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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras Valéria Soares Coelho CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo Belo Horizonte 2015

Valéria Soares Coelho CHACAL: poesia, palavra, margens do

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Letras

Valéria Soares Coelho

CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo

Belo Horizonte

2015

Valéria Soares Coelho

CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para a obtenção do

grau de Doutor em Letras – Literaturas de Língua

Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Melânia Silva Aguiar

Belo Horizonte

2015

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Coelho, Valéria Soares

C672c Chacal: poesia, palavra, margens do corpo / Valéria Soares Coelho, Belo

Horizonte, 2015.

167 f.: il.

Orientadora: Melânia Silva Aguiar

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Chacal, 1951- - Crítica e interpretação. 2. Poesia. 3. Desempenho (Arte).

4. Corpo como suporte da arte. I. Aguiar, Melânia Silva. II. Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

III. Título.

CDU: 869.0(81)-1

Valéria Soares Coelho

CHACAL: poesia, palavra, margens do corpo

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para a obtenção do

grau de Doutor em Letras – Literaturas de Língua

Portuguesa.

________________________________________________________

Profª. Drª. Melânia Silva de Aguiar (orientadora) – PUC Minas

________________________________________________________

Profª. Drª. Nancy Maria Mendes – UFMG

________________________________________________________

Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura – CEFET-MG

________________________________________________________

Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty – PUC Minas

________________________________________________________

Prof. Dr. Johnny José Mafra – PUC Minas

Belo Horizonte, 8 de maio de 2015

À memória de meus pais:

a minha mãe, Elvira Coutinho Soares, pelo prazer da

Literatura;

a meu pai, Joanyhn Soares Coelho, pelo trabalho

como fruto da vida.

AGRADECIMENTOS

A meu marido, Bruno Gonçalves Fonte Boa, pelo apoio.

Às filhas Marina, Letícia e Lívia, pelas alegrias.

À professora primária, Ivanira de Moura Alves, referência no mundo das Letras.

À Professora Melânia Silva Aguiar, por ter acreditado nesse trabalho, pelo zelo sem limites,

pelos conhecimentos e sabedoria preciosos tão sensivelmente compartilhados, nas aulas, no

decorrer de sua orientação, e em atividades e Seminários, no Brasil e no Uruguai, de nosso

saudoso grupo de estudos da poesia moderna nessa universidade, o GEPOM.

À Professora Ivete Walty, pelo enorme apoio recebido no mestrado e pela convivência sempre

muito enriquecedora nas salas de aula e nos grupos de estudos.

Ao professor Márcio Serelle, pela apresentação de obras das últimas gerações, semente desse

trabalho.

À Professora Terezinha Taborda, pela oportunidade da primeira publicação.

A todos os meus professores e colegas desta instituição, pelas aulas com reflexões

importantes, que contribuíram para que eu chegasse a esse texto aqui apresentado.

RESUMO

Esta tese, tendo em foco a obra poética de Chacal, reunida em Belvedere (2007), investiga as

relações entre a tradição e a ruptura na modernidade e os conflitos em torno da legitimação de

um discurso poético “marginal”, em conexão com outras manifestações artísticas dos anos

1960/1970, que trouxeram o corpo em movimento como elemento primordial da expressão

artística. Embaraçando as fronteiras entre forma e conteúdo, poesia e ação, ou entre o real e

sua representação, a obra de Chacal, até suas mais recentes publicações e projetos culturais,

faz repensar o conceito de “performance”. Como potência fundadora da poesia desde os

primórdios da expressão, a arte performática foi resgatada por movimentos da vanguarda

artística europeia, como se deseja mostrar, e o poeta estudado explora essa tradição feita de

processos que expõem a precariedade dos limites entre identidade e alteridade, entre o centro

e as margens, o experimental e o tradicional, a escrita e o gesto, o corpo e a palavra.

PALAVRAS CHAVE: Chacal; legitimação; poesia; performance; corpo

ABSTRACT

This thesis, focusing on the work of Chacal, gathered in Belvedere (2007), investigates the

relationship between tradition and rupture in modernity and the conflicts surrounding the

legitimization of a marginal poetic speech in connection with other artistic manifestations of

the 1960s and 1970s that brought the body in movement as a primordial element of artistic

expression. Entwining boundaries between form and content, action and poetry or between

the real and its representation, the work of Chacal, even their most recent publications and

cultural projects, is rethinking the concept of performance. As a founding power of poetry

since the dawn of expression, performance art was rescued by avant-garde European artistic

movements, as desired to reveal, and the poet studied explores this tradition made of

processes that expose the precariousness of boundaries between identity and otherness,

between the centre and the margins, the experimental and traditional, the writing and the

gesture, the body and the word.

KEY WORDS: Chacal, legitimization, poetry, performance, body

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

2 MARGENS DO CORPO .................................................................................................... 29

2.1 Corpos e dominação ...................................................................................................... 30

2.2 Modernismos ................................................................................................................. 36

2.3 Modernidades ................................................................................................................ 42

2.4 Corpos e espaços ........................................................................................................... 51

3 A PALAVRA E OUTRAS MARGENS ............................................................................. 74

3.1 Palavra-corpo ................................................................................................................ 74

3.2 Tempos-espaços ............................................................................................................. 79

3.3 Textos/contextos ............................................................................................................ 91

3.4 A palavra em trânsito ................................................................................................. 100

4 POESIA E PERFORMANCE .......................................................................................... 117

4.1 Leituras performáticas ............................................................................................... 117

4.2 Poéticas performáticas................................................................................................ 127

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 154

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 159

9

1 INTRODUÇÃO

O poeta Chacal tornou públicos seus primeiros poemas em 1971, com Muito prazer,

Ricardo. Foram rodados cem exemplares em um mimeógrafo, com o estêncil rudimentar,

escrito com estilete. O seu último livro, Murundum, foi editado em 2012 pela Cia. das

Letras, uma das maiores do Brasil. Investigar o processo de legitimação de sua obra é o

objetivo maior desse trabalho, e, para isso, discute-se como se constitui, na modernidade, o

centro ou a tradição poética, e o que representa sua ruptura, já que as margens e o centro têm

seus limites muitas vezes precários e instáveis. Os estudos literários, como aponta Lopes

(1994), defendem um foco problematizador para essa questão, ao mesmo tempo que assumem

a importância da contribuição da Literatura para a transmissibilidade da tradição, o que torna

a marginalidade um tema necessário para a Teoria da Literatura e muito atual no âmbito geral

das artes e da cultura.

Chacal nasceu no Rio de Janeiro em 1951, é um dos mais representativos poetas da

chamada “poesia marginal” dos anos 1970, no Brasil, e um dos que mais souberam sintetizar

aqui as contribuições do movimento beat1 e seu caráter revolucionário, ao mesmo tempo que

dialoga em profundidade com outros dois pilares da inquietação poética brasileira do século

XX: a antropofagia2 e o concretismo

3.

Os textos de Chacal analisados aqui estão contidos no volume intitulado Belvedere,

(2007). O livro traz uma reunião de toda a obra de Chacal, publicada até essa data, com os

seguintes títulos, a partir dos mais recentes:

Belvedere (2007)

A vida é curta para ser pequena (2002)

1 A palavra tem em si vários sentidos: batida country, blues, rap, poesia e música. O mais comum é associá-la a

um grupo de amigos em San Francisco nos anos 1950, Allen Ginsberg, Kerouac, Neal Cassady, Carl Salomon,

Burrroughs, entre outros, que se reuniam para falar de poesia, arte, liberdade e vida. Fotografavam, ouviam

música e discutiam concepções políticas e culturais diante da Guerra Fria e do reacionarismo burguês. 2 O “Manifesto Antropófago”, 1928, bandeira rebelde, de Oswald de Andrade, mistura gracejos filosóficos a

críticas à sociedade patriarcal, trazendo reflexões importantes sobre a questão colonial brasileira. 3 O “Plano Piloto para Poesia Concreta”, assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de

Campos em 1958, propõe um método “ideogrâmico” de compor, baseado em elementos não discursivos, e

aponta como precursor, entre outros, Mallarmé, un coup de dés, de 1897.

10

Letra Elétrika (1994)

Comício de Tudo (1986)

Drops de Abril (1983)

Boca Roxa (1979)

Nariz Aniz (1979)

Olhos vermelhos (1979)

Quampérius (1977)

América (1975)

Preço da Passagem (1972)

Muito Prazer, Ricardo (1971)

Temos o objetivo de situá-los como uma importante e original contribuição poética

para a literatura brasileira atual, já que, não se limitando à denominada “poesia marginal”, dos

livros impressos pelo mimeógrafo, apresentam um trabalho reiterado com a tradição, através

de uma síntese criativa de várias vertentes da poesia do século XX. Além da antropofagia, do

movimento beat, e do concretismo, há ainda a presença das vanguardas artísticas europeias,

na irreverência do Dadaísmo e em um poder onírico surreal. Constrói com esses múltiplos

elementos uma palavra performática, que reapresenta inusitadas propostas estéticas e éticas no

corpus multifacetado do ainda imprevisível século XXI.

É recorrente na obra de Chacal a preocupação com a acelerada perda do lugar de

referência ou reverência que a palavra poética já possuiu no espaço cultural. A indústria do

entretenimento e o marketing, ocupando o imaginário coletivo, criando identidades e

memórias recortadas por apelos construídos a partir de estereótipos desejáveis para o

consumo imediato e irrefletido, são reflexões trazidas pelos textos. Nessas mídias, as

representações do corpo pela palavra são preconcebidas, meras adequações da mesma

imagem. Na contramão dessa trajetória, a produção poética denominada “poesia marginal”,

no Brasil, e os chamados beats, nos Estados Unidos em meados do século XX, resgataram a

convivência da palavra poética com o corpo, no presente vivido, no cotidiano. Esse vínculo

intensificado com o aqui/agora marcaria tanto a palavra quanto o comportamento, e seria um

ato de resistência a esse processo de desvalorização da poesia e massificação da sensibilidade.

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A arte da palavra é, em ambos os movimentos, uma representação coletiva desse tempo em

que a poesia tensiona seu próprio corpo para sobreviver, como em uma vigília instintiva.

Em performances4 públicas ou em contato presencial com o leitor pelas cidades dos

outdoors, esses poetas/atores urbanos utilizaram vários traços da própria linguagem midiática

em seus textos. Escreveram, imprimiram e se colocaram nas ruas, buscando o residual e o

coletivo de uma palavra poética ancestral, anterior ao seu descolamento da práxis vital. Essa

representação primeira, em sua performance, presença corporal e oral, dialogava com outras

manifestações artísticas e transitava por várias formas de expressão. O desejo de resgate de

uma linguagem múltipla em um mesmo instante seria uma resposta-síntese, uma

intensificação do valor do momento artístico, para se contrapor à banalização e

superficialidade da produção artística industrial que dizima a imaginação e programa as

multidões à esterilidade criativa.

Essa palavra em ação atualizaria também, através do corpo, da atitude, o sentido da

arte enquanto eterna irreverência criadora do ser humano, que perscruta em seu tempo/ espaço

estratégias e táticas para desestruturar raciocínios e práticas dominantes, desvelando novas

trilhas do pensamento que criam novos passos e formatos para a expressão. Ao analisar a obra

de Chacal como um instigante trabalho sobre a fissura da linguagem poética no século XX,

que rompe em vários momentos com os limites dos gêneros discursivos e das expressões

artísticas, identifica-se e descreve-se como se conectam nos textos diversas vozes na era de

uma linguagem midiática, persuasiva, ágil e sintética, que explora a reiteração, os elementos

sonoros e a imagem.

A obra contundente dos “poetas marginais” são produções que reagiram à era da

padronização cultural e da arte como um mero objeto de consumo e construíram expressões

poéticas marcadas pela ação e por criações muito mais integradas ao cotidiano e às outras

artes (a música, a expressão corporal e a imagem). Os papéis tradicionais da poesia e dos

poetas mudaram e tornaram-se mais independentes dos meios hegemônicos de circulação,

alternativos até; desde a concepção ao despojamento da realização, comprovando que a

energia e a pulsão da poesia podem engendrar novos espaços e construções, traduzidos em

movimento, imagem, som e corpo. Essas realizações poéticas, que iam além da palavra escrita

4 A palavra aparece nos limites entre as artes cênicas e as artes plásticas, quebrando convenções estéticas e

éticas, em Zurique, 1916, no Cabaret Voltaire, onde artistas ligados ao Dadaísmo, experimentavam recitais

poéticos, música e leituras de manifestos, resgatando características rituais da arte, tirando-a dos espaços mortos

(museus), trazendo-a para celebrações dionisíacas.

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e propunham outros lugares e formas para a poesia, eram uma atitude transgressora diante do

processo de banalização da arte para um consumidor passivo.

Desconstruindo ainda a ideia de que o corpo é parte material em contraposição a uma

essência espiritual, os poetas “beatniks”, nos EUA, e os “marginais”, no Brasil, propuseram

uma síntese Waltwhitmaniana5 do homem, da natureza e da criação; criticaram o

maniqueísmo político e a redução do ser humano às ideologias, à burocracia e ao

consumismo.

Assim, ao estudar a obra de Ricardo de Carvalho Duarte, nome de batismo de

Chacal, percebemos uma poesia tão rica de referências à tradição modernista brasileira,

quanto de um imaginário coletivo, artístico e cultural da década de 1970, profundamente

marcado pelos norte-americanos, sua música e sua literatura, inseparáveis de um

comportamento de ruptura/negação do mundo reificado pela sociedade da mercadoria.

Possuidores de uma atitude mais autêntica diante da vida, esses jovens propuseram uma

relação mais sensorial e anárquica com o corpo, acreditando ser ele parte integrante de uma

natureza ultrajada pela produção industrial e pela alienação consumista.

Pensando nas aproximações entre os sentidos e a sonoridade das palavras,

observaremos que, como bem salientou Alfredo Bosi (1993), em seu estudo sobre o ritmo e o

metro, as simetrias e assimetrias no fluxo das palavras e de seus sons fazem a conexão entre o

material e o sensível. O efeito sonoro é muito mais poderoso do que se supõe, ou seja, há nele

uma intensa complexidade semântica. Paul Zumthor (2005) alarga ainda mais a exploração

dessa vocalidade para nos lembrar os traços sócio-corporais contidos na palavra poética.

Portanto, não podemos nos esquivar de repensar o ritmo na poesia dos beats e de Chacal,

enquanto um movimento corporal, que, com sua imagem performática, vai estabelecer

identidades/dissonâncias de tempo e espaço.

Vemos que, na poesia de Chacal, a vertigem beat, uma liberdade e espontaneidade

antropofágica, e uma sintaxe analógica concretista, com sua rica capacidade de acolher as

ambiguidades e operar fragmentos sem finalizações, não vão instaurar para o nosso tempo o

consolo de uma ideia de universalidade humana ou artística, mas vão trazer um incômodo que

desestrutura conceitos previamente demarcados e homogeneidades superficiais. Refletir sobre

seu próprio lugar de poeta e o da arte na dispersão urbana é a opção do autor, que usa muito

5 Walt Whitman (1819-1892), poeta norte-americano, que, por sua coragem humanitária e estilo livre de viver e

fazer poesia, é cultuado por vários dos grandes poetas do séc. XX.

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dos recursos que essas três poéticas lhe ofereceram e do universo sensível que elas elucidaram

para o adensamento da expressão.

A maneira como esses três movimentos encontram-se praticados nos textos de

Chacal, sua dinâmica, sua tessitura e suas imagens são fundamentais para compreendermos

com mais propriedade toda uma geração de poetas, e suas relações com a tradição e com a

ruptura modernista no devir da poesia brasileira. É importante, para isso, recorrer à discussão

feita por Paz (2013), em Os Filhos do Barro, cuja primeira edição é de 1974, em que a

modernidade é vista como uma tradição de rupturas, de interrupções e retomadas, pois com

esse raciocínio, podemos pensar que os beats, por exemplo, retomaram muitos dos aspectos

transgressivos das vanguardas, e os “poetas marginais” também, assim como reelaboraram a

antropofagia e o concretismo.

Ao relacionar as ideias contidas nos textos aos espaços criados pelos contornos dos

versos no papel, às imagens, ao movimento e ao som, e suas conexões inusitadas com o corpo

e a palavra, identifica-se como esse procedimento é similar ao “verbivocovisual” proposto por

Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, em 1958, no “Plano Piloto para a

Poesia Concreta”. Reconhecemos então em que grau se dá a presença da oralidade, da voz, e

por extensão do próprio corpo na linguagem performática utilizada por Chacal. Para isso,

podemos associá-la também a algumas referências musicais dos anos de 1960 e 70, Janis

Joplin, Hendrix e Bob Dylan, presentes em versos e com importância ideológica na poética do

autor que pertence à geração do “sexo, drogas and rock in roll”.

Com ênfase na materialidade do verso, no ritmo e na sonoridade, Bosi (2004), em O

ser e o tempo na poesia, afirma que “A ideia, no momento em que aporta ao concreto da

expressão (à frase), produz ou reaviva algum efeito rítmico da língua que, em virtude de novo

contexto, se torna significativo. É a análise do estilo que desvenda as correlações possíveis

entre ritmo e sentido.” (BOSI, 2004, p.104)

Há uma presença marcante da oralidade, da voz, e por extensão do próprio corpo,

permeando toda a obra de Chacal, como um desejo de insubordinação ao estabelecido apenas

pela dimensão das letras impressas no papel plano e bidimensional. É nesse espaço que

encontramos a ousadia de uma palavra inquieta, que, apesar de possuir o desejo de uma

totalidade ancestral, performática, que transitava por várias expressões artísticas, fragmenta-se

em vozes e lugares superpostos para representar o caos de um terceiro milênio, com suas

inúmeras posições, formas, contornos e lacunas dos sentidos. Cabe ao poeta, como no

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proposto pelo dinamismo da palavra-coisa no espaço-tempo da poesia concreta dos irmãos

Campos e Décio Pignatari, arquitetar a cena, montar no texto/espaço/papel formas múltiplas

de expressão do real vertiginoso da modernidade, de um tempo que escapa, que se transforma

ininterruptamente enquanto tentamos apreendê-lo.

Essa estratégia foi usada por Cummings (1894-1962), poeta norte-americano que

encantou Augusto de Campos, e com o qual o poeta paulista correspondeu, traduzindo-o para

o português. Sua leitura se torna importante para entendermos o movimento concreto em suas

relações com uma produção que se marca também pelo trabalho com o aspecto icônico da

palavra. Observar através de quais procedimentos textuais o poeta carioca representa essa

vertigem avassaladora da expressão poética dos finais do século XX é também uma maneira

de discutir o papel da arte que se desestabiliza, que foge do convencional ou ordinário e cria

uma experiência sensível que tenta decifrar intuitivamente o mundo, o homem e suas

contradições na sociedade brasileira, de capitalismo tardio e periférico.

Chacal expressa uma inquietude desestabilizadora de muitas convenções dos gêneros

textuais, como também ocorreu na antropofagia oswaldiana, e constrói uma palavra ágil,

escorregadia, de difícil rotulação. Assim, o dom da palavra performática enquanto

representação cultural, além dos limites de uma só expressão artística, extrapola, na obra do

poeta, o que se espera de um texto poético, estabelecendo ritmos em que os sentidos se

integram, como ele próprio esclarece na primeira página de Belvedere (2007): “Espero que

você, leitor, possa se alimentar e se divertir, possa ler, ver e ouvir.” O autor usa um

vocabulário comum, popular, o de todos, e às vezes o tom, um ritmo binário utilizado traz

uma imediata ressonância percussiva. E nesse trabalho, quase musical, combina temas, formas

e outros ritmos que, de fato, estão circulando diária e espontaneamente na boca das pessoas,

de várias classes sociais. Em A vida é curta pra ser pequena, vê-se:

diz na lata chuta lata vira lata

diz na mão diz no pé diz que diz

todo poder vira lata

todo poder chuta lata

todo poder para lata

(CHACAL, 2007, p.48)

Dessa forma, Chacal evidencia a plurissignificação de expressões, a multiplicidade

dos sentidos que uma cultura pode atribuir a um mesmo significante e a versatilidade dos usos

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e costumes das palavras no cotidiano. Eagleton (2006) observou que não é especificidade da

Literatura essa “estranheza” da linguagem, como acreditavam os formalistas, já que no

discurso diário utilizam-se os mesmos recursos das figuras de linguagem; ou seja, não

podemos atribuir objetivamente uma qualidade discursiva ao literário. E o poeta joga com

esses conceitos e com os seus tênues limites em construções inusitadas, demonstrando a

sutileza do exercício da poesia e a sua força catalisadora dos sentidos e do raciocínio crítico.

Analisar textos como os de Chacal seria também identificar de que forma a poesia

contribui para uma compreensão mais aprofundada do homem do século XXI. Que reflexões

poderemos fazer, a partir dos textos, a respeito dessa condição humana, em uma sociedade do

excesso, do superficial, do consumo, do desperdício e da pobreza? Não há tempo para o

contemplativo, como já denunciavam os beats. As imagens são torrentes que, como em um

ato de expulsão dos excessos, fazem jorrar as expressões, saturadas, saturantes, que não

cabem mais em si. Ao estudarmos esses processos semânticos e estilísticos, os caracteres e as

imagens que advêm dessas torrentes, as relações que podemos estabelecer entre elas em nosso

contexto social, e de que forma essas imagens estão expressas, encontraremos também

respostas/questões que enriquecerão a compreensão das condições/ expressões das produções

artísticas atuais.

É preciso dar vazão ao excedente, e de uma forma escatológica, nada venerável.

Como na literatura carnavalizada de Bakhtin (1993) que “caracteriza-se principalmente pela

lógica original das coisas “ao avesso”, ao contrário, das permutações constantes do alto e do

baixo (a roda), da face e do traseiro e pelas diversas formas de paródia, travestis, degradações,

profanações” (p. 10). O sério, o cômico, o coletivo e o corporal estão inseparáveis e

reintegram-se na eterna movimentação da ambivalência de se unir ao que se exclui. A

literatura segue aqui novo rumo, já previsto por Zumthor (2005) “A idéia da literatura como

algo venerável, contendo autoridade e valor estético, merecendo uma atenção particular, vai

se esmaecer, sem dúvida.” (ZUMTHOR, 2005, p.103)

Da mesma maneira que a cultura popular e a literatura são exploradas e modificadas

pela indústria cultural, nos versos de Chacal vemos essa interação e sobreposição, mas de

forma tensa, cubista, quase plástica:

new york, fratura exposta, flor obscena de henry miller,

gothan city, babilonest de hélio oiticica, musa de

woody allen, campos de centeio forever

(CHACAL, 2007, p.17)

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Seriam esses versos o resultado de uma adição de elementos díspares que formam o

imaginário coletivo ocidental? As referências usadas são uma sucessão de imagens do

universo das artes plásticas e da literatura, compostas na mesma cena do cinema, do teatro e

dos espetáculos das multidões. Assim Chacal demonstra como se processam a reutilização de

ideias e a composição de novos objetos, sem que necessariamente se reconheça a matéria de

que são feitos. Para o autor de Belvedere (2007) (como o era para os beats), a criação artística

não seria entendida mais como uma revelação súbita e brilhante dos românticos, mas como

algo residual, que se recompõe de estratos diversos, de vários tempos e espaços diferentes. A

letra e o som, a imagem e a tela, o ritmo e o movimento compõem essa palavra performática

do séc. XXI. Reconhecer, analisar e relacionar esses elementos em sua poesia também será

tarefa de que nos ocuparemos.

Chacal trabalha com essas referências na medida em que mostra, com criatividade,

com uma ironia e um humor oswaldiano, seu processo de criação no próprio ato do fazer

poético. A integração suplanta a fragmentação da era digital, mas os vários elementos

entrecortados estão todos lá, não há em momento algum a tentativa de dissimulação ou de nos

dissuadir da incompatibilidade aparente, e acompanhamos a adição com o ritmo da

respiração, passo a passo. A poesia é colocada então como resultado de uma soma na qual

cada elemento é também suplemento que modifica o resultado; e a inovação não é repentina e

individual, mas gradual e coletiva; não há mais, portanto, espaço ou tempo para a ingenuidade

ou para os purismos ressentidos de uma origem perdida.

Mas, da maneira como é disposta essa soma, não temos como escapar da escansão de

um ritmo engajado aos movimentos do corpo, pois, segundo Bosi, há textos que,

necessariamente, para serem entendidos, transformam-se em voz; ou seja, retornam ao caráter

primitivo da poesia, à sua unidade corpórea; a garganta e a respiração cadenciam por todo o

corpo da palavra que trepida à luz dos sentidos.

Se a presença da cultura midiática é irreversível, sendo de várias formas parte do

cotidiano, aprimorar o senso crítico significa denunciar suas táticas ou assimilá-la de outra

maneira? A leitura literária também depende da mídia? Divertir significa estar de acordo? O

entretenimento é sinônimo de abandono irrefletido? A elaboração da linguagem é uma forma

de opacidade da arte moderna? Se na sociedade da indústria cultural há o predomínio da

imagem do corpo como espetáculo, teremos uma mudança de como ele é representado pela

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arte e pela literatura? A crítica tem se dedicado a essas reflexões? O conceito de Literatura

está sendo modificado por tudo isso?

Analisar a poesia de Chacal é uma forma de tentar responder a essas perguntas, e

então podemos pensar que a poesia e o corpo mantêm entre si margens mal delineadas, que se

interseccionam muitas vezes. A palavra poética seria sopro, pneuma, ar em deslocamento,

onda sonora, então veremos nela uma síntese do corpo que a pronuncia; ou se a temos como

matéria impressa no papel branco, com seu contorno, sua materialidade, podemos enxergar

seu espaço ocupado traçando silhuetas. Mas se nos debruçamos sobre as poesias de Chacal,

que pertence à geração que colocou o corpo em movimento como a realidade maior da

precária existência, esses elementos se mesclam ainda mais, de tal forma que a expressão

artística e um impulso vital, agônico convertem-se em um só ímpeto.

Discutindo essa atitude performática, Paulo Andrade (2005), em seu texto sobre os

acontecimentos culturais no Brasil após o profético “the dream is over”, revela uma mudança

radical que substitui as grandes rebeliões por um ataque mais sorrateiro ao sistema, próximo

das ações de guerrilha, mais pontuais, com a presença de uma atitude poética repleta de

artimanhas, via resistência e ocupação de espaços em microeventos, que passam a priorizar as

minorias, o cotidiano, o corpo e a sexualidade:

A valorização das sensações, dos acontecimentos efêmeros e múltiplos, favorecia o

desenvolvimento de uma arte do instinto e do gesto. Ao mobilizar recursos do corpo

até a teatralidade, os artistas na virada da década (1960/1970) confirmavam traços

fundamentais da estética pós-tropicalista. (ANDRADE, 2005, p.211)

O interesse em pontuar na obra de Chacal a distensão da palavra poética enquanto

uma reação resultante do processo desestabilizador da tradição na sociedade de consumo é

também nosso objetivo. Sabe-se que a poesia é uma prática simbólica atravessada pela

memória coletiva que, em momentos de crise, como o dos anos de 1960/1970, da sociedade

brasileira de capitalismo tardio e periférico, pode aflorar em sobressaltos bruscos, alimentada

por conflitos que interagem entre si e se sobrepõem. Concebemos essa palavra artística como

uma reconfiguração visceral e abrupta de si, como a de um corpo que se debate em

convulsões febris para sobreviver.

Na era do consumo, a tentativa de traçar uma separação entre os suportes de

produção e divulgação de uma chamada arte comercial e os de uma outra, que conserva a

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tradição, está cada vez mais fadada ao fracasso. E também, cada vez mais, os espaços fora do

sistema hegemônico são apenas gestos (infinitamente válidos) que tornam sua lógica visível

para provocar inquietações. A própria tarefa de separar parece temerária, pois um corte rígido

pode apenas classificar esses suportes superficialmente; análises mais aprofundadas sempre

nos levarão à valorização do trânsito e da diversidade dos meios pelos quais temos acesso à

arte.

E a tradição vem, desde as vanguardas, sendo questionada como a própria natureza

da arte, do artista e do escritor geniais, que deixam de ser dogmas para terem seus papéis

sociais confrontados. Mas, como afirma Lopes (1994), o problema da legitimação em

literatura vem desde a crise da oposição entre razão e mito, no século XVIII. Haveria, a partir

daí, uma duplicidade na atitude moderna em relação ao conhecimento; a curiosidade e o terror

do Dr. Fausto, de Goethe. Se Deus não é mais o mediador absoluto, resta ao homem um novo

modo de legitimação do conhecimento; a realização científica e seus métodos e processos de

verificação seriam novas formas de legitimar.

Mas se todo ponto de vista é arbitrário, “a verdade não resulta da adequação de uma

proposição a um objeto, mas do jogo de diferenças entre as proposições” (LOPES, 1994,

p.44). Fica então a instabilidade dos valores, os jogos nietzscheanos de força e poder. A

literatura vai explorar esses mecanismos de uma forma privilegiada, por poder incorporar em

seu próprio espaço/discurso essa multiplicidade de vozes e os conflitos de uma realidade

fluida e mutável, e ela mesma não será mais um reduto isolado em meio a tudo isso.

E parte desse processo de incorporação consiste na ampliação dos espaços de

divulgação/circulação do texto poético, como propôs Chacal e o grupo da poesia marginal,

como um gesto que contribui para o enfrentamento da massificação pelo poder, oportunizando

contraposições e disponibilizando o acesso a uma maior diversidade de construções

imagéticas pela palavra. Hoje, a poesia não está somente nos livros ou na voz do poeta; o

corpo está cada vez mais presente em instalações e trabalhos performáticos e as telas servem

de canal para o texto poético. As publicações via internet tornam a veiculação dos textos

independente do crivo da academia, que se baseia, sobretudo, na relação da produção do autor

com a tradição como critério para estabelecer o valor da obra. E alguns escritores, por não se

preocuparem em evidenciar essa relação, e por ela não ser então reconhecida de imediato,

como em Chacal, acabam não sendo valorizados como merecem.

19

E essa sua palavra em ação atualizaria também, através do corpo, da atitude, o

sentido da arte enquanto eterna irreverência criadora do ser humano, que perscruta em seu

tempo/espaço estratégias e táticas para desestruturar raciocínios e práticas dominantes,

desvelando novas trilhas do pensamento, criando novos passos e formatos para a expressão.

Sabemos que essa relação com o corpo é uma marca da arte na contemporaneidade nos cinco

continentes, o que foi demonstrado em profundidade por Veneroso (2012), quando ela

trabalha com a visualidade da escrita e com a relação entre as artes visuais e poesia. Mas essa

conexão torna-se imediatamente evidente também na arte brasileira, se nos lembramos de

produções mais próximas dos anos de 1970, como os Parangolés tropicalistas de Hélio

Oiticica6, ou ainda os mantos cuidadosamente bordados por Artur Bispo do Rosário

7, em que,

em ambos, a vestimenta guarda uma estreita similaridade com a ideia de abrigo, hábito, ou

costume no qual a cultura e a experiência de vida se articulam como produto de códigos,

comportamentos e significados vestidos e praticados pelos corpos e pelas palavras em seus

deslocamentos.

Na obra de Chacal observamos também essa relação de forma rica e criativa; a

espontaneidade e o desapreço aparente pela tradição é uma tática de que o autor se utiliza para

propor um projeto estético afinado com os movimentos de contracultura da década de 1970,

que apresentava exatamente o desejo de reoxigenar a arte em favor de uma experimentação

mais livre, que fragilizasse as bases de uma arte reconhecida como artefato, para propor

sinapses momentâneas e tensas com o tempo da arte da sociedade de consumo. Como em

curtos-circuitos entre a produção de massa, a tradição e a contracultura, ele critica a postura

burguesa de transformar a arte em consumismo, usando recursos da própria linguagem

midiática, como os cortes bruscos da sintaxe, a síntese, a rapidez e o simultaneísmo, o que

poderemos ver também no texto de Hélio Oiticica abaixo, que é transcrito por Paulo de

Andrade em artigo já citado aqui:

6 Hélio Oiticica, RJ (1937-1980), pintor, escultor, artista performático anarquista, cuja obra inovadora é

reconhecida no Brasil, EUA e Europa. Propôs experiências sensoriais, junto com a amiga e também artista

plástica, renomada professora universitária, Lygia Clark. A partir de 1967, usaram processos estimulantes para

buscar, no intelecto e nos comportamentos, respostas além de condicionamentos éticos e estéticos. 7 Artur Bispo, sergipano nascido em 1909, artista vanguardista genial internacionalmente reconhecido, dado

como louco esquizofrênico, foi internado como indigente no Hospital Pedro II no Rio de Janeiro, onde morreu,

em 1989. Bordava zelosamente capas e mantos, usando materiais talvez tão descartáveis quanto ele na sociedade

de consumo.

20

Pintura passou a ser o pet da burguesia conservadora

Cachorro bombom e pintura tapete

cortina ir ao museu à madison vernisagens

simpósios exposições ões ões

coisas inventadas pra dar lugar aos

fracos talentos não inventivos

(OITICICA apud ANDRADE, 2005, p.209)

Esse uso irreverente faz parte dos significados socioculturais dos integrantes da

contracultura, que vão experimentar outras formas de trabalhar com a tradição, mediada agora

pelo instante, que revela, como num flash instantâneo, o passado e a memória, passando pelo

sensorial e involuntário, como as máscaras da artista plástica Lygia Clark, que colocavam o

corpo do espectador participando do objeto artístico. Paulo Andrade diz da importância do

comportamento, do gesto, do instinto e do corpo na elaboração performática da arte dos anos

1970. E todos esses elementos estão esteticamente construídos nos textos de Chacal, que

podem ser pensados, portanto, como preciosa revelação de uma memória coletiva, entendida

aqui como nos propõe Silverstone (2002):

É onde os fios privados do passado se entrelaçam no tecido público, oferecendo uma

visão alternativa às versões oficiais da academia e do arquivo. Essas memórias

inauguram outros textos, não menos históricos que os primeiros, mas, não obstante,

outros. Elas emergem do popular e do pessoal e são o produto de nossos próprios

tempos. Na fluidez de tais memórias, o passado surge como uma realidade

complexa, e não singular; e, como outros já disseram, a pluralidade da memória é,

ela mesma, prova da pluralidade da realidade. (SILVERSTONE, 2002, p.233)

Os elementos de pertencimento e coesão social funcionam em processo de contínua

negociação com as memórias individuais, que estão sempre se manifestando, além mesmo do

silêncio imposto pela ditadura militar dos anos 1970. Portanto, analisar a rebeldia corporal da

contracultura como uma tática desestruturadora do poder de controle ditatorial torna-se

instigante. Como na teoria dos passos perdidos de Certeau (1999), o deslocamento, o sair do

lugar estabelecido enquanto uma prática transgressora é elemento da própria enunciação. Se

vamos ler a poesia de Chacal como uma revisão irreverente de uma memória coletiva,

observaremos que vários tabus orquestrados pela memória oficial durante a repressão serão

vilipendiados, e o controle do corpo para vigiar e punir é o primeiro deles.

Pensando nessas relações, torna-se necessário discutir o próprio sentido do que se

constituiu “Poesia Marginal”, já que o termo passou a ter outras abordagens posteriormente, o

que nos obriga a rever a terminologia, verificando pontos de interseção, contatos e fricções

21

entre os usos feitos pela expressão “marginal” na década de 1970 e outros usos posteriores até

agora, no século XXI. Até mesmo a utilização do termo para se referir aos poetas do

mimeógrafo traz controvérsias, porque há críticos que discordam da inclusão de algum nome

na lista dos poetas marginais, refutando a colocação desse nome no grupo, por acharem sua

poesia mais elaborada que a da maioria dos poetas daquela geração. Ser poeta marginal é

então indesejável, o adjetivo é depreciativo? Ou descreve um conjunto de traços que já podem

ser definidos pela história do movimento, através de afinidades estilísticas, de opções

estéticas, de posições e ações políticas? Acreditamos que pensar no termo como uma

categoria que deve ficar subordinada ao tempo específico em que foi gerada, anos de 1970, é

mais coerente, uma vez que soaria equivocado, por exemplo, chamarmos de poeta marginal,

hoje, um professor universitário cuja obra poética é elogiada pela academia.

Para discorrer sobre a “poesia marginal”, devemos primeiramente fazer algumas

reflexões para não sermos levados a cometer equívocos. Se com o adjetivo pensamos em

jovens poetas que, na década de 1970, fizeram da vida uma experiência poética, e que, através

de uma linguagem coloquial, repleta de ironias e brincadeiras irreverentes, com temas ligados

ao cotidiano, às sensações e vivências libertárias, criticavam o consumismo e o capitalismo

predador, e propunham uma forma alternativa de produzir, distribuir e ler poesia, estamos

usando o sentido mais comum do termo. Mas podemos também pensar em uma poesia que

está à margem da história da literatura oficial, dos manuais didáticos, e nesse sentido, há uma

imprecisão também, uma vez que essa história se modifica em função da crítica, e autores que

em seu tempo não foram suficientemente valorizados, podem adquirir notoriedade a partir de

uma nova abordagem, como Sousândrade (Maranhão, 1833-1902) ou Pedro Kilkerry (Bahia,

1855-1917), por exemplo; e outros, que receberam atenção da crítica no momento de sua

publicação, podem, mais tarde, ser pouco lembrados, como Guilherme de Almeida (São Paulo

1890-1969).

Mas ser “poeta marginal”, para os escritores da década de 1970, significava, além

disso, um intento deliberado de atuar à margem da produção editorial. A tiragem era mínima,

a concepção, criação, feitura do objeto e a comercialização eram independentes. Mas hoje,

vemos pipocarem pelo país várias pequenas editoras, com edições pagas por seus autores,

escritores desconhecidos, desinteressantes economicamente, que também cuidam de todos os

detalhes da editoração, e, da mesma forma, mantêm uma publicação e distribuição à margem

das grandes livrarias e dos comentários acadêmicos, sem que isso os faça marginais, como por

22

exemplo, Código Editora, em Belo Horizonte, Aldrava Letras e Artes em Mariana, ou ainda

Lamparina Editora, no Rio de Janeiro, entre outras.

E há ainda a produção poética de autores que estão em situação de marginalidade

social e que residem em regiões de periferia nos grandes centros urbanos. Em 2008, Érica

Peçanha publicou Vozes marginais na literatura, em que trata de mobilizações de

afirmações culturais da periferia de São Paulo, fazendo análise da revista independente Caros

Amigos, resultado de sua pesquisa no programa de pós- graduação em Antropologia na USP.

E esse interesse pela voz, pela palavra e pela expressão em geral daquele que se declara à

margem da sociedade encontra muita repercussão no momento, tanto na grande mídia, quanto

na academia. Mas as perspectivas agora são outras, não mais aquela do intelectual orgânico

gramsciano da esquerda dos anos de 1960, que queria “dar a voz a”, mas a que ajuda a

construir espaços, ou a que oferece espaços glamourizados para que ela se dê, investida muito

comum na mídia, o que pode conduzir ao esvaziamento da discussão sobre essa complexa

questão, como aponta Santos (2010).

Por outro lado, ajudando a construir espaços a esse frutífero debate, em Belo

Horizonte, na PUC (unidade São Gabriel), em 18/09 de 2012, Elisa Rezende, então

coordenadora do curso de Comunicação da mesma Faculdade, proferiu a conferência “A

periferia como voz emergente,” dando abertura à Quarta Semana de Arte e Política, que

contou com a exposição de trabalhos artísticos, shows e oficinas, que extrapolaram os muros

da universidade e ocuparam também a rua. Rezende afirma abaixo, muito em consonância

com o pensamento de Doreen Massey (2008), autora que reconhece o espaço como “produto

de inter-relações, (...) baseado na existência da pluralidade” (p.29).

