que estão compondo a linguagem, o espaço e o tempo na obra de Chacal. A mais imediata é o
Dadaísmo, em função do humor e da atitude dessacralizadora da arte, que tem como intento
trazê-la para o cotidiano, para a rua, e torná-la uma construção que denuncie a lógica perversa
do mercado. Mas o Surrealismo se torna muito evidente também quando pensamos na
abordagem de Floriano Martins em livro organizado por Guinsburg e Leirner (1995), que
coloca o movimento surreal como uma herança da rebelião romântica, contra o conformismo,
o autoritarismo e a servidão intelectual, e que propunha o questionamento perene da
linguagem e a incorporação do sonho enquanto revolução do inconsciente.
Sendo assim, ao analisar aqui a poesia de Chacal, além de reivindicar para ela um
papel de promissor diálogo com a tradição modernista do séc. XX, é proposto também
25
pensarmos nela como um importante trabalho que enriquece essa tradição, entendida da forma
como propõe Compagnon (2010a):
(...) sistema sincrônico dos textos literários, sistema sempre em movimento,
recompondo-se à medida que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um
rearranjo da tradição como totalidade (e modifica, ao mesmo tempo, o sentido e o
valor de cada obra pertencente à tradição.) (COMPAGNON, 2010a , p.34).
A ideia de rearranjo da tradição que essa compreensão, baseada no texto “The
tradition and the individual talent”, de Eliot, provoca, inclui a discussão da modernidade
como um constante deslocamento entre o centro e a margem / periferia, entre o novo e o
tradicional, e uma reflexão sobre a própria concepção de valor estético, de cânone, ou
originalidade.
Em “A estética à prova da reciclagem cultural”, releitura que Moser (2007) faz dos
mecanismos de repetição e transformação enquanto um gesto reciclador dos bens artísticos,
ele redefine e ajusta a experiência estética da modernidade a partir de novos conceitos e
sensibilidades, como a recepção, a cultura de massa e as novas lógicas de (re)produção;
pastiche, paródia, plágio, reescritura, recriação e reconversão. A estética seria uma
disciplina que estaria sendo reconfigurada a reboque das experiências sensoriais da arte
contemporânea que incluem um canibalismo cultural de origens diversas e os impactos das
novas tecnologias que transformam radicalmente as artes. A estética da reciclagem opera
refuncionando, deslocando, retomando e incorporando, não sem a tensão e o conflito de quem
desafia a propriedade e as hierarquias.
Esses recursos são usados amplamente por Chacal e subvertem, através deles, as
noções de tradição e de ruptura, além do que foi proposto por Otavio Paz (2013), pois esses
limites encontram-se imprecisos e as evidências de identificação de um modelo ou de uma
cópia não podem mais ser localizadas. A performance, como um gesto que (re) incorpora a
tradição ocidental desde as formas pré-literárias, está cada vez mais presente na modernidade;
obras performáticas, como a estudada aqui, vão requerer uma crítica que deixa a pretensão de
verdade ou universalidade, já que a tradição não seria uma herança passível de ser definida ou
fixada. E os estudos literários, para darem conta de obras que denunciam a instabilidade dos
processos de legitimação, não podem se subordinar a uma precisão científica; devem, no
entanto, passar a priorizar o funcionamento da linguagem literária em suas relações dinâmicas
26
com os contextos culturais e suas vozes em movimento constante entre o centro e as margens,
entre a escrita e o gesto, entre o corpo e a palavra.
Estudar textos de artistas como ele, que reinstauram conceitos e estéticas, reciclando
propostas de tempos e espaços diferentes, é atual e necessário, já que através de sua obra
podemos rever na arte da modernidade um desejo permanente de valorização da imaginação
coletiva através de uma palavra que é também atitude. Perseguiremos analisar, ao longo dos
três capítulos desse trabalho, como essa discussão está posta na obra de Chacal, procurando
demonstrar que essa poesia tem uma relação visceral com o corpo.
No capítulo 1, trataremos principalmente das situações históricas e culturais que
envolvem essa questão corporal, inserindo o movimento beat e a poesia marginal na
modernidade como movimentos que levaram essa ideia como forma de rebelião ao
desenvolvimentismo, para, no capítulo 2, discutir como a palavra se estabelece com uma
imagem, um corpo muito próprio; e para, no capítulo 3, mostrar como essa poesia é
performática, traduzindo-se em voz, gesto e movimentos nos espaços físico e cultural.
Para cumprir essa meta, no primeiro capítulo, “Poesia e Margens do Corpo”,
trabalharemos com os conceitos de modernidade, a fim de situar a obra do autor nesse
contexto. Faremos a revisão das ideias de tradição e ruptura à luz das discussões propostas por
Paz (2013), e de paradoxo e contradição, pensando na dialética estabelecida por Berman
(1986) para evocar o período. Ambos raciocínios instauram uma versão muito mais dinâmica
e múltipla para o moderno, diferente da lógica histórica retilínea que uniformiza o tempo em
uma sequência de fatos enquadrados segundo o objetivo de uma análise. O passado habita no
presente e se irrompe de várias maneiras, posturas, hábitos corporais e códigos. A poesia do
autor em foco joga com essas incidências, revelando uma tensão própria do moderno ao trazer
recorrências, incorporações não nomeadas e/ou descontinuidades.
Observaremos também que o termo “Modernismo” aparece no Brasil para nomear
um período da arte diferente do dos hispano-americanos, tão próximos geograficamente e
atravessados também pela mesma questão identitária, a de serem países colonizados. As
formas de interação com a cultura da metrópole seriam também modos de convivência do
“eu” com o “outro”, fruto dos contatos entre a civilização e a barbárie. Os processos de
formação desse imaginário coletivo cindido seriam matéria da constituição de uma postura
“estrábica” da produção centro-sul-americana. O adjetivo usado por Piglia (1991), indicando
o mesmo olhar em sentidos diferentes, instiga a pensar o lugar da literatura dos países
27
colonizados como uma criação à margem em relação àquela dos países europeus, e, por isso
mesmo, com um olhar mais abrangente, capaz de enxergar essa tradição de uma forma menos
centralizadora.
Como um movimento também instabilizador da cultura, os beats estão muito
presentes no trabalho de Chacal como uma resposta/atitude de irreverência de artistas que,
como ele se recusaram a aceitar o desenvolvimentismo moderno e uma ideia de progresso,
marcada, sobretudo, pelo controle de um corpo produtivo. Descrever como esses recursos
estão trabalhados e analisar seus resultados nos levará a identificar todo um conjunto do
imaginário beat, presente na obra de Chacal, sua relação com o corpo, a natureza e o sentido
da civilização ocidental às portas do terceiro milênio. Há uma irreverência brincalhona, que
não perde um esgar trágico, e apresenta uma palavra poética dissonante diante de um sistema
que anestesia os sentidos para controlar o corpo e estabelecer coercivamente seus limites de
ação e movimento no tempo e nos espaços. É de especial relevância estabelecermos um
paralelo entre a forma como o corpo foi tratado no período medieval e como passou a ser
visto e representado na modernidade, porque essas relações estão abordadas tanto na poesia
beat como em Chacal, e também na chamada poesia marginal dos anos 1970.
Há códigos, posturas e hábitos corporais que são construídos por padrões valorativos
ligados à lógica daquele que o poder ou a situação elegeram como aceitável ou recomendável.
Outros que, embora permaneçam fortemente, camuflados ou não, são tacitamente rejeitados e
configuram fator de exclusão ou de marginalização; mas a arte põe esses mecanismos em
suspensão, joga com eles, dando-lhes uma outra visibilidade. Rodrigues (1995 e 2008) nos
fornecerá dados importantes sobre o corpo no período medieval que continuam presentes na
modernidade, sendo que grande parte deles constituem hábitos, principalmente daquela
parcela da população economicamente desfavorecida, mas que seduzem e se tornam presença
constante no imaginário coletivo.
No capítulo dois, “A palavra e outras margens” pretende-se, através de um estudo da
poesia concreta, verificar em que medida as ideias contidas nos textos estão em sintonia com
os espaços criados pelos contornos dos versos no papel e com as imagens, com os
movimentos, os sons e suas conexões inusitadas com o corpo e a palavra. Ou seja, será
trabalhada a palavra enquanto corpo, sua matéria; som, e imagem, de maneira que, muitas
vezes, as noções de forma e conteúdo tornam-se interdependentes. O diálogo com a tradição
será verificado na medida em que nos poemas aparecem similaridades com o
“verbivocovisual” proposto pelos irmãos Campos no Plano Piloto para a poesia concreta.
28
O reconhecimento do grau em que se dá a presença da voz, e por extensão do próprio
corpo na linguagem utilizada pelo autor será de grande valor para relacionarmos os poemas
com as ideias e procedimentos, como o pastiche e a paródia, propostos por Oswald, em seu
manifesto antropófago, e sua valorização do imediato e do cotidiano na recomposição de uma
arte brasileira insólita, irreverente e compósita. Observaremos que nessas teorias
desenvolvidas em “Pau Brasil” e na “ Antropofagia” estão ideias que pretendiam uma
reelaboração da cultura brasileira e uma outra forma de enxergar a tradição. Para discutirmos
essas questões, o texto de Benedito Nunes (2011), que introduz o volume A utopia
antropofágica, de Oswald, e os estudos de Bakhtin (1993) sobre a cultura popular, seus ritos
e cultos, serão de especial relevância.
Os estudos de Perloff (2013) sobre as relações entre forma e conteúdo e a ideia de
construção poética como montagem, já trabalhadas por Benjamin (1985), expõem a
vulnerabilidade dos conceitos de autenticidade e artifício ou de modelo e cópia e trazem
novas luzes para repensarmos o movimento concreto e a poesia marginal como formas
criativas de recuperação das vanguardas europeias; ou retaguarda.
No capítulo três, “Poesia e performance” perseguiremos as marcas de uma
linguagem performática, desse corpo em movimento, e como as vozes da mídia se fazem
presentes nos textos, ao mesmo tempo em que dialogam com outros poetas e artistas dos fins
do séc. XX e com alguns que já anunciavam esses procedimentos no século XIX. Para isso, o
sentido do termo performance como linguagem, discutida por Cohen (2002) e o de
performance como um processo de transformação estabelecido no ato da recepção, proposto
por Zumthor (2007), serão muito esclarecedores.
O movimento tropicalista e suas raízes antropofágicas em processo de valorização da
multidentidade da cultura brasileira, como estão concebidos por Miranda (1997), relacionam-
se sobremaneira com a carnavalização bakhtiniana; o cômico, o riso e a festa. Assim,
verificaremos de que forma os três movimentos abordados nesse trabalho, antropofagia,
concretismo e cultura beat, estão dispostos nos textos de Chacal, relacionando-os a outras
forças constitutivas da poesia e da arte brasileira que vêm se delineando desde o movimento
tropicalista. Também será analisada a importância social, cultural e política do Centro de
Experimentação Poética (cep 20.000) dirigido por Chacal há vinte anos, como uma referência
para a constituição de uma linguagem performática no Brasil, e suas relações conceituais com
uma arte que está sendo gestada e proposta para o século XXI.
29
Fonte: FERRAZ, 2013, p.108-109
A imagem acima é capa de uma publicação do grupo Nuvem Cigana, em 1976, feita
com a técnica da colagem pelos artistas integrantes; Cláudio Lobato e Ronaldo Gorini. Eles
trabalharam com a noção de simulacro, desmistificando a poesia, para propor, com o
“Almanaque”, uma arte mais popular e acessível.
30
2 MARGENS DO CORPO
O pudor e a culpa efetivamente começaram a se ligar ao corpo e à sua visão,
expressando o desprezo pelo carnal que, durante os séculos seguintes, guiaria ainda
mais intensamente a sensibilidade do Ocidente. Entre as grandes revoluções
culturais ligadas ao triunfo do cristianismo e do capitalismo, uma das mais
importantes talvez tenha sido a que se refere ao corpo. (RODRIGUES, 2008, p.160-
161)
2.1 Corpos e dominação
A sociedade ocidental cristã sempre colocou o corpo e a mente como duas partes
opostas do ser humano. Essa visão compartimentada é empobrecedora, pois impossibilita
enxergar o homem de forma mais complexa, e aqueles que propuseram ultrapassar as margens
estabelecidas por essa dicotomia rasa, como Walt Whitman (USA 1819-1892), Allen
Ginsberg (USA 1926-1997), poeta da geração beat dos EUA nos anos de 1950, e Chacal, um
dos chamados “poetas marginais” o Brasil dos anos de 1970, perceberam a limitação desse
entendimento. Há nesse dogma uma intenção explícita de controle do corpo e da feitura da
imagem que se constrói para ele: se a mente é a parte sublime do homem, que se aproxima do
divino, o corpo é a carne, a pobre finitude, o instinto abjeto que deve ser cerceado para que o
espírito possa ascender a Deus.
Ao tecer relações tão estreitas entre artistas de épocas e lugares distintos,
concordamos com o escritor, psicólogo, neurologista e professor, expulso de Harvard, o beat
Timothy Leary (USA 1920- 1996) que, no prefácio do livro Contracultura através dos
Tempos, do mito de Prometeu à era digital, dos críticos culturais Ken Goffman e Dan Joy,
diz da perenidade do fenômeno contracultural. Interessa-nos neste capítulo demonstrar como
esse fenômeno se constitui desde o século XIX até o contexto do autor em foco, por acreditar
que a obra de Chacal se insere em uma produção literária que vai se afirmando, desde os
oitocentos, contra um positivismo que racionalmente quer estabelecer os limites entre o corpo
e a mente. Trabalharemos com autores e textos que desmancham, de alguma forma, esses
limites, expondo concepções e sensações em que não é mais possível estabelecer as margens
com segurança.
31
A contracultura, em vários momentos, resgatou valores e imagens do corpo que são
anteriores à era capitalista. Em meados de século XX, afirmou-se também como um
movimento que se interessava pelo poder das ideias, das imagens e da expressão artística, não
por um poder político partidário ou pessoal. A partir desse entendimento da contracultura,
percebe-se que ela não possui forma ou liderança fixa e é tão velha quanto a civilização:
A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade
escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e
comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a
verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma
forma ou uma estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a
perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma
em outra e desaparece. (GOFFMAN; JOY, 2007, p.9)
Dessa forma, podemos pensar em alguns românticos e simbolistas, nos surrealistas8,
nas vanguardas artísticas europeias, nos movimentos socioculturais dos anos de 1950/60, e na
própria poesia marginal dos anos de 1970, que se empenharam na libertação dos corpos e da
imaginação diante de abnegações, como exemplos de contracultura. Tais posturas, cada uma
com sua especificidade histórica, seriam uma resposta, uma cobrança de expansão do que, no
Iluminismo, foi definido como direito democrático liberal.
Pensando nesse argumento, podemos nos lembrar de que Whitman foi muito
criticado e perseguido pelos moralistas do século XIX por explorar magistralmente a
completude do humano, em contraposição a essa limitada percepção do corpo e dos instintos
dos reacionários puritanos que o ofenderam e denegriram o valor de sua arte. Ele duvidava
desses limites convencionalmente colocados, que não se sustentam diante da complexidade da
experiência humana. A totalidade do ser via-se sempre dividida, como o próprio corpo entre
interdições, para o melhor domínio dos poderes exercidos sobre ele, como bem demonstra
Foucault (2000b) em Vigiar e Punir, quando aborda, no séc. XVIII, o nascimento de uma
mecânica de controle para um corpo útil e dócil como uma nova forma de dominação:
8 O surrealismo, entendido como “um desvio do verdadeiro caminho da vanguarda” (PERLOFF, 2013, p.109)
está em desacordo com as ideias originais trazidas por Floriano Martins (apud GUINSBERG, 1995) sobre o
movimento, que traz seu antagonismo em relação ao positivismo, e a ideia de sua permanência e continuidade
como um despertar que rompe com o conformismo, inclusive político, para buscar uma realidade sem limites,
“que requer do poeta um mergulho mais intenso nos abismos da criação”. Um surrealismo entendido como
centrado apenas no inconsciente do autor é equivocado, pois parte de uma idealização que não percebe o
trabalho intenso feito com recursos como a ambiguidade sintática e semântica e um viés muitas vezes irônico e
erótico que pode ou não estar ligado a uma filiação em suas relações dinâmicas com os fenômenos urbanos, com
a tradição e a ruptura, como desejamos enfatizar aqui.
32
Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha e o recompõe.
Uma anatomia política que é também igualmente uma mecânica do poder está
nascendo. (FOUCAULT, 2000b, p.119)
Na Idade Moderna, e mais acentuadamente a partir do advento do capitalismo da era
industrial, o tempo se converterá em mercadoria; a famosa mais-valia de Karl Marx nada mais
é que a exploração dos corpos de uns tantos em favor de uma minoria privilegiada e poderosa.
E a arte entenderá esse mecanismo melhor que qualquer estudo lógico porque chegará até
suas variadas nuances e contradições, muito além das dicotomias rasas, pois enxerga um
poder também constituído nas lutas cotidianas, através de engrenagens e discursos produzidos
no corpo social, não somente pelo Estado, mas por redes “microfísicas” no interior dos
espaços vividos, permeando as relações e os saberes. Essa é outra lição de Foucault (2000a),
que, em Microfísica do poder, aborda os níveis elementares das configurações e dos espaços
institucionais que, eficazmente, articulam seus poderes em pequenas e variadas áreas de
atuação: na medicina e psiquiatria, na justiça, na geografia e arquitetura, e na educação, onde
intelectuais e técnicos, no exercício prático de suas atribuições, operam capilarmente,
anonimamente, penetrando (muitas vezes através das brechas do não dito), sem nenhum ponto
específico, para produzir objetos, espaços e verdades que têm como alvo a fabricação de
corpos para o capital.
Poderemos ler na poesia de Whitman, na do beat Allen Ginsberg (2010b),
exemplificado aqui com o poema O Uivo, e em especial, em Chacal, na obra reunida,
Belvedere (2007), objeto deste estudo, a rebeldia das palavras de sujeitos que se deslocam por
caminhos inexplorados, que burlam o entrelaçar dos pontos para romper com a lógica dessas
redes. Usam táticas de linguagem, recursos tão imprevistos que trazem à poesia outros passos,
outras vozes muitas vezes sufocadas, resíduos decantados nas trilhas do tempo, como na
teoria dos “passos perdidos” de De Certeau (1999). Nela, o original teórico da indisciplina,
demonstra como a rebeldia de deslocamentos espácio-temporais pode se apresentar no próprio
espaço da enunciação, através de operações linguísticas imprevistas, como o uso do
descontínuo e do fático, que condensam, fragmentam, dilatam e distorcem os sentidos
racionalmente produzidos, o que ele denomina “errância semântica”: “As figuras são gestos
dessa metamorfose estilística do espaço”. (CERTEAU, 1999, p.182).
33
Esses recursos são utilizados largamente por Chacal; como que processando gestos
semânticos impertinentes, desautomatiza a linguagem e traz uma representação de
deslocamentos irreverentes e transgressores, de corpos que vibram em movimentos
inusitados, revivendo uma experiência ancestral, como podemos ver no poema abaixo,
publicado em 1979, em Nariz Aniz:
Solo
não era dia. um bebê me acordou chorando. em torno
do choro, o cheiro estragado, cigarros, pedintes.
voltei a dormir. o dia não era, e sonhei pessoas novas
em sonho. som de guitarra, pivetes dançando. zazueira.
stop in.
já era dia. o corpo murrinhava contrariado. mudei a
camisa vagarosamente. e andei com quem sai. saí.
as ruas amanhecidas. se chamava Feira de Santana. a
feira botava as mangas de fora. descansei o cansaço.
cigarro entre barracas. laranja, melancias farejavam o ar.
cheirava bem o dia agora. o sol tilintava o frio da pele.
o sol vai esquentar me aquecer o excesso sujo. se quiser.
Ônibus feira-salvador 29/sábado, 6:00 de janeiro desse
ano enquanto a bahia se aproxima e as frutas recendem
(CHACAL, 2007, p.219)
Há em todo poema uma preocupação insistente em marcar o tempo e o espaço, mas
ela é posta de duas formas diferentes. Primeiramente, há um esforço em caracterizá-los
através das percepções captadas pelos sentidos; cheiros, sons e sensações da pele. Mas esses
dados são insuficientes, uma vez que as sensações não fornecem condições para mensurar e
estabelecer racionalmente o entorno e a marcação temporal; então o eu lírico se debate
paradoxalmente para fazê-lo: “não era dia” (verso 1), “dia não era” (verso 3), e, finalmente,
“já era dia” (verso 6).
Logo que o dia começa, vem a recusa do corpo em ser disciplinado, resoluto e útil:
“o corpo murrinhava contrariado” (verso 6), e com preguiça: “descansei o cansaço” (verso 9),
pecado capital, tanto para o cristianismo quanto para o capitalismo. Então, o eu lírico quer
mudar a camisa devagar (a roupa que o encobre e abriga? o costume? O hábito? ou tudo isso?)
e encena o que de fato faz: e “andei como quem sai, saí.” (verso 7) O poeta é um simulador do
real, e ele finge tão completamente que faz aflorar outro tempo e outro espaço no mesmo,
trazendo a contradição entre um mundo linear e cronologicamente traçado e outro, em que os
sentidos estão em primeiro plano e a vida frutifica a céu aberto. A senha para adentrar nesse
34
segundo espaço-tempo é a feira, não aquela mapeada cartograficamente pelo conhecimento
racional, “Feira de Santana” (verso 8), mas aquele substantivo comum, espaço atávico, em
que tudo e todos (choro de bebê, pedintes, pivetes, cheiro estragado), sem exclusão,
participam e comungam do prazer e da festa (som de guitarra, pivetes dançando, zazueira), e
usufruem da gratuidade do calor e da luz solar que “vai esquentar o excesso sujo” (verso 12).
Essa sujeira não está localizada somente no corpo do poeta, mas envolve todo o ambiente, da
mesma forma que o cigarro e as frutas exalavam , ou personificadamente “farejavam o ar”
(verso 10).
Curiosamente, na segunda estrofe, todo esse clima onírico das sensações corporais se
desfaz abruptamente, para que o tempo e o espaço precisos e racionalmente postos se
coloquem: “ônibus feira-salvador 29/sábado, 6:00 de janeiro desse” (verso 13). Mas logo no
verso seguinte, a rebeldia da palavra poética consegue compor um outro espaço, intervalar,
um entrelugar no mar de nossa sociedade racionalmente esterilizadora da diversidade e da
imaginação; a criação, a poesia. A “bahia” (verso 14) não é aquele lugar na geografia dos
mapas, formatado pelas convenções cartográficas, mas o substantivo comum, feixe de terra
que sustenta tanto a comunhão dos seres em seu espaço, solo em que pisa, quanto o canto do
poeta, solo.
Em uma espécie de limbo, condição intermediária entre o sono e a vigília, o eu lírico
sonha “pessoas novas” (verso 3). Mas esse sonho não exclui o que normalmente descartamos
em nossa sociedade higienicamente segregadora: “choro, cheiro estragado, pedintes, pivetes”
(versos 2 e 4). A inclusão inusitada desses elementos, o tempo não marcado com a precisão
dos relógios, o espaço não linear e as sensações corporais colocadas em primeiro plano trazem
dados de uma outra sensibilidade, anterior à nossa, antes da dicotomia entre o sujeito e o
objeto, o público e o privado, os dejetos e a matéria, os adultos e as crianças, o real, o
conhecimento e a imaginação, o corpo e a mente e, principalmente, entre os indivíduos, que
compartilhavam de espaços coletivos e formavam um todo, um cosmo, e que hoje estão cada
vez solitários, solo.
Rodrigues (2008) faz uma análise antropológica das representações sociais do corpo
humano na cultura ocidental, dos fluxos que configuraram sensibilidades e mentalidades. Para
isso, faz um recorte estratégico do mundo medieval, por acreditar que a cultura capitalista e,
posteriormente, a cultura industrial, em seu intuito de modernização e higienização diante das
novas descobertas da medicina, voltaram-se contra os padrões de comportamento corporais
presentes no medievo. Especificamente a respeito do Brasil, o autor explica que, durante a
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colonização, Portugal e os portugueses que primeiramente aqui chegaram não estavam muito
em dia com o capitalismo internacional nascente. Ainda embebidos da cultura medieval,
imprimiram suas marcas na sensibilidade, nos hábitos e práticas de toda população,
especialmente nas classes populares, pois “conforme descemos na escala social, a diferença
entre a vida moderna e a medieval vai rapidamente diminuindo” (RODRIGUES, 2008, p.18).
Aqui, os desfavorecidos economicamente, os descendentes dos negros e índios,
escravizados e explorados, serão adversos a mudanças dos costumes que tentavam ser
implantadas, e os últimos a abandonar os padrões de comportamentos considerados pouco
higiênicos, como a mistura dos corpos de bichos, pessoas e das substâncias expelidas por eles,
que seguirão rechaçadas. Concepções mais modernas de assepsia e saúde irão implantar aos
poucos outras formas de intermediações entre os corpos e o ambiente, preocupadas,
sobretudo, com os limites entre o fora e o dentro, estabelecendo controles mais rígidos de
separação entre os seres, as matérias, e os espaços.
Em Higiene e Ilusão, Rodrigues (1995), já advertia que padrões antigos, fortemente
arraigados, permaneceriam ainda, por muitos séculos, como uma atitude, uma postura mais ou
menos inconsciente de rebeldia e preservação de uma identidade e um modo de viver
perdidos. Chacal, no poema Solo, estudado aqui, revive nessa feira quase medieval,
sensações corporais em que uma comunhão tão intensa com o ambiente e seus seres nos
remetem a um mundo, que embora seja o daqui, agora, é também o de um passado longínquo
que quer ser negado:
O corpo medieval nos oferece um referencial a partir do qual podemos entender esta
sensibilidade aos cheiros, aos contatos tácteis, ao prazer e ao desprazer, aos gostos:
trata-se de um outro corpo. De um corpo para o qual não existe a sensibilidade à
idéia que hoje temos de lixo- como algo em relação a que se deva tampar o nariz,
fechar os olhos, afastar o contacto táctil, responder com engulhos e cara-feias. Isso
que causa nojo e temor aos nossos corpos hoje, causava riso, familiaridade,
intimidade, à sensibilidade medieval. (RODRIGUES, 1995, p.35)
Mas, se bem antes, nas sociedades agrárias mais primitivas, era o tempo cíclico da
natureza que ditava a rotina das vidas, como estudamos em Mircea Eliade (1985); na
sociedade medieval, a igreja vai computar o tempo e os corpos em seus rituais; o sino da
alvorada, a hora da Ave Maria, o batismo, a primeira comunhão, o casamento e a extrema
unção. São concepções temporais diferentes, definidas nas práticas culturais que imprimem
nos corpos e nas relações entre eles e o espaço natural marcas indeléveis. E a poesia,
36
encarnando o atemporal do instante em que é criada, fala de marcas que vão sendo gravadas
na imaginação coletiva e em seu devir através de tempos e espaços diferentes, mas que ali,
naquele momento, apresenta outra imagem da experiência humana, outro real, e, como afirma
Octavio Paz em O arco e a Lira: “faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente”.
(1982, p 133)
2.2 Modernismos
A Literatura revela tensões humanas adiante e propõe reinvenções de ideias e
sensações às vezes perdidas no tempo, operando resistências a obviedades, recusando sempre
o imediatismo do discurso ideológico vigente, ou formas maniqueístas, muito bem marcadas e
unânimes de contraposição a ele. Esse princípio acaba recuperando práticas significantes que
foram marginalizadas pela hegemonia da cultura oficial europeia. Chacal e os participantes da
poesia marginal dos anos 1970 foram desvalorizados por muitos críticos de renome em função
de suas recusas; a começar pelo desapego a grandes projetos ou ambições, muito próprios do
espírito desenvolvimentista da modernidade, ou ao desprezo por um prestígio intelectual das
academias, também muito próprias da modernidade, que compartimentam os saberes para
melhor dominá-los. É uma atitude de rejeição a um sistema que não os aceitava.
Luiz Guilherme dos Santos Júnior (2014), ao fazer uma revisão da poesia marginal,
cita um texto de Fernanda de Medeiros, de 1998, em que ela arrola as críticas negativas
sofridas pela poesia marginal: Affonso Romano, Lixeteratura, Benedito Nunes,
Miserabilidade, Costa Lima, viagem egolátrica, Flora Sussekind, não exatamente literatura,
mas intimidade, confissão, e Dantas/Simon, veemente sentimento de desliteralização. Santos
Júnior (2014) concorda com Medeiros (1998) ao afirmar que os críticos citados ainda estariam
muito apegados aos princípios de literariedade propostos pelo formalismo russo, e que não é
dever da crítica a “barbarização” de uma estética através da imposição de um discurso.
Medeiros (1998), dialogando com Moriconi (1995), propõe seguir as relações de
amor e ódio pelos marginais para uma reflexão mais amadurecida, já que eles “passaram no
teste do tempo” (p.54), e traz questionamentos e algumas respostas muito interessantes: Por
que incomoda tanto o fato de os poetas se referirem às circunstâncias banais, imediatas, de um
37
corpo comunicante, do vivido? Se Cabral é considerado um ponto que é difícil ultrapassar (O
que fazer, depois de Cabral? (MORICONI, 1995, p.737), a literatura teria então uma linha
evolutiva, e a poesia marginal seria uma regressão? A poesia em si já é marginal, pois ela
opera com o desvio, a invenção e o estranhamento. O espaço individual, que os poetas
insistem em revelar, não seria exatamente a recriação de um confinamento que sufocava a
todos nos anos da ditadura? A proposta de uma liberdade corporal e a da linguagem, como o
baixo calão e o coloquialismo, não seriam, portanto, reações políticas inventivas, um outro
exercício de militância?
Eduardo José Tollendal (1986), em dissertação sobre a contracultura e a poesia
marginal, comenta que, desde a primeira instância de legitimação desse discurso, quando ele
ainda não havia sido batizado de marginal, em 1973, Affonso Romano de Sant’Anna
organizou a EXPOESIAS, gerando comentários do tipo: “Isso é poesia?”. Para pensar em
respostas menos preconceituosas que a pergunta, Tollendal (1986) recorre às funções da
linguagem, propostas por Jakobson, e à autonomia do signo poético como um desvio
semântico, em função de um novo eixo sintagmático, em que há uma outra unidade de
sentido, não uma cópia do real, ideias difundidas pelo círculo linguístico de Praga, em 1929.
O autor fala da necessidade de substituição do termo poesia para discurso poético, com o
objetivo de propor uma discussão de aspectos mais descritivos do texto poético, diminuindo
assim a ingerência absoluta dos critérios de valor. A velha questão da prioridade de ênfase no
estudo da forma ou do conteúdo para a análise do literário deve ser deslocada para se pensar
na própria estética do texto como um todo dialético, suas funções sociais e políticas, suas
capacidades comunicativas dentro do universo cultural.
Os poetas marginais seriam, nos anos de 1970, criticados por dois lados; pelos
professores da academia citados por Santos Júnior (2014), por estarem à margem do cânone
ao usarem linguagem e temas do cotidiano, e pela militância da esquerda na época, por não
possuírem um discurso politizado do CPC (Centro popular de cultura), ou não promoverem a
chamada poesia engajada aos projetos sociais da UNE, como os integrantes do grupo “Violão
de Rua”, a exemplo de Poemas para a Liberdade, de Moacyr Félix, publicado em 1962.
Mais de um século antes, com uma linguagem também muito simples, limpa de
adornos, clara, Whitman desconcertou, da mesma forma, o que se esperava de uma “poesia” e
a moralidade rígida e individualista do século XIX, para oferecer uma concepção cósmica de
um corpo universal e indivisível, que é vivo, feito de matéria que se renova e fecunda a vida
através da morte. Essas convicções do poeta não estariam, portanto, muito mais próximas,
38
como em Chacal, dos elementos da cultura popular medieval, de que nos falou Rodrigues
(1995, 2008) e de que nos fala Bakhtin (1993), que de um calvinismo ou presbiterianismo
protestante de seu momento histórico?
(...) entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos
órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto,
a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava
o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. (...) o baixo terra que dá a
vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo. (BAKHTIN, 1993, p.19)
E os valores culturalmente estabelecidos pelo ocidente para a parte de cima do corpo,
em oposição às de baixo (nada nobres) são colocados em xeque pela rebelião da poesia, e
saem pela voz do grande poeta norte-americano por palavras que os desafiam:
Através de mim as vozes proibidas,
Vozes dos sexos e dos desejos, vozes veladas e eu retiro o véu,
Vozes indecentes por mim esclarecidas e transfiguradas,
Não ponho os dedos sobre a boca,
Trato dos intestinos com a mesma delicadeza com que trato da cabeça ou do
[coração,
A cópula não é mais corrupta para mim do que a morte.
Acredito na carne e nos apetites,
Ver, ouvir, sentir, são milagres, e cada parte e fragmento de mim é um milagre.
Divino eu sou por dentro e por fora, e torno sagrado tudo aquilo que toco ou por que
[sou tocado,
(WHITMAN, 2000, p.46, tradução de André Cardoso)9
O próprio princípio da sensibilização do corpo, em Whitman (2000), já é bastante
inovador para o momento e lugar, e mesmo que ele não tenha trabalhado com o riso
carnavalizado do medievo, como nos ensina Bakhtin a respeito do período, somente a alegria
de festejar a vida, a sensação do divino corporalmente vivenciada, do maravilhoso natural, a
visão da morte como complementar à vida, e a busca do prazer corporal sem o limite estreito
do pecado e da rigidez moral, já trazem uma concepção de vida bem diferente das etiquetas
da decência puritana da época.
9 Through me forbidden voices / Voices of sexes and lusts, voices veil’d and I remove the veil / Voices indecent
by me clarified and transfigur’d / I do not press my fingers across my mouth, / I keep as delicate around the
bowels as around the head and heart, / Copulation is no more rank to me than death is / I believe in the flesh
and the appetites, / Seeing, hearing, feeling, are miracles, and each part and tag of me is a miracle. / Divine am
I inside and out, and I make holy whatever I touch or am touch’d from, (WHITMAN, 2000, p.46)
39
Veja-se como Chacal também trabalha com esse sentido do prazer sexual como
responsável pela continuidade da vida, um jogo em que esse prazer se aproxima da dor, em
que uma visão escatológica do corpo como matéria a ser decomposta e disseminada em nova
vida não perde o tom de uma alegria irreverente que imprime à existência um clima lúdico, de
risco, como o próprio jogo amoroso; e irônico, descarta completamente a inocência ou
qualquer forma de pureza ingênua:
Ninguém é inocente
no doce regato...
...esvoaça a libélula...
...o colibri pipila...
...beija flor o beija flor...
...bzzz besouro bzzz...
...a minhoca se penteia...
...nada o peixinho...
... que clima inefável...
-ah !!!
-eh!!!
-ah !!!
-êpa !!! que som tenebroso é esse?!
-é o lobo mau comendo a chapeuzinho vermelho!
reparando bem:
!!! o peixe abocanha a minhoca!!!
!!! o colibri chupa o tutano do besouro!!!
!!! o beija-flor deflora a libélula !!!
-oh!!!
-ih!!!
-oh!!!
- que som mavioso é esse???
- é chapeuzinho vermelho gozando...
(CHACAL, 2007, p. 64-65)
Um conto de fadas, com origens também medievais no séc. XIV, criado com uma
forte conotação sexual, nada apropriada às crianças, didaticamente modificado e direcionado a
elas pelos Irmãos Grimm no séc. XVII, foi colocado aqui demonstrando o quanto cada
imagem pode ser concebida de formas tão díspares, dependendo das lentes de quem a vê. A
paródia feita ao conto nos remete ao sensualismo medieval e aos corpos censurados ao mesmo
tempo em que traz uma crítica brincalhona ao famoso locus amoenus dos árcades e
românticos. As interjeições, por exemplo, serão tenebrosas (verso 12), ou maviosas (verso
40
21), se ouvidas por quem as percebe ingenuamente, ou por quem está reparando bem (verso
14).
É que a poesia faz os sentidos vagarem pelo tempo, voltarem a um mesmo
modificado, saltarem e rodarem em ciclos, agrupando realidades múltiplas. O tempo na poesia
possui, muitas vezes, uma inconsistência que o afasta do cronológico e da lógica útil, da
precisão, para trabalhar com uma consciência mais onírica, que vem de longe e se aproxima
dessa visão cósmica da relação homem/ natureza/ instinto que enfatizamos aqui.
Alfredo Bosi (2004) ressalta o quanto essa rebelião ao utilitário de que a poesia é
capaz a afasta do discurso ideológico do capital, trazendo em si mesma um senso
demasiadamente libertário, atemporal, ao mesmo tempo em que se posiciona como um
discurso eminentemente humanista e histórico. Essa aparente contradição é a sua marca, sua
vocação:
O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis. Na verdade,
é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente.
Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais
vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma
outra existência, mais livre e mais bela. (BOSI, 2004, p.226)
Essa mesma vocação que aparece em Whitman (2000) e em Chacal (2007) foi
também trabalhada pelos poetas beats no final da década de 50, quando os EUA saíam à
frente como a grande nação do ocidente diante de uma Europa esfrangalhada pelas guerras.
Um excesso de confiança numa economia engrandecida também pela indústria e comércio
bélico, o maravilhoso american way of life seria o tom da maioria que, além de aplaudir a
guerra fria e o macartismo, concebia o liberalismo capitalista como a única forma viável de
organização econômica e social. Mas a poesia é a palavra da dissensão, da inquietação, e traz
e faz, como nos ensina Octavio Paz (1982) em O arco e a Lira, o que escapa, o que vai além,
o que não é daqui e agora sendo aqui e agora, essa eterna pulsão de vida e morte que faz o
humano ser aventura e desejo.
Quando Allen Ginsberg, em 1955, lê a primeira parte do poema Uivo, na Galeria Six
em San Francisco, provoca aclamações e escândalos, não a indiferença. Era um deslocar do
eixo racional que incomodava porque expunha o que todos queriam não enxergar; a angústia
existencial diante do vazio da civilização “moderna”, e a consequente meia-volta para a outra
parte, aquela recortada pela moral cristã para ser censurada. Surge então o corpo por inteiro;
41
os instintos, o gozo e a dor, a intuição sensitiva levada a êxtase pelo uso das drogas, a procura
insaciável pelo prazer.
A publicação do poema no ano seguinte pelo corajoso editor Ferlinghetti (que foi,
inclusive, o primeiro a editar nos EUA o surrealista francês maldito, Artaud e sua exaltação à
cultura primitiva e selvagem) vai gerar um processo judicial por pornografia contra ele, mas
sua divulgação e a do movimento beat em função do mesmo processo será enorme. Não
podemos deixar de associar tais repercussões à obra de Whitman, que sofreu acusações bem
semelhantes praticamente um século antes. E podemos concluir então que a passagem de cem
anos não trouxe tantas e tão significativas alterações nas convicções morais dos norte-
americanos...
E já na primeira metade do séc. XX, as vanguardas artísticas europeias proporiam
liberdade de criação em relação aos clássicos, expondo um sentimento de saturação, um
desejo de sair do caminho repetido. Podemos ver, tanto nos manifestos vanguardistas quanto
em ambos poetas norte-americanos estudados aqui, essa mesma intenção; reagir aos padrões
de comportamento em relação às concepções de sentido do próprio ser corporal posto e
referendado no espaço, e é esse um ponto comum no que consideramos arte moderna. Mas o
termo aqui não pode ter o sentido específico que usamos no Brasil para conceituar a produção
pós-vanguardas e pós-semana de arte moderna de São Paulo em 1922, já que Walt Whitman,
por exemplo, dezenas de anos antes (a primeira edição de Leaves of Grass se deu em 1855), já
inventava o verso livre e trabalhava com temas e formas que normalmente são atribuídas aos
modernistas aqui.
E ele não foi o único. Na língua hispânica, também no século XIX, temos outros
autores que vão trazer mudanças substanciais, tanto na forma quanto no conteúdo. Rubén
Dario (Nicarágua, 1867-1916) e o cubano José Martí (1853-1895) falariam da tensão moral e
da debilidade humana para tentar explicar o sentido da vida e do mundo, passando muitas
vezes por um niilismo abismal, um desestruturar (como as vanguardas também proporiam dali
a algumas décadas) que buscava a afirmação de uma ação construtiva na palavra artística,
considerada uma unidade exemplar, apesar de todas as suas contradições. “Há que se
reconhecer o inescrutável do mistério e trabalhar bem” (JIMÉNEZ, 2005, p.22, tradução
nossa),10
disse o poeta José Martí.
10
“Hay que reconocer lo inescrutable del misterio, y obrar bien”. (JIMÉNEZ, 2005, p.22).
42
Para os hispânicos, portanto, o modernismo começa nos finais do séc. XIX, no
período que geralmente rotulamos de simbolista. Surge com a consciência de uma memória
cultural fragmentada, em que as colônias enxergariam uma outra forma de manejarem a
tradição, apropriando-se da cultura europeia quando e onde ela se encontrava, não como um
passado cristalizado, mas como um ponto de partida tenso e cindido. O nicaraguense Rubén
Darío seria o primeiro latino-americano a ousar formas e métricas variadas, consideradas
modernas; passando por reflexões esotéricas e existenciais, chegaria ao corpo sensorial e
erótico, e a novas leituras do passado medieval e do período pré-colombiano. E José Martí,
envolvendo-se até a morte na luta pela independência de Cuba, tensionaria a palavra poética à
reflexão em torno da liberdade do jugo europeu.
2.3 Modernidades
Marshal Berman (1986) faz um importante estudo sobre os conceitos de
modernidade e modernismo que vale a pena ser lembrado aqui em função de sua referência
muito mais ampla ao período, salientando, como estamos propondo aqui, o controle do corpo
como uma outra relação entre a vida prática e as ideias no nascimento da nova divisão social
do trabalho. Menciona como a procura romântica do autodesenvolvimento foi colocada ao
lado de um esforço de desenvolvimento econômico que passava necessariamente pela questão
política. Essa nova dinâmica criada através de uma complexa organização das ações sociais
refaz o espaço físico natural. As pessoas que estariam no caminho dessa história
desenvolvimentista, dessa ideia de progresso, e que, de alguma forma não interessavam ao
resultado final, seriam tragadas, descartadas, consideradas obsoletas. A modernização cria
assim, através da arrogância, um ambiente homogêneo, um espaço em que as marcas do velho
mundo devem desaparecer sem deixar vestígio; não se pode olhar para trás, pois a vinculação
com o passado aterroriza.
Esse desejo totalizante e irrefletido de se pensar grande e tornar tudo coerente faz
escapar as dinâmicas do cotidiano, e torna o mundo lugar inseguro para quem não cabe nessa
conexão lógica centralizadora. Esse pressuposto de unidade entre vida, experiência, classes
sociais e indústria vai na contramão da existência humana e de suas contradições irreparáveis.
Berman (1986) esclarece:
43
Cabe notar que esse senso de totalidade vai contra a granulação do pensamento
contemporâneo. O pensamento atual sobre a modernidade se divide em dois
compartimentos distintos, hermeticamente lacrados um em relação ao outro:
“modernização” em economia e política, “modernismo” em arte, cultura e
sensibilidade. (...) A cultura e a consciência modernistas quase sempre remontam à
geração de 1840 – Baudelaire, Flaubert, Wagner, Kierkegaard, Dostoievski
(BERMAN, 1986, p. 87)
O próprio título do livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”, retirado do Manifesto
Comunista de Karl Marx, pensado a partir da premissa de que Deus não existe, já desaloja a
ideia de que é possível um centro único, e propõe, dramaticamente, as profundas contradições
entre a cultura modernista e a modernização da economia empenhada pela sociedade burguesa
a partir do século XVIII, que passará a controlar todos os meios de produção, inclusive da
cultura.
Baudelaire (Paris, 1821-1867), como salienta Berman (1986), já bem sabia no século
XIX perceber a distinção entre o progresso material modernista e a vida do homem em sua
existência atribulada, embora já relacionasse, com um vigor incomum para a época, o fugidio
e a vertigem que advêm dessas explosivas transformações para a sensibilidade humana. O
homem na multidão e suas performances pela cidade, a convivência do luxo com a miséria,
temas recorrentes em Baudelaire, estarão presentes nos estudos de Walter Benjamin
(Alemanha 1892-1940), um dos mais respeitados filósofos da modernidade, que morreu
tragicamente fugindo dos nazistas. Benjamin e Baudelaire anteciparam a compreensão da
ambientação moderna como causa de uma angústia que traria uma sensação corporal do
abismo, como aquela explorada pela pintura “O Grito”, do norueguês Munch, em 1893 ou
pelo “Uivo”, de Allen Ginsberg em 1955.
Compagnon (2010b) afirma que Baudelaire reagiria contra o processo de
modernização social a partir de uma resistência à revolução industrial e à mediocridade
burguesa, e afirmaria seu desejo de recusa a essa modernização por entendê-la como uma
forma de escravização que devoraria o homem em um perpétuo movimento rumo a um
progresso que jamais chegaria, pois ele próprio seria renovado incessantemente. A paixão
pelo presente seria desesperadora, o calvário do homem. O poeta criticaria também o
realismo, pois ele estaria reduzindo a imagem à superficialidade do que é visível apenas. Para
o autor de Os cinco paradoxos da modernidade (2010b), houve, a partir de Baudelaire, no
campo das artes em geral, um afastamento da representação, concebida como a mímesis
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aristotélica, e através de processos de despersonalização do “eu” na poesia, ela então se
tornará mais artificial ou formal.
As vanguardas artísticas europeias vêm expor essa crise dos processos de
representação e vão trabalhar, ora com a ironia, negando a tradição, ora com a tradição da
negação, ou seja, apresentando outros valores além daqueles já referendados. E esse novo se
converte em mercadoria, pois a arte moderna define assim a sua diferença em relação à
tradicional. Na arte tradicional, a obra teria sua autonomia muito bem delimitada pela sua
associação ao conceito de verdade e suas funções religiosa, histórica e filosófica, descolada da
práxis vital. A arte moderna recusa sua autonomia a partir da discussão sobre a função da
representação, valor aristocrático, e, a partir do advento da sociedade burguesa, vários serão
os questionamentos sobre suas definições, funções, valores e mercados.
Assim, o termo “modernismo” pode e deve ser relativizado em função das
especificidades do tempo e do espaço da obra a ser estudada. O que existe de substancial, e
que procuramos demonstrar aqui, é que, a partir dos meados do séc. XIX, surge uma
necessidade de se questionar o lugar da própria arte e do artista dentro da sociedade, e o
fizeram muito bem aqueles que estavam à margem dos moldes hegemônicos, como os autores
de literatura hispânica, considerada secundária em relação às tradições centrais. Essa posição
à margem vai possibilitar outro manejo dessas tradições, como bem disse o escritor argentino
Ricardo Piglia:
A consciência de não ter história, de trabalhar com uma tradição esquecida e alheia;
a consciência de estar em um lugar deslocado e não atual. Poderíamos chamar a essa
situação de mirada estrábica. Há que se ter um olho posto na inteligência europeia e
outro posto nas entranhas da pátria. (PIGLIA, 1991, p.61, tradução nossa) 11
Essa visão estrábica pode ocorrer tanto em função de o artista estar à margem do
espaço da tradição culturalmente dominante, como no caso dos hispânicos, quanto por ele
assumir posturas fora do padrão de comportamento pasteurizado e vislumbrar outros valores,
marcadamente irreverentes em relação a seu tempo cronológico, como Whitman e Allen
Ginsberg; ou por ambos os motivos, como Chacal. De toda forma, é um deslocamento em
relação ao contumaz, ao estabelecido, que pode operar tanto em relação ao tempo e/ou espaço,
11 La consciencia de no tener historia, de trabajar con una tradición olvidada e ajena; la consciencia de estar
en un lugar desplazado e inactual. Podríamos llamar a esa situación la mirada estrábica: Hay que tener un ojo
puesto en la inteligencia europea y el otro puesto en las entrañas de la patria. (PIGLIA, 1991, p. 61)
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quanto em relação às atitudes ideológicas vigentes; o que, de toda forma, provocará uma
abertura, um alargamento, expandindo o ângulo da visão do sujeito para um maior alcance do
que vai ser visto. Whitman (2000) afirmava:
(...) são poemas escritos com a veemência do orgulho e a audácia da liberdade,
necessárias para liberar a mente dessa América, ainda em formação, das superstições
e torções e de toda antiga, persistente e sufocante autoridade antidemocrática do
passado asiático e europeu. (WHITMAN, 2000, orelha da edição)
Perpassa na declaração um tom auspicioso, quase uma promessa para uma nação
que, por sua juventude, iria ver-se livre de antigos preconceitos e abrir-se para a liberdade de
expressão. Essa promessa se cumpriu? Um século depois e o mesmo cerceamento se repetia
diante das publicações de Allen Ginsberg, os poemas Howl, e de Willian Burroughs, a novela
Naked lunch, ambos companheiros beats. Um século não foi suficiente para modificar a
dificuldade que a sociedade ocidental cristã tem diante da palavra que traz o corpo inteiro e
suas sensações. Um certo incômodo, ou estranhamento que advém da leitura do poema
Ninguém é inocente, de Chacal, transcrito acima, reitera essa afirmação.
Os chamados movimentos da contracultura aqui, na Europa e nos EUA na década de
1960 e, passados dez anos, os poetas da geração marginal no Brasil, tocaram também nesses
tabus de um corpo não amputado, e, por isso, sofreram represálias. Embora a censura no
período da ditadura militar tivesse objetivos marcadamente políticos, o moralismo esteve
sempre presente em seus atos, alguns com o aval do movimento reacionário de extrema
direita, o TFP (tradição, família e propriedade), que esteve atuante no episódio do violento
fechamento do jornal “O Pasquim” após a bombástica entrevista à atriz Leila Diniz falando
da libertação sexual feminina. Assim, muitas vezes não há como separar a rebelião dos corpos
da das mentes, já que a expressão da rebeldia era, na maioria das vezes, performática e
envolvia os sujeitos por inteiro; corpo, gesto, movimento, crenças e posturas diante da vida e
da política. Afirma Pereira (s/d), em O que é contracultura:
Este era também o sentido lúdico ou do mágico para a contracultura: uma nova
aproximação do real. (...) era toda uma outra concepção do universo que estava em
jogo, toda uma outra maneira de encarar a natureza ou o corpo, por exemplo. E estes
dados as transformavam em sistemas de pensamento extremamente questionadores e
polêmicos quando postos frente à visão de mundo dominante no ocidente.
(PEREIRA, s/d, p.58)
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Assim como o rock não se resumia apenas à música, a valorização das filosofias
orientais era uma reação ao racionalismo cientificista, as comunidades agrícolas de hippies e
usuários de drogas eram uma contestação diante dos papéis limitados e muitas vezes
impostados da tradicional família burguesa, e uma denúncia diante da reificação do homem e
da natureza e do mal estar da caótica civilização urbana. “Viajar” era ir para outro lugar,
para o primitivo idílico, mesmo que fosse só na mente de quem procurava a si mesmo.
Novamente o deslocamento é o lugar da rebeldia porque sair do lugar exige o questionamento
do percurso, do processo de desviar-se. E todo esse caminho vinha da falta de lugar do
caminhante, aquele que, mesmo estando do lado de dentro do sistema, enxergava com maior
acuidade seus interstícios.
O mesmo acontecera alguns anos antes, com a publicação de um relato de viagens do
grupo beat (1957), On the Road, de Jack Kerouac (2012). Na obra há duas formas de
deslocamento: no espaço, através de estradas vicinais que os conduziriam a uma nação à
margem, e das mentes, que ansiavam seguir outras direções mais instintivas, transitórias e
ambíguas. E toda essa movimentação partiria de uma juventude de classe média, que via,
portanto, de dentro, o desmoronamento de uma antiga ordem, e o despertar de uma nova
sensibilidade. A revolução cultural chinesa, a guerra do Vietnã, a revolução cubana, e a frente
anti-imperialista na América Latina eram fatos irreversíveis. Então, urgia conceber outras
formas de pensar que dessem conta de tantas transformações.
O LSD, o haxixe e a maconha eram consumidos largamente pelos jovens como uma
forma de embate aos limites de uma razão, de uma sanidade culturalmente assegurada pela
sociedade, dos quais eles desacreditavam. A experiência da loucura será revestida de um
caráter de sublimação, como se através dela houvesse um expurgo das mazelas do mundo
consumista dos grandes centros urbanos para ascender a um mundo misterioso,
espiritualizado, interior, e a um modo de vida mais livre e mais contemplativo.
Mas a loucura nesse caso era uma opção, pois o drogado tinha uma consciência do
absurdo da situação em que vivia, ou pelo menos em princípio, embora alguns jovens poetas
tenham se perdido nesses descaminhos para não mais voltar. A experiência do êxtase talvez
tenha sido mais dilacerante para uns, como para Guilherme Mandaro (Rio, 1952- 79),
companheiro de Chacal nos delírios dos anos 70, que morreu de forma trágica e prematura, ou
como os talentosos Torquato Neto (Teresina, 1944-72) e Ana Cristina César (Rio, 1952-83),
também jovens poetas da mesma geração de Chacal, combalidos por essa febre autodestrutiva
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que os acometeu de forma tão impactante e definitiva. Podemos imaginar por que, lendo os
versos de Guilherme Mandaro (2007), em Nuvem Cigana:
que não seja o medo da loucura
que nos obrigue a baixar
a bandeira da imaginação
(MANDARO, 2007, p. 193)
O próprio Chacal trabalha com o tema da loucura em América, em uma perspectiva
dilacerante, como algo que está presente nas sensações de percepção de um real suspenso,
prestes a se concretizar e a perfurar-se, marcando o impacto de um casuísmo exato, que rege a
própria natureza e o ser humano, corpo e mente, que, como parte integrante do cosmo, não
pode se desvencilhar de seus mistérios:
Buracos no céu
quando o tempo e o espaço se cortam
quando nosso corpo se encontra
diga que eu perdi a cabeça
diga que eu sou uma bolha de alka seltzer
quando chove meteoro
quando os buracos se cruzam
caem fagulhas na terra
caem agulhas no sangue
desorganizado saio de casa
com um guarda chuva de cheeseburguer
com uma capa de amianto
e não me espanto
entretanto descobri:
a loucura é um sopro no ouvido
(CHACAL, 2007, p.306)
O eu lírico vive o impacto da precisão e da irreversibilidade de cada instante como
uma revelação, uma epifania: a fração do tempo em que a bolha de ar se enche e explode, o
lugar exato em que o meteoro cai na terra ou em que os corpos se cruzam. Em “fagulhas,
agulhas” (versos 5 e 6), som e sentido evocam fricção, perfuração, o rigor do tempo e do
espaço nas intersecções, sejam elas humanas ou não, tudo está sujeito à mesma lei da Física,
mas só o ser consegue pensar sobre o impacto e absorvê-lo enquanto sensação. As palavras
alka seltzer, cheeseburguer e amianto são da era industrial, das massas, elas provocam um
corte na expectativa do leitor, estão como que meio fora de lugar; é como o desconcerto de
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um eu lírico que pode ouvir certo sopro para ouvidos mais frágeis e sensíveis. É essa a fala do
sangue e do espanto do homem da era das multidões nas grandes cidades.
Se a vida nas cidades e a arte passam a se processar contínua e dialeticamente após a
segunda guerra, e mais acentuadamente a partir dos anos de 1960, com os movimentos
contraculturais, as ruas vão invadir a arte, e a arte vai invadir as ruas, que passariam a ser
lugar e objeto de criativas interações e atuações desafiadoras. A poesia marginal dos anos de
1970 promoveu essa interlocução de uma forma mais alegre que os beats, que ainda traziam a
dor latejante do pós-guerra e do holocausto para a instantaneidade; mas a geração do
mimeógrafo não perdeu de todo um certo tom de desespero, com vimos no poema acima, de
Chacal.
Mas se nos reportamos à modernidade como um período em que o artista se vê
impelido a baixar a guarda da razão em favor de uma concepção mais intuitiva e sensível da
realidade, que vem desde os românticos, não poderemos nos esquecer do spleen de Baudelaire
(1821-1867) nos falando de uma febre que tece fantásticas visões de espíritos errantes se
arrastando pelo mundo. O texto de Baudelaire é um marco da modernidade literária; trabalha
com a sensualidade e o prazer, com a amplificação da noção temporal através da alteração dos
estados da consciência, o uso do álcool, as áreas pobres de Paris e questiona, inclusive, o
dogma da bondade dos ideais cristãos. É de uma melancolia reveladora, quase uma
premonição da crise de uma Europa que gestaria os totalitarismos que a enchafurdariam nas
duas grandes guerras.
Em Do Vinho e do Haxixe, Baudelaire (s/d) traz um real dimensionado pelo uso do
haxixe, em que as fronteiras entre a mente e os sentidos corporais são ultrapassadas. Não é
mais possível delimitar ali onde começam ou terminam as sensações físicas e as emocionais.
Elas fazem parte de uma mesma performance. O tempo cronológico que escraviza o homem
moderno se perde completamente, e até mesmo as dimensões entre os seres e seus corpos (de
que falávamos do medievo, ao analisar o poema Solo, de Chacal) encontram-se alteradas no
enxerto abaixo, em função de uma outra significação que o ambiente passará a imprimir na
complexidade corporal. Através de intensificações imprevisíveis, que poderiam ir na
contramão do desejo do usuário, seria produzida uma espécie de esvaziamento de um eu à
deriva:
49
As proporções do tempo e do ser são perturbadas pela profusão inumerável e pela
intensidade das sensações e das ideias. Vive-se várias vidas de homem no espaço de
uma hora. (...) Deixa de haver relação entre os órgãos e as fruições.
De vez em quando a personalidade desaparece. A objetividade que faz certos poetas
panteístas e os grandes atores torna-se de tal forma grande que a pessoa se confunde
com os seres exteriores. (BAUDELAIRE, s/d, p. 40)
A loucura vai ocupar um lugar de destaque na memória coletiva do homem moderno,
pois também o delírio dos loucos poderosos ficará encarnado na mente de quem conviveu
com seus atos e na de gerações e gerações posteriores. E há aqueles sujeitos, como esse
grande poeta francês, que condensam uma base comum, e em um sobressalto brusco fazem
aflorar o ¨inconfessável¨, para usar as palavras de Michael Pollak ( 1989).
Uma tensão visceral, subterrânea, que desejamos demonstrar aqui como um conjunto
que vai desaguar no século XX, está presente nesse período que antecede as guerras. Um
outro exemplo aterrador é o do condecorado jurista alemão, Daniel Paul Schreber, que
escreveu a autobiografia Memória de um doente de nervos (1903), obra estudada por Freud,
Walter Benjamin, Santner e Foucault, entre outros. Eles consideraram a obra de Schreber uma
alegoria da realidade europeia dos novecentos, como se o delírio de controle do corpo como
uma disciplina moral fosse uma prévia da “limpeza” racial nazista. Graziela Costa Pinto
chama a atenção para a obra de Schreber e para os estudos que Santner fez sobre ela:
Buscando articular paranoia e modernidade, Santner encontra paralelos entre esses
estados de podridão e degeneração da matéria, referidos literalmente por Schreber, e
as metáforas utilizadas nas páginas de crítica cultural do final do século para definir
a ruína de valores e a fadiga ideológica que caracterizavam a entrada na
modernidade. É como se o corpo-texto doentio sofresse na carne o estado
putrefaciente que povoava as fantasias dos indivíduos sãos.
A disseminação da sífilis, que foi rapidamente associada à crise de valores culturais,
colocou o corpo e seu funcionamento como paradigma da cultura, abrindo a
perspectiva de uma análise científica e médica e, possivelmente, do controle de
transtornos sociais, político e culturais, que seriam difusos. Com o enfraquecimento
dos laços sociais, o lugar da certeza passou a ser ocupado pelo organismo enquanto
objeto de conhecimento médico e científico. (PINTO, 1998, p.53)
Temos aí demarcada a mentalidade do início do século XX como o lugar das
incertezas, e da paranoia, busca incessante pelo controle do corpo como forma de atenuar o
vazio diante da impossibilidade de preconceber e demarcar os rumos do homem na história.
Novamente o corpo vai ser entendido como a parte do ser humano que deve ser
completamente dominada para o bem da sociedade, como se ele fosse uma matéria bruta a ser
50
domada pela inteligência de seres totalmente intocados pelas ideologias, perfeitamente
capazes de manuseá-lo de fora, como um objeto estático no tempo e no espaço.
Percebemos que a guinada que os movimentos contraculturais das décadas de 1950 e
1960 deram ao corpo pode ser interpretada como uma reação a essa onda de cientificismo
positivista dos finais do século XIX e do início do XX, que congelaram e apartaram o corpo
de sua inteireza dinâmica em relação à mente e seus sistemas simbólicos e trouxeram uma
obsessão pelo cérebro como se ele fosse um departamento de controle, ideia muito
interessante para uma sociedade cada vez mais burocrática que construía e fixava poderes
hierárquicos.
Ao fazer esse paralelo entre corpo e mente e as relações estabelecidas entre o
subalterno e o poder superior numa hierarquia dos burocratas nos primórdios do século XX,
lembraremos da emblemática obra de Kafka, A metamorfose. O corpo de Gregor Samsa
torna-se inseto quando os mandatos simbólicos se resumem a imposturas, quando a palavra e
o poder não se sustentam mais, e funcionam apenas enquanto coerção; então o domínio não
está mais assegurado, e o corpo, que antes era controlável, vai metamorfosear-se em algo
imprevisto, vil, repugnante. A inovadora e fantástica narrativa foi escrita em 1912; nesse
período das vanguardas, vemos um otimismo apenas no manifesto futurista (1909), mas os
outros, e a própria obra de Kafka, possuem vínculos fortes com o tom de pessimismo dos fins
no século XIX, de uma Europa que se tensiona em conflitos políticos desastrosos e se prepara
para a carnificina das guerras.
A arte do século XX já nasce sob o estigma da duplicidade; otimismo em relação ao
progresso técnico e à crença na renovação, mas sofrendo com as ruínas melancólicas do
decadentismo do fim do século XIX. Sobre esse espírito contraditório da modernidade, Walter
Moser (1999) afirma:
Esse é, sobretudo, caso do artista moderno, que aspira aos valores positivos da
novidade, da originalidade, da autenticidade, e que vê fracassado seu gesto preferido
que consiste em fazer tábua rasa, a fim de começar do zero. Na espécie de
claustrofobia cultural que o ataca nesse quarto de despejo, só lhe resta, muitas vezes,
a fuga em direção a algum primitivismo, gesto que concretiza seu desejo de situar-se
num momento original. (MOSER, 1999, p 39)
E é com essa contradição inquietante que surgem os movimentos da vanguarda
artística europeia. A irreverência do dadaísmo, seu humor rebelde e sagaz ao destroçar a
51
tradição e uma imaginação onírica do surrealismo serão fortes referências da contracultura. A
própria ideia de que o surrealismo não estaria circunscrito apenas aos “ismos” das duas
primeiras décadas do século XX corrobora essa abordagem, já que, diferentemente do caráter
efêmero das outras vanguardas, o surreal resultaria de confluências com os que o antecederam
e prosseguiria além. Assim, seus procedimentos não eram apenas inovadores, mas propunham
uma ação sobre a realidade, com discussões políticas e questionamentos diante das noções de
indivíduo, coletividade, dos formalismos, do nacionalismo, da religião institucionalizada, do
racismo, do primitivismo, e principalmente diante do desejo, do amor e da sexualidade.
2.4 Corpos e espaços
Eliane Robert (2012), em seu instigante trabalho sobre a decomposição da figura
humana de Lautréamont a Bataille, estuda metamorfoses desconcertantes, repugnantes, nas
imagens do corpo em obras de Picasso, Salvador Dali, Hans Belmer e Chirico, entre outros,
para formular a tese de que o dilaceramento corporal como uma forma de demonstrar a
incompletude humana seria um processo que se apresentava desde o Romantismo.
A partir das vanguardas, o fragmentar, recortar, decompor e a técnica da justaposição
demonstraria a perda de unidade da figura humana e uma recusa à identidade fixa. As
metamorfoses anatômicas colocariam sob suspeita a visão imediata; como um anagrama, ou
um Renascimento às avessas, a decomposição do corpo humano seria um esforço analítico
para representar o ser convulsivo, o êxtase da emoção física e do erotismo. A desconfiança
nas imagens oferecidas pelo “real” colocava a existência em xeque, e, após a primeira grande
guerra, um psiquismo bestial abafado pela civilização vem à tona revelando seres
abomináveis cuja fúria e desejo de transgressão ofereceriam outras representações da figura
humana.
Esculturas ibéricas arcaicas e máscaras africanas comporiam seres sem face;
espectros e manequins montariam corpos inúteis e insubordinados até se reduzirem a formas
que guardariam similaridades com qualquer outra matéria não humana: a decomposição do
corpo em elementos orgânicos e a indistinção entre os seres. A partir daí, qualquer analogia se
torna possível, pois o corpo é matéria instável que vai se decompor e assim retornar ao
52
universo. O escritor surrealista Georges Bataille (1897-1962) assim definiria essa obsessão
pela metamorfose: “uma violenta necessidade que aliás se confunde com cada uma de nossas
necessidades animais” (BATAILLE apud ROBERT, 2012, p.133).
A obsessão de Bellmer, habilidoso desenhista industrial, vai a fundo numa fixação
extática pelo corpo como um “inconsciente físico” (ROBERT, 2012, p. 68). Abandona a sua
ocupação, então rentável e promissora em 1933, no governo de Hitler, afirmando que não
exerceria mais “qualquer atividade útil” (ROBERT, 2012, p.138) para se dedicar aos
mecanismos de uma boneca toda articulada, construída por ele. Ela, objeto do desejo,
brinquedo sensual, provocante, encarnaria a redução do ser ao corpo dócil manipulado pelo
terror da violência nazista. Mas esse gesto de Belmer pode nos remeter também a Paz (2013),
quando ele aborda o voyeurismo presente no olhar do artista moderno que assume uma atitude
ambígua entre o ver e o desejar. Através da “petrificação num objeto: a boneca nua” (PAZ,
2013, p.116), o brinquedo vem a ser a imagem do desejo, a transgressão moral através de uma
intimidade com o corpo como um ato criador, que condensa o grotesco, o bizarro, a
transitoriedade e a morte como uma invenção, uma outra forma de encarar a própria arte, o
amor e o erotismo.
Paz (2013) vai considerar a modernidade a partir dos finais do séc. XVIII, que com
sua “autodestruição criadora” (p.17) propõe “a ressurreição das artes de muitas civilizações
desparecidas” (p.18), ou seja, a modernidade vai operar com o heterogêneo, acelerando e
fundindo tempos e espaços no aqui, agora, numa atitude ambígua de afinidade e ruptura,
ironia e analogia. Analisar a modernidade como uma tradição de afinidades e rupturas, como
propõe Paz (2013), em Os filhos do barro, é muito oportuno aqui, quando tentamos repensar
a contracultura como um fenômeno que se repete, e na contracultura específica dos anos de
1960-70 como um movimento de ruptura que estabeleceu uma quebra na ideia de identidade
do mundo ocidental ao revisitar antigas imagens, seus deslocamentos corporais e linguísticos.
A palavra poética moderna pode ser pensada então como um corpo onívoro que vai se
alimentar de neologismos, barbarismos e cultismos.
Essa operação mágica e aventureira é praticada pelos poetas modernos; “uma
libertação moral e estética que põe em contato os opostos” (PAZ, 2013, p. 116), Paz (2013)
acrescenta ainda, “a história da poesia do século XX é, como a do século XIX, uma história
de subversões, conversões, abjurações, heresias, desvios. Essas palavras têm sua contrapartida
em outras: perseguição, desterro, manicômio, suicídio, prisão, humilhação, solidão.” (p. 115).
53
Muitos desses temas serão trabalhados pelos movimentos da contracultura, desde a
década de 1950; com os beats nos EUA, com Elvis Presley e James Dean, a sensualidade e
rebeldia, Bob Dylan e um anarquismo rural, passando pela eterna irreverência que é o rock
dos ingleses Rolling Stones, anos sessenta, Janes Joplin, Dean Morrisson, Jimmi Hendrix e o
êxtase comunitário dos grandes festivais, o Jamaicano Bob Marley e o apelo à convivência
humana e à paz. Eles faziam do sonho a realidade, da arte, forma de comportamento, e
traziam as posturas políticas e a resistência pacífica estampadas no corpo e na própria
expressão artística.
A rebelião do comportamento que fez parte dos movimentos contraculturais dos anos
de 1950 e 1960 estava intimamente ligada a questões políticas e multiculturais, que não se
desvinculavam das propostas de liberdade dos corpos. Nos EUA, os jovens universitários
brancos, juntamente com os ativistas negros, eram agredidos pela polícia em manifestações
pelo fim da segregação racial e da exploração da miséria dos oprimidos e marginalizados.
Nos campi universitários, lutavam pelo fim do toque de recolher nos dormitórios e da
separação desses espaços em feminino e masculino. O próprio rock in roll recebeu esse
batismo em função de uma conotação do ato sexual, que já estava presente nos blues, jazz e
boogie-woogie dos afro-americanos:
(...) a sensibilidade de muitos milhões de ex-escravos e seus descendentes,
começava a exercer um impacto na cultura americana como um todo desde o início
do século XX. (...) Os africanos, por outro lado, não estavam carregando um legado
de mil anos de vergonha do corpo. Os costumes tribais africanos, que giravam em
torno de uma dança extática, sensual, ao som de ritmos percussivos, não tinham sido
completamente eliminados pela escravização e a conversão ao cristianismo.
(GOFFMAN, 2004, p 253)
No Brasil, a antropofagia oswaldiana, o Tropicalismo e a poesia marginal, apesar das
especificidades de cada um desses movimentos, vêm com esse mesmo ímpeto, de incorporar
as várias contribuições de todas as culturas presentes no legado popular, ideia muito difundida
também pelo surrealismo. Sérgio Lima, ao elaborar a tese de que foi do interesse de muitos
críticos afirmar que não houve surrealismo no Brasil, reitera sua posição contrária:
E mais: a mestiçagem ou a fusão de etnias, sociedades e culturas, não deixa também
de reenviar figuradamente às correspondências do pensamento mágico e das
analogias, ou mesmo às núpcias dos contrários, quer carnal, ou quer espiritual e
alquímica- ou seja, contrapõe-se ao sentido de “puro” da química (e da sócio-
54
política) mas não ao senso da pureza iniciática ou esotérica. Assim a busca, e o
surrealismo nunca deixou de ser uma busca ou uma aventura do espírito humano,
requer tal pureza e implica (fundamentalmente) o desejo frente à realidade
ameaçante – não um epicentro autoritário ou discriminador. Ora, o surrealismo
sempre se deu, e continua a se dar num contexto plural ou de policentros, numa
mestiçagem dos sentidos e numa fusão, numa união livre. (LIMA, 1994, p.200)
Pensando assim nesses policentros, não podemos nos esquecer de que o primeiro
editor beat, Ferlinghetti, havia estado na Sorbonne e estudado os autores surrealistas
franceses, fazendo a divulgação deles em primeira mão nos EUA e aos seus companheiros
beats, inclusive traçando um inusitado diálogo entre a valorização do imaginário surreal e o
modernismo norte-americano. O movimento de projetar-se para fora de si e assim estabelecer
vínculos sensíveis com o universo exterior seria, para os surrealistas, uma necessidade
atávica.
O próprio Bataille reafirmaria essa primazia da expressão corporal para o ser humano
comunicar-se como um todo: “nos grandes momentos, a vida humana ainda se concentra
bestialmente na boca, a cólera faz ranger os dentes, o terror e o sofrimento atroz fazem dela o
órgão dos gritos dilacerados” (ROBERT, 2012, p.134). A publicação de Howl, de Ginsberg
confirmaria tudo isso e viria com uma introdução do inovador e esquecido poeta moderno,
William Carlos Williams (USA, 1883-1963), na qual ele diz:
A fé na arte da poesia acompanhou este homem a seu Gólgota, a esse ossário em
tudo semelhante aos dos judeus na última guerra. Só que isso é nosso próprio país,
são nossos próprios e estimados arredores. Somos cegos, e vivemos nossas vidas em
cegueira. Os poetas são malditos mas não são cegos, eles enxergam com os olhos
dos anjos. Este poeta enxerga plena e penetrantemente os horrores dos quais
participa nos mais íntimos detalhes do seu poema. Ele nada evita e vivencia tudo até
as últimas consequências. Ele contém tais coisas. Ele reivindica como suas – e creio,
ri delas e encontra a ocasião e a ousadia para amar um companheiro que escolheu e
para relatar esse amor em um bem acabado poema.
Senhoras, levantem as barras das suas saias, vamos atravessar o inferno.
(WILLIAMS apud GINSBERG 2010, p. 24)
Percebe-se, portanto, que o universo beat foi muito valorizado por Williams, na
medida em que ele tinha essa visão do moderno como uma convergência temporal que não
excluía o imaginário medieval. Ele estudou e escreveu poemas sobre imagens do medievo a
partir da obra do pintor Pieter Brueghel (1525-1569) no livro obra Pinturas de Brueghel e
outros poemas (1962). Assim, acreditava que a imaginação e a irreverência dos beats tinham
55
um pé no surrealismo, e a loucura, enquanto reação à realidade positivista moderna, que vinha
desde o spleen melancólico dos finais do século XIX, evidenciava-se aí também.
Então, o poeta maldito de quem Williams nos fala acima, que enxerga com os olhos
de anjo, pode ser o mesmo pintado por Paul Klee (1879- 1940), que, com a face voltada para
um passado de ruínas, direciona-se ao futuro fazendo uso das revelações que irrompem desse
passado; os olhos estão arregalados, a boca está aberta e as asas estendidas para apreender o
mundo em suas sensações. Esse anjo da história benjaminiano é retomado agora com uma
força avassaladora, desta vez acompanhada dos delírios de um inconsciente torturado e de
mentes encharcadas de álcool e de muitas outras drogas, em que um erotismo vertiginoso
toma uma proporção bestial, como podemos ler nesse pequeno trecho de Howl, de Allen
Ginsberg (2010):
Flagelaram seus torsos noite após noite
com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília,
álcool e caralhos e intermináveis orgias
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e
clarão na mente pulando nos postes dos pólos de
Canadá & Paterson, iluminando completamente o
Mundo imóvel do Tempo intermediário 12
(GINSBERG, 2010b, tradução de Cláudio Willer, p.26)
É equivocado o entendimento de alguns críticos de que o poema de Ginsberg (2010)
seria desprovido de sentido ou de um trabalho formal, ou que ele não fosse um objeto artístico
em função de sua estrutura aparentemente caótica (acusação semelhante também é feita à obra
de Chacal), pois sabemos que a linguagem poética não pode sofrer com as amarras da razão,
sua lógica é outra; as imagens se coadunam com um propósito artístico em que forma é
também conteúdo; o corpo da escrita é também seu sentido. O automatismo na escrita é ao
mesmo tempo um recurso dinâmico para representar o fluxo ininterrupto das imagens e as
ofertas transitórias de nossa era, e um questionamento da própria produção artística em um
tempo de revisão dos sentidos, das regras e formalidades, na vida e na obra.
Logo no prefácio da cuidadosa tradução de O Uivo feita por Cláudio Willer, ele
chama a atenção para todo o trabalho de Ginsberg (2010b) com a linguagem, contrapondo-se
aos críticos do movimento beat que acusam o grupo de usar apenas um espontaneísmo, de não
12 torsos night after night / with dreams, with drugs, with waking nightmares, / alcohol and cock and endless
balls, / incomparable blind streets of shuddering cloud and / lightning in the mind leaping toward poles of
Canada & Paterson, / illuminating all the motionless world of Time between (GINSBERG, 2010b, p.26)
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investir no verso enquanto unidade formal. Tal leitura careceria de aprofundamento, ou é
simplesmente um preconceito em relação ao autor ou/e ao movimento beat. Muitos ainda
acreditam que haja uma forma objetiva e válida para avaliar toda produção poética, sem
observar, como nos chama a atenção Leyla Perrone-Moisés (2003), que o valor de uma obra
depende de articulações e critérios estabelecidos, sobretudo pelo crítico, e que não há
nenhuma homogeneidade ou continuidade histórica para esse julgamento.
Acrescenta-se ainda que toda manifestação da contracultura parte do desejo de
concatenar vida e obra, ou seja, o instante é soberano, e sua revelação através das sensações
do corpo e da mente, entendidos aqui como uma unidade, irão compor, de forma intuitiva, um
comportamento, uma postura e uma ação diante da vida e da arte. Willer afirma:
Ginsberg usava muitas palavras com duplo sentido, e, sempre que isso tinha função
no texto, enriquecendo-o e adequando-o ao ritmo e prosódia, utilizei a dupla
tradução, uma palavra para cada sentido. Assim, incomparable blind street, onde
blind street pode ser a mesma coisa que blind alley, um beco sem saída, tornou-se
incomparáveis ruas cegas sem saída (na estrofe 12 do Uivo) com as ruas cegas
contrastando com o clarão, the poles of Canada & Paterson, onde pole pode ser
tanto pólo geográfico quanto um poste de rua, mastro, estaca, tornou-se pulando nos
postes dos pólos do Canadá & Paterson. (WILLER, 2010, p.17)
Novamente imagens opostas aparecem para marcar esse sentimento de duplicidade
da experiência moderna; nela habitam os excessos e a insaciedade, o sistema, o controle e a
transgressão, uma movimentação incessante que chega à letargia, nela está também o clarão
dos mastros nos percursos humanos, sinalizando a mente dos que são capazes de ver o
pesadelo, que não é sonho, mas permanente vigília de um mundo num tempo intermediário,
que não se submete à pressão do cronologicamente útil, que está suspenso, polarizado,
marcando a viagem entre a loucura e a lucidez, num espécie de transe, limbo, que é a própria
energia da existência criadora, como já analisamos também em Solo e Buracos no Céu, de
Chacal.
Nos poemas dos assim chamados poetas marginais, como vimos nos versos de
Guilherme Mandaro e do próprio Chacal, citados anteriormente, há também essa mesma
viagem que desfia os limites do que temos como lucidez em nossa sociedade pautada pela
contenção do corpo e pela opressão de um tempo utilitário. Quando os movimentos da
contracultura propõem uma estética independente do reconhecimento oficial, eles se tornam
marginais no sentido da insubmissão, de uma rebeldia que cria um mundo alternativo onde o
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corpo e o prazer poderiam ser mais espontâneos e livres que nas práticas cotidianas
sistematizadas, que anestesiam os desejos, onde tudo tem um propósito, hora e lugar, e uma
forma concebida como correta e útil. E é justamente esse conceito de utilidade que foi
questionado em profundidade pelos beats e pelos poetas brasileiros na década de 1970.