Os espaços públicos hoje afastam as pessoas por estarem abandonados ou

monumentalizados. Isso significa que a cidade, lugar primordial onde se travam

encontros, deixa de ter essa função. Por outro lado, nós percebemos a formação de

outros territórios que surgem em torno da palavra ocupar, e chamam a atenção para

essas relações entre o centro e a periferia. (O Tempo, 18/9/2012)

Também ocupando as ruas e ressignificando-as enquanto espaço primeiro de

convivência e cultura, em um período nebuloso, quando qualquer aglomeração era alvo de

suspeita e repressão, em desfiles, com estandartes poemas, o grupo marginal dos anos de 1970

promovia as Artimanhas, performances teatrais, musicais e poéticas coletivas. E Chacal

mantém há vinte anos o Cep 20000, espaço de experimentação poética aberto, onde escritores,

23

músicos, atores e aspirantes encontram um lugar à margem dos espaços hegemônicos para o

exercício de seu ofício, formando lá artistas expressivos e talentosos, como, por exemplo,

Michel Melamed (2005), ator/autor da intrigante e inusitada obra/espetáculo, Regurgitofagia,

entre outros.

Como podemos notar, devemos estar atentos ao significado de “poesia marginal”

quando trabalhamos com o termo, já que podemos estar falando de propostas distintas, que

muitas vezes se cruzam. Se enfocamos a questão editorial para falar dos anos de 1970, estar

“à margem” significava autonomia do artista na produção e distribuição do objeto livro,

significava confeccionar manualmente, de forma rudimentar, imprimindo, encadernando e

comercializando seus próprios poemas. Era de uma opção de ordem ideológica também.

Assim como no movimento beat norte-americano, anos 1950, e o hippie, mais universal, nos

anos de 1960, o jovem queria sair do sistema, ter uma vida fora do consumismo do mundo

capitalista. Esses poetas marginais também queriam construir uma arte alternativa, a partir do

espaço de dentro da cultura, já que os artistas eram jovens de classe média universitária. Mas

até essa marca ideológica pode ser relativizada, uma vez que os próprios poetas divergiam

entre si no entendimento dessas questões. Observem-se depoimentos de alguns deles sobre o

assunto, publicados no livro O que é poesia marginal?, escrito por Mattoso (1981),

considerado por alguns como também “ marginal”. O primeiro depoimento é do poeta é

Afonso Henriques Neto, o segundo, de um integrante do grupo carioca Folha de Rosto, não

nomeado por Mattoso (1981), e o terceiro, Eudoro Augusto:

1- Entendo que o livro deve ser transado pelo autor em todas as suas etapas,

transformando-se assim em um objeto artesanal, no sentido de algo que traga a

marca do artista, ou seja: o poeta deve estar fora da república do poder.

2- Tem muita gente que acha que publicar dessa maneira é uma passagem até

ele conseguir ganhar um nominho e chegar a uma grande editora. Não acho isso, eu

acho que o passo adiante dessas publicações é a criação de cooperativas, dessas

próprias pessoas.

3- Sendo poeta, ser ou não ser marginal. Há quem diga que não existe escolha.

Mas, perdido o acesso às vias de trânsito tradicional (o livro assumido

comercialmente pela editora, exposto e vendido em livrarias, reconhecido por

colunas e suplementos), o poeta de hoje enfrenta e tem que superar, a sua condição

de marginalidade. (...) Mesmo porque, sejamos óbvios e realistas, a vontade de

escrever envolve muito da necessidade de ser lido. (MATTOSO, 1981, p.76-77)

Como podemos notar, há três opiniões distintas sobre a relação entre os poetas e as

editoras: o primeiro tem uma postura à margem por motivos ideológicos, ou seja, faz uma

24

crítica ao poder do sistema capitalista, em que os editores seriam representantes, e coloca o

poeta como aquele que deveria estar fora desse sistema. O segundo critica os colegas que

estão à margem por puro oportunismo, marcando a presença e a vez de entrar, e faz uma

proposta concreta, a criação de cooperativas de autores. E o terceiro já coloca a marginalidade

como uma imposição do sistema, a qual ele deseja superar. Vimos, portanto, que a

homogeneidade passava longe das margens. Há ainda uma curiosidade revelada por Mattoso

(1981), no texto acima citado, que expõe um “centro” de poder investindo na “margem”,

fazendo-a oscilar, o que pode acontecer outras vezes, também em sentido inverso. O poeta

marginal Ulisses Tavares “cedeu” seus poemas a um personagem, também poeta, de uma

novela da Rede Globo na época, O amor é nosso, e passou a receber por isso um bom direito

autoral, nada compatível com a Pindaíba, nome da revista alternativa da qual participava.

A poesia dos anos 1970 estaria então, à margem, por três razões principais: por não

fazer parte do circuito comercial de produção e distribuição, por não ser acadêmica, ou seja,

por não almejar uma aceitação dos críticos dentro das universidades, e por trabalhar com

várias linguagens artísticas, sem que houvesse margens limitando-as, ou seja, pretendiam uma

interação e uma realimentação constante entre a música, o cinema, a poesia, o palco e as artes

visuais, proposta que segue um caminho já começado pelo experimentalismo e pelo

“verbivocovisual” dos irmãos Campos e Décio Pignatari no “Plano Piloto para a Poesia

Concreta”, de 1958, cuja ideia chave está em Maiakovski: “sem forma revolucionária não há

arte revolucionária”.

Mas, se atentarmos também para as relações entre essa poesia marginal e as

principais propostas estéticas das vanguardas, poderemos enxergar várias outras intersecções,

que estão compondo a linguagem, o espaço e o tempo na obra de Chacal. A mais imediata é o

Dadaísmo, em função do humor e da atitude dessacralizadora da arte, que tem como intento

trazê-la para o cotidiano, para a rua, e torná-la uma construção que denuncie a lógica perversa

do mercado. Mas o Surrealismo se torna muito evidente também quando pensamos na

abordagem de Floriano Martins em livro organizado por Guinsburg e Leirner (1995), que

coloca o movimento surreal como uma herança da rebelião romântica, contra o conformismo,

o autoritarismo e a servidão intelectual, e que propunha o questionamento perene da

linguagem e a incorporação do sonho enquanto revolução do inconsciente.

Sendo assim, ao analisar aqui a poesia de Chacal, além de reivindicar para ela um

papel de promissor diálogo com a tradição modernista do séc. XX, é proposto também

25

pensarmos nela como um importante trabalho que enriquece essa tradição, entendida da forma

como propõe Compagnon (2010a):

(...) sistema sincrônico dos textos literários, sistema sempre em movimento,

recompondo-se à medida que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um

rearranjo da tradição como totalidade (e modifica, ao mesmo tempo, o sentido e o

valor de cada obra pertencente à tradição.) (COMPAGNON, 2010a , p.34).

A ideia de rearranjo da tradição que essa compreensão, baseada no texto “The

tradition and the individual talent”, de Eliot, provoca, inclui a discussão da modernidade

como um constante deslocamento entre o centro e a margem / periferia, entre o novo e o

tradicional, e uma reflexão sobre a própria concepção de valor estético, de cânone, ou

originalidade.

Em “A estética à prova da reciclagem cultural”, releitura que Moser (2007) faz dos

mecanismos de repetição e transformação enquanto um gesto reciclador dos bens artísticos,

ele redefine e ajusta a experiência estética da modernidade a partir de novos conceitos e

sensibilidades, como a recepção, a cultura de massa e as novas lógicas de (re)produção;

pastiche, paródia, plágio, reescritura, recriação e reconversão. A estética seria uma

disciplina que estaria sendo reconfigurada a reboque das experiências sensoriais da arte

contemporânea que incluem um canibalismo cultural de origens diversas e os impactos das

novas tecnologias que transformam radicalmente as artes. A estética da reciclagem opera

refuncionando, deslocando, retomando e incorporando, não sem a tensão e o conflito de quem

desafia a propriedade e as hierarquias.

Esses recursos são usados amplamente por Chacal e subvertem, através deles, as

noções de tradição e de ruptura, além do que foi proposto por Otavio Paz (2013), pois esses

limites encontram-se imprecisos e as evidências de identificação de um modelo ou de uma

cópia não podem mais ser localizadas. A performance, como um gesto que (re) incorpora a

tradição ocidental desde as formas pré-literárias, está cada vez mais presente na modernidade;

obras performáticas, como a estudada aqui, vão requerer uma crítica que deixa a pretensão de

verdade ou universalidade, já que a tradição não seria uma herança passível de ser definida ou

fixada. E os estudos literários, para darem conta de obras que denunciam a instabilidade dos

processos de legitimação, não podem se subordinar a uma precisão científica; devem, no

entanto, passar a priorizar o funcionamento da linguagem literária em suas relações dinâmicas

26

com os contextos culturais e suas vozes em movimento constante entre o centro e as margens,

entre a escrita e o gesto, entre o corpo e a palavra.

Estudar textos de artistas como ele, que reinstauram conceitos e estéticas, reciclando

propostas de tempos e espaços diferentes, é atual e necessário, já que através de sua obra

podemos rever na arte da modernidade um desejo permanente de valorização da imaginação

coletiva através de uma palavra que é também atitude. Perseguiremos analisar, ao longo dos

três capítulos desse trabalho, como essa discussão está posta na obra de Chacal, procurando

demonstrar que essa poesia tem uma relação visceral com o corpo.

No capítulo 1, trataremos principalmente das situações históricas e culturais que

envolvem essa questão corporal, inserindo o movimento beat e a poesia marginal na

modernidade como movimentos que levaram essa ideia como forma de rebelião ao

desenvolvimentismo, para, no capítulo 2, discutir como a palavra se estabelece com uma

imagem, um corpo muito próprio; e para, no capítulo 3, mostrar como essa poesia é

performática, traduzindo-se em voz, gesto e movimentos nos espaços físico e cultural.

Para cumprir essa meta, no primeiro capítulo, “Poesia e Margens do Corpo”,

trabalharemos com os conceitos de modernidade, a fim de situar a obra do autor nesse

contexto. Faremos a revisão das ideias de tradição e ruptura à luz das discussões propostas por

Paz (2013), e de paradoxo e contradição, pensando na dialética estabelecida por Berman

(1986) para evocar o período. Ambos raciocínios instauram uma versão muito mais dinâmica

e múltipla para o moderno, diferente da lógica histórica retilínea que uniformiza o tempo em

uma sequência de fatos enquadrados segundo o objetivo de uma análise. O passado habita no

presente e se irrompe de várias maneiras, posturas, hábitos corporais e códigos. A poesia do

autor em foco joga com essas incidências, revelando uma tensão própria do moderno ao trazer

recorrências, incorporações não nomeadas e/ou descontinuidades.

Observaremos também que o termo “Modernismo” aparece no Brasil para nomear

um período da arte diferente do dos hispano-americanos, tão próximos geograficamente e

atravessados também pela mesma questão identitária, a de serem países colonizados. As

formas de interação com a cultura da metrópole seriam também modos de convivência do

“eu” com o “outro”, fruto dos contatos entre a civilização e a barbárie. Os processos de

formação desse imaginário coletivo cindido seriam matéria da constituição de uma postura

“estrábica” da produção centro-sul-americana. O adjetivo usado por Piglia (1991), indicando

o mesmo olhar em sentidos diferentes, instiga a pensar o lugar da literatura dos países

27

colonizados como uma criação à margem em relação àquela dos países europeus, e, por isso

mesmo, com um olhar mais abrangente, capaz de enxergar essa tradição de uma forma menos

centralizadora.

Como um movimento também instabilizador da cultura, os beats estão muito

presentes no trabalho de Chacal como uma resposta/atitude de irreverência de artistas que,

como ele se recusaram a aceitar o desenvolvimentismo moderno e uma ideia de progresso,

marcada, sobretudo, pelo controle de um corpo produtivo. Descrever como esses recursos

estão trabalhados e analisar seus resultados nos levará a identificar todo um conjunto do

imaginário beat, presente na obra de Chacal, sua relação com o corpo, a natureza e o sentido

da civilização ocidental às portas do terceiro milênio. Há uma irreverência brincalhona, que

não perde um esgar trágico, e apresenta uma palavra poética dissonante diante de um sistema

que anestesia os sentidos para controlar o corpo e estabelecer coercivamente seus limites de

ação e movimento no tempo e nos espaços. É de especial relevância estabelecermos um

paralelo entre a forma como o corpo foi tratado no período medieval e como passou a ser

visto e representado na modernidade, porque essas relações estão abordadas tanto na poesia

beat como em Chacal, e também na chamada poesia marginal dos anos 1970.

Há códigos, posturas e hábitos corporais que são construídos por padrões valorativos

ligados à lógica daquele que o poder ou a situação elegeram como aceitável ou recomendável.

Outros que, embora permaneçam fortemente, camuflados ou não, são tacitamente rejeitados e

configuram fator de exclusão ou de marginalização; mas a arte põe esses mecanismos em

suspensão, joga com eles, dando-lhes uma outra visibilidade. Rodrigues (1995 e 2008) nos

fornecerá dados importantes sobre o corpo no período medieval que continuam presentes na

modernidade, sendo que grande parte deles constituem hábitos, principalmente daquela

parcela da população economicamente desfavorecida, mas que seduzem e se tornam presença

constante no imaginário coletivo.

No capítulo dois, “A palavra e outras margens” pretende-se, através de um estudo da

poesia concreta, verificar em que medida as ideias contidas nos textos estão em sintonia com

os espaços criados pelos contornos dos versos no papel e com as imagens, com os

movimentos, os sons e suas conexões inusitadas com o corpo e a palavra. Ou seja, será

trabalhada a palavra enquanto corpo, sua matéria; som, e imagem, de maneira que, muitas

vezes, as noções de forma e conteúdo tornam-se interdependentes. O diálogo com a tradição

será verificado na medida em que nos poemas aparecem similaridades com o

“verbivocovisual” proposto pelos irmãos Campos no Plano Piloto para a poesia concreta.

28

O reconhecimento do grau em que se dá a presença da voz, e por extensão do próprio

corpo na linguagem utilizada pelo autor será de grande valor para relacionarmos os poemas

com as ideias e procedimentos, como o pastiche e a paródia, propostos por Oswald, em seu

manifesto antropófago, e sua valorização do imediato e do cotidiano na recomposição de uma

arte brasileira insólita, irreverente e compósita. Observaremos que nessas teorias

desenvolvidas em “Pau Brasil” e na “ Antropofagia” estão ideias que pretendiam uma

reelaboração da cultura brasileira e uma outra forma de enxergar a tradição. Para discutirmos

essas questões, o texto de Benedito Nunes (2011), que introduz o volume A utopia

antropofágica, de Oswald, e os estudos de Bakhtin (1993) sobre a cultura popular, seus ritos

e cultos, serão de especial relevância.

Os estudos de Perloff (2013) sobre as relações entre forma e conteúdo e a ideia de

construção poética como montagem, já trabalhadas por Benjamin (1985), expõem a

vulnerabilidade dos conceitos de autenticidade e artifício ou de modelo e cópia e trazem

novas luzes para repensarmos o movimento concreto e a poesia marginal como formas

criativas de recuperação das vanguardas europeias; ou retaguarda.

No capítulo três, “Poesia e performance” perseguiremos as marcas de uma

linguagem performática, desse corpo em movimento, e como as vozes da mídia se fazem

presentes nos textos, ao mesmo tempo em que dialogam com outros poetas e artistas dos fins

do séc. XX e com alguns que já anunciavam esses procedimentos no século XIX. Para isso, o

sentido do termo performance como linguagem, discutida por Cohen (2002) e o de

performance como um processo de transformação estabelecido no ato da recepção, proposto

por Zumthor (2007), serão muito esclarecedores.

O movimento tropicalista e suas raízes antropofágicas em processo de valorização da

multidentidade da cultura brasileira, como estão concebidos por Miranda (1997), relacionam-

se sobremaneira com a carnavalização bakhtiniana; o cômico, o riso e a festa. Assim,

verificaremos de que forma os três movimentos abordados nesse trabalho, antropofagia,

concretismo e cultura beat, estão dispostos nos textos de Chacal, relacionando-os a outras

forças constitutivas da poesia e da arte brasileira que vêm se delineando desde o movimento

tropicalista. Também será analisada a importância social, cultural e política do Centro de

Experimentação Poética (cep 20.000) dirigido por Chacal há vinte anos, como uma referência

para a constituição de uma linguagem performática no Brasil, e suas relações conceituais com

uma arte que está sendo gestada e proposta para o século XXI.

29

Fonte: FERRAZ, 2013, p.108-109

A imagem acima é capa de uma publicação do grupo Nuvem Cigana, em 1976, feita

com a técnica da colagem pelos artistas integrantes; Cláudio Lobato e Ronaldo Gorini. Eles

trabalharam com a noção de simulacro, desmistificando a poesia, para propor, com o

“Almanaque”, uma arte mais popular e acessível.

30

2 MARGENS DO CORPO

O pudor e a culpa efetivamente começaram a se ligar ao corpo e à sua visão,

expressando o desprezo pelo carnal que, durante os séculos seguintes, guiaria ainda

mais intensamente a sensibilidade do Ocidente. Entre as grandes revoluções

culturais ligadas ao triunfo do cristianismo e do capitalismo, uma das mais

importantes talvez tenha sido a que se refere ao corpo. (RODRIGUES, 2008, p.160-

161)

2.1 Corpos e dominação

A sociedade ocidental cristã sempre colocou o corpo e a mente como duas partes

opostas do ser humano. Essa visão compartimentada é empobrecedora, pois impossibilita

enxergar o homem de forma mais complexa, e aqueles que propuseram ultrapassar as margens

estabelecidas por essa dicotomia rasa, como Walt Whitman (USA 1819-1892), Allen

Ginsberg (USA 1926-1997), poeta da geração beat dos EUA nos anos de 1950, e Chacal, um

dos chamados “poetas marginais” o Brasil dos anos de 1970, perceberam a limitação desse

entendimento. Há nesse dogma uma intenção explícita de controle do corpo e da feitura da

imagem que se constrói para ele: se a mente é a parte sublime do homem, que se aproxima do

divino, o corpo é a carne, a pobre finitude, o instinto abjeto que deve ser cerceado para que o

espírito possa ascender a Deus.

Ao tecer relações tão estreitas entre artistas de épocas e lugares distintos,

concordamos com o escritor, psicólogo, neurologista e professor, expulso de Harvard, o beat

Timothy Leary (USA 1920- 1996) que, no prefácio do livro Contracultura através dos

Tempos, do mito de Prometeu à era digital, dos críticos culturais Ken Goffman e Dan Joy,

diz da perenidade do fenômeno contracultural. Interessa-nos neste capítulo demonstrar como

esse fenômeno se constitui desde o século XIX até o contexto do autor em foco, por acreditar

que a obra de Chacal se insere em uma produção literária que vai se afirmando, desde os

oitocentos, contra um positivismo que racionalmente quer estabelecer os limites entre o corpo

e a mente. Trabalharemos com autores e textos que desmancham, de alguma forma, esses

limites, expondo concepções e sensações em que não é mais possível estabelecer as margens

com segurança.

31

A contracultura, em vários momentos, resgatou valores e imagens do corpo que são

anteriores à era capitalista. Em meados de século XX, afirmou-se também como um

movimento que se interessava pelo poder das ideias, das imagens e da expressão artística, não

por um poder político partidário ou pessoal. A partir desse entendimento da contracultura,

percebe-se que ela não possui forma ou liderança fixa e é tão velha quanto a civilização:

A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade

escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e

comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a

verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma

forma ou uma estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a

perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma

em outra e desaparece. (GOFFMAN; JOY, 2007, p.9)

Dessa forma, podemos pensar em alguns românticos e simbolistas, nos surrealistas8,

nas vanguardas artísticas europeias, nos movimentos socioculturais dos anos de 1950/60, e na

própria poesia marginal dos anos de 1970, que se empenharam na libertação dos corpos e da

imaginação diante de abnegações, como exemplos de contracultura. Tais posturas, cada uma

com sua especificidade histórica, seriam uma resposta, uma cobrança de expansão do que, no

Iluminismo, foi definido como direito democrático liberal.

Pensando nesse argumento, podemos nos lembrar de que Whitman foi muito

criticado e perseguido pelos moralistas do século XIX por explorar magistralmente a

completude do humano, em contraposição a essa limitada percepção do corpo e dos instintos

dos reacionários puritanos que o ofenderam e denegriram o valor de sua arte. Ele duvidava

desses limites convencionalmente colocados, que não se sustentam diante da complexidade da

experiência humana. A totalidade do ser via-se sempre dividida, como o próprio corpo entre

interdições, para o melhor domínio dos poderes exercidos sobre ele, como bem demonstra

Foucault (2000b) em Vigiar e Punir, quando aborda, no séc. XVIII, o nascimento de uma

mecânica de controle para um corpo útil e dócil como uma nova forma de dominação:

8 O surrealismo, entendido como “um desvio do verdadeiro caminho da vanguarda” (PERLOFF, 2013, p.109)

está em desacordo com as ideias originais trazidas por Floriano Martins (apud GUINSBERG, 1995) sobre o

movimento, que traz seu antagonismo em relação ao positivismo, e a ideia de sua permanência e continuidade

como um despertar que rompe com o conformismo, inclusive político, para buscar uma realidade sem limites,

“que requer do poeta um mergulho mais intenso nos abismos da criação”. Um surrealismo entendido como

centrado apenas no inconsciente do autor é equivocado, pois parte de uma idealização que não percebe o

trabalho intenso feito com recursos como a ambiguidade sintática e semântica e um viés muitas vezes irônico e

erótico que pode ou não estar ligado a uma filiação em suas relações dinâmicas com os fenômenos urbanos, com

a tradição e a ruptura, como desejamos enfatizar aqui.

32

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma

manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha e o recompõe.

Uma anatomia política que é também igualmente uma mecânica do poder está

nascendo. (FOUCAULT, 2000b, p.119)

Na Idade Moderna, e mais acentuadamente a partir do advento do capitalismo da era

industrial, o tempo se converterá em mercadoria; a famosa mais-valia de Karl Marx nada mais

é que a exploração dos corpos de uns tantos em favor de uma minoria privilegiada e poderosa.

E a arte entenderá esse mecanismo melhor que qualquer estudo lógico porque chegará até

suas variadas nuances e contradições, muito além das dicotomias rasas, pois enxerga um

poder também constituído nas lutas cotidianas, através de engrenagens e discursos produzidos

no corpo social, não somente pelo Estado, mas por redes “microfísicas” no interior dos

espaços vividos, permeando as relações e os saberes. Essa é outra lição de Foucault (2000a),

que, em Microfísica do poder, aborda os níveis elementares das configurações e dos espaços

institucionais que, eficazmente, articulam seus poderes em pequenas e variadas áreas de

atuação: na medicina e psiquiatria, na justiça, na geografia e arquitetura, e na educação, onde

intelectuais e técnicos, no exercício prático de suas atribuições, operam capilarmente,

anonimamente, penetrando (muitas vezes através das brechas do não dito), sem nenhum ponto

específico, para produzir objetos, espaços e verdades que têm como alvo a fabricação de

corpos para o capital.

Poderemos ler na poesia de Whitman, na do beat Allen Ginsberg (2010b),

exemplificado aqui com o poema O Uivo, e em especial, em Chacal, na obra reunida,

Belvedere (2007), objeto deste estudo, a rebeldia das palavras de sujeitos que se deslocam por

caminhos inexplorados, que burlam o entrelaçar dos pontos para romper com a lógica dessas

redes. Usam táticas de linguagem, recursos tão imprevistos que trazem à poesia outros passos,

outras vozes muitas vezes sufocadas, resíduos decantados nas trilhas do tempo, como na

teoria dos “passos perdidos” de De Certeau (1999). Nela, o original teórico da indisciplina,

demonstra como a rebeldia de deslocamentos espácio-temporais pode se apresentar no próprio

espaço da enunciação, através de operações linguísticas imprevistas, como o uso do

descontínuo e do fático, que condensam, fragmentam, dilatam e distorcem os sentidos

racionalmente produzidos, o que ele denomina “errância semântica”: “As figuras são gestos

dessa metamorfose estilística do espaço”. (CERTEAU, 1999, p.182).

33

Esses recursos são utilizados largamente por Chacal; como que processando gestos

semânticos impertinentes, desautomatiza a linguagem e traz uma representação de

deslocamentos irreverentes e transgressores, de corpos que vibram em movimentos

inusitados, revivendo uma experiência ancestral, como podemos ver no poema abaixo,

publicado em 1979, em Nariz Aniz:

Solo

não era dia. um bebê me acordou chorando. em torno

do choro, o cheiro estragado, cigarros, pedintes.

voltei a dormir. o dia não era, e sonhei pessoas novas

em sonho. som de guitarra, pivetes dançando. zazueira.

stop in.

já era dia. o corpo murrinhava contrariado. mudei a

camisa vagarosamente. e andei com quem sai. saí.

as ruas amanhecidas. se chamava Feira de Santana. a

feira botava as mangas de fora. descansei o cansaço.

cigarro entre barracas. laranja, melancias farejavam o ar.

cheirava bem o dia agora. o sol tilintava o frio da pele.

o sol vai esquentar me aquecer o excesso sujo. se quiser.

Ônibus feira-salvador 29/sábado, 6:00 de janeiro desse

ano enquanto a bahia se aproxima e as frutas recendem

(CHACAL, 2007, p.219)

Há em todo poema uma preocupação insistente em marcar o tempo e o espaço, mas

ela é posta de duas formas diferentes. Primeiramente, há um esforço em caracterizá-los

através das percepções captadas pelos sentidos; cheiros, sons e sensações da pele. Mas esses

dados são insuficientes, uma vez que as sensações não fornecem condições para mensurar e

estabelecer racionalmente o entorno e a marcação temporal; então o eu lírico se debate

paradoxalmente para fazê-lo: “não era dia” (verso 1), “dia não era” (verso 3), e, finalmente,

“já era dia” (verso 6).

Logo que o dia começa, vem a recusa do corpo em ser disciplinado, resoluto e útil:

“o corpo murrinhava contrariado” (verso 6), e com preguiça: “descansei o cansaço” (verso 9),

pecado capital, tanto para o cristianismo quanto para o capitalismo. Então, o eu lírico quer

mudar a camisa devagar (a roupa que o encobre e abriga? o costume? O hábito? ou tudo isso?)

e encena o que de fato faz: e “andei como quem sai, saí.” (verso 7) O poeta é um simulador do

real, e ele finge tão completamente que faz aflorar outro tempo e outro espaço no mesmo,

trazendo a contradição entre um mundo linear e cronologicamente traçado e outro, em que os

sentidos estão em primeiro plano e a vida frutifica a céu aberto. A senha para adentrar nesse

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segundo espaço-tempo é a feira, não aquela mapeada cartograficamente pelo conhecimento

racional, “Feira de Santana” (verso 8), mas aquele substantivo comum, espaço atávico, em

que tudo e todos (choro de bebê, pedintes, pivetes, cheiro estragado), sem exclusão,

participam e comungam do prazer e da festa (som de guitarra, pivetes dançando, zazueira), e

usufruem da gratuidade do calor e da luz solar que “vai esquentar o excesso sujo” (verso 12).

Essa sujeira não está localizada somente no corpo do poeta, mas envolve todo o ambiente, da

mesma forma que o cigarro e as frutas exalavam , ou personificadamente “farejavam o ar”

(verso 10).

Curiosamente, na segunda estrofe, todo esse clima onírico das sensações corporais se

desfaz abruptamente, para que o tempo e o espaço precisos e racionalmente postos se

coloquem: “ônibus feira-salvador 29/sábado, 6:00 de janeiro desse” (verso 13). Mas logo no

verso seguinte, a rebeldia da palavra poética consegue compor um outro espaço, intervalar,

um entrelugar no mar de nossa sociedade racionalmente esterilizadora da diversidade e da

imaginação; a criação, a poesia. A “bahia” (verso 14) não é aquele lugar na geografia dos

mapas, formatado pelas convenções cartográficas, mas o substantivo comum, feixe de terra

que sustenta tanto a comunhão dos seres em seu espaço, solo em que pisa, quanto o canto do

poeta, solo.

Em uma espécie de limbo, condição intermediária entre o sono e a vigília, o eu lírico

sonha “pessoas novas” (verso 3). Mas esse sonho não exclui o que normalmente descartamos

em nossa sociedade higienicamente segregadora: “choro, cheiro estragado, pedintes, pivetes”

(versos 2 e 4). A inclusão inusitada desses elementos, o tempo não marcado com a precisão

dos relógios, o espaço não linear e as sensações corporais colocadas em primeiro plano trazem

dados de uma outra sensibilidade, anterior à nossa, antes da dicotomia entre o sujeito e o

objeto, o público e o privado, os dejetos e a matéria, os adultos e as crianças, o real, o

conhecimento e a imaginação, o corpo e a mente e, principalmente, entre os indivíduos, que

compartilhavam de espaços coletivos e formavam um todo, um cosmo, e que hoje estão cada

vez solitários, solo.

Rodrigues (2008) faz uma análise antropológica das representações sociais do corpo

humano na cultura ocidental, dos fluxos que configuraram sensibilidades e mentalidades. Para

isso, faz um recorte estratégico do mundo medieval, por acreditar que a cultura capitalista e,

posteriormente, a cultura industrial, em seu intuito de modernização e higienização diante das

novas descobertas da medicina, voltaram-se contra os padrões de comportamento corporais

presentes no medievo. Especificamente a respeito do Brasil, o autor explica que, durante a

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colonização, Portugal e os portugueses que primeiramente aqui chegaram não estavam muito

em dia com o capitalismo internacional nascente. Ainda embebidos da cultura medieval,

imprimiram suas marcas na sensibilidade, nos hábitos e práticas de toda população,

especialmente nas classes populares, pois “conforme descemos na escala social, a diferença

entre a vida moderna e a medieval vai rapidamente diminuindo” (RODRIGUES, 2008, p.18).

Aqui, os desfavorecidos economicamente, os descendentes dos negros e índios,

escravizados e explorados, serão adversos a mudanças dos costumes que tentavam ser

implantadas, e os últimos a abandonar os padrões de comportamentos considerados pouco

higiênicos, como a mistura dos corpos de bichos, pessoas e das substâncias expelidas por eles,

que seguirão rechaçadas. Concepções mais modernas de assepsia e saúde irão implantar aos

poucos outras formas de intermediações entre os corpos e o ambiente, preocupadas,

sobretudo, com os limites entre o fora e o dentro, estabelecendo controles mais rígidos de

separação entre os seres, as matérias, e os espaços.

Em Higiene e Ilusão, Rodrigues (1995), já advertia que padrões antigos, fortemente

arraigados, permaneceriam ainda, por muitos séculos, como uma atitude, uma postura mais ou

menos inconsciente de rebeldia e preservação de uma identidade e um modo de viver

perdidos. Chacal, no poema Solo, estudado aqui, revive nessa feira quase medieval,

sensações corporais em que uma comunhão tão intensa com o ambiente e seus seres nos

remetem a um mundo, que embora seja o daqui, agora, é também o de um passado longínquo

que quer ser negado:

O corpo medieval nos oferece um referencial a partir do qual podemos entender esta

sensibilidade aos cheiros, aos contatos tácteis, ao prazer e ao desprazer, aos gostos:

trata-se de um outro corpo. De um corpo para o qual não existe a sensibilidade à

idéia que hoje temos de lixo- como algo em relação a que se deva tampar o nariz,

fechar os olhos, afastar o contacto táctil, responder com engulhos e cara-feias. Isso

que causa nojo e temor aos nossos corpos hoje, causava riso, familiaridade,

intimidade, à sensibilidade medieval. (RODRIGUES, 1995, p.35)

Mas, se bem antes, nas sociedades agrárias mais primitivas, era o tempo cíclico da

natureza que ditava a rotina das vidas, como estudamos em Mircea Eliade (1985); na

sociedade medieval, a igreja vai computar o tempo e os corpos em seus rituais; o sino da

alvorada, a hora da Ave Maria, o batismo, a primeira comunhão, o casamento e a extrema

unção. São concepções temporais diferentes, definidas nas práticas culturais que imprimem

nos corpos e nas relações entre eles e o espaço natural marcas indeléveis. E a poesia,

36

encarnando o atemporal do instante em que é criada, fala de marcas que vão sendo gravadas

na imaginação coletiva e em seu devir através de tempos e espaços diferentes, mas que ali,

naquele momento, apresenta outra imagem da experiência humana, outro real, e, como afirma

Octavio Paz em O arco e a Lira: “faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente”.

(1982, p 133)

2.2 Modernismos

A Literatura revela tensões humanas adiante e propõe reinvenções de ideias e

sensações às vezes perdidas no tempo, operando resistências a obviedades, recusando sempre

o imediatismo do discurso ideológico vigente, ou formas maniqueístas, muito bem marcadas e

unânimes de contraposição a ele. Esse princípio acaba recuperando práticas significantes que

foram marginalizadas pela hegemonia da cultura oficial europeia. Chacal e os participantes da

poesia marginal dos anos 1970 foram desvalorizados por muitos críticos de renome em função

de suas recusas; a começar pelo desapego a grandes projetos ou ambições, muito próprios do

espírito desenvolvimentista da modernidade, ou ao desprezo por um prestígio intelectual das

academias, também muito próprias da modernidade, que compartimentam os saberes para

melhor dominá-los. É uma atitude de rejeição a um sistema que não os aceitava.

Luiz Guilherme dos Santos Júnior (2014), ao fazer uma revisão da poesia marginal,

cita um texto de Fernanda de Medeiros, de 1998, em que ela arrola as críticas negativas

sofridas pela poesia marginal: Affonso Romano, Lixeteratura, Benedito Nunes,

Miserabilidade, Costa Lima, viagem egolátrica, Flora Sussekind, não exatamente literatura,

mas intimidade, confissão, e Dantas/Simon, veemente sentimento de desliteralização. Santos

Júnior (2014) concorda com Medeiros (1998) ao afirmar que os críticos citados ainda estariam

muito apegados aos princípios de literariedade propostos pelo formalismo russo, e que não é

dever da crítica a “barbarização” de uma estética através da imposição de um discurso.

Medeiros (1998), dialogando com Moriconi (1995), propõe seguir as relações de

amor e ódio pelos marginais para uma reflexão mais amadurecida, já que eles “passaram no

teste do tempo” (p.54), e traz questionamentos e algumas respostas muito interessantes: Por

que incomoda tanto o fato de os poetas se referirem às circunstâncias banais, imediatas, de um

37

corpo comunicante, do vivido? Se Cabral é considerado um ponto que é difícil ultrapassar (O

que fazer, depois de Cabral? (MORICONI, 1995, p.737), a literatura teria então uma linha

evolutiva, e a poesia marginal seria uma regressão? A poesia em si já é marginal, pois ela

opera com o desvio, a invenção e o estranhamento. O espaço individual, que os poetas

insistem em revelar, não seria exatamente a recriação de um confinamento que sufocava a

todos nos anos da ditadura? A proposta de uma liberdade corporal e a da linguagem, como o

baixo calão e o coloquialismo, não seriam, portanto, reações políticas inventivas, um outro

exercício de militância?

Eduardo José Tollendal (1986), em dissertação sobre a contracultura e a poesia

marginal, comenta que, desde a primeira instância de legitimação desse discurso, quando ele

ainda não havia sido batizado de marginal, em 1973, Affonso Romano de Sant’Anna

organizou a EXPOESIAS, gerando comentários do tipo: “Isso é poesia?”. Para pensar em

respostas menos preconceituosas que a pergunta, Tollendal (1986) recorre às funções da

linguagem, propostas por Jakobson, e à autonomia do signo poético como um desvio

semântico, em função de um novo eixo sintagmático, em que há uma outra unidade de

sentido, não uma cópia do real, ideias difundidas pelo círculo linguístico de Praga, em 1929.

O autor fala da necessidade de substituição do termo poesia para discurso poético, com o

objetivo de propor uma discussão de aspectos mais descritivos do texto poético, diminuindo

assim a ingerência absoluta dos critérios de valor. A velha questão da prioridade de ênfase no

estudo da forma ou do conteúdo para a análise do literário deve ser deslocada para se pensar

na própria estética do texto como um todo dialético, suas funções sociais e políticas, suas

capacidades comunicativas dentro do universo cultural.

Os poetas marginais seriam, nos anos de 1970, criticados por dois lados; pelos

professores da academia citados por Santos Júnior (2014), por estarem à margem do cânone

ao usarem linguagem e temas do cotidiano, e pela militância da esquerda na época, por não

possuírem um discurso politizado do CPC (Centro popular de cultura), ou não promoverem a

chamada poesia engajada aos projetos sociais da UNE, como os integrantes do grupo “Violão

de Rua”, a exemplo de Poemas para a Liberdade, de Moacyr Félix, publicado em 1962.

Mais de um século antes, com uma linguagem também muito simples, limpa de

adornos, clara, Whitman desconcertou, da mesma forma, o que se esperava de uma “poesia” e

a moralidade rígida e individualista do século XIX, para oferecer uma concepção cósmica de

um corpo universal e indivisível, que é vivo, feito de matéria que se renova e fecunda a vida

através da morte. Essas convicções do poeta não estariam, portanto, muito mais próximas,

38

como em Chacal, dos elementos da cultura popular medieval, de que nos falou Rodrigues

(1995, 2008) e de que nos fala Bakhtin (1993), que de um calvinismo ou presbiterianismo

protestante de seu momento histórico?

(...) entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos

órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto,

a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava

o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. (...) o baixo terra que dá a

vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo. (BAKHTIN, 1993, p.19)

E os valores culturalmente estabelecidos pelo ocidente para a parte de cima do corpo,

em oposição às de baixo (nada nobres) são colocados em xeque pela rebelião da poesia, e

saem pela voz do grande poeta norte-americano por palavras que os desafiam:

Através de mim as vozes proibidas,

Vozes dos sexos e dos desejos, vozes veladas e eu retiro o véu,

Vozes indecentes por mim esclarecidas e transfiguradas,

Não ponho os dedos sobre a boca,

Trato dos intestinos com a mesma delicadeza com que trato da cabeça ou do

[coração,

A cópula não é mais corrupta para mim do que a morte.

Acredito na carne e nos apetites,

Ver, ouvir, sentir, são milagres, e cada parte e fragmento de mim é um milagre.

Divino eu sou por dentro e por fora, e torno sagrado tudo aquilo que toco ou por que

[sou tocado,

(WHITMAN, 2000, p.46, tradução de André Cardoso)9

O próprio princípio da sensibilização do corpo, em Whitman (2000), já é bastante

inovador para o momento e lugar, e mesmo que ele não tenha trabalhado com o riso

carnavalizado do medievo, como nos ensina Bakhtin a respeito do período, somente a alegria

de festejar a vida, a sensação do divino corporalmente vivenciada, do maravilhoso natural, a

visão da morte como complementar à vida, e a busca do prazer corporal sem o limite estreito

do pecado e da rigidez moral, já trazem uma concepção de vida bem diferente das etiquetas

da decência puritana da época.

9 Through me forbidden voices / Voices of sexes and lusts, voices veil’d and I remove the veil / Voices indecent

by me clarified and transfigur’d / I do not press my fingers across my mouth, / I keep as delicate around the

bowels as around the head and heart, / Copulation is no more rank to me than death is / I believe in the flesh

and the appetites, / Seeing, hearing, feeling, are miracles, and each part and tag of me is a miracle. / Divine am

I inside and out, and I make holy whatever I touch or am touch’d from, (WHITMAN, 2000, p.46)

39

Veja-se como Chacal também trabalha com esse sentido do prazer sexual como

responsável pela continuidade da vida, um jogo em que esse prazer se aproxima da dor, em

que uma visão escatológica do corpo como matéria a ser decomposta e disseminada em nova

vida não perde o tom de uma alegria irreverente que imprime à existência um clima lúdico, de

risco, como o próprio jogo amoroso; e irônico, descarta completamente a inocência ou

qualquer forma de pureza ingênua:

Ninguém é inocente

no doce regato...

...esvoaça a libélula...

...o colibri pipila...

...beija flor o beija flor...

...bzzz besouro bzzz...

...a minhoca se penteia...