Em nossa sociedade ocidental cristã, o rosto é a parte do ser que expressa ao máximo
essa subjetividade construída por um individualismo que foi gradativamente gestado durante
mil anos. Nos anos de 1960, vive-se uma profunda crise, não só desse indivíduo centrado,
mas das instituições; do Estado, da Igreja, da família, e da ideia de progresso e moral social.
Então, surge em seu lugar a cara, palavra muito mais usada para se referir à fronte dos
animais, ou de seres primitivos, ou ainda bem mais afeita às expressões de caráter popular,
ligadas ao corpo e ao cotidiano, diferentemente das palavras “face” ou “fisionomia”. O poema
abaixo está em Boca Roxa.
Cara de caveira
minha cara é de caveira
meus olhos são de vidro
e vocês não me dizem nada
no meu corpo tem um sangue
amargo e verde
meu coração é à prova de choque
e vocês não sabem de nada
tenho pés de andar em qualquer chão
e mãos livres sem argolas
e vocês tremem por nada
minha memória guarda coisas bem curtidas
eu sou minha memória bem curtido
e vocês não são de nada
(CHACAL, 2007, p.206)
Se pensamos no rosto como a parte do nosso corpo que traz nossa mais imediata
identidade, uma cara de caveira torna-se um símbolo muito significativo. Primeiramente, ela
nos lembra a morte, e consequentemente a ideia de atravessamento de uma fronteira e a
chegada a outra margem torna-se evidente. Ela é então respeitável enquanto conhecedora de
um universo que nos escapa; nossa vida breve é risível para a caveira, que possui uma espécie
de sorriso irônico que não se desfaz; sua permanência e sua expressão pensativa são para nós
eterna incógnita. Entre o riso e o trágico, essa fisionomia se afirma diante daqueles que estão
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no poder, e os desafia, pois eles não têm nada relevante a dizer, “não sabem de nada, tremem
por nada, e, não são de nada.” (versos 7, 10 e 13, respectivamente)
Os olhos são outro elemento importantíssimo na expressão facial, principalmente se
estamos falando daquele que rivaliza com o poder e quer provocá-lo. E esses olhos são de
vidro, a imagem projetada os atravessa sem capturá-los ou marcá-los, ela é devolvida para
quem olha, que pode ver a si mesmo, como em um espelho, mas no vidro essa imagem
aparece vazada, desprovida de qualquer consistência. O vidro é vulnerável, sensível e
quebradiço, mas duro diante da pressão, e de uma transparência que o ajuda a refletir o
instante, retratá-lo, como faz o poeta.
Se a primeira estrofe fala da face, a segunda e a terceira falarão do corpo, e a quarta
trará a memória como energia síntese do todo que será descrito; sangue, coração, pés e mãos.
Cada parte e todas elas são impulsionadas por essa mesma força de quem tem a certeza a seu
favor. Uma certeza que vem do sangue de um ser que suporta a exposição e o padecimento,
pois já obteve resistência e vitalidade, está “bem curtido” (verso 12), é um brasileiro “amargo
e verde” (verso 5), e possui o discernimento de uma memória que sabe o gosto do fel, muito
além do panfletário “verde e amarelo do país que vai prá frente”, pintados pelas propagandas
políticas da ditadura militar da época.
O coração, centro da paixão e da vida, da intuição e do afeto, que muitas vezes se
confunde com o espírito ou a alma, “é à prova de choque” (verso 6). Esse órgão que é o
primeiro que se forma e o último que morre, expande-se e se contrai num movimento
incessante, como a própria vida e suas intempéries, e elas serão inúmeras para quem viveu
nesses anos amargos depois do golpe de Estado. O eu lírico é resiliente e possui a preparação
inteligente de quem sabe se sujeitar à dilatação e à contração, pois é curtido e, portanto
imputrescível, apesar de toda podridão que o circunda. E nessa luta entre posições
antagônicas, aquele que resiste ao encontro violento com o outro e supera, com resiliência, o
choque, vence.
Se os pés andam “em qualquer chão” (verso 8), são também curtidos e capazes de ir
além das trilhas estipuladas pelo poder e vão construir seus próprios caminhos, através de seus
próprios passos performáticos, de um caminhar que se aprende caminhando. As “mãos livres
sem argolas” (verso 9) não se prendem aos ditames daqueles que querem ordenar como deve
ser a feitura do objeto artístico. Como em um jogo de desafios, as argolas arremessadas pelos
ditadores não cairão da forma pretendida, pois eles “tremem por nada” (verso 10), não são
59
convictos como aquele que se pronuncia, apenas cumprem ordens, determinações de um
poder burocrático hierarquicamente estruturado.
A última estrofe fecha o poema colocando a memória como a guardiã de todas as
coisas, ela é tecida pelos fios do público e do privado como nos sugeriu Silverstone acima, e o
eu lírico, inclusive, coloca-se como sendo ele mesmo resultado de sua memória; “eu sou
minha memória bem curtido” (verso 12). Ou seja, todos os elementos do corpo, colocados
anteriormente, não estão apartados; através do coração, o sangue circula e todos os sentidos
estão reunidos nessa memória que é a sua própria identidade. E as palavras curtidas/curtido
possuem sentido ambíguo, já que podem significar também “o barato”, “a curtição”,
identitária da geração do desbunde dos anos setenta, daqueles que vão continuar curtindo sua
“viagem”, apesar dos poderosos que, embora com aparências fortificadas, não são de nada
(verso 13).
A feitura de alguns versos em redondilha maior, construção popular com ritmo de
fácil memorização, e o refrão, que termina cada estrofe, referendam, através da repetição, o
que não deve e não pode ser esquecido; a vulnerabilidade de todo o poder montado pela
arbitrariedade e repressão. O eu lírico e sua cara de caveira nos lembram ainda os piratas,
também marginais. Sua bandeira/caveira e sua viagem sem fim, em que o deslocamento, a
errância é o próprio destino, desafiam o poder do Estado, que tenta capturá-los, fixá-los, sem
sucesso.
E é o poder, vestido pelo Estado ditatorial, que caça e mata em 1964, como a um
animal acuado, o bandido “cara de cavalo”, vendedor de maconha e controlador de jogo do
bicho, morador da Favela do Esqueleto, e passista da escola de samba Mangueira, onde
conviveu com os artistas plásticos Hélio Oiticica e Lygia Clark. Revoltado com a execução
sumária do bandido, Hélio compõe seu trabalho plástico/bandeira, que foi cenário de show
dos músicos tropicalistas, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes, em outubro de 1968,
na Boate Sucata, Rio de Janeiro. O show foi interrompido pela censura sob o pretexto de que
a imagem feita por Oiticica, de um corpo estendido no chão, acompanhado da famosa frase:
“ Seja marginal, seja herói”, em solidariedade ao bicheiro, seria subversiva. Não podemos
deixar de notar as similaridades entre o poema acima estudado e esse acontecimento, que foi
alardeado pelos meios de comunicação da época, e que colocava o heroísmo da polícia.
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Fonte: NETFESTIVAL..., 2014
Oiticica inverte essa visão “oficial”, e o poeta marginal, com o poema “cara de
caveira”, quinze anos depois (publicado em 1979), soube explorar bem essa contradição entre
a memória, o poder e as suas margens, até no título e capa do livro, que possuía, em sua
edição artesanal, uma reprodução modificada de um desenho de Pablo Picasso, feita por Luís
Eduardo Resende, em que há o esboço de um rosto somente com seus traços elementares;
olhos, nariz e boca, demonstrando, como também o faz a imagem da caveira, o quanto os
sentidos humanos nos reduzem à mesma e básica semelhança. Esse desenho de Picasso
aparece também na capa de outras duas obras: “Nariz Aniz” e “Olhos Vermelhos”, todos eles
publicados em 1979.
Fonte: FERRAZ, 2013, p. 79
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A discussão sobre a insubmissão do corpo do ser humano e sua relação com a
utilidade e a dedicação à arte foi o ponto de partida da Nuvem Cigana, nome de uma empresa
que, no início da década de 1970, reunia um grupo de jovens poetas; Ronaldo Bastos,
Ronaldo Santos, Chacal, Lúcia Lobo, Dionísio, Márcio Borges, entre outros. O próprio nome
da “firma” veio a partir de seu sócio fundador, Ronaldo Bastos, que, em uma “viagem” de
ácido, olhando o céu, viu uma nuvem e assim a batizou. Mais tarde, esse seria o nome de uma
música de sua autoria e de Lô Borges, considerada emblemática para o período. Bastos e seu
grupo queriam uma vida “estradeira” e tinham como objetivo “estar em movimento, que era
uma oposição radical à ditadura” (COHN, 2007, p.67). Tentaram, então, criar algo nos
moldes da Apple, empresa multimídia, já que o sócio e fundador, Ronaldo Bastos, recém-
chegado dos EUA, queria fomentar a arte de forma independente, editando livros, almanaques
e manifestos, promovendo exposições, happenings, performances teatrais, poéticas e
musicais:
A Nuvem Cigana surgiu da vontade que a gente tinha de participar, de mudar as
coisas. Não dava para deixar daquele jeito, mas também não queríamos ir para a luta
armada, ou coisa do tipo. Várias vezes fui convidado, mas não era a nossa. Então
começamos a tentar fazer alguma coisa ligada à arte. (COHN, 2007, p.70)
Uma das edições, denominada Artimanha, aconteceu, inclusive, no Museu de Arte
Moderna, no Parque Lage do Rio, contando com a participação de vários artistas plásticos que
estavam engajados no que era chamado então body art, ou arte performática. O evento foi um
sucesso e, através de amigos comuns, estenderam o acontecimento até São Paulo, no Teatro
Municipal, que durante três dias, em 1976 , juntou cerca de quinze mil pessoas, e com a
presença do poeta surreal Roberto Piva e do artista plástico Augusto Peixoto, foi palco de uma
megaexposição e uma feira de arte e poesia.
Nota-se, portanto que o grupo tinha um propósito, assim como Bellmer ou Allen
Ginsberg, que era, sobretudo, fazer da arte um ato de resistência diante dos rumos de uma
História que se propunha, cada vez mais, colocar os indivíduos e seus corpos funcionando
como uma marionete, cumprindo metas para que o capitalismo e sua lógica individualista
triunfassem. Assim como no movimento beat, os jovens poetas brasileiros partiam para a
experiência comunitária, grupos se reuniam para fazer arte e promover eventos, sem muita
preocupação com o retorno financeiro ou com promoções pessoais.
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Extrapolavam os limites entre as diferentes manifestações artísticas e vivenciavam
inesgotáveis sensações; traziam uma imaginação que não apartava o corpo da mente, antes
sim, reunia os corpos entre si para concebê-los em uma integração criadora, irreverente, sem
falsos pudores, buscando o prazer e a alegria como uma tendência natural do ser humano.
Fugiam do senso comum, da paranoia de ser produtivo e “bem sucedido” a qualquer custo e
assim construíam uma arte que era, antes de tudo, uma atitude de desprezo ao sistema e uma
proposta de luta contra ele pelas portas dos fundos, através de um enfrentamento cheio de
táticas irreverentes, criativas e bem humoradas, em que o corpo, ao ocupar seu lugar no
espaço ou deslocar-se nele, imprimia-lhe, a partir dessa relação, novos significados, novas
identidades para os lugares, que se tornavam vivos, abertos à construção coletiva e à
comunicação:
As peladas de quinta feira no clube Caxinguelê, no Horto, eram sagradas. Elas
também eram uma forma de nos reunirmos sem causar suspeita no meio daquela
ditadura brava. Era um ponto de encontro, uma coisa bem carioca, como o carnaval.
Ali não tinha impeditivo. “Por que tanta gente junta?” “Pô, os caras estão jogando
futebol” “Então beleza”. (COHN, 2007, p.59)
O píer reunia toda a contracultura carioca. Era uma espécie de lugar liberado no
meio da ditadura, as famosas Dunas da Gal.
Quando eles fizeram o emissário submarino para o esgoto, tiveram que colocar
aquelas tubulações monumentais que iam até o raio que o parta. Então, eles tiveram
que construir um píer por onde os funcionários e as máquinas pudessem passar para
seguir o trabalho. Esse píer era uma estrutura de ferro que avançava mar adentro, e
toda a areia que eles removeram para colocar as tubulações foi jogada na praia, se
transformando em dunas enormes. O melhor é que essas dunas não deixavam que o
pessoal que estava no asfalto visse o que estava acontecendo na beira do mar. Então
a gente ficava lá embaixo, protegido da polícia, e todo mundo podia fumar seu
baseado em paz.
Em cima daquelas dunas começou a se reunir uma estranha espécie de seres peludos,
esqueléticos, com pouquíssima roupa e uma língua alada. Todo mundo ali,
desbundadíssimo, tentando reinventar um tempo legal. O Brasil andava sinistro, a
repressão voava baixo, a polícia colada atrás. E a realidade insuficiente para quem
queria espaço a fim de criar e reinventar o verbo. (COHN, 2007, p.17-18)
O espaço aqui passa a funcionar, como aquele proposto por Doreen Massey (2008):
“múltiplo, plural, produto de interrelações, uma abertura para a genuína esfera do político” (p.
29,30). Se a irreverência das vanguardas era mais centrada no texto, a da poesia marginal
seria voltada à vida, à experiência da rebeldia no cotidiano, em uma ânsia de deslocamento,
de uma renúncia à fixação de normas, seja ela moral, estética ou política. Isso não significava
um desprezo ao herdado culturalmente, mas essa herança só era consultada no momento em
63
que um dado do cotidiano a fazia irromper, através de um detalhe do entorno ou de uma voz
acolhida no instante poético.
Assim, essa arte não se furtava ao engajamento, mas ele era produzido e vivido sob o
crivo de uma imaginação múltipla, que, sem um ponto fixo, delineava cortes, metamorfoses, e
construía suas próprias conexões. Não era o engajar-se pensado somente de forma fria e
asséptica, como num paradigma cartesiano para fazer uma arte “politizada”, ou de “esquerda”,
mas uma procura, um deslocar-se sem cessar. Esse deslocamento é uma reinvenção do
presente, uma reação contínua ao que está posto que faz da poesia marginal uma arte
performática por excelência, já que usa das descontinuidades, dos movimentos e olhares
rápidos e aposta em uma estética experimental, dinâmica.
Essa experiência que privilegiava o imediato, arriscava-se, mudava, reagia aos
impactos do instante, enfrentando o que se apresentava no momento, no ato da cena. Afinal,
nesse cenário, o autor se misturava ao ator, já que tanto nas apresentações performáticas dos
textos, quanto na prática de oferecer os livros artesanais em feiras, portas de cinema, shows e
teatros, o próprio escritor se apresentava no chamado “corpo-a-corpo” com o leitor, como na
literatura de cordel, ou como os músicos repentistas. Essa atitude colocava o poeta circulando
nos espaços da cidade, inserido nela, não como aquele que a observa objetivamente, mas
como quem dialoga com ela e se faz nela, e é através desse trânsito, desse compartilhamento
com o tecido urbano que novas leituras do tempo, do espaço e desses corpos atuantes nele
serão possíveis; como poderemos ler no poema abaixo, de Chacal, de A vida é curta pra ser
pequena.
A Rua
artistas
mais que modernos
com o centro em seu tempo
queremos dinamizar espaços
que a nós pertencem por princípio.
como um dragão andaluz
só o spot das polaroides nos seduz.
que essas imagens
acústico cinético verbo visuais
habitem o domínio público
e se incorporem ao dia a dia das criaturas
nesse espaço a todos reservado: a rua
contra a maré
que nos quer fazer enterrar nossas miragens
no oco do pau
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jatos de cultura nativa
técnica, certeira como um dardo de bambu e aço
o único mistério é saber que as imagens pânicas nos
possuem
além disso, é a representação desse material
a rua nos interessa
a nós o que é nosso
que a rua abra a porta para nós
(CHACAL, 2007, p 54)
A rua é o espaço do artista moderno que, como um dragão andaluz (verso 6), é
multicultural como a Andaluzia espanhola, bárbara, árabe e cristã, e o contraditório dragão
pode ser uma síntese; símbolo do mal, para os europeus, ou do bem, para os orientais. Ele
possui aqui o desafio de lutar com o que permanece inconsciente, de forma subliminar, não
percebida, e trazê-lo à tona através de uma arte que, impulsionada, flexível, primitiva e
natural, como um dardo de bambu, tem a força certeira, moderna e resistente da perfuração do
aço.
Usando essa energia temporal submersa a seu favor, para que as imagens artísticas
“habitem o domínio público” (verso 10), o poeta, portador dessa força ctônica, trava sua
batalha contra um sistema que quer encerrar a arte no escuro, no “oco do pau” (verso 15), nas
aparências que escondem, camuflam os sentidos fósseis das palavras, das relações humanas e
da verdadeira vocação da rua, que sempre foi espaço propulsor da convivência de vozes
dissonantes, da cultura, e da liberdade de imaginação. Para não ser cegado pela sedução da
própria luz, o mistério das imagens e das miragens deve possuir e se incorporar aos espaços
dinâmicos das ruas para que outras portas dos sentidos humanos possam ser abertas.
Podemos ver esse mistério e suas clareiras na tessitura das grandes cidades, em suas
variadas descontinuidades temporais, como bem demostra Renato Cordeiro Gomes (1999),
quando, ao discutir o controle social engendrado pela modernização das cidades, afirma:
O planejamento, instrumento da racionalidade do urbanismo, é, dessa forma, um
marco simbólico das técnicas de intervenção nas cidades, produzindo equipamentos
capazes de transformá-la em meios formadores de homens e mulheres sãos e
moralizados, transformando pessoas em unidades individualizadas e padronizadas.
Pelo mecanismo de controle, constrói-se uma imagem domesticada de pluralidades
de tensões não resolvíveis. (GOMES, 1999, p. 204)
Se estamos diante da assepsia do metal e do vidro das modernas construções, ou em
uma feira em rua aberta, ou em uma praça habitada por moradores de rua, ou ainda em uma
65
favela, abrigamos, no mesmo lugar citadino, relações do corpo com o espaço definidas por
conceitos que foram modificados através dos tempos. Ao pensar nos burburinhos das ruas de
uma cidade medieval, que se faziam sem planejamento, ou sem qualquer preocupação com
seus detritos, veremos que ela guarda muita semelhança com as praças ocupadas por
moradores de rua, ou com as favelas. Mas o Estado Moderno, ao promover seu modelo de
poder, vai dividindo e organizando os corpos em atuações espaciais previamente definidas
para a pasteurização das diferenças e tensões não resolvidas. Reinventá-los, através de uma
outra consciência existencial, ao mesmo tempo, política e estética é a que se propuseram os
poetas marginais.
Tal postura procura romper com algumas práticas do moderno mundo capitalista,
seus demarcados tempos, espaços, mercados e valores, e se aproximar das dinâmicas das
concepções corporais estabelecidas por outros povos em outras épocas e lugares. José Carlos
Rodrigues (2008) nos faz lembrar as palavras de Le Goff (1985, p.219) sobre o engano em se
pensar que o passado esteja acabado, e acreditando que, ao contrário, o “pretérito e presente
formarão para nós uma espécie de globalidade única, em que o antes e o depois coexistirão de
maneira tensa, antagônica e cúmplice” (RODRIGUES, 2008, p. 31).
A arte nos traz essa coexistência, e a poesia, que foi escolhida neste trabalho para ser
analisada, Belvedere (2007), de Chacal, opera com um viés estético que aborda uma
sensibilidade corporal que vem de longe, mas que continua ainda presente, de forma residual,
no substrato de nossa mentalidade. Observa-se como a postura corporal foi importante para
que grupos de artistas da década de 1970 estampassem uma nova perspectiva diante de um
mundo cada vez mais consumista e propusessem uma existência mais espontânea e simples,
ligada ao corpo como um espaço também natural:
Quando o Clube da Esquina realmente surge, no começo dos anos 70, as duas
pessoas que tinham ficado no Brasil eram a Gal Costa, que cantava os baianos, e o
Milton Nascimento. Porque todos os outros grandes músicos da nova geração
estavam exilados. Então, esses dois músicos tinham uma presença muito forte no
meio da rapaziada. O Bituca cantando descalço, assumindo certas posturas, sem
camisa, isso era uma coisa muito chocante para a época. (COHN, 2007, p. 50)
O Nuvem Cigana, do Rio de Janeiro e o Clube da Esquina, mineiro, possuíam
membros em comum e havia uma troca de experiências entre eles, de forma que essa postura
corporal do Milton Nascimento, mencionada acima, faz parte de um conjunto de práticas que
era comum entre esses jovens artistas que vivenciavam o corpo e uma arte mais espontânea,
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livre de certas formalidades ou artificialismos. Essa mesma camisa do excerto acima, que falta
ao Bituca (apelido do músico Milton Nascimento), pode ser remetida ao primeiro poema de
Chacal analisado aqui, Solo, em que ela representa não só uma roupa, mas está relacionada
aos costumes que vestem e encobrem também os sentidos.
Percebemos então que havia um conjunto de ideias que vinculavam esses artistas
entre si. E é justamente essa a marca de um imaginário coletivo, que é ao mesmo tempo
afetivo, social, e político, ou seja, é cultural na medida em que se estabelecem relações que
permitem identificar um substrato ideológico comum e uma produção artística em que certas
representações imagéticas, posturais, como a citada acima, criam alguns significados
consensuais na memória da sociedade.
O estudo da obra poética de Chacal como uma parte importante dessa memória
coletiva traz o argumento de que há nela um conjunto de traços que nos permitem repensar
esses movimentos contraculturais dos anos de 1960/70 como uma reinvenção do tempo, do
espaço físico e social, da natureza e de suas relações com o corpo humano, entendido
enquanto completude carne-espírito. Embora muitas vezes a contracultura tenha sido pensada
como um conjunto de movimentos de jovens descompromissados com o mundo, podemos
observar que, na obra de Chacal, há um tom de brincadeira que não é um sinal de não
comprometimento, mas ao contrário, é uma atitude, uma tomada de posição de quem
pretendia burlar os ditames de seu tempo, de uma ditadura moderna, daqueles que não tinham
tempo para perder com brincadeiras; sérios, compenetrados em sua produtividade maçante,
uniformizados para o medo.
Chacal e o grupo da Nuvem Cigana criavam um clima que trazia o riso e uma
convivência mais estreita entre as pessoas, nas festas, nas ruas e nas casas acolhedoras, e uma
concepção do corpo e do prazer que revivia traços de uma cultura medieval no Rio em plena
década de 70. Algumas famílias abrigavam artistas, como o próprio Milton Nascimento, que
viveu com os Borges em Santa Tereza, Belo Horizonte, e com os Bastos, no Rio, e eram
mantidas relações de aprendizagem mútuas com esses agregados, semelhantes aos tempos dos
mestres e aprendizes, em que a prática de um ofício era exercitada dentro de casa, numa
convivência marcada por uma proximidade também física, corporal.
Estudar os textos de um poeta como Chacal pressupõe, antes de mais nada, um
desejo de demonstrar o quanto se tem deixado de valorizar alguns autores por não se pensar a
poesia e a própria arte como expressão de seu tempo, e, por isso mesmo, uma resposta, muitas
67
vezes repleta de embustes para se rebelar contra as formalizações impetradas nesse mesmo
tempo, sem que isso se torne evidente. As máscaras são agora de outro material, o riso, o
“besteirol” e a espontaneidade em relação ao corpo não são alheamento, mas possuem a força
de um enfrentamento matreiro, sorrateiro nos anos sinistros da ditadura; sem estrangular os
sonhos e a poesia, mas colocando-os como realidade maior, acima das vicissitudes de um
momento cruel da história brasileira. Observe que o poema abaixo oferece bem mais que a
proposta de viver intensamente o instante, o Carpe Diem, é um apelo de quem acredita que
nele está concentrada a intersecção dos tempos e a própria poesia:
Espere baby não desespere
espere baby não desespere
não me venha com propostas tão fora de propósito
não acene com planos mirabolantes mas tão distantes
espere baby não desespere
vamos tomar mais um e falar sobre os mistérios
da lua vaga
dylan na vitrola dedo nas teclas
canto invento enquanto o vento marasma
espere baby não desespere
temos um quarto uma eletrola uma cartola
vamos puxar um coelho um baralho
e um castelo de cartas
vamos viver o tempo esquecido do mago merlim
vamos montar o espelho partido da vida como ela é
espere baby não desespere
a lagoa há de secar
e nós não ficaremos mais a ver navios
e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida
e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim
espere baby não desespere
porque nesse dia soprará o vento da ventura
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos
(CHACAL, 2007, p.303-304)
Esse poema foi publicado primeiramente em tiragem artesanal em 1975, em um
volume intitulado América, logo após o retorno de Chacal da Europa, onde permaneceu por
onze meses. Assistira à apresentação de Allen Ginsberg em Londres, já então consagrado
68
poeta, vociferando o Howl de maneira performática, fazendo o então jovem poeta acreditar
que aquela era uma dicção com a qual iria trabalhar.
Esse poema de Chacal tem um tom lírico, um lirismo irônico de quem já rompeu
com o centramento e a linearidade convencionais, e por isso propõe um tempo mágico, difuso,
de uma imaginação que apreende as contiguidades de várias experiências vividas, ali,
instantaneamente, como se o instante captasse o passado fundido no presente e trouxesse, pela
palavra poética, uma outra perspectiva temporal .
O eco: “espere/desespere,” (verso 1 e o próprio título), “propostas fora de propósito,”
(verso 2), “planos mirabolantes distantes” (verso 3) reforça essa sensação na medida em que a
justaposição dos fonemas, a repetição sonora, produz uma quebra da progressão, da
linearidade. O imperativo “não me venha.../não me acene” (versos 2 e 3) é uma recusa à ação
racionalmente planejada em um tempo linear, progressivo, e um convite à permanência e à
fruição do instante.
Esse mesmo eco inicia cada uma das cinco estrofes. Na segunda, a conversa sobre a
lua, eterna imagem lírica, é também uma proposta de mudança do rumo de uma prosa
sucessiva, retilínea, para uma adesão a um colóquio em que o tempo é cíclico e a repetição é
também invenção. Então, essa palavra compartilhada é entorpecida, xamânica, fala de
mistérios; é o canto do poeta que produz a musicalidade da poesia e capta a canção do vento.
“dylan na vitrola dedo nas teclas” (verso 7); imediatamente nos vem à mente: Blowin
in the Wind, e como o vento que corre, o fluxo da consciência se expressa pela sobreposição
de sons e imagens que se parecem com lufadas que vêm e vão, indiferentes à razão,
desencadeando uma ambientação surreal, muito íntima daqueles que sonhavam com a
liberdade e com a fantasia de uma integração com a natureza na década de 1970. O próprio
estilo musical de Bob Dylan, o folk, o blues, associou, naquele momento, juntamente com a
cantora Joan Baez, o sonho e a imaginação a uma música politicamente envolvida com temas
como a guerra do Vietnã e os protestos pela paz e pelo respeito ao homem e à natureza como
um todo.
Como os beats, muito caros também a Dylan, a simplicidade e o desejo de
experimentação constante farão do eu lírico um viajante pela magia da vida: “a cartola, o
coelho, o baralho, o castelo de cartas, o mago Merlin” (versos 10, 11, 12 e13,
respectivamente) e sua dubiedade existencial, todos são signos das incertezas e da profusão de
sentidos e experiências que a vida oferece a quem dispõe de energia e intuição para “montar o
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espelho partido da vida como ela é” (verso 14), sem idealizações racionalizantes ou
definitivas.
Tudo é provisório; a “lagoa há de secar” (verso 16), o que está estagnado irá
evaporar, não existe nenhuma solução final, há sempre um recomeço, e viver com
premonições ou expectativas pessimistas não muda o rumo dos ares; a sorte já está lançada, o
espelho já se partiu. “O vento da ventura, a roda da fortuna, e o canto do amor” (versos 21, 22
e 23) chegarão no momento certo, indiferentes ao desespero de quem quer controlar o tempo,
essa fase de infortúnio irá passar...
O texto tem um tom otimista de quem acredita que os anos de chumbo são apenas
um pequeno intervalo, uma fase, diante de uma dimensão temporal não linear; nela se
inserem, na contingência histórica imediata, os mitos e um tempo cíclico, pagão, mágico. Há
concomitantemente, portanto, uma recusa transgressora do tempo sucessivo da História oficial
e à convenção moral cristã, por quem não espera a punição final por querer gozar a vida.
E essa é também uma atitude dissonante como a de que nos fala Octavio Paz no
capítulo “Literatura e Convergência”, em A outra voz (1993), quando aborda a fusão da
mudança e da permanência com a ideia de um perpétuo recomeço. Em: “e nós não ficaremos
mais a ver navios/ e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida/ e nós não ficaremos mais a
temer a asa negra do fim” (versos 17, 18 e 19) toda uma perspectiva temporal de sucessão e
irreversibilidade é negada e o eu lírico propõe um novo começo, mais compatível com a
postura de quem quer gozar a vida sem o peso de uma culpa atávica. Então, o ficar a “ver
navios”, por exemplo, não cabe para nós, americanos; aqui, os navios chegaram, não se foram
e “o fio da vida” não será roído, porque, apesar das rupturas, sempre haverá um outro início,
uma outra ponta. Nem o mau agouro de “a asa negra do fim” será temido, porque essa asa
pode ser aqui a de Exu, divindade que tem o poder de desfazer as maldições. O vento, a roda
e o canto (última estrofe) estarão sempre presentes, eterno retorno, prometendo outra
dimensão da vida, mais plural e sincrônica, que romperá com esse tempo da queda ou do juízo
final, da culpa que nos foi incutida pela moral cristã.
Como nos mostrou Paz (1993), o eu lírico da modernidade dos fins do século XX,
não é mais o anjo caído de Baudelaire, de “As Litanias de Satã”, mas o vagabundo
claudicante, que tem para oferecer apenas sua palavra e a magia da lua vaga e das “cartolas”
repletas de surpresas inusitadas e de invenções poéticas, além da música e do quarto “(temos
um quarto uma eletrola uma cartola/” (verso 10), espaço onde a imaginação criadora
70
imprevisível e o amor poderão ir ao encontro do prazer pelo aceite ao convite sedutor: Carpe
Diem.
Várias são as referências ao imaginário da contracultura underground aqui. Aliar
vida e arte aos prazeres do corpo e da mente, intrinsecamente conectados num todo não
esquartejado pelo pudor, num processo de rebelião permanente, são suas premissas. Chacal
compartilha dessas propostas do movimento beat, em que “a revolução não é nada se não
ocorre no interior de cada um” (KEROUAC, 2012, p.85). E esse interior é o nosso corpo
inteiro, com suas aberturas comunicativas para uma vida que procura fugir da culpa do pecado
original.
Os beats acreditavam que toda forma de rebelião só seria realmente válida se
desafiasse a sociedade, assolada por uma insensibilidade engendrada pela burocracia e pelo
consumismo. Burroughs, um dos principais representantes do movimento, e personagem de
“On the Road”, narrativa de viagem do grupo pelas estradas dos USA e do México, é assim
descrito pelo autor, Jack Kerouac:
Passava longas horas com Shakespeare, “ o Bardo imortal” ele o chamava, no colo.
(...) Tinha estudado Medicina em Viena, também conhecia Freud; estudara
Antropologia, tinha lido de tudo; e agora estava instalado para o grande trabalho de
sua vida, que era o estudo das coisas em si nas ruas da vida e à noite. (...) As cortinas
próximas a sua cadeira estavam sempre cerradas, dia e noite; aquele era seu canto na
casa. Em seu colo jaziam os códices maias (KEROUAC, 2012, p. 280)
Percebe-se, portanto, que é falsa a generalização de que a contracultura não
valorizava a tradição. A crítica feita pelo movimento era a forma como a sociedade colocava
essa tradição, como algo intocável; assim como as vanguardas europeias também o fizeram.
Eles acreditavam no poder de uma cultura viva, pulsante, que mantivesse uma ininterrupta
relação com o cotidiano, com a vida das pessoas e através dessa dinâmica revigorasse uma
tradição em trânsito com o senso comum para engendrar críticas mais reflexivas diante de
uma sociedade que reificava os homens e a natureza para torná-los mero recurso de um
capitalismo cada vez mais selvagem.
On the Road é considerado pelo crítico Howard Cunnell, no prefácio da edição
brasileira da obra em 2012, como um romance canônico da literatura norte-americana,
juntamente com Moby Dick, The Adventures of Huckleberry Finn e The Great Gastby.
No entanto, quando Kerouac terminou de escrever seu manuscrito em 1951, houve,
71
consecutivamente, rejeição de diversos editores, sendo publicado apenas em 1957. Podemos
perceber aqui também como são frágeis e provisórias as delimitações entre cultura e
contracultura e entre as margens e o centro... Chacal teve sua última obra, Murundum,
publicada pela grande editora Companhia das Letras, depois de imprimir seus próprios textos
de forma independente por vários anos, de 1971 até 1982, quando a pequena editora Taurus,
no Rio de Janeiro, publicou Tontas Coisas.
Hoje, a Literatura deixou de ter lugar de destaque, como bem salienta Marcos Siscar,
em Poesia e Crise (2010). A ilusão romântica de a poesia ter o poder de guiar os povos já não
cabe mais. Mas essa ideia de a poesia ser o lugar dos marginais, dos malditos, já vem,
segundo Siscar, desde Baudelaire. Mesmo a sua condição de “antena da raça”, proposta por
Pound, já traz a sua capacidade de revelar um perigo eminente em um momento de crise:
“falta de condições de poesia, da falta da poesia, ou da poesia que falta” (SISCAR, 2010,
p.42) Paira no ar, em As flores do mal, o fim da poesia, como uma condenação, e o poeta
como vítima e algoz, que vive da agonia do colapso da poesia ou da vida sem a poesia na era
da crença de um progresso técnico. “Constatar o fim dos tempos da poesia é um modo de a
poesia realizar o espírito moderno. É a generalização da poesia como seu inferno da poesia.”
(SISCAR, 2010, p.48) O poeta e a poesia carregam a capacidade de formalizar um discurso
que acolhe em si, para si, essa crise, como podemos ver abaixo, em trecho de um poema de A
vida é curta pra ser pequena:
cidade
..............................
parada cidade estranha
choque elétrico todo dia
a dias meses anos
desintegrar- bang big-
numa implosão final
impotentes para formatar
bilhões de bytes
trilhões de raios catódicos
em expressão inteligível
cidade: parada estranha
excesso exagero coisa fumaça
corpo crivado de bits
corpo crivado de bits
corpo crivado de bits
(CHACAL, 2007, p.52,53)
72
As alterações materiais da leitura e das formas como se tem acesso à poesia nas
sociedades industriais a partir de meados do século XX acentuaram-se muito. A publicidade,
as tecnologias e os meios de comunicação de massa estão incorporados no discurso poético
como formas de redefinir e denunciar essa falta a que Siscar se refere. Chacal fez isso no texto
acima, sem deixar de retomar essa ambiguidade do corpo do poeta e da poesia, algoz e vítima,
que já estava presente na modernidade desde Baudelaire.
Assim, dentro do processo de “desintegrar- bang-big -/ numa implosão final/
impotentes para formatar/” (versos 4, 5 e 6) os próprios limites entre identidade e alteridade
estão fraturados, já que, como lembra Stuart Hall (1997):
Um tipo distinto de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas
no final deste século, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnicidade, raça e nacionalidade que nos deram localizações sólidas
como indivíduos sociais. Estas transformações estão também modificando nossas
identidades pessoais, enfraquecendo nossa percepção de nós mesmos como sujeitos
integrados. Esta perda de um sentimento estável do self é algumas vezes chamada de
deslocamento ou descentramento do sujeito. (HALL, 1997, p. 5)
Esse deslocamento está presente em toda a narrativa de Kerouac, apesar de ter sido
escrita na década de 50, antes dos fins do séc. XX, a que o texto de Hall (1997) se refere.
Sabemos que a arte antecipa as questões de seu tempo e oferece respostas que desestabilizam
zonas de conforto. Quando o texto expõe as comunidades subterrâneas nos EUA e a sua
cultura de origem em trânsito permanente, como a dos imigrantes hispânicos, os miseráveis
desempregados, os índios que perambulam pelas hordas das cidades, alcoolizados, com seus
olhares opacos, ou os guetos dos negros, onde a revolta, a alegria e a tristeza são expressas
através do jazz, ele está rompendo com a homogeneidade do espírito nacional norte-
americano do pós segunda guerra e do início da guerra fria, que pretendia justamente o pacto
do sujeito centrado com a nação íntegra.
O narrador de On The Road e seus companheiros de viagem se irmanavam com as
pessoas que viviam em ambientes miseráveis, que, como nos tempos medievais, misturavam
corpos, detritos e animais, assim como o eu lírico do poema Solo, de Chacal, analisado no
início desse capítulo. Veja-se como o excerto de On the Road abaixo nos mostra exatamente
isso:
73
(...) cabanas mexicanas caindo aos pedaços em algum lugar além da Avenida
Alameda. Esperei num beco escuro atrás das cozinhas mexicanas(...) Lâmpadas
pequenas iluminavam minúsculos becos de ratazanas. Podia ouvir Bea e sua irmã
discutindo sob a suave noite cálida. Estava preparado para o que desse e viesse. Bea
saiu e me conduziu pela mão (KEROUAC, 2012, p. 215)
Uma tensão desintegradora atravessa todo o romance, que possui uma respiração
ofegante, uma pontuação esdrúxula, numa cadência frenética, como a ânsia de continuidade
de deslocamento das personagens pelas estradas, pela viagem em si, onde o destino importava
pouco ou quase nada. A necessidade de encontrar algo não denominado é sempre
mencionada, mas nem as personagens sabem o quê. Talvez seja uma metáfora da
ambivalência do eterno desejo humano pela viagem, pela procura insaciável por um mundo
em que o fluxo da vida e das palavras se fizesse em um mesmo caminho.
Toda a longa narrativa, de quase quinhentas páginas, foi escrita originalmente em um
rolo de papel único e contínuo, sem parágrafos ou capítulos, em uma linguagem que
descostura a sintaxe tradicional, pois usa pouquíssimo a subordinação e quase sempre a
coordenação, como se todos os fatos tivessem um valor paralelo, em um ritmo contínuo em
que a vida transcorresse freneticamente, da mesma forma que a narrativa. Assim a
performance dos corpos em movimento através dos lugares percorridos flui no mesmo
compasso da performance das palavras ágeis pelo papel, e os limites do corpo e espaço
tornam-se permeáveis: “Pela primeira vez na vida o clima não era algo que me envolvia, me
acariciava, me enregelava ou fazia suar, mas era parte de mim mesmo. A atmosfera e eu nos
tornamos a mesma coisa.” (KEROUAC, 2012, p.444)
Novamente, como vimos em Chacal, o corpo vive de sua realidade na existência
sensível, material, espacial, da mesma forma que o corpo das palavras vive de sua
materialidade expressa no papel. Assim como somos feitos do espaço que ocupamos, e da
comunicação que estabelecemos com os outros espaços e os outros corpos, a palavra poética
também se faz de sua materialidade, de seu som, que rasga o silêncio, ou marca o branco da
folha como as pegadas daquele que caminha...