...nada o peixinho...

... que clima inefável...

-ah !!!

-eh!!!

-ah !!!

-êpa !!! que som tenebroso é esse?!

-é o lobo mau comendo a chapeuzinho vermelho!

reparando bem:

!!! o peixe abocanha a minhoca!!!

!!! o colibri chupa o tutano do besouro!!!

!!! o beija-flor deflora a libélula !!!

-oh!!!

-ih!!!

-oh!!!

- que som mavioso é esse???

- é chapeuzinho vermelho gozando...

(CHACAL, 2007, p. 64-65)

Um conto de fadas, com origens também medievais no séc. XIV, criado com uma

forte conotação sexual, nada apropriada às crianças, didaticamente modificado e direcionado a

elas pelos Irmãos Grimm no séc. XVII, foi colocado aqui demonstrando o quanto cada

imagem pode ser concebida de formas tão díspares, dependendo das lentes de quem a vê. A

paródia feita ao conto nos remete ao sensualismo medieval e aos corpos censurados ao mesmo

tempo em que traz uma crítica brincalhona ao famoso locus amoenus dos árcades e

românticos. As interjeições, por exemplo, serão tenebrosas (verso 12), ou maviosas (verso

40

21), se ouvidas por quem as percebe ingenuamente, ou por quem está reparando bem (verso

14).

É que a poesia faz os sentidos vagarem pelo tempo, voltarem a um mesmo

modificado, saltarem e rodarem em ciclos, agrupando realidades múltiplas. O tempo na poesia

possui, muitas vezes, uma inconsistência que o afasta do cronológico e da lógica útil, da

precisão, para trabalhar com uma consciência mais onírica, que vem de longe e se aproxima

dessa visão cósmica da relação homem/ natureza/ instinto que enfatizamos aqui.

Alfredo Bosi (2004) ressalta o quanto essa rebelião ao utilitário de que a poesia é

capaz a afasta do discurso ideológico do capital, trazendo em si mesma um senso

demasiadamente libertário, atemporal, ao mesmo tempo em que se posiciona como um

discurso eminentemente humanista e histórico. Essa aparente contradição é a sua marca, sua

vocação:

O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis. Na verdade,

é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente.

Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais

vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma

outra existência, mais livre e mais bela. (BOSI, 2004, p.226)

Essa mesma vocação que aparece em Whitman (2000) e em Chacal (2007) foi

também trabalhada pelos poetas beats no final da década de 50, quando os EUA saíam à

frente como a grande nação do ocidente diante de uma Europa esfrangalhada pelas guerras.

Um excesso de confiança numa economia engrandecida também pela indústria e comércio

bélico, o maravilhoso american way of life seria o tom da maioria que, além de aplaudir a

guerra fria e o macartismo, concebia o liberalismo capitalista como a única forma viável de

organização econômica e social. Mas a poesia é a palavra da dissensão, da inquietação, e traz

e faz, como nos ensina Octavio Paz (1982) em O arco e a Lira, o que escapa, o que vai além,

o que não é daqui e agora sendo aqui e agora, essa eterna pulsão de vida e morte que faz o

humano ser aventura e desejo.

Quando Allen Ginsberg, em 1955, lê a primeira parte do poema Uivo, na Galeria Six

em San Francisco, provoca aclamações e escândalos, não a indiferença. Era um deslocar do

eixo racional que incomodava porque expunha o que todos queriam não enxergar; a angústia

existencial diante do vazio da civilização “moderna”, e a consequente meia-volta para a outra

parte, aquela recortada pela moral cristã para ser censurada. Surge então o corpo por inteiro;

41

os instintos, o gozo e a dor, a intuição sensitiva levada a êxtase pelo uso das drogas, a procura

insaciável pelo prazer.

A publicação do poema no ano seguinte pelo corajoso editor Ferlinghetti (que foi,

inclusive, o primeiro a editar nos EUA o surrealista francês maldito, Artaud e sua exaltação à

cultura primitiva e selvagem) vai gerar um processo judicial por pornografia contra ele, mas

sua divulgação e a do movimento beat em função do mesmo processo será enorme. Não

podemos deixar de associar tais repercussões à obra de Whitman, que sofreu acusações bem

semelhantes praticamente um século antes. E podemos concluir então que a passagem de cem

anos não trouxe tantas e tão significativas alterações nas convicções morais dos norte-

americanos...

E já na primeira metade do séc. XX, as vanguardas artísticas europeias proporiam

liberdade de criação em relação aos clássicos, expondo um sentimento de saturação, um

desejo de sair do caminho repetido. Podemos ver, tanto nos manifestos vanguardistas quanto

em ambos poetas norte-americanos estudados aqui, essa mesma intenção; reagir aos padrões

de comportamento em relação às concepções de sentido do próprio ser corporal posto e

referendado no espaço, e é esse um ponto comum no que consideramos arte moderna. Mas o

termo aqui não pode ter o sentido específico que usamos no Brasil para conceituar a produção

pós-vanguardas e pós-semana de arte moderna de São Paulo em 1922, já que Walt Whitman,

por exemplo, dezenas de anos antes (a primeira edição de Leaves of Grass se deu em 1855), já

inventava o verso livre e trabalhava com temas e formas que normalmente são atribuídas aos

modernistas aqui.

E ele não foi o único. Na língua hispânica, também no século XIX, temos outros

autores que vão trazer mudanças substanciais, tanto na forma quanto no conteúdo. Rubén

Dario (Nicarágua, 1867-1916) e o cubano José Martí (1853-1895) falariam da tensão moral e

da debilidade humana para tentar explicar o sentido da vida e do mundo, passando muitas

vezes por um niilismo abismal, um desestruturar (como as vanguardas também proporiam dali

a algumas décadas) que buscava a afirmação de uma ação construtiva na palavra artística,

considerada uma unidade exemplar, apesar de todas as suas contradições. “Há que se

reconhecer o inescrutável do mistério e trabalhar bem” (JIMÉNEZ, 2005, p.22, tradução

nossa),10

disse o poeta José Martí.

10

“Hay que reconocer lo inescrutable del misterio, y obrar bien”. (JIMÉNEZ, 2005, p.22).

42

Para os hispânicos, portanto, o modernismo começa nos finais do séc. XIX, no

período que geralmente rotulamos de simbolista. Surge com a consciência de uma memória

cultural fragmentada, em que as colônias enxergariam uma outra forma de manejarem a

tradição, apropriando-se da cultura europeia quando e onde ela se encontrava, não como um

passado cristalizado, mas como um ponto de partida tenso e cindido. O nicaraguense Rubén

Darío seria o primeiro latino-americano a ousar formas e métricas variadas, consideradas

modernas; passando por reflexões esotéricas e existenciais, chegaria ao corpo sensorial e

erótico, e a novas leituras do passado medieval e do período pré-colombiano. E José Martí,

envolvendo-se até a morte na luta pela independência de Cuba, tensionaria a palavra poética à

reflexão em torno da liberdade do jugo europeu.

2.3 Modernidades

Marshal Berman (1986) faz um importante estudo sobre os conceitos de

modernidade e modernismo que vale a pena ser lembrado aqui em função de sua referência

muito mais ampla ao período, salientando, como estamos propondo aqui, o controle do corpo

como uma outra relação entre a vida prática e as ideias no nascimento da nova divisão social

do trabalho. Menciona como a procura romântica do autodesenvolvimento foi colocada ao

lado de um esforço de desenvolvimento econômico que passava necessariamente pela questão

política. Essa nova dinâmica criada através de uma complexa organização das ações sociais

refaz o espaço físico natural. As pessoas que estariam no caminho dessa história

desenvolvimentista, dessa ideia de progresso, e que, de alguma forma não interessavam ao

resultado final, seriam tragadas, descartadas, consideradas obsoletas. A modernização cria

assim, através da arrogância, um ambiente homogêneo, um espaço em que as marcas do velho

mundo devem desaparecer sem deixar vestígio; não se pode olhar para trás, pois a vinculação

com o passado aterroriza.

Esse desejo totalizante e irrefletido de se pensar grande e tornar tudo coerente faz

escapar as dinâmicas do cotidiano, e torna o mundo lugar inseguro para quem não cabe nessa

conexão lógica centralizadora. Esse pressuposto de unidade entre vida, experiência, classes

sociais e indústria vai na contramão da existência humana e de suas contradições irreparáveis.

Berman (1986) esclarece:

43

Cabe notar que esse senso de totalidade vai contra a granulação do pensamento

contemporâneo. O pensamento atual sobre a modernidade se divide em dois

compartimentos distintos, hermeticamente lacrados um em relação ao outro:

“modernização” em economia e política, “modernismo” em arte, cultura e

sensibilidade. (...) A cultura e a consciência modernistas quase sempre remontam à

geração de 1840 – Baudelaire, Flaubert, Wagner, Kierkegaard, Dostoievski

(BERMAN, 1986, p. 87)

O próprio título do livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”, retirado do Manifesto

Comunista de Karl Marx, pensado a partir da premissa de que Deus não existe, já desaloja a

ideia de que é possível um centro único, e propõe, dramaticamente, as profundas contradições

entre a cultura modernista e a modernização da economia empenhada pela sociedade burguesa

a partir do século XVIII, que passará a controlar todos os meios de produção, inclusive da

cultura.

Baudelaire (Paris, 1821-1867), como salienta Berman (1986), já bem sabia no século

XIX perceber a distinção entre o progresso material modernista e a vida do homem em sua

existência atribulada, embora já relacionasse, com um vigor incomum para a época, o fugidio

e a vertigem que advêm dessas explosivas transformações para a sensibilidade humana. O

homem na multidão e suas performances pela cidade, a convivência do luxo com a miséria,

temas recorrentes em Baudelaire, estarão presentes nos estudos de Walter Benjamin

(Alemanha 1892-1940), um dos mais respeitados filósofos da modernidade, que morreu

tragicamente fugindo dos nazistas. Benjamin e Baudelaire anteciparam a compreensão da

ambientação moderna como causa de uma angústia que traria uma sensação corporal do

abismo, como aquela explorada pela pintura “O Grito”, do norueguês Munch, em 1893 ou

pelo “Uivo”, de Allen Ginsberg em 1955.

Compagnon (2010b) afirma que Baudelaire reagiria contra o processo de

modernização social a partir de uma resistência à revolução industrial e à mediocridade

burguesa, e afirmaria seu desejo de recusa a essa modernização por entendê-la como uma

forma de escravização que devoraria o homem em um perpétuo movimento rumo a um

progresso que jamais chegaria, pois ele próprio seria renovado incessantemente. A paixão

pelo presente seria desesperadora, o calvário do homem. O poeta criticaria também o

realismo, pois ele estaria reduzindo a imagem à superficialidade do que é visível apenas. Para

o autor de Os cinco paradoxos da modernidade (2010b), houve, a partir de Baudelaire, no

campo das artes em geral, um afastamento da representação, concebida como a mímesis

44

aristotélica, e através de processos de despersonalização do “eu” na poesia, ela então se

tornará mais artificial ou formal.

As vanguardas artísticas europeias vêm expor essa crise dos processos de

representação e vão trabalhar, ora com a ironia, negando a tradição, ora com a tradição da

negação, ou seja, apresentando outros valores além daqueles já referendados. E esse novo se

converte em mercadoria, pois a arte moderna define assim a sua diferença em relação à

tradicional. Na arte tradicional, a obra teria sua autonomia muito bem delimitada pela sua

associação ao conceito de verdade e suas funções religiosa, histórica e filosófica, descolada da

práxis vital. A arte moderna recusa sua autonomia a partir da discussão sobre a função da

representação, valor aristocrático, e, a partir do advento da sociedade burguesa, vários serão

os questionamentos sobre suas definições, funções, valores e mercados.

Assim, o termo “modernismo” pode e deve ser relativizado em função das

especificidades do tempo e do espaço da obra a ser estudada. O que existe de substancial, e

que procuramos demonstrar aqui, é que, a partir dos meados do séc. XIX, surge uma

necessidade de se questionar o lugar da própria arte e do artista dentro da sociedade, e o

fizeram muito bem aqueles que estavam à margem dos moldes hegemônicos, como os autores

de literatura hispânica, considerada secundária em relação às tradições centrais. Essa posição

à margem vai possibilitar outro manejo dessas tradições, como bem disse o escritor argentino

Ricardo Piglia:

A consciência de não ter história, de trabalhar com uma tradição esquecida e alheia;

a consciência de estar em um lugar deslocado e não atual. Poderíamos chamar a essa

situação de mirada estrábica. Há que se ter um olho posto na inteligência europeia e

outro posto nas entranhas da pátria. (PIGLIA, 1991, p.61, tradução nossa) 11

Essa visão estrábica pode ocorrer tanto em função de o artista estar à margem do

espaço da tradição culturalmente dominante, como no caso dos hispânicos, quanto por ele

assumir posturas fora do padrão de comportamento pasteurizado e vislumbrar outros valores,

marcadamente irreverentes em relação a seu tempo cronológico, como Whitman e Allen

Ginsberg; ou por ambos os motivos, como Chacal. De toda forma, é um deslocamento em

relação ao contumaz, ao estabelecido, que pode operar tanto em relação ao tempo e/ou espaço,

11 La consciencia de no tener historia, de trabajar con una tradición olvidada e ajena; la consciencia de estar

en un lugar desplazado e inactual. Podríamos llamar a esa situación la mirada estrábica: Hay que tener un ojo

puesto en la inteligencia europea y el otro puesto en las entrañas de la patria. (PIGLIA, 1991, p. 61)

45

quanto em relação às atitudes ideológicas vigentes; o que, de toda forma, provocará uma

abertura, um alargamento, expandindo o ângulo da visão do sujeito para um maior alcance do

que vai ser visto. Whitman (2000) afirmava:

(...) são poemas escritos com a veemência do orgulho e a audácia da liberdade,

necessárias para liberar a mente dessa América, ainda em formação, das superstições

e torções e de toda antiga, persistente e sufocante autoridade antidemocrática do

passado asiático e europeu. (WHITMAN, 2000, orelha da edição)

Perpassa na declaração um tom auspicioso, quase uma promessa para uma nação

que, por sua juventude, iria ver-se livre de antigos preconceitos e abrir-se para a liberdade de

expressão. Essa promessa se cumpriu? Um século depois e o mesmo cerceamento se repetia

diante das publicações de Allen Ginsberg, os poemas Howl, e de Willian Burroughs, a novela

Naked lunch, ambos companheiros beats. Um século não foi suficiente para modificar a

dificuldade que a sociedade ocidental cristã tem diante da palavra que traz o corpo inteiro e

suas sensações. Um certo incômodo, ou estranhamento que advém da leitura do poema

Ninguém é inocente, de Chacal, transcrito acima, reitera essa afirmação.

Os chamados movimentos da contracultura aqui, na Europa e nos EUA na década de

1960 e, passados dez anos, os poetas da geração marginal no Brasil, tocaram também nesses

tabus de um corpo não amputado, e, por isso, sofreram represálias. Embora a censura no

período da ditadura militar tivesse objetivos marcadamente políticos, o moralismo esteve

sempre presente em seus atos, alguns com o aval do movimento reacionário de extrema

direita, o TFP (tradição, família e propriedade), que esteve atuante no episódio do violento

fechamento do jornal “O Pasquim” após a bombástica entrevista à atriz Leila Diniz falando

da libertação sexual feminina. Assim, muitas vezes não há como separar a rebelião dos corpos

da das mentes, já que a expressão da rebeldia era, na maioria das vezes, performática e

envolvia os sujeitos por inteiro; corpo, gesto, movimento, crenças e posturas diante da vida e

da política. Afirma Pereira (s/d), em O que é contracultura:

Este era também o sentido lúdico ou do mágico para a contracultura: uma nova

aproximação do real. (...) era toda uma outra concepção do universo que estava em

jogo, toda uma outra maneira de encarar a natureza ou o corpo, por exemplo. E estes

dados as transformavam em sistemas de pensamento extremamente questionadores e

polêmicos quando postos frente à visão de mundo dominante no ocidente.

(PEREIRA, s/d, p.58)

46

Assim como o rock não se resumia apenas à música, a valorização das filosofias

orientais era uma reação ao racionalismo cientificista, as comunidades agrícolas de hippies e

usuários de drogas eram uma contestação diante dos papéis limitados e muitas vezes

impostados da tradicional família burguesa, e uma denúncia diante da reificação do homem e

da natureza e do mal estar da caótica civilização urbana. “Viajar” era ir para outro lugar,

para o primitivo idílico, mesmo que fosse só na mente de quem procurava a si mesmo.

Novamente o deslocamento é o lugar da rebeldia porque sair do lugar exige o questionamento

do percurso, do processo de desviar-se. E todo esse caminho vinha da falta de lugar do

caminhante, aquele que, mesmo estando do lado de dentro do sistema, enxergava com maior

acuidade seus interstícios.

O mesmo acontecera alguns anos antes, com a publicação de um relato de viagens do

grupo beat (1957), On the Road, de Jack Kerouac (2012). Na obra há duas formas de

deslocamento: no espaço, através de estradas vicinais que os conduziriam a uma nação à

margem, e das mentes, que ansiavam seguir outras direções mais instintivas, transitórias e

ambíguas. E toda essa movimentação partiria de uma juventude de classe média, que via,

portanto, de dentro, o desmoronamento de uma antiga ordem, e o despertar de uma nova

sensibilidade. A revolução cultural chinesa, a guerra do Vietnã, a revolução cubana, e a frente

anti-imperialista na América Latina eram fatos irreversíveis. Então, urgia conceber outras

formas de pensar que dessem conta de tantas transformações.

O LSD, o haxixe e a maconha eram consumidos largamente pelos jovens como uma

forma de embate aos limites de uma razão, de uma sanidade culturalmente assegurada pela

sociedade, dos quais eles desacreditavam. A experiência da loucura será revestida de um

caráter de sublimação, como se através dela houvesse um expurgo das mazelas do mundo

consumista dos grandes centros urbanos para ascender a um mundo misterioso,

espiritualizado, interior, e a um modo de vida mais livre e mais contemplativo.

Mas a loucura nesse caso era uma opção, pois o drogado tinha uma consciência do

absurdo da situação em que vivia, ou pelo menos em princípio, embora alguns jovens poetas

tenham se perdido nesses descaminhos para não mais voltar. A experiência do êxtase talvez

tenha sido mais dilacerante para uns, como para Guilherme Mandaro (Rio, 1952- 79),

companheiro de Chacal nos delírios dos anos 70, que morreu de forma trágica e prematura, ou

como os talentosos Torquato Neto (Teresina, 1944-72) e Ana Cristina César (Rio, 1952-83),

também jovens poetas da mesma geração de Chacal, combalidos por essa febre autodestrutiva

47

que os acometeu de forma tão impactante e definitiva. Podemos imaginar por que, lendo os

versos de Guilherme Mandaro (2007), em Nuvem Cigana:

que não seja o medo da loucura

que nos obrigue a baixar

a bandeira da imaginação

(MANDARO, 2007, p. 193)

O próprio Chacal trabalha com o tema da loucura em América, em uma perspectiva

dilacerante, como algo que está presente nas sensações de percepção de um real suspenso,

prestes a se concretizar e a perfurar-se, marcando o impacto de um casuísmo exato, que rege a

própria natureza e o ser humano, corpo e mente, que, como parte integrante do cosmo, não

pode se desvencilhar de seus mistérios:

Buracos no céu

quando o tempo e o espaço se cortam

quando nosso corpo se encontra

diga que eu perdi a cabeça

diga que eu sou uma bolha de alka seltzer

quando chove meteoro

quando os buracos se cruzam

caem fagulhas na terra

caem agulhas no sangue

desorganizado saio de casa

com um guarda chuva de cheeseburguer

com uma capa de amianto

e não me espanto

entretanto descobri:

a loucura é um sopro no ouvido

(CHACAL, 2007, p.306)

O eu lírico vive o impacto da precisão e da irreversibilidade de cada instante como

uma revelação, uma epifania: a fração do tempo em que a bolha de ar se enche e explode, o

lugar exato em que o meteoro cai na terra ou em que os corpos se cruzam. Em “fagulhas,

agulhas” (versos 5 e 6), som e sentido evocam fricção, perfuração, o rigor do tempo e do

espaço nas intersecções, sejam elas humanas ou não, tudo está sujeito à mesma lei da Física,

mas só o ser consegue pensar sobre o impacto e absorvê-lo enquanto sensação. As palavras

alka seltzer, cheeseburguer e amianto são da era industrial, das massas, elas provocam um

corte na expectativa do leitor, estão como que meio fora de lugar; é como o desconcerto de

48

um eu lírico que pode ouvir certo sopro para ouvidos mais frágeis e sensíveis. É essa a fala do

sangue e do espanto do homem da era das multidões nas grandes cidades.

Se a vida nas cidades e a arte passam a se processar contínua e dialeticamente após a

segunda guerra, e mais acentuadamente a partir dos anos de 1960, com os movimentos

contraculturais, as ruas vão invadir a arte, e a arte vai invadir as ruas, que passariam a ser

lugar e objeto de criativas interações e atuações desafiadoras. A poesia marginal dos anos de

1970 promoveu essa interlocução de uma forma mais alegre que os beats, que ainda traziam a

dor latejante do pós-guerra e do holocausto para a instantaneidade; mas a geração do

mimeógrafo não perdeu de todo um certo tom de desespero, com vimos no poema acima, de

Chacal.

Mas se nos reportamos à modernidade como um período em que o artista se vê

impelido a baixar a guarda da razão em favor de uma concepção mais intuitiva e sensível da

realidade, que vem desde os românticos, não poderemos nos esquecer do spleen de Baudelaire

(1821-1867) nos falando de uma febre que tece fantásticas visões de espíritos errantes se

arrastando pelo mundo. O texto de Baudelaire é um marco da modernidade literária; trabalha

com a sensualidade e o prazer, com a amplificação da noção temporal através da alteração dos

estados da consciência, o uso do álcool, as áreas pobres de Paris e questiona, inclusive, o

dogma da bondade dos ideais cristãos. É de uma melancolia reveladora, quase uma

premonição da crise de uma Europa que gestaria os totalitarismos que a enchafurdariam nas

duas grandes guerras.

Em Do Vinho e do Haxixe, Baudelaire (s/d) traz um real dimensionado pelo uso do

haxixe, em que as fronteiras entre a mente e os sentidos corporais são ultrapassadas. Não é

mais possível delimitar ali onde começam ou terminam as sensações físicas e as emocionais.

Elas fazem parte de uma mesma performance. O tempo cronológico que escraviza o homem

moderno se perde completamente, e até mesmo as dimensões entre os seres e seus corpos (de

que falávamos do medievo, ao analisar o poema Solo, de Chacal) encontram-se alteradas no

enxerto abaixo, em função de uma outra significação que o ambiente passará a imprimir na

complexidade corporal. Através de intensificações imprevisíveis, que poderiam ir na

contramão do desejo do usuário, seria produzida uma espécie de esvaziamento de um eu à

deriva:

49

As proporções do tempo e do ser são perturbadas pela profusão inumerável e pela

intensidade das sensações e das ideias. Vive-se várias vidas de homem no espaço de

uma hora. (...) Deixa de haver relação entre os órgãos e as fruições.

De vez em quando a personalidade desaparece. A objetividade que faz certos poetas

panteístas e os grandes atores torna-se de tal forma grande que a pessoa se confunde

com os seres exteriores. (BAUDELAIRE, s/d, p. 40)

A loucura vai ocupar um lugar de destaque na memória coletiva do homem moderno,

pois também o delírio dos loucos poderosos ficará encarnado na mente de quem conviveu

com seus atos e na de gerações e gerações posteriores. E há aqueles sujeitos, como esse

grande poeta francês, que condensam uma base comum, e em um sobressalto brusco fazem

aflorar o ¨inconfessável¨, para usar as palavras de Michael Pollak ( 1989).

Uma tensão visceral, subterrânea, que desejamos demonstrar aqui como um conjunto

que vai desaguar no século XX, está presente nesse período que antecede as guerras. Um

outro exemplo aterrador é o do condecorado jurista alemão, Daniel Paul Schreber, que

escreveu a autobiografia Memória de um doente de nervos (1903), obra estudada por Freud,

Walter Benjamin, Santner e Foucault, entre outros. Eles consideraram a obra de Schreber uma

alegoria da realidade europeia dos novecentos, como se o delírio de controle do corpo como

uma disciplina moral fosse uma prévia da “limpeza” racial nazista. Graziela Costa Pinto

chama a atenção para a obra de Schreber e para os estudos que Santner fez sobre ela:

Buscando articular paranoia e modernidade, Santner encontra paralelos entre esses

estados de podridão e degeneração da matéria, referidos literalmente por Schreber, e

as metáforas utilizadas nas páginas de crítica cultural do final do século para definir

a ruína de valores e a fadiga ideológica que caracterizavam a entrada na

modernidade. É como se o corpo-texto doentio sofresse na carne o estado

putrefaciente que povoava as fantasias dos indivíduos sãos.

A disseminação da sífilis, que foi rapidamente associada à crise de valores culturais,

colocou o corpo e seu funcionamento como paradigma da cultura, abrindo a

perspectiva de uma análise científica e médica e, possivelmente, do controle de

transtornos sociais, político e culturais, que seriam difusos. Com o enfraquecimento

dos laços sociais, o lugar da certeza passou a ser ocupado pelo organismo enquanto

objeto de conhecimento médico e científico. (PINTO, 1998, p.53)

Temos aí demarcada a mentalidade do início do século XX como o lugar das

incertezas, e da paranoia, busca incessante pelo controle do corpo como forma de atenuar o

vazio diante da impossibilidade de preconceber e demarcar os rumos do homem na história.

Novamente o corpo vai ser entendido como a parte do ser humano que deve ser

completamente dominada para o bem da sociedade, como se ele fosse uma matéria bruta a ser

50

domada pela inteligência de seres totalmente intocados pelas ideologias, perfeitamente

capazes de manuseá-lo de fora, como um objeto estático no tempo e no espaço.

Percebemos que a guinada que os movimentos contraculturais das décadas de 1950 e

1960 deram ao corpo pode ser interpretada como uma reação a essa onda de cientificismo

positivista dos finais do século XIX e do início do XX, que congelaram e apartaram o corpo

de sua inteireza dinâmica em relação à mente e seus sistemas simbólicos e trouxeram uma

obsessão pelo cérebro como se ele fosse um departamento de controle, ideia muito

interessante para uma sociedade cada vez mais burocrática que construía e fixava poderes

hierárquicos.

Ao fazer esse paralelo entre corpo e mente e as relações estabelecidas entre o

subalterno e o poder superior numa hierarquia dos burocratas nos primórdios do século XX,

lembraremos da emblemática obra de Kafka, A metamorfose. O corpo de Gregor Samsa

torna-se inseto quando os mandatos simbólicos se resumem a imposturas, quando a palavra e

o poder não se sustentam mais, e funcionam apenas enquanto coerção; então o domínio não

está mais assegurado, e o corpo, que antes era controlável, vai metamorfosear-se em algo

imprevisto, vil, repugnante. A inovadora e fantástica narrativa foi escrita em 1912; nesse

período das vanguardas, vemos um otimismo apenas no manifesto futurista (1909), mas os

outros, e a própria obra de Kafka, possuem vínculos fortes com o tom de pessimismo dos fins

no século XIX, de uma Europa que se tensiona em conflitos políticos desastrosos e se prepara

para a carnificina das guerras.

A arte do século XX já nasce sob o estigma da duplicidade; otimismo em relação ao

progresso técnico e à crença na renovação, mas sofrendo com as ruínas melancólicas do

decadentismo do fim do século XIX. Sobre esse espírito contraditório da modernidade, Walter

Moser (1999) afirma:

Esse é, sobretudo, caso do artista moderno, que aspira aos valores positivos da

novidade, da originalidade, da autenticidade, e que vê fracassado seu gesto preferido

que consiste em fazer tábua rasa, a fim de começar do zero. Na espécie de

claustrofobia cultural que o ataca nesse quarto de despejo, só lhe resta, muitas vezes,

a fuga em direção a algum primitivismo, gesto que concretiza seu desejo de situar-se

num momento original. (MOSER, 1999, p 39)

E é com essa contradição inquietante que surgem os movimentos da vanguarda

artística europeia. A irreverência do dadaísmo, seu humor rebelde e sagaz ao destroçar a

51

tradição e uma imaginação onírica do surrealismo serão fortes referências da contracultura. A

própria ideia de que o surrealismo não estaria circunscrito apenas aos “ismos” das duas

primeiras décadas do século XX corrobora essa abordagem, já que, diferentemente do caráter

efêmero das outras vanguardas, o surreal resultaria de confluências com os que o antecederam

e prosseguiria além. Assim, seus procedimentos não eram apenas inovadores, mas propunham

uma ação sobre a realidade, com discussões políticas e questionamentos diante das noções de

indivíduo, coletividade, dos formalismos, do nacionalismo, da religião institucionalizada, do

racismo, do primitivismo, e principalmente diante do desejo, do amor e da sexualidade.

2.4 Corpos e espaços

Eliane Robert (2012), em seu instigante trabalho sobre a decomposição da figura

humana de Lautréamont a Bataille, estuda metamorfoses desconcertantes, repugnantes, nas

imagens do corpo em obras de Picasso, Salvador Dali, Hans Belmer e Chirico, entre outros,

para formular a tese de que o dilaceramento corporal como uma forma de demonstrar a

incompletude humana seria um processo que se apresentava desde o Romantismo.

A partir das vanguardas, o fragmentar, recortar, decompor e a técnica da justaposição

demonstraria a perda de unidade da figura humana e uma recusa à identidade fixa. As

metamorfoses anatômicas colocariam sob suspeita a visão imediata; como um anagrama, ou

um Renascimento às avessas, a decomposição do corpo humano seria um esforço analítico

para representar o ser convulsivo, o êxtase da emoção física e do erotismo. A desconfiança

nas imagens oferecidas pelo “real” colocava a existência em xeque, e, após a primeira grande

guerra, um psiquismo bestial abafado pela civilização vem à tona revelando seres

abomináveis cuja fúria e desejo de transgressão ofereceriam outras representações da figura

humana.

Esculturas ibéricas arcaicas e máscaras africanas comporiam seres sem face;

espectros e manequins montariam corpos inúteis e insubordinados até se reduzirem a formas

que guardariam similaridades com qualquer outra matéria não humana: a decomposição do

corpo em elementos orgânicos e a indistinção entre os seres. A partir daí, qualquer analogia se

torna possível, pois o corpo é matéria instável que vai se decompor e assim retornar ao

52

universo. O escritor surrealista Georges Bataille (1897-1962) assim definiria essa obsessão

pela metamorfose: “uma violenta necessidade que aliás se confunde com cada uma de nossas

necessidades animais” (BATAILLE apud ROBERT, 2012, p.133).

A obsessão de Bellmer, habilidoso desenhista industrial, vai a fundo numa fixação

extática pelo corpo como um “inconsciente físico” (ROBERT, 2012, p. 68). Abandona a sua

ocupação, então rentável e promissora em 1933, no governo de Hitler, afirmando que não

exerceria mais “qualquer atividade útil” (ROBERT, 2012, p.138) para se dedicar aos

mecanismos de uma boneca toda articulada, construída por ele. Ela, objeto do desejo,

brinquedo sensual, provocante, encarnaria a redução do ser ao corpo dócil manipulado pelo

terror da violência nazista. Mas esse gesto de Belmer pode nos remeter também a Paz (2013),

quando ele aborda o voyeurismo presente no olhar do artista moderno que assume uma atitude

ambígua entre o ver e o desejar. Através da “petrificação num objeto: a boneca nua” (PAZ,

2013, p.116), o brinquedo vem a ser a imagem do desejo, a transgressão moral através de uma

intimidade com o corpo como um ato criador, que condensa o grotesco, o bizarro, a

transitoriedade e a morte como uma invenção, uma outra forma de encarar a própria arte, o

amor e o erotismo.

Paz (2013) vai considerar a modernidade a partir dos finais do séc. XVIII, que com

sua “autodestruição criadora” (p.17) propõe “a ressurreição das artes de muitas civilizações

desparecidas” (p.18), ou seja, a modernidade vai operar com o heterogêneo, acelerando e

fundindo tempos e espaços no aqui, agora, numa atitude ambígua de afinidade e ruptura,

ironia e analogia. Analisar a modernidade como uma tradição de afinidades e rupturas, como

propõe Paz (2013), em Os filhos do barro, é muito oportuno aqui, quando tentamos repensar

a contracultura como um fenômeno que se repete, e na contracultura específica dos anos de

1960-70 como um movimento de ruptura que estabeleceu uma quebra na ideia de identidade

do mundo ocidental ao revisitar antigas imagens, seus deslocamentos corporais e linguísticos.

A palavra poética moderna pode ser pensada então como um corpo onívoro que vai se

alimentar de neologismos, barbarismos e cultismos.

Essa operação mágica e aventureira é praticada pelos poetas modernos; “uma

libertação moral e estética que põe em contato os opostos” (PAZ, 2013, p. 116), Paz (2013)

acrescenta ainda, “a história da poesia do século XX é, como a do século XIX, uma história

de subversões, conversões, abjurações, heresias, desvios. Essas palavras têm sua contrapartida

em outras: perseguição, desterro, manicômio, suicídio, prisão, humilhação, solidão.” (p. 115).

53

Muitos desses temas serão trabalhados pelos movimentos da contracultura, desde a

década de 1950; com os beats nos EUA, com Elvis Presley e James Dean, a sensualidade e

rebeldia, Bob Dylan e um anarquismo rural, passando pela eterna irreverência que é o rock

dos ingleses Rolling Stones, anos sessenta, Janes Joplin, Dean Morrisson, Jimmi Hendrix e o

êxtase comunitário dos grandes festivais, o Jamaicano Bob Marley e o apelo à convivência

humana e à paz. Eles faziam do sonho a realidade, da arte, forma de comportamento, e

traziam as posturas políticas e a resistência pacífica estampadas no corpo e na própria

expressão artística.

A rebelião do comportamento que fez parte dos movimentos contraculturais dos anos

de 1950 e 1960 estava intimamente ligada a questões políticas e multiculturais, que não se

desvinculavam das propostas de liberdade dos corpos. Nos EUA, os jovens universitários

brancos, juntamente com os ativistas negros, eram agredidos pela polícia em manifestações

pelo fim da segregação racial e da exploração da miséria dos oprimidos e marginalizados.

Nos campi universitários, lutavam pelo fim do toque de recolher nos dormitórios e da

separação desses espaços em feminino e masculino. O próprio rock in roll recebeu esse

batismo em função de uma conotação do ato sexual, que já estava presente nos blues, jazz e

boogie-woogie dos afro-americanos:

(...) a sensibilidade de muitos milhões de ex-escravos e seus descendentes,

começava a exercer um impacto na cultura americana como um todo desde o início

do século XX. (...) Os africanos, por outro lado, não estavam carregando um legado

de mil anos de vergonha do corpo. Os costumes tribais africanos, que giravam em

torno de uma dança extática, sensual, ao som de ritmos percussivos, não tinham sido

completamente eliminados pela escravização e a conversão ao cristianismo.

(GOFFMAN, 2004, p 253)

No Brasil, a antropofagia oswaldiana, o Tropicalismo e a poesia marginal, apesar das

especificidades de cada um desses movimentos, vêm com esse mesmo ímpeto, de incorporar

as várias contribuições de todas as culturas presentes no legado popular, ideia muito difundida

também pelo surrealismo. Sérgio Lima, ao elaborar a tese de que foi do interesse de muitos

críticos afirmar que não houve surrealismo no Brasil, reitera sua posição contrária:

E mais: a mestiçagem ou a fusão de etnias, sociedades e culturas, não deixa também

de reenviar figuradamente às correspondências do pensamento mágico e das

analogias, ou mesmo às núpcias dos contrários, quer carnal, ou quer espiritual e

alquímica- ou seja, contrapõe-se ao sentido de “puro” da química (e da sócio-

54

política) mas não ao senso da pureza iniciática ou esotérica. Assim a busca, e o

surrealismo nunca deixou de ser uma busca ou uma aventura do espírito humano,

requer tal pureza e implica (fundamentalmente) o desejo frente à realidade

ameaçante – não um epicentro autoritário ou discriminador. Ora, o surrealismo

sempre se deu, e continua a se dar num contexto plural ou de policentros, numa

mestiçagem dos sentidos e numa fusão, numa união livre. (LIMA, 1994, p.200)

Pensando assim nesses policentros, não podemos nos esquecer de que o primeiro

editor beat, Ferlinghetti, havia estado na Sorbonne e estudado os autores surrealistas

franceses, fazendo a divulgação deles em primeira mão nos EUA e aos seus companheiros

beats, inclusive traçando um inusitado diálogo entre a valorização do imaginário surreal e o

modernismo norte-americano. O movimento de projetar-se para fora de si e assim estabelecer

vínculos sensíveis com o universo exterior seria, para os surrealistas, uma necessidade

atávica.

O próprio Bataille reafirmaria essa primazia da expressão corporal para o ser humano

comunicar-se como um todo: “nos grandes momentos, a vida humana ainda se concentra

bestialmente na boca, a cólera faz ranger os dentes, o terror e o sofrimento atroz fazem dela o

órgão dos gritos dilacerados” (ROBERT, 2012, p.134). A publicação de Howl, de Ginsberg

confirmaria tudo isso e viria com uma introdução do inovador e esquecido poeta moderno,

William Carlos Williams (USA, 1883-1963), na qual ele diz:

A fé na arte da poesia acompanhou este homem a seu Gólgota, a esse ossário em

tudo semelhante aos dos judeus na última guerra. Só que isso é nosso próprio país,

são nossos próprios e estimados arredores. Somos cegos, e vivemos nossas vidas em

cegueira. Os poetas são malditos mas não são cegos, eles enxergam com os olhos

dos anjos. Este poeta enxerga plena e penetrantemente os horrores dos quais

participa nos mais íntimos detalhes do seu poema. Ele nada evita e vivencia tudo até

as últimas consequências. Ele contém tais coisas. Ele reivindica como suas – e creio,

ri delas e encontra a ocasião e a ousadia para amar um companheiro que escolheu e

para relatar esse amor em um bem acabado poema.

Senhoras, levantem as barras das suas saias, vamos atravessar o inferno.

(WILLIAMS apud GINSBERG 2010, p. 24)

Percebe-se, portanto, que o universo beat foi muito valorizado por Williams, na

medida em que ele tinha essa visão do moderno como uma convergência temporal que não

excluía o imaginário medieval. Ele estudou e escreveu poemas sobre imagens do medievo a

partir da obra do pintor Pieter Brueghel (1525-1569) no livro obra Pinturas de Brueghel e

outros poemas (1962). Assim, acreditava que a imaginação e a irreverência dos beats tinham

55

um pé no surrealismo, e a loucura, enquanto reação à realidade positivista moderna, que vinha

desde o spleen melancólico dos finais do século XIX, evidenciava-se aí também.

Então, o poeta maldito de quem Williams nos fala acima, que enxerga com os olhos

de anjo, pode ser o mesmo pintado por Paul Klee (1879- 1940), que, com a face voltada para

um passado de ruínas, direciona-se ao futuro fazendo uso das revelações que irrompem desse

passado; os olhos estão arregalados, a boca está aberta e as asas estendidas para apreender o

mundo em suas sensações. Esse anjo da história benjaminiano é retomado agora com uma

força avassaladora, desta vez acompanhada dos delírios de um inconsciente torturado e de

mentes encharcadas de álcool e de muitas outras drogas, em que um erotismo vertiginoso

toma uma proporção bestial, como podemos ler nesse pequeno trecho de Howl, de Allen

Ginsberg (2010):

Flagelaram seus torsos noite após noite

com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília,

álcool e caralhos e intermináveis orgias

incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e

clarão na mente pulando nos postes dos pólos de

Canadá & Paterson, iluminando completamente o

Mundo imóvel do Tempo intermediário 12

(GINSBERG, 2010b, tradução de Cláudio Willer, p.26)

É equivocado o entendimento de alguns críticos de que o poema de Ginsberg (2010)

seria desprovido de sentido ou de um trabalho formal, ou que ele não fosse um objeto artístico

em função de sua estrutura aparentemente caótica (acusação semelhante também é feita à obra

de Chacal), pois sabemos que a linguagem poética não pode sofrer com as amarras da razão,

sua lógica é outra; as imagens se coadunam com um propósito artístico em que forma é

também conteúdo; o corpo da escrita é também seu sentido. O automatismo na escrita é ao

mesmo tempo um recurso dinâmico para representar o fluxo ininterrupto das imagens e as

ofertas transitórias de nossa era, e um questionamento da própria produção artística em um

tempo de revisão dos sentidos, das regras e formalidades, na vida e na obra.

Logo no prefácio da cuidadosa tradução de O Uivo feita por Cláudio Willer, ele

chama a atenção para todo o trabalho de Ginsberg (2010b) com a linguagem, contrapondo-se

aos críticos do movimento beat que acusam o grupo de usar apenas um espontaneísmo, de não

12 torsos night after night / with dreams, with drugs, with waking nightmares, / alcohol and cock and endless

balls, / incomparable blind streets of shuddering cloud and / lightning in the mind leaping toward poles of

Canada & Paterson, / illuminating all the motionless world of Time between (GINSBERG, 2010b, p.26)

56

investir no verso enquanto unidade formal. Tal leitura careceria de aprofundamento, ou é

simplesmente um preconceito em relação ao autor ou/e ao movimento beat. Muitos ainda

acreditam que haja uma forma objetiva e válida para avaliar toda produção poética, sem

observar, como nos chama a atenção Leyla Perrone-Moisés (2003), que o valor de uma obra

depende de articulações e critérios estabelecidos, sobretudo pelo crítico, e que não há

nenhuma homogeneidade ou continuidade histórica para esse julgamento.

Acrescenta-se ainda que toda manifestação da contracultura parte do desejo de

concatenar vida e obra, ou seja, o instante é soberano, e sua revelação através das sensações

do corpo e da mente, entendidos aqui como uma unidade, irão compor, de forma intuitiva, um

comportamento, uma postura e uma ação diante da vida e da arte. Willer afirma:

Ginsberg usava muitas palavras com duplo sentido, e, sempre que isso tinha função

no texto, enriquecendo-o e adequando-o ao ritmo e prosódia, utilizei a dupla

tradução, uma palavra para cada sentido. Assim, incomparable blind street, onde

blind street pode ser a mesma coisa que blind alley, um beco sem saída, tornou-se

incomparáveis ruas cegas sem saída (na estrofe 12 do Uivo) com as ruas cegas

contrastando com o clarão, the poles of Canada & Paterson, onde pole pode ser

tanto pólo geográfico quanto um poste de rua, mastro, estaca, tornou-se pulando nos

postes dos pólos do Canadá & Paterson. (WILLER, 2010, p.17)

Novamente imagens opostas aparecem para marcar esse sentimento de duplicidade

da experiência moderna; nela habitam os excessos e a insaciedade, o sistema, o controle e a

transgressão, uma movimentação incessante que chega à letargia, nela está também o clarão

dos mastros nos percursos humanos, sinalizando a mente dos que são capazes de ver o

pesadelo, que não é sonho, mas permanente vigília de um mundo num tempo intermediário,

que não se submete à pressão do cronologicamente útil, que está suspenso, polarizado,

marcando a viagem entre a loucura e a lucidez, num espécie de transe, limbo, que é a própria

energia da existência criadora, como já analisamos também em Solo e Buracos no Céu, de

Chacal.

Nos poemas dos assim chamados poetas marginais, como vimos nos versos de

Guilherme Mandaro e do próprio Chacal, citados anteriormente, há também essa mesma

viagem que desfia os limites do que temos como lucidez em nossa sociedade pautada pela

contenção do corpo e pela opressão de um tempo utilitário. Quando os movimentos da

contracultura propõem uma estética independente do reconhecimento oficial, eles se tornam

marginais no sentido da insubmissão, de uma rebeldia que cria um mundo alternativo onde o

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corpo e o prazer poderiam ser mais espontâneos e livres que nas práticas cotidianas

sistematizadas, que anestesiam os desejos, onde tudo tem um propósito, hora e lugar, e uma

forma concebida como correta e útil. E é justamente esse conceito de utilidade que foi

questionado em profundidade pelos beats e pelos poetas brasileiros na década de 1970.

Em nossa sociedade ocidental cristã, o rosto é a parte do ser que expressa ao máximo

essa subjetividade construída por um individualismo que foi gradativamente gestado durante

mil anos. Nos anos de 1960, vive-se uma profunda crise, não só desse indivíduo centrado,

mas das instituições; do Estado, da Igreja, da família, e da ideia de progresso e moral social.

Então, surge em seu lugar a cara, palavra muito mais usada para se referir à fronte dos

animais, ou de seres primitivos, ou ainda bem mais afeita às expressões de caráter popular,

ligadas ao corpo e ao cotidiano, diferentemente das palavras “face” ou “fisionomia”. O poema

abaixo está em Boca Roxa.

Cara de caveira

minha cara é de caveira

meus olhos são de vidro

e vocês não me dizem nada

no meu corpo tem um sangue

amargo e verde

meu coração é à prova de choque

e vocês não sabem de nada

tenho pés de andar em qualquer chão

e mãos livres sem argolas

e vocês tremem por nada

minha memória guarda coisas bem curtidas

eu sou minha memória bem curtido

e vocês não são de nada

(CHACAL, 2007, p.206)

Se pensamos no rosto como a parte do nosso corpo que traz nossa mais imediata

identidade, uma cara de caveira torna-se um símbolo muito significativo. Primeiramente, ela

nos lembra a morte, e consequentemente a ideia de atravessamento de uma fronteira e a

chegada a outra margem torna-se evidente. Ela é então respeitável enquanto conhecedora de

um universo que nos escapa; nossa vida breve é risível para a caveira, que possui uma espécie

de sorriso irônico que não se desfaz; sua permanência e sua expressão pensativa são para nós

eterna incógnita. Entre o riso e o trágico, essa fisionomia se afirma diante daqueles que estão

58

no poder, e os desafia, pois eles não têm nada relevante a dizer, “não sabem de nada, tremem

por nada, e, não são de nada.” (versos 7, 10 e 13, respectivamente)

Os olhos são outro elemento importantíssimo na expressão facial, principalmente se

estamos falando daquele que rivaliza com o poder e quer provocá-lo. E esses olhos são de

vidro, a imagem projetada os atravessa sem capturá-los ou marcá-los, ela é devolvida para

quem olha, que pode ver a si mesmo, como em um espelho, mas no vidro essa imagem

aparece vazada, desprovida de qualquer consistência. O vidro é vulnerável, sensível e

quebradiço, mas duro diante da pressão, e de uma transparência que o ajuda a refletir o

instante, retratá-lo, como faz o poeta.

Se a primeira estrofe fala da face, a segunda e a terceira falarão do corpo, e a quarta

trará a memória como energia síntese do todo que será descrito; sangue, coração, pés e mãos.

Cada parte e todas elas são impulsionadas por essa mesma força de quem tem a certeza a seu

favor. Uma certeza que vem do sangue de um ser que suporta a exposição e o padecimento,

pois já obteve resistência e vitalidade, está “bem curtido” (verso 12), é um brasileiro “amargo

e verde” (verso 5), e possui o discernimento de uma memória que sabe o gosto do fel, muito

além do panfletário “verde e amarelo do país que vai prá frente”, pintados pelas propagandas

políticas da ditadura militar da época.

O coração, centro da paixão e da vida, da intuição e do afeto, que muitas vezes se

confunde com o espírito ou a alma, “é à prova de choque” (verso 6). Esse órgão que é o

primeiro que se forma e o último que morre, expande-se e se contrai num movimento

incessante, como a própria vida e suas intempéries, e elas serão inúmeras para quem viveu

nesses anos amargos depois do golpe de Estado. O eu lírico é resiliente e possui a preparação

inteligente de quem sabe se sujeitar à dilatação e à contração, pois é curtido e, portanto

imputrescível, apesar de toda podridão que o circunda. E nessa luta entre posições

antagônicas, aquele que resiste ao encontro violento com o outro e supera, com resiliência, o

choque, vence.

Se os pés andam “em qualquer chão” (verso 8), são também curtidos e capazes de ir

além das trilhas estipuladas pelo poder e vão construir seus próprios caminhos, através de seus

próprios passos performáticos, de um caminhar que se aprende caminhando. As “mãos livres

sem argolas” (verso 9) não se prendem aos ditames daqueles que querem ordenar como deve

ser a feitura do objeto artístico. Como em um jogo de desafios, as argolas arremessadas pelos

ditadores não cairão da forma pretendida, pois eles “tremem por nada” (verso 10), não são

59

convictos como aquele que se pronuncia, apenas cumprem ordens, determinações de um

poder burocrático hierarquicamente estruturado.

A última estrofe fecha o poema colocando a memória como a guardiã de todas as

coisas, ela é tecida pelos fios do público e do privado como nos sugeriu Silverstone acima, e o

eu lírico, inclusive, coloca-se como sendo ele mesmo resultado de sua memória; “eu sou

minha memória bem curtido” (verso 12). Ou seja, todos os elementos do corpo, colocados

anteriormente, não estão apartados; através do coração, o sangue circula e todos os sentidos

estão reunidos nessa memória que é a sua própria identidade. E as palavras curtidas/curtido

possuem sentido ambíguo, já que podem significar também “o barato”, “a curtição”,

identitária da geração do desbunde dos anos setenta, daqueles que vão continuar curtindo sua

“viagem”, apesar dos poderosos que, embora com aparências fortificadas, não são de nada

(verso 13).

A feitura de alguns versos em redondilha maior, construção popular com ritmo de

fácil memorização, e o refrão, que termina cada estrofe, referendam, através da repetição, o

que não deve e não pode ser esquecido; a vulnerabilidade de todo o poder montado pela

arbitrariedade e repressão. O eu lírico e sua cara de caveira nos lembram ainda os piratas,

também marginais. Sua bandeira/caveira e sua viagem sem fim, em que o deslocamento, a

errância é o próprio destino, desafiam o poder do Estado, que tenta capturá-los, fixá-los, sem

sucesso.

E é o poder, vestido pelo Estado ditatorial, que caça e mata em 1964, como a um

animal acuado, o bandido “cara de cavalo”, vendedor de maconha e controlador de jogo do

bicho, morador da Favela do Esqueleto, e passista da escola de samba Mangueira, onde

conviveu com os artistas plásticos Hélio Oiticica e Lygia Clark. Revoltado com a execução

sumária do bandido, Hélio compõe seu trabalho plástico/bandeira, que foi cenário de show

dos músicos tropicalistas, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes, em outubro de 1968,

na Boate Sucata, Rio de Janeiro. O show foi interrompido pela censura sob o pretexto de que

a imagem feita por Oiticica, de um corpo estendido no chão, acompanhado da famosa frase:

“ Seja marginal, seja herói”, em solidariedade ao bicheiro, seria subversiva. Não podemos

deixar de notar as similaridades entre o poema acima estudado e esse acontecimento, que foi

alardeado pelos meios de comunicação da época, e que colocava o heroísmo da polícia.

60

Fonte: NETFESTIVAL..., 2014

Oiticica inverte essa visão “oficial”, e o poeta marginal, com o poema “cara de

caveira”, quinze anos depois (publicado em 1979), soube explorar bem essa contradição entre

a memória, o poder e as suas margens, até no título e capa do livro, que possuía, em sua

edição artesanal, uma reprodução modificada de um desenho de Pablo Picasso, feita por Luís

Eduardo Resende, em que há o esboço de um rosto somente com seus traços elementares;

olhos, nariz e boca, demonstrando, como também o faz a imagem da caveira, o quanto os

sentidos humanos nos reduzem à mesma e básica semelhança. Esse desenho de Picasso

aparece também na capa de outras duas obras: “Nariz Aniz” e “Olhos Vermelhos”, todos eles

publicados em 1979.

Fonte: FERRAZ, 2013, p. 79

61

A discussão sobre a insubmissão do corpo do ser humano e sua relação com a

utilidade e a dedicação à arte foi o ponto de partida da Nuvem Cigana, nome de uma empresa

que, no início da década de 1970, reunia um grupo de jovens poetas; Ronaldo Bastos,

Ronaldo Santos, Chacal, Lúcia Lobo, Dionísio, Márcio Borges, entre outros. O próprio nome

da “firma” veio a partir de seu sócio fundador, Ronaldo Bastos, que, em uma “viagem” de

ácido, olhando o céu, viu uma nuvem e assim a batizou. Mais tarde, esse seria o nome de uma

música de sua autoria e de Lô Borges, considerada emblemática para o período. Bastos e seu

grupo queriam uma vida “estradeira” e tinham como objetivo “estar em movimento, que era

uma oposição radical à ditadura” (COHN, 2007, p.67). Tentaram, então, criar algo nos

moldes da Apple, empresa multimídia, já que o sócio e fundador, Ronaldo Bastos, recém-

chegado dos EUA, queria fomentar a arte de forma independente, editando livros, almanaques

e manifestos, promovendo exposições, happenings, performances teatrais, poéticas e

musicais:

A Nuvem Cigana surgiu da vontade que a gente tinha de participar, de mudar as

coisas. Não dava para deixar daquele jeito, mas também não queríamos ir para a luta

armada, ou coisa do tipo. Várias vezes fui convidado, mas não era a nossa. Então

começamos a tentar fazer alguma coisa ligada à arte. (COHN, 2007, p.70)

Uma das edições, denominada Artimanha, aconteceu, inclusive, no Museu de Arte

Moderna, no Parque Lage do Rio, contando com a participação de vários artistas plásticos que

estavam engajados no que era chamado então body art, ou arte performática. O evento foi um

sucesso e, através de amigos comuns, estenderam o acontecimento até São Paulo, no Teatro

Municipal, que durante três dias, em 1976 , juntou cerca de quinze mil pessoas, e com a

presença do poeta surreal Roberto Piva e do artista plástico Augusto Peixoto, foi palco de uma

megaexposição e uma feira de arte e poesia.

Nota-se, portanto que o grupo tinha um propósito, assim como Bellmer ou Allen

Ginsberg, que era, sobretudo, fazer da arte um ato de resistência diante dos rumos de uma

História que se propunha, cada vez mais, colocar os indivíduos e seus corpos funcionando

como uma marionete, cumprindo metas para que o capitalismo e sua lógica individualista

triunfassem. Assim como no movimento beat, os jovens poetas brasileiros partiam para a

experiência comunitária, grupos se reuniam para fazer arte e promover eventos, sem muita

preocupação com o retorno financeiro ou com promoções pessoais.

62

Extrapolavam os limites entre as diferentes manifestações artísticas e vivenciavam

inesgotáveis sensações; traziam uma imaginação que não apartava o corpo da mente, antes

sim, reunia os corpos entre si para concebê-los em uma integração criadora, irreverente, sem

falsos pudores, buscando o prazer e a alegria como uma tendência natural do ser humano.

Fugiam do senso comum, da paranoia de ser produtivo e “bem sucedido” a qualquer custo e

assim construíam uma arte que era, antes de tudo, uma atitude de desprezo ao sistema e uma

proposta de luta contra ele pelas portas dos fundos, através de um enfrentamento cheio de

táticas irreverentes, criativas e bem humoradas, em que o corpo, ao ocupar seu lugar no

espaço ou deslocar-se nele, imprimia-lhe, a partir dessa relação, novos significados, novas

identidades para os lugares, que se tornavam vivos, abertos à construção coletiva e à

comunicação:

As peladas de quinta feira no clube Caxinguelê, no Horto, eram sagradas. Elas

também eram uma forma de nos reunirmos sem causar suspeita no meio daquela

ditadura brava. Era um ponto de encontro, uma coisa bem carioca, como o carnaval.

Ali não tinha impeditivo. “Por que tanta gente junta?” “Pô, os caras estão jogando

futebol” “Então beleza”. (COHN, 2007, p.59)

O píer reunia toda a contracultura carioca. Era uma espécie de lugar liberado no

meio da ditadura, as famosas Dunas da Gal.

Quando eles fizeram o emissário submarino para o esgoto, tiveram que colocar

aquelas tubulações monumentais que iam até o raio que o parta. Então, eles tiveram

que construir um píer por onde os funcionários e as máquinas pudessem passar para

seguir o trabalho. Esse píer era uma estrutura de ferro que avançava mar adentro, e

toda a areia que eles removeram para colocar as tubulações foi jogada na praia, se

transformando em dunas enormes. O melhor é que essas dunas não deixavam que o

pessoal que estava no asfalto visse o que estava acontecendo na beira do mar. Então

a gente ficava lá embaixo, protegido da polícia, e todo mundo podia fumar seu

baseado em paz.

Em cima daquelas dunas começou a se reunir uma estranha espécie de seres peludos,

esqueléticos, com pouquíssima roupa e uma língua alada. Todo mundo ali,

desbundadíssimo, tentando reinventar um tempo legal. O Brasil andava sinistro, a

repressão voava baixo, a polícia colada atrás. E a realidade insuficiente para quem

queria espaço a fim de criar e reinventar o verbo. (COHN, 2007, p.17-18)

O espaço aqui passa a funcionar, como aquele proposto por Doreen Massey (2008):

“múltiplo, plural, produto de interrelações, uma abertura para a genuína esfera do político” (p.

29,30). Se a irreverência das vanguardas era mais centrada no texto, a da poesia marginal

seria voltada à vida, à experiência da rebeldia no cotidiano, em uma ânsia de deslocamento,

de uma renúncia à fixação de normas, seja ela moral, estética ou política. Isso não significava

um desprezo ao herdado culturalmente, mas essa herança só era consultada no momento em

63

que um dado do cotidiano a fazia irromper, através de um detalhe do entorno ou de uma voz

acolhida no instante poético.

Assim, essa arte não se furtava ao engajamento, mas ele era produzido e vivido sob o

crivo de uma imaginação múltipla, que, sem um ponto fixo, delineava cortes, metamorfoses, e

construía suas próprias conexões. Não era o engajar-se pensado somente de forma fria e

asséptica, como num paradigma cartesiano para fazer uma arte “politizada”, ou de “esquerda”,

mas uma procura, um deslocar-se sem cessar. Esse deslocamento é uma reinvenção do

presente, uma reação contínua ao que está posto que faz da poesia marginal uma arte

performática por excelência, já que usa das descontinuidades, dos movimentos e olhares

rápidos e aposta em uma estética experimental, dinâmica.

Essa experiência que privilegiava o imediato, arriscava-se, mudava, reagia aos

impactos do instante, enfrentando o que se apresentava no momento, no ato da cena. Afinal,

nesse cenário, o autor se misturava ao ator, já que tanto nas apresentações performáticas dos

textos, quanto na prática de oferecer os livros artesanais em feiras, portas de cinema, shows e

teatros, o próprio escritor se apresentava no chamado “corpo-a-corpo” com o leitor, como na

literatura de cordel, ou como os músicos repentistas. Essa atitude colocava o poeta circulando

nos espaços da cidade, inserido nela, não como aquele que a observa objetivamente, mas

como quem dialoga com ela e se faz nela, e é através desse trânsito, desse compartilhamento

com o tecido urbano que novas leituras do tempo, do espaço e desses corpos atuantes nele

serão possíveis; como poderemos ler no poema abaixo, de Chacal, de A vida é curta pra ser

pequena.

A Rua

artistas

mais que modernos

com o centro em seu tempo

queremos dinamizar espaços

que a nós pertencem por princípio.

como um dragão andaluz

só o spot das polaroides nos seduz.

que essas imagens

acústico cinético verbo visuais

habitem o domínio público

e se incorporem ao dia a dia das criaturas

nesse espaço a todos reservado: a rua

contra a maré

que nos quer fazer enterrar nossas miragens

no oco do pau

64

jatos de cultura nativa

técnica, certeira como um dardo de bambu e aço

o único mistério é saber que as imagens pânicas nos

possuem

além disso, é a representação desse material

a rua nos interessa

a nós o que é nosso

que a rua abra a porta para nós

(CHACAL, 2007, p 54)

A rua é o espaço do artista moderno que, como um dragão andaluz (verso 6), é

multicultural como a Andaluzia espanhola, bárbara, árabe e cristã, e o contraditório dragão

pode ser uma síntese; símbolo do mal, para os europeus, ou do bem, para os orientais. Ele

possui aqui o desafio de lutar com o que permanece inconsciente, de forma subliminar, não

percebida, e trazê-lo à tona através de uma arte que, impulsionada, flexível, primitiva e

natural, como um dardo de bambu, tem a força certeira, moderna e resistente da perfuração do

aço.

Usando essa energia temporal submersa a seu favor, para que as imagens artísticas

“habitem o domínio público” (verso 10), o poeta, portador dessa força ctônica, trava sua

batalha contra um sistema que quer encerrar a arte no escuro, no “oco do pau” (verso 15), nas

aparências que escondem, camuflam os sentidos fósseis das palavras, das relações humanas e

da verdadeira vocação da rua, que sempre foi espaço propulsor da convivência de vozes

dissonantes, da cultura, e da liberdade de imaginação. Para não ser cegado pela sedução da

própria luz, o mistério das imagens e das miragens deve possuir e se incorporar aos espaços

dinâmicos das ruas para que outras portas dos sentidos humanos possam ser abertas.

Podemos ver esse mistério e suas clareiras na tessitura das grandes cidades, em suas

variadas descontinuidades temporais, como bem demostra Renato Cordeiro Gomes (1999),

quando, ao discutir o controle social engendrado pela modernização das cidades, afirma:

O planejamento, instrumento da racionalidade do urbanismo, é, dessa forma, um

marco simbólico das técnicas de intervenção nas cidades, produzindo equipamentos

capazes de transformá-la em meios formadores de homens e mulheres sãos e

moralizados, transformando pessoas em unidades individualizadas e padronizadas.

Pelo mecanismo de controle, constrói-se uma imagem domesticada de pluralidades

de tensões não resolvíveis. (GOMES, 1999, p. 204)

Se estamos diante da assepsia do metal e do vidro das modernas construções, ou em

uma feira em rua aberta, ou em uma praça habitada por moradores de rua, ou ainda em uma

65

favela, abrigamos, no mesmo lugar citadino, relações do corpo com o espaço definidas por

conceitos que foram modificados através dos tempos. Ao pensar nos burburinhos das ruas de

uma cidade medieval, que se faziam sem planejamento, ou sem qualquer preocupação com

seus detritos, veremos que ela guarda muita semelhança com as praças ocupadas por

moradores de rua, ou com as favelas. Mas o Estado Moderno, ao promover seu modelo de

poder, vai dividindo e organizando os corpos em atuações espaciais previamente definidas

para a pasteurização das diferenças e tensões não resolvidas. Reinventá-los, através de uma

outra consciência existencial, ao mesmo tempo, política e estética é a que se propuseram os

poetas marginais.

Tal postura procura romper com algumas práticas do moderno mundo capitalista,

seus demarcados tempos, espaços, mercados e valores, e se aproximar das dinâmicas das

concepções corporais estabelecidas por outros povos em outras épocas e lugares. José Carlos

Rodrigues (2008) nos faz lembrar as palavras de Le Goff (1985, p.219) sobre o engano em se

pensar que o passado esteja acabado, e acreditando que, ao contrário, o “pretérito e presente

formarão para nós uma espécie de globalidade única, em que o antes e o depois coexistirão de

maneira tensa, antagônica e cúmplice” (RODRIGUES, 2008, p. 31).

A arte nos traz essa coexistência, e a poesia, que foi escolhida neste trabalho para ser

analisada, Belvedere (2007), de Chacal, opera com um viés estético que aborda uma

sensibilidade corporal que vem de longe, mas que continua ainda presente, de forma residual,

no substrato de nossa mentalidade. Observa-se como a postura corporal foi importante para

que grupos de artistas da década de 1970 estampassem uma nova perspectiva diante de um

mundo cada vez mais consumista e propusessem uma existência mais espontânea e simples,

ligada ao corpo como um espaço também natural:

Quando o Clube da Esquina realmente surge, no começo dos anos 70, as duas

pessoas que tinham ficado no Brasil eram a Gal Costa, que cantava os baianos, e o

Milton Nascimento. Porque todos os outros grandes músicos da nova geração

estavam exilados. Então, esses dois músicos tinham uma presença muito forte no

meio da rapaziada. O Bituca cantando descalço, assumindo certas posturas, sem

camisa, isso era uma coisa muito chocante para a época. (COHN, 2007, p. 50)

O Nuvem Cigana, do Rio de Janeiro e o Clube da Esquina, mineiro, possuíam

membros em comum e havia uma troca de experiências entre eles, de forma que essa postura

corporal do Milton Nascimento, mencionada acima, faz parte de um conjunto de práticas que

era comum entre esses jovens artistas que vivenciavam o corpo e uma arte mais espontânea,

66

livre de certas formalidades ou artificialismos. Essa mesma camisa do excerto acima, que falta

ao Bituca (apelido do músico Milton Nascimento), pode ser remetida ao primeiro poema de

Chacal analisado aqui, Solo, em que ela representa não só uma roupa, mas está relacionada

aos costumes que vestem e encobrem também os sentidos.

Percebemos então que havia um conjunto de ideias que vinculavam esses artistas

entre si. E é justamente essa a marca de um imaginário coletivo, que é ao mesmo tempo

afetivo, social, e político, ou seja, é cultural na medida em que se estabelecem relações que

permitem identificar um substrato ideológico comum e uma produção artística em que certas

representações imagéticas, posturais, como a citada acima, criam alguns significados

consensuais na memória da sociedade.

O estudo da obra poética de Chacal como uma parte importante dessa memória

coletiva traz o argumento de que há nela um conjunto de traços que nos permitem repensar

esses movimentos contraculturais dos anos de 1960/70 como uma reinvenção do tempo, do

espaço físico e social, da natureza e de suas relações com o corpo humano, entendido

enquanto completude carne-espírito. Embora muitas vezes a contracultura tenha sido pensada

como um conjunto de movimentos de jovens descompromissados com o mundo, podemos

observar que, na obra de Chacal, há um tom de brincadeira que não é um sinal de não

comprometimento, mas ao contrário, é uma atitude, uma tomada de posição de quem

pretendia burlar os ditames de seu tempo, de uma ditadura moderna, daqueles que não tinham

tempo para perder com brincadeiras; sérios, compenetrados em sua produtividade maçante,

uniformizados para o medo.

Chacal e o grupo da Nuvem Cigana criavam um clima que trazia o riso e uma

convivência mais estreita entre as pessoas, nas festas, nas ruas e nas casas acolhedoras, e uma

concepção do corpo e do prazer que revivia traços de uma cultura medieval no Rio em plena

década de 70. Algumas famílias abrigavam artistas, como o próprio Milton Nascimento, que

viveu com os Borges em Santa Tereza, Belo Horizonte, e com os Bastos, no Rio, e eram

mantidas relações de aprendizagem mútuas com esses agregados, semelhantes aos tempos dos

mestres e aprendizes, em que a prática de um ofício era exercitada dentro de casa, numa

convivência marcada por uma proximidade também física, corporal.

Estudar os textos de um poeta como Chacal pressupõe, antes de mais nada, um

desejo de demonstrar o quanto se tem deixado de valorizar alguns autores por não se pensar a

poesia e a própria arte como expressão de seu tempo, e, por isso mesmo, uma resposta, muitas

67

vezes repleta de embustes para se rebelar contra as formalizações impetradas nesse mesmo

tempo, sem que isso se torne evidente. As máscaras são agora de outro material, o riso, o

“besteirol” e a espontaneidade em relação ao corpo não são alheamento, mas possuem a força

de um enfrentamento matreiro, sorrateiro nos anos sinistros da ditadura; sem estrangular os

sonhos e a poesia, mas colocando-os como realidade maior, acima das vicissitudes de um

momento cruel da história brasileira. Observe que o poema abaixo oferece bem mais que a

proposta de viver intensamente o instante, o Carpe Diem, é um apelo de quem acredita que

nele está concentrada a intersecção dos tempos e a própria poesia:

Espere baby não desespere

espere baby não desespere

não me venha com propostas tão fora de propósito

não acene com planos mirabolantes mas tão distantes

espere baby não desespere

vamos tomar mais um e falar sobre os mistérios

da lua vaga

dylan na vitrola dedo nas teclas

canto invento enquanto o vento marasma

espere baby não desespere

temos um quarto uma eletrola uma cartola

vamos puxar um coelho um baralho

e um castelo de cartas

vamos viver o tempo esquecido do mago merlim

vamos montar o espelho partido da vida como ela é

espere baby não desespere

a lagoa há de secar

e nós não ficaremos mais a ver navios

e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida

e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim

espere baby não desespere

porque nesse dia soprará o vento da ventura

porque nesse dia chegará a roda da fortuna

porque nesse dia se ouvirá o canto do amor

e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite

com estampidos perdidos

(CHACAL, 2007, p.303-304)

Esse poema foi publicado primeiramente em tiragem artesanal em 1975, em um

volume intitulado América, logo após o retorno de Chacal da Europa, onde permaneceu por

onze meses. Assistira à apresentação de Allen Ginsberg em Londres, já então consagrado

68

poeta, vociferando o Howl de maneira performática, fazendo o então jovem poeta acreditar

que aquela era uma dicção com a qual iria trabalhar.

Esse poema de Chacal tem um tom lírico, um lirismo irônico de quem já rompeu

com o centramento e a linearidade convencionais, e por isso propõe um tempo mágico, difuso,

de uma imaginação que apreende as contiguidades de várias experiências vividas, ali,

instantaneamente, como se o instante captasse o passado fundido no presente e trouxesse, pela

palavra poética, uma outra perspectiva temporal .

O eco: “espere/desespere,” (verso 1 e o próprio título), “propostas fora de propósito,”

(verso 2), “planos mirabolantes distantes” (verso 3) reforça essa sensação na medida em que a

justaposição dos fonemas, a repetição sonora, produz uma quebra da progressão, da

linearidade. O imperativo “não me venha.../não me acene” (versos 2 e 3) é uma recusa à ação

racionalmente planejada em um tempo linear, progressivo, e um convite à permanência e à

fruição do instante.

Esse mesmo eco inicia cada uma das cinco estrofes. Na segunda, a conversa sobre a

lua, eterna imagem lírica, é também uma proposta de mudança do rumo de uma prosa

sucessiva, retilínea, para uma adesão a um colóquio em que o tempo é cíclico e a repetição é

também invenção. Então, essa palavra compartilhada é entorpecida, xamânica, fala de

mistérios; é o canto do poeta que produz a musicalidade da poesia e capta a canção do vento.

“dylan na vitrola dedo nas teclas” (verso 7); imediatamente nos vem à mente: Blowin

in the Wind, e como o vento que corre, o fluxo da consciência se expressa pela sobreposição

de sons e imagens que se parecem com lufadas que vêm e vão, indiferentes à razão,

desencadeando uma ambientação surreal, muito íntima daqueles que sonhavam com a

liberdade e com a fantasia de uma integração com a natureza na década de 1970. O próprio

estilo musical de Bob Dylan, o folk, o blues, associou, naquele momento, juntamente com a

cantora Joan Baez, o sonho e a imaginação a uma música politicamente envolvida com temas

como a guerra do Vietnã e os protestos pela paz e pelo respeito ao homem e à natureza como

um todo.

Como os beats, muito caros também a Dylan, a simplicidade e o desejo de

experimentação constante farão do eu lírico um viajante pela magia da vida: “a cartola, o

coelho, o baralho, o castelo de cartas, o mago Merlin” (versos 10, 11, 12 e13,

respectivamente) e sua dubiedade existencial, todos são signos das incertezas e da profusão de

sentidos e experiências que a vida oferece a quem dispõe de energia e intuição para “montar o

69

espelho partido da vida como ela é” (verso 14), sem idealizações racionalizantes ou

definitivas.

Tudo é provisório; a “lagoa há de secar” (verso 16), o que está estagnado irá

evaporar, não existe nenhuma solução final, há sempre um recomeço, e viver com

premonições ou expectativas pessimistas não muda o rumo dos ares; a sorte já está lançada, o

espelho já se partiu. “O vento da ventura, a roda da fortuna, e o canto do amor” (versos 21, 22

e 23) chegarão no momento certo, indiferentes ao desespero de quem quer controlar o tempo,

essa fase de infortúnio irá passar...

O texto tem um tom otimista de quem acredita que os anos de chumbo são apenas

um pequeno intervalo, uma fase, diante de uma dimensão temporal não linear; nela se

inserem, na contingência histórica imediata, os mitos e um tempo cíclico, pagão, mágico. Há

concomitantemente, portanto, uma recusa transgressora do tempo sucessivo da História oficial

e à convenção moral cristã, por quem não espera a punição final por querer gozar a vida.

E essa é também uma atitude dissonante como a de que nos fala Octavio Paz no

capítulo “Literatura e Convergência”, em A outra voz (1993), quando aborda a fusão da

mudança e da permanência com a ideia de um perpétuo recomeço. Em: “e nós não ficaremos

mais a ver navios/ e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida/ e nós não ficaremos mais a

temer a asa negra do fim” (versos 17, 18 e 19) toda uma perspectiva temporal de sucessão e

irreversibilidade é negada e o eu lírico propõe um novo começo, mais compatível com a

postura de quem quer gozar a vida sem o peso de uma culpa atávica. Então, o ficar a “ver

navios”, por exemplo, não cabe para nós, americanos; aqui, os navios chegaram, não se foram

e “o fio da vida” não será roído, porque, apesar das rupturas, sempre haverá um outro início,

uma outra ponta. Nem o mau agouro de “a asa negra do fim” será temido, porque essa asa

pode ser aqui a de Exu, divindade que tem o poder de desfazer as maldições. O vento, a roda

e o canto (última estrofe) estarão sempre presentes, eterno retorno, prometendo outra

dimensão da vida, mais plural e sincrônica, que romperá com esse tempo da queda ou do juízo

final, da culpa que nos foi incutida pela moral cristã.

Como nos mostrou Paz (1993), o eu lírico da modernidade dos fins do século XX,

não é mais o anjo caído de Baudelaire, de “As Litanias de Satã”, mas o vagabundo

claudicante, que tem para oferecer apenas sua palavra e a magia da lua vaga e das “cartolas”

repletas de surpresas inusitadas e de invenções poéticas, além da música e do quarto “(temos

um quarto uma eletrola uma cartola/” (verso 10), espaço onde a imaginação criadora

70

imprevisível e o amor poderão ir ao encontro do prazer pelo aceite ao convite sedutor: Carpe

Diem.

Várias são as referências ao imaginário da contracultura underground aqui. Aliar

vida e arte aos prazeres do corpo e da mente, intrinsecamente conectados num todo não

esquartejado pelo pudor, num processo de rebelião permanente, são suas premissas. Chacal

compartilha dessas propostas do movimento beat, em que “a revolução não é nada se não

ocorre no interior de cada um” (KEROUAC, 2012, p.85). E esse interior é o nosso corpo

inteiro, com suas aberturas comunicativas para uma vida que procura fugir da culpa do pecado

original.

Os beats acreditavam que toda forma de rebelião só seria realmente válida se

desafiasse a sociedade, assolada por uma insensibilidade engendrada pela burocracia e pelo

consumismo. Burroughs, um dos principais representantes do movimento, e personagem de

“On the Road”, narrativa de viagem do grupo pelas estradas dos USA e do México, é assim

descrito pelo autor, Jack Kerouac:

Passava longas horas com Shakespeare, “ o Bardo imortal” ele o chamava, no colo.

(...) Tinha estudado Medicina em Viena, também conhecia Freud; estudara

Antropologia, tinha lido de tudo; e agora estava instalado para o grande trabalho de

sua vida, que era o estudo das coisas em si nas ruas da vida e à noite. (...) As cortinas

próximas a sua cadeira estavam sempre cerradas, dia e noite; aquele era seu canto na

casa. Em seu colo jaziam os códices maias (KEROUAC, 2012, p. 280)

Percebe-se, portanto, que é falsa a generalização de que a contracultura não

valorizava a tradição. A crítica feita pelo movimento era a forma como a sociedade colocava

essa tradição, como algo intocável; assim como as vanguardas europeias também o fizeram.

Eles acreditavam no poder de uma cultura viva, pulsante, que mantivesse uma ininterrupta

relação com o cotidiano, com a vida das pessoas e através dessa dinâmica revigorasse uma

tradição em trânsito com o senso comum para engendrar críticas mais reflexivas diante de

uma sociedade que reificava os homens e a natureza para torná-los mero recurso de um

capitalismo cada vez mais selvagem.

On the Road é considerado pelo crítico Howard Cunnell, no prefácio da edição

brasileira da obra em 2012, como um romance canônico da literatura norte-americana,

juntamente com Moby Dick, The Adventures of Huckleberry Finn e The Great Gastby.

No entanto, quando Kerouac terminou de escrever seu manuscrito em 1951, houve,

71

consecutivamente, rejeição de diversos editores, sendo publicado apenas em 1957. Podemos

perceber aqui também como são frágeis e provisórias as delimitações entre cultura e

contracultura e entre as margens e o centro... Chacal teve sua última obra, Murundum,

publicada pela grande editora Companhia das Letras, depois de imprimir seus próprios textos

de forma independente por vários anos, de 1971 até 1982, quando a pequena editora Taurus,

no Rio de Janeiro, publicou Tontas Coisas.

Hoje, a Literatura deixou de ter lugar de destaque, como bem salienta Marcos Siscar,

em Poesia e Crise (2010). A ilusão romântica de a poesia ter o poder de guiar os povos já não

cabe mais. Mas essa ideia de a poesia ser o lugar dos marginais, dos malditos, já vem,

segundo Siscar, desde Baudelaire. Mesmo a sua condição de “antena da raça”, proposta por

Pound, já traz a sua capacidade de revelar um perigo eminente em um momento de crise:

“falta de condições de poesia, da falta da poesia, ou da poesia que falta” (SISCAR, 2010,

p.42) Paira no ar, em As flores do mal, o fim da poesia, como uma condenação, e o poeta

como vítima e algoz, que vive da agonia do colapso da poesia ou da vida sem a poesia na era

da crença de um progresso técnico. “Constatar o fim dos tempos da poesia é um modo de a

poesia realizar o espírito moderno. É a generalização da poesia como seu inferno da poesia.”

(SISCAR, 2010, p.48) O poeta e a poesia carregam a capacidade de formalizar um discurso

que acolhe em si, para si, essa crise, como podemos ver abaixo, em trecho de um poema de A

vida é curta pra ser pequena:

cidade

..............................

parada cidade estranha

choque elétrico todo dia

a dias meses anos

desintegrar- bang big-

numa implosão final

impotentes para formatar

bilhões de bytes

trilhões de raios catódicos

em expressão inteligível

cidade: parada estranha

excesso exagero coisa fumaça

corpo crivado de bits

corpo crivado de bits

corpo crivado de bits

(CHACAL, 2007, p.52,53)

72

As alterações materiais da leitura e das formas como se tem acesso à poesia nas

sociedades industriais a partir de meados do século XX acentuaram-se muito. A publicidade,

as tecnologias e os meios de comunicação de massa estão incorporados no discurso poético

como formas de redefinir e denunciar essa falta a que Siscar se refere. Chacal fez isso no texto

acima, sem deixar de retomar essa ambiguidade do corpo do poeta e da poesia, algoz e vítima,

que já estava presente na modernidade desde Baudelaire.

Assim, dentro do processo de “desintegrar- bang-big -/ numa implosão final/

impotentes para formatar/” (versos 4, 5 e 6) os próprios limites entre identidade e alteridade

estão fraturados, já que, como lembra Stuart Hall (1997):

Um tipo distinto de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas

no final deste século, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,

sexualidade, etnicidade, raça e nacionalidade que nos deram localizações sólidas

como indivíduos sociais. Estas transformações estão também modificando nossas

identidades pessoais, enfraquecendo nossa percepção de nós mesmos como sujeitos

integrados. Esta perda de um sentimento estável do self é algumas vezes chamada de

deslocamento ou descentramento do sujeito. (HALL, 1997, p. 5)

Esse deslocamento está presente em toda a narrativa de Kerouac, apesar de ter sido

escrita na década de 50, antes dos fins do séc. XX, a que o texto de Hall (1997) se refere.