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3 A PALAVRA E OUTRAS MARGENS
Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Mas traduzi-lo é dissimulá-
lo. A expressão verdadeira esconde o que ela manifesta. Opõe o espírito ao vazio
real da natureza, criando por reação uma espécie de cheia do pensamento. Ou se
preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no
pensamento. Todo sentimento forte provoca em nós a idéia do vazio. E a linguagem
clara que impede esse vazio impede também que a poesia apareça no pensamento. É
por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de
revelar têm mais significação para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas
análises da palavra. (ARTAUD, 1999, p.79)
3.1 Palavra-corpo
Se os corpos se definem pela sua materialidade e pelos seus deslocamentos, resultam,
a partir dos movimentos, fricções, marcas, não só em si mesmos, mas nos/dos espaços
percorridos e/ou ocupados no tempo delimitado de sua existência. Assim também a palavra
poética traz em si percursos e significados já praticados e, no instante e na forma usada,
muitos vêm à tona, e aqueles que mais chamam a atenção do leitor são selecionados, podendo,
inclusive, não terem sido pensados pelo autor. Cabe aqui a frase do poeta Ralf Waldo
Emerson (USA,1803-1882) lembrada muito oportunamente pelo também poeta marginal,
Waly Salomão (1944-2003): “Language is a fossil poetry” (Salomão, 2014, p.438), para
reverenciar essa palavra que se faz de depósitos decantados, sínteses de tempos e lugares que
se apresentam submersas nela, e que podem aflorar com a pressão de novas forças do instante.
A palavra poética, além disso, sempre propõe um jogo de imaginação porque
trabalha com a ausência, o que é expresso já traz em seu bojo o que não está mais ali, mas que
está nas margens dos significados. E esse aspecto da poesia, se a faz perder em exatidão, faz
ganhar no adensamento da expressão, na extensão dos sentidos proporcionada por jogos
estabelecidos em operações mentais diversas, já que é próprio da natureza da poesia propor
uma atenção lúdica que necessariamente envolve os que aceitam o convite para entrar na roda.
Esses aspectos lúdicos da palavra poética, como o uso da paródia, do pastiche e da
intertextualidade foram largamente explorados por Oswald de Andrade, e Chacal, seu grande
admirador, soube também, através dessas operações formais, fazer outras combinações, além
das já presentes na “Antropofagia” e no “Pau Brasil”, em novas composições em que as
75
marcas da colagem tornam-se reorganizadoras dos elementos postos e prepostos. O
movimento tropicalista e o concretismo usaram também esses recursos e ambos aparecem
rearticulados na poesia de Chacal. Evidenciar esse trabalho na obra do poeta carioca torna-se
instigante para repensarmos esse conjunto ainda em processo de interação na poesia brasileira.
As ideias de Marjorie Perloff (2013), desenvolvidas em O Gênio não original, de
que a poesia concreta funcionaria como um movimento de “retaguarda”, em relação às
conquistas linguísticas praticadas pela vanguarda artística europeia, serão também muito
importantes para situarmos a produção poética de Chacal como um refluxo dessa retomada.
A poesia de Chacal convida o leitor para ser mais um partícipe desse jogo e, nos anos
de 1970, sem deixar de criticar as condições do momento histórico da ditadura militar,
brincava com elas, fazendo uso da colagem e de um tom que, através de uma tática rebelde e
de elementos surpresa, contagia, envolve e cativa:
É PROIBIDO PISAR NA GRAMA O jeito é deitar e rolar.
(CHACAL, 2007, p.214)
Johan Huizinga, em obra escrita em 1938, que se tornou clássica, enfatiza a origem
lúdica da poesia e seu ancestral comum com o sagrado e o mítico, afirmando guardarem todos
eles um parentesco entre si, na medida em que enfrentaram o desafio de dar respostas às
questões da origem das coisas e dos seres. Ao enumerar as características comuns entre o jogo
e a poesia – os limites espaciais e temporais, a ordem e as regras livremente aceitas, “o fato de
estarem fora da esfera da necessidade ou da utilidade” (HUIZINGA, 2004, p.147), e o
entusiasmo acompanhado de exaltação, de uma tensão seguida por uma distensão – procura
definir a poesia como um jogo com as palavras, com a linguagem.
Na antiguidade, os jogos enigmáticos e as adivinhações faziam parte dos contextos
ritualísticos e das figuras mitológicas, como na edipiana esfinge, mas essa ligação do sagrado
e do cosmogônico com a vida da pólis vai se desfazendo processualmente na medida em que
as relações sociais tornam-se mais complexas, porém a poesia não perde essa natureza
agônica ancestral, que não se desvencilha do riso, do jogo, do êxtase.
Esse êxtase do ritual, do jogo, ou mesmo o da festa, do gozo, resulta de uma
desvinculação temporária com o tempo cronológico imediato. Visceralmente marcadas em
nosso imaginário, as festas religiosas, com suas danças, músicas, imagens cultuadas, cores e
76
adornos na decoração, os alimentos servidos nas ruas e praças, o exagero, a fartura, a
extravagância e as fantasias vestidas ou sonhadas representam um momento de suspensão da
execução de tarefas do cotidiano. Como o jogo, é um intervalo com tempo próprio. Se
pensarmos nas festas populares, de rua, chegaremos ao período medieval em que elas
duravam, em seu total, segundo Bakhtin (1993), um quarto do ano.
Hoje, nos grandes centros urbanos, esse tempo intervalar e de convívio coletivo
apresenta-se completamente estrangulado, são reservadas apenas algumas horas anuais para as
festas, e mesmo assim elas estão completamente desvinculadas desse contexto de consagração
da igualdade e abolição das barreiras sociais, estudadas pelo grande pensador do medievo.
Nas cidades em que “o tempo é dinheiro,” falta esse intervalo, mas os loucos e os
moradores de rua o trazem de volta (e isso nos incomoda muito) na medida em que eles
estabelecem uma outra relação entre o corpo, o tempo e o espaço, vagando despreocupados.
Trazem em seus próprios corpos os restos pulverizados de tudo ao cobrir-se dos fragmentos
das ruas, retomando e incorporando, de uma forma esdrúxula, uma amostra da totalidade
citadina em si, como que numa espécie de ausência de fronteiras entre eles mesmos e os
vários resíduos rejeitados das cidades. A pele sensível e seus poros comunicativos captam
partículas mil, o corpo humano é permeável e os limites físicos que proporcionam as
sensações são vazados, vulneráveis. Da mesma maneira, a palavra poética é também porosa e
oferece a possibilidade de trânsito entre os sentidos racionalmente estabelecidos e outros, que
permanecem latentes.
A cultura disciplina e efetua um controle entre os sulcos do corpo humano, o do
outro e o ambiente, estabelecendo alguns limites, tempos e espaços adequados para a
existência em sociedade. Esse controle se apresenta muitas vezes fragilizado, como no caso
dos loucos e dos moradores de rua; ou modificado, como nas festas em que os exageros eram
(e ainda o são, em certa medida) tolerados. Mas sair da “zona de conforto”, dos tempos e
espaços emoldurados é também um risco que muitos artistas/poetas ousam tentar ultrapassar,
trazendo uma palavra, uma expressão que opera com a falta, com o que está ausente, com
outros limites, estabelecendo uma conexão diferente com o tempo, o espaço, o corpo e a arte,
como veremos em alguns poemas de Chacal que analisaremos aqui, e em outras atuações suas
como artista e promotor cultural.
O artista plástico tropicalista, Hélio Oiticica, também trabalhou muito bem com essa
ideia do corpo enquanto matéria viva que ocupa e se desloca nos tempos e espaços, e a arte
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como matéria possuidora de outras possibilidades de representação, que intercede nessas
relações. Antecipou criativamente, portanto, várias discussões formais e conceituais da arte,
quando criou em 1960 o “Parangolé”. Viu uma instalação construída e assim denominada por
um morador de rua, e apropriou-se do nome, que significava “coisa”, “treco”, para montar sua
obra/capa/tenda. Esse investimento do sentido poético com uma linguagem das trivialidades,
das banalidades, também através de seu corpo significante, está, da mesma forma, no nome e
no último livro de Chacal, publicado pela Cia das Letras em 2012: Murundum.
O autor esclarece na contracapa do livro que a palavra significa “uma quantidade de
qualquer coisa; porção, monte. Coisas (papéis, canetas, blocos, objetos) desordenadamente
colocadas ou guardadas em qualquer lugar. Bagunça. Confusão.” A valorização do que é
resto, do que é descartável pela sociedade do consumo e pelo refinamento cultural insosso,
incrustado em seu próprio miolo, centro compactado e refratário às mudanças, está registrada
no poema “Aquilo que sobra”, abaixo, que nos faz lembrar de muitos poemas do original
poeta moderno, Manoel de Barros (Mato Grosso 1916-2014) que também trabalhou com uma
poesia que valoriza as miudezas, os materiais descartáveis e inusitados: “minhocas arejam a
terra, poetas, a linguagem”. Esse verso de Barros está na epígrafe de Letra Elétrika, de
Chacal. E em Murundum vemos:
gosto daquilo que sobra
daquilo que as pessoas desprezam.
na feira, recolho entre os dejetos
a semente da abóbora, a folha da mandioca.
no empório compro o farelo do trigo, do arroz.
gosto de me alimentar de coisas nutritivas.
pessoas principalmente.
mas nossa cultura, assim como os grãos, refina
as pessoas.
tira delas o mais nutritivo e deixa apenas o miolo
sem substância.
(CHACAL, 2012, p. 13)
Essa particularidade do último livro de Chacal e a ideia de reciclagem como recurso
poético aproximam sua obra à de Oiticica e do movimento tropicalista. No posfácio de Poesia
Total, de Waly Salomão (2014), o artista plástico reafirma essa noção de corporeidade ou
materialidade da palavra, objeto artístico, como uma espécie de depósito, síntese do que o
raciocínio lógico não foi capaz de comunicar anteriormente.
78
É como se no dia seguinte, quando você olha tudo o que tinha escrito na véspera,
você procura recondicionar tudo acrescentando uma nova perspectiva. E cada parte
nova que você acrescenta é o recondicionamento do que foi feito antes, quer dizer,
inclusive reformula de outra época. Então há nessa posição, como se fossem
compartimentos do dia a dia, como se fossem lixos que você deposita, não sensações
ou experiências do dia a dia. (OITICICA, 2014, p.517)
Ao refletir sobre vários aspectos de sua escultura móvel, “Parangolé”, repleta de
materiais igualmente banais, que realmente iriam para o lixo – recortes, retalhos, borracha,
plástico, corda, palha – voltamos ao Murundum, de Chacal. Primeiramente a associamos à
performance, ao gesto, ao próprio corpo em interação dinâmica com a escultura, lembrando a
dança, a festa, a fantasia, a rua e os contatos multiculturais, que são a tônica do tropicalismo.
Traz ainda uma reflexão, muito reincidente nos poetas marginais e em Chacal, sobre o conceito
de “objeto artístico” dentro da economia simbólica da sociedade de consumo; ou ainda sobre as
controvérsias, limites e deslimites da cultura como metáfora da rua/casa/abrigo/desabrigo. A
obra de Oiticica sinaliza uma importante discussão sobre a cultura como algo que nos veste,
compõe, sustenta, e nos expõe ao novo, ao trânsito, ou nos domestica, aprisiona; e a arte como
um ato de desfamiliarização ou desautomatização do contumaz, que traz possibilidades de
construir respostas, de exercitar a dúvida, de vestir a utopia em sua espinha; a linguagem como
o corpo da expressão artística.
Nessas esculturas móveis de Oiticica apareciam frases como: “Incorporo a revolta”
ou “Estou possuído”. Pensando sobre essa forma extremada, essa linguagem corporal da
rebeldia, podemos chegar à ideia da expressão como uma necessidade do artista que produz seu
objeto a partir da incorporação de outros retalhos discursivos, de vozes entrecortadas por
outras, desterritorializadas e caóticas e as potencializa em si.
E podemos ainda relacionar esse aspecto da expressão artística, presente nas frases
de Oiticica acima, à composição do objeto artístico como um agrupamento de descartes dos
corpos, lascas, farelos, tal qual nos fala Chacal em Murundum, como muitos dos poemas de
Waly Salomão (Bahia, 1943; Rio de Janeiro, 2003), contemporâneo de Chacal em publicações
nos anos de 1970, que também atribui à poesia essa capacidade de presentificar restos de
outros corpos/palavras fluidas, em uma atividade criadora, comunicativa, que atravessa a
linguagem (como nos disse também Manoel de Barros no verso acima), num exercício com a
alteridade, uma performance que se confunde com a própria arte:
79
Há uma lasca de palco
em cada gota de sangue
em cada punhado de terra
de todo e qualquer poema.
(SALOMÃO, 2014, p. 395)
O poeta foi amigo pessoal e grande admirador da obra de Oiticica, admitindo,
inclusive em versos, o contato com o artista plástico como determinante em sua poesia. Flávio
Boaventura (2009), estudioso da obra de Waly Salomão, acrescenta: “a constituição do
sentido do discurso se dá - e isso fica patente em Waly- a partir de interações, interseções e
atritos; através da voz do poeta falam outras vozes, enunciadores e enunciatários”
(BOAVENTURA, 2009, p.52). Mário de Andrade parece estar enviesado no trecho do poema
acima de Waly, com seu livro de estreia, em 1917; Há uma gota de sangue em cada poema.
3.2 Tempos-espaços
O deslizamento metonímico está muito presente na obra de Chacal, e é também um
sintoma, como veremos no poema abaixo, de Belvedere, mas sintoma de uma era em que o
tempo de comparar míngua, e em seu lugar acumulam-se imagens que se sucedem
freneticamente. Esse recurso às vezes torna sua escrita aparentemente uma coisa de louco,
ilógica, como se ele apenas agrupasse, sem nenhum critério, signos banais do cotidiano que se
apresentassem de imediato. Mas uma leitura mais atenta desmente essa primeira impressão:
NEW YORK
atravessar new york de leste a oeste
e de frente pro rio, perguntar;
_ e aí hudson? qué pasa?
você que viu as torres gêmeas explodirem
sob o risco histérico dos wasps que te detestam
você que me viu caminhar devagar
entre seus canyons de cimento e aço
new york, fratura exposta, flor obscena de henry miller
gothan city, babilonest de hélio oiticica, musa de
80
woody allen, campos de centeio forever
new york, submundo de lou reed, madona, jarmusch.
putas e gigolôs, travecos e junkies.
chinatown, little italy, wall street, civilizações em si
new york, verdadeira beleza americana,
washington square, músicos de metrô, luisaida
muito maluco falando sozinho e os cafés do village
taxi driver na porta do metropolitan
new york muitas vezes new york
expressão perfeita do capitalismo wasp que te odeia
porque conheces a beleza e amas o outro
que te atravessa prá perguntar:
_ e aí ó hudson?
new york central park dos achados e perdidos desse
mundo
(CHACAL, 2007, p. 17-18)
Atravessar a cidade de New York, no poema, exige desse eu lírico caminhante bem
mais que ouvir a voz do Rio Hudson. Passar através desse espaço, exige um recorte da área,
não só com os passos, mas com a mente e o corpo inteiro, numa atitude de (re)conhecimento
de seu território, de seus (des)limites, de suas representações. O Rio Hudson, antes profundo e
caudaloso, agora assoreado e poluído no centro de Nova Iorque, é interrogado sobre o que se
passa pela cidade. Ele parece não poder responder à interpelação, pois perdeu a antiga força,
suas águas, hoje mais rasas e turvas, viram demais, sabem muito das terras que margeiam, e
sua transparência se perdeu.
Viu a construção e explosão das torres do World Trade Center, esse símbolo do
poder e da cultura industrial norte-americana já não existe, e algo mais se fragmentou, além
de cimento, aço e vidro. Os wasps (white, anglo-saxon and protestans), detestam essa Nova
Iorque que se (re)apresenta agora, cheia de corpos estranhos, com outras cores, vestida de
outras crenças que incomodam tanto aqueles que se julgam representantes da origem pura das
terras norte-americanas.
Agora a cidade trincada traz consigo as “impurezas” que se infiltram nas rachaduras
que estão expostas, visíveis para quem quiser enxergar esses novos elementos que compõem o
espaço e as imagens que substituem aquela de uma brancura conquistada com muito vermelho
do sangue dos indígenas exterminados.
E essa “fratura exposta” (verso 8) contém as obscenidades de um escritor malvisto e
banido nos Estados Unidos e no Brasil por longo tempo: Henry Miller (New York 1891-
81
1980), um socialista que, com sua escrita às vezes caótica, misturava autobiografia com
ficção, manchando, com sensualidade e pândega, a moral e a sobriedade sisuda dos puritanos.
E nessas rachaduras aparece a imaginária “gothan city” (verso 9), fundada por
mercenários estrangeiros, que perderam seu controle para os ingleses, mas onde, mesmo
assim, permaneceram corrupção, criminalidade e rituais que causam aversão aos cristãos
anglicanos; por isso, é uma cidade babilônica, em que povos de todas as partes do mundo se
misturam, mesmo sem querer, na paisagem onde o homem morcego realiza suas proezas em
defesa do capital. A “babilonest13
de hélio oiticica” (verso 9) possuiria então essa escritura
cuneiforme, com pictogramas que representariam todos os formatos do mundo. De fato, Hélio
Oiticica, que morou anos em Nova York, desejava registrar muitas formas de representar a
experiência dos corpos em uma linguagem multiforme, em que variadas culturas pudessem
conviver, sem se reduzir por isso a explicações lineares, mas em um trânsito constante,
maleável e sensível, cuja síntese seria o próprio movimento do ser e do processo de
construção do conhecimento. A arte seria, portanto, um entrelaçamento simbólico dos gestos
(a palavra estava inclusa, ela seria também produto de um corpo em movimento) e dos
silêncios.
Nova Iorque é a musa eleita de Wood Allen (verso 10) e é sempre cenário de seus
filmes. Em “campos de centeio forever” (verso 10), temos The Catcher in the Rye, de
Jerome David Salinger (New York, 1919-2010), um dos romances mais vendidos do mundo,
publicado em 1951, em que a personagem central, Holden Caulfield, é um adolescente
alienado, com sérios problemas de identidade e de relações de pertencimento, que após ser
expulso do colégio, visita um hotel decadente e perambula bêbado e solitário pelas ruas de
Nova Iorque. O eu lírico do nosso poema também caminha devagar (verso 6) pela mesma
cidade, e, à maneira de um fotógrafo, recorta essas imagens que nos são apresentadas com a
mesma itinerância do adolescente fugitivo de Salinger.
Em “new york, submundo de lou reed, madona, jarmush.” (verso 11) temos um fluxo
itinerante de menções a: Lou Reed (New York, 1942- 2013), músico, guitarrista, fotógrafo e
poeta, que fala também de deslocamentos na cidade em suas canções (“take a walk on wild
side”); Madonna, cantora pop, que dispensa apresentações e Jarmush (USA,1953),
13
A expressão “ babilonest”, além de fazer referência à Babilônia, possui um sufixo que nos faz relacioná--la ao
nome de uma música de Lobão e Cazuza: Baby Lonest, em que uma mulher do asfalto de uma grande cidade
possuiria um amor que a deixaria em cacos e ela carregaria todo o ocidente nos ombros, numa alusão à antiga
cidade da Mesopotâmia, sua riqueza científica que nos foi legada, à torre de babel e à origem única da língua
indo-europeia.
82
compositor, produtor independente, ator e diretor de cinema, cujo filme “Dead Man” é
considerado um anti-western, porque focaliza a crueldade das mortes dos índios norte-
americanos, e não é, portanto, um elogio aos civilizadores ingleses, pelo contrário. É
interessante observar que todos os nomes próprios usados são grafados com letra minúscula, o
que nos faz pensar que, no poema, eles são apenas um substitutivo, uma metonímia para a
cidade, e, por isso, de alguma forma se equivalem, um pode ser o outro. Não há certezas ou
espaços fixos, e eles se desdobram uns dos outros.
As palavras que se seguem na quarta estrofe fazem referência a drogas, prostituição e
ao submundo sombrio da metrópole que se abre a um comércio interno de toda sorte, Wall
Street, suas ações, e o externo, em que povos europeus e asiáticos comparecem. Há ainda
palavras com duplos sentidos: “Chinatown” (1974), bairro da cidade, e um filme de Roman
Polanski, com perigosos jogos de poder e sedução, e “Junkie”(1951), é o nome de um
romance confessional do beat William Burrroughs (USA,1914-1997), professor, escritor e
antropólogo, em que narra sua experiência com a ingestão de heroína. A palavra dá nome
também a um programa de rádio nos EUA.
Na quinta estrofe, outro filme: “Beleza Americana” (1999), do diretor Sam Mendes,
é um clássico que satiriza os estereótipos de satisfação pessoal, enfatizando a monotonia de
uma vida confinada do cidadão de classe média, mostrada por um narrador que relata sua
própria morte. Essa dinâmica machadiana possui cenas exuberantes em que imagens repletas
da cor vermelha (das rosas da paixão de um desejo não realizado, e do sangue no momento
em que o protagonista/narrador é assassinado) contrastam com a aridez que assola uma
existência medíocre e aprisionada.
“washington square” (verso 15), nome de uma obra de Henry James (1843-1916),
escritor norte-americano que viajou muito por toda Europa, também nomeia um parque em
Nova York e as construções ao seu redor, que servem à universidade local. Luisaida14
, festa
latina tradicional, com música, dança e artes, também faz parte do conjunto imagético da
cidade e de todas as culturas que a alimentam e são alimentadas por ela; os músicos
ambulantes, os frequentadores dos cafés e os motoristas de táxi. E assim, no verso dezessete,
surge o “Taxi Driver” (1976), outro filme marcante e premiadíssimo, de Martin Scorsese, que
nos revela uma Nova York insone e violenta, de crimes, exploração e prostituição infanto-
juvenil. Esse taxi driver do poema está na porta do Metropolitan, um dos maiores museus do
14
A palavra significava Lower East Side neighborhood, termo que, latinizado, passou, por aproximação
fonética, a Loisaida, dando nome ao festival que acontece na rua.
83
mundo, que abriga obras de arte do mundo antigo, dos assírios, da Babilônia, dos gregos e
romanos, instrumentos musicais, armas, roupas e vasta coleção de pinturas europeias dos
séculos XII ao XX. Assim, observamos novamente os contrastes em vários tons dominando
essa paisagem citadina.
E essa cidade que nos é mostrada, e que se mostra em seus contrastes, é a “expressão
perfeita do capitalismo wasp que te odeia” (verso 19). O white, anglo-saxon and protestant
não aceita essa Nova Iorque multicultural. Mas o eu lírico, que a atravessa e conhece sua
capacidade de abarcar um mundo perdido e seus achados contrastantes, a ama. E é por isso
que ele a (re)constrói metonimicamente, várias vezes, através de várias imagens, numa atitude
hiperbólica, que quer preencher a impossibilidade, a falta de uma descrição ou comparação
metafórica, para registrar sua beleza em profundidade, usando um tom íntimo e singelo que só
os amantes correspondidos podem ter. A cidade o ama também porque ela, assim como o eu
lírico, conhece o sentido da beleza do/no caos, e ele estrutura esse caos com uma lógica
interna, presente no processo de elaboração do objeto artístico.
Ao falar desse caos da cidade de Nova Iorque, Chacal se aproxima de outro artista
brasileiro que também cantou essa cidade paradoxal; Sousândrade (Maranhão, 1832-1902).
Dentro de uma cronologia estreita, ele poderia ser chamado de romântico, como os autores de
seu tempo, mas seus textos antecipam uma linguagem e um conjunto temático que só poderia
ser valorizado a partir das realizações do modernismo, em 1922.
Ignorado no século XIX, foi resgatado pelos concretistas, os irmãos Campos, e a
partir da década de 1960, passa a ser estudado como um talentoso escritor brasileiro,
incompreendido e desvalorizado pelos seus contemporâneos, por trazer uma linguagem bem
diferente dos padrões do romantismo. Em sua mais importante e não terminada obra, o poema
narrativo O Guesa (s/d) – (supõe-se que a impressão tenha sido feita por volta de 1870, data
em que passa a viver nos EUA) – seu personagem título é um índio que tem como sacrifício
ritual uma peregrinação sem fim pelo mundo. O seu autor também viajou por vários anos
consecutivos por quase toda a Europa e Estados Unidos, onde morou por dez anos, para, por
fim, retornar ao Maranhão.
No Canto X de O Guesa, o autor antecipa essa crise de representação na
modernidade, que se mostra na constituição da própria palavra poética, como desejamos
enfatizar aqui. Ao romper com a estrutura discursiva romântica e sua linearidade, traz uma
cidade em que os ideais humanistas são decompostos pela especulação e corrupção. Se no
84
poema do escritor carioca, Nova Iorque nos é apresentada por uma série de metonímias
sobrepostas, que se configuram em referência ao universo cultural ao longo do século XX, e
os primeiros anos do XXI, em Sousândrade (s/d), essa (des)configuração se faz também na
própria linguagem, que coloca o caótico através de um multilinguismo e uma sobreposição
babélica de vozes que beira o incomunicável e apresenta-nos a impossibilidade de organizar
racionalmente esse mundo/cidade:
(a voz mal ouvida d’entre a trovoada:)
– Fulton’s Folly, Codezo’s Forgery...
Fraude é o clamor da nação!
Não entendem odes
Railroads;
Parallela Wall-Street à chattána
(SOUSÂNDRADE, s/d, p. 231)
Há também um sentimento de repulsa diante do horror que advém da imagem de
Nova Iorque. Ela é desespero e o Guesa não é um turista encantado, mas um sobrevivente,
que vê a intensificação, até a confusão geral e a ausência da ética cristã, de um liberalismo
econômico que a ergueu. Na bolsa de valores, corretores apregoam como bárbaros, ao mesmo
tempo oportunistas e escravos do sistema, do inferno em Wall Street “(corrupted free men
are the worst of the slaves)” (SOUSÂNDRADE, s/d, p.196):
(Morris Attorney; Cardozo, inventor; Young, Esq.;
Manager; Atkinson, agent; P. Offman & Voldo, agents;
Algazarra, miragem; ao meio, o Guesa:)
–Dois! Trez! Cinco mil! Se jogardes,
Senhor, tereis cinco milhões!
– Ganhou! há! haa! haaa!
– Hurrah! ah!...
– Sumiram.... seriam ladrões?
(SOUSÂNDRADE, s/d, p.231)
Ao trazer essa justaposição de vozes como operadora da linguagem, para mostrar o
caos do liberalismo econômico da cidade moderna, não podemos deixar de nos lembrar de
Walter Benjamin, e seu ousado “Projeto das Passagens”, que escreveu sobre a história cultural
e social de Paris do século XIX, com seus labirintos das arcadas, em um inovador sistema de
arquivo em temas e palavras-chave cuja problemática central era a sociedade mercadológica.
O livro ficou, coincidentemente também inacabado e incompreendido em seu tempo,
85
inclusive pelo filósofo e amigo Adorno (Alemanha 1903-1969), que, ao receber de Benjamin
manuscritos, critica seu trabalho por lhe parecer, a princípio, “sem interpretação teórica”
(apud PERLOFF, 2013, p. 63).
Sabemos hoje que Benjamim foi o precursor de uma abertura à valorização do
cotidiano e de uma crítica aos apelos do mercado ao fazer uma ponte entre eles, a academia e
a estética modernista em uma nova e visível experiência com os fragmentos, demonstrando
que a passagem irreversível do tempo e o decisivo caráter dos acontecimentos podem
significar desintegração e não necessariamente progresso. A sua visão de que para o
operariado “a consciência de si é mais teatral que política” (BUCK-MORSS, 2002, p.52) vem
da amizade e da aproximação com as ideias de Bertold Brecht, para o qual a fantasia era uma
experiência humana com capacidades transformadoras e que não deveriam estar
desassociadas das necessidades materiais. Os artistas seriam, portanto, experimentadores do
potencial humano e cultural, que também poderia estar presente nas relações entre as novas
tecnologias e os fenômenos da urbanização na modernidade.
O fascismo utilizou-se muito de exibições em espetáculos teatralizados para uma
catarse coletiva, dando a Benjamim a certeza de que ele estava no caminho certo e da
urgência do despertar de uma história que desmitificasse o presente e se preocupasse com o
espaço público em conexão com as imagens dos sonhos, do inconsciente coletivo, os fetiches
das mercadorias, o consumismo e as consequências dos processos de industrialização na
sociedade. A esse respeito, Benjamin se pergunta:
Quando e de que maneira os mundos das formas, que surgiram em mecânica, no
cinema, na construção de máquinas, na nova física, e que se apoderam de nós sem
que percebêssemos, nos mostrarão com claridade o que há de natural neles? Quando
a sociedade alcançará a condição em que essas formas, ou o que delas surjam, se
abram a nós como formas naturais? (BENJAMIN apud BUCK-MORSS, 2002,
p.159)
Até hoje não temos essa resposta. Essa forma mais natural de encarar a tecnologia
desmancharia seu poder de sedução que é tão necessária para o consumismo, para que o novo
de hoje se torne obsoleto amanhã cedo. Exatamente por isso é que a arte torna-se tão
importante para uma operação de resgate da história, fossilizada nos museus, para a realização
de um entendimento mais crítico dos fenômenos sociais, culturais e artísticos. Duchamp,
anos mais tarde, deu-nos essa lição com seus urinóis e bicicletas invertidas. A arte é capaz de
86
tornar visível o hiato entre o referente e o signo no próprio objeto artístico e foi exatamente
isso que as vanguardas propuseram ao desmitificar a “aura” da representação artística e sua
pretensão de verdade universal. Como a resposta à indagação de Benjamin, essa tarefa ainda
está para ser feita, e a poesia insiste em recorrer a essa operação de desmonte da linguagem
como uma imagem do real, para pensá-la como uma intervenção, como esse recado da Letra
Elétrika:
Olho
tu pensas que me vês
mas eu é que te vejo
eu sou mais poderoso
que o incrível hulk
mais incrível
que o poderoso chefão
porque eu sou
eu sou o olho
eu sou o olho
da televisão
(CHACAL, 2007, p.151)
O texto usa a metonímia do olho para dizer da complexidade da inversão
sujeito/objeto na manipulação midiática. O tema foi também explorado por Adorno, mas sem
os pontos positivos da linguagem da mídia, como o fez Benjamin, ao falar da acessibilidade
do cinema e como ele poderia ser importante na conscientização de novas possibilidades de
intervenção na realidade. Guy Debord , em A sociedade do espetáculo, publicado em 1967,
também trabalhou com o tema, mas já com a perspectiva da perda da qualidade de vida nas
sociedades burocráticas e da proletarização do mundo, essa mesma inversão para a qual
Chacal chama a atenção em seu poema acima, de como a alienação fabricada pela indústria
midiática é capaz de interferir inconscientemente no próprio desejo do sujeito pensante, a
ponto de tornar-se uma força superior à sua, em desmanche. O texto de Debord foi muito
debatido pelos movimentos contraculturais que se difundiram a partir de 1968.
Essa preocupação com a necessidade de criação de novas linguagens para a arte em
um mundo que se modificava velozmente e a perda do poder de impacto das artes tradicionais
já estava colocada pelas vanguardas. A intenção de procurar outras maneiras de acesso à
mente, que lidasse com um pensamento e uma expressão não restrita aos imperativos da
lógica positivista, que subtrai um poder mágico intuitivo de que a infância ainda é capaz,
87
poderia trazer ao ser humano uma reflexão capaz de provocar uma abertura que o defendesse
dos ditames impostos pela dominação econômica. O desejo de inventar uma linguagem que se
libertasse dos condicionantes linguísticos estritamente lineares fez um movimento de retorno
ao primitivismo e nesse sentido o pioneirismo do movimento surrealista já estava posto.
No Brasil, Oswald de Andrade no manifesto antropofágico, afirma que o Brasil já
possuía uma língua surrealista. Jorge Schwarz (apud GUINSBURG, 1995), em seu texto
sobre o surrealista Benjamin Péret, transcreve passagem da Revista da Antropofagia em que
o nome do artista é ressaltado:
Está em São Paulo Benjamin Péret, grande nome do surrealismo parisiense. Não nos
esqueçamos de que o surrealismo é um dos melhores movimentos pré-
antropofágicos. A liberação do homem como tal, através do ditado do inconsciente e
de turbulentas manifestações pessoais, foi sem dúvida um dos mais empolgantes
espetáculos para qualquer coração de antropófago que nestes últimos anos tenha
acompanhado o desespero do civilizado. (...) Depois do surrealismo, só a
Antropofagia. (Revista da Antropofagia, n.1, 1929)
A justaposição, o instantaneísmo e o aproveitamento de elementos que se contorcem
dentro do “intocável ancestral” (Flávio de Carvalho, no Manifesto do III Salão de maio/ 1939,
apud Guinsburg, 1995, p. 859) serão também explorados tanto pelo “Pau Brasil” quanto pela
“Antropofagia” de Oswald de Andrade, em que o pensamento selvagem da imolação, do
canibalismo, como “metáfora, diagnóstico e terapêutica” (NUNES, 2011, p.21) tem um papel
decisivo. Uma postura antidiscursiva e uma visão panorâmica e sintética proporiam uma
representação imagética para a linguagem, em uma montagem cubista, que, de várias
maneiras, antecipariam a forma como o movimento concreto trabalhou com a poesia. Veja-se
em Pau Brasil:
O capoeira
-Qué apanhá sordado?
- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
(ANDRADE, 2003, p. 33)
Uma simplicidade quase infantil, natural, primitiva, mas que não descarta uma inédita
sofisticação operacional, com um forte apelo aos elementos fônicos, em uma dinâmica
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corpórea com os componentes gráficos que se desenham no papel, também foram elementos
explorados por Oswald e estão fortemente conectados com o que o concretismo trabalharia
anos mais tarde:
relógio
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão (ANDRADE, 2003, p. 65)
Não é por coincidência então que Haroldo de Campos comenta em texto “Uma
poética da radicalidade”, em introdução da edição de Pau Brasil (ANDRADE, 2003), que o
poeta antropofágico utilizou em sua linguagem poética elementos que estavam presentes em
uma sociedade brasileira que se modificava, que se industrializava, sem perder sua estrutura
arcaica, provinciana:
(...) projeta-se no campo da linguagem – no sentido amplo em que são também
manifestações da linguagem o cinema, a pintura, a diagramação do jornal, a selva de
símbolos da urbe contemporânea etc. – para além da restrita esfera da língua
(espécie verbal do gênero da linguagem, da qual a língua brasileira ou portuguesa é
apenas um fenômeno tópico). Do ponto de vista de uma sociologia da literatura, isto
significa que a experiência oswaldiana acusa, no quadro da crise geral da linguagem
suscitada pelos novos instrumentos de uma comunicação e reprodução da
informação da era tecnológica, o momento brasileiro em que, a essa crise se somava,
singularizando-a, a fratura socioestrutural definidora das contradições de nosso país,
daquele nosso “conflito fundamental”, ainda hoje não resolvido”. (CAMPOS, 2003,
p.74)
O fragmento acima transcrito foi escrito em texto de 1965. Nota-se, portanto, o
diálogo travado entre o “Plano Piloto da Poesia Concreta”, de 1958, assinado pelo próprio
Haroldo, Augusto de Campos e Décio Pignatari e a poesia de Oswald de Andrade. A técnica
da repetição, as anáforas, o paralelismo, a reiteração, a paranomásia e a aliteração farão o
diálogo entre a linguagem primitiva, quase simplória, com os imbricamentos tático-
semânticos dos cortes cinematográficos da modernidade. A “fratura socioestrutural" e o
“conflito fundamental” de seu tempo e espaço consubstanciam-se na própria palavra poética.
89
A utilização das técnicas de alteração da estrutura lógica discursiva, o deslocamento
tipográfico de partículas em relações de subordinação e coordenação, e a associação do
sentido das palavras à sua materialidade significante, ideia precursora do concretismo, já
estavam presentes na poesia inovadora de Cummings (USA, 1894-1962), embora alguns
desses processos já tivessem sido utilizados por Pound, Eliot e principalmente por Mallarmé.
Augusto de Campos empreendeu a árdua tarefa de traduzir Cummings durante mais de
quarenta anos, tal era a sua admiração pela obra do autor. Começou o trabalho em 1950, com
a primeira edição em 1960. Mas, com o desejo de adentrar-se cada vez mais nesse universo
tão particular da atomização dos vocábulos de que Cummings foi capaz, as edições foram
sendo ampliadas, cada vez com um número maior de poemas traduzidos, até a versão de
1994, em que ele afirma, no preâmbulo intitulado “e. e. cummings, sempre jovem”, de
Poem(a)s, 2011:
O que é fundamental para compreender a poesia de Cummings é que suas
transgressões tipográficas e sintáticas não são meros fogos de palha ou gratuidades.
O que ele pretende é rejuvenescer a linguagem e explorar, com maior flexibilidade
do que permitem as estruturas entorpecidas dos sistemas convencionais, o universo
complexo da percepção e da sensibilidade. (CAMPOS in CUMMINGS, 2011)
De fato, o trabalho de Cummings com a fragmentação das palavras e com
inesperadas associações icônicas trouxeram experiências sensoriais e imaginativas tão
experimentais e inovadoras15
, que ele foi também incompreendido em seu tempo e, durante
anos, ficou tentando ser editado, sem sucesso, até sua primeira edição de poemas, em 1923.
Podemos notar que essa intenção de situar a obra e o poeta como “jovem”, como o fez
Augusto de Campos no trecho acima transcrito, soa com o mesmo sentido que as vanguardas
enfatizaram: a novidade, a conexão da arte com o hodierno, com o tempo presente.
Marjorie Perloff, em O Gênio não Original (2013), faz um importante estudo sobre
a poesia concreta brasileira, em diálogo com vários autores internacionais que trabalharam
com uma complexidade maior do signo linguístico, desde The Waste Land, publicado em
1922, de Eliot (USA, 1888-1965), repleto de alusões satíricas, personagens e narrativas
alternadas, até a poesia da era digital, e introduz o termo “retaguarda” para explicar a atuação
concretista. Parte do que ela chama de “rejeição à interferência lírica do ego, formulada com
15
Dada a sofisticadíssima forma de impressão dos poemas de Cummings, com cores, espaçamentos, formatos e
implosões de palavras no espaço da página, torna-se impossível reproduzi-los aqui, sem cometer impropriedades
que desvirtuariam o seu todo significativo.
90
agressividade por Marinetti”, até chegar à defesa da “Poética Conceitual” e à “lendária morte
do autor”, de Barthes” (PERLOFF, 2013, p.49). Assim, quando a perda da identidade do
corpo que escreve se concretiza, o fim do carisma de profetas e videntes torna-se fato no alto
modernismo. Há uma espécie de dilúvio em que o pastiche, a apropriação, o plágio e a
ilegibilidade não se escondem mais.
A questão da originalidade está posta desde Benjamin com a obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica, pois sem o original, o sentido de “reprodução” e “autenticidade”
desaparece, como nos hipertextos do Google e seus intermináveis links. Com as colocações de
Moser e Bourdieu sobre os modos de circulação dos bens culturais, as noções de apropriação,
reprodução, citação e cópia ficam ainda mais intrincadas. Será que na poesia o autêntico ainda
resiste, mesmo com a ironia, o poema- piada, a justaposição das citações e os aforismos? (Isso
sem falar nos textos acadêmicos, como esse, em que a citação e comentário à citação se
mesclam como em um tecido cujas estampas de figuras geométricas se confundem entre o
desenho e o fundo...) O contexto transforma o conteúdo? O valor do concretismo se coloca
nesse caminho e com essa perspectiva.