Sabemos que a arte antecipa as questões de seu tempo e oferece respostas que desestabilizam

zonas de conforto. Quando o texto expõe as comunidades subterrâneas nos EUA e a sua

cultura de origem em trânsito permanente, como a dos imigrantes hispânicos, os miseráveis

desempregados, os índios que perambulam pelas hordas das cidades, alcoolizados, com seus

olhares opacos, ou os guetos dos negros, onde a revolta, a alegria e a tristeza são expressas

através do jazz, ele está rompendo com a homogeneidade do espírito nacional norte-

americano do pós segunda guerra e do início da guerra fria, que pretendia justamente o pacto

do sujeito centrado com a nação íntegra.

O narrador de On The Road e seus companheiros de viagem se irmanavam com as

pessoas que viviam em ambientes miseráveis, que, como nos tempos medievais, misturavam

corpos, detritos e animais, assim como o eu lírico do poema Solo, de Chacal, analisado no

início desse capítulo. Veja-se como o excerto de On the Road abaixo nos mostra exatamente

isso:

73

(...) cabanas mexicanas caindo aos pedaços em algum lugar além da Avenida

Alameda. Esperei num beco escuro atrás das cozinhas mexicanas(...) Lâmpadas

pequenas iluminavam minúsculos becos de ratazanas. Podia ouvir Bea e sua irmã

discutindo sob a suave noite cálida. Estava preparado para o que desse e viesse. Bea

saiu e me conduziu pela mão (KEROUAC, 2012, p. 215)

Uma tensão desintegradora atravessa todo o romance, que possui uma respiração

ofegante, uma pontuação esdrúxula, numa cadência frenética, como a ânsia de continuidade

de deslocamento das personagens pelas estradas, pela viagem em si, onde o destino importava

pouco ou quase nada. A necessidade de encontrar algo não denominado é sempre

mencionada, mas nem as personagens sabem o quê. Talvez seja uma metáfora da

ambivalência do eterno desejo humano pela viagem, pela procura insaciável por um mundo

em que o fluxo da vida e das palavras se fizesse em um mesmo caminho.

Toda a longa narrativa, de quase quinhentas páginas, foi escrita originalmente em um

rolo de papel único e contínuo, sem parágrafos ou capítulos, em uma linguagem que

descostura a sintaxe tradicional, pois usa pouquíssimo a subordinação e quase sempre a

coordenação, como se todos os fatos tivessem um valor paralelo, em um ritmo contínuo em

que a vida transcorresse freneticamente, da mesma forma que a narrativa. Assim a

performance dos corpos em movimento através dos lugares percorridos flui no mesmo

compasso da performance das palavras ágeis pelo papel, e os limites do corpo e espaço

tornam-se permeáveis: “Pela primeira vez na vida o clima não era algo que me envolvia, me

acariciava, me enregelava ou fazia suar, mas era parte de mim mesmo. A atmosfera e eu nos

tornamos a mesma coisa.” (KEROUAC, 2012, p.444)

Novamente, como vimos em Chacal, o corpo vive de sua realidade na existência

sensível, material, espacial, da mesma forma que o corpo das palavras vive de sua

materialidade expressa no papel. Assim como somos feitos do espaço que ocupamos, e da

comunicação que estabelecemos com os outros espaços e os outros corpos, a palavra poética

também se faz de sua materialidade, de seu som, que rasga o silêncio, ou marca o branco da

folha como as pegadas daquele que caminha...

74

3 A PALAVRA E OUTRAS MARGENS

Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Mas traduzi-lo é dissimulá-

lo. A expressão verdadeira esconde o que ela manifesta. Opõe o espírito ao vazio

real da natureza, criando por reação uma espécie de cheia do pensamento. Ou se

preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no

pensamento. Todo sentimento forte provoca em nós a idéia do vazio. E a linguagem

clara que impede esse vazio impede também que a poesia apareça no pensamento. É

por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de

revelar têm mais significação para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas

análises da palavra. (ARTAUD, 1999, p.79)

3.1 Palavra-corpo

Se os corpos se definem pela sua materialidade e pelos seus deslocamentos, resultam,

a partir dos movimentos, fricções, marcas, não só em si mesmos, mas nos/dos espaços

percorridos e/ou ocupados no tempo delimitado de sua existência. Assim também a palavra

poética traz em si percursos e significados já praticados e, no instante e na forma usada,

muitos vêm à tona, e aqueles que mais chamam a atenção do leitor são selecionados, podendo,

inclusive, não terem sido pensados pelo autor. Cabe aqui a frase do poeta Ralf Waldo

Emerson (USA,1803-1882) lembrada muito oportunamente pelo também poeta marginal,

Waly Salomão (1944-2003): “Language is a fossil poetry” (Salomão, 2014, p.438), para

reverenciar essa palavra que se faz de depósitos decantados, sínteses de tempos e lugares que

se apresentam submersas nela, e que podem aflorar com a pressão de novas forças do instante.

A palavra poética, além disso, sempre propõe um jogo de imaginação porque

trabalha com a ausência, o que é expresso já traz em seu bojo o que não está mais ali, mas que

está nas margens dos significados. E esse aspecto da poesia, se a faz perder em exatidão, faz

ganhar no adensamento da expressão, na extensão dos sentidos proporcionada por jogos

estabelecidos em operações mentais diversas, já que é próprio da natureza da poesia propor

uma atenção lúdica que necessariamente envolve os que aceitam o convite para entrar na roda.

Esses aspectos lúdicos da palavra poética, como o uso da paródia, do pastiche e da

intertextualidade foram largamente explorados por Oswald de Andrade, e Chacal, seu grande

admirador, soube também, através dessas operações formais, fazer outras combinações, além

das já presentes na “Antropofagia” e no “Pau Brasil”, em novas composições em que as

75

marcas da colagem tornam-se reorganizadoras dos elementos postos e prepostos. O

movimento tropicalista e o concretismo usaram também esses recursos e ambos aparecem

rearticulados na poesia de Chacal. Evidenciar esse trabalho na obra do poeta carioca torna-se

instigante para repensarmos esse conjunto ainda em processo de interação na poesia brasileira.

As ideias de Marjorie Perloff (2013), desenvolvidas em O Gênio não original, de

que a poesia concreta funcionaria como um movimento de “retaguarda”, em relação às

conquistas linguísticas praticadas pela vanguarda artística europeia, serão também muito

importantes para situarmos a produção poética de Chacal como um refluxo dessa retomada.

A poesia de Chacal convida o leitor para ser mais um partícipe desse jogo e, nos anos

de 1970, sem deixar de criticar as condições do momento histórico da ditadura militar,

brincava com elas, fazendo uso da colagem e de um tom que, através de uma tática rebelde e

de elementos surpresa, contagia, envolve e cativa:

É PROIBIDO PISAR NA GRAMA O jeito é deitar e rolar.

(CHACAL, 2007, p.214)

Johan Huizinga, em obra escrita em 1938, que se tornou clássica, enfatiza a origem

lúdica da poesia e seu ancestral comum com o sagrado e o mítico, afirmando guardarem todos

eles um parentesco entre si, na medida em que enfrentaram o desafio de dar respostas às

questões da origem das coisas e dos seres. Ao enumerar as características comuns entre o jogo

e a poesia – os limites espaciais e temporais, a ordem e as regras livremente aceitas, “o fato de

estarem fora da esfera da necessidade ou da utilidade” (HUIZINGA, 2004, p.147), e o

entusiasmo acompanhado de exaltação, de uma tensão seguida por uma distensão – procura

definir a poesia como um jogo com as palavras, com a linguagem.

Na antiguidade, os jogos enigmáticos e as adivinhações faziam parte dos contextos

ritualísticos e das figuras mitológicas, como na edipiana esfinge, mas essa ligação do sagrado

e do cosmogônico com a vida da pólis vai se desfazendo processualmente na medida em que

as relações sociais tornam-se mais complexas, porém a poesia não perde essa natureza

agônica ancestral, que não se desvencilha do riso, do jogo, do êxtase.

Esse êxtase do ritual, do jogo, ou mesmo o da festa, do gozo, resulta de uma

desvinculação temporária com o tempo cronológico imediato. Visceralmente marcadas em

nosso imaginário, as festas religiosas, com suas danças, músicas, imagens cultuadas, cores e

76

adornos na decoração, os alimentos servidos nas ruas e praças, o exagero, a fartura, a

extravagância e as fantasias vestidas ou sonhadas representam um momento de suspensão da

execução de tarefas do cotidiano. Como o jogo, é um intervalo com tempo próprio. Se

pensarmos nas festas populares, de rua, chegaremos ao período medieval em que elas

duravam, em seu total, segundo Bakhtin (1993), um quarto do ano.

Hoje, nos grandes centros urbanos, esse tempo intervalar e de convívio coletivo

apresenta-se completamente estrangulado, são reservadas apenas algumas horas anuais para as

festas, e mesmo assim elas estão completamente desvinculadas desse contexto de consagração

da igualdade e abolição das barreiras sociais, estudadas pelo grande pensador do medievo.

Nas cidades em que “o tempo é dinheiro,” falta esse intervalo, mas os loucos e os

moradores de rua o trazem de volta (e isso nos incomoda muito) na medida em que eles

estabelecem uma outra relação entre o corpo, o tempo e o espaço, vagando despreocupados.

Trazem em seus próprios corpos os restos pulverizados de tudo ao cobrir-se dos fragmentos

das ruas, retomando e incorporando, de uma forma esdrúxula, uma amostra da totalidade

citadina em si, como que numa espécie de ausência de fronteiras entre eles mesmos e os

vários resíduos rejeitados das cidades. A pele sensível e seus poros comunicativos captam

partículas mil, o corpo humano é permeável e os limites físicos que proporcionam as

sensações são vazados, vulneráveis. Da mesma maneira, a palavra poética é também porosa e

oferece a possibilidade de trânsito entre os sentidos racionalmente estabelecidos e outros, que

permanecem latentes.

A cultura disciplina e efetua um controle entre os sulcos do corpo humano, o do

outro e o ambiente, estabelecendo alguns limites, tempos e espaços adequados para a

existência em sociedade. Esse controle se apresenta muitas vezes fragilizado, como no caso

dos loucos e dos moradores de rua; ou modificado, como nas festas em que os exageros eram

(e ainda o são, em certa medida) tolerados. Mas sair da “zona de conforto”, dos tempos e

espaços emoldurados é também um risco que muitos artistas/poetas ousam tentar ultrapassar,

trazendo uma palavra, uma expressão que opera com a falta, com o que está ausente, com

outros limites, estabelecendo uma conexão diferente com o tempo, o espaço, o corpo e a arte,

como veremos em alguns poemas de Chacal que analisaremos aqui, e em outras atuações suas

como artista e promotor cultural.

O artista plástico tropicalista, Hélio Oiticica, também trabalhou muito bem com essa

ideia do corpo enquanto matéria viva que ocupa e se desloca nos tempos e espaços, e a arte

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como matéria possuidora de outras possibilidades de representação, que intercede nessas

relações. Antecipou criativamente, portanto, várias discussões formais e conceituais da arte,

quando criou em 1960 o “Parangolé”. Viu uma instalação construída e assim denominada por

um morador de rua, e apropriou-se do nome, que significava “coisa”, “treco”, para montar sua

obra/capa/tenda. Esse investimento do sentido poético com uma linguagem das trivialidades,

das banalidades, também através de seu corpo significante, está, da mesma forma, no nome e

no último livro de Chacal, publicado pela Cia das Letras em 2012: Murundum.

O autor esclarece na contracapa do livro que a palavra significa “uma quantidade de

qualquer coisa; porção, monte. Coisas (papéis, canetas, blocos, objetos) desordenadamente

colocadas ou guardadas em qualquer lugar. Bagunça. Confusão.” A valorização do que é

resto, do que é descartável pela sociedade do consumo e pelo refinamento cultural insosso,

incrustado em seu próprio miolo, centro compactado e refratário às mudanças, está registrada

no poema “Aquilo que sobra”, abaixo, que nos faz lembrar de muitos poemas do original

poeta moderno, Manoel de Barros (Mato Grosso 1916-2014) que também trabalhou com uma

poesia que valoriza as miudezas, os materiais descartáveis e inusitados: “minhocas arejam a

terra, poetas, a linguagem”. Esse verso de Barros está na epígrafe de Letra Elétrika, de

Chacal. E em Murundum vemos:

gosto daquilo que sobra

daquilo que as pessoas desprezam.

na feira, recolho entre os dejetos

a semente da abóbora, a folha da mandioca.

no empório compro o farelo do trigo, do arroz.

gosto de me alimentar de coisas nutritivas.

pessoas principalmente.

mas nossa cultura, assim como os grãos, refina

as pessoas.

tira delas o mais nutritivo e deixa apenas o miolo

sem substância.

(CHACAL, 2012, p. 13)

Essa particularidade do último livro de Chacal e a ideia de reciclagem como recurso

poético aproximam sua obra à de Oiticica e do movimento tropicalista. No posfácio de Poesia

Total, de Waly Salomão (2014), o artista plástico reafirma essa noção de corporeidade ou

materialidade da palavra, objeto artístico, como uma espécie de depósito, síntese do que o

raciocínio lógico não foi capaz de comunicar anteriormente.

78

É como se no dia seguinte, quando você olha tudo o que tinha escrito na véspera,

você procura recondicionar tudo acrescentando uma nova perspectiva. E cada parte

nova que você acrescenta é o recondicionamento do que foi feito antes, quer dizer,

inclusive reformula de outra época. Então há nessa posição, como se fossem

compartimentos do dia a dia, como se fossem lixos que você deposita, não sensações

ou experiências do dia a dia. (OITICICA, 2014, p.517)

Ao refletir sobre vários aspectos de sua escultura móvel, “Parangolé”, repleta de

materiais igualmente banais, que realmente iriam para o lixo – recortes, retalhos, borracha,

plástico, corda, palha – voltamos ao Murundum, de Chacal. Primeiramente a associamos à

performance, ao gesto, ao próprio corpo em interação dinâmica com a escultura, lembrando a

dança, a festa, a fantasia, a rua e os contatos multiculturais, que são a tônica do tropicalismo.

Traz ainda uma reflexão, muito reincidente nos poetas marginais e em Chacal, sobre o conceito

de “objeto artístico” dentro da economia simbólica da sociedade de consumo; ou ainda sobre as

controvérsias, limites e deslimites da cultura como metáfora da rua/casa/abrigo/desabrigo. A

obra de Oiticica sinaliza uma importante discussão sobre a cultura como algo que nos veste,

compõe, sustenta, e nos expõe ao novo, ao trânsito, ou nos domestica, aprisiona; e a arte como

um ato de desfamiliarização ou desautomatização do contumaz, que traz possibilidades de

construir respostas, de exercitar a dúvida, de vestir a utopia em sua espinha; a linguagem como

o corpo da expressão artística.

Nessas esculturas móveis de Oiticica apareciam frases como: “Incorporo a revolta”

ou “Estou possuído”. Pensando sobre essa forma extremada, essa linguagem corporal da

rebeldia, podemos chegar à ideia da expressão como uma necessidade do artista que produz seu

objeto a partir da incorporação de outros retalhos discursivos, de vozes entrecortadas por

outras, desterritorializadas e caóticas e as potencializa em si.

E podemos ainda relacionar esse aspecto da expressão artística, presente nas frases

de Oiticica acima, à composição do objeto artístico como um agrupamento de descartes dos

corpos, lascas, farelos, tal qual nos fala Chacal em Murundum, como muitos dos poemas de

Waly Salomão (Bahia, 1943; Rio de Janeiro, 2003), contemporâneo de Chacal em publicações

nos anos de 1970, que também atribui à poesia essa capacidade de presentificar restos de

outros corpos/palavras fluidas, em uma atividade criadora, comunicativa, que atravessa a

linguagem (como nos disse também Manoel de Barros no verso acima), num exercício com a

alteridade, uma performance que se confunde com a própria arte:

79

Há uma lasca de palco

em cada gota de sangue

em cada punhado de terra

de todo e qualquer poema.

(SALOMÃO, 2014, p. 395)

O poeta foi amigo pessoal e grande admirador da obra de Oiticica, admitindo,

inclusive em versos, o contato com o artista plástico como determinante em sua poesia. Flávio

Boaventura (2009), estudioso da obra de Waly Salomão, acrescenta: “a constituição do

sentido do discurso se dá - e isso fica patente em Waly- a partir de interações, interseções e

atritos; através da voz do poeta falam outras vozes, enunciadores e enunciatários”

(BOAVENTURA, 2009, p.52). Mário de Andrade parece estar enviesado no trecho do poema

acima de Waly, com seu livro de estreia, em 1917; Há uma gota de sangue em cada poema.

3.2 Tempos-espaços

O deslizamento metonímico está muito presente na obra de Chacal, e é também um

sintoma, como veremos no poema abaixo, de Belvedere, mas sintoma de uma era em que o

tempo de comparar míngua, e em seu lugar acumulam-se imagens que se sucedem

freneticamente. Esse recurso às vezes torna sua escrita aparentemente uma coisa de louco,

ilógica, como se ele apenas agrupasse, sem nenhum critério, signos banais do cotidiano que se

apresentassem de imediato. Mas uma leitura mais atenta desmente essa primeira impressão:

NEW YORK

atravessar new york de leste a oeste

e de frente pro rio, perguntar;

_ e aí hudson? qué pasa?

você que viu as torres gêmeas explodirem

sob o risco histérico dos wasps que te detestam

você que me viu caminhar devagar

entre seus canyons de cimento e aço

new york, fratura exposta, flor obscena de henry miller

gothan city, babilonest de hélio oiticica, musa de

80

woody allen, campos de centeio forever

new york, submundo de lou reed, madona, jarmusch.

putas e gigolôs, travecos e junkies.

chinatown, little italy, wall street, civilizações em si

new york, verdadeira beleza americana,

washington square, músicos de metrô, luisaida

muito maluco falando sozinho e os cafés do village

taxi driver na porta do metropolitan

new york muitas vezes new york

expressão perfeita do capitalismo wasp que te odeia

porque conheces a beleza e amas o outro

que te atravessa prá perguntar:

_ e aí ó hudson?

new york central park dos achados e perdidos desse

mundo

(CHACAL, 2007, p. 17-18)

Atravessar a cidade de New York, no poema, exige desse eu lírico caminhante bem

mais que ouvir a voz do Rio Hudson. Passar através desse espaço, exige um recorte da área,

não só com os passos, mas com a mente e o corpo inteiro, numa atitude de (re)conhecimento

de seu território, de seus (des)limites, de suas representações. O Rio Hudson, antes profundo e

caudaloso, agora assoreado e poluído no centro de Nova Iorque, é interrogado sobre o que se

passa pela cidade. Ele parece não poder responder à interpelação, pois perdeu a antiga força,

suas águas, hoje mais rasas e turvas, viram demais, sabem muito das terras que margeiam, e

sua transparência se perdeu.

Viu a construção e explosão das torres do World Trade Center, esse símbolo do

poder e da cultura industrial norte-americana já não existe, e algo mais se fragmentou, além

de cimento, aço e vidro. Os wasps (white, anglo-saxon and protestans), detestam essa Nova

Iorque que se (re)apresenta agora, cheia de corpos estranhos, com outras cores, vestida de

outras crenças que incomodam tanto aqueles que se julgam representantes da origem pura das

terras norte-americanas.

Agora a cidade trincada traz consigo as “impurezas” que se infiltram nas rachaduras

que estão expostas, visíveis para quem quiser enxergar esses novos elementos que compõem o

espaço e as imagens que substituem aquela de uma brancura conquistada com muito vermelho

do sangue dos indígenas exterminados.

E essa “fratura exposta” (verso 8) contém as obscenidades de um escritor malvisto e

banido nos Estados Unidos e no Brasil por longo tempo: Henry Miller (New York 1891-

81

1980), um socialista que, com sua escrita às vezes caótica, misturava autobiografia com

ficção, manchando, com sensualidade e pândega, a moral e a sobriedade sisuda dos puritanos.

E nessas rachaduras aparece a imaginária “gothan city” (verso 9), fundada por

mercenários estrangeiros, que perderam seu controle para os ingleses, mas onde, mesmo

assim, permaneceram corrupção, criminalidade e rituais que causam aversão aos cristãos

anglicanos; por isso, é uma cidade babilônica, em que povos de todas as partes do mundo se

misturam, mesmo sem querer, na paisagem onde o homem morcego realiza suas proezas em

defesa do capital. A “babilonest13

de hélio oiticica” (verso 9) possuiria então essa escritura

cuneiforme, com pictogramas que representariam todos os formatos do mundo. De fato, Hélio

Oiticica, que morou anos em Nova York, desejava registrar muitas formas de representar a

experiência dos corpos em uma linguagem multiforme, em que variadas culturas pudessem

conviver, sem se reduzir por isso a explicações lineares, mas em um trânsito constante,

maleável e sensível, cuja síntese seria o próprio movimento do ser e do processo de

construção do conhecimento. A arte seria, portanto, um entrelaçamento simbólico dos gestos

(a palavra estava inclusa, ela seria também produto de um corpo em movimento) e dos

silêncios.

Nova Iorque é a musa eleita de Wood Allen (verso 10) e é sempre cenário de seus

filmes. Em “campos de centeio forever” (verso 10), temos The Catcher in the Rye, de

Jerome David Salinger (New York, 1919-2010), um dos romances mais vendidos do mundo,

publicado em 1951, em que a personagem central, Holden Caulfield, é um adolescente

alienado, com sérios problemas de identidade e de relações de pertencimento, que após ser

expulso do colégio, visita um hotel decadente e perambula bêbado e solitário pelas ruas de

Nova Iorque. O eu lírico do nosso poema também caminha devagar (verso 6) pela mesma

cidade, e, à maneira de um fotógrafo, recorta essas imagens que nos são apresentadas com a

mesma itinerância do adolescente fugitivo de Salinger.

Em “new york, submundo de lou reed, madona, jarmush.” (verso 11) temos um fluxo

itinerante de menções a: Lou Reed (New York, 1942- 2013), músico, guitarrista, fotógrafo e

poeta, que fala também de deslocamentos na cidade em suas canções (“take a walk on wild

side”); Madonna, cantora pop, que dispensa apresentações e Jarmush (USA,1953),

13

A expressão “ babilonest”, além de fazer referência à Babilônia, possui um sufixo que nos faz relacioná--la ao

nome de uma música de Lobão e Cazuza: Baby Lonest, em que uma mulher do asfalto de uma grande cidade

possuiria um amor que a deixaria em cacos e ela carregaria todo o ocidente nos ombros, numa alusão à antiga

cidade da Mesopotâmia, sua riqueza científica que nos foi legada, à torre de babel e à origem única da língua

indo-europeia.

82

compositor, produtor independente, ator e diretor de cinema, cujo filme “Dead Man” é

considerado um anti-western, porque focaliza a crueldade das mortes dos índios norte-

americanos, e não é, portanto, um elogio aos civilizadores ingleses, pelo contrário. É

interessante observar que todos os nomes próprios usados são grafados com letra minúscula, o

que nos faz pensar que, no poema, eles são apenas um substitutivo, uma metonímia para a

cidade, e, por isso, de alguma forma se equivalem, um pode ser o outro. Não há certezas ou

espaços fixos, e eles se desdobram uns dos outros.

As palavras que se seguem na quarta estrofe fazem referência a drogas, prostituição e

ao submundo sombrio da metrópole que se abre a um comércio interno de toda sorte, Wall

Street, suas ações, e o externo, em que povos europeus e asiáticos comparecem. Há ainda

palavras com duplos sentidos: “Chinatown” (1974), bairro da cidade, e um filme de Roman

Polanski, com perigosos jogos de poder e sedução, e “Junkie”(1951), é o nome de um

romance confessional do beat William Burrroughs (USA,1914-1997), professor, escritor e

antropólogo, em que narra sua experiência com a ingestão de heroína. A palavra dá nome

também a um programa de rádio nos EUA.

Na quinta estrofe, outro filme: “Beleza Americana” (1999), do diretor Sam Mendes,

é um clássico que satiriza os estereótipos de satisfação pessoal, enfatizando a monotonia de

uma vida confinada do cidadão de classe média, mostrada por um narrador que relata sua

própria morte. Essa dinâmica machadiana possui cenas exuberantes em que imagens repletas

da cor vermelha (das rosas da paixão de um desejo não realizado, e do sangue no momento

em que o protagonista/narrador é assassinado) contrastam com a aridez que assola uma

existência medíocre e aprisionada.

“washington square” (verso 15), nome de uma obra de Henry James (1843-1916),

escritor norte-americano que viajou muito por toda Europa, também nomeia um parque em

Nova York e as construções ao seu redor, que servem à universidade local. Luisaida14

, festa

latina tradicional, com música, dança e artes, também faz parte do conjunto imagético da

cidade e de todas as culturas que a alimentam e são alimentadas por ela; os músicos

ambulantes, os frequentadores dos cafés e os motoristas de táxi. E assim, no verso dezessete,

surge o “Taxi Driver” (1976), outro filme marcante e premiadíssimo, de Martin Scorsese, que

nos revela uma Nova York insone e violenta, de crimes, exploração e prostituição infanto-

juvenil. Esse taxi driver do poema está na porta do Metropolitan, um dos maiores museus do

14

A palavra significava Lower East Side neighborhood, termo que, latinizado, passou, por aproximação

fonética, a Loisaida, dando nome ao festival que acontece na rua.

83

mundo, que abriga obras de arte do mundo antigo, dos assírios, da Babilônia, dos gregos e

romanos, instrumentos musicais, armas, roupas e vasta coleção de pinturas europeias dos

séculos XII ao XX. Assim, observamos novamente os contrastes em vários tons dominando

essa paisagem citadina.

E essa cidade que nos é mostrada, e que se mostra em seus contrastes, é a “expressão

perfeita do capitalismo wasp que te odeia” (verso 19). O white, anglo-saxon and protestant

não aceita essa Nova Iorque multicultural. Mas o eu lírico, que a atravessa e conhece sua

capacidade de abarcar um mundo perdido e seus achados contrastantes, a ama. E é por isso

que ele a (re)constrói metonimicamente, várias vezes, através de várias imagens, numa atitude

hiperbólica, que quer preencher a impossibilidade, a falta de uma descrição ou comparação

metafórica, para registrar sua beleza em profundidade, usando um tom íntimo e singelo que só

os amantes correspondidos podem ter. A cidade o ama também porque ela, assim como o eu

lírico, conhece o sentido da beleza do/no caos, e ele estrutura esse caos com uma lógica

interna, presente no processo de elaboração do objeto artístico.

Ao falar desse caos da cidade de Nova Iorque, Chacal se aproxima de outro artista

brasileiro que também cantou essa cidade paradoxal; Sousândrade (Maranhão, 1832-1902).

Dentro de uma cronologia estreita, ele poderia ser chamado de romântico, como os autores de

seu tempo, mas seus textos antecipam uma linguagem e um conjunto temático que só poderia

ser valorizado a partir das realizações do modernismo, em 1922.

Ignorado no século XIX, foi resgatado pelos concretistas, os irmãos Campos, e a

partir da década de 1960, passa a ser estudado como um talentoso escritor brasileiro,

incompreendido e desvalorizado pelos seus contemporâneos, por trazer uma linguagem bem

diferente dos padrões do romantismo. Em sua mais importante e não terminada obra, o poema

narrativo O Guesa (s/d) – (supõe-se que a impressão tenha sido feita por volta de 1870, data

em que passa a viver nos EUA) – seu personagem título é um índio que tem como sacrifício

ritual uma peregrinação sem fim pelo mundo. O seu autor também viajou por vários anos

consecutivos por quase toda a Europa e Estados Unidos, onde morou por dez anos, para, por

fim, retornar ao Maranhão.

No Canto X de O Guesa, o autor antecipa essa crise de representação na

modernidade, que se mostra na constituição da própria palavra poética, como desejamos

enfatizar aqui. Ao romper com a estrutura discursiva romântica e sua linearidade, traz uma

cidade em que os ideais humanistas são decompostos pela especulação e corrupção. Se no

84

poema do escritor carioca, Nova Iorque nos é apresentada por uma série de metonímias

sobrepostas, que se configuram em referência ao universo cultural ao longo do século XX, e

os primeiros anos do XXI, em Sousândrade (s/d), essa (des)configuração se faz também na

própria linguagem, que coloca o caótico através de um multilinguismo e uma sobreposição

babélica de vozes que beira o incomunicável e apresenta-nos a impossibilidade de organizar

racionalmente esse mundo/cidade:

(a voz mal ouvida d’entre a trovoada:)

– Fulton’s Folly, Codezo’s Forgery...

Fraude é o clamor da nação!

Não entendem odes

Railroads;

Parallela Wall-Street à chattána

(SOUSÂNDRADE, s/d, p. 231)

Há também um sentimento de repulsa diante do horror que advém da imagem de

Nova Iorque. Ela é desespero e o Guesa não é um turista encantado, mas um sobrevivente,

que vê a intensificação, até a confusão geral e a ausência da ética cristã, de um liberalismo

econômico que a ergueu. Na bolsa de valores, corretores apregoam como bárbaros, ao mesmo

tempo oportunistas e escravos do sistema, do inferno em Wall Street “(corrupted free men

are the worst of the slaves)” (SOUSÂNDRADE, s/d, p.196):

(Morris Attorney; Cardozo, inventor; Young, Esq.;

Manager; Atkinson, agent; P. Offman & Voldo, agents;

Algazarra, miragem; ao meio, o Guesa:)

–Dois! Trez! Cinco mil! Se jogardes,

Senhor, tereis cinco milhões!

– Ganhou! há! haa! haaa!

– Hurrah! ah!...

– Sumiram.... seriam ladrões?

(SOUSÂNDRADE, s/d, p.231)

Ao trazer essa justaposição de vozes como operadora da linguagem, para mostrar o

caos do liberalismo econômico da cidade moderna, não podemos deixar de nos lembrar de

Walter Benjamin, e seu ousado “Projeto das Passagens”, que escreveu sobre a história cultural

e social de Paris do século XIX, com seus labirintos das arcadas, em um inovador sistema de

arquivo em temas e palavras-chave cuja problemática central era a sociedade mercadológica.

O livro ficou, coincidentemente também inacabado e incompreendido em seu tempo,

85

inclusive pelo filósofo e amigo Adorno (Alemanha 1903-1969), que, ao receber de Benjamin

manuscritos, critica seu trabalho por lhe parecer, a princípio, “sem interpretação teórica”

(apud PERLOFF, 2013, p. 63).

Sabemos hoje que Benjamim foi o precursor de uma abertura à valorização do

cotidiano e de uma crítica aos apelos do mercado ao fazer uma ponte entre eles, a academia e

a estética modernista em uma nova e visível experiência com os fragmentos, demonstrando

que a passagem irreversível do tempo e o decisivo caráter dos acontecimentos podem

significar desintegração e não necessariamente progresso. A sua visão de que para o

operariado “a consciência de si é mais teatral que política” (BUCK-MORSS, 2002, p.52) vem

da amizade e da aproximação com as ideias de Bertold Brecht, para o qual a fantasia era uma

experiência humana com capacidades transformadoras e que não deveriam estar

desassociadas das necessidades materiais. Os artistas seriam, portanto, experimentadores do

potencial humano e cultural, que também poderia estar presente nas relações entre as novas

tecnologias e os fenômenos da urbanização na modernidade.

O fascismo utilizou-se muito de exibições em espetáculos teatralizados para uma

catarse coletiva, dando a Benjamim a certeza de que ele estava no caminho certo e da

urgência do despertar de uma história que desmitificasse o presente e se preocupasse com o

espaço público em conexão com as imagens dos sonhos, do inconsciente coletivo, os fetiches

das mercadorias, o consumismo e as consequências dos processos de industrialização na

sociedade. A esse respeito, Benjamin se pergunta:

Quando e de que maneira os mundos das formas, que surgiram em mecânica, no

cinema, na construção de máquinas, na nova física, e que se apoderam de nós sem

que percebêssemos, nos mostrarão com claridade o que há de natural neles? Quando

a sociedade alcançará a condição em que essas formas, ou o que delas surjam, se

abram a nós como formas naturais? (BENJAMIN apud BUCK-MORSS, 2002,

p.159)

Até hoje não temos essa resposta. Essa forma mais natural de encarar a tecnologia

desmancharia seu poder de sedução que é tão necessária para o consumismo, para que o novo

de hoje se torne obsoleto amanhã cedo. Exatamente por isso é que a arte torna-se tão

importante para uma operação de resgate da história, fossilizada nos museus, para a realização

de um entendimento mais crítico dos fenômenos sociais, culturais e artísticos. Duchamp,

anos mais tarde, deu-nos essa lição com seus urinóis e bicicletas invertidas. A arte é capaz de

86

tornar visível o hiato entre o referente e o signo no próprio objeto artístico e foi exatamente

isso que as vanguardas propuseram ao desmitificar a “aura” da representação artística e sua

pretensão de verdade universal. Como a resposta à indagação de Benjamin, essa tarefa ainda

está para ser feita, e a poesia insiste em recorrer a essa operação de desmonte da linguagem

como uma imagem do real, para pensá-la como uma intervenção, como esse recado da Letra

Elétrika:

Olho

tu pensas que me vês

mas eu é que te vejo

eu sou mais poderoso

que o incrível hulk

mais incrível

que o poderoso chefão

porque eu sou

eu sou o olho

eu sou o olho

da televisão

(CHACAL, 2007, p.151)

O texto usa a metonímia do olho para dizer da complexidade da inversão

sujeito/objeto na manipulação midiática. O tema foi também explorado por Adorno, mas sem

os pontos positivos da linguagem da mídia, como o fez Benjamin, ao falar da acessibilidade

do cinema e como ele poderia ser importante na conscientização de novas possibilidades de

intervenção na realidade. Guy Debord , em A sociedade do espetáculo, publicado em 1967,

também trabalhou com o tema, mas já com a perspectiva da perda da qualidade de vida nas

sociedades burocráticas e da proletarização do mundo, essa mesma inversão para a qual

Chacal chama a atenção em seu poema acima, de como a alienação fabricada pela indústria

midiática é capaz de interferir inconscientemente no próprio desejo do sujeito pensante, a

ponto de tornar-se uma força superior à sua, em desmanche. O texto de Debord foi muito

debatido pelos movimentos contraculturais que se difundiram a partir de 1968.

Essa preocupação com a necessidade de criação de novas linguagens para a arte em

um mundo que se modificava velozmente e a perda do poder de impacto das artes tradicionais

já estava colocada pelas vanguardas. A intenção de procurar outras maneiras de acesso à

mente, que lidasse com um pensamento e uma expressão não restrita aos imperativos da

lógica positivista, que subtrai um poder mágico intuitivo de que a infância ainda é capaz,

87

poderia trazer ao ser humano uma reflexão capaz de provocar uma abertura que o defendesse

dos ditames impostos pela dominação econômica. O desejo de inventar uma linguagem que se

libertasse dos condicionantes linguísticos estritamente lineares fez um movimento de retorno

ao primitivismo e nesse sentido o pioneirismo do movimento surrealista já estava posto.

No Brasil, Oswald de Andrade no manifesto antropofágico, afirma que o Brasil já

possuía uma língua surrealista. Jorge Schwarz (apud GUINSBURG, 1995), em seu texto

sobre o surrealista Benjamin Péret, transcreve passagem da Revista da Antropofagia em que

o nome do artista é ressaltado:

Está em São Paulo Benjamin Péret, grande nome do surrealismo parisiense. Não nos

esqueçamos de que o surrealismo é um dos melhores movimentos pré-

antropofágicos. A liberação do homem como tal, através do ditado do inconsciente e

de turbulentas manifestações pessoais, foi sem dúvida um dos mais empolgantes

espetáculos para qualquer coração de antropófago que nestes últimos anos tenha

acompanhado o desespero do civilizado. (...) Depois do surrealismo, só a

Antropofagia. (Revista da Antropofagia, n.1, 1929)

A justaposição, o instantaneísmo e o aproveitamento de elementos que se contorcem

dentro do “intocável ancestral” (Flávio de Carvalho, no Manifesto do III Salão de maio/ 1939,

apud Guinsburg, 1995, p. 859) serão também explorados tanto pelo “Pau Brasil” quanto pela

“Antropofagia” de Oswald de Andrade, em que o pensamento selvagem da imolação, do

canibalismo, como “metáfora, diagnóstico e terapêutica” (NUNES, 2011, p.21) tem um papel

decisivo. Uma postura antidiscursiva e uma visão panorâmica e sintética proporiam uma

representação imagética para a linguagem, em uma montagem cubista, que, de várias

maneiras, antecipariam a forma como o movimento concreto trabalhou com a poesia. Veja-se

em Pau Brasil:

O capoeira

-Qué apanhá sordado?

- O quê?

- Qué apanhá?

Pernas e cabeças na calçada

(ANDRADE, 2003, p. 33)

Uma simplicidade quase infantil, natural, primitiva, mas que não descarta uma inédita

sofisticação operacional, com um forte apelo aos elementos fônicos, em uma dinâmica

88

corpórea com os componentes gráficos que se desenham no papel, também foram elementos

explorados por Oswald e estão fortemente conectados com o que o concretismo trabalharia

anos mais tarde:

relógio

As coisas são

As coisas vêm

As coisas vão

As coisas

Vão e vêm

Não em vão

As horas

Vão e vêm

Não em vão (ANDRADE, 2003, p. 65)

Não é por coincidência então que Haroldo de Campos comenta em texto “Uma

poética da radicalidade”, em introdução da edição de Pau Brasil (ANDRADE, 2003), que o

poeta antropofágico utilizou em sua linguagem poética elementos que estavam presentes em

uma sociedade brasileira que se modificava, que se industrializava, sem perder sua estrutura

arcaica, provinciana:

(...) projeta-se no campo da linguagem – no sentido amplo em que são também

manifestações da linguagem o cinema, a pintura, a diagramação do jornal, a selva de

símbolos da urbe contemporânea etc. – para além da restrita esfera da língua

(espécie verbal do gênero da linguagem, da qual a língua brasileira ou portuguesa é

apenas um fenômeno tópico). Do ponto de vista de uma sociologia da literatura, isto

significa que a experiência oswaldiana acusa, no quadro da crise geral da linguagem

suscitada pelos novos instrumentos de uma comunicação e reprodução da

informação da era tecnológica, o momento brasileiro em que, a essa crise se somava,

singularizando-a, a fratura socioestrutural definidora das contradições de nosso país,

daquele nosso “conflito fundamental”, ainda hoje não resolvido”. (CAMPOS, 2003,

p.74)

O fragmento acima transcrito foi escrito em texto de 1965. Nota-se, portanto, o

diálogo travado entre o “Plano Piloto da Poesia Concreta”, de 1958, assinado pelo próprio

Haroldo, Augusto de Campos e Décio Pignatari e a poesia de Oswald de Andrade. A técnica

da repetição, as anáforas, o paralelismo, a reiteração, a paranomásia e a aliteração farão o

diálogo entre a linguagem primitiva, quase simplória, com os imbricamentos tático-

semânticos dos cortes cinematográficos da modernidade. A “fratura socioestrutural" e o

“conflito fundamental” de seu tempo e espaço consubstanciam-se na própria palavra poética.

89

A utilização das técnicas de alteração da estrutura lógica discursiva, o deslocamento

tipográfico de partículas em relações de subordinação e coordenação, e a associação do

sentido das palavras à sua materialidade significante, ideia precursora do concretismo, já

estavam presentes na poesia inovadora de Cummings (USA, 1894-1962), embora alguns

desses processos já tivessem sido utilizados por Pound, Eliot e principalmente por Mallarmé.

Augusto de Campos empreendeu a árdua tarefa de traduzir Cummings durante mais de

quarenta anos, tal era a sua admiração pela obra do autor. Começou o trabalho em 1950, com

a primeira edição em 1960. Mas, com o desejo de adentrar-se cada vez mais nesse universo

tão particular da atomização dos vocábulos de que Cummings foi capaz, as edições foram

sendo ampliadas, cada vez com um número maior de poemas traduzidos, até a versão de

1994, em que ele afirma, no preâmbulo intitulado “e. e. cummings, sempre jovem”, de

Poem(a)s, 2011:

O que é fundamental para compreender a poesia de Cummings é que suas

transgressões tipográficas e sintáticas não são meros fogos de palha ou gratuidades.

O que ele pretende é rejuvenescer a linguagem e explorar, com maior flexibilidade

do que permitem as estruturas entorpecidas dos sistemas convencionais, o universo

complexo da percepção e da sensibilidade. (CAMPOS in CUMMINGS, 2011)

De fato, o trabalho de Cummings com a fragmentação das palavras e com

inesperadas associações icônicas trouxeram experiências sensoriais e imaginativas tão

experimentais e inovadoras15

, que ele foi também incompreendido em seu tempo e, durante

anos, ficou tentando ser editado, sem sucesso, até sua primeira edição de poemas, em 1923.

Podemos notar que essa intenção de situar a obra e o poeta como “jovem”, como o fez

Augusto de Campos no trecho acima transcrito, soa com o mesmo sentido que as vanguardas

enfatizaram: a novidade, a conexão da arte com o hodierno, com o tempo presente.

Marjorie Perloff, em O Gênio não Original (2013), faz um importante estudo sobre

a poesia concreta brasileira, em diálogo com vários autores internacionais que trabalharam

com uma complexidade maior do signo linguístico, desde The Waste Land, publicado em

1922, de Eliot (USA, 1888-1965), repleto de alusões satíricas, personagens e narrativas

alternadas, até a poesia da era digital, e introduz o termo “retaguarda” para explicar a atuação

concretista. Parte do que ela chama de “rejeição à interferência lírica do ego, formulada com

15

Dada a sofisticadíssima forma de impressão dos poemas de Cummings, com cores, espaçamentos, formatos e

implosões de palavras no espaço da página, torna-se impossível reproduzi-los aqui, sem cometer impropriedades

que desvirtuariam o seu todo significativo.

90

agressividade por Marinetti”, até chegar à defesa da “Poética Conceitual” e à “lendária morte

do autor”, de Barthes” (PERLOFF, 2013, p.49). Assim, quando a perda da identidade do

corpo que escreve se concretiza, o fim do carisma de profetas e videntes torna-se fato no alto

modernismo. Há uma espécie de dilúvio em que o pastiche, a apropriação, o plágio e a

ilegibilidade não se escondem mais.

A questão da originalidade está posta desde Benjamin com a obra de arte na era da

reprodutibilidade técnica, pois sem o original, o sentido de “reprodução” e “autenticidade”

desaparece, como nos hipertextos do Google e seus intermináveis links. Com as colocações de

Moser e Bourdieu sobre os modos de circulação dos bens culturais, as noções de apropriação,

reprodução, citação e cópia ficam ainda mais intrincadas. Será que na poesia o autêntico ainda

resiste, mesmo com a ironia, o poema- piada, a justaposição das citações e os aforismos? (Isso

sem falar nos textos acadêmicos, como esse, em que a citação e comentário à citação se

mesclam como em um tecido cujas estampas de figuras geométricas se confundem entre o

desenho e o fundo...) O contexto transforma o conteúdo? O valor do concretismo se coloca

nesse caminho e com essa perspectiva.

Na terminologia militar é a retaguarda que garante o sucesso da batalha. Se as

vanguardas já romperam com a verdade, a genialidade e a representatividade da arte, restam o

poder da reflexão, a elaboração de jogos com a linguagem, como os ideogramas, a colagem, o

multilinguismo, a fragmentação, e a citação; a palavra em sua mais completa materialidade.

Perloff entrevista Augusto de Campos e transcreve as palavras do poeta concretista:

Nos anos cinquenta (...) havia uma demanda muito importante por mudanças, pela

recuperação dos movimentos de vanguarda. Tivemos duas guerras que

marginalizaram e deixaram de lado por muitos, muitos anos, as coisas que nos

interessavam. (...) Podia-se dizer que toda poesia experimental, toda a arte

experimental, de certo modo foi marginalizada. Só nos anos cinquenta é que

começou a redescoberta de Mallarmé, a redescoberta de Pound. (CAMPOS in

PERLOFF, 2013, p. 118-119)

Assim, tanto o concretismo quanto a poesia marginal nascem da mesma forma que as

vanguardas, com um desejo de se libertar de um modo de fazer poesia dominante na época, de

ser subversivo, como os movimentos contraculturais. Justapor é tirar as aspas, é apropriar-se

com rebeldia, sem prestar reverência à origem; ao amassar a palavra, triturá-la, sente-se o

gosto, vê-se pelo avesso das suas “funções”, contraria-se, tornando o significante também

significado.

91

3.3 Textos/contextos

Uma atitude de irreverência em relação ao direito, à moral e à religião ocidentais,

que está presente também na poesia oswaldiana, aparece em um personagem criado por

Chacal, Quampérius, que diz: “o pensamento é o fragmento do caos estruturado” (2007,

p.257). A respeito dessa estruturação do caótico através de personagens, Ken Goffman e Dan

Joy (2007) afirmam que as figuras arquetípicas simbolizam a necessidade humana de

desestabilizar os sentidos, as formas, e os sistemas e colocar os valores em xeque. Assim, o

trickster, o enganador, ou o andrógino, presente em quase todas as culturas com vários nomes

e feituras, repetidamente nos expõe a qualidade do intangível em nossa mente, como algo que

está além de barreiras temporais ou culturais e que faz parte de nossa natureza simbólica

desde sempre. Se procurarmos a encontraremos representada nas personas das companhias

populares teatrais itinerantes por toda a Europa no século XVI; no Arlequim, ou no bobo da

corte, ou no brasileiro folclórico Malazarte, ou mesmo nosso herói nacional, Macunaíma, e

então chegaríamos ao urbano Quampérius, esse personagem de Chacal.

“quampérius Nepomuceno foi servir ao exército do povo, já que no brasil tinha sido

recusado por insalubridade impaludismo desvios de toda ordem: mental, sexual y política”

(2007, p.253). A trajetória desse herói, em obra publicada em 1977, reforça esse caráter

desviante, que se consubstancia também em sua capacidade de brincar com o que não é

naturalmente risível, ou filosofar, mesmo sendo um bandido marginal.

Nesse sentido, Júlio Diniz (2014), em artigo publicado pelo Núcleo de Estudos em

Literatura e Música, intitulado: “Antropofagia e Tropicália: devoração/adoração”, fala da arte

e da música nos anos da década de 1970 como forma de inventar novas maneiras para lidar

com a dor e o silêncio impostos pela ditadura militar. Assim, naquele momento, trazer a

alegria do corpo e do gesto era um procedimento estético combativo, embora, a princípio,

pareça justamente o oposto. Oswald de Andrade usou esse recurso várias décadas antes,

quando propôs a insubordinação e o sarcasmo como procedimentos para uma nova linguagem

poética.

Foi também atentando para esse aspecto lúdico e agonístico da linguagem poética

que a vanguarda dadaísta, o surrealismo, os beats e, mais tarde, no Brasil, os poetas marginais

desestabilizaram a sobriedade da poesia. Na primeira fase do modernismo brasileiro, Oswald

de Andrade também nos chamou a atenção para esse aspecto, trazendo o poema piada para os

92

livros, que ganhariam um toque de brincadeira, informalidade e alegria, sem perder o poder de

reflexão sobre a dúvida, o claudicante como fatalidade da condição humana, o que foi

reaproveitado pelos marginais, sobretudo por Chacal, que, além disso, procurava resgatar a

poesia da compartimentada academia, para trazê-la para a vida nas ruas.

Portanto, pratica esse sentido às vezes esquecido da palavra poética, da presença

através da ausência, o que, afinal, não tem nada de novo, mas, ao contrário, é radicalmente

antigo, já que nas culturas arcaicas a poesia esteve ligada ao divertimento, à adivinhação, a

“estruturas lúdicas intemporais e onipresentes” (HUIZINGA, 2004, p.157), e portanto, a um

desejo de trazer em si o que sempre escapa, o ambivalente, que está entre a convicção e a

fantasia, entre a seriedade e o riso, entre o sagrado e o profano, entre o ritual e a festa.

Boaventura, ao se referir a esse mesmo aspecto, presente também na poesia de Salomão,

afirma:

Transpor o carnaval para a poesia- carnavalizar- significa fazer do riso

(ambivalente) forma vitae para combater o tedium vitae, transformando-o em

“máquina de guerra” (Deleuze) destroçadora do medo e da subserviência. Sim, será

necessário viver no limiar (da vida e da morte, da razão e da loucura, da verdade e

da mentira etc) e romper com o ideal de mundo sério, dogmático; implica em

aprender a converter adversidades em movimentos propulsores (BOAVENTURA,

2009, p.82)

Chacal nos conta como Oswald representou para ele essa propulsão e uma revelação

para esse aspecto antidogmático da poesia:

Um dia, Charles me apresentou um que mudou meu destino. (...) Era um exemplar

pequeno de capa cinza da coleção Nossos Clássicos da Editora Agir, e o poeta era

Oswald de Andrade. Sabia quem era Oswald pela peça O rei da vela, dirigida por

José Celso Martinez Corrêa, e pelas muitas citações tropicalistas. Mas quando li o

livrinho com excelente introdução de Haroldo de Campos, fiquei três dias abobado,

rindo sozinho, besta feito um jubileu. (CHACAL, 2010, p.22)

Alguns estudiosos da Literatura, ao se referirem à poesia marginal como um todo,

insistem em abordá-la como desprovida de tensão ou de uma reflexão sobre a tradição

literária. Leyla Perrone-Moisés, por exemplo, em posfácio ao volume de reunião dos textos de

Waly Salomão (2014), Poesia Total, afirma:

93

Estes poemas mostram que ele conseguiu manter o pique do jovem Sailormoon,

enquanto sua poesia se adensava de experiência vital e de ampliada cultura poética.

É exatamente por essa cultura, por essa seriedade na prática do ofício, que Waly não

pode ser chamado de “poeta marginal”. (PERRONE-MOISÉS, 2014, p.519)

Está dito, portanto, que a poesia marginal carece de “seriedade na prática do ofício” e

de “cultura poética”. Sem entrar em maiores discussões sobre o que seria essa seriedade ou

essa “cultura poética”, vamos verificar nas análises dos textos de Chacal, que estamos fazendo

aqui, justamente o contrário. O caráter reflexivo da poesia de Chacal subverte essa ideia de

que sua obra seria apenas colada no cotidiano, sem um conteúdo revelador de ajuste da forma,

ou de uma tensão necessária para o exercício poético.

Tais críticas se devem ao fato de os textos de Chacal e de outros poetas marginais

terem muitas vezes um caráter zombeteiro e uma aparência de descompromisso formal. Mas

essa necessidade de separar o “sério” da brincadeira, ou “a arte” de uma forma desprovida do

“verdadeiro” exercício estético é uma discussão tão antiga, clássica, quanto moderna, que

passa pelas hierarquias representativas e seu desmanche, pela constituição dos gêneros

textuais e sua relativização, e pelas novas formas de interpenetração entre a palavra e a

imagem. É, portanto, argumento insuficiente para criticar um artista cujo trabalho polivalente

como músico, roteirista, editor, dramaturgo, ator/ poeta performático e agente cultural está

ainda em pleno desenvolvimento.

Ele, como Waly Salomão, não é tão somente um poeta da geração marginal, já que

sua obra vai muito além da década de 1970, da edição dos poemas de mimeógrafo, e da

palavra escrita. O poema abaixo, publicado em A vida é curta pra ser pequena (2002), vai

nos trazer alguns dados importantes para observarmos a sintonia do poeta com a produção da

arte urbana do século XXI .

Bicho solto

acabou o show

três latinhas na idéia

o suficiente .................

para querer mais

a noite se contorce com sua maçã na boca

ballroom aqui forró ali festa acolá

próxima parada: são conrado

na saída do túnel

rua rápida à direita

94

você está na roça

é birosca é sinuca é pó

desce cerveja

bate uma

bate duas

sempre mais

tá todo mundo ligado

o tráfico apresenta suas armas

máscaras alteradas saúdam o bicho

o movimento decide sua vida e sua morte

e você querendo o jogo

– a atração do abismo –

à sombra do vulcão

delírio ambulatório

sobe

o bonde

desce

e o dia amanhece

você é um corpo estranho

criatura da noite vazada no dia

meia volta volver

vai ver se encontra

o caminho de casa

mas o teto se abriu

sua casa é aqui agora

sem chave e sem porta

na rua da aurora

– desce outra!

(CHACAL, 2007, p.45-6)

O poema de Chacal, transcrito acima, coloca, através da experiência concreta,

também visual, outras conexões entre o eu e o mundo que alteram e criam novos processos e

formas de representação. Esses novos formatos não podem ser pensados então como perda da

qualidade do trabalho poético, pelo contrário, há aí um adensamento da expressão artística na

medida em que o poeta investe em um caminho multidisciplinar16

, muito encontrado nas

várias expressões da arte hoje, trazendo uma palavra com outras faces para as cenas de um

espaço urbano atravessado, praticado.

16

Lilian Amaral (2011), em uma publicação na revista de pós-graduação da UNB, “Coletivo Expandido: flanar,

vagar, derivar, errar. Quando o encontro se transforma em corpo coletivo, corpo andante”, nos fala o quanto o

caminhar autônomo pode ser uma prática simbólica do espaço, um instrumento estético de conhecimento, na

medida em que se transforma, pela arte, em mediação de tensões incorporadas e tece uma arquitetura das

relações éticas/estéticas entre indivíduos/coletivos, entre memória/ /imaginação e convoca para uma interação

por meio de um pensamento que re-significa a experiência urbana.

95

A falta e o jogo de que falávamos, através da epígrafe de Artaud, comparecem nesse

trabalho de Chacal também, na medida em que ele elabora sentidos lacunares, fragmentados

e incompletos, que dialogam constantemente com a imagem, como tomadas de cenas que

definem um “real” que só pode ser configurado pelos flashes descontínuos que se sobrepõem,

para representar a experiência humana de um sujeito que vivencia seu tempo e espaço

intensamente, até as últimas consequências, sem definir para si mesmo ou para eles uma

delimitação ou uma identidade fixa.

Expõe, dessa maneira, a visão do poeta que, como um fotógrafo17

, recorta, limita e

enquadra as imagens como fatias do tempo, muito semelhante ao que Haroldo de Campos

mencionou, no texto que introduz a edição de “Pau Brasil”, como “shots, as camadas de uma

câmara cinematográfica – o câmara eye das sínteses oswaldianas” (ANDRADE, 2003, p. 32).

Observamos, por exemplo, esse recurso no poema de Chacal em: “a noite se contorce com sua

maçã na boca/ ballroom aqui forró ali festa acolá” (versos 5 e 6). A maçã é o símbolo do

desejo e a boca seu canal, mas aqui é a noite a entidade desejante. É ela que serpenteia como o

uroboro mágico, autofecundante, em que o eterno retorno une o ctônico e o celeste, impulso

da vida e da morte, fazendo romper com a lógica dos sentidos racionais, a da sequência

espacial e temporal, para propor a construção de movimentos contínuos nos quais os seres e

as matérias é que são possuídos por ela.

Podemos ver aí novamente presente a aproximação do corpo na modernidade urbana

com o corpo no período medieval (discutida no primeiro capítulo), concebido não como um

elemento exclusivamente individual, mas como algo pertencente a um coletivo pulsante,

como todas as substâncias que circulam e se interpenetram no ambiente em que tudo recende.

O “ballroom” (verso 6), é uma dança de origem eclética e remota, que, como a

quadrilha nos traz novamente a ideia do círculo móvel coletivo, da multiplicidade e da

reversibilidade, como também o é o forró brasileiro com suas origens diversas, em que os

sentidos e as imagens em suas variadas performances fazem a alegria da festa de rua.

17

Flusser (2002), no capítulo denominado “Linha e superfície” chama a atenção para a diferença entre o

pensamento ocidental, desenvolvido a partir da escrita, tradicionalmente linear, e a leitura das superfícies, que é

predominante atualmente, e possui uma estrutura em que um único lance de olhar abarca a totalidade. Após

essa primeira análise, os movimentos do olhar poderão ser múltiplos e livres, e tal mecânica, preponderante no

mundo midiático, representa uma transformação radical nos padrões de comportamentos de nossa civilização,

que, paulatinamente se priva de muitas experiências para vivenciá-las apenas através dessa mediação, ficando o

pensamento da linha quase que restrito às elites culturais. A apropriação pela poesia de recursos imagéticos

que incorporaram o conceitual seria uma abertura para novas sínteses em que o pensamento discursivo proporia

outros modelos conceituais.

96

Então a “próxima parada: são conrado”(verso 7) interrompe esse ritmo para instaurar

uma linha reta: “rua rápida à direita” (verso 9), que, como o “racional” mapeamento,

distribuição e ocupação do solo nas cidades, não se mantém incólume: “você está na roça”

(verso 10). Essa roça no meio da cidade de arranha-céus não é mais aquela em que todos se

reconheciam, mas guarda algumas marcas daquele antigo espaço de convivência entre iguais,

todos estão “na saída do túnel” (verso 8), que parece aí uma galeria subterrânea que dá acesso

a um outro tempo e a uma memória coletiva. A birosca (verso 11) nas favelas guarda muitas

semelhanças com aqueles antigos armazéns das cidadezinhas, que vendiam os mantimentos

expostos a granel, embutidos dependurados, sabão em barra para corte, quinquilharias de toda

espécie, e ainda era ponto de encontro dos homens à noitinha, que depois da labuta se reuniam

ali para “jogar conversa fora” enquanto tomavam uma pinga ou enrolavam seu cigarro.

Mas essa birosca é outra roça, “é sinuca é pó/ desce cerveja” (versos 11e 12), a

semelhança é apenas aparente, pois ali está o tráfico e suas armas (verso 17), o

reconhecimento amigável dos iguais desaparece e em seu lugar está outro rosto, que agora

tem a face coberta pela contração involuntária dos músculos retesados dos que estão

possuídos pela loucura da droga. As “máscaras alteradas saúdam o bicho” (verso 18), e o

jogo, o risco, o abismo, e a agonia de vida e morte são atrações de quem não deseja viver o

mundo das estabilidades, e opta por sair da zona de conforto, por estar “à sombra do vulcão”

(verso 22). Nota-se, portanto, que não há nenhum conforto ou relação de pertencimento, a

tensão agonística do “Bicho Solto” é o delírio de quem não reconhece mais nem o próprio

corpo, “você é um corpo estranho” (verso 28), ele é tão somente mais um ser fora de si na

boca contorcida da noite. (verso 5).

Nessa mesma noite, o bonde atravessa o espaço da cidade, e ao subir e descer

anuncia um novo dia. Quem é “a criatura da noite vazada no dia” (verso 29)? Quem diz

“você” no poema? Seria o eu lírico se dirigindo ao leitor, ou ele se refere a si mesmo,

mascarando-se nessa segunda pessoa através do pronome de tratamento? A segunda opção

nos parece a mais sugestiva, mas a primeira não deve ser descartada completamente, pois há

sempre um coletivo implícito em que “você” significaria todos dos quais a noite desfruta

como uma maçã. O imperativo usado nos versos 30, 32 e 38 nos coloca diante da perspectiva

de um ser que tem sua autonomia fracionada. Assim, não encontra mais “o caminho de casa”

(verso 33), “mas o teto se abriu” (verso 34) e a noite que se vê através dele é agora a imagem

do universo, que em seu simbolismo cósmico, é também a casa; ela é o devir, é o aqui e agora

que o (des)abriga.

97

Pensando através desse raciocínio que nos conduz aqui, da palavra poética enquanto

matéria, corpo que se relaciona com outros, sem os limites do próprio, do “eu” e do alheio, da

alteridade, que mistura citação e intertextualidade, imediatamente nos ocorre o José, de

Carlos Drummond de Andrade: a aporia, “sem chave e sem porta” (verso36), que nos conduz

à rua da aurora (verso 37), não aquela terna rua identitária, com letra maiúscula, da quase roça

de um Recife distante, em que o eu lírico de Manuel Bandeira descia para pescar,18

mas é

onde o eu lírico de Chacal, filho do delírio explosivo de uma urbanização sem controle, que o

mantém no anonimato de seres minúsculos “à sombra do vulcão” (verso 22), quer permanecer

solto por mais tempo.

Se pensamos na contribuição dos concretistas e no corpo da palavra como imagem

que se forma no papel branco da página, ao rascunhar um contorno para a disposição das

palavras do poema, veremos um zigue-zague, como se traçássemos o percurso do “Bicho

Solto” ou desenhássemos seu próprio corpo sinuoso. E se construirmos retas na direção de

cada verso desemparelhado, através de um desenho formatado por elas, veremos bocas

abertas e os membros desse bicho feito de palavras. Com essas retas alinhadas

desordenadamente, sem controle espacial, pode-se pensar também nas fileiras de cocaína

consumidas... O corpo do eu lírico e o corpus do poema se confluem no mesmo abismo de

sensações, imagens e palavras.

Relacionando essa imagem dos movimentos tortuosos do “Bicho”, a outras

manifestações artísticas, também dos meados do século XX, chegaríamos à escultura com

esse mesmo nome, de Lygia Clark (BH, 1920-1988), artista que, juntamente com Amílcar de

Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmaner, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spamídis

assinaram o Manifesto Neoconcreto publicado no Jornal do Brasil em 1959. Em 1972, ela

ministrou um curso de Comunicação Gestual na Sorbonne, com aulas experimentais coletivas

em que os alunos participavam usando suas próprias sensações. Junto com Hélio Oiticica, que

entre 1955 e 1959 fez parte do grupo Frente, de concretistas, eles propunham trabalhos

experimentais em que os espectadores/leitores eram também participantes de obras

interativas. A escultura “Bichos”, reproduzida abaixo, é manipulativa, feita de alumínio e

dobradiças que, como articulações e espinhas dorsais do corpo de um bicho, estabelecem um

imediato e estranho vínculo com a vida sensorial. O trabalho ganhou o prêmio de melhor

escultura nacional da VI Bienal de São Paulo em 1961.

18

No poema “Evocação de Recife”, os últimos versos trazem: “Do lado de lá era o cais da Rua da

Aurora.../...onde se ia pescar escondido/ Capiberibe (BANDEIRA, 1986, p.105)

98

Fonte: CLICHE..., 2014

Os artistas plásticos já usavam materiais diversos, triviais e reciclados do cotidiano,

como conchas, borracha e sementes, que possibilitariam ao espectador interagir sensivelmente

com a obra, numa exploração táctil da diversidade das texturas. Outros trabalhos permitiam

que o espectador atravessasse pelo interior das obras, ou até mesmo se vestisse dela, como os

“Parangolés”, que em 1965 levaram à expulsão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

os integrantes da Mangueira, que usavam as capas confeccionadas por Oiticica. A intenção do

autor era valorizar também a dança popular brasileira, a poesia, a música como manifestação

cultural coletiva, compartilhada, de um grupo social que não entrava em museus, e o ato

performático de uma arte que incluía o corpo como entidade viva, sensível, pulsante.

O artista viveu em Nova Iorque na década de 1970, quando o pai era bolsista da

Fundação Guggenheim, e participou de exposições no Museum of Modern Art- MOMA. Ao

retornar ao Brasil em 1978, continuou sua experimentação permanente para apropriar-se de

formas inusitadas e criar eventos precários, efêmeros, em que a disposição dos participantes

para atuar coletivamente em um corpo de trabalho se convertia no próprio trabalho; dessa

99

forma, vida e arte se embaralhavam, intervindo ética e esteticamente no circuito e no próprio

conceito de produção e recepção da arte. Assim, já concretizavam o que, teoricamente, Walter

Moser salientou bem mais tarde:

Pensar a estética enquanto “estesia” é também fazer o gesto de voltar a Baumgarten,

a seu projeto de uma ciência da percepção sensorial. Mas a possibilidade de tal

retorno deriva, hoje, sobretudo de uma nova concepção da cultura e da

representação. Ela acompanha a emergência de uma nova concepção antropológica

da cultura que se opõe à idéia de que as belas-artes são o apanágio da cultura

ocidental. Se, para a filosofia, a arte é a representação simbólica por excelência, a

antropologia social mostra-nos que toda prática social é representação. (MOSER e

Klucinskas, Jean, 2007, p. 27)

As aproximações que podemos fazer entre essas reflexões de Moser e Klucinskas e

as propostas e realizações poéticas de Chacal são muitas. De imediato, temos a valorização da

performance como manifestação artística, com a qual o poeta dialoga no cep 20000, desde os

anos 90. O trânsito com outras expressões artísticas em que a imagem, o corpo, o som e o

movimento são objetos que margeiam a poesia, e o desejo de conviver e aprender com todos

aqueles que, sem as barreiras da estratificação social, elegeram a arte e a cultura como bem

maior, é também marca dessas produções.

Mas para Chacal, como mencionamos anteriormente, em sua própria declaração, a

grande inspiração foi mesmo Oswald de Andrade. E a obra do escritor paulistano não é

somente literária, ele escreveu artigos e tratados sobre arte, cultura e sociedade que continuam

contendo, ainda hoje, ideias que nos suscitam importantes discussões sobre a cultura

brasileira, seus artistas e o mundo. Podemos ler em muitos poemas do poeta carioca um

diálogo promissor com várias ideias defendidas por Oswald e uma dicção poética que, apesar

de trazer componentes de uma era midiática que se consolidou apenas após a morte do criador

da antropofagia, em 1954, ainda possibilita estabelecermos importantes conexões entre

ambos.

100

3.4 A palavra em trânsito

Através da imagem projetada pelo contorno das palavras em Bicho Solto, voltaremos

novamente a Haroldo de Campos, que em seu texto escrito em 1965, no prefácio de Pau

Brasil, de Oswald de Andrade, afirma:

(...) procedimento básico da sintaxe oswaldiana – a técnica de montagem – esse

recurso que Oswald hauriu nos seus contatos com as artes plásticas e o cinema. Mas,

justamente por se tratar de um procedimento antiilusório, de uma técnica de

objetivação, é que a poesia assim resultante é objetiva. Ao invés de embalar o leitor

na cadeia de soluções previstas e de inebriá-lo nos estereótipos de uma sensibilidade

de reações já codificadas, esta poesia, em tomadas e cortes rápidos, quebra a morosa

expectativa desse leitor, força-o a participar do processo criativo. (CAMPOS, 2003,

p.34)

Tanto Oswald quanto os irmãos Campos acreditavam que o poema deveria regular-se

por si próprio, a sua própria estrutura, sem os ditames convencionais. Se, portanto, a poesia é

um trabalho de experimentação da linguagem, podemos ver o poema abaixo como uma

verdadeira oficina das palavras onde Chacal executa procedimentos que desencadeiam

movimentos de graduação, ajustes, com sequências habilmente encaixadas, como em um

desenho caprichoso de imagens e sons, o que nos remete imediatamente à poesia concreta.

Veja-se:

Papel de Parede

o papel de parede

o papel a parede

o papel da parede

o papel na parede

a parede di papel

a paredi o papel

aparede nu papéu

todo esse tempo

o papel de parede

(CHACAL, 2007, p.360)

Ao ler esse poema de seu primeiro livro, Muito prazer, Ricardo, de 1971,

evidenciam-se vários elementos do que nos disse Augusto de Campos em Poesia concreta,

publicado em 1958:

101

(...) a poesia se distingue da prosa pelo fato de que para esta as palavras são signos

enquanto para aquela são coisas, aqui essa distinção de ordem genérica se transporta

a um estágio mais agudo e literal, eis que os poemas concretos caracterizar-se-iam

por uma estruturação ótico sonora irreversível e funcional, e, por assim dizer,

geradora da idéia, criando uma entidade todo-dinâmica, “verbivocovisual” – é o

termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do

poema.¨ (CAMPOS, 1987, p. 40) .

O exercício com a materialidade da palavra como um corpo no papel está presente

quando, ao repetir papel/parede, são estabelecidos espaços vazios paralelos dentro de cada

verso, e, entre eles, e a alteração dos conetivos nos quatro primeiros versos provoca um

paralelismo entre os sentidos, que vão sendo modificados, gradualmente, como os encaixes

superpostos e os traços continuados dos papéis de parede. No quinto verso, à exploração do

espaço ocupado pelas palavras e de seu sentido, acrescenta-se o trabalho com o extrato fônico.

Nos quinto, sexto e sétimo versos, os trocadilhos das vogais produzem efeitos sonoros que

funcionam como um ato de desfocar as palavras, ecoando-as, atribuindo-lhes outras ideias que

são apenas sugeridas, como se o papel de parede estivesse se desbotando ou soltando suas

bordas, descaracterizando-se de sua materialidade no espaço, para ocupar outros.

O contorno das palavras dos sete primeiros versos monta um quadrilátero, um X,

onde cada ponta é alternadamente as palavras papel/parede. A eterna incógnita dos papéis e

das paredes? O espaço da memória? A persona? O obstáculo? As casas antigas, com suas

paredes esmaecidas em que as figuras de cada papel vão se modificando pela ação do tempo e

parecem conectar-se num outro formato? Assim também a materialidade da palavra, suas

letras e seus sons, num contínuo processo de mudança, vão se reagrupando em novas fusões

pelo espaço do poema (versos cinco, seis e sete), ecoando na memória sentidos intangíveis

que apenas se esboçam numa composição amalgamável.

O papel de parede pode até se desbotar pela ação de todo esse tempo (oitavo verso),

de modo que as letras e seus desenhos cheguem a se confundir, mas não se desvencilhará de

sua materialidade, ele é de papel; assim como é “parede” o que se interpõe nos caminhos dos

desviantes, dos marginais, que pode ser de papel também (quinto verso), como a própria

escrita e suas prescrições, ou como a lei. Mas o papel está na parede (quarto verso), como os

panfletos clandestinos, de borradas impressões a álcool que circulavam e eram colados nas

paredes nos anos da ditadura militar no Brasil. As palavras são aqui, como aquelas de

Augusto de Campos, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema.

102

Chacal pratica, como vimos no poema Papel de Parede, experimentações inovadoras

com a linguagem, compactuando com a geração de 50. E ainda hoje trabalha no cep 20000

para fazer da poesia, da música e das várias expressões artísticas uma experimentação

constante, que assim perdem a “aura”19

e se aproximam mais do público. Através da

performance, da oralidade, da promoção do momento e do espaço para os novos artistas e o

público partilharem a arte como uma forma de convivência do sensível, põe em prática o que

propõe à análise Jacques Rancière (2005), sobre as novas preocupações da arte como “partilha

do sensível” , o que analisaremos melhor no terceiro capítulo desse trabalho.

O poeta carioca criou textos que se assemelham aos poemas piadas da primeira fase

do modernismo brasileiro, e outros que retomam temas abordados pelo Manifesto

Antropófago, que é assim analisado por Benedito Nunes, no prefácio do volume A Utopia

Antropofágica, de Oswald:

Estes, que saem das reservas imaginárias instintivas do inconsciente primitivo,

catalisariam, quando satiricamente lançados contra os primeiros, a operação

antropofágica como devoração dos emblemas de uma sociedade. É a transformação

do tabu em totem, que desafoga os recalques históricos e libera a consciência

coletiva novamente disponível, depois disso, para seguir os roteiros do instinto

caraíba gravados nesses arquétipos do pensamento selvagem – o pleno ócio, a festa,

a livre comunhão amorosa (NUNES, 2011, p.25)

Benedito Nunes (2011), no final do mesmo prefácio, nos adverte que os textos de

Oswald contidos no volume20

merecem um distanciamento próprio, já que ficam a meio

caminho entre filosofia e criação artística, ou seja, há malícia e sátira e eles, portanto, não

podem ser lidos como um tratado filosófico apenas. A epígrafe de Alfred Jarry (Paris 1873-

1909); “Chacun son tour d’être mangé” retirada da peça teatral Ubu Rei, e a sugestão de que

esse sarcasmo do pioneiro do teatro do absurdo já estaria fundido na malícia de Oswald, serve

de advertência contra a leitura dos sisudos incautos. Chacal usa também ambos os recursos,

malícia e sátira, e parece já ter se desafogado um pouco mais “dos recalques históricos” para

seguir os “ instintos caraíbas do pensamento selvagem” quando escreve:

19

O termo se refere às discussões propostas por Walter Benjamin, no texto “A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica”, em que reflete sobre as mudanças de condições de produção e circulação da obra de

arte a partir da técnica, colocando a arte em um espaço de tensão, o que não significa contudo, que a perda da

“aura” seja uma perda do valor da obra. 20

O volume a que Benedito Nunes se refere e sobre o qual faz seu estudo contém: “Manifesto da Poesia Pau

Brasil”, “Manifesto Antropofágico”, “Meu testamento” “A Arcádia e a Inconfidência”, “A crise da Filosofia

Messiânica”, “Um aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira – O Homem Cordial”, “A Marcha das Utopias”,

“Variações sobre o Matriarcado”, “Ainda o Matriarcado”, “O Achado de Vespúcio”, “Posições de Sartre”, e

“Descoberta da África”.

103

Papo De Índio

veio uns ômi di saia preta

cheiu di caixinha e pó branco

que eles disserum qui si chamava açucri

aí eles falaram e nós fechamu a cara

depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo

aí eles insistirum e nós comemu eles

(CHACAL, 2007, p.361)

Aqui, vão para o papo desse índio, não só os componentes culturais externos

benquistos que serão incorporados antropofagicamente ao seu próprio corpo/repertório, ele

engolirá também o que incomoda, digerindo-o, só para se ver livre, não para que se integre ao

que é seu, pois seu corpo está fechado ao que não lhe interessa; o objetivo é diferente do de

Oswald. O índio é agora voluntarioso, impulsivo e irritadiço, não deseja ouvir um papo que

não requisitou aos homens de saia preta, a que não quer corresponder; mas já que o

indesejável é repetido em pregação insistente, deve ser eliminado; esse índio, não se interessa

pelo que não necessita, de procedência desconhecida e duvidosa. Diferentemente de nossos

nativos, que se encantaram pelas folclóricas imagens espelhadas; agora ele é altivo,

desconfiado, nunca ingênuo, dócil ou cordato. Sua linguagem híbrida e irreverente demonstra

uma ausência de preocupação com os ditames normativos da língua portuguesa.

Esse índio rebelde está mais próximo de outro conhecido nosso, Macunaíma, este

sem nenhum caráter, como Quampérius, personagem título do livro de Chacal, já citado aqui,

publicado em 1977. Ele também é um herói, possui inscrição hieroglífica em cripta (Chacal,

2007, p.251) para eternizá-lo, e lá aparece dançando satisfeito, é alegre e cheio de peripécias

como o protagonista de Mário de Andrade. Quampérius é também possuidor de várias

artimanhas e sensualidade, e sua história, como em Macunaíma, está repleta de poderes

mágicos, metamorfoses mirabolantes e de um discurso em que as lendas, as parlendas e as

paronomásias são contribuições igualmente constituídas em um universo lúdico:

¨tião, mas não morreu, virou outro. virou siri. você ri?

pois não ria. o sapo tião virou siri não porque quis

mas porque quis a lua

hoje ele não anda mais nas florestas nos rios não

mais coacha apenas siri. fica com o ferrão ferruando

(CHACAL, 2007, p.277)

104

Os versos são marcados por uma linguagem ágil da narrativa, repleta de trocadilhos

populares, exatamente como aqueles do herói da nossa gente que nasceu no fundo do mato

virgem: “Zé Perequeté tira bicho do pé prá tomar com café!” (ANDRADE, 2000, p.107). E

em ambos, Macunaíma e Quampérius, a natureza tropical comparece maravilhosa, como

espaço vivido pelas personagens e a elas integrado com sua energia, que circula e participa do

desenrolar das aventuras, como no poema acima. Há uma ironia ingênua, brincalhona, mas

crítica, que se volta para si, apresentando os desvios dos nossos heróis do povo, nada

perfeitos, em um país muito menos.

Quampérius também possui poderes mágicos, é safado, amoroso e preguiçoso, mas,

diferentemente de Macunaíma, não vai para a cidade procurar talismã algum, ele já pertence

ao caos urbano e lá realiza suas falcatruas. Apesar de trapacear, ele não se considera um

marginal, nem considera assim uma “certa poesia” que circula por aí. Aborda ironicamente a

poesia marginal e traz ao texto um recorte conceitual e/ou autobiográfico à narrativa, uma

mistura de gêneros, aliás, muito própria desses recursos da modernidade que já mencionamos

aqui:

– ahhh... a poesia. a poesia é magistral. mas marginal

para mim é novidade. você que é bem informado,

me diga: a poesia matou alguém, andou roubando,

aplicou algum cheque frio, jogou alguma bomba no

senado?

(CHACAL, 2007, p. 293)

Assim, brinca até ao fazer uma poesia conceitual, sem deixar de, através dela, trazer

dados do contexto histórico da década de 1970 no Brasil, com seus falsos alardes de atentados

para o recrudescimento do regime ditatorial, ou seu “seleto” e exigente corpo policial, com

métodos de investigação, tomada de depoimentos e controle de espreitas, nada convencionais

ou “modernos” .

Nada convencionais também são os diálogos que Chacal trava com a tradição

literária, como por exemplo – não podemos deixar de nos lembrar – aquele poema de Manuel

Bandeira, tirado de uma notícia de jornal, em que João Gostoso:

105

Uma noite ele chegou no bar Vinte de novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(BANDEIRA, 1986, p.214)

O mesmo, em sentido inverso, agora, da morte à vida, ocorre com Orlando, outra

personagem dos poemas narrativos de Chacal, que mais parece uma reencarnação de João

Gostoso, de Bandeira, que desceu do céu para atuar em Preço da passagem:

Carcaça

orlando belo dia desceu

prá lembrar vida na terra

sin carnou em quem devia

e saiu a correr

pular cantar

trepar rolar

dançar rimar

alfabesteira falar

mais tarde um dia sentiu uma afissuração

no plano inclinado do quarto planeta do sistema

nervoso visto de trás pra diante. foi ver o que é

daí a carcaça cansada voltou de novo

a velha inquietação: a tradução

à eterna bagagem: a linguagem

(CHACAL, 2007, p. 333)

João Gostoso voltou então para a Terra para dançar e cantar de novo, e tomou outro

corpo, o de Orlando. Assim, a poesia, através dessa “eterna bagagem: a linguagem” (verso

15), está sempre carregando consigo, a cada outra tradução, “a velha inquietação” (verso 13)

da palavra desassossegada, que vai ao passado e volta trazendo invariavelmente uma bagagem

poética renovada, afissurada pelo seu tempo, nervosamente possuidora dessa velha

inquietação que, com outras “carcaças” se inclinam em novas coordenadas e sistemas dos

sentidos.

Então o poeta, o narrador, a personagem e a poesia operam as diversas (re)encarnações

da palavra. Elas projetam a finitude e a inconsistência do ser humano em seu tempo e lugar,

mas cada experiência as renova, e essa repetição diferenciada na fruição dos textos é uma

marca da modernidade, que procura, não um modelo, mas um diálogo com a própria poesia

como uma alternativa para quem quer se ver atuante em um mundo que se esboroa. Nesse

mundo, outros seres, a cada geração, compartilham, através da velha bagagem da língua

106

portuguesa, uma angústia inquietante e perene, não nominável, como aquela que lemos no

imortal poeta português, Fernando Pessoa:

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –

Transeunte inútil de ti e de mim,

Estrangeiro aqui como em toda parte,

Casual na vida como na alma (...)