Na terminologia militar é a retaguarda que garante o sucesso da batalha. Se as
vanguardas já romperam com a verdade, a genialidade e a representatividade da arte, restam o
poder da reflexão, a elaboração de jogos com a linguagem, como os ideogramas, a colagem, o
multilinguismo, a fragmentação, e a citação; a palavra em sua mais completa materialidade.
Perloff entrevista Augusto de Campos e transcreve as palavras do poeta concretista:
Nos anos cinquenta (...) havia uma demanda muito importante por mudanças, pela
recuperação dos movimentos de vanguarda. Tivemos duas guerras que
marginalizaram e deixaram de lado por muitos, muitos anos, as coisas que nos
interessavam. (...) Podia-se dizer que toda poesia experimental, toda a arte
experimental, de certo modo foi marginalizada. Só nos anos cinquenta é que
começou a redescoberta de Mallarmé, a redescoberta de Pound. (CAMPOS in
PERLOFF, 2013, p. 118-119)
Assim, tanto o concretismo quanto a poesia marginal nascem da mesma forma que as
vanguardas, com um desejo de se libertar de um modo de fazer poesia dominante na época, de
ser subversivo, como os movimentos contraculturais. Justapor é tirar as aspas, é apropriar-se
com rebeldia, sem prestar reverência à origem; ao amassar a palavra, triturá-la, sente-se o
gosto, vê-se pelo avesso das suas “funções”, contraria-se, tornando o significante também
significado.
91
3.3 Textos/contextos
Uma atitude de irreverência em relação ao direito, à moral e à religião ocidentais,
que está presente também na poesia oswaldiana, aparece em um personagem criado por
Chacal, Quampérius, que diz: “o pensamento é o fragmento do caos estruturado” (2007,
p.257). A respeito dessa estruturação do caótico através de personagens, Ken Goffman e Dan
Joy (2007) afirmam que as figuras arquetípicas simbolizam a necessidade humana de
desestabilizar os sentidos, as formas, e os sistemas e colocar os valores em xeque. Assim, o
trickster, o enganador, ou o andrógino, presente em quase todas as culturas com vários nomes
e feituras, repetidamente nos expõe a qualidade do intangível em nossa mente, como algo que
está além de barreiras temporais ou culturais e que faz parte de nossa natureza simbólica
desde sempre. Se procurarmos a encontraremos representada nas personas das companhias
populares teatrais itinerantes por toda a Europa no século XVI; no Arlequim, ou no bobo da
corte, ou no brasileiro folclórico Malazarte, ou mesmo nosso herói nacional, Macunaíma, e
então chegaríamos ao urbano Quampérius, esse personagem de Chacal.
“quampérius Nepomuceno foi servir ao exército do povo, já que no brasil tinha sido
recusado por insalubridade impaludismo desvios de toda ordem: mental, sexual y política”
(2007, p.253). A trajetória desse herói, em obra publicada em 1977, reforça esse caráter
desviante, que se consubstancia também em sua capacidade de brincar com o que não é
naturalmente risível, ou filosofar, mesmo sendo um bandido marginal.
Nesse sentido, Júlio Diniz (2014), em artigo publicado pelo Núcleo de Estudos em
Literatura e Música, intitulado: “Antropofagia e Tropicália: devoração/adoração”, fala da arte
e da música nos anos da década de 1970 como forma de inventar novas maneiras para lidar
com a dor e o silêncio impostos pela ditadura militar. Assim, naquele momento, trazer a
alegria do corpo e do gesto era um procedimento estético combativo, embora, a princípio,
pareça justamente o oposto. Oswald de Andrade usou esse recurso várias décadas antes,
quando propôs a insubordinação e o sarcasmo como procedimentos para uma nova linguagem
poética.
Foi também atentando para esse aspecto lúdico e agonístico da linguagem poética
que a vanguarda dadaísta, o surrealismo, os beats e, mais tarde, no Brasil, os poetas marginais
desestabilizaram a sobriedade da poesia. Na primeira fase do modernismo brasileiro, Oswald
de Andrade também nos chamou a atenção para esse aspecto, trazendo o poema piada para os
92
livros, que ganhariam um toque de brincadeira, informalidade e alegria, sem perder o poder de
reflexão sobre a dúvida, o claudicante como fatalidade da condição humana, o que foi
reaproveitado pelos marginais, sobretudo por Chacal, que, além disso, procurava resgatar a
poesia da compartimentada academia, para trazê-la para a vida nas ruas.
Portanto, pratica esse sentido às vezes esquecido da palavra poética, da presença
através da ausência, o que, afinal, não tem nada de novo, mas, ao contrário, é radicalmente
antigo, já que nas culturas arcaicas a poesia esteve ligada ao divertimento, à adivinhação, a
“estruturas lúdicas intemporais e onipresentes” (HUIZINGA, 2004, p.157), e portanto, a um
desejo de trazer em si o que sempre escapa, o ambivalente, que está entre a convicção e a
fantasia, entre a seriedade e o riso, entre o sagrado e o profano, entre o ritual e a festa.
Boaventura, ao se referir a esse mesmo aspecto, presente também na poesia de Salomão,
afirma:
Transpor o carnaval para a poesia- carnavalizar- significa fazer do riso
(ambivalente) forma vitae para combater o tedium vitae, transformando-o em
“máquina de guerra” (Deleuze) destroçadora do medo e da subserviência. Sim, será
necessário viver no limiar (da vida e da morte, da razão e da loucura, da verdade e
da mentira etc) e romper com o ideal de mundo sério, dogmático; implica em
aprender a converter adversidades em movimentos propulsores (BOAVENTURA,
2009, p.82)
Chacal nos conta como Oswald representou para ele essa propulsão e uma revelação
para esse aspecto antidogmático da poesia:
Um dia, Charles me apresentou um que mudou meu destino. (...) Era um exemplar
pequeno de capa cinza da coleção Nossos Clássicos da Editora Agir, e o poeta era
Oswald de Andrade. Sabia quem era Oswald pela peça O rei da vela, dirigida por
José Celso Martinez Corrêa, e pelas muitas citações tropicalistas. Mas quando li o
livrinho com excelente introdução de Haroldo de Campos, fiquei três dias abobado,
rindo sozinho, besta feito um jubileu. (CHACAL, 2010, p.22)
Alguns estudiosos da Literatura, ao se referirem à poesia marginal como um todo,
insistem em abordá-la como desprovida de tensão ou de uma reflexão sobre a tradição
literária. Leyla Perrone-Moisés, por exemplo, em posfácio ao volume de reunião dos textos de
Waly Salomão (2014), Poesia Total, afirma:
93
Estes poemas mostram que ele conseguiu manter o pique do jovem Sailormoon,
enquanto sua poesia se adensava de experiência vital e de ampliada cultura poética.
É exatamente por essa cultura, por essa seriedade na prática do ofício, que Waly não
pode ser chamado de “poeta marginal”. (PERRONE-MOISÉS, 2014, p.519)
Está dito, portanto, que a poesia marginal carece de “seriedade na prática do ofício” e
de “cultura poética”. Sem entrar em maiores discussões sobre o que seria essa seriedade ou
essa “cultura poética”, vamos verificar nas análises dos textos de Chacal, que estamos fazendo
aqui, justamente o contrário. O caráter reflexivo da poesia de Chacal subverte essa ideia de
que sua obra seria apenas colada no cotidiano, sem um conteúdo revelador de ajuste da forma,
ou de uma tensão necessária para o exercício poético.
Tais críticas se devem ao fato de os textos de Chacal e de outros poetas marginais
terem muitas vezes um caráter zombeteiro e uma aparência de descompromisso formal. Mas
essa necessidade de separar o “sério” da brincadeira, ou “a arte” de uma forma desprovida do
“verdadeiro” exercício estético é uma discussão tão antiga, clássica, quanto moderna, que
passa pelas hierarquias representativas e seu desmanche, pela constituição dos gêneros
textuais e sua relativização, e pelas novas formas de interpenetração entre a palavra e a
imagem. É, portanto, argumento insuficiente para criticar um artista cujo trabalho polivalente
como músico, roteirista, editor, dramaturgo, ator/ poeta performático e agente cultural está
ainda em pleno desenvolvimento.
Ele, como Waly Salomão, não é tão somente um poeta da geração marginal, já que
sua obra vai muito além da década de 1970, da edição dos poemas de mimeógrafo, e da
palavra escrita. O poema abaixo, publicado em A vida é curta pra ser pequena (2002), vai
nos trazer alguns dados importantes para observarmos a sintonia do poeta com a produção da
arte urbana do século XXI .
Bicho solto
acabou o show
três latinhas na idéia
o suficiente .................
para querer mais
a noite se contorce com sua maçã na boca
ballroom aqui forró ali festa acolá
próxima parada: são conrado
na saída do túnel
rua rápida à direita
94
você está na roça
é birosca é sinuca é pó
desce cerveja
bate uma
bate duas
sempre mais
tá todo mundo ligado
o tráfico apresenta suas armas
máscaras alteradas saúdam o bicho
o movimento decide sua vida e sua morte
e você querendo o jogo
– a atração do abismo –
à sombra do vulcão
delírio ambulatório
sobe
o bonde
desce
e o dia amanhece
você é um corpo estranho
criatura da noite vazada no dia
dê
meia volta volver
vai ver se encontra
o caminho de casa
mas o teto se abriu
sua casa é aqui agora
sem chave e sem porta
na rua da aurora
– desce outra!
(CHACAL, 2007, p.45-6)
O poema de Chacal, transcrito acima, coloca, através da experiência concreta,
também visual, outras conexões entre o eu e o mundo que alteram e criam novos processos e
formas de representação. Esses novos formatos não podem ser pensados então como perda da
qualidade do trabalho poético, pelo contrário, há aí um adensamento da expressão artística na
medida em que o poeta investe em um caminho multidisciplinar16
, muito encontrado nas
várias expressões da arte hoje, trazendo uma palavra com outras faces para as cenas de um
espaço urbano atravessado, praticado.
16
Lilian Amaral (2011), em uma publicação na revista de pós-graduação da UNB, “Coletivo Expandido: flanar,
vagar, derivar, errar. Quando o encontro se transforma em corpo coletivo, corpo andante”, nos fala o quanto o
caminhar autônomo pode ser uma prática simbólica do espaço, um instrumento estético de conhecimento, na
medida em que se transforma, pela arte, em mediação de tensões incorporadas e tece uma arquitetura das
relações éticas/estéticas entre indivíduos/coletivos, entre memória/ /imaginação e convoca para uma interação
por meio de um pensamento que re-significa a experiência urbana.
95
A falta e o jogo de que falávamos, através da epígrafe de Artaud, comparecem nesse
trabalho de Chacal também, na medida em que ele elabora sentidos lacunares, fragmentados
e incompletos, que dialogam constantemente com a imagem, como tomadas de cenas que
definem um “real” que só pode ser configurado pelos flashes descontínuos que se sobrepõem,
para representar a experiência humana de um sujeito que vivencia seu tempo e espaço
intensamente, até as últimas consequências, sem definir para si mesmo ou para eles uma
delimitação ou uma identidade fixa.
Expõe, dessa maneira, a visão do poeta que, como um fotógrafo17
, recorta, limita e
enquadra as imagens como fatias do tempo, muito semelhante ao que Haroldo de Campos
mencionou, no texto que introduz a edição de “Pau Brasil”, como “shots, as camadas de uma
câmara cinematográfica – o câmara eye das sínteses oswaldianas” (ANDRADE, 2003, p. 32).
Observamos, por exemplo, esse recurso no poema de Chacal em: “a noite se contorce com sua
maçã na boca/ ballroom aqui forró ali festa acolá” (versos 5 e 6). A maçã é o símbolo do
desejo e a boca seu canal, mas aqui é a noite a entidade desejante. É ela que serpenteia como o
uroboro mágico, autofecundante, em que o eterno retorno une o ctônico e o celeste, impulso
da vida e da morte, fazendo romper com a lógica dos sentidos racionais, a da sequência
espacial e temporal, para propor a construção de movimentos contínuos nos quais os seres e
as matérias é que são possuídos por ela.
Podemos ver aí novamente presente a aproximação do corpo na modernidade urbana
com o corpo no período medieval (discutida no primeiro capítulo), concebido não como um
elemento exclusivamente individual, mas como algo pertencente a um coletivo pulsante,
como todas as substâncias que circulam e se interpenetram no ambiente em que tudo recende.
O “ballroom” (verso 6), é uma dança de origem eclética e remota, que, como a
quadrilha nos traz novamente a ideia do círculo móvel coletivo, da multiplicidade e da
reversibilidade, como também o é o forró brasileiro com suas origens diversas, em que os
sentidos e as imagens em suas variadas performances fazem a alegria da festa de rua.
17
Flusser (2002), no capítulo denominado “Linha e superfície” chama a atenção para a diferença entre o
pensamento ocidental, desenvolvido a partir da escrita, tradicionalmente linear, e a leitura das superfícies, que é
predominante atualmente, e possui uma estrutura em que um único lance de olhar abarca a totalidade. Após
essa primeira análise, os movimentos do olhar poderão ser múltiplos e livres, e tal mecânica, preponderante no
mundo midiático, representa uma transformação radical nos padrões de comportamentos de nossa civilização,
que, paulatinamente se priva de muitas experiências para vivenciá-las apenas através dessa mediação, ficando o
pensamento da linha quase que restrito às elites culturais. A apropriação pela poesia de recursos imagéticos
que incorporaram o conceitual seria uma abertura para novas sínteses em que o pensamento discursivo proporia
outros modelos conceituais.
96
Então a “próxima parada: são conrado”(verso 7) interrompe esse ritmo para instaurar
uma linha reta: “rua rápida à direita” (verso 9), que, como o “racional” mapeamento,
distribuição e ocupação do solo nas cidades, não se mantém incólume: “você está na roça”
(verso 10). Essa roça no meio da cidade de arranha-céus não é mais aquela em que todos se
reconheciam, mas guarda algumas marcas daquele antigo espaço de convivência entre iguais,
todos estão “na saída do túnel” (verso 8), que parece aí uma galeria subterrânea que dá acesso
a um outro tempo e a uma memória coletiva. A birosca (verso 11) nas favelas guarda muitas
semelhanças com aqueles antigos armazéns das cidadezinhas, que vendiam os mantimentos
expostos a granel, embutidos dependurados, sabão em barra para corte, quinquilharias de toda
espécie, e ainda era ponto de encontro dos homens à noitinha, que depois da labuta se reuniam
ali para “jogar conversa fora” enquanto tomavam uma pinga ou enrolavam seu cigarro.
Mas essa birosca é outra roça, “é sinuca é pó/ desce cerveja” (versos 11e 12), a
semelhança é apenas aparente, pois ali está o tráfico e suas armas (verso 17), o
reconhecimento amigável dos iguais desaparece e em seu lugar está outro rosto, que agora
tem a face coberta pela contração involuntária dos músculos retesados dos que estão
possuídos pela loucura da droga. As “máscaras alteradas saúdam o bicho” (verso 18), e o
jogo, o risco, o abismo, e a agonia de vida e morte são atrações de quem não deseja viver o
mundo das estabilidades, e opta por sair da zona de conforto, por estar “à sombra do vulcão”
(verso 22). Nota-se, portanto, que não há nenhum conforto ou relação de pertencimento, a
tensão agonística do “Bicho Solto” é o delírio de quem não reconhece mais nem o próprio
corpo, “você é um corpo estranho” (verso 28), ele é tão somente mais um ser fora de si na
boca contorcida da noite. (verso 5).
Nessa mesma noite, o bonde atravessa o espaço da cidade, e ao subir e descer
anuncia um novo dia. Quem é “a criatura da noite vazada no dia” (verso 29)? Quem diz
“você” no poema? Seria o eu lírico se dirigindo ao leitor, ou ele se refere a si mesmo,
mascarando-se nessa segunda pessoa através do pronome de tratamento? A segunda opção
nos parece a mais sugestiva, mas a primeira não deve ser descartada completamente, pois há
sempre um coletivo implícito em que “você” significaria todos dos quais a noite desfruta
como uma maçã. O imperativo usado nos versos 30, 32 e 38 nos coloca diante da perspectiva
de um ser que tem sua autonomia fracionada. Assim, não encontra mais “o caminho de casa”
(verso 33), “mas o teto se abriu” (verso 34) e a noite que se vê através dele é agora a imagem
do universo, que em seu simbolismo cósmico, é também a casa; ela é o devir, é o aqui e agora
que o (des)abriga.
97
Pensando através desse raciocínio que nos conduz aqui, da palavra poética enquanto
matéria, corpo que se relaciona com outros, sem os limites do próprio, do “eu” e do alheio, da
alteridade, que mistura citação e intertextualidade, imediatamente nos ocorre o José, de
Carlos Drummond de Andrade: a aporia, “sem chave e sem porta” (verso36), que nos conduz
à rua da aurora (verso 37), não aquela terna rua identitária, com letra maiúscula, da quase roça
de um Recife distante, em que o eu lírico de Manuel Bandeira descia para pescar,18
mas é
onde o eu lírico de Chacal, filho do delírio explosivo de uma urbanização sem controle, que o
mantém no anonimato de seres minúsculos “à sombra do vulcão” (verso 22), quer permanecer
solto por mais tempo.
Se pensamos na contribuição dos concretistas e no corpo da palavra como imagem
que se forma no papel branco da página, ao rascunhar um contorno para a disposição das
palavras do poema, veremos um zigue-zague, como se traçássemos o percurso do “Bicho
Solto” ou desenhássemos seu próprio corpo sinuoso. E se construirmos retas na direção de
cada verso desemparelhado, através de um desenho formatado por elas, veremos bocas
abertas e os membros desse bicho feito de palavras. Com essas retas alinhadas
desordenadamente, sem controle espacial, pode-se pensar também nas fileiras de cocaína
consumidas... O corpo do eu lírico e o corpus do poema se confluem no mesmo abismo de
sensações, imagens e palavras.
Relacionando essa imagem dos movimentos tortuosos do “Bicho”, a outras
manifestações artísticas, também dos meados do século XX, chegaríamos à escultura com
esse mesmo nome, de Lygia Clark (BH, 1920-1988), artista que, juntamente com Amílcar de
Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmaner, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spamídis
assinaram o Manifesto Neoconcreto publicado no Jornal do Brasil em 1959. Em 1972, ela
ministrou um curso de Comunicação Gestual na Sorbonne, com aulas experimentais coletivas
em que os alunos participavam usando suas próprias sensações. Junto com Hélio Oiticica, que
entre 1955 e 1959 fez parte do grupo Frente, de concretistas, eles propunham trabalhos
experimentais em que os espectadores/leitores eram também participantes de obras
interativas. A escultura “Bichos”, reproduzida abaixo, é manipulativa, feita de alumínio e
dobradiças que, como articulações e espinhas dorsais do corpo de um bicho, estabelecem um
imediato e estranho vínculo com a vida sensorial. O trabalho ganhou o prêmio de melhor
escultura nacional da VI Bienal de São Paulo em 1961.
18
No poema “Evocação de Recife”, os últimos versos trazem: “Do lado de lá era o cais da Rua da
Aurora.../...onde se ia pescar escondido/ Capiberibe (BANDEIRA, 1986, p.105)
98
Fonte: CLICHE..., 2014
Os artistas plásticos já usavam materiais diversos, triviais e reciclados do cotidiano,
como conchas, borracha e sementes, que possibilitariam ao espectador interagir sensivelmente
com a obra, numa exploração táctil da diversidade das texturas. Outros trabalhos permitiam
que o espectador atravessasse pelo interior das obras, ou até mesmo se vestisse dela, como os
“Parangolés”, que em 1965 levaram à expulsão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
os integrantes da Mangueira, que usavam as capas confeccionadas por Oiticica. A intenção do
autor era valorizar também a dança popular brasileira, a poesia, a música como manifestação
cultural coletiva, compartilhada, de um grupo social que não entrava em museus, e o ato
performático de uma arte que incluía o corpo como entidade viva, sensível, pulsante.
O artista viveu em Nova Iorque na década de 1970, quando o pai era bolsista da
Fundação Guggenheim, e participou de exposições no Museum of Modern Art- MOMA. Ao
retornar ao Brasil em 1978, continuou sua experimentação permanente para apropriar-se de
formas inusitadas e criar eventos precários, efêmeros, em que a disposição dos participantes
para atuar coletivamente em um corpo de trabalho se convertia no próprio trabalho; dessa
99
forma, vida e arte se embaralhavam, intervindo ética e esteticamente no circuito e no próprio
conceito de produção e recepção da arte. Assim, já concretizavam o que, teoricamente, Walter
Moser salientou bem mais tarde:
Pensar a estética enquanto “estesia” é também fazer o gesto de voltar a Baumgarten,
a seu projeto de uma ciência da percepção sensorial. Mas a possibilidade de tal
retorno deriva, hoje, sobretudo de uma nova concepção da cultura e da
representação. Ela acompanha a emergência de uma nova concepção antropológica
da cultura que se opõe à idéia de que as belas-artes são o apanágio da cultura
ocidental. Se, para a filosofia, a arte é a representação simbólica por excelência, a
antropologia social mostra-nos que toda prática social é representação. (MOSER e
Klucinskas, Jean, 2007, p. 27)
As aproximações que podemos fazer entre essas reflexões de Moser e Klucinskas e
as propostas e realizações poéticas de Chacal são muitas. De imediato, temos a valorização da
performance como manifestação artística, com a qual o poeta dialoga no cep 20000, desde os
anos 90. O trânsito com outras expressões artísticas em que a imagem, o corpo, o som e o
movimento são objetos que margeiam a poesia, e o desejo de conviver e aprender com todos
aqueles que, sem as barreiras da estratificação social, elegeram a arte e a cultura como bem
maior, é também marca dessas produções.
Mas para Chacal, como mencionamos anteriormente, em sua própria declaração, a
grande inspiração foi mesmo Oswald de Andrade. E a obra do escritor paulistano não é
somente literária, ele escreveu artigos e tratados sobre arte, cultura e sociedade que continuam
contendo, ainda hoje, ideias que nos suscitam importantes discussões sobre a cultura
brasileira, seus artistas e o mundo. Podemos ler em muitos poemas do poeta carioca um
diálogo promissor com várias ideias defendidas por Oswald e uma dicção poética que, apesar
de trazer componentes de uma era midiática que se consolidou apenas após a morte do criador
da antropofagia, em 1954, ainda possibilita estabelecermos importantes conexões entre
ambos.
100
3.4 A palavra em trânsito
Através da imagem projetada pelo contorno das palavras em Bicho Solto, voltaremos
novamente a Haroldo de Campos, que em seu texto escrito em 1965, no prefácio de Pau
Brasil, de Oswald de Andrade, afirma:
(...) procedimento básico da sintaxe oswaldiana – a técnica de montagem – esse
recurso que Oswald hauriu nos seus contatos com as artes plásticas e o cinema. Mas,
justamente por se tratar de um procedimento antiilusório, de uma técnica de
objetivação, é que a poesia assim resultante é objetiva. Ao invés de embalar o leitor
na cadeia de soluções previstas e de inebriá-lo nos estereótipos de uma sensibilidade
de reações já codificadas, esta poesia, em tomadas e cortes rápidos, quebra a morosa
expectativa desse leitor, força-o a participar do processo criativo. (CAMPOS, 2003,
p.34)
Tanto Oswald quanto os irmãos Campos acreditavam que o poema deveria regular-se
por si próprio, a sua própria estrutura, sem os ditames convencionais. Se, portanto, a poesia é
um trabalho de experimentação da linguagem, podemos ver o poema abaixo como uma
verdadeira oficina das palavras onde Chacal executa procedimentos que desencadeiam
movimentos de graduação, ajustes, com sequências habilmente encaixadas, como em um
desenho caprichoso de imagens e sons, o que nos remete imediatamente à poesia concreta.
Veja-se:
Papel de Parede
o papel de parede
o papel a parede
o papel da parede
o papel na parede
a parede di papel
a paredi o papel
aparede nu papéu
todo esse tempo
o papel de parede
(CHACAL, 2007, p.360)
Ao ler esse poema de seu primeiro livro, Muito prazer, Ricardo, de 1971,
evidenciam-se vários elementos do que nos disse Augusto de Campos em Poesia concreta,
publicado em 1958:
101
(...) a poesia se distingue da prosa pelo fato de que para esta as palavras são signos
enquanto para aquela são coisas, aqui essa distinção de ordem genérica se transporta
a um estágio mais agudo e literal, eis que os poemas concretos caracterizar-se-iam
por uma estruturação ótico sonora irreversível e funcional, e, por assim dizer,
geradora da idéia, criando uma entidade todo-dinâmica, “verbivocovisual” – é o
termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do
poema.¨ (CAMPOS, 1987, p. 40) .
O exercício com a materialidade da palavra como um corpo no papel está presente
quando, ao repetir papel/parede, são estabelecidos espaços vazios paralelos dentro de cada
verso, e, entre eles, e a alteração dos conetivos nos quatro primeiros versos provoca um
paralelismo entre os sentidos, que vão sendo modificados, gradualmente, como os encaixes
superpostos e os traços continuados dos papéis de parede. No quinto verso, à exploração do
espaço ocupado pelas palavras e de seu sentido, acrescenta-se o trabalho com o extrato fônico.
Nos quinto, sexto e sétimo versos, os trocadilhos das vogais produzem efeitos sonoros que
funcionam como um ato de desfocar as palavras, ecoando-as, atribuindo-lhes outras ideias que
são apenas sugeridas, como se o papel de parede estivesse se desbotando ou soltando suas
bordas, descaracterizando-se de sua materialidade no espaço, para ocupar outros.
O contorno das palavras dos sete primeiros versos monta um quadrilátero, um X,
onde cada ponta é alternadamente as palavras papel/parede. A eterna incógnita dos papéis e
das paredes? O espaço da memória? A persona? O obstáculo? As casas antigas, com suas
paredes esmaecidas em que as figuras de cada papel vão se modificando pela ação do tempo e
parecem conectar-se num outro formato? Assim também a materialidade da palavra, suas
letras e seus sons, num contínuo processo de mudança, vão se reagrupando em novas fusões
pelo espaço do poema (versos cinco, seis e sete), ecoando na memória sentidos intangíveis
que apenas se esboçam numa composição amalgamável.
O papel de parede pode até se desbotar pela ação de todo esse tempo (oitavo verso),
de modo que as letras e seus desenhos cheguem a se confundir, mas não se desvencilhará de
sua materialidade, ele é de papel; assim como é “parede” o que se interpõe nos caminhos dos
desviantes, dos marginais, que pode ser de papel também (quinto verso), como a própria
escrita e suas prescrições, ou como a lei. Mas o papel está na parede (quarto verso), como os
panfletos clandestinos, de borradas impressões a álcool que circulavam e eram colados nas
paredes nos anos da ditadura militar no Brasil. As palavras são aqui, como aquelas de
Augusto de Campos, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema.
102
Chacal pratica, como vimos no poema Papel de Parede, experimentações inovadoras
com a linguagem, compactuando com a geração de 50. E ainda hoje trabalha no cep 20000
para fazer da poesia, da música e das várias expressões artísticas uma experimentação
constante, que assim perdem a “aura”19
e se aproximam mais do público. Através da
performance, da oralidade, da promoção do momento e do espaço para os novos artistas e o
público partilharem a arte como uma forma de convivência do sensível, põe em prática o que
propõe à análise Jacques Rancière (2005), sobre as novas preocupações da arte como “partilha
do sensível” , o que analisaremos melhor no terceiro capítulo desse trabalho.
O poeta carioca criou textos que se assemelham aos poemas piadas da primeira fase
do modernismo brasileiro, e outros que retomam temas abordados pelo Manifesto
Antropófago, que é assim analisado por Benedito Nunes, no prefácio do volume A Utopia
Antropofágica, de Oswald:
Estes, que saem das reservas imaginárias instintivas do inconsciente primitivo,
catalisariam, quando satiricamente lançados contra os primeiros, a operação
antropofágica como devoração dos emblemas de uma sociedade. É a transformação
do tabu em totem, que desafoga os recalques históricos e libera a consciência
coletiva novamente disponível, depois disso, para seguir os roteiros do instinto
caraíba gravados nesses arquétipos do pensamento selvagem – o pleno ócio, a festa,
a livre comunhão amorosa (NUNES, 2011, p.25)
Benedito Nunes (2011), no final do mesmo prefácio, nos adverte que os textos de
Oswald contidos no volume20
merecem um distanciamento próprio, já que ficam a meio
caminho entre filosofia e criação artística, ou seja, há malícia e sátira e eles, portanto, não
podem ser lidos como um tratado filosófico apenas. A epígrafe de Alfred Jarry (Paris 1873-
1909); “Chacun son tour d’être mangé” retirada da peça teatral Ubu Rei, e a sugestão de que
esse sarcasmo do pioneiro do teatro do absurdo já estaria fundido na malícia de Oswald, serve
de advertência contra a leitura dos sisudos incautos. Chacal usa também ambos os recursos,
malícia e sátira, e parece já ter se desafogado um pouco mais “dos recalques históricos” para
seguir os “ instintos caraíbas do pensamento selvagem” quando escreve:
19
O termo se refere às discussões propostas por Walter Benjamin, no texto “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, em que reflete sobre as mudanças de condições de produção e circulação da obra de
arte a partir da técnica, colocando a arte em um espaço de tensão, o que não significa contudo, que a perda da
“aura” seja uma perda do valor da obra. 20
O volume a que Benedito Nunes se refere e sobre o qual faz seu estudo contém: “Manifesto da Poesia Pau
Brasil”, “Manifesto Antropofágico”, “Meu testamento” “A Arcádia e a Inconfidência”, “A crise da Filosofia
Messiânica”, “Um aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira – O Homem Cordial”, “A Marcha das Utopias”,
“Variações sobre o Matriarcado”, “Ainda o Matriarcado”, “O Achado de Vespúcio”, “Posições de Sartre”, e
“Descoberta da África”.
103
Papo De Índio
veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
que eles disserum qui si chamava açucri
aí eles falaram e nós fechamu a cara
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
aí eles insistirum e nós comemu eles
(CHACAL, 2007, p.361)
Aqui, vão para o papo desse índio, não só os componentes culturais externos
benquistos que serão incorporados antropofagicamente ao seu próprio corpo/repertório, ele
engolirá também o que incomoda, digerindo-o, só para se ver livre, não para que se integre ao
que é seu, pois seu corpo está fechado ao que não lhe interessa; o objetivo é diferente do de
Oswald. O índio é agora voluntarioso, impulsivo e irritadiço, não deseja ouvir um papo que
não requisitou aos homens de saia preta, a que não quer corresponder; mas já que o
indesejável é repetido em pregação insistente, deve ser eliminado; esse índio, não se interessa
pelo que não necessita, de procedência desconhecida e duvidosa. Diferentemente de nossos
nativos, que se encantaram pelas folclóricas imagens espelhadas; agora ele é altivo,
desconfiado, nunca ingênuo, dócil ou cordato. Sua linguagem híbrida e irreverente demonstra
uma ausência de preocupação com os ditames normativos da língua portuguesa.
Esse índio rebelde está mais próximo de outro conhecido nosso, Macunaíma, este
sem nenhum caráter, como Quampérius, personagem título do livro de Chacal, já citado aqui,
publicado em 1977. Ele também é um herói, possui inscrição hieroglífica em cripta (Chacal,
2007, p.251) para eternizá-lo, e lá aparece dançando satisfeito, é alegre e cheio de peripécias
como o protagonista de Mário de Andrade. Quampérius é também possuidor de várias
artimanhas e sensualidade, e sua história, como em Macunaíma, está repleta de poderes
mágicos, metamorfoses mirabolantes e de um discurso em que as lendas, as parlendas e as
paronomásias são contribuições igualmente constituídas em um universo lúdico:
¨tião, mas não morreu, virou outro. virou siri. você ri?
pois não ria. o sapo tião virou siri não porque quis
mas porque quis a lua
hoje ele não anda mais nas florestas nos rios não
mais coacha apenas siri. fica com o ferrão ferruando
(CHACAL, 2007, p.277)
104
Os versos são marcados por uma linguagem ágil da narrativa, repleta de trocadilhos
populares, exatamente como aqueles do herói da nossa gente que nasceu no fundo do mato
virgem: “Zé Perequeté tira bicho do pé prá tomar com café!” (ANDRADE, 2000, p.107). E
em ambos, Macunaíma e Quampérius, a natureza tropical comparece maravilhosa, como
espaço vivido pelas personagens e a elas integrado com sua energia, que circula e participa do
desenrolar das aventuras, como no poema acima. Há uma ironia ingênua, brincalhona, mas
crítica, que se volta para si, apresentando os desvios dos nossos heróis do povo, nada
perfeitos, em um país muito menos.
Quampérius também possui poderes mágicos, é safado, amoroso e preguiçoso, mas,
diferentemente de Macunaíma, não vai para a cidade procurar talismã algum, ele já pertence
ao caos urbano e lá realiza suas falcatruas. Apesar de trapacear, ele não se considera um
marginal, nem considera assim uma “certa poesia” que circula por aí. Aborda ironicamente a
poesia marginal e traz ao texto um recorte conceitual e/ou autobiográfico à narrativa, uma
mistura de gêneros, aliás, muito própria desses recursos da modernidade que já mencionamos
aqui:
– ahhh... a poesia. a poesia é magistral. mas marginal
para mim é novidade. você que é bem informado,
me diga: a poesia matou alguém, andou roubando,
aplicou algum cheque frio, jogou alguma bomba no
senado?
(CHACAL, 2007, p. 293)
Assim, brinca até ao fazer uma poesia conceitual, sem deixar de, através dela, trazer
dados do contexto histórico da década de 1970 no Brasil, com seus falsos alardes de atentados
para o recrudescimento do regime ditatorial, ou seu “seleto” e exigente corpo policial, com
métodos de investigação, tomada de depoimentos e controle de espreitas, nada convencionais
ou “modernos” .
Nada convencionais também são os diálogos que Chacal trava com a tradição
literária, como por exemplo – não podemos deixar de nos lembrar – aquele poema de Manuel
Bandeira, tirado de uma notícia de jornal, em que João Gostoso:
105
Uma noite ele chegou no bar Vinte de novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(BANDEIRA, 1986, p.214)
O mesmo, em sentido inverso, agora, da morte à vida, ocorre com Orlando, outra
personagem dos poemas narrativos de Chacal, que mais parece uma reencarnação de João
Gostoso, de Bandeira, que desceu do céu para atuar em Preço da passagem:
Carcaça
orlando belo dia desceu
prá lembrar vida na terra
sin carnou em quem devia
e saiu a correr
pular cantar
trepar rolar
dançar rimar
alfabesteira falar
mais tarde um dia sentiu uma afissuração
no plano inclinado do quarto planeta do sistema
nervoso visto de trás pra diante. foi ver o que é
daí a carcaça cansada voltou de novo
a velha inquietação: a tradução
à eterna bagagem: a linguagem
(CHACAL, 2007, p. 333)
João Gostoso voltou então para a Terra para dançar e cantar de novo, e tomou outro
corpo, o de Orlando. Assim, a poesia, através dessa “eterna bagagem: a linguagem” (verso
15), está sempre carregando consigo, a cada outra tradução, “a velha inquietação” (verso 13)
da palavra desassossegada, que vai ao passado e volta trazendo invariavelmente uma bagagem
poética renovada, afissurada pelo seu tempo, nervosamente possuidora dessa velha
inquietação que, com outras “carcaças” se inclinam em novas coordenadas e sistemas dos
sentidos.
Então o poeta, o narrador, a personagem e a poesia operam as diversas (re)encarnações
da palavra. Elas projetam a finitude e a inconsistência do ser humano em seu tempo e lugar,
mas cada experiência as renova, e essa repetição diferenciada na fruição dos textos é uma
marca da modernidade, que procura, não um modelo, mas um diálogo com a própria poesia
como uma alternativa para quem quer se ver atuante em um mundo que se esboroa. Nesse
mundo, outros seres, a cada geração, compartilham, através da velha bagagem da língua
106
portuguesa, uma angústia inquietante e perene, não nominável, como aquela que lemos no
imortal poeta português, Fernando Pessoa:
Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda parte,
Casual na vida como na alma (...)
(CAMPOS, 1980, p. 251)
E em Chacal, um eu lírico angustiado diante desse mesmo rio, em uma pátria
ancestral, dialoga com Campos, heterônimo de Pessoa, o moderno e também irreverente:
tanto faz. acho até que vou tomar um bagaço e ver
no que dá .vou à torre de Belém olhar o Tejo. matar o
tempo pra não me matar, esse é o meu nome
(CHACAL, 2007, p. 22)
É essa mesma alternativa que o leva a diversos outros diálogos com a tradição. Em
sua poesia há uma comunicação com a herança cultural e com um sentido humano presentes
na construção de imagens poéticas cujas referências se tornam muito perceptíveis, como já
vimos. Às vezes, por exemplo, há uma revelação daquela modernidade que chega cercada de
emoções dilacerantes, satânicas, que nos remetem a um romantismo de imaginação popular
medieval, de um lirismo gótico, que nos lembra o Fausto, de Goethe, quando ao atravessar os
pântanos sombrios de seu próprio ser, nomeia o Espírito do mal, fazendo-o assim aparecer:
atravessando o charco em desespero para naufragar
em outro, sibila tenebrosa, movediço pântano que me
quer devorar com suas garras crustáceas. aí de dentro
de mim, do fundo da noite eterna, um único grito
brota
– lúcifer!
(CHACAL, 2007, p.159)
Outras vezes, zombeteiro, com um sarcasmo investido contra si mesmo, triste, indo
do divertido ao severo, lembrando um Álvares de Azevedo em momentos de baixa
autoestima: “ninguém mais há em minha volta. tô cansado/ da minha companhia. só falo
besteira. não digo nada/ com nada. preciso exercitar a pena. se ela se move que/ seja na minha
mão./ trêmula e bolorenta.” (CHACAL, 2007, p.22) Essa atitude é coerente com a deliberada
107
e confessa opção pelo ato de escrever poemas como prática para toda uma vida, o que o
diferenciaria de quem não faz da poesia um ofício.
quanto a você meu camarada
que à noite verseja pra de dia
cumprir seu dever de água parada
fica aqui uma sugestão:
– se engaveta junto com seus poemas
porque muito sangue vai rolar e não
fica bem você manchar tão imaculadas páginas (CHACAL, 2007, p. 224)
O compromisso ético, a dimensão social e a experiência compartilhada estão também
presentes se pensarmos em um controle da emoção ou na abolição de atitudes confessionais
como qualidade do trabalho poético. E o próprio conceito de “inspiração” é controverso.