(CAMPOS, 1980, p. 251)

E em Chacal, um eu lírico angustiado diante desse mesmo rio, em uma pátria

ancestral, dialoga com Campos, heterônimo de Pessoa, o moderno e também irreverente:

tanto faz. acho até que vou tomar um bagaço e ver

no que dá .vou à torre de Belém olhar o Tejo. matar o

tempo pra não me matar, esse é o meu nome

(CHACAL, 2007, p. 22)

É essa mesma alternativa que o leva a diversos outros diálogos com a tradição. Em

sua poesia há uma comunicação com a herança cultural e com um sentido humano presentes

na construção de imagens poéticas cujas referências se tornam muito perceptíveis, como já

vimos. Às vezes, por exemplo, há uma revelação daquela modernidade que chega cercada de

emoções dilacerantes, satânicas, que nos remetem a um romantismo de imaginação popular

medieval, de um lirismo gótico, que nos lembra o Fausto, de Goethe, quando ao atravessar os

pântanos sombrios de seu próprio ser, nomeia o Espírito do mal, fazendo-o assim aparecer:

atravessando o charco em desespero para naufragar

em outro, sibila tenebrosa, movediço pântano que me

quer devorar com suas garras crustáceas. aí de dentro

de mim, do fundo da noite eterna, um único grito

brota

– lúcifer!

(CHACAL, 2007, p.159)

Outras vezes, zombeteiro, com um sarcasmo investido contra si mesmo, triste, indo

do divertido ao severo, lembrando um Álvares de Azevedo em momentos de baixa

autoestima: “ninguém mais há em minha volta. tô cansado/ da minha companhia. só falo

besteira. não digo nada/ com nada. preciso exercitar a pena. se ela se move que/ seja na minha

mão./ trêmula e bolorenta.” (CHACAL, 2007, p.22) Essa atitude é coerente com a deliberada

107

e confessa opção pelo ato de escrever poemas como prática para toda uma vida, o que o

diferenciaria de quem não faz da poesia um ofício.

quanto a você meu camarada

que à noite verseja pra de dia

cumprir seu dever de água parada

fica aqui uma sugestão:

– se engaveta junto com seus poemas

porque muito sangue vai rolar e não

fica bem você manchar tão imaculadas páginas (CHACAL, 2007, p. 224)

O compromisso ético, a dimensão social e a experiência compartilhada estão também

presentes se pensarmos em um controle da emoção ou na abolição de atitudes confessionais

como qualidade do trabalho poético. E o próprio conceito de “inspiração” é controverso.

Há momentos em que o poeta carioca parece escolher um tema, e racionalmente

investe nele com um olho crítico, como vimos em Papel de Parede ou New York, e outros

em que, como que possuído de um momento mais particular de subjetivação, reveste sua

expressão de uma experiência vivida, espontânea, em que, através dela, um coletivo pode se

enxergar, E, para além de um eco que envolve o leitor completamente e se propaga no poema

abaixo, todos podem compartilhar desse ressoar contínuo, presente em A vida é curta pra ser

pequena, que é a própria existência humana:

Vida

roer

moer

remoer

morrer

(CHACAL, 2007, p.112)

Às vezes, Chacal usa um elemento semântico surpresa, que chega cortando uma

sequência também sonora e rítmica para realizar outra, trazendo, para o lirismo, sentidos nada

previsíveis, como no poema abaixo, de América:

paixão é pra disfarçar a solidão

tão cheia de aflição

que podia ser uma afta

tão ácida na boca¨

(CHACAL, 2007, p. 302)

108

Outras, ele ironiza o próprio sentimento, numa atitude racional, para frear seu fluxo e

trazê-lo a uma reflexão da própria poesia, para o fazer poético, como um ato de comunhão

com o mundo e o ser humano, que nos conectam imediatamente a Drummond, em

“Sentimento do Mundo”, quando em Mãos Dadas diz:

não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

(ANDRADE, 1985, p.79)

E Chacal, em Drops de Abril:

não me atirarei em poças d’água

não espere isso de mim

não desaparecerei

impunemente da vida

me atirando num buraco.

a vida voa e vai mais longe

até o fundo do poço

cuidado moço

para não falar palavra errada

cuidado cantor

(CHACAL, 2007, p.190)

A leitura prévia dos autores tradicionais, como Álvares de Azevedo, Fernando

Pessoa, Manuel Bandeira ou Drummond nos faz ler os textos de Chacal de uma forma mais

rica, e não há como conceber a feitura do trabalho artístico sem revisitar a tradição. Chacal,

como todo autor, retoma em seus textos as leituras que fez, sem que, apenas isso, possa

desmerecer ou engrandecer seu trabalho. Da mesma maneira que cada individualidade é

marcada por um pouco de cada um com quem, de fato, houve convivência e aprendizagem

para construir o mundo inteligível, na poesia, escolhem-se exemplos a seguir ou modelos

rechaçados, conscientes ou não; convergência ou ruptura.

Assim também o poeta persegue a sua própria personalidade poética, a

“originalidade”, não aquela vinda pela inspiração espontânea e febril dos românticos, mas a

que consiste em saber trabalhar com os materiais e procedimentos disponibilizados pela

tradição, com um sentido e forma peculiares, ora compactuando, re-significando-a em outros

contextos, ora transgredindo para alcançar com sua criação uma sensibilidade sempre

109

renovada. Mesmo porque, como afirma Leyla Perrone-Moisés, “toda obra nova implica, em

sua fatura como em sua recepção, uma releitura do passado literário” (2003, p.13). Os

escritores também são leitores e críticos, e, além disso, através de sua própria obra, podem

estar construindo o cânone futuro, mesmo sendo contraculturais ou marginais, como Chacal,

já que vários autores hoje tradicionais, alguns deles citados nesse trabalho, foram

considerados transgressores um dia.

No poema acima, de Chacal, que dialoga com Drummond, o eu lírico adverte o

cantor sobre o uso da palavra errada; de fato, se o poeta “canta”, ele permanece

irremediavelmente ligado aos “cantos” líricos, às cantigas medievais e sempre estará

conectado a esse passado de musicalidade, quer pelo ritmo, rima e outros recursos fônicos

constantemente presentes, quer pelo conteúdo temático. Não podemos nos esquecer de que o

gênero lírico é anterior à prosa, e de que, em sua própria constituição, desde a alta Idade

Média, guarda afinidades com o trânsito, tanto no sentido geográfico (os “cantores” viajavam

do sul da França à Espanha mediterrânea, até o norte da Itália), quanto quando inovavam,

transigindo temática e formalmente, como, por exemplo, colocando o amor como causa

maior; o que se constituirá na matriz do romantismo, adorando a mulher, em especial aquela

já comprometida.

A capacidade de rir de si mesmo, um erotismo explícito, críticas políticas e

religiosas, interações com o islamismo, com o oriente e o trânsito com outras formas de arte

na atuação performática da poesia oral dos trovadores (como a música e a dança), são outros

traços inovadores que acompanharam o gênero lírico. Hoje vemos mais uma vez essa intenção

da poesia de ir ao longe em seus diálogos constantes com o universo das outras artes e

também no uso dos vários suportes ou recursos tecnológicos, na constituição e disseminação

de trabalhos poéticos em blogs e sites diversos.

Seguindo outra tendência transgressora da poesia moderna, que também se aproxima

do universo musical, e está muito presente na poesia de Chacal, a geração beat, seremos

levados a rupturas que questionam os próprios gêneros e formas do literário.

Cláudio Willer, em recente publicação, Geração Beat, afirma: “A beat se formou

com o jazz bop e se expressou através do rock – e de música pop, balada country, blues, rap e

criações de vanguarda experimentais.” (WILLER, 2009, p.13) Esses ritmos e as ideologias

que deles fazem parte comparecem com muita força em vários poemas de Chacal, além de o

próprio autor/ator apresentar-se no palco em performances poéticas e musicais, como no

110

recente trabalho, “Uma história à margem”, denominado por ele de “uma epopeia punk”,

dirigido por Alex Cassal e exibido em várias cidades do Brasil em 2013.

A cultura beat, apesar de ter a sua origem muito bem delimitada, estudada aqui no

capítulo I, expandiu-se em vários outros movimentos culturais, tornando-se não só uma

poética, mas uma ideologia que transita da marginalidade à erudição, do anarquismo ao

ambientalismo, à defesa de uma sociedade pacífica e anticonsumista, e adota como bandeira a

liberdade em todos os sentidos, inclusive sexual, e o misticismo religioso; ou seja, há sempre

um interesse por outras culturas e crenças, pela alteridade, numa atitude existencial: corpos,

espaços e palavra. No Brasil, os beats ligam-se à luta contra a ditadura militar, à poesia

marginal, e Chacal, Leminsk e Waly Salomão podem ser considerados seus representantes de

maior expressão.

A literatura consumida pelo grupo norte-americano era muito vasta, mas podemos

elencar apenas os autores de maior relevância, que eram citados por eles próprios: Artaud,

Blake, Dostoievski, Eliot, Garcia Lorca, Gertrud Stein, Jean Genet, Melville, Pound,

Rimbaud, Yeats e Whitman; todos eles, de alguma forma, conectam-se a uma herança

romântica e simbolista, que por sua vez foi muito valorizada pelos surrealistas, de onde parte

também o grupo para experiências do inconsciente, sensíveis e suprassensíveis, através do uso

de álcool, maconha, haxixe e narcóticos sintéticos dos mais variados. É, sobretudo, através de

uma religiosidade e consciência diferenciadas, que o movimento beat critica politicamente

tanto uma direita capitalista, quanto uma esquerda burocrática, desprezando as formalidades e

moralismos para cultuar a fraternidade, a preservação da natureza, a potencialização das

sensações de prazer, com uma irreverência e uma autoironia nada indulgente, marcando a

modernidade na segunda metade do século XX. É, seguramente, um conjunto de referências

muito explorado por Chacal, como podemos perceber muito claramente nesse poema, de

Letra Elétrika:

com calma amanheço

da delirante noite do ópio

da nebulosa treva tenebrosa

do uivo lancinante do demente

amanheço

com a boca seca da miséria

com o lábio rachado do pavor

com o cinzeiro entupido de visões

(CHACAL, 2007, p.142)

111

Outro traço da geração beat, também usado na obra de Chacal, e que nos interessa

especialmente aqui, quando falamos da palavra poética enquanto um corpo, uma matéria,

repleta de vazios, poros e vasos comunicantes, é a chamada escrita híbrida, transgênica,

assentada em espaços-tempos heterogêneos. Maria Esther Maciel, acrescenta, sobre esse tipo

de poema: “pode-se dizer que o poeta reinventa a linguagem, e, ao mesmo tempo, inventa

uma escrita poética que, ao misturar prosa e verso, também se coloca fora dos limites dessas

categorias.” (MACIEL, 2010, p.118)

O texto de Allen Ginsberg, Uivo, para Carl Solomon, considerado o primeiro poema

beat, lido em voz alta no dormitório da Reed College na noite de fevereiro de 1956, vem

como um jorro da mente num fluxo contínuo, e não há como enquadrá-lo exclusivamente

como poesia ou prosa, assim como muitos textos de Chacal. Vários outros escritores

brasileiros da segunda metade do século XX possuem esse tipo de escrita, e, como afirma

Maria Esther, “As misturas têm se tornado um valor de nossa época e não uma transgressão.

Elas passaram a integrar a dinâmica cultural” (MACIEL, 2010, p.109).

Só para citar alguns poetas, além do próprio Chacal, Ana Cristina César, Waly

Salomão e Michel Melamed usam muito essa escrita transgênica. Uma obra de Melamed

(2005), inclusive, não é sequer catalogada pela editora como poesia, na ficha catalográfica

aparece a curiosa expressão “miscelânea”, para especificar o gênero de Regurgitofagia.

Outros escritores, mesmo optando pela prosa, também articulam poemas dentro de seus textos

narrativos híbridos, como por exemplo, Luiz Ruffato; na obra eles eram muitos cavalos, cujo

próprio título vem da poesia de Cecília Meireles. Observe-se:

sacolejando pela Avenida Rebouças

o farol abre e fecha

carros e carros

mendigos vendedores meninos meninas

carros e carros

assaltantes ladrões prostitutas traficantes

carros e carros

mais um

terça feira

fim de semana longe

(RUFFATO, 2006, p.96)

Apesar desses aspectos da obra de Chacal já terem sido comentados na introdução

desse trabalho, a reafirmação dessa característica aqui se torna necessária para enfatizar o que

propusemos demonstrar nesse capítulo: a palavra é também um corpo que possui uma matéria

112

e uma história em trânsito, seus sons e/ou sua marca no papel e nos papéis representados

na/pela sociedade. Assim, também é vazada, possui limites que se interseccionam com as

outras formas, e a modernidade da poesia consiste, antes de tudo, numa atitude crítica,

conquistada com novos métodos de pesquisa e de criação, de quem seleciona da tradição o

que lhe convém em seu tempo e lugar, da forma de que necessita, para construir a arte da

palavra no século XXI afora. É através da discussão sobre as formas de convivência entre a

convergência e a ruptura da tradição na linguagem poética que podemos realizar um estudo de

uma poesia tão recente, como a de Chacal.

É difícil até situarmos o que de fato pode ser considerado tradição na poesia

brasileira hoje e o que seria ainda uma atitude vanguardista. Se analisarmos os principais

textos-manifestos das décadas de 1950 e de 1960, até os do início dos anos de 1970,

coincidindo assim com as primeiras produções de Chacal, temos: o Concretismo, o

Neoconcretismo, o Poema-Práxis e o Poema Processo.

Várias das propostas desses movimentos encontram-se acolhidas pela poesia de

Chacal. Já demonstramos algumas similaridades entre o que estava no plano piloto formulado

pelos irmãos Campos, Décio Pignatari em 1958 e os versos do poeta carioca. E não para por

aí. O Manifesto Neoconcreto, apesar de ser uma reação contra “uma perigosa exacerbação

racionalista” (TELES, 1983, p.403) do poema concreto e propor uma “significação

existencial, emotiva e afetiva” (p.408) para a linguagem, garante, da mesma forma que o

concretismo, o uso da espacialização do verbo e um embate com a poesia discursiva. Veja-se

o poema de Chacal, de Belvedere:

Malhas

vertigem da imagem

volúpia da carne

voragem da grana

as malhas do mundo são

(CHACAL, 2007, p. 21)

Os recursos do concretismo encontram-se trabalhados nesse texto, visivelmente

inspirados em Mário de Andrade; Macunaíma: “pouca saúde e muita saúva os males do

Brasil são” (Andrade, 2010, p.68); e na sátira do genial Gregório de Matos: “(...) O saber

muito abatido/A ignorância e o ignorante/ Muito ufano e mui farfante/ Sem pena ou

contradição/“Milagres do Brasil” são”. Ao poema de Chacal, esses “males/milagres” parecem

113

estar costurados também, pois nele, através dos paralelos mantidos pelos versos sucessivos,

temos as palavras vertigem, volúpia e voragem (do lado esquerdo), e as palavras imagem,

carne e grana, (do lado direito), e podemos enxergar como que os gomos dessa malha

conectados pela proposição “de”, contraída ao artigo “a”.

A sucessão do fonema “v” faz um corte no tecido branco do papel, marcando o início

de cada verso em nosso olhar, que, linearmente, vai da esquerda para a direita e, após o final

de cada um, pode produzir o deslocamento no sentido inverso, ou seja, da direita para a

esquerda. O desenho da letra “v” contribui para pensarmos nesse movimento também no

sentido do alto para o baixo, ou, reversivelmente, do baixo para o alto. A regularidade do

tamanho dessas palavras em “v”, todas elas trissílabas, garante uma coesão para o corte dessa

malha, e o fato de a primeira e a última serem paroxítonas terminadas em “m” aumenta essa

possibilidade. Visualidade e sonoridade, concretamente articuladas, “as malhas do mundo”

(ou “os males ?”) estão aí tecidas pela imagem da vertigem, da volúpia da carne, e da

voragem grana, com uma disposição significativa habilmente projetada.

Mas, não é somente esse aspecto “concreto”, da materialidade das palavras, que

garante a complexidade dessa malha. Enfatizando a importância dada ao aspecto semântico no

manifesto Poema Práxis, escrito pelo poeta Mário Chamie (1983), editado pela primeira vez

em 1961 como posfácio de seu livro Lavra-Lavra, teremos:

(...) toda palavra pode ter tantos significados quanto sejam os seus contextos.

Acontece, porém, que as palavras não são corpos inertes mobilizados a critério de

quem as profere e as usa. Semelhante entendimento está na base da crise da poesia

de hoje. As palavras são corpos vivos. Não vítimas passivas dos contextos. Desse

estado de vítimas que as leva ao equívoco e à diluição, elas se defendem sozinhas. E

o seu campo de defesa é, exatamente, o poema. Não pretendemos dizer que a palavra

não deva ser multívoca; o que afirmamos é que sua multivocidade deve ser realizada

no seu espaço próprio de autonomia. Esse espaço é o poema- campo de defesa.

(CHAMIE, 1983, p. 413)

Defendendo com veemência o “espaço em preto”, em contraposição à importância

do espaço em branco da página dado pelo movimento Concreto, Chamie (1983) desenvolve

toda sua teoria do poema privilegiando o semântico, não em detrimento dos outros aspectos

da palavra, mas colocando a palavra poética como um corpo em que forma e conteúdo não

podem se desvencilhar um do outro, mas que se complementam intrinsecamente, da mesma

maneira que, em um ser, separar corpo e mente é um equívoco cada vez mais comprovado

cientificamente, pois um se reflete no outro. Não há um “eu” que se pronuncie fora de um

114

corpo, não há uma mente pensante que possa realizar-se na ausência de sua materialidade

viva, que se movimenta e se relaciona com as outras no tempo e espaço de sua existência,

assim como não existe uma palavra poética que possa prescindir das relações que se

estabelecem entre os sistemas linguísticos e os processos dinâmicos das relações históricas e

socioculturais.

Com esse entendimento, as análises dos poemas de Chacal propostas aqui procuram

observar como as contribuições dos escritores e artistas em geral podem ser válidas para

evidenciar os sentidos da produção poética do autor. A partir daí, podemos voltar às “malhas

do mundo” por ele projetadas.

Assim, pode nos ocorrer que a própria palavra “malha” possua vários sentidos que se

interseccionam no poema. Além do tecido, bater para tornar denso, arremessar à distância, ou

manchar uma superfície podem fazer parte também do ato de quem malha. No primeiro verso,

a vertigem como uma falta de equilíbrio que faz as coisas parecerem girar ao redor de quem a

sente faz parte da confecção das imagens do/no mundo em que as combinações de forças

apresentam-se desproporcionais, o que traz a todos constantes sensações de deslocamento, de

falta de lugar em um espaço vertiginoso, em que a ponderação ou a prudência tornam-se, cada

vez mais, elementos rarefeitos. No verso dois, “a volúpia da carne” aparece como o outro

gomo da malha. O grande prazer sensitivo se entrelaça à vertigem, dando maior densidade a

esse martelar das sensações, que repetidamente se arremessam também para uma “voragem da

grana” (verso 3), com uma dimensão além do conhecido. O redemoinho do consumismo e da

extrema valorização da autoimagem sorve com violência, traga todos os que estão

susceptíveis a seus apelos catastróficos, enreda em suas malhas todos os incautos, provocando

verdadeiras calamidades nas vidas das pessoas.

As malhas do mundo podem ser também as manchas (vocábulo derivado do latim

macula, equivalente a “mancha” ou pecado) que encobrem os sentidos e impedem a visão de

outras cores e perspectivas por baixo delas, impossibilitando que outro tom apareça nas

tessituras. São malhas que estão aí para serem desencobertas por todos aqueles que desejam

ver o mundo com outras tonalidades.

Se essas malhas estão cortadas da esquerda para a direita com uma única marca

inicial (o “v”), o trânsito no final de cada verso para o seguinte se faz com palavras que

possuem tamanhos diferentes (imagem, carne, grana), portanto os recortes finais não são

regulares e podem estar abertos para novas configurações de seus tecidos...

115

Notamos, com esta análise, que a escolha de cada palavra não é ocasional, e o tema e

a forma trabalhados pelo autor nos fazem pensar no que Chamie apresenta no final do

manifesto de seu “Poema- Práxis”:

(...) se o campo do poema-práxis é um campo de defesa dos valores da palavra, a

literatura-práxis é um campo de defesa dos valores humanos contra a alienação de

uma sociedade que precisa transformar-se para conquistar-se. (CHAMIE, 1983, p.

416)

Gilberto Mendonça Teles (1983), na introdução aos manifestos que ele arrola como

sendo “O Experimentalismo” (p. 309 a 402), de 1952 até 1973, faz importantes análises sobre

essas “novas grafias”. Compara o impacto delas à reação provocada nos parnasianos pelos

versos de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, e acrescenta que as

diferenças entre eles muitas vezes se resumem a “cabotinismos autopromocionais” (p. 401) e

a divergências entre os grupos do Rio de Janeiro e São Paulo. As novidades teóricas ficavam a

cargo dos estudos linguísticos e da semiótica de Charles Sanders Pierce, o que nos leva a

concordar com o que Décio Pignatari concluiu em “Nova Linguagem, Nova Poesia”, em

1964: “(...) parece-nos claro que mesmo o que há de mais radical nesta nova poesia não se

desvincula – ao contrário – dos princípios básicos da poesia concreta. Continuamos, portanto

a chamar de concreta a esta poesia.” (PIGNATARI apud TELES, 1983, p. 421)

Outras duas abordagens a partir de manifestos serão construídas, “Poema Processo”,

em 1971, e “Parada- Opção Tática”, de 1972, ambas de Wlademir Dias Pino, do Rio de

Janeiro; mas o que foi acrescentado ao Concretismo diz respeito ao fato de o autor mencionar

as novas necessidades de resposta social, que se distanciariam de um caráter mais calculista

da poesia anterior a esses dois manifestos.

Acreditamos que essas novas necessidades de resposta social estão contidas na

poesia marginal. Ela possuía uma palavra que trabalhava exatamente com o que estava

ausente naquele momento político da ditadura militar, quando homens circunspectos e sérios,

vestidos de uniformidades e valores de engrandecimento e progresso de uma pátria mãe gentil

estereotipada e essencialista, elegiam um capitalismo truculento, sufocavam as diferenças,

extraiam toda alegria de ser livre para pensar e se expressar, e extirpavam o corpo sensível e

erótico em favor de uma mentalidade racional e hipócrita.

Os poetas marginais, para poderem se reunir e se expressar, vão usar várias táticas,

em que a brincadeira, o jogo, e a alegria de viver integralmente o corpo e a mente serão

116

elementos constantes. A crítica ao sistema também aparecerá no corpo da palavra, na atitude

de exibi-la com outras roupagens, híbridas e repletas de interações com outras poesias,

palavras, formas, discursos e culturas, naquilo que ela mostrava sem dizer, e, como nos disse

Artaud, mascarando o que gostaria de revelar, dissimulando, provocando, instigando.

E Eucanaã Ferraz (2013) completa esta ideia:

Sabia-se na carne – literalmente – o que se sabe: que toda palavra é ação e toda ação

é política. Fazendo o ato poético crescer para fora de seus limites convencionais – a

margem pode ser, muitas vezes, mais vasta do que se imagina – os poetas

misturavam poesia e futebol, poesia e carnaval, poesia e música, poesia e artes

plásticas, poesia e teatro, trazendo ao território da palavra tudo o que expressasse a

urgência de contrapor à solidão o companheirismo, à incerteza a esperança, à

violência a alegria, ao autoritarismo a liberdade, à morte a vida. (FERRAZ, 2013,

p.7)

Para Chacal, poeta sempre contracultural, mesmo no século XXI, essa palavra-corpo

híbrida e vívida prossegue sua trajetória performática, ocupando mais espaços, dialogando

sempre com as outras artes, como veremos a seguir.

117

4 POESIA E PERFORMANCE

(...) a ideia de performance deveria ser amplamente estendida; ela deveria englobar

o conjunto de fatos que compreende, hoje em dia, a palavra recepção, mas

relaciono-a ao momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e

para uma percepção sensorial – um engajamento do corpo. Ademais, parece-me que

em uma tal direção compromete-se a crítica, há bem pouco e muito confusamente. O

termo e a idéia de performance tendem (em todo caso, no uso anglo-saxão) a cobrir

toda uma espécie de teatralidade: aí está um sinal. Toda “literatura” não é

fundamentalmente teatro? (ZUMTHOR, 2007)

4.1 Leituras performáticas

Esse estudo da obra de Chacal ficaria bastante incompleto se ela não fosse analisada

também em seu diálogo com outras manifestações artísticas, mas não é somente porque o

trabalho do poeta tem contatos com a música e o teatro. Há, na própria poesia que se estuda

aqui, um aspecto performático, entendido como uma experiência que se materializa através de

uma corporeidade muito marcada, que trabalha com uma oralidade quase gestual. Há um

prazer lúdico atravessando os textos, que parecem concebidos como uma voz viva, possuindo

comportamentos verbais dinamicamente diversificados, que interagem com o receptor

trazendo interferências e percepções sensitivas capazes de modificar a informação, a

comunicação. Referindo-se a esse aspecto no âmbito geral da poesia, Zumthor cita o professor

A. E. Housman que resumiria assim essa questão: “o prazer poético é orgânico, a poesia mais

física que intelectual.” (ZUMTHOR, 2007, p. 43)

O funcionamento da poesia inclui, continuamente, combinações de situações

culturais em que a oralidade se faz presente, e, consequentemente, permanece ainda um corpo

que pulsa em um espaço de teatralidade, com uma linguagem sentida como vocal. Esse

entendimento nos faz não esquecer de que a poesia foi um dia ritual, irrigada por uma energia

do sagrado e que somente aos poucos foi se desprendendo dele; mas o discurso poético

continuou ainda sendo, por muitos e muitos tempos, apenas pronunciado. Na verdade, o

aparecimento da escrita surge para escapar dessa frágil condição temporal; a humanidade

sempre lutou contra a fugacidade do tempo, e a poesia, enquanto escrita, emancipadora da

linguagem em seu desejo de permanência, conserva mais que tudo essa marca em sua própria

constituição:

118

Chacal, no poema abaixo, de A vida é curta pra ser pequena, trabalha com a ideia

de que essa ligação da linguagem poética com a voz do presente, que se lança no instante da

enunciação, está em sua gênese e jamais de perdeu.

Tempo

no início era o começo

o depois veio vindo devagar

o antes veio depois do depois

só quando esse se estabeleceu.

no princípio era o agora

isso demorou até que

tudo virou antes e depois.

então numa revolução peluda

o agora voltou ao trono

antes e depois viraram

falta do que fazer

e tanto fizeram

que o agora virou tudo

e o tudo, nada

de volta ao princípio

o agora agora congelou

o antes fica pra depois

(CHACAL, 2007, p. 44)

O “agora”, aqui, é instante privilegiado, é o encontro entre o leitor e o discurso

poético que produz uma demanda rumo à alteridade. De fato, a palavra poética escrita viaja

através dos tempos e espaços, interagindo com as situações do momento, realizando

verdadeiros malabarismos verbais para, ao deixar de ser somente voz, continuar mantendo seu

poder de impactar, de ser performática, de jogar com o imaginário e o real no instante

praticado; o local e o global, o ontem e o hoje. Chacal, no poema acima, estabelece um tom de

uma gênese cronológica quase mítica, como um xamã, e brinca com as concepções temporais.

Ao expor as tensões de se pensar sobre um princípio, acaba por eleger o agora como o

principal motor do tempo.

A “revolução peluda” (verso 8), talvez seja a dos jovens que, a cada momento,

fazem da vida uma sucessão de agoras, de intensidades máximas de pouca duração, para

quem a vida é curta para ser pequena. Essa rebelião quer congelar o agora, e colocá-lo no

trono (versos 9 e 16). Mas a ascensão ao trono é aqui contingência paradoxal, pois é o tempo

o eleito, e, repleto de uma agonia perene, encena um desejo atemporal, como a daquela

personagem de Oscar Wilde (1854-1900), O retrato de Dorian Gray, que queria, através de

um pacto demoníaco, permanecer eternamente jovem enquanto apenas sua imagem em uma

119

pintura envelhecia. Na poesia há também um pacto permanente com o agora, mas o do leitor,

e no sentido oposto; é a obra, a palavra, não o sujeito, que vai permanecer vigorosa através da

leitura, que a atualiza esteticamente.

Pensando nesse aspecto da linguagem poética, Zumthor nos remete a Wolfgang Iser:

Devemos a um dos autores alemães mais representativos da “estética da recepção”,

Wolfgang Iser, muitas obras ou artigos sobre o tema, o “Reading Process”, de 1971,

ao Akt des Lesens, de 1976. Iser parte da idéia de que a maneira pela qual é lido o

texto literário é que lhe confere seu estatuto estético; a leitura se define, ao mesmo

tempo, como absorção e criação, processo de trocas dinâmicas que constituem a

obra na consciência do leitor. Esse “leitor” é, em verdade, simples entidade de

fenomenologia psicológica, ressente-se singularmente de substância! (ZUMTHOR,

2007, p. 51)

E é nesse momento, quando a recepção é tocada pelo dinamismo do texto, que o

elemento performático se estabelece. Ele é a interpretação, a compreensão que induz a uma

transformação, atingindo tanto o texto como o intérprete. Veja-se, no poema abaixo, também

de A vida é curta pra ser pequena, como há a intenção de envolver e compartilhar com o

leitor esse processo estressante de captura de uma palavra que é muito mais ágil que seu

autor:

Tauromaquia

Lá vem o touro

ideia inverossímil

a galopar violenta

aqui essa arena

imaculada página

papiro de gritos e espanto

jaz o poeta

pessoa pouco apta

à nobre arte de Espanha

(CHACAL, 2007, p.61)

A expressão “Lá vem” (verso 1) é extremamente familiar, soa leve como as histórias

e brincadeiras de roda, que trazem continuidades, movimentos repetitivos a serem

executados pelo próximo a entrar no jogo. O “touro” desmente essa leveza e produz um

impacto, acompanhado por “idéia inverossímil” (verso 2), mas é ela, estranha, que vai

“galopar violenta” (verso 3). E é “Aqui nessa arena” (verso 4), página que já foi um dia papiro

(verso 6), que jaz o poeta. O verbo jazer surge antitético ao vigoroso galope selvagem, e

120

carregado da formalidade de situações solenes, traz um sentido de morte. Seu sujeito é o

poeta, “pessoa pouco apta” (verso 8) à tauromaquia, espetáculo de vida e de morte, e sua

arena é a página em branco, lugar de criação demarcado, em que a metamorfose, ideia à ação

criativa será realizada; é lá seu espaço de luta, de combate (-maquia) em que ele se vê

impotente, inerte. E o touro?

Ele é imagem que evoca uma força criadora ancestral; os touros sagrados da

mitologia fertilizavam a terra com seu sêmen, Minotauro guardava o labirinto, acessível

apenas aos iniciados, capazes das profundezas do eterno retorno. Ele vem para sugerir ali,

naquele instante, uma remota antiguidade em que a página é arena ancestral, o “papiro de

gritos e espanto” (verso 6); de quem? Daqueles que assistem ao espetáculo, o sacrifício ritual?

De quem vislumbra essa cadeia de signos? De quem compactua da aflição do poeta (o leitor)?

Do toureiro, que arrisca a vida a cada instante na arte da tauromaquia? Ou de quem vive da

agonia do papel em branco? De quem arrisca a vida em improvável ofício?

Para pensar nesses movimentos, uma outra performance se faz; a do papiro, que se

dobra e desdobra novamente, como o círculo em torno da tourada; e quantas vezes ele for

tocado pela leitura, novamente outra ação se concretizará, pois na dimensão do texto há

sempre vazios os quais o leitor é convidado a preencher, demonstrando que o poeta não “jaz”,

mas se compromete com uma ação, continuamente criadora.

Ao focalizar esse trânsito entre a escrita de Chacal, os contos tradicionais do “era

uma vez”, e algumas das atuais animações e/ou histórias em quadrinhos de aventuras, ou

mesmo seriados televisivos do gênero, percebemos que nelas certas personagens podem estar

sofrendo intensa violência sem que, no desenrolar das ações, haja qualquer intenção de

envolver ou provocar a compaixão do leitor. Nessa linguagem, os imbricamentos de

elementos do drama e da comédia estão fortemente marcados pela oralidade, o que também

ocorria na antiga comédia greco-latina. O foco estava nos acontecimentos mirabolantes que se

sucediam rapidamente, sem que houvesse tempo para o pormenor, atravessados pelo risível e

dramático concomitantemente, sem qualquer distinção, deixando para o espectador/leitor

fazer essa operação. Observam-se todos esses mesmos aspectos no exemplo abaixo, texto de

Chacal, de Quampérius:

121

Assalto

todo dia ana ia trabalhar. ela era guia turística.

mostrava aos gringos que cá chegavam nossa

topografia acidentada o arco-íris o céu anil. se não

gostavam mandava pra quiuspariu.

numa época de maior dureza, quampa planejou mais

ana um assalto a um grupo de turistas. ana levaria

visitantes à vista chinesa do fim de tarde. lá estaria

esperando quampa disfarçado em helicóptero.

ninguém suspeitaria. quampa foi esperteleco pois

além de bueno seu disfarce serviria como veículo

de fuga.

era cinco e meia quando o ônibus da riotur cheio

de japoneses chegou ao local. sem suspeitar jamais

de um helicóptero, os amarelinhos saíram do bus

e começaram a fotografar tudo que podiam: a

paisagem, uns aos outros, a bela guia que decifrava a

cidade e roía as unhas. usava baton.

os filhos do sol nascente estavam embasbacados com

o panorama e perguntavam: quem ganhou o último

páreo? Apontando para o hipódromo da gávea ou

“ como uma cidade pode ser tão bela anabela”?

tão distraídos estavam que não repararam nos sinais

que fazia o ônibus com os faróis a buzina o para-

brisa a antena na tentativa de avisar que o helicóptero

que parecia tão inocente e helicóptero, não era um

helicóptero e sim um farsante.

quampa de um salto fez o assalto. primeiro ligou a

hélice e espatifou o ônibus. segundos depois, tirou o

disfarce e rendeu os tanakas y mifunes com um lança

chamas. Ana limpou um por um e cuspiu na cara de

todos. neporium botou novamente o disfarce, ana

embarcou e saíram voando. Os japonas estupefaram.

(CHACAL, 2007, p.264-265)

Não há no texto qualquer preocupação com as subjetividades, são os fatos crus

apresentados que sustentam a perspectiva de um narrador onisciente. Esse narrador aparece às

vezes misturado ao protagonista em outros episódios/ poemas do livro. A precariedade desse

sujeito, o eu lírico, reafirma-se por uma certa indistinção entre ele, a personagem e o próprio

autor, já que há em outros eventos do mesmo, vários dados biográficos do autor fazendo parte

da narrativa e das ações do protagonista. Essa ambiguidade perpassa o texto demonstrando

um descompromisso com as certezas, inclusive com o espaço do sujeito do enunciado,

fazendo da história um lugar imponderável.

No texto acima, por exemplo, estamos no terreno de um realismo fantástico, comum

em seriados televisivos; neles, a ação sufoca o sujeito, como ocorre também nos quadrinhos

de aventuras. Ana, a namorada do protagonista, é portadora de apenas alguns traços que a

identificam, apesar do acúmulo de acontecimentos narrados superficialmente: guia turística

122

(verso 1), roía unhas, usava baton (verso 17), mas, curiosamente, todos os nomes próprios

aparecem com letra minúscula, demonstrando certo grau de impessoalidade. As personagens

centrais estão diluídas em ambiente urbano, onde um na multidão não ganha forma tão

facilmente; mesmo possuindo suas poucas marcas na fluidez desse real; é apenas o instante e

a ação que definem a experiência; não há valores estáveis a serem mantidos.

Em Assalto, a partir dessa falta de referência, o real passa a ser inapreensível, a

verossimilhança, a ideia da narrativa como representação enfraquece, e as incongruências são

apresentadas como perfeitamente plausíveis; Quampérius pode se disfarçar em helicóptero e

não ser notado (verso 8), assaltar os turistas (verso 27) e, sendo ele próprio, por alguns

momentos essa máquina, pode espatifar com suas hélices o ônibus em que os japoneses estão

(verso 28), e sair ileso com sua amada, como um super-herói, mas sem a distinção e o caráter

de que essas personagens são possuidoras.

Essa pretensa normalidade de um absurdo, que não se encaixa nem nos perfis das

aventuras expostas pela mídia, coaduna-se com o processo de desautomatização proposto por

Brecht, instigando a percepção do leitor na ponderação de que se o absurdo pode ser trivial, a

trivialidade possui também seus absurdos. E os seres podem se parecer, inclusive, com seus

disfarces, apenas executando uma ação programada, e depois irem embora, sem temer ou

pensar nas consequências de seus atos, não se comprometendo com eles; “saíram voando”

(verso 32).

Como nos contextos dos quadrinhos norte-americanos no pós-segunda guerra, no

poema “Assalto”, os “japonas” (verso 32) são pessoas hostilizadas, a ponto de, depois de

serem roubados, agredidos pelo lança chamas, ainda levarem cuspe na cara. Eles, comumente

associados à disciplina e ao trabalho, levam a pior no universo do caos e da malandragem que

a cidade tem a oferecer (versos 29-30-31). Diante de toda a violência, eles não têm uma só

reação, apenas “estupefaram” (verso 32). Eles estão inseridos na história como personagens

desprovidos de inteligência, embora interessados em esportes competitivos e nos prêmios de

quem aposta neles: “quem ganhou o último/ páreo? apontando para hipódromo da gávea”

(versos 19-20). São convencionais, importam-se mais em guardar uma imagem fixa do

momento, que percebê-lo em seu movimento de perigosa mudança: “e começaram a

fotografar tudo que podiam: a/ paisagem, uns aos outros, a bela guia que decifrava” (versos

15-16). São o oposto do protagonista, “esperteleco” (verso 9); palavra que parece saída de um

desenho animado. Os perfis são, portanto, bem esquemáticos, caricaturais. A falta de

caracteres mais humanizados contribui para que a catarse não se efetive do lado do leitor, eles

123

são apenas estereótipos, ridiculamante tolos: “embasbacados” (verso 18), a dizer: “como uma

cidade pode ser tão bela anabela?” (verso 21) Frase bem clichê, que os moradores do Rio de

Janeiro escutam sempre dos gringos.

Podemos facilmente, a partir desses elementos, comparar essa história aparentemente

cômica com as antigas comédias greco-latinas, e a aproximação de ambas com as histórias de

ação dos meios de comunicação de massa é visível. Esse texto de Chacal possui vários

elementos comuns com as comédias: poucas personagens, com pouca ou nenhuma

complexidade, uma linguagem oral do cotidiano, das ruas, nada pudica, com neologismos,

estrangeirismos, baixo calão e um enredo bastante movimentado, apoiado em sequências de

ações das personagens, com começo, meio e fim bem definidos, em torno de um só problema

a ser solucionado, no caso, “a dureza” (verso 5) das duas personagens centrais: Ana e

Quampérius.

Na antiguidade21

, em que se ria com um roteiro básico acrescido de oportunas

improvisações, os temas, como em “Assalto”, eram ligados ao tempo e espaço imediatos;

possuíam então significação coletiva, exercendo um controle social: o medo do condenável,

do ridículo dos comportamentos. A procissão fálica, uma das formas primitivas de comédia,

atravessava as ruas da cidade e nos cortejos de parodiantes mascarados, eles cantavam,

dançavam e se dirigiam aos espectadores atacando nominalmente políticos e grandes figuras

locais. Essa crítica frontal, presente na comédia antiga, durou desde os primórdios até sua

proibição, na época de Aristófanes (447 a.C.). A partir de então, não era mais permitida a

crítica pessoal e o enfoque passa a ser dado aos costumes sociais.