Há momentos em que o poeta carioca parece escolher um tema, e racionalmente
investe nele com um olho crítico, como vimos em Papel de Parede ou New York, e outros
em que, como que possuído de um momento mais particular de subjetivação, reveste sua
expressão de uma experiência vivida, espontânea, em que, através dela, um coletivo pode se
enxergar, E, para além de um eco que envolve o leitor completamente e se propaga no poema
abaixo, todos podem compartilhar desse ressoar contínuo, presente em A vida é curta pra ser
pequena, que é a própria existência humana:
Vida
roer
moer
remoer
morrer
(CHACAL, 2007, p.112)
Às vezes, Chacal usa um elemento semântico surpresa, que chega cortando uma
sequência também sonora e rítmica para realizar outra, trazendo, para o lirismo, sentidos nada
previsíveis, como no poema abaixo, de América:
paixão é pra disfarçar a solidão
tão cheia de aflição
que podia ser uma afta
tão ácida na boca¨
(CHACAL, 2007, p. 302)
108
Outras, ele ironiza o próprio sentimento, numa atitude racional, para frear seu fluxo e
trazê-lo a uma reflexão da própria poesia, para o fazer poético, como um ato de comunhão
com o mundo e o ser humano, que nos conectam imediatamente a Drummond, em
“Sentimento do Mundo”, quando em Mãos Dadas diz:
não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
(ANDRADE, 1985, p.79)
E Chacal, em Drops de Abril:
não me atirarei em poças d’água
não espere isso de mim
não desaparecerei
impunemente da vida
me atirando num buraco.
a vida voa e vai mais longe
até o fundo do poço
cuidado moço
para não falar palavra errada
cuidado cantor
(CHACAL, 2007, p.190)
A leitura prévia dos autores tradicionais, como Álvares de Azevedo, Fernando
Pessoa, Manuel Bandeira ou Drummond nos faz ler os textos de Chacal de uma forma mais
rica, e não há como conceber a feitura do trabalho artístico sem revisitar a tradição. Chacal,
como todo autor, retoma em seus textos as leituras que fez, sem que, apenas isso, possa
desmerecer ou engrandecer seu trabalho. Da mesma maneira que cada individualidade é
marcada por um pouco de cada um com quem, de fato, houve convivência e aprendizagem
para construir o mundo inteligível, na poesia, escolhem-se exemplos a seguir ou modelos
rechaçados, conscientes ou não; convergência ou ruptura.
Assim também o poeta persegue a sua própria personalidade poética, a
“originalidade”, não aquela vinda pela inspiração espontânea e febril dos românticos, mas a
que consiste em saber trabalhar com os materiais e procedimentos disponibilizados pela
tradição, com um sentido e forma peculiares, ora compactuando, re-significando-a em outros
contextos, ora transgredindo para alcançar com sua criação uma sensibilidade sempre
109
renovada. Mesmo porque, como afirma Leyla Perrone-Moisés, “toda obra nova implica, em
sua fatura como em sua recepção, uma releitura do passado literário” (2003, p.13). Os
escritores também são leitores e críticos, e, além disso, através de sua própria obra, podem
estar construindo o cânone futuro, mesmo sendo contraculturais ou marginais, como Chacal,
já que vários autores hoje tradicionais, alguns deles citados nesse trabalho, foram
considerados transgressores um dia.
No poema acima, de Chacal, que dialoga com Drummond, o eu lírico adverte o
cantor sobre o uso da palavra errada; de fato, se o poeta “canta”, ele permanece
irremediavelmente ligado aos “cantos” líricos, às cantigas medievais e sempre estará
conectado a esse passado de musicalidade, quer pelo ritmo, rima e outros recursos fônicos
constantemente presentes, quer pelo conteúdo temático. Não podemos nos esquecer de que o
gênero lírico é anterior à prosa, e de que, em sua própria constituição, desde a alta Idade
Média, guarda afinidades com o trânsito, tanto no sentido geográfico (os “cantores” viajavam
do sul da França à Espanha mediterrânea, até o norte da Itália), quanto quando inovavam,
transigindo temática e formalmente, como, por exemplo, colocando o amor como causa
maior; o que se constituirá na matriz do romantismo, adorando a mulher, em especial aquela
já comprometida.
A capacidade de rir de si mesmo, um erotismo explícito, críticas políticas e
religiosas, interações com o islamismo, com o oriente e o trânsito com outras formas de arte
na atuação performática da poesia oral dos trovadores (como a música e a dança), são outros
traços inovadores que acompanharam o gênero lírico. Hoje vemos mais uma vez essa intenção
da poesia de ir ao longe em seus diálogos constantes com o universo das outras artes e
também no uso dos vários suportes ou recursos tecnológicos, na constituição e disseminação
de trabalhos poéticos em blogs e sites diversos.
Seguindo outra tendência transgressora da poesia moderna, que também se aproxima
do universo musical, e está muito presente na poesia de Chacal, a geração beat, seremos
levados a rupturas que questionam os próprios gêneros e formas do literário.
Cláudio Willer, em recente publicação, Geração Beat, afirma: “A beat se formou
com o jazz bop e se expressou através do rock – e de música pop, balada country, blues, rap e
criações de vanguarda experimentais.” (WILLER, 2009, p.13) Esses ritmos e as ideologias
que deles fazem parte comparecem com muita força em vários poemas de Chacal, além de o
próprio autor/ator apresentar-se no palco em performances poéticas e musicais, como no
110
recente trabalho, “Uma história à margem”, denominado por ele de “uma epopeia punk”,
dirigido por Alex Cassal e exibido em várias cidades do Brasil em 2013.
A cultura beat, apesar de ter a sua origem muito bem delimitada, estudada aqui no
capítulo I, expandiu-se em vários outros movimentos culturais, tornando-se não só uma
poética, mas uma ideologia que transita da marginalidade à erudição, do anarquismo ao
ambientalismo, à defesa de uma sociedade pacífica e anticonsumista, e adota como bandeira a
liberdade em todos os sentidos, inclusive sexual, e o misticismo religioso; ou seja, há sempre
um interesse por outras culturas e crenças, pela alteridade, numa atitude existencial: corpos,
espaços e palavra. No Brasil, os beats ligam-se à luta contra a ditadura militar, à poesia
marginal, e Chacal, Leminsk e Waly Salomão podem ser considerados seus representantes de
maior expressão.
A literatura consumida pelo grupo norte-americano era muito vasta, mas podemos
elencar apenas os autores de maior relevância, que eram citados por eles próprios: Artaud,
Blake, Dostoievski, Eliot, Garcia Lorca, Gertrud Stein, Jean Genet, Melville, Pound,
Rimbaud, Yeats e Whitman; todos eles, de alguma forma, conectam-se a uma herança
romântica e simbolista, que por sua vez foi muito valorizada pelos surrealistas, de onde parte
também o grupo para experiências do inconsciente, sensíveis e suprassensíveis, através do uso
de álcool, maconha, haxixe e narcóticos sintéticos dos mais variados. É, sobretudo, através de
uma religiosidade e consciência diferenciadas, que o movimento beat critica politicamente
tanto uma direita capitalista, quanto uma esquerda burocrática, desprezando as formalidades e
moralismos para cultuar a fraternidade, a preservação da natureza, a potencialização das
sensações de prazer, com uma irreverência e uma autoironia nada indulgente, marcando a
modernidade na segunda metade do século XX. É, seguramente, um conjunto de referências
muito explorado por Chacal, como podemos perceber muito claramente nesse poema, de
Letra Elétrika:
com calma amanheço
da delirante noite do ópio
da nebulosa treva tenebrosa
do uivo lancinante do demente
amanheço
com a boca seca da miséria
com o lábio rachado do pavor
com o cinzeiro entupido de visões
(CHACAL, 2007, p.142)
111
Outro traço da geração beat, também usado na obra de Chacal, e que nos interessa
especialmente aqui, quando falamos da palavra poética enquanto um corpo, uma matéria,
repleta de vazios, poros e vasos comunicantes, é a chamada escrita híbrida, transgênica,
assentada em espaços-tempos heterogêneos. Maria Esther Maciel, acrescenta, sobre esse tipo
de poema: “pode-se dizer que o poeta reinventa a linguagem, e, ao mesmo tempo, inventa
uma escrita poética que, ao misturar prosa e verso, também se coloca fora dos limites dessas
categorias.” (MACIEL, 2010, p.118)
O texto de Allen Ginsberg, Uivo, para Carl Solomon, considerado o primeiro poema
beat, lido em voz alta no dormitório da Reed College na noite de fevereiro de 1956, vem
como um jorro da mente num fluxo contínuo, e não há como enquadrá-lo exclusivamente
como poesia ou prosa, assim como muitos textos de Chacal. Vários outros escritores
brasileiros da segunda metade do século XX possuem esse tipo de escrita, e, como afirma
Maria Esther, “As misturas têm se tornado um valor de nossa época e não uma transgressão.
Elas passaram a integrar a dinâmica cultural” (MACIEL, 2010, p.109).
Só para citar alguns poetas, além do próprio Chacal, Ana Cristina César, Waly
Salomão e Michel Melamed usam muito essa escrita transgênica. Uma obra de Melamed
(2005), inclusive, não é sequer catalogada pela editora como poesia, na ficha catalográfica
aparece a curiosa expressão “miscelânea”, para especificar o gênero de Regurgitofagia.
Outros escritores, mesmo optando pela prosa, também articulam poemas dentro de seus textos
narrativos híbridos, como por exemplo, Luiz Ruffato; na obra eles eram muitos cavalos, cujo
próprio título vem da poesia de Cecília Meireles. Observe-se:
sacolejando pela Avenida Rebouças
o farol abre e fecha
carros e carros
mendigos vendedores meninos meninas
carros e carros
assaltantes ladrões prostitutas traficantes
carros e carros
mais um
terça feira
fim de semana longe
(RUFFATO, 2006, p.96)
Apesar desses aspectos da obra de Chacal já terem sido comentados na introdução
desse trabalho, a reafirmação dessa característica aqui se torna necessária para enfatizar o que
propusemos demonstrar nesse capítulo: a palavra é também um corpo que possui uma matéria
112
e uma história em trânsito, seus sons e/ou sua marca no papel e nos papéis representados
na/pela sociedade. Assim, também é vazada, possui limites que se interseccionam com as
outras formas, e a modernidade da poesia consiste, antes de tudo, numa atitude crítica,
conquistada com novos métodos de pesquisa e de criação, de quem seleciona da tradição o
que lhe convém em seu tempo e lugar, da forma de que necessita, para construir a arte da
palavra no século XXI afora. É através da discussão sobre as formas de convivência entre a
convergência e a ruptura da tradição na linguagem poética que podemos realizar um estudo de
uma poesia tão recente, como a de Chacal.
É difícil até situarmos o que de fato pode ser considerado tradição na poesia
brasileira hoje e o que seria ainda uma atitude vanguardista. Se analisarmos os principais
textos-manifestos das décadas de 1950 e de 1960, até os do início dos anos de 1970,
coincidindo assim com as primeiras produções de Chacal, temos: o Concretismo, o
Neoconcretismo, o Poema-Práxis e o Poema Processo.
Várias das propostas desses movimentos encontram-se acolhidas pela poesia de
Chacal. Já demonstramos algumas similaridades entre o que estava no plano piloto formulado
pelos irmãos Campos, Décio Pignatari em 1958 e os versos do poeta carioca. E não para por
aí. O Manifesto Neoconcreto, apesar de ser uma reação contra “uma perigosa exacerbação
racionalista” (TELES, 1983, p.403) do poema concreto e propor uma “significação
existencial, emotiva e afetiva” (p.408) para a linguagem, garante, da mesma forma que o
concretismo, o uso da espacialização do verbo e um embate com a poesia discursiva. Veja-se
o poema de Chacal, de Belvedere:
Malhas
vertigem da imagem
volúpia da carne
voragem da grana
as malhas do mundo são
(CHACAL, 2007, p. 21)
Os recursos do concretismo encontram-se trabalhados nesse texto, visivelmente
inspirados em Mário de Andrade; Macunaíma: “pouca saúde e muita saúva os males do
Brasil são” (Andrade, 2010, p.68); e na sátira do genial Gregório de Matos: “(...) O saber
muito abatido/A ignorância e o ignorante/ Muito ufano e mui farfante/ Sem pena ou
contradição/“Milagres do Brasil” são”. Ao poema de Chacal, esses “males/milagres” parecem
113
estar costurados também, pois nele, através dos paralelos mantidos pelos versos sucessivos,
temos as palavras vertigem, volúpia e voragem (do lado esquerdo), e as palavras imagem,
carne e grana, (do lado direito), e podemos enxergar como que os gomos dessa malha
conectados pela proposição “de”, contraída ao artigo “a”.
A sucessão do fonema “v” faz um corte no tecido branco do papel, marcando o início
de cada verso em nosso olhar, que, linearmente, vai da esquerda para a direita e, após o final
de cada um, pode produzir o deslocamento no sentido inverso, ou seja, da direita para a
esquerda. O desenho da letra “v” contribui para pensarmos nesse movimento também no
sentido do alto para o baixo, ou, reversivelmente, do baixo para o alto. A regularidade do
tamanho dessas palavras em “v”, todas elas trissílabas, garante uma coesão para o corte dessa
malha, e o fato de a primeira e a última serem paroxítonas terminadas em “m” aumenta essa
possibilidade. Visualidade e sonoridade, concretamente articuladas, “as malhas do mundo”
(ou “os males ?”) estão aí tecidas pela imagem da vertigem, da volúpia da carne, e da
voragem grana, com uma disposição significativa habilmente projetada.
Mas, não é somente esse aspecto “concreto”, da materialidade das palavras, que
garante a complexidade dessa malha. Enfatizando a importância dada ao aspecto semântico no
manifesto Poema Práxis, escrito pelo poeta Mário Chamie (1983), editado pela primeira vez
em 1961 como posfácio de seu livro Lavra-Lavra, teremos:
(...) toda palavra pode ter tantos significados quanto sejam os seus contextos.
Acontece, porém, que as palavras não são corpos inertes mobilizados a critério de
quem as profere e as usa. Semelhante entendimento está na base da crise da poesia
de hoje. As palavras são corpos vivos. Não vítimas passivas dos contextos. Desse
estado de vítimas que as leva ao equívoco e à diluição, elas se defendem sozinhas. E
o seu campo de defesa é, exatamente, o poema. Não pretendemos dizer que a palavra
não deva ser multívoca; o que afirmamos é que sua multivocidade deve ser realizada
no seu espaço próprio de autonomia. Esse espaço é o poema- campo de defesa.
(CHAMIE, 1983, p. 413)
Defendendo com veemência o “espaço em preto”, em contraposição à importância
do espaço em branco da página dado pelo movimento Concreto, Chamie (1983) desenvolve
toda sua teoria do poema privilegiando o semântico, não em detrimento dos outros aspectos
da palavra, mas colocando a palavra poética como um corpo em que forma e conteúdo não
podem se desvencilhar um do outro, mas que se complementam intrinsecamente, da mesma
maneira que, em um ser, separar corpo e mente é um equívoco cada vez mais comprovado
cientificamente, pois um se reflete no outro. Não há um “eu” que se pronuncie fora de um
114
corpo, não há uma mente pensante que possa realizar-se na ausência de sua materialidade
viva, que se movimenta e se relaciona com as outras no tempo e espaço de sua existência,
assim como não existe uma palavra poética que possa prescindir das relações que se
estabelecem entre os sistemas linguísticos e os processos dinâmicos das relações históricas e
socioculturais.
Com esse entendimento, as análises dos poemas de Chacal propostas aqui procuram
observar como as contribuições dos escritores e artistas em geral podem ser válidas para
evidenciar os sentidos da produção poética do autor. A partir daí, podemos voltar às “malhas
do mundo” por ele projetadas.
Assim, pode nos ocorrer que a própria palavra “malha” possua vários sentidos que se
interseccionam no poema. Além do tecido, bater para tornar denso, arremessar à distância, ou
manchar uma superfície podem fazer parte também do ato de quem malha. No primeiro verso,
a vertigem como uma falta de equilíbrio que faz as coisas parecerem girar ao redor de quem a
sente faz parte da confecção das imagens do/no mundo em que as combinações de forças
apresentam-se desproporcionais, o que traz a todos constantes sensações de deslocamento, de
falta de lugar em um espaço vertiginoso, em que a ponderação ou a prudência tornam-se, cada
vez mais, elementos rarefeitos. No verso dois, “a volúpia da carne” aparece como o outro
gomo da malha. O grande prazer sensitivo se entrelaça à vertigem, dando maior densidade a
esse martelar das sensações, que repetidamente se arremessam também para uma “voragem da
grana” (verso 3), com uma dimensão além do conhecido. O redemoinho do consumismo e da
extrema valorização da autoimagem sorve com violência, traga todos os que estão
susceptíveis a seus apelos catastróficos, enreda em suas malhas todos os incautos, provocando
verdadeiras calamidades nas vidas das pessoas.
As malhas do mundo podem ser também as manchas (vocábulo derivado do latim
macula, equivalente a “mancha” ou pecado) que encobrem os sentidos e impedem a visão de
outras cores e perspectivas por baixo delas, impossibilitando que outro tom apareça nas
tessituras. São malhas que estão aí para serem desencobertas por todos aqueles que desejam
ver o mundo com outras tonalidades.
Se essas malhas estão cortadas da esquerda para a direita com uma única marca
inicial (o “v”), o trânsito no final de cada verso para o seguinte se faz com palavras que
possuem tamanhos diferentes (imagem, carne, grana), portanto os recortes finais não são
regulares e podem estar abertos para novas configurações de seus tecidos...
115
Notamos, com esta análise, que a escolha de cada palavra não é ocasional, e o tema e
a forma trabalhados pelo autor nos fazem pensar no que Chamie apresenta no final do
manifesto de seu “Poema- Práxis”:
(...) se o campo do poema-práxis é um campo de defesa dos valores da palavra, a
literatura-práxis é um campo de defesa dos valores humanos contra a alienação de
uma sociedade que precisa transformar-se para conquistar-se. (CHAMIE, 1983, p.
416)
Gilberto Mendonça Teles (1983), na introdução aos manifestos que ele arrola como
sendo “O Experimentalismo” (p. 309 a 402), de 1952 até 1973, faz importantes análises sobre
essas “novas grafias”. Compara o impacto delas à reação provocada nos parnasianos pelos
versos de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, e acrescenta que as
diferenças entre eles muitas vezes se resumem a “cabotinismos autopromocionais” (p. 401) e
a divergências entre os grupos do Rio de Janeiro e São Paulo. As novidades teóricas ficavam a
cargo dos estudos linguísticos e da semiótica de Charles Sanders Pierce, o que nos leva a
concordar com o que Décio Pignatari concluiu em “Nova Linguagem, Nova Poesia”, em
1964: “(...) parece-nos claro que mesmo o que há de mais radical nesta nova poesia não se
desvincula – ao contrário – dos princípios básicos da poesia concreta. Continuamos, portanto
a chamar de concreta a esta poesia.” (PIGNATARI apud TELES, 1983, p. 421)
Outras duas abordagens a partir de manifestos serão construídas, “Poema Processo”,
em 1971, e “Parada- Opção Tática”, de 1972, ambas de Wlademir Dias Pino, do Rio de
Janeiro; mas o que foi acrescentado ao Concretismo diz respeito ao fato de o autor mencionar
as novas necessidades de resposta social, que se distanciariam de um caráter mais calculista
da poesia anterior a esses dois manifestos.
Acreditamos que essas novas necessidades de resposta social estão contidas na
poesia marginal. Ela possuía uma palavra que trabalhava exatamente com o que estava
ausente naquele momento político da ditadura militar, quando homens circunspectos e sérios,
vestidos de uniformidades e valores de engrandecimento e progresso de uma pátria mãe gentil
estereotipada e essencialista, elegiam um capitalismo truculento, sufocavam as diferenças,
extraiam toda alegria de ser livre para pensar e se expressar, e extirpavam o corpo sensível e
erótico em favor de uma mentalidade racional e hipócrita.
Os poetas marginais, para poderem se reunir e se expressar, vão usar várias táticas,
em que a brincadeira, o jogo, e a alegria de viver integralmente o corpo e a mente serão
116
elementos constantes. A crítica ao sistema também aparecerá no corpo da palavra, na atitude
de exibi-la com outras roupagens, híbridas e repletas de interações com outras poesias,
palavras, formas, discursos e culturas, naquilo que ela mostrava sem dizer, e, como nos disse
Artaud, mascarando o que gostaria de revelar, dissimulando, provocando, instigando.
E Eucanaã Ferraz (2013) completa esta ideia:
Sabia-se na carne – literalmente – o que se sabe: que toda palavra é ação e toda ação
é política. Fazendo o ato poético crescer para fora de seus limites convencionais – a
margem pode ser, muitas vezes, mais vasta do que se imagina – os poetas
misturavam poesia e futebol, poesia e carnaval, poesia e música, poesia e artes
plásticas, poesia e teatro, trazendo ao território da palavra tudo o que expressasse a
urgência de contrapor à solidão o companheirismo, à incerteza a esperança, à
violência a alegria, ao autoritarismo a liberdade, à morte a vida. (FERRAZ, 2013,
p.7)
Para Chacal, poeta sempre contracultural, mesmo no século XXI, essa palavra-corpo
híbrida e vívida prossegue sua trajetória performática, ocupando mais espaços, dialogando
sempre com as outras artes, como veremos a seguir.
117
4 POESIA E PERFORMANCE
(...) a ideia de performance deveria ser amplamente estendida; ela deveria englobar
o conjunto de fatos que compreende, hoje em dia, a palavra recepção, mas
relaciono-a ao momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e
para uma percepção sensorial – um engajamento do corpo. Ademais, parece-me que
em uma tal direção compromete-se a crítica, há bem pouco e muito confusamente. O
termo e a idéia de performance tendem (em todo caso, no uso anglo-saxão) a cobrir
toda uma espécie de teatralidade: aí está um sinal. Toda “literatura” não é
fundamentalmente teatro? (ZUMTHOR, 2007)
4.1 Leituras performáticas
Esse estudo da obra de Chacal ficaria bastante incompleto se ela não fosse analisada
também em seu diálogo com outras manifestações artísticas, mas não é somente porque o
trabalho do poeta tem contatos com a música e o teatro. Há, na própria poesia que se estuda
aqui, um aspecto performático, entendido como uma experiência que se materializa através de
uma corporeidade muito marcada, que trabalha com uma oralidade quase gestual. Há um
prazer lúdico atravessando os textos, que parecem concebidos como uma voz viva, possuindo
comportamentos verbais dinamicamente diversificados, que interagem com o receptor
trazendo interferências e percepções sensitivas capazes de modificar a informação, a
comunicação. Referindo-se a esse aspecto no âmbito geral da poesia, Zumthor cita o professor
A. E. Housman que resumiria assim essa questão: “o prazer poético é orgânico, a poesia mais
física que intelectual.” (ZUMTHOR, 2007, p. 43)
O funcionamento da poesia inclui, continuamente, combinações de situações
culturais em que a oralidade se faz presente, e, consequentemente, permanece ainda um corpo
que pulsa em um espaço de teatralidade, com uma linguagem sentida como vocal. Esse
entendimento nos faz não esquecer de que a poesia foi um dia ritual, irrigada por uma energia
do sagrado e que somente aos poucos foi se desprendendo dele; mas o discurso poético
continuou ainda sendo, por muitos e muitos tempos, apenas pronunciado. Na verdade, o
aparecimento da escrita surge para escapar dessa frágil condição temporal; a humanidade
sempre lutou contra a fugacidade do tempo, e a poesia, enquanto escrita, emancipadora da
linguagem em seu desejo de permanência, conserva mais que tudo essa marca em sua própria
constituição:
118
Chacal, no poema abaixo, de A vida é curta pra ser pequena, trabalha com a ideia
de que essa ligação da linguagem poética com a voz do presente, que se lança no instante da
enunciação, está em sua gênese e jamais de perdeu.
Tempo
no início era o começo
o depois veio vindo devagar
o antes veio depois do depois
só quando esse se estabeleceu.
no princípio era o agora
isso demorou até que
tudo virou antes e depois.
então numa revolução peluda
o agora voltou ao trono
antes e depois viraram
falta do que fazer
e tanto fizeram
que o agora virou tudo
e o tudo, nada
de volta ao princípio
o agora agora congelou
o antes fica pra depois
(CHACAL, 2007, p. 44)
O “agora”, aqui, é instante privilegiado, é o encontro entre o leitor e o discurso
poético que produz uma demanda rumo à alteridade. De fato, a palavra poética escrita viaja
através dos tempos e espaços, interagindo com as situações do momento, realizando
verdadeiros malabarismos verbais para, ao deixar de ser somente voz, continuar mantendo seu
poder de impactar, de ser performática, de jogar com o imaginário e o real no instante
praticado; o local e o global, o ontem e o hoje. Chacal, no poema acima, estabelece um tom de
uma gênese cronológica quase mítica, como um xamã, e brinca com as concepções temporais.
Ao expor as tensões de se pensar sobre um princípio, acaba por eleger o agora como o
principal motor do tempo.
A “revolução peluda” (verso 8), talvez seja a dos jovens que, a cada momento,
fazem da vida uma sucessão de agoras, de intensidades máximas de pouca duração, para
quem a vida é curta para ser pequena. Essa rebelião quer congelar o agora, e colocá-lo no
trono (versos 9 e 16). Mas a ascensão ao trono é aqui contingência paradoxal, pois é o tempo
o eleito, e, repleto de uma agonia perene, encena um desejo atemporal, como a daquela
personagem de Oscar Wilde (1854-1900), O retrato de Dorian Gray, que queria, através de
um pacto demoníaco, permanecer eternamente jovem enquanto apenas sua imagem em uma
119
pintura envelhecia. Na poesia há também um pacto permanente com o agora, mas o do leitor,
e no sentido oposto; é a obra, a palavra, não o sujeito, que vai permanecer vigorosa através da
leitura, que a atualiza esteticamente.
Pensando nesse aspecto da linguagem poética, Zumthor nos remete a Wolfgang Iser:
Devemos a um dos autores alemães mais representativos da “estética da recepção”,
Wolfgang Iser, muitas obras ou artigos sobre o tema, o “Reading Process”, de 1971,
ao Akt des Lesens, de 1976. Iser parte da idéia de que a maneira pela qual é lido o
texto literário é que lhe confere seu estatuto estético; a leitura se define, ao mesmo
tempo, como absorção e criação, processo de trocas dinâmicas que constituem a
obra na consciência do leitor. Esse “leitor” é, em verdade, simples entidade de
fenomenologia psicológica, ressente-se singularmente de substância! (ZUMTHOR,
2007, p. 51)
E é nesse momento, quando a recepção é tocada pelo dinamismo do texto, que o
elemento performático se estabelece. Ele é a interpretação, a compreensão que induz a uma
transformação, atingindo tanto o texto como o intérprete. Veja-se, no poema abaixo, também
de A vida é curta pra ser pequena, como há a intenção de envolver e compartilhar com o
leitor esse processo estressante de captura de uma palavra que é muito mais ágil que seu
autor:
Tauromaquia
Lá vem o touro
ideia inverossímil
a galopar violenta
aqui essa arena
imaculada página
papiro de gritos e espanto
jaz o poeta
pessoa pouco apta
à nobre arte de Espanha
(CHACAL, 2007, p.61)
A expressão “Lá vem” (verso 1) é extremamente familiar, soa leve como as histórias
e brincadeiras de roda, que trazem continuidades, movimentos repetitivos a serem
executados pelo próximo a entrar no jogo. O “touro” desmente essa leveza e produz um
impacto, acompanhado por “idéia inverossímil” (verso 2), mas é ela, estranha, que vai
“galopar violenta” (verso 3). E é “Aqui nessa arena” (verso 4), página que já foi um dia papiro
(verso 6), que jaz o poeta. O verbo jazer surge antitético ao vigoroso galope selvagem, e
120
carregado da formalidade de situações solenes, traz um sentido de morte. Seu sujeito é o
poeta, “pessoa pouco apta” (verso 8) à tauromaquia, espetáculo de vida e de morte, e sua
arena é a página em branco, lugar de criação demarcado, em que a metamorfose, ideia à ação
criativa será realizada; é lá seu espaço de luta, de combate (-maquia) em que ele se vê
impotente, inerte. E o touro?
Ele é imagem que evoca uma força criadora ancestral; os touros sagrados da
mitologia fertilizavam a terra com seu sêmen, Minotauro guardava o labirinto, acessível
apenas aos iniciados, capazes das profundezas do eterno retorno. Ele vem para sugerir ali,
naquele instante, uma remota antiguidade em que a página é arena ancestral, o “papiro de
gritos e espanto” (verso 6); de quem? Daqueles que assistem ao espetáculo, o sacrifício ritual?
De quem vislumbra essa cadeia de signos? De quem compactua da aflição do poeta (o leitor)?
Do toureiro, que arrisca a vida a cada instante na arte da tauromaquia? Ou de quem vive da
agonia do papel em branco? De quem arrisca a vida em improvável ofício?
Para pensar nesses movimentos, uma outra performance se faz; a do papiro, que se
dobra e desdobra novamente, como o círculo em torno da tourada; e quantas vezes ele for
tocado pela leitura, novamente outra ação se concretizará, pois na dimensão do texto há
sempre vazios os quais o leitor é convidado a preencher, demonstrando que o poeta não “jaz”,
mas se compromete com uma ação, continuamente criadora.
Ao focalizar esse trânsito entre a escrita de Chacal, os contos tradicionais do “era
uma vez”, e algumas das atuais animações e/ou histórias em quadrinhos de aventuras, ou
mesmo seriados televisivos do gênero, percebemos que nelas certas personagens podem estar
sofrendo intensa violência sem que, no desenrolar das ações, haja qualquer intenção de
envolver ou provocar a compaixão do leitor. Nessa linguagem, os imbricamentos de
elementos do drama e da comédia estão fortemente marcados pela oralidade, o que também
ocorria na antiga comédia greco-latina. O foco estava nos acontecimentos mirabolantes que se
sucediam rapidamente, sem que houvesse tempo para o pormenor, atravessados pelo risível e
dramático concomitantemente, sem qualquer distinção, deixando para o espectador/leitor
fazer essa operação. Observam-se todos esses mesmos aspectos no exemplo abaixo, texto de
Chacal, de Quampérius:
121
Assalto
todo dia ana ia trabalhar. ela era guia turística.
mostrava aos gringos que cá chegavam nossa
topografia acidentada o arco-íris o céu anil. se não
gostavam mandava pra quiuspariu.
numa época de maior dureza, quampa planejou mais
ana um assalto a um grupo de turistas. ana levaria
visitantes à vista chinesa do fim de tarde. lá estaria
esperando quampa disfarçado em helicóptero.
ninguém suspeitaria. quampa foi esperteleco pois
além de bueno seu disfarce serviria como veículo
de fuga.
era cinco e meia quando o ônibus da riotur cheio
de japoneses chegou ao local. sem suspeitar jamais
de um helicóptero, os amarelinhos saíram do bus
e começaram a fotografar tudo que podiam: a
paisagem, uns aos outros, a bela guia que decifrava a
cidade e roía as unhas. usava baton.
os filhos do sol nascente estavam embasbacados com
o panorama e perguntavam: quem ganhou o último
páreo? Apontando para o hipódromo da gávea ou
“ como uma cidade pode ser tão bela anabela”?
tão distraídos estavam que não repararam nos sinais
que fazia o ônibus com os faróis a buzina o para-
brisa a antena na tentativa de avisar que o helicóptero
que parecia tão inocente e helicóptero, não era um
helicóptero e sim um farsante.
quampa de um salto fez o assalto. primeiro ligou a
hélice e espatifou o ônibus. segundos depois, tirou o
disfarce e rendeu os tanakas y mifunes com um lança
chamas. Ana limpou um por um e cuspiu na cara de
todos. neporium botou novamente o disfarce, ana
embarcou e saíram voando. Os japonas estupefaram.
(CHACAL, 2007, p.264-265)
Não há no texto qualquer preocupação com as subjetividades, são os fatos crus
apresentados que sustentam a perspectiva de um narrador onisciente. Esse narrador aparece às
vezes misturado ao protagonista em outros episódios/ poemas do livro. A precariedade desse
sujeito, o eu lírico, reafirma-se por uma certa indistinção entre ele, a personagem e o próprio
autor, já que há em outros eventos do mesmo, vários dados biográficos do autor fazendo parte
da narrativa e das ações do protagonista. Essa ambiguidade perpassa o texto demonstrando
um descompromisso com as certezas, inclusive com o espaço do sujeito do enunciado,
fazendo da história um lugar imponderável.
No texto acima, por exemplo, estamos no terreno de um realismo fantástico, comum
em seriados televisivos; neles, a ação sufoca o sujeito, como ocorre também nos quadrinhos
de aventuras. Ana, a namorada do protagonista, é portadora de apenas alguns traços que a
identificam, apesar do acúmulo de acontecimentos narrados superficialmente: guia turística
122
(verso 1), roía unhas, usava baton (verso 17), mas, curiosamente, todos os nomes próprios
aparecem com letra minúscula, demonstrando certo grau de impessoalidade. As personagens
centrais estão diluídas em ambiente urbano, onde um na multidão não ganha forma tão
facilmente; mesmo possuindo suas poucas marcas na fluidez desse real; é apenas o instante e
a ação que definem a experiência; não há valores estáveis a serem mantidos.
Em Assalto, a partir dessa falta de referência, o real passa a ser inapreensível, a
verossimilhança, a ideia da narrativa como representação enfraquece, e as incongruências são
apresentadas como perfeitamente plausíveis; Quampérius pode se disfarçar em helicóptero e
não ser notado (verso 8), assaltar os turistas (verso 27) e, sendo ele próprio, por alguns
momentos essa máquina, pode espatifar com suas hélices o ônibus em que os japoneses estão
(verso 28), e sair ileso com sua amada, como um super-herói, mas sem a distinção e o caráter
de que essas personagens são possuidoras.
Essa pretensa normalidade de um absurdo, que não se encaixa nem nos perfis das
aventuras expostas pela mídia, coaduna-se com o processo de desautomatização proposto por
Brecht, instigando a percepção do leitor na ponderação de que se o absurdo pode ser trivial, a
trivialidade possui também seus absurdos. E os seres podem se parecer, inclusive, com seus
disfarces, apenas executando uma ação programada, e depois irem embora, sem temer ou
pensar nas consequências de seus atos, não se comprometendo com eles; “saíram voando”
(verso 32).
Como nos contextos dos quadrinhos norte-americanos no pós-segunda guerra, no
poema “Assalto”, os “japonas” (verso 32) são pessoas hostilizadas, a ponto de, depois de
serem roubados, agredidos pelo lança chamas, ainda levarem cuspe na cara. Eles, comumente
associados à disciplina e ao trabalho, levam a pior no universo do caos e da malandragem que
a cidade tem a oferecer (versos 29-30-31). Diante de toda a violência, eles não têm uma só
reação, apenas “estupefaram” (verso 32). Eles estão inseridos na história como personagens
desprovidos de inteligência, embora interessados em esportes competitivos e nos prêmios de
quem aposta neles: “quem ganhou o último/ páreo? apontando para hipódromo da gávea”
(versos 19-20). São convencionais, importam-se mais em guardar uma imagem fixa do
momento, que percebê-lo em seu movimento de perigosa mudança: “e começaram a
fotografar tudo que podiam: a/ paisagem, uns aos outros, a bela guia que decifrava” (versos
15-16). São o oposto do protagonista, “esperteleco” (verso 9); palavra que parece saída de um
desenho animado. Os perfis são, portanto, bem esquemáticos, caricaturais. A falta de
caracteres mais humanizados contribui para que a catarse não se efetive do lado do leitor, eles
123
são apenas estereótipos, ridiculamante tolos: “embasbacados” (verso 18), a dizer: “como uma
cidade pode ser tão bela anabela?” (verso 21) Frase bem clichê, que os moradores do Rio de
Janeiro escutam sempre dos gringos.
Podemos facilmente, a partir desses elementos, comparar essa história aparentemente
cômica com as antigas comédias greco-latinas, e a aproximação de ambas com as histórias de
ação dos meios de comunicação de massa é visível. Esse texto de Chacal possui vários
elementos comuns com as comédias: poucas personagens, com pouca ou nenhuma
complexidade, uma linguagem oral do cotidiano, das ruas, nada pudica, com neologismos,
estrangeirismos, baixo calão e um enredo bastante movimentado, apoiado em sequências de
ações das personagens, com começo, meio e fim bem definidos, em torno de um só problema
a ser solucionado, no caso, “a dureza” (verso 5) das duas personagens centrais: Ana e
Quampérius.
Na antiguidade21
, em que se ria com um roteiro básico acrescido de oportunas
improvisações, os temas, como em “Assalto”, eram ligados ao tempo e espaço imediatos;
possuíam então significação coletiva, exercendo um controle social: o medo do condenável,
do ridículo dos comportamentos. A procissão fálica, uma das formas primitivas de comédia,
atravessava as ruas da cidade e nos cortejos de parodiantes mascarados, eles cantavam,
dançavam e se dirigiam aos espectadores atacando nominalmente políticos e grandes figuras
locais. Essa crítica frontal, presente na comédia antiga, durou desde os primórdios até sua
proibição, na época de Aristófanes (447 a.C.). A partir de então, não era mais permitida a
crítica pessoal e o enfoque passa a ser dado aos costumes sociais.
A atitude crítica presente na comédia sempre teve necessidade de adquirir novas
roupagens para sobreviver em momentos de crise política. Na ditadura militar vigente no
Brasil nos anos de 1970, quando Quampérius foi criado, toda a arte que criticava o sistema, e
seus encontros com o público, teria que apresentar seus disfarces para não serem
violentamente coibidas. O próprio grupo de que Chacal fazia parte patrocinava desfiles
carnavalescos, as “Artimanhas”, e “peladas” para organizarem os encontros de artistas, sem
gerarem suspeitas. A palavra poética muitas vezes exigiu máscaras diferenciadas para se
manter livre.
21
Tais argumentos foram retirados das aulas do Prof. Johnny José Mafra, em curso oferecido em agosto/
setembro de 2014: “Literatura Clássica: a comédia”, e nos valiosos e raros materiais sobre o tema, escritos e
impressos por ele, gentilmente ofertados aos alunos que cursaram a disciplina.
124
Os personagens típicos da comédia antiga eram como o são até hoje nos quadros
cômicos da mídia; o mocinho, o avarento, o mau caráter, a mocinha casadoira, o guloso, o
fanfarrão ou a bisbilhoteira. Mas depois de muitas peripécias, no desenlace, geralmente havia
algum tipo de promoção, e a personagem central se integrava à sociedade, tudo se resolvendo
no final.
E para Quampérius? Não há nenhuma solução possível. O enredo da obra não indica,
ao final dela, qualquer fechamento ou reabilitação, como havia nas comédias antigas, para as
canalhices do protagonista, ou para sua “dureza”. Não há ainda qualquer quebra para o
impasse de um eu lírico que se mistura com a personagem e que não se reestabelece, a não ser
uma encenação metalinguística, que muda a perspectiva de construção de um discurso
literário como representação.
Observamos como isso ocorre no último poema narrativo de Quampérius, que na
verdade deveria ser o primeiro, pois fala da criação da personagem, e é curiosamente
chamado de Licença Poética (CHACAL, 2007, p. 297):
-ô cara, vim aqui pra ti chamar prum pagode. vamu lá
-aí, quampa, my friend. hoje tu vai só. sabe qualé?
mi deu uma vontade braba de ficar aqui mesmo
escrevendo sobre você tuas aventuras sobre-humanas
aventuras sobre o devir e o vir a ser e sobretudo sobre
ela aquela aquarela amarela da casa d’stela. pois é
poesia baixou no meu telhado ou melhor, por entre as
telhas me esgueirei pra ver você.
(CHACAL, 2007, p. 297):
Como ele pode contar a história de seu personagem, Quampérius (meio
autobiográfica), antes de tê-lo criado? Quem está pedindo licença e a quem? A personagem,
ao entrar em cena? Ou ela mesma, ao chegar à casa do narrador? O criador, à criatura mal
acabada? Ou ele mesmo a nós, leitores, ironicamente, pelo fato de ter escrito essa história ao
revés? O poeta, aos colegas de pena, por incluí-los tão inadvertidamente nesse emaranhado
sem ponta? A coloquialidade e a grafia das palavras são meio oswaldianas.
Adélia Prado (Divinópolis, 1935), exatamente no primeiro poema de bagagem
(1976), fez uma retomada autobiográfica do “anjo torto” de Drummond, do Poema de sete
faces (1985, p.3), em poesia denominada Com licença poética (1976, p.23), embora o faça
justamente para negar o lado gauche do ser feminino. O eu lírico de Chacal declina do convite
de Quampérius para irem a um pagode, e não querer sair de casa para ficar se esgueirando por
125
entre telhas para ver, compor seu protagonista, e ambos (ou os três; personagem-autor-
narrador?) são um tanto gauches na vida. O verbo esgueirar é bastante significativo para
pensarmos nessa relação que o poeta carioca estabelece com a palavra dos dois mineiros,
Adélia e Drummond, numa atitude de quem se infiltra, cuidadosa e tortamente, até para
brincar, como nos trocadilhos infantis, com a cor amarela, que está também em “louvação
para uma cor” (1976, p.43) de Adélia Prado. Através do jogo dessas tramas e encenações, sua
palavra poética irá percorrer até chegar ao leitor, que poderá, performaticamente, refazê-las,
reinventá-las.
Assim, nos textos, não há ainda nenhum segredo a ser descoberto pelo leitor, a não a
ser a linguagem, em uma potência de simulacros. A dimensão da história é mais fruto de um
imaginário difuso, sobreposto, que de um sentido (“aventuras sobre o devir e o vir a ser”?)
(verso 5), em que imagens em movimento prevalecem em detrimento da pouca ou nenhuma
complexidade das estruturas frasais, dos versos longos, cujo fluxo é similar ao de uma fala
ofegante, tensa, com poucas pausas, de quem tem pressa para viver do agora. E é começando
de seu agora que o leitor percorrerá emaranhados, até chegar a outras leituras, fazendo um
movimento inverso, do fim até o começo, como o passar de páginas de um mangá, ou como o
eu lírico de Quampérius que afirma, contraditório, no último poema, que vai começar a
escrever sobre as aventuras de seu herói.
Apesar de ter marcas dos quadrinhos estrangeiros, como os mangás22
japoneses, ou
dos heróis mascarados norte-americanos a lutar pela propriedade privada, o resultado do livro
Quampérius, em sua primeira edição ilustrada artesanalmente, é uma mistura bem brasileira:
um herói mestiço, “sem nenhum caráter”, sensual, eclético e híbrido. O mocinho não está com
a lei e nem o mifune é um samurai harmônico. A própria origem dos mangás parece ter pontos
de contato com as práticas dos autores das poesias marginais nos anos de 1970, quando o
livro foi escrito. Na época feudal, muito antes do livro impresso, essas lendas japonesas
ilustradas eram reproduzidas através de rolos compressores artesanais, e lidas em papiros à
medida que eram desenroladas. No século XX, quando se tornaram acessíveis ao ocidente
depois da segunda guerra, o apelo comercial os fez aproximaram-se da linguagem
cinematográfica, com alternâncias variadas de planos e enquadramentos. Depois da aquisição
dessa linguagem múltipla, vão surgir vários fanzines independentes, e a partir dos anos de
22
O vocábulo tem seu sentido ligado às origens do teatro de sombras medieval, que percorria as vilas contando
as histórias dos ancestrais por meio de fantoches. Depois, já em textos, foram ilustrados e escritos em japonês,
em que o movimento de leitura se faz inverso em relação ao ocidente, ou seja, da direita para a esquerda; assim,
o início dela se dá inversamente também, a partir da contracapa.
126
1990, os mangás tornam-se fenômeno internacional de venda, havendo também várias versões
em desenhos animados, que viraram febre, algumas com forte apelo sensual.
Assim, ao utilizar essa linguagem incongruente, (próxima da midiática, mas com
elementos incompatíveis; semelhante à oralidade cotidiana, mas com traços fantásticos,
inverossímeis) o autor estaria provocando um estranhamento no leitor, e, a partir dele,
propondo um questionamento. Como em um método de vacinação, as incongruências
presentes no texto usariam os mesmos elementos estranhos que “intoxicam” a percepção do
sujeito para fazê-lo reagir. Há aí uma catarse, no sentido de uma transformação do receptor da
mensagem a partir de seu encontro com o texto.
Essa é uma técnica muito utilizada pela linguagem performática e há em toda obra de
Chacal um apelo à performance, entendida aqui também como
(...) basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromissos com a
mídia, nem com uma expectativa do público e nem com uma ideologia engajada.
Ideologicamente falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a
liberdade na criação, esta força motriz da arte (COHEN, 2002, p.45)
Na mídia, a oralidade adquire outros formatos, já que através dos meios audiovisuais,
não há mais a presença física do falante, e esse dado interfere sobremaneira no processo de
comunicação, que assim passa a ser habilmente arquitetado, filtrado e moldado. A linguagem
do marketing, “a industrialização da retórica” (SILVERSTONE, 2002, p.77), com suas
características persuasivas, como a repetição, o encobrimento do sujeito da mensagem e o uso
do imperativo está sempre marcando as enunciações, inclusive instaurando a fragmentação
dos pontos de vista, de tal forma, que a pluralidade das perspectivas produz,
oportunisticamente, uma dispersão do enunciador do discurso. A repetição exaustiva de certas
palavras / expressões/ sentidos, que deslizam sucessivamente pelos meios de comunicação de
massa, esvazia e rotula, transformando significados em significantes “de agora em diante
acabou a palavra curtição muito gasta pelas muitas vezes dita. daqui pra frente, diga-se
cartilage. três salvas de canhão estrondaram.” (CHACAL, 2007, p. 288)
Ao fazer uma reflexão sobre a linguagem midiática utilizando-se dela, o poeta expõe
e rearticula seus significados, demonstrando, inclusive, que não existe nenhuma possibilidade
de estar fora dela, já que sua presença é incontestável. Através de uma atitude crítica, o autor
posiciona-se intelectualmente diante da questão, tentando um certo distanciamento para
127
percebê-la, mas os signos se misturam e são, simultaneamente, apresentação e representação,
contexto e texto, objeto material e simbólico, com podemos ver no poema abaixo de Letra
Elétrika:
O auge do objeto rouge
um banho de sangue
em toda a idéia doída
breve nesse cinema
(CHACAL, 2007, p. 156)
Pensando justamente em travar um embate com essa onipotência da mídia, a
produção do autor se propõe a ocupar outros espaços, além daqueles de uma tradição que a
condicionaria ao mundo acadêmico; em ininterrupto trânsito, ela pode estar agora em todo e
qualquer lugar e misturar-se aos corpos no preciso instante banal, nas ruas, nas praças, nos out
doors e nos palcos abertos a experimentações performáticas em que a poesia e as várias
linguagens artísticas podem dialogar, como no poema acima; performaticamente sintético,
cinético, sonoro e plástico.
4.2 Poéticas performáticas
Além de ser entendida aqui como resultante do encontro de autores/textos/ leitores,
que capta, na ação, no ato da leitura, essa variedade de contribuições dos signos dispostos ao
longo de lugares e épocas diferentes, conectadas em diálogo com o repertório e o momento do
leitor (como propôs Zumthor na epígrafe deste capítulo), usaremos a palavra performance
também com outra conotação, a mais comum, que se refere, principalmente, às artes cênicas.
A esse respeito, Renato Cohen (2002) afirma:
Da mesma forma que a mídia “cria realidades”, na arte de performance vão se
recriar realidades através de outro ponto de vista. Resistente. Vai se jogar,
sensivelmente, com as armas do sistema. A linguagem da performance é uma
revisão da mídia.
A mídia manipula o real (artificialmente se criam padrões, mitos, imagens, etc, que
passam a ser aceitos como verdade). O que se faz na performance é, utilizando essas
128
mesmas “armas” (incluindo-se tecnologia e eletrônica), manipular também o real
para se efetuar uma leitura sob outro ponto de vista. (COHEN, 2002, p.76)
A retomada de caracteres completamente descolados do tempo e espaço imediato do
autor e do leitor, inseridos em sua relação com o presente, é muito frequente na linguagem do
marketing e na literatura, mas obviamente com graus de profundidade e intenções
completamente diferentes. Na propaganda, o objetivo é bem direto; através da incoerência
pretende-se fisgar a atenção do leitor para o produto ofertado, não para a linguagem; ela é
apenas um recurso para tal fim.
Mas a poesia procura no instante vivido o tempo em devir em que se irrompem
outros, numa operação sensível, que dispensa as amarras da lógica cartesiana, e a palavra
torna-se assim dinâmica, muito mais complexa. Primeiramente porque é a palavra o foco
principal, sendo ela mesma um produto que retoma sempre, de alguma forma, outros. A
intertextualidade se faz da mesma maneira que a reflexão metalinguística; a ideia ou a
sonoridade/ ritmo pretendido do fazer poético que a palavra procura, sempre remete,
performaticamente, naquela oportunidade específica, à de outrem.
Chacal, como no poema abaixo, usa a metalinguagem como experiência consciente,
intencional, a partir de um trabalho dirigido ao tema e forma do próprio texto. E se
reconhecemos que, como ele, os escritores sempre foram também leitores de outras
produções, distantes ou não, e a interpretação uma forma de compreensão, um diálogo que
transforma, tanto esse leitor/escritor, como os elementos de um passado utilizado por ele em
sua escrita (como propusemos aqui a partir da epígrafe de Zumthor (2007), a leitura será
sempre uma forma de elaboração provisória, e, no momento em que essa ação se realiza,
instauram-se conflitos e endossos, formais e temáticos, entre os autores e palavras. Não existe
realidade que independe da linguagem; assim, não há certezas e as leituras/escritas são sempre
diálogos que se estabelecem entre a palavra poética e o instante fugidio que se (des)faz,
inapreensível. Veja-se o poema abaixo, também de Letra Elétrika:
Fala palavra
Fala palavra
tu que és velhíssima
no entanto uma gata
meus afagos
agarrar queria eu teu lombo bom
mas és limo na pedra de imolar amantes
129
feliz seria se te flagrasse no banho
mas me afogaria na areia movediça
do texto da tua tez
só me resta te cantar
como um cego
que sabe a luz tão próxima
mas impossível
como um mudo que sabe
um a um todos os tons
mas incapaz
fala palavra
furta- cor de tudo e todos
apenas passas
dás o nome
e vais e caça
bela e fera
pantera
estanca o delírio romântico
nesse coração de poeta
cala em mim a paixão de te cantar
como um louco
que me vale saber tuas sonoridades
teu tom de cristal
se no meio desse hospital
fico tão impaciente
fala palavra
fluido flerte
és versátil volúvel volátil
diabólica
fala palavra
mercúria sombra do nada
(CHACAL, 2007, p.117-118)
Um eu lírico em ritmo tenso, repete, várias vezes ao longo do poema, o verso que dá
nome a ele. Como um refrão hipnótico, o imperativo conduz o texto, provocando um efeito
subliminar à leitura, algo primitivo, um mantra que evoca a palavra. Ela é o verbo, é ato, e
esse eu que se pronuncia, é o cantador que a espalha; “só me resta te cantar/ como um cego/
que sabe a luz tão próxima/ mas impossível/” (versos 10-13). A palavra “mercúria” (último
verso) traz o elemento denso, mas que escapa com facilidade, é metal frio, líquido, mas pode,
cortante e versátil como a voz que se espalha no ar, tomar o formato que o poeta vai perseguir
em vão.
A disposição dos espaços gráficos do texto também confirma essa fluidez em
movimento, como se as palavras se movessem em estado gasoso, rarefeitas. Um imaginário
difuso, de origens diversas, vem trazer percepções dos vários sentidos. O poeta, louco
trovador apaixonado, que flerta tenso com o que tanto deseja, torna-se impotente diante da
impossibilidade de enxergar o que está tão próximo. Há de se ter uma distância necessária
para percebê-la, do contrário, a palavra, com seu “tom de cristal” (verso 29), apenas perpassa
130
diabolicamente inapreensível, “caça” selvagem (versos 21, 22 e 23), “furta-cor de tudo e
todos” (verso 18), “areia movediça” (verso 8), “limo na pedra” que faz “imolar
amantes”(verso 6), sacrificando ou tornando escorregadios os significados de quem deseja
agarrar-se a certezas, ou quer vê-la sensualmente desvestida de convenções; “feliz seria se te
flagrasse no banho” (verso 7). A palavra é “sombra do nada” (verso 37), não mais tem o que
representar, não pode ser simplesmente a cópia, o negativo do retrato, uma imagem do real,
como no mito da caverna de Platão.
Quando Nietzsche (Alemanha 1844-1900) fez sua análise genealógica da cultura e
rompeu com o positivismo histórico e com o ideal de representação, expôs o quanto são
provisórias e ideológicas as verdades absolutas. Trouxe, com sua genealogia, um sentido
trágico para a existência e o reconhecimento de que são as situações empíricas que definem a
experiência humana. Se Deus deixa de ser o mediador do conhecimento, instaura-se outro
modo de legitimação do conhecimento: a especialização, os métodos e processos de
verificação que promovem, cada vez mais, a compartimentação do saber. E o homem encena
o desejo incessante, a ilusão de agarrar, de dominar um conhecimento pleno.
Mas só a arte trabalha com o imaginário, que compreende concomitantemente o
onírico, o lúdico, a fantasia e o afetivo, não sendo passível de uma racionalização acabada;
por isso, torna-se capaz de abdicar da verdade absoluta e do domínio pleno. A
compartimentação do saber trouxe uma ilusão de objetividade, mas a arte põe o dedo na
ferida, demonstrando que não há uma única racionalidade universal. É esse entendimento que
está posto em uma literatura moderna que vem então perdendo, como no texto de Chacal
acima, a ilusão de representar o real para questionar tanto o próprio entendimento do que seria
a palavra literária, quanto as noções de sujeito e referencialidade fixa. A poesia aqui se afasta
do paradigma essencialista para expor equilíbrios precários e o divórcio entre a palavra e o
objeto.
Schollhammer (2002) discute como esses novos entendimentos modificam os
procedimentos literários, eliminando o herói clássico moderno e suas motivações psicológicas
e superam o enredo aristotélico, abrindo caminho para novas qualidades sensíveis do texto,
como as manifestações de uma subjetividade em dissolução em um mundo multifacetado e
fragmentado. Seu estudo sobre as ilusões de fidelidade e veracidade representativas do projeto
literário e as novas potências performativas da escrita coloca o papel da literatura para além
do compromisso representativo ou moralizante. Segundo o professor de Teoria da Literatura
da PUC do Rio de Janeiro, há na criação poética dos fins do século XX uma lógica intrínseca
131
de ações que amplia efeitos sensíveis e cria outras formas de identificação do eu com o
mundo:
(...) mudanças na relação entre subjetividade, experiência e realidade. Assim, uma
pesquisa que, por exemplo, se orienta pelo impacto direto na literatura
contemporânea das novas tecnologias inovadoras do cinema da televisão do vídeo,
e da visualidade digital, pode na tradução textual destas mudanças registrar as
formas culturais de representação alteradas indicando modificações mais profundas
na experiência fenomenológica do tempo e do espaço, da situação do corpo humano
em relação ao mundo e as possibilidades de encenação do sujeito como condição da
identidade social. (SCHOLLHAMMER, 2002, p.26)
Como vimos nas análises dos vários textos de Chacal, a dicotomia entre sujeito e
objeto do discurso se enfraquece, e as relações entre imagens criam outro modo de conceber
um tempo disparatado em lugares desconectados e parciais. A partir das referências sobre a
linguagem performática nos estudos interdisciplinares de Gade e Jerslev (2005),
Schollhammer veio conceituar Realismo Performático em publicação de 2012:
(...) encontramos nessa prosa, eis a nossa hipótese, efeitos de realidade que dão por
aspectos performáticos da escrita literária não exclusivos à comunicação racional
nem aos efeitos sobre uma consciência receptiva, senão que atuem efetivamente
agenciados pela expressão textual num nível que só pode ser denominado de não
hermenêutico.
Precisamos acentuar então que estamos falando de um tipo de realismo que conjuga
as ambições de ser “referencial”, sem necessariamente ser representativo, e de ser,
simultaneamente, “engajado”, sem necessariamente subscrever nenhum programa
crítico. (SCHOLLHAMMER, 2012, p.143)
Está posta a necessidade de se trabalhar com um sentido ético mais abrangente, sem
se ater à lógica ultrapassada de uma representação social declarada a partir de um enunciador
ou de um lugar engajado da enunciação, e de se analisar os processos em que as identidades
se fazem performaticamente e em devir. A compreensão do fenômeno literário será mais
promissora se estiver posto o diálogo permanente com as outras expressões artísticas e com
disciplinas como História, Antropologia, Comunicação, Psicologia, Filosofia, concebido não
apenas como um corte analítico, mas como parte constituinte do objeto e da linguagem.
Schollhammer acrescenta, no mesmo ensaio:
132
Hoje, não só caiu em descrédito qualquer tentativa de definir a literariedade como
também foi problematizada a exclusividade dos estudos literários a favor de
abordagens transdisciplinares. Uma tendência predominante foi a de deslocar o
centro das leituras dos conteúdos e das características de discurso e estilo para uma
atenção cada vez mais acentuada no fazer pragmático do texto, seus efeitos e sua
performance. (SCHOLLHAMMER, 2012, p.143)
Se estamos pensando na performance poética como uma representação que se
(re)faz continuamente, em devir, sem parâmetros fixos, para se conectar com um real que
afete o leitor em sua sensibilidade, surge outra terminologia usada por Schollhammer (2007),
o “realismo afetivo”. O autor destaca a impossibilidade de representação da realidade a partir
do “cânone mimético do realismo histórico” e “procura realizar o aspecto performático da
linguagem literária, destacando o efeito afetivo em lugar da questão representativa” (p.43). O
termo refere-se também à teatralidade da experiência poética, de como essa forma de
expressão “afeta” o leitor ao se voltar ao pragmatismo do próprio texto, que se constitui como
um conjunto de sinais, construídos à maneira de um deslizamento de cenas fortes, que
anseiam o conceitual, marcando sucessivamente o texto e o leitor, sem que com isso se
tornem objeto de representação de um real, como no texto abaixo, publicado em livro inserido
na reunião de todos os seus poemas até 2007, denominado também, como a coletânea, de
Belvedere:
Sete Provas e Nenhum Crime
Havia a mancha de sangue no jaleco
E nenhum corpo
Havia o olhar rútilo, o rosto crispado
E nenhum motivo
Havia o cheiro impregnado no copo
E nenhuma digital
Havia o vírus, o bilhete, a arma branca
E nenhum assassinato
Havia em vão a confissão
E nenhum ilícito
Havia a cadeira de rodas vazia
E nenhum suspeito
Havia um gato emborcado no aquário
E peixe nenhum
(CHACAL, 2007, p.11)
O poema traz uma palavra poética que trabalha com o elemento ausente, o
intraduzível, como propôs Artaud (transcrevemos um trecho na epígrafe do capítulo 2), ou
seja, o real não está mais presente quando se tenta dizê-lo. O que o artista faz é inventar meios
133
para presentificar sensações que se aproximem, ao máximo, daquelas que podem advir através
do contato com o real, e tentar compartilhá-las com o receptor, provocando-o. Esses novos
realismos que procuram outras formas de afetar, de estabelecer com o leitor motivações
inusitadas através dos procedimentos textuais, estavam também presentes nas propostas dos
artistas da poesia marginal da década de 1970 e de Chacal. Eles desejavam exatamente novas
formas de impactar os leitores, criando obras de cultura que descartavam completamente um
desejo de grandiosidade ou excelência literária em favor de criações que se integrassem ao
cotidiano, como se um sentimento comum fosse capaz de estabelecer uma mudança de
paradigma, fazendo uma poesia que, ao sair do espaço confinado das bibliotecas, afetasse uma
coletividade, trazendo elementos lúdicos para os espaços comuns.
Essa proposta de integrar a vivência, a paixão e um sentimento comum para a criação
da cultura, que microscopicamente recria no cotidiano um corpo coletivo, ao mesmo tempo
em que propõe um novo modelo ético, faz parte das reflexões da tradição intelectual francesa.
Maffesoli (1998) cita G. Bataille e Foucault na construção dessa mudança de paradigmas para
criação de uma visão mais holística, global da sociedade. Termos como “ética da simpatia” de
M. Scheler, ou “nebulosa afetual” e “consciência coletiva” de Halbwachs, chegando até
“comunidade emocional” de Weber, aproximam-se muito, tanto do conceito desenvolvido por
Schollhammer, “realismo afetivo”, quanto das perspectivas de análise de Jacques Rancière
(2005) em A partilha do sensível.
O entendimento da arte como uma prática que modifica a maneira como a sociedade
faz funcionar a sensibilidade e como ela torna isso visível, como propõe Rancière, aparece
posto em questão nas expressões artísticas abordadas aqui para o estudo da obra de Chacal.
Na vanguarda europeia, no início dos 1900, o dadaísmo, discutirá principalmente o lugar da
arte na economia simbólica, e o surrealismo, o próprio conceito de realidade. Na segunda
metade do século XX, os beats deixarão expostas a dor e o vazio do consumismo
individualista de um país bélico, e os poetas marginais brasileiros, a necessidade da alegria
para espantar o medo em um triste momento da história brasileira, e a poesia como uma
atitude para enxergar a vida.
A prática dos artistas do papiers collés, a técnica da colagem, fez dessa operação
uma linguagem estruturadora, como propôs o vanguardista Max Ernst no início do século XX.
Através do resgate de imagens prosaicas do cotidiano, trouxe a união de antinomias, e criou,
na livre associação, outras realidades e novas utilizações para os objetos, implantando nas
artes a semente da reciclagem. Não tomar nada como definitivo, transformar a repetição ou a
134
fragmentação em condensação, em síntese, e com uma criação artística de recursos mais
primitivos, trouxe desdobramentos de conflitos inconscientes, inventou outro cotidiano, mais
lúdico, mais rebelde diante da domesticação de uma realidade politicamente imposta.
Como consequência, vão surgir nas diversas manifestações artísticas ao longo de
todo o século XX, rompimentos com a organização de um discurso narrativo, linear ou
lógico-formal. A história, o conteúdo, ou o produto artístico passam a interessar muito menos
que o processo, aquilo que está sendo feito no momento, a performance. Essa ideia trouxe
recursos irreversíveis para toda arte, e outras linguagens se estabelecem a partir de então.
O grande coreógrafo Laban (Eslováquia 1879-1958), por exemplo, traduziu esse
entendimento e revolucionou sua arte ao desmontar o balé clássico, trazendo para o palco os
movimentos que hoje denominamos dança contemporânea. Pollock (EUA 1912-1956), com
seus deslocamentos vigorosos de pincel, fez da imagem também uma performance, tanto do
ponto de vista da criação, quanto da recepção. Robert Wilson (EUA 1941) trouxe esses
elementos performáticos para o teatro, chamando a atenção para a importância do “como” em
detrimento do “que”, ou seja, a preocupação maior passa a ser o conceito, a realização em si,
o instante, muito menos que a formalização rigorosa das cenas, tendo produzido trabalhos em
parceria com os beats Allen Ginsberg e Burroughs.
Assim, a arte dos fins do século XX vai buscar, na espontaneidade e no acaso, os
materiais de que necessita para sua construção, mas isso não deve levar ao equívoco de que a
arte possa ser uma captação direta do fluxo do inconsciente. Cohen (2002) esclarece muito
bem a questão: “A arte e todo o processo de salto de conhecimento deve constituir-se de uma
parcela de não intencionalidade, de não deliberação” (p.62). Reforça dessa maneira o
entendimento da arte como uma forma privilegiada de conhecimento e do conhecimento
como uma prática que também não deve prescindir de sua parte sensível, intuitiva.
Os artistas plásticos brasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica tomaram essas ideias a
fundo, e foram reconhecidos internacionalmente pela importância inovadora delas, através de
exposições que circulariam pela Europa e EUA. No Brasil, participaram do Grupo Frente de
Arte Concreta em 1957, e reformulariam esses conceitos da obra como objeto também
material, palpável, intercambiável, no neoconcretismo em 1959.
A partir de 1960, Oiticica trouxe outras inovações importantes para essa ideia de
performance ao expor obras que promoviam uma relação interativa com o receptor. Elas se
compunham de elementos heterogêneos; poemas-objeto, bólides, instalações ambientais com
135
pássaros, e jardins penetráveis pelo observador, que se colocaria então dentro da obra, e
muitas vezes ela produzia uma sensação de labirinto de sensações e sentidos a serem
experimentados pelo receptor.
Esses elementos de interação são essenciais para entendermos vários recursos de que
Chacal se utiliza ao propor uma poesia que se aproxime muito mais do leitor, que o procure
também fisicamente, nos espaços comuns. Ele é alguém com quem se deseja partilhar algo
sensível, de valor afetivo, em um ambiente descontraído, para que as barreiras de um receptor
não contumaz da arte sejam quebradas através da simplicidade e disponibilidade do autor em
ambiente receptivo a qualquer um. Lygia Clark também trilhou esse caminho, mas com uma
direção diferente, que chegaria à proposta da arte como terapia.
A questão teórica foi importantíssima para Oiticica, e na poesia de Chacal ela
comparece com a determinação de levar a poesia e a arte para a convivência no cotidiano de
todos, desmanchando o raciocínio redutor de que a arte performática pode ser apenas fruto
irrefletido do inconsciente. Uma elaboração teórica faz parte da invenção artística, assim
como a crítica social, o que soa muitas vezes como uma incoerência em relação à
simplicidade do produto e dos materiais utilizados na feitura do objeto artístico. Mas não é, há
aí uma opção orientada, um sentido.
A poesia de Chacal, aparentemente também muito simples, traz elementos que
podem levar a esse mesmo equívoco, como podemos constatar abaixo, em poema de A vida é
curta pra ser pequena:
Agulhas
usei
o corpo
há tempos
com um fim
determinado
pico da neblina
álcool setenta
vala comum
hoje
oriento
meu corpo
no abismo
agulho
outros
meridianos
(CHACAL, 2007, p.35)
136
Poema pequeno, versos curtos que, como uma agulha, traçam uma imagem fina e
vertical no papel. Condensada e sintética, a agulha perfura os sentidos, como o objeto, que
comporta uma diversidade muito grande de significados, inclusive aqueles que afetam o
leitor, provocando uma aversão, como no “realismo de choque” proposto por Schollhammer
(2012). O metal duro, ao tocar os corpos, pode tanto separar a matéria, como nas finalidades
medicamentosas ou entorpecentes, e nas técnicas de tortura, quanto juntar, costurar, colocar
no mesmo plano elementos de procedências díspares, como faz o autor com os sentidos
diversos da palavra no texto. É também uma agulha que orienta a posição dos corpos nos
espaços do planeta; sem ela, não há como proceder nas aferições dos deslocamentos; origem e
destino dos seres e das coisas no tempo.
Não há como ler: “oriento/ meu corpo / no abismo” (versos 10,11,12) sem que se
lembre de Mallarmé (1842-1898), Un coup de dés: “Mesmo quando lançado em
circunstâncias/ eternas/ do fundo de um naufrágio/ seja/ que/ o Abismo/ branco/
estanco/iroso/sob uma inclinação/ plane desesperadamente/”23
(MALLARMÉ, 2010, p.155-
156). Mas não é apenas porque a imagem do abismo em ambos traduz-se em um
deslocamento vertiginoso, do colapso, de um movimento de desamparo para o desconhecido.
A ousadia de procurar o insólito da criação, de arriscar, de jogar-se em projetos com
resultados imprevisíveis ou com retorno improvável faz parte da existência de quem dedica
toda a sua vida à arte como um exercício desestabilizador das convenções. Mallarmé é o
precursor dessa intenção, que chegou aos programas das vanguardas europeias, que colocava
a utopia da revolução do pensamento através de uma arte estruturada mais espontaneamente,
que usaria o livre acaso como maior inspiração inventiva e oferecesse possibilidade de
diálogo com as várias expressões artísticas.
Em Chacal, a ideia do abismo como uma insubmissão do espírito humano ao
desconhecido, aparece em suas experiências com a gramática (como na derivação imprópria:
“agulho/ outros/ meridianos”, versos 13,14,15), no uso do espaço do papel como elemento da
composição do poema, e nos sentidos em trânsito, que se valem de sugestões vagas, que
pairam como as palavras nos versos. Todos esses procedimentos foram usados pelo grande
poeta simbolista. No prefácio, “Mallarmé: o poeta em greve”, do volume de poemas do poeta
francês, Augusto de Campos transcreve as palavras de seu amigo e também poeta, Mário
Faustino, a respeito da obra de Mallarmé: “(...) seus poemas são atos e são coisas – não
23
A disposição gráfica do poema na página e o tamanho das letras são elementos importantes e muito
significativos nos textos de Mallarmé, mas dado seu elevado grau de sofisticação, torna-se impossível reproduzi-
los aqui com a autenticidade merecida.
137
apenas celebrações, elogios, louvores ou censuras, ou lamentos. São novas maneiras de ser
das palavras e das coisas.” (FAUSTINO apud CAMPOS, 2010, p. 26) Augusto de Campos
acrescenta:
É significativo que Mallarmé, para definir o seu marginalismo de poeta, tenha ido
buscar não uma metáfora aristocrática como a da “torre de marfim”, mas uma
expressão extraída do vocabulário econômico-social, a palavra “greve”,
emblemática da luta de classes. “A atitude do poeta em uma época onde ele está em
greve perante a sociedade” – diz Mallarmé (...) A recusa do poeta em prostituir o
seu trabalho e em aceitar passivamente a linguagem “contratual” imposta, tem uma
significação ética que escapa, quase sempre, aos críticos sociologizantes (CAMPOS,
2010, p. 27)
Campos, na mesma introdução, lança outros importantes “dados”: “esse novo
conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de
forma – uma ORGANOFORMA” (p. 23);
Se pensamos nessa palavra para denominar uma forma que trabalha como um
organismo, que funciona em conexão constante entre seus vários sistemas, essa nomenclatura
torna-se muito pertinente à análise dos textos de Chacal. Ela nos diz dessa nova configuração
de uma arte que leva em consideração o funcionamento de elementos poéticos como “atos”
estruturadores de uma ação, performance de ideias em movimento, inclusive elementos
tipográficos, inaugurados por Mallarmé, que encenam sentidos, ao invés de estabelecê-los.
Na segunda estrofe do poema “Agulhas” de Chacal, transcrito acima: “pico da
neblina/álcool setenta/vala comum”, os versos trazem imagens que, aparentemente, não têm
conexão entre si, nem com o texto. Mas se repararmos, verificaremos que, em uma sequência
temporal, os verbos da primeira estrofe estão no passado e o da terceira no presente.
Observaremos também que, como nessa segunda estrofe transcrita não há verbo, e que nos
substantivos e adjetivos desaparece a noção temporal, esses versos estarão, portanto,
suspensos entre as duas perspectivas temporais, e podem se referir então a ambas; passado e
presente.
O pico da neblina, ponto mais alto do Brasil, só foi descoberto na década de 1950,
quando expedições se voltaram para o estado do Amazonas, região vastíssima, quase
desconhecida até então e pouco, ainda hoje. Lá vivem muitas espécies vegetais e animais e
outros recursos ainda inexplorados, cobiçados internacionalmente. Vários pontos altos da
história brasileira ainda estão encobertos, sob neblina, como a ditadura militar dos anos de
138
1960/70. Em “vala comum”, como indigentes desconhecidos, eram enterrados os corpos dos
prisioneiros executados pelo regime. Até hoje há discussões e processos judiciais para
abertura de valas suspeitas no Cemitério Dom Bosco de Perus, em São Paulo, e em outros
locais ainda ignorados.
O verso “álcool setenta” está entre “pico da neblina” e “vala comum”, ou seja, entre
o ponto mais alto para onde se pode ir em vida, e a morte, vala comum de todos. Há aí
também uma alusão à droga, “pico na veia” usada pelo poeta e pelos jovens de sua geração,
levando ao ponto mais alto do prazer, ainda que “neblinoso”, mas também à morte. E por que
o “álcool setenta” e não outro? Porque a concentração exata de 70º é mais eficaz na
eliminação de bactérias, fungos e vírus, minimizando assim o perigo da contaminação. Ele é
solução aquosa, desinfetante, que atravessa a parede das células sem efeitos residuais. Será
que também para promover a assepsia dessa ideia da “vala comum”, dos assassinatos
clandestinos sob tortura, que, atravessadas décadas, ainda permanece, como um resíduo sujo
que ronda a identidade desse país?
Na estrofe final, “agulho/ outros/meridianos”, a impropriedade da derivação inaugura
um verbo no tempo presente e na primeira pessoa do singular. Esse sujeito desinencial, que se
coloca subentendido, como um “eu” qualquer, procura outras referências espácio-temporais,
diferentes daquela convencional, que se estabelece através da lógica arbitrária, positivista,
dividindo o oriente e o ocidente. Deseja outras linhas, para uma imaginação criadora de outras
realidades, não aquela mediana, mas a do desprendimento de quem se solta disponível em um
abismo sem latitudes ou longitudes, na imprevisibilidade e gratuidade do instante, de quem
enxerga um presente ainda a ser construído.
Esse possível diálogo estabelecido por Chacal com Mallarmé e com a invenção
poética simbolista não para por aí. No poema abaixo, esse diálogo está mais declarado, em
Letra Elétrika:
Rimbaud
cresta-me a pele o sol da abissínia
todo poeta é um traficante de armas
traficante de armas
u
m
todo poeta é
(CHACAL, 2007, p 155)
139
O formato do espaço ocupado pelos versos faz, novamente como em Mallarmé, parte
do poema. A diagramação propõe um movimento reversível para a leitura. Não há início ou
fim para essas palavras, que podem, performaticamente, ser lidas em diferentes direções. A
palavra “traficante”, dentro de um poema, para se referir a todo poeta, também produz um
certo grau de estranhamento, afetando o leitor, tirando-o da zona de conforto, como no texto
anteriormente analisado. A biografia de Rimbaud (França-1854-1891) e as interpretações dos
elementos de sua história possuem também direções tão incompatíveis, que a sua obra se
estabelece como a melhor opção para perseguir um sentido. Chacal nos fala no poema de
outro processo, às vezes sujeito também à ilegalidade do direito autoral, aquele que se faz das
palavras em movimento, de poeta em poeta, de poema em poema, de tempos e lugares que se
fixam no papel impresso, e que mesmo assim, não perdem a propriedade do trânsito.
Mas por que “todo poeta é um traficante de armas”? Que armas são essas? Talvez a
mais importante de todas elas; a palavra, o conhecimento, a possibilidade de sair do
confinamento reacionário e preconceituoso para usar a reflexão e a análise em cada momento
ocasional da existência, de usar a imaginação criativa para tornar os seres mais cientes de seus
próprios desejos, responsáveis por cada ação praticada na construção de caminhos, de
destinos.
Com reflexões que se aproximam desse entendimento, Rancière (2005) propõe uma
articulação entre a estética e a política: “atos estéticos como configuração da experiência que
ensejam novos modos de sentir e induzem novas formas de subjetividade e política” (p.11), e
acrescenta, na página 17: “As práticas artísticas são maneiras de fazer que intervêm na
distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de
visibilidade”. A arte não é, portanto, assim pensada, uma arma poderosa?
Maffesoli (1998) conduz seu raciocínio nesse mesmo sentido ao analisar as novas
“tribos” que se estabelecem nos ambientes urbanos, fluidas, dispersas, embora com reuniões
pontuais, que promovem uma viagem incessante entre sedimentações sucessivas, formando
um ambiente estético:
(...) via o novo vínculo social (ethos) surgindo a partir da emoção compartilhada ou
do sentimento coletivo. Portanto, em vez de ver aí uma frivolidade qualquer à
disposição de alguns, vanguarda, boêmia artística, talvez estivéssemos mais
inspirados se descobríssemos nesta coletivização dos sentimentos um dos fatores
essenciais da vida social, que está em vias de (re)nascer nas sociedades
contemporâneas. (MAFFESOLI, 1998, p. 3)
140
Esse raciocínio revelador nos permite repensar toda a movimentação dos criadores da
poesia marginal nos anos de 1970, e de Chacal, em particular, com a manutenção, há vinte
anos, do “cep 20.000”, como um espaço da gratuidade da invenção, do ato que valoriza o
encontro, o parcial, o cambiante, a afetividade e o calor humano como proposta de criação de
novos laços éticos/culturais na sociedade. Mas o poeta já encontrou esse caminho lenhado
pelos artistas tropicalistas nos anos de 1960, em especial, Lygia Clark e Hélio Oiticica, que
acreditaram e viveram por uma arte que se baseasse na profundidade das relações culturais
tecidas pela partilha da sensibilidade humana. Veja-se essa mesma relação estabelecida em
depoimento de Hélio Oiticica, feita em evento/debate denominado “Amostragem da
Cultura/loucura Brasileira”, realizada no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, em 10
de junho de 1968:
Quero frisar aqui que essa discussão sobre cultura interessa somente na medida em
que é tratada como uma dinâmica das forças creativas do homem nas suas infinitas
manifestações – não nos interessam definições como cultura de massa e cultura
superior, por exemplo; são excessivamente esquemáticas sob esse ponto de vista e
em última análise falsas. Para a dinâmica da creação e de sua força libertadora, tudo
tem a mesma importância, segundo aquele que cria: Mondrian era, há anos atrás
estímulo para mim, mas também o eram os programas de auditório, no rádio, com
Emilinha Borba, fãs-clube, etc, ou Elvis Presley com o rock-and-roll – enquanto
Kant me interessava, depois Hegel em igual intensidade, descobria que para mim era
impossível viver sem o Morro da Mangueira e do samba: cada centímetro do chão
da Mangueira eu amo com a mesma intensidade com que me dedico ao meu trabalho
creador. Os chatos de sempre diziam: como pode um rapaz tão inteligente,
acostumado a ler Shakespeare e Kant, ir parar na Mangueira. Jamais dei-lhes a
menor bola. Aquele que cria é assim: aberto, à vontade; basta uma tentativa de
encerramento, de condicionamento, e adeus liberdade creadora. Esse
condicionamento é interior, é claro.
Moraram?
Fiquemos então bem à vontade para discutirmos – sejamos mais alegres,
desprendidos, mais debochados, para ver se conseguimos entender um pouco mais
das coisas – das manifestações da creação humana, que não conhece classe, raça, ou
credo.
Cadê lo basê ???
(REVISTA NAU, novembro, 2013, p.11)
Este trecho foi retirado de um texto preparado e lido por Hélio Oiticica no evento
citado. Nele, a ideia do trânsito entre o popular e o erudito que se estabelece na obra de arte,
proposta vivida por Oiticica, não se faz como uma atitude de concessão para o outro que é
diferente, mas pelo desmanche dessas fronteiras através da valorização de espaços coletivos
de convivência entre criações e criadores. Esse vínculo também se (re)faz dinamicamente nas
141
festas de rua, onde as fantasias vestidas, vividas ou imaginadas não se circunscrevem em
rótulos sociais.
Bakhtin (1993) e seu conceito de carnavalização têm muito a contribuir para essa
discussão sobre as imbricações político-sociais e estéticas que embaralham as fronteiras entre
vida e arte. Para uma análise cuidadosa do movimento tropicalista dos anos de 1960, Miranda
(1997) utiliza a carnavalização bakhtiniana e a relaciona com o carnaval brasileiro. Da mesma
maneira que a festa nacional traz uma inversão dos hábitos (passa-se a noite em claro,
embriaga-se, não se trabalha e preocupa-se muito mais com prazer sensual e com a diversão),
as identidades também se invertem: os machões se fantasiam de mulher, os adultos em bebês
de chupeta, os brancos em índios e negros, os pobres em reis e rainhas, a classe média em
bloco dos sujos e os bastante vivos vestem mortalhas. As inversões são assimiladas por tudo e
todos que participam da festa, sem exceção; no mundo ao revés, a imagem espelhada reflete
uma totalidade inexistente no cotidiano da modernidade.
O tropicalismo propôs uma reinvenção da identidade cultural brasileira e uma
efetivação do modernismo oswaldiano (manifesto antropofágico e pau Brasil) pela
assimilação dos elementos díspares da nação, em uma linguagem que agregasse uma estética
experimental, desierarquizante e descentralizadora, com a inclusão de elementos de todos os
extratos sociais e culturais. A discussão sobre o fazer artístico e suas relações com a
diversidade social e cultural brasileira, proposta por Oiticica no trecho acima, fazem presentes
essas referências do movimento tropicalista do qual Oiticica foi um ativo representante, mais
que isso; tropicália é o nome de uma obra de autoria do artista plástico, que acabou sendo
utilizada por vários membros do movimento e pela crítica, das artes visuais (incluindo o
cinema novo de Glauber Rocha e o teatro de José Celso Martinez) à música.
Tanto a antropofagia quanto o tropicalismo propuseram uma negação da postura
servil de uma cultura brasileira periférica em relação à europeia. Se remastigar (da
antropofagia) e sobrepor, sem distinção ou hierarquias (do tropicalismo) os elementos
díspares das culturas era uma proposta para formação de um novo projeto cultural; repelia-se,
dessa forma, uma relação de causa e efeito entre a economia e a cultura, para pensar essa
última em uma dialética desierarquizante, que colocava a alteridade como necessidade para
um exercício mais lúcido e abrangente da autocrítica e da identidade brasileira.
142
A invenção de um cotidiano mais fraterno e múltiplo, em que todas as classes, seus
credos e práticas culturais pudessem conviver, sem dissimular as suas diferenças, faz parte,
tanto do que foi proposto por Oiticica e pelo tropicalismo em geral, quanto das práticas dos
poetas marginais, de Chacal e dos poetas beats. A valorização de substâncias alucinógenas,
principalmente da maconha, aparece como um hábito comum a todos eles. Aparentemente
muito simples, apenas um ato ilícito de uma juventude boêmia, o uso frequente de substâncias
entorpecentes possui sentidos simbólicos, sociais e políticos bastante complexos que se
refletem na construção da linguagem poética. O hábito de usar entorpecentes e/ou
estimulantes sempre esteve presente em todas as sociedades, desde as mais primitivas até as
mais modernas, em todo o planeta, sem distinção, como uma forma de intensificação e/ou
entorpecimento das sensações corporais.
Se os conflitos/proibições em relação ao uso de substâncias psicoativas pertencem ao
domínio da ordem política e/ou administrativa desde o Brasil colonial, as origens de seu
consumo aqui estão ligadas às ações rituais e simbólicas dos indígenas nas coletividades, em
suas relações interpessoais e subjetivas, o que era profundamente valorizado nas normas
sociais e nos processos identitários desses povos.
O uso de drogas no planeta está comprovado desde o neolítico; cabe-nos refletir
sobre sua determinante importância na construção de novas subjetividades no mundo e no
Brasil, que afloraram a partir dos anos de 1960 (como demonstramos melhor no capítulo 2),
propondo uma outra forma de conceber o conhecimento, o corpo, a cultura e a linguagem. A
ingestão de substâncias alucinógenas, nesse período, estava associada a projetos existenciais e
políticos, e a identificações e rupturas com elementos culturais que também se fizeram através
de práticas corporais.
Em várias épocas, nos cinco continentes, os povos migraram e levaram com eles seus
hábitos e cultura, rejeitados, muitas das vezes; alguns costumes provocariam fobia nos
habitantes da região em que se estabeleceram. No Brasil, não foi diferente. Vários elementos
da cultura africana foram marginalizados como seu povo, que criou formas inusitadas para
preservar alguns deles. Os negros angolanos, por exemplo, trouxeram nas embarcações as
sementes da “diamba” e plantavam-nas entre as fileiras de cana, muito mais altas, tornando-as
assim pouco visíveis, para que pudessem cultivá-las e usá-las em intervalos dos penosos
trabalhos forçados. Essa tática inteligente não estaria de alguma forma presente em práticas
disseminadas por sujeitos que espontaneamente se organizam em conjuntos, para procurar
outras formas de viver e fazer a cultura, mesmo que sob a invisibilidade?
143
Apesar de estar disseminado em todo globo, o uso de ervas alucinógenas ainda
provoca muitas discussões e a proibição continua no Brasil. Há muito preconceito sobre seus
usos e efeitos, inclusive aquele que quer admitir sua legalidade apenas nos rituais, como se,
somente assim, os entorpecentes pudessem ser tolerados, quando fizessem parte de coletivos
simbólicos de “outros” povos. Esse desejo de isolar e condensar o que é heterogêneo faz parte
das fantasias ideológicas da sociedade diante da impossibilidade de uma coesão total e da
ânsia de conceber no tecido social um elemento externo, um corpo estranho que, ao ser
excluído, reconstituiria uma impossível sociedade sem antagonismo.
A ideia é bastante equivocada, como bem demonstrou Carla Mourão (2003), quando
ela aproxima o estudo que Slovov Zizek fez sobre a fobia aos judeus à função do objeto
“droga” no imaginário cultural contemporâneo e seus discursos que deslocam e condensam
sentidos para montar totalizações manipuladoras. Sabe-se hoje, por exemplo, que mesmo as
populações indígenas mais isoladas, fazem uso individual e arbitrário de diversas “drogas” e
que os hábitos culturais, como a própria cultura em sua enorme complexidade, jamais
permanece encapsulada em um lugar específico ou em um tempo determinado. Ela viaja
como o homem, e sempre se transforma. Além disso, o próprio conceito sobre o que seja
“droga” é bastante controverso, hoje e no decorrer da própria história, pois nunca houve
consenso algum em sua definição.
Discussões menos retrógradas, como as organizadas por Baptista, Cruz e Matias
(2003), trazem esclarecedoras abordagens sobre o tema; como o da inexistência de um
conhecimento neutro, bem como sua origem, consequência ou aplicação, o da relação do
combate às drogas com posições militaristas, muito interessantes para pensarmos a
contracultura no Brasil, e o das posturas arbitrárias, que demonizam uma ou outra substância,
em detrimento de outras, ao sabor das conveniências políticas e/ou comerciais: “(...) nenhuma
análise séria é feita para relacionar tais acontecimentos considerados trágicos com as
dificuldades reais do cotidiano e a ordem mundial que os propicia” (MINAYO, 2003, p.20).
O entendimento da toxicomania como um sintoma geral da sociedade e de uma
insatisfação fundamental do ser diante dos controles pulsionais impostos pela civilização, já
estava posto desde Freud, em 1930, quando escreveu O mal-estar da cultura, mas a autora
citada acima acrescenta à discussão os problemas socioestruturais das sociedades atuais e a
fetichização do ilícito como um agregador de valor que sustenta o tráfico.
144
Arruda (2003), enfatizando a impossibilidade de totalização do conhecimento sobre o
assunto, faz um elogio a Maffesoli para dizer de sua importante contribuição sobre o
entendimento das subjetividades atuais, da qual a discussão sobre os usos das drogas não pode
prescindir:
Talvez por ser a realidade por excelência uma representação subterrânea, como
disse Maffesoli (1984), alertando-nos que existe uma resistência teimosa do
concreto mais próximo frente a qualquer explicação redutora e simplificadora. O
certo é que a vida e seu predicado cotidiano carregam consigo um todo dual,
irresistível a olhos mais interessados. Contém uma sabedoria do comum, uma
pedagogia da práxis, uma negociação permanentemente comunicativa, uma filosofia
do acaso e da necessidade, um espírito bricoleur, enfim uma presença que, nos
parece, inaugura este próximo milênio. Se não há mais escapatórias da vida
cotidiana, se todo sujeito e toda sociedade estão, inevitavelmente, imersos diante de
tamanha dureza, como sorrir para o amanhã? Diante do miolo da vida cotidiana, o
que podemos encontrar de importante? Não será mais útil pensar utópico, pensar a
história, pensar o tempo e sua duração? (ARRUDA, 2003, p. 89-90)
Esse “pensar utópico” a que a autora, Francimar Arruda, professora de Teoria do
Imaginário (UFF), refere-se, traz uma relação estreita com nosso objetivo aqui, o de se pensar
a arte performática como uma proposta de linguagem compartilhada do tempo em sua
duração. Essa utopia de uma arte que vive de sua inserção em um tempo que perdura
coletivo, que pode estar sendo feita de novo, conjuntamente, em qualquer outro instante da
existência, traduz-se em um encantamento perdido que opera como uma espécie de “sutura”
com a transcendência e com um sentido maior para a existência humana.
Esse pensar e fazer utópico espanta a dor do individualismo e, muitas vezes, esteve
associado a uma intensificação das sensações corporais, que fez com que os usuários das
drogas passassem a se interessar muito mais pelos estímulos imediatos compartilhados. Esses
elementos do instante, em contato com um universo de sensações estimuladas e aguçadas,
tornam-se significantes flutuantes que irrompem no fazer do objeto artístico performático em
sua relação com o que ocasionalmente o circunda, e os fazem significados.
O sujeito e o objeto, o autor e a obra, o texto e o contexto, o produtor e o receptor
interagem no momento da performance e se modificam mutuamente por força das
circunstâncias do momento em que se efetiva a comunicação. Sua análise desvirtua-se,
portanto, de um pensamento racionalmente estabelecido em função de um objetivo e um
sentido fixos. Chacal fala de sua experiência com esta utopia: “Admirava aquele tipo de vida.
Várias pessoas morando juntas, fumando juntas, fazendo tudo juntas, no palco, em casa, na
145
cozinha, no campo de futebol. Era o espírito do tempo. Paz, amor, viagem e invenção. A
utopia sendo realizada.” (CHACAL, 2010, p.34)
Muitos jovens viam nas experiências com o uso da cannabis, como os poetas da
geração beat, os hippies e mais tarde os poetas marginais, um alargamento da percepção da
realidade de uma forma mais sensorial, e por isso se colocavam em uma perspectiva
privilegiada para ver e viver o instante, reagindo a ele para construir uma arte mais
performática, em trânsito, livre das amarras convencionais. Oiticica e Chacal falam também
abertamente disso. Oiticica, no trecho de seu discurso transcrito aqui, fez, em público,
exatamente após o elogio à alegria e ao deboche de que a liberdade criativa deveria estar
prenhe, um convite, que parece se estender a todos os presentes: “Cadê lo basê?” (NAU...,
2013, p. 13)
O convite parece ter sido aceito por muitos artistas, que acreditavam em uma
sensibilidade coletiva, que poderia, através das atividades conjuntas, da reflexão e de uma
nova linguagem estética, construir uma relação mais ética entre as pessoas em geral, e que
criariam ainda, através de novas aberturas coletivas para a imaginação, outros laços sociais,
mais humanizadores. Existia uma postura irreverente, de deboche em relação à concepção da
arte como acabada e solene, e uma ação desconstrutora dos comportamentos sérios,
respeitadores das hierarquias. Esse riso descontraído não era ingênuo, ou fruto da alegria de
seres descompromissados com as contingências da vida “real”, mas uma postura crítica,
baseada em argumentos de quem fazia uma avaliação da história das culturas e aprendia que o
trânsito entre elas traz fraturas e reincorporações dinâmicas ao longo dos tempos. A alegria de
redescobri-las e reinventá-las enseja um prazer como o de ir além de seu próprio tempo e
lugar.
Como propõe Menezes (1974), esse entendimento da cultura e da arte como uma
(re)configuração incessante da experiência humana, enxerga na grande festa coletiva
brasileira uma concepção carnavalizadora do mundo e da vida que faz reviver uma unidade
utópica, mesmo que provisória. Essa energia, constantemente desestabilizadora, esteve
presente nos congraçamentos de homens pagãos, que carregavam a natureza dentro de si
mesmos, antes da oposição entre natureza e cultura.
Em Roma Antiga, por exemplo, houve companhias ambulantes de teatro
performático, pois nos “mimos”, as cenas eram “montadas” a partir da relação com a recepção
do público local, e geralmente se resumiam a uma brusca mudança de vida de alguém, o que
146
era imitado por outro, no palco, recurso que provocava risos, fazendo lembrar o homem na
condição semelhante a um brinquedo de corda, ou marionete, numa sociedade que já excluía a
espontaneidade e fazia também seres previsíveis. As marcas originais da linguagem
irreverente dos latinos, como uma atitude de recusa à domesticação dos instintos, aos hábitos
burocráticos, e uma procura pelos instáveis e insaciáveis sentidos, trouxeram elementos mais
afeitos à farsa, à desconstrução, que perduram até a modernidade, como vemos no texto
abaixo, de Chacal, retirado de seu livro autobiográfico, Uma história à margem:
Ficava-se zanzando pelas esquinas, alterados pelo álcool, mandrix e outros
coadjuvantes. Ali, num simples piscar de olhos, paixões se faziam, poemas tatuavam
guardanapos e o coração era rasgado com frequência por conta de um amor mal
resolvido. Ali fui preso sem documento, dei boa noite a poste, amei intensamente. Dentro do tenebrião que era o país naquele período, o Baixo Leblon com seus sinos
dionisíacos, sua luz negra, embalou e iluminou os passos trôpegos e a gargalhada
desafiadora da poesia marginal. (CHACAL, 2010, p. 52)
“Sinos dionisíacos”: o surgimento do teatro nas festas em homenagem a Dionísio,
deus do vinho, filho natural de Zeus, já denota uma exaltação a essa natural necessidade
humana; a submersão da identidade de um à de um outro, seja através da representação pela
palavra e/ou ação teatral, da performance, seja pela embriaguez do vinho, consumido
largamente nos festejos, elevando a alma ao transe. Da mesma forma as drogas são usadas até
hoje, para uma outra forma de conexão com o instante. As saturnais, em honra a Saturno,
deus semeador, eram acompanhadas de um clima de permissividade, de congraçamento
inclusive para os escravos, semelhante ao que ocorre no carnaval, em que a convivência entre
as várias classes sociais acontece nas ruas.
Chacal comenta sobre a convivência coletiva no lugar mais aberto do mundo, onde
uma festa se repetia a cada dia para reverenciar os sentidos e a natureza, a praia:
Naquela sensual faixa de areia, você podia encontrar Caetano Veloso, Arnaldo
Jabor, Regina Casé, a Isabel do vôlei, Cristiane Torloni, Nei Matogrosso, Cazuza,
Evandro Mesquita, Perfeito Fortuna, Luís Fernando Guimarães, Patrícia Travassos.
Ali o pessoal começou aplaudir o sol. O povo solar reconhecia e reverenciava aquela
gloriosa epifania dia após dia.
À noite, o Baixo Leblon era o point dos artistas e boêmios d’então. Ali no Luna Bar,
encontrei Ferreira Gullar, com seu seminal Poema Sujo recém-lançado, flutuando
sobre o salão, Alceu Valença, Carlos Vergara, Hélio Oiticica (CHACAL, 2010,
p.51)
147
Esse sentido do prazer e da alegria de viver de forma intensa e compartilhada era
reverenciado nas festas da antiguidade, mas existe também um sentido agônico de liberação
de uma tensão prévia represada, como se, somente naquele momento, todos pudessem
partilhar de um sentimento de eternidade. A própria palavra “prot(agon)ista” apresenta o
papel daquele que encarna uma luta, o que faz com que ele se aproxime de todos. A Poética
de Aristóteles (1996) já considerava a poesia mais universal e filosófica do que a história, pois
ela poderia acontecer, as possibilidades estão em aberto.
Na Idade Média, os rituais cômicos também se opunham à cultura oficial de tom
sério e traziam a consciência do tempo e da morte, convertendo o sagrado em motivo de
burla; um morto, por exemplo, podia ser simultaneamente objeto de pranto e escárnio. A
carnavalização medieval de que nos fala Bakhtin traz um riso ambivalente: “Não há pontos de
vista da seriedade em oposição ao riso. O riso é o único personagem positivo”. (BAKHTIN,
1993, p. 438) O corpo grotesco, impuro, repleto de orifícios e secreções põe visível o
princípio da vida material, ordinária, na mesma medida em que possui uma dimensão
cósmica; rebaixar é ir à terra, é voltar ao começo, à condição de adubo, semente.
Na antiguidade, quase mil anos antes, nos cortejos fálicos, embrião do carnaval, o
membro exposto em carros, ou colado ao corpo como em uma fantasia exagerada, já possuía
essa conotação de abundância; a fertilização. No medievo, também temos esse riso grupal,
que higieniza com uma outra espécie de catarse, chamada por Bakhtin (1993) de “catarse da
trivialidade” (p.439), pois assimila todos, sem discriminar. Acomoda de uma forma dialética,
porque inclui em si um sentido trágico, embora diferente daquele da tragédia clássica, já que é
impiedoso, não há compaixão sequer consigo mesmo, o riso se dirige a todos, sem exceção.
Mas a visão do lado implacável da existência está ali, denunciando a pequenez dos seres
humanos como apenas e simplesmente um elemento a mais diante do universo e da fatalidade.
O riso, então, não é necessariamente alegria, como poderemos ver no poema abaixo,
de Chacal, de Muito prazer, Ricardo. Nele, a gargalhada é, sobretudo, uma percepção da
fraqueza humana, do irracional e da incongruência, uma atitude redutora das tensões diante do
normativo social e da inflexibilidade. De fato, há no poema a inclusão de um sentido trágico
que se colocou como forma, como linguagem, capaz de interiorizar os impactos e transformá-
los em movimentos de ficção, em jogos irônicos de (des)entendimentos:
148
Gargalhada
uma gargalhada num canto da sala
nervosa
de unhas roídas
estalou e rolou
nos aposentos
como se a alegria
tivesse sido convidada
mas não foi.
é que houve um malentendido.
(CHACAL, 2007, p.351)
Há uma forma lúdica na linguagem dos textos de Chacal, que se refere a estruturas
intemporais e onipresentes, na cultura e na concepção da vida como um movimento constante:
golpe e contragolpe, ascensão e queda, pergunta e resposta; na poesia, encarnam-se nas
repetições, vazios e acentos, em ritmo ou rima. Menezes (1974) nos acrescenta que esse
“jogo” é de difícil definição operatória, mas estabelece uma relação psicossociológica para o
entendimento da cultura como um impulso criativo.
Mas, na modernidade, o utilitarismo, o trabalho/produção em série e um princípio
maniqueísta de bem estar vai paulatinamente extirpando o lúdico da vida dos homens a ponto
de o próprio corpo passar a ser desprezado, como no moralismo de religiosidades estreitas, ou
se transformar em mero objeto, como na comunicação de massa. E são essas referências que a
poesia performática quer ver desmanteladas em favor de uma reflexão que se instaura no
fazer, no instante criativo, em que o corpo pode encenar uma afasia e presentificar a
composição de várias forças dissonantes, como em um impossível teatro. Veja-se em
América:
Ato um
a impossibilidade do teatro
o momento, ato único a cavalo
o limite entre a loucura e a razão
o eco e o engasgo
a esquizofrenéticafala
....................................
(CHACAL, 2007, p. 311)
149
Está sempre presente nessa linguagem um jogo de contraposições e uma razão de
pequenas racionalidades intervalares que não se encaixam. E o jogo, como nos coloca
Huizinga (2004), não pode ser pensado apenas como uma atividade humana esporádica, mas
como elemento integrado à própria cultura desde a forma mais elementar, até sua mais
sofisticada elaboração. Ao pensarmos na constituição da inteligência humana, que caminhará
com a aquisição da linguagem e com a capacidade de comunicação, voltamos novamente à
ideia de jogo, já que o desenvolvimento cognitivo se processa também “pelo jogo
fundamental das assimilações recíprocas a se coordenar entre si até constituir essa conexão
entre meios e fins que caracteriza os atos da inteligência” (PIAGET, 1978, p.8). E esse ato de
jogar se torna ainda mais evidente quando nos lembramos do encantamento infantil e do riso
nos processos de aquisição da linguagem, ou quando pensamos nas estruturas arcaicas do
pensamento mítico em que a linguagem poética era, simultaneamente, doutrina e adivinhação,
arte e ritual. O poeta arcaico estava sempre situado entre o sagrado e o incognoscível e as
perguntas dos concursos de enigmas, em sua maioria, referiam-se exatamente a dilemas de
caráter cosmogônico, resolvidas através de mitos.
No poema de Chacal abaixo, também de América, a questão enigmática do cosmos
permanece, mas os elementos líricos posteriores a essa época trazem a decisiva intervenção da
racionalidade humana que tenta dar explicações aos antigos enigmas, mas que, apesar disso,
permanecem sem resposta. A mesma pergunta, como que num círculo sem início ou fim,
começa e termina o poema.
À Geral
onde andará a estrela vermelha?
no céu
no céu da tua boca
no céu da tua boca aberta
na fé do teu coração sangrando
na fé do teu coração
na fé da tua ação
na fé
no ferro
onde andará a estrela vermelha?
(CHACAL, 2007, p.312)
A estrela vermelha, ou estrela da manhã simboliza o movimento do eterno retorno, a
vida, o sangue correndo, a renovação. Na tradição mística, o sagrado, inerente à humanidade.
Assim, há no poema um conflito de forças entre a matéria e o espírito, que pode ser pensado
150
como esse duplo da natureza humana, que muitas vezes vê nas estrelas um acesso, uma janela
para o céu, mas também a energia para a criação, para a inspiração poética, como o é também,
nas elegias, a bem-amada. Tanto o comunismo, como o zapatismo mexicano se apropriaram
desse símbolo para expressar a luta incessante na fé do fazer humano rumo à justiça. Mas
onde estará?
O filósofo francês Paul Veyne (1984), ao discutir sobre as relações entre razão, mito,
crença e pluralidade das noções de verdade, afirma que, a partir do advento da cristandade, os
mitos e os contos mitológicos pagãos passam a ser considerados no mínimo pueris, mas,
apesar disso, serão condenados pelo fato de conterem imoralidades. O cristianismo antigo,
para estabelecer a existência de Deus, desejava fazer desparecer os deuses pagãos e suas
histórias por tê-los como concepções indignas, importando-se muito menos com o fato de eles
serem falsos. E conclui:
(...) a mitologia grega, cuja ligação com a religião era das mais fracas, no fundo não
foi outra coisa senão um gênero literário muito popular, um vasto quadro de
literatura, sobretudo oral, se for válido usar o termo literatura, anteriormente à
distinção da realidade e da ficção, quando se admite o elemento lendário
tranquilamente. (VEYNE, 1984, p. 27)
Acrescenta ainda que a função social da literatura é, sobretudo, pragmática em
função de seu desejo de diálogo com o receptor, ou seja, ela é performática:
(...) estabelece uma certa relação entre os ouvintes e o próprio poeta. A literatura
não se reduz a uma relação de causa ou de efeito com a sociedade, e a linguagem
não se reduz mais a um código e a uma informação. Comporta também uma
“ilocução”, isto é, o estabelecimento de diversas relações específicas com o
interlocutor. Prometer ou ordenar são atitudes irredutíveis ao conteúdo da
mensagem; este não consiste em informar sobre uma promessa ou sobre uma ordem.
A literatura não reside inteiramente no seu conteúdo; (VEYNE, 1984, p.30)
A palavra na literatura é também atitude e efeito, é linguagem em movimento. Por
isso, o riso sempre foi mal tolerado em todos os momentos de repressão social e política; o
moralismo é sisudo, e rir, além de deslocar as certezas acerca da racionalidade, da verdade ou
do certo ou errado, está fatalmente ligado a um tempo e espaço comum em relação ao
receptor, possuindo uma significação coletiva, indispensável para ser risível e, com isso,
151
reduzir as tensões e/ou colocá-las na berlinda, fato que pode sempre ser muito perigoso para
os donos do poder/ da verdade.
Ainda hoje permanecem formas de cercear o riso, que procuram, inutilmente,
estabelecer o que poderia ser risível ou não, pois o cômico desafia o racional, o natural ou o
socialmente estabelecido e o poeta, o jogral ou o bobo da corte sempre terão seu grau de
parentesco com o festivo em que transitam o jogo aberto e a ausência de soluções conclusivas.
Chacal evidencia, em toda sua obra, essas marcas.
Assim, em seu jogo poético, há sempre um trânsito de gêneros em movimento que se
estabelecem tanto na leitura/recepção quanto no próprio discurso, palavra refeita sem cessar a
partir de outra(s), que se apresenta(m) como (re)invenção da vida, alegre e triste, cômica e
trágica, inesperada e imprevisível, montando performances da ilocução, ela mesma semente/
adubo de palavras que se comunicam através dos tempos e espaços: a poesia.
A performance, foco desse entendimento sobre a arte praticada pelo poeta Chacal,
explode os sentidos, quebra das palavras a sua inteireza para transformá-las em potência,
como no poema abaixo de Letra Elétrika:
Helpless
o sus do susto o pó da pólvora eu quero
engolir sílabas e vomitar o pânico
só assim minhas unhas
encarnadas vão à máquina
para numa rajada de letras
tirar cada segundo ao marasmo
é assim que vejo cultura: bala no bandido
tiro no que encarquilha a linguagem
a língua é boa solta
fazendo escarcéu da sua boca
se embrenhando nos labirintos
dos seus ouvidos
perdida perdida
(CHACAL, 2007, p. 131)
O título do poema já adverte o leitor: não há aqui socorro possível para quem quer
uma poesia em que as palavras permaneçam íntegras. Ela se faz de jatos dos sentidos no
instante, das frações colhidas dele para “tirar cada segundo ao marasmo” (verso 6). É “tiro no
que encarquilha a linguagem” (verso 8), atravessa a palavra, retirando dela as velhas rugas
152
encrostadas pelos depósitos do tempo, que impedem o fluxo das ideias, e assim, através do
projétil perfurante, traz à superfície sentidos que podem passar em trânsito, sem se agarrar em
convenções paralisantes. Por isso, a palavra pode ir “se embrenhando nos labirintos” (verso
11), percorrendo espaços desconhecidos, embora pré-existentes. Os seus mistérios estão
postos para quem se arrisca a se deslocar através deles: “a língua é boa solta”, “fazendo
escarcéu da sua boca” (versos 9 e 10), e traz essa vaga forte e poderosa que se cria pela
exaltação dos sentidos soltos, em processo: “perdida, perdida” (último verso)
Se a cultura é vista como a “bala no bandido” (verso 7), ela persegue então os
sentidos marginais que estão incorporados no que a sociedade rejeita e quer aprisionar na
exclusão. E se o eu lírico, no sentido contrário, quer construir sua poesia ao “vomitar o
pânico” (verso 2), ele não poderá deixar de ser expelido, será lançado de ímpeto, vertido com
a força do jato de um material não digerido, indesejado, mas que voltará a incomodar com
sua presença.
Mas toda essa potência da linguagem poética vai transitar em rumos imprevisíveis.
Marcos Siscar (2010), ao falar do “Cisma da poesia brasileira”, define essa dificuldade
fundada na oposição entre uma poesia intelectual, formalista, “concretista, semiótica,
tecnológica” e aquela do cotidiano, que “busca inspiração na língua e na cultura popular” (p.
153). Mas propõe uma perspectiva para o impasse ao dizer que esse embaraço “impôs uma
tarefa à nova poesia brasileira, a de encontrar uma voz própria” (p.155) e que a superação se
faz como promessa. Ao delinear os rumos dessa promessa fala em dramatização da angústia
do sentido e em “simulação da dificuldade ou a ficção de sua solução” (SISCAR, 2010, p.
163).
Acreditamos que as palavras usadas pelo professor da UNICAMP; “dramatização” e
“simulação”, novamente nos levam ao caminho que propusemos percorrer aqui, o de se
pensar a poesia como performance, como uma ação em processo em que o desejo de
significação se encena e se coloca no plano das possibilidades, em um devir em que a
função do leitor, do receptor e simultaneamente do autor/eu lírico é que a constroem.
E é dessa promessa que nos fala Chacal, quando empina a palavra poética abaixo, em
Letra Elétrika, para que a interroguemos em seus tons, contornos e sensações, e que, pelos
contrastes das imagens em diálogo, suas formas e sentidos nos convidam a participar da
imprevisibilidade desses movimentos performáticos do “céu do papel”:
153
Papagaio
estranho poder o do poeta
escolhe entre quais e cais
quais palavras lhe convém.
depois as empilha papagaio
e as solta no céu do papel.
(CHACAL, 2007, p.115)
154
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O raciocínio desenvolvido neste trabalho – que teve como eixo norteador de análise a
obra poética de Chacal reunida em Belvedere (2007) – explica-se, em suas idas e vindas no
tempo e no espaço, pela amplitude e teor do objeto de estudo proposto, ou seja, a investigação
das relações entre a tradição e a ruptura em manifestações artísticas da modernidade e o
exame dos conflitos daí decorrentes em torno da legitimação de um discurso poético
entendido como “marginal”. Muitos artistas, não se identificando com o ideário positivista
dominante em seu tempo, foram considerados, ao longo dos séculos XIX e XX, como
contraculturais, vivenciando uma experiência tensa, suspensa entre o passado e o futuro,
experiência esta ousadamente integrada por eles ao próprio corpo e sua extensão no espaço: a
palavra poética.
O texto aqui apresentado perseguiu uma conexão mais específica entre os
movimentos contraculturais, existenciais e estéticos do século XX, procurando identificar, em
sua própria estrutura, a complexidade dessas experiências artísticas em sua palavra
performática, onde a razão é sempre provisória. Nos poemas de Chacal, essas performances
transformam-se em diálogos que, ao atravessar os textos, acabam por compor uma
estabilidade também provisória, em que o consenso é apenas uma correferência aos homens
concretos e seus dizeres. O outro é sempre um mediador de uma palavra partilhada e, para sua
compreensão, importa a concretude dos horizontes dos homens e seus conflitos, em uma
perspectiva processual, dialética e histórica, em que os textos são testemunhos desses sentidos
em trânsito.
Não existe um mundo fora da linguagem, assim como não existe uma existência sem
o corpo. E o poeta, inconformado com os mecanismos de adesão cada vez maiores à
sociedade do espetáculo, que substitui o exercício da sensibilidade e da criatividade pelo
monopólio de imagens que reificam o homem e sua complexidade existencial, externa com
ênfase sua indignação. Ela se expressa, não através de uma reflexão racional, que talvez
representasse uma certa aceitação ou conformismo em relação a esse mesmo modelo
representativo da linguagem, mas explorando a inquietude, a ação e a transformação, que são,
elas mesmas, atitudes dissonantes, deslocamentos desconcertantes, jogos formais de uma
palavra poética irreverente.
155
Sabe-se que a transmissão da tradição através de metanarrativas, de um saber
absoluto, em que comportamentos morais e sociais eram representados como fator de
diferenciação entre um “nós” e um “eles”, já não existe mais. Na modernidade, os modelos
de racionalidade não são mais homogêneos, e, como ensina Benjamin (1985), os monumentos
da cultura ocidental são também os de uma barbárie muitas vezes silenciada. O silêncio, o
vazio e a dispersão são, da mesma forma, restos de uma violência praticada, e podem ser
elementos residuais de expressões e sensibilidades coletivas, que, através de gestos
incrustados nas experiências estéticas, tornam visíveis essas dissonâncias. Veja-se como
Chacal trabalha esse tema, em poema de Belvedere:
Sobre o silêncio
hoje não viemos discutir projetos
hoje não viemos pedir
hoje viemos como alguém que visita sua casa
que vem pedir pra família
sobre as dificuldades de tecer a invenção
sobre o abismo que se abre além do entretenimento
sobre o prazer que é lutar pelo que se acredita
hoje viemos dizer pra família
que não vamos mais terminar os estudos
e que nossa cara curtida, nosso olho vermelho
nosso sorriso encarnado e, principalmente, nosso silêncio
dizem tudo.
(CHACAL, 2007, p.16)
Há no poema um tom de intimidade, de proximidade afetiva que se coloca par a par
com as marcas corporais de uma dor silenciada. Se “o real precisa ser ficcionado para ser
pensado” (RANCIÉRE, 2005, p.58), esse “nós”, que visita a casa, a família, expresso
desinencialmente em vários versos (1, 2, 3, 8, 9), e pelos possessivos (versos 10 e 11), pode
ser pensado como os sujeitos que carregam em si a ânsia de ter na palavra poética uma
rebelião contra o domínio do discursivo racional, que aparta a atitude criadora, como uma
potência necessária à imaginação e a novas perspectivas para a canalização da dor em ação,
em atitude e expressão. Aqueles que trazem a intensidade física como uma marca irreverente,
uma disposição de emancipação dos corpos para a autonomia e o prazer de serem e viverem
mais livres, são mais conscientes de si e das lutas que querem travar. São também mais
capazes de intervir, opondo-se ao pensamento ocidental e cristão, que criou a antítese entre
natureza e cultura, entre o corpo e a alma, e se tornam mais aptos a construir gestos
expressivos que evidenciem também no silêncio uma insubmissão, como uma atitude prenhe
156
de significados expectantes, em uma sociedade cada vez mais exausta de palavras vazias e de
vazios de sentido.
Um prazer sensorial, a musicalidade, a brincadeira, uma tradição literária
fragmentada e usada oportunamente, discussões filosóficas e estéticas estão na poesia de
Chacal, como objetivamos demonstrar aqui, tal qual um jogo entre a memória, a perda de
memória e a singularidade. Sabemos, desde Kant, que não é possível, através das condições
formais, estabelecer um juízo estético para o objeto artístico. O belo na poesia possui algo que
sempre escapa, que está entre o subjetivo e o objetivo, entre o individual e o coletivo, ou seja,
há uma independência das verdades racionais, mas que não pode prescindir da consciência
histórica, que é um elemento importantíssimo na percepção estética. Nesse sentido, o poeta
carioca sempre se interroga sobre seu objeto, a poesia, pois ela não tem uma função evidente,
mas é a linguagem, ela própria que se fala, e o leitor é afetado por tudo isso. Se é impossível
adaptar-se à violência e à repressão do discurso dos meios de comunicação de massa, ou
mesmo ignorar a força irreversível de sua presença, Chacal vai estruturar essa condição na
forma do texto poético, como um corpo em que as cicatrizes denunciam os impactos sofridos,
e as fazem elementos da arte.
Se com a desconstrução da mímeses restou o enigmático, o caráter linguístico da
obra irrompe e lança uma desconfiança sobre o poder nomeador da linguagem, em que a
construção de visões e imagens plurais estrutura o partilhado, de outros saberes e práticas
sociais muitas vezes vilipendiadas e caladas, demostrando que o papel dos heróis está vazio;
nessa expressão que se monta inventivamente, os modelos acabados não cabem mais, eles
estarão sempre em processo.
Segundo algumas tendências da Teoria da Literatura (disciplina que não é Ciência
nem Filosofia e apareceu somente na segunda metade século XX), a defesa do cânone só pode
ser concebida como um exercício do pensar sobre os bens culturais, afastado dos
essencialismos; um ponto de partida para a produção de conhecimento, não um patrimônio a
ser transmitido.
Nessa teoria, a discussão sobre o estatuto do autor ou a definição de sua morte, abala
a noção de sujeito (da enunciação e do enunciado), e coloca a metalinguagem e a
intertextualidade como elementos constituintes tanto da crítica literária quanto da produção
poética. Assim, todo texto ou leitura é um modo de pensar que nasce do encontro de outros
sujeitos, textos e leituras, que, não sendo totalizável, revela ainda a impossibilidade das
157
suturas entre eles; a inquietação das formas e as deformações sintáticas são, portanto,
condições de sentido na modernidade, em que não há mais qualquer possibilidade de conceber
a literatura em um sentido positivista. Por isso, o trabalho da teoria ou da crítica literária deve
estar absolutamente subordinado ao texto.
Se a noção de representação e seu correlato, o sujeito, lutam no interior da
linguagem, o simulacro, como uma potência do falso, vem perturbar a divisão entre a
aparência e a essência para trazer um deslizamento de tomadas e retomadas em cadeia. A
relação com o outro, que passa a ser um original perdido para sempre, torna-se uma errância,
um desvio em que o intertextual fica fora de controle, as demarcações não são mais
localizáveis, como nos recursos da reciclagem.
Desde Mallarmé, como quisemos demonstrar aqui, está posto esse abalo na noção de
representação e a impossibilidade de um sentido anterior à linguagem. No romantismo já
estava presente essa interrogação da linguagem sobre si mesma, além de um desejo paradoxal
de possuir o jamais alcançável, que negava a condição de estabelecimento de um sentido
único para a humanidade. As vanguardas vieram ampliar ainda mais essas impossibilidades ao
colocar a falta de autonomia da arte. Mas, depois dessas avalanches, à poesia restará um
compromisso ainda maior com a palavra, sua responsabilidade com a liberdade, com a leitura
dos textos e dos sentidos; não como apropriação, mas como uma operação incessante de
descoberta dos significados, que está irreparavelmente atravessada por um vazio impossível
de ser preenchido.
Por tudo isso, a inserção da poesia de Chacal, ou de qualquer outro poeta do grupo,
na nomenclatura “marginal”, dissociada da especificidade dos anos de 1970, torna-se
completamente irrelevante, pois não há um único critério de legitimação possível, ou uma
coerência inabalável, e a construção de leituras com juízo determinista de valor perde cada
vez mais espaço no universo das Letras. Qualquer reflexão sobre a arte e a poesia levanta
discussões éticas e políticas, que, ao expor sua opacidade, coloca também a existência
humana destituída de um sentido fixo, mas possuidora de sentidos expostos através da própria
experiência estética. Mas a obra de arte não é redutível ao objeto artístico, ela é construída
também por abordagens e discursos que se colocam frente a ele.
A experiência estética, como vimos, é também feita de escuta. Mas se a
intransmissibilidade é condição da experiência humana na modernidade, como nos ensinou
Benjamin quando fala sobre o narrador (1985), a incapacidade da representação como verdade
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também está colocada através de sua inserção no multivocal e na performance; no jogo, no
riso e na festa, como já praticada desde a antiguidade greco-latina. Chacal,
antropofagicamente, sempre soube trabalhar com todos esses elementos porque se expressa
muito bem em uma poesia que resiste em sua singularidade e afirma-se, sobretudo, pela
dispersão, sem promessas ou garantias, como uma resistência à legitimação e à
institucionalização.
Lemos, em todo o conjunto de Belvedere, uma necessidade sempre renovada de
interrogação sobre as imagens e a experiência, aliada a um estranhamento e a um modo de
conceber a forma em que a combinação desses elementos é também uma síntese, às vezes
contraditória, como uma vertigem, ou um excesso. É essa interrogação que aparece sempre
em toda a obra de Chacal, colocando como desnecessária a aprovação acadêmica ou a
legitimação. Mas a história da literatura constitui-se em seu curso, não pela aprovação, ou
não, dos críticos e teóricos da literatura, mas através de uma recepção mais ampla, ou da
leitura sagaz e produtiva das gerações, não necessariamente referendada pela academia.
Como nas análises dos textos de Chacal que fizemos aqui, é a partir de cada texto
que se pode construir a transmissibilidade da memória literária, ou seja, a tradição é feita
também através do funcionamento da própria linguagem poética.
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