A atitude crítica presente na comédia sempre teve necessidade de adquirir novas

roupagens para sobreviver em momentos de crise política. Na ditadura militar vigente no

Brasil nos anos de 1970, quando Quampérius foi criado, toda a arte que criticava o sistema, e

seus encontros com o público, teria que apresentar seus disfarces para não serem

violentamente coibidas. O próprio grupo de que Chacal fazia parte patrocinava desfiles

carnavalescos, as “Artimanhas”, e “peladas” para organizarem os encontros de artistas, sem

gerarem suspeitas. A palavra poética muitas vezes exigiu máscaras diferenciadas para se

manter livre.

21

Tais argumentos foram retirados das aulas do Prof. Johnny José Mafra, em curso oferecido em agosto/

setembro de 2014: “Literatura Clássica: a comédia”, e nos valiosos e raros materiais sobre o tema, escritos e

impressos por ele, gentilmente ofertados aos alunos que cursaram a disciplina.

124

Os personagens típicos da comédia antiga eram como o são até hoje nos quadros

cômicos da mídia; o mocinho, o avarento, o mau caráter, a mocinha casadoira, o guloso, o

fanfarrão ou a bisbilhoteira. Mas depois de muitas peripécias, no desenlace, geralmente havia

algum tipo de promoção, e a personagem central se integrava à sociedade, tudo se resolvendo

no final.

E para Quampérius? Não há nenhuma solução possível. O enredo da obra não indica,

ao final dela, qualquer fechamento ou reabilitação, como havia nas comédias antigas, para as

canalhices do protagonista, ou para sua “dureza”. Não há ainda qualquer quebra para o

impasse de um eu lírico que se mistura com a personagem e que não se reestabelece, a não ser

uma encenação metalinguística, que muda a perspectiva de construção de um discurso

literário como representação.

Observamos como isso ocorre no último poema narrativo de Quampérius, que na

verdade deveria ser o primeiro, pois fala da criação da personagem, e é curiosamente

chamado de Licença Poética (CHACAL, 2007, p. 297):

-ô cara, vim aqui pra ti chamar prum pagode. vamu lá

-aí, quampa, my friend. hoje tu vai só. sabe qualé?

mi deu uma vontade braba de ficar aqui mesmo

escrevendo sobre você tuas aventuras sobre-humanas

aventuras sobre o devir e o vir a ser e sobretudo sobre

ela aquela aquarela amarela da casa d’stela. pois é

poesia baixou no meu telhado ou melhor, por entre as

telhas me esgueirei pra ver você.

(CHACAL, 2007, p. 297):

Como ele pode contar a história de seu personagem, Quampérius (meio

autobiográfica), antes de tê-lo criado? Quem está pedindo licença e a quem? A personagem,

ao entrar em cena? Ou ela mesma, ao chegar à casa do narrador? O criador, à criatura mal

acabada? Ou ele mesmo a nós, leitores, ironicamente, pelo fato de ter escrito essa história ao

revés? O poeta, aos colegas de pena, por incluí-los tão inadvertidamente nesse emaranhado

sem ponta? A coloquialidade e a grafia das palavras são meio oswaldianas.

Adélia Prado (Divinópolis, 1935), exatamente no primeiro poema de bagagem

(1976), fez uma retomada autobiográfica do “anjo torto” de Drummond, do Poema de sete

faces (1985, p.3), em poesia denominada Com licença poética (1976, p.23), embora o faça

justamente para negar o lado gauche do ser feminino. O eu lírico de Chacal declina do convite

de Quampérius para irem a um pagode, e não querer sair de casa para ficar se esgueirando por

125

entre telhas para ver, compor seu protagonista, e ambos (ou os três; personagem-autor-

narrador?) são um tanto gauches na vida. O verbo esgueirar é bastante significativo para

pensarmos nessa relação que o poeta carioca estabelece com a palavra dos dois mineiros,

Adélia e Drummond, numa atitude de quem se infiltra, cuidadosa e tortamente, até para

brincar, como nos trocadilhos infantis, com a cor amarela, que está também em “louvação

para uma cor” (1976, p.43) de Adélia Prado. Através do jogo dessas tramas e encenações, sua

palavra poética irá percorrer até chegar ao leitor, que poderá, performaticamente, refazê-las,

reinventá-las.

Assim, nos textos, não há ainda nenhum segredo a ser descoberto pelo leitor, a não a

ser a linguagem, em uma potência de simulacros. A dimensão da história é mais fruto de um

imaginário difuso, sobreposto, que de um sentido (“aventuras sobre o devir e o vir a ser”?)

(verso 5), em que imagens em movimento prevalecem em detrimento da pouca ou nenhuma

complexidade das estruturas frasais, dos versos longos, cujo fluxo é similar ao de uma fala

ofegante, tensa, com poucas pausas, de quem tem pressa para viver do agora. E é começando

de seu agora que o leitor percorrerá emaranhados, até chegar a outras leituras, fazendo um

movimento inverso, do fim até o começo, como o passar de páginas de um mangá, ou como o

eu lírico de Quampérius que afirma, contraditório, no último poema, que vai começar a

escrever sobre as aventuras de seu herói.

Apesar de ter marcas dos quadrinhos estrangeiros, como os mangás22

japoneses, ou

dos heróis mascarados norte-americanos a lutar pela propriedade privada, o resultado do livro

Quampérius, em sua primeira edição ilustrada artesanalmente, é uma mistura bem brasileira:

um herói mestiço, “sem nenhum caráter”, sensual, eclético e híbrido. O mocinho não está com

a lei e nem o mifune é um samurai harmônico. A própria origem dos mangás parece ter pontos

de contato com as práticas dos autores das poesias marginais nos anos de 1970, quando o

livro foi escrito. Na época feudal, muito antes do livro impresso, essas lendas japonesas

ilustradas eram reproduzidas através de rolos compressores artesanais, e lidas em papiros à

medida que eram desenroladas. No século XX, quando se tornaram acessíveis ao ocidente

depois da segunda guerra, o apelo comercial os fez aproximaram-se da linguagem

cinematográfica, com alternâncias variadas de planos e enquadramentos. Depois da aquisição

dessa linguagem múltipla, vão surgir vários fanzines independentes, e a partir dos anos de

22

O vocábulo tem seu sentido ligado às origens do teatro de sombras medieval, que percorria as vilas contando

as histórias dos ancestrais por meio de fantoches. Depois, já em textos, foram ilustrados e escritos em japonês,

em que o movimento de leitura se faz inverso em relação ao ocidente, ou seja, da direita para a esquerda; assim,

o início dela se dá inversamente também, a partir da contracapa.

126

1990, os mangás tornam-se fenômeno internacional de venda, havendo também várias versões

em desenhos animados, que viraram febre, algumas com forte apelo sensual.

Assim, ao utilizar essa linguagem incongruente, (próxima da midiática, mas com

elementos incompatíveis; semelhante à oralidade cotidiana, mas com traços fantásticos,

inverossímeis) o autor estaria provocando um estranhamento no leitor, e, a partir dele,

propondo um questionamento. Como em um método de vacinação, as incongruências

presentes no texto usariam os mesmos elementos estranhos que “intoxicam” a percepção do

sujeito para fazê-lo reagir. Há aí uma catarse, no sentido de uma transformação do receptor da

mensagem a partir de seu encontro com o texto.

Essa é uma técnica muito utilizada pela linguagem performática e há em toda obra de

Chacal um apelo à performance, entendida aqui também como

(...) basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromissos com a

mídia, nem com uma expectativa do público e nem com uma ideologia engajada.

Ideologicamente falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a

liberdade na criação, esta força motriz da arte (COHEN, 2002, p.45)

Na mídia, a oralidade adquire outros formatos, já que através dos meios audiovisuais,

não há mais a presença física do falante, e esse dado interfere sobremaneira no processo de

comunicação, que assim passa a ser habilmente arquitetado, filtrado e moldado. A linguagem

do marketing, “a industrialização da retórica” (SILVERSTONE, 2002, p.77), com suas

características persuasivas, como a repetição, o encobrimento do sujeito da mensagem e o uso

do imperativo está sempre marcando as enunciações, inclusive instaurando a fragmentação

dos pontos de vista, de tal forma, que a pluralidade das perspectivas produz,

oportunisticamente, uma dispersão do enunciador do discurso. A repetição exaustiva de certas

palavras / expressões/ sentidos, que deslizam sucessivamente pelos meios de comunicação de

massa, esvazia e rotula, transformando significados em significantes “de agora em diante

acabou a palavra curtição muito gasta pelas muitas vezes dita. daqui pra frente, diga-se

cartilage. três salvas de canhão estrondaram.” (CHACAL, 2007, p. 288)

Ao fazer uma reflexão sobre a linguagem midiática utilizando-se dela, o poeta expõe

e rearticula seus significados, demonstrando, inclusive, que não existe nenhuma possibilidade

de estar fora dela, já que sua presença é incontestável. Através de uma atitude crítica, o autor

posiciona-se intelectualmente diante da questão, tentando um certo distanciamento para

127

percebê-la, mas os signos se misturam e são, simultaneamente, apresentação e representação,

contexto e texto, objeto material e simbólico, com podemos ver no poema abaixo de Letra

Elétrika:

O auge do objeto rouge

um banho de sangue

em toda a idéia doída

breve nesse cinema

(CHACAL, 2007, p. 156)

Pensando justamente em travar um embate com essa onipotência da mídia, a

produção do autor se propõe a ocupar outros espaços, além daqueles de uma tradição que a

condicionaria ao mundo acadêmico; em ininterrupto trânsito, ela pode estar agora em todo e

qualquer lugar e misturar-se aos corpos no preciso instante banal, nas ruas, nas praças, nos out

doors e nos palcos abertos a experimentações performáticas em que a poesia e as várias

linguagens artísticas podem dialogar, como no poema acima; performaticamente sintético,

cinético, sonoro e plástico.

4.2 Poéticas performáticas

Além de ser entendida aqui como resultante do encontro de autores/textos/ leitores,

que capta, na ação, no ato da leitura, essa variedade de contribuições dos signos dispostos ao

longo de lugares e épocas diferentes, conectadas em diálogo com o repertório e o momento do

leitor (como propôs Zumthor na epígrafe deste capítulo), usaremos a palavra performance

também com outra conotação, a mais comum, que se refere, principalmente, às artes cênicas.

A esse respeito, Renato Cohen (2002) afirma:

Da mesma forma que a mídia “cria realidades”, na arte de performance vão se

recriar realidades através de outro ponto de vista. Resistente. Vai se jogar,

sensivelmente, com as armas do sistema. A linguagem da performance é uma

revisão da mídia.

A mídia manipula o real (artificialmente se criam padrões, mitos, imagens, etc, que

passam a ser aceitos como verdade). O que se faz na performance é, utilizando essas

128

mesmas “armas” (incluindo-se tecnologia e eletrônica), manipular também o real

para se efetuar uma leitura sob outro ponto de vista. (COHEN, 2002, p.76)

A retomada de caracteres completamente descolados do tempo e espaço imediato do

autor e do leitor, inseridos em sua relação com o presente, é muito frequente na linguagem do

marketing e na literatura, mas obviamente com graus de profundidade e intenções

completamente diferentes. Na propaganda, o objetivo é bem direto; através da incoerência

pretende-se fisgar a atenção do leitor para o produto ofertado, não para a linguagem; ela é

apenas um recurso para tal fim.

Mas a poesia procura no instante vivido o tempo em devir em que se irrompem

outros, numa operação sensível, que dispensa as amarras da lógica cartesiana, e a palavra

torna-se assim dinâmica, muito mais complexa. Primeiramente porque é a palavra o foco

principal, sendo ela mesma um produto que retoma sempre, de alguma forma, outros. A

intertextualidade se faz da mesma maneira que a reflexão metalinguística; a ideia ou a

sonoridade/ ritmo pretendido do fazer poético que a palavra procura, sempre remete,

performaticamente, naquela oportunidade específica, à de outrem.

Chacal, como no poema abaixo, usa a metalinguagem como experiência consciente,

intencional, a partir de um trabalho dirigido ao tema e forma do próprio texto. E se

reconhecemos que, como ele, os escritores sempre foram também leitores de outras

produções, distantes ou não, e a interpretação uma forma de compreensão, um diálogo que

transforma, tanto esse leitor/escritor, como os elementos de um passado utilizado por ele em

sua escrita (como propusemos aqui a partir da epígrafe de Zumthor (2007), a leitura será

sempre uma forma de elaboração provisória, e, no momento em que essa ação se realiza,

instauram-se conflitos e endossos, formais e temáticos, entre os autores e palavras. Não existe

realidade que independe da linguagem; assim, não há certezas e as leituras/escritas são sempre

diálogos que se estabelecem entre a palavra poética e o instante fugidio que se (des)faz,

inapreensível. Veja-se o poema abaixo, também de Letra Elétrika:

Fala palavra

Fala palavra

tu que és velhíssima

no entanto uma gata

meus afagos

agarrar queria eu teu lombo bom

mas és limo na pedra de imolar amantes

129

feliz seria se te flagrasse no banho

mas me afogaria na areia movediça

do texto da tua tez

só me resta te cantar

como um cego

que sabe a luz tão próxima

mas impossível

como um mudo que sabe

um a um todos os tons

mas incapaz

fala palavra

furta- cor de tudo e todos

apenas passas

dás o nome

e vais e caça

bela e fera

pantera

estanca o delírio romântico

nesse coração de poeta

cala em mim a paixão de te cantar

como um louco

que me vale saber tuas sonoridades

teu tom de cristal

se no meio desse hospital

fico tão impaciente

fala palavra

fluido flerte

és versátil volúvel volátil

diabólica

fala palavra

mercúria sombra do nada

(CHACAL, 2007, p.117-118)

Um eu lírico em ritmo tenso, repete, várias vezes ao longo do poema, o verso que dá

nome a ele. Como um refrão hipnótico, o imperativo conduz o texto, provocando um efeito

subliminar à leitura, algo primitivo, um mantra que evoca a palavra. Ela é o verbo, é ato, e

esse eu que se pronuncia, é o cantador que a espalha; “só me resta te cantar/ como um cego/

que sabe a luz tão próxima/ mas impossível/” (versos 10-13). A palavra “mercúria” (último

verso) traz o elemento denso, mas que escapa com facilidade, é metal frio, líquido, mas pode,

cortante e versátil como a voz que se espalha no ar, tomar o formato que o poeta vai perseguir

em vão.

A disposição dos espaços gráficos do texto também confirma essa fluidez em

movimento, como se as palavras se movessem em estado gasoso, rarefeitas. Um imaginário

difuso, de origens diversas, vem trazer percepções dos vários sentidos. O poeta, louco

trovador apaixonado, que flerta tenso com o que tanto deseja, torna-se impotente diante da

impossibilidade de enxergar o que está tão próximo. Há de se ter uma distância necessária

para percebê-la, do contrário, a palavra, com seu “tom de cristal” (verso 29), apenas perpassa

130

diabolicamente inapreensível, “caça” selvagem (versos 21, 22 e 23), “furta-cor de tudo e

todos” (verso 18), “areia movediça” (verso 8), “limo na pedra” que faz “imolar

amantes”(verso 6), sacrificando ou tornando escorregadios os significados de quem deseja

agarrar-se a certezas, ou quer vê-la sensualmente desvestida de convenções; “feliz seria se te

flagrasse no banho” (verso 7). A palavra é “sombra do nada” (verso 37), não mais tem o que

representar, não pode ser simplesmente a cópia, o negativo do retrato, uma imagem do real,

como no mito da caverna de Platão.

Quando Nietzsche (Alemanha 1844-1900) fez sua análise genealógica da cultura e

rompeu com o positivismo histórico e com o ideal de representação, expôs o quanto são

provisórias e ideológicas as verdades absolutas. Trouxe, com sua genealogia, um sentido

trágico para a existência e o reconhecimento de que são as situações empíricas que definem a

experiência humana. Se Deus deixa de ser o mediador do conhecimento, instaura-se outro

modo de legitimação do conhecimento: a especialização, os métodos e processos de

verificação que promovem, cada vez mais, a compartimentação do saber. E o homem encena

o desejo incessante, a ilusão de agarrar, de dominar um conhecimento pleno.

Mas só a arte trabalha com o imaginário, que compreende concomitantemente o

onírico, o lúdico, a fantasia e o afetivo, não sendo passível de uma racionalização acabada;

por isso, torna-se capaz de abdicar da verdade absoluta e do domínio pleno. A

compartimentação do saber trouxe uma ilusão de objetividade, mas a arte põe o dedo na

ferida, demonstrando que não há uma única racionalidade universal. É esse entendimento que

está posto em uma literatura moderna que vem então perdendo, como no texto de Chacal

acima, a ilusão de representar o real para questionar tanto o próprio entendimento do que seria

a palavra literária, quanto as noções de sujeito e referencialidade fixa. A poesia aqui se afasta

do paradigma essencialista para expor equilíbrios precários e o divórcio entre a palavra e o

objeto.

Schollhammer (2002) discute como esses novos entendimentos modificam os

procedimentos literários, eliminando o herói clássico moderno e suas motivações psicológicas

e superam o enredo aristotélico, abrindo caminho para novas qualidades sensíveis do texto,

como as manifestações de uma subjetividade em dissolução em um mundo multifacetado e

fragmentado. Seu estudo sobre as ilusões de fidelidade e veracidade representativas do projeto

literário e as novas potências performativas da escrita coloca o papel da literatura para além

do compromisso representativo ou moralizante. Segundo o professor de Teoria da Literatura

da PUC do Rio de Janeiro, há na criação poética dos fins do século XX uma lógica intrínseca

131

de ações que amplia efeitos sensíveis e cria outras formas de identificação do eu com o

mundo:

(...) mudanças na relação entre subjetividade, experiência e realidade. Assim, uma

pesquisa que, por exemplo, se orienta pelo impacto direto na literatura

contemporânea das novas tecnologias inovadoras do cinema da televisão do vídeo,

e da visualidade digital, pode na tradução textual destas mudanças registrar as

formas culturais de representação alteradas indicando modificações mais profundas

na experiência fenomenológica do tempo e do espaço, da situação do corpo humano

em relação ao mundo e as possibilidades de encenação do sujeito como condição da

identidade social. (SCHOLLHAMMER, 2002, p.26)

Como vimos nas análises dos vários textos de Chacal, a dicotomia entre sujeito e

objeto do discurso se enfraquece, e as relações entre imagens criam outro modo de conceber

um tempo disparatado em lugares desconectados e parciais. A partir das referências sobre a

linguagem performática nos estudos interdisciplinares de Gade e Jerslev (2005),

Schollhammer veio conceituar Realismo Performático em publicação de 2012:

(...) encontramos nessa prosa, eis a nossa hipótese, efeitos de realidade que dão por

aspectos performáticos da escrita literária não exclusivos à comunicação racional

nem aos efeitos sobre uma consciência receptiva, senão que atuem efetivamente

agenciados pela expressão textual num nível que só pode ser denominado de não

hermenêutico.

Precisamos acentuar então que estamos falando de um tipo de realismo que conjuga

as ambições de ser “referencial”, sem necessariamente ser representativo, e de ser,

simultaneamente, “engajado”, sem necessariamente subscrever nenhum programa

crítico. (SCHOLLHAMMER, 2012, p.143)

Está posta a necessidade de se trabalhar com um sentido ético mais abrangente, sem

se ater à lógica ultrapassada de uma representação social declarada a partir de um enunciador

ou de um lugar engajado da enunciação, e de se analisar os processos em que as identidades

se fazem performaticamente e em devir. A compreensão do fenômeno literário será mais

promissora se estiver posto o diálogo permanente com as outras expressões artísticas e com

disciplinas como História, Antropologia, Comunicação, Psicologia, Filosofia, concebido não

apenas como um corte analítico, mas como parte constituinte do objeto e da linguagem.

Schollhammer acrescenta, no mesmo ensaio:

132

Hoje, não só caiu em descrédito qualquer tentativa de definir a literariedade como

também foi problematizada a exclusividade dos estudos literários a favor de

abordagens transdisciplinares. Uma tendência predominante foi a de deslocar o

centro das leituras dos conteúdos e das características de discurso e estilo para uma

atenção cada vez mais acentuada no fazer pragmático do texto, seus efeitos e sua

performance. (SCHOLLHAMMER, 2012, p.143)

Se estamos pensando na performance poética como uma representação que se

(re)faz continuamente, em devir, sem parâmetros fixos, para se conectar com um real que

afete o leitor em sua sensibilidade, surge outra terminologia usada por Schollhammer (2007),

o “realismo afetivo”. O autor destaca a impossibilidade de representação da realidade a partir

do “cânone mimético do realismo histórico” e “procura realizar o aspecto performático da

linguagem literária, destacando o efeito afetivo em lugar da questão representativa” (p.43). O

termo refere-se também à teatralidade da experiência poética, de como essa forma de

expressão “afeta” o leitor ao se voltar ao pragmatismo do próprio texto, que se constitui como

um conjunto de sinais, construídos à maneira de um deslizamento de cenas fortes, que

anseiam o conceitual, marcando sucessivamente o texto e o leitor, sem que com isso se

tornem objeto de representação de um real, como no texto abaixo, publicado em livro inserido

na reunião de todos os seus poemas até 2007, denominado também, como a coletânea, de

Belvedere:

Sete Provas e Nenhum Crime

Havia a mancha de sangue no jaleco

E nenhum corpo

Havia o olhar rútilo, o rosto crispado

E nenhum motivo

Havia o cheiro impregnado no copo

E nenhuma digital

Havia o vírus, o bilhete, a arma branca

E nenhum assassinato

Havia em vão a confissão

E nenhum ilícito

Havia a cadeira de rodas vazia

E nenhum suspeito

Havia um gato emborcado no aquário

E peixe nenhum

(CHACAL, 2007, p.11)

O poema traz uma palavra poética que trabalha com o elemento ausente, o

intraduzível, como propôs Artaud (transcrevemos um trecho na epígrafe do capítulo 2), ou

seja, o real não está mais presente quando se tenta dizê-lo. O que o artista faz é inventar meios

133

para presentificar sensações que se aproximem, ao máximo, daquelas que podem advir através

do contato com o real, e tentar compartilhá-las com o receptor, provocando-o. Esses novos

realismos que procuram outras formas de afetar, de estabelecer com o leitor motivações

inusitadas através dos procedimentos textuais, estavam também presentes nas propostas dos

artistas da poesia marginal da década de 1970 e de Chacal. Eles desejavam exatamente novas

formas de impactar os leitores, criando obras de cultura que descartavam completamente um

desejo de grandiosidade ou excelência literária em favor de criações que se integrassem ao

cotidiano, como se um sentimento comum fosse capaz de estabelecer uma mudança de

paradigma, fazendo uma poesia que, ao sair do espaço confinado das bibliotecas, afetasse uma

coletividade, trazendo elementos lúdicos para os espaços comuns.

Essa proposta de integrar a vivência, a paixão e um sentimento comum para a criação

da cultura, que microscopicamente recria no cotidiano um corpo coletivo, ao mesmo tempo

em que propõe um novo modelo ético, faz parte das reflexões da tradição intelectual francesa.

Maffesoli (1998) cita G. Bataille e Foucault na construção dessa mudança de paradigmas para

criação de uma visão mais holística, global da sociedade. Termos como “ética da simpatia” de

M. Scheler, ou “nebulosa afetual” e “consciência coletiva” de Halbwachs, chegando até

“comunidade emocional” de Weber, aproximam-se muito, tanto do conceito desenvolvido por

Schollhammer, “realismo afetivo”, quanto das perspectivas de análise de Jacques Rancière

(2005) em A partilha do sensível.

O entendimento da arte como uma prática que modifica a maneira como a sociedade

faz funcionar a sensibilidade e como ela torna isso visível, como propõe Rancière, aparece

posto em questão nas expressões artísticas abordadas aqui para o estudo da obra de Chacal.

Na vanguarda europeia, no início dos 1900, o dadaísmo, discutirá principalmente o lugar da

arte na economia simbólica, e o surrealismo, o próprio conceito de realidade. Na segunda

metade do século XX, os beats deixarão expostas a dor e o vazio do consumismo

individualista de um país bélico, e os poetas marginais brasileiros, a necessidade da alegria

para espantar o medo em um triste momento da história brasileira, e a poesia como uma

atitude para enxergar a vida.

A prática dos artistas do papiers collés, a técnica da colagem, fez dessa operação

uma linguagem estruturadora, como propôs o vanguardista Max Ernst no início do século XX.

Através do resgate de imagens prosaicas do cotidiano, trouxe a união de antinomias, e criou,

na livre associação, outras realidades e novas utilizações para os objetos, implantando nas

artes a semente da reciclagem. Não tomar nada como definitivo, transformar a repetição ou a

134

fragmentação em condensação, em síntese, e com uma criação artística de recursos mais

primitivos, trouxe desdobramentos de conflitos inconscientes, inventou outro cotidiano, mais

lúdico, mais rebelde diante da domesticação de uma realidade politicamente imposta.

Como consequência, vão surgir nas diversas manifestações artísticas ao longo de

todo o século XX, rompimentos com a organização de um discurso narrativo, linear ou

lógico-formal. A história, o conteúdo, ou o produto artístico passam a interessar muito menos

que o processo, aquilo que está sendo feito no momento, a performance. Essa ideia trouxe

recursos irreversíveis para toda arte, e outras linguagens se estabelecem a partir de então.

O grande coreógrafo Laban (Eslováquia 1879-1958), por exemplo, traduziu esse

entendimento e revolucionou sua arte ao desmontar o balé clássico, trazendo para o palco os

movimentos que hoje denominamos dança contemporânea. Pollock (EUA 1912-1956), com

seus deslocamentos vigorosos de pincel, fez da imagem também uma performance, tanto do

ponto de vista da criação, quanto da recepção. Robert Wilson (EUA 1941) trouxe esses

elementos performáticos para o teatro, chamando a atenção para a importância do “como” em

detrimento do “que”, ou seja, a preocupação maior passa a ser o conceito, a realização em si,

o instante, muito menos que a formalização rigorosa das cenas, tendo produzido trabalhos em

parceria com os beats Allen Ginsberg e Burroughs.

Assim, a arte dos fins do século XX vai buscar, na espontaneidade e no acaso, os

materiais de que necessita para sua construção, mas isso não deve levar ao equívoco de que a

arte possa ser uma captação direta do fluxo do inconsciente. Cohen (2002) esclarece muito

bem a questão: “A arte e todo o processo de salto de conhecimento deve constituir-se de uma

parcela de não intencionalidade, de não deliberação” (p.62). Reforça dessa maneira o

entendimento da arte como uma forma privilegiada de conhecimento e do conhecimento

como uma prática que também não deve prescindir de sua parte sensível, intuitiva.

Os artistas plásticos brasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica tomaram essas ideias a

fundo, e foram reconhecidos internacionalmente pela importância inovadora delas, através de

exposições que circulariam pela Europa e EUA. No Brasil, participaram do Grupo Frente de

Arte Concreta em 1957, e reformulariam esses conceitos da obra como objeto também

material, palpável, intercambiável, no neoconcretismo em 1959.

A partir de 1960, Oiticica trouxe outras inovações importantes para essa ideia de

performance ao expor obras que promoviam uma relação interativa com o receptor. Elas se

compunham de elementos heterogêneos; poemas-objeto, bólides, instalações ambientais com

135

pássaros, e jardins penetráveis pelo observador, que se colocaria então dentro da obra, e

muitas vezes ela produzia uma sensação de labirinto de sensações e sentidos a serem

experimentados pelo receptor.

Esses elementos de interação são essenciais para entendermos vários recursos de que

Chacal se utiliza ao propor uma poesia que se aproxime muito mais do leitor, que o procure

também fisicamente, nos espaços comuns. Ele é alguém com quem se deseja partilhar algo

sensível, de valor afetivo, em um ambiente descontraído, para que as barreiras de um receptor

não contumaz da arte sejam quebradas através da simplicidade e disponibilidade do autor em

ambiente receptivo a qualquer um. Lygia Clark também trilhou esse caminho, mas com uma

direção diferente, que chegaria à proposta da arte como terapia.

A questão teórica foi importantíssima para Oiticica, e na poesia de Chacal ela

comparece com a determinação de levar a poesia e a arte para a convivência no cotidiano de

todos, desmanchando o raciocínio redutor de que a arte performática pode ser apenas fruto

irrefletido do inconsciente. Uma elaboração teórica faz parte da invenção artística, assim

como a crítica social, o que soa muitas vezes como uma incoerência em relação à

simplicidade do produto e dos materiais utilizados na feitura do objeto artístico. Mas não é, há

aí uma opção orientada, um sentido.

A poesia de Chacal, aparentemente também muito simples, traz elementos que

podem levar a esse mesmo equívoco, como podemos constatar abaixo, em poema de A vida é

curta pra ser pequena:

Agulhas

usei

o corpo

há tempos

com um fim

determinado

pico da neblina

álcool setenta

vala comum

hoje

oriento

meu corpo

no abismo

agulho

outros

meridianos

(CHACAL, 2007, p.35)

136

Poema pequeno, versos curtos que, como uma agulha, traçam uma imagem fina e

vertical no papel. Condensada e sintética, a agulha perfura os sentidos, como o objeto, que

comporta uma diversidade muito grande de significados, inclusive aqueles que afetam o

leitor, provocando uma aversão, como no “realismo de choque” proposto por Schollhammer

(2012). O metal duro, ao tocar os corpos, pode tanto separar a matéria, como nas finalidades

medicamentosas ou entorpecentes, e nas técnicas de tortura, quanto juntar, costurar, colocar

no mesmo plano elementos de procedências díspares, como faz o autor com os sentidos

diversos da palavra no texto. É também uma agulha que orienta a posição dos corpos nos

espaços do planeta; sem ela, não há como proceder nas aferições dos deslocamentos; origem e

destino dos seres e das coisas no tempo.

Não há como ler: “oriento/ meu corpo / no abismo” (versos 10,11,12) sem que se

lembre de Mallarmé (1842-1898), Un coup de dés: “Mesmo quando lançado em

circunstâncias/ eternas/ do fundo de um naufrágio/ seja/ que/ o Abismo/ branco/

estanco/iroso/sob uma inclinação/ plane desesperadamente/”23

(MALLARMÉ, 2010, p.155-

156). Mas não é apenas porque a imagem do abismo em ambos traduz-se em um

deslocamento vertiginoso, do colapso, de um movimento de desamparo para o desconhecido.

A ousadia de procurar o insólito da criação, de arriscar, de jogar-se em projetos com

resultados imprevisíveis ou com retorno improvável faz parte da existência de quem dedica

toda a sua vida à arte como um exercício desestabilizador das convenções. Mallarmé é o

precursor dessa intenção, que chegou aos programas das vanguardas europeias, que colocava

a utopia da revolução do pensamento através de uma arte estruturada mais espontaneamente,

que usaria o livre acaso como maior inspiração inventiva e oferecesse possibilidade de

diálogo com as várias expressões artísticas.

Em Chacal, a ideia do abismo como uma insubmissão do espírito humano ao

desconhecido, aparece em suas experiências com a gramática (como na derivação imprópria:

“agulho/ outros/ meridianos”, versos 13,14,15), no uso do espaço do papel como elemento da

composição do poema, e nos sentidos em trânsito, que se valem de sugestões vagas, que

pairam como as palavras nos versos. Todos esses procedimentos foram usados pelo grande

poeta simbolista. No prefácio, “Mallarmé: o poeta em greve”, do volume de poemas do poeta

francês, Augusto de Campos transcreve as palavras de seu amigo e também poeta, Mário

Faustino, a respeito da obra de Mallarmé: “(...) seus poemas são atos e são coisas – não

23

A disposição gráfica do poema na página e o tamanho das letras são elementos importantes e muito

significativos nos textos de Mallarmé, mas dado seu elevado grau de sofisticação, torna-se impossível reproduzi-

los aqui com a autenticidade merecida.

137

apenas celebrações, elogios, louvores ou censuras, ou lamentos. São novas maneiras de ser

das palavras e das coisas.” (FAUSTINO apud CAMPOS, 2010, p. 26) Augusto de Campos

acrescenta:

É significativo que Mallarmé, para definir o seu marginalismo de poeta, tenha ido

buscar não uma metáfora aristocrática como a da “torre de marfim”, mas uma

expressão extraída do vocabulário econômico-social, a palavra “greve”,

emblemática da luta de classes. “A atitude do poeta em uma época onde ele está em

greve perante a sociedade” – diz Mallarmé (...) A recusa do poeta em prostituir o

seu trabalho e em aceitar passivamente a linguagem “contratual” imposta, tem uma

significação ética que escapa, quase sempre, aos críticos sociologizantes (CAMPOS,

2010, p. 27)

Campos, na mesma introdução, lança outros importantes “dados”: “esse novo

conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de

forma – uma ORGANOFORMA” (p. 23);

Se pensamos nessa palavra para denominar uma forma que trabalha como um

organismo, que funciona em conexão constante entre seus vários sistemas, essa nomenclatura

torna-se muito pertinente à análise dos textos de Chacal. Ela nos diz dessa nova configuração

de uma arte que leva em consideração o funcionamento de elementos poéticos como “atos”

estruturadores de uma ação, performance de ideias em movimento, inclusive elementos

tipográficos, inaugurados por Mallarmé, que encenam sentidos, ao invés de estabelecê-los.

Na segunda estrofe do poema “Agulhas” de Chacal, transcrito acima: “pico da

neblina/álcool setenta/vala comum”, os versos trazem imagens que, aparentemente, não têm

conexão entre si, nem com o texto. Mas se repararmos, verificaremos que, em uma sequência

temporal, os verbos da primeira estrofe estão no passado e o da terceira no presente.

Observaremos também que, como nessa segunda estrofe transcrita não há verbo, e que nos

substantivos e adjetivos desaparece a noção temporal, esses versos estarão, portanto,

suspensos entre as duas perspectivas temporais, e podem se referir então a ambas; passado e

presente.

O pico da neblina, ponto mais alto do Brasil, só foi descoberto na década de 1950,

quando expedições se voltaram para o estado do Amazonas, região vastíssima, quase

desconhecida até então e pouco, ainda hoje. Lá vivem muitas espécies vegetais e animais e

outros recursos ainda inexplorados, cobiçados internacionalmente. Vários pontos altos da

história brasileira ainda estão encobertos, sob neblina, como a ditadura militar dos anos de

138

1960/70. Em “vala comum”, como indigentes desconhecidos, eram enterrados os corpos dos

prisioneiros executados pelo regime. Até hoje há discussões e processos judiciais para

abertura de valas suspeitas no Cemitério Dom Bosco de Perus, em São Paulo, e em outros

locais ainda ignorados.

O verso “álcool setenta” está entre “pico da neblina” e “vala comum”, ou seja, entre

o ponto mais alto para onde se pode ir em vida, e a morte, vala comum de todos. Há aí

também uma alusão à droga, “pico na veia” usada pelo poeta e pelos jovens de sua geração,

levando ao ponto mais alto do prazer, ainda que “neblinoso”, mas também à morte. E por que

o “álcool setenta” e não outro? Porque a concentração exata de 70º é mais eficaz na

eliminação de bactérias, fungos e vírus, minimizando assim o perigo da contaminação. Ele é

solução aquosa, desinfetante, que atravessa a parede das células sem efeitos residuais. Será

que também para promover a assepsia dessa ideia da “vala comum”, dos assassinatos

clandestinos sob tortura, que, atravessadas décadas, ainda permanece, como um resíduo sujo

que ronda a identidade desse país?

Na estrofe final, “agulho/ outros/meridianos”, a impropriedade da derivação inaugura

um verbo no tempo presente e na primeira pessoa do singular. Esse sujeito desinencial, que se

coloca subentendido, como um “eu” qualquer, procura outras referências espácio-temporais,

diferentes daquela convencional, que se estabelece através da lógica arbitrária, positivista,

dividindo o oriente e o ocidente. Deseja outras linhas, para uma imaginação criadora de outras

realidades, não aquela mediana, mas a do desprendimento de quem se solta disponível em um

abismo sem latitudes ou longitudes, na imprevisibilidade e gratuidade do instante, de quem

enxerga um presente ainda a ser construído.

Esse possível diálogo estabelecido por Chacal com Mallarmé e com a invenção

poética simbolista não para por aí. No poema abaixo, esse diálogo está mais declarado, em

Letra Elétrika:

Rimbaud

cresta-me a pele o sol da abissínia

todo poeta é um traficante de armas

traficante de armas

u

m

todo poeta é

(CHACAL, 2007, p 155)

139

O formato do espaço ocupado pelos versos faz, novamente como em Mallarmé, parte

do poema. A diagramação propõe um movimento reversível para a leitura. Não há início ou

fim para essas palavras, que podem, performaticamente, ser lidas em diferentes direções. A

palavra “traficante”, dentro de um poema, para se referir a todo poeta, também produz um

certo grau de estranhamento, afetando o leitor, tirando-o da zona de conforto, como no texto

anteriormente analisado. A biografia de Rimbaud (França-1854-1891) e as interpretações dos

elementos de sua história possuem também direções tão incompatíveis, que a sua obra se

estabelece como a melhor opção para perseguir um sentido. Chacal nos fala no poema de

outro processo, às vezes sujeito também à ilegalidade do direito autoral, aquele que se faz das

palavras em movimento, de poeta em poeta, de poema em poema, de tempos e lugares que se

fixam no papel impresso, e que mesmo assim, não perdem a propriedade do trânsito.

Mas por que “todo poeta é um traficante de armas”? Que armas são essas? Talvez a

mais importante de todas elas; a palavra, o conhecimento, a possibilidade de sair do

confinamento reacionário e preconceituoso para usar a reflexão e a análise em cada momento

ocasional da existência, de usar a imaginação criativa para tornar os seres mais cientes de seus

próprios desejos, responsáveis por cada ação praticada na construção de caminhos, de

destinos.

Com reflexões que se aproximam desse entendimento, Rancière (2005) propõe uma

articulação entre a estética e a política: “atos estéticos como configuração da experiência que

ensejam novos modos de sentir e induzem novas formas de subjetividade e política” (p.11), e

acrescenta, na página 17: “As práticas artísticas são maneiras de fazer que intervêm na

distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de

visibilidade”. A arte não é, portanto, assim pensada, uma arma poderosa?

Maffesoli (1998) conduz seu raciocínio nesse mesmo sentido ao analisar as novas

“tribos” que se estabelecem nos ambientes urbanos, fluidas, dispersas, embora com reuniões

pontuais, que promovem uma viagem incessante entre sedimentações sucessivas, formando

um ambiente estético:

(...) via o novo vínculo social (ethos) surgindo a partir da emoção compartilhada ou

do sentimento coletivo. Portanto, em vez de ver aí uma frivolidade qualquer à

disposição de alguns, vanguarda, boêmia artística, talvez estivéssemos mais

inspirados se descobríssemos nesta coletivização dos sentimentos um dos fatores

essenciais da vida social, que está em vias de (re)nascer nas sociedades

contemporâneas. (MAFFESOLI, 1998, p. 3)

140

Esse raciocínio revelador nos permite repensar toda a movimentação dos criadores da

poesia marginal nos anos de 1970, e de Chacal, em particular, com a manutenção, há vinte

anos, do “cep 20.000”, como um espaço da gratuidade da invenção, do ato que valoriza o

encontro, o parcial, o cambiante, a afetividade e o calor humano como proposta de criação de

novos laços éticos/culturais na sociedade. Mas o poeta já encontrou esse caminho lenhado

pelos artistas tropicalistas nos anos de 1960, em especial, Lygia Clark e Hélio Oiticica, que

acreditaram e viveram por uma arte que se baseasse na profundidade das relações culturais

tecidas pela partilha da sensibilidade humana. Veja-se essa mesma relação estabelecida em

depoimento de Hélio Oiticica, feita em evento/debate denominado “Amostragem da

Cultura/loucura Brasileira”, realizada no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, em 10

de junho de 1968:

Quero frisar aqui que essa discussão sobre cultura interessa somente na medida em

que é tratada como uma dinâmica das forças creativas do homem nas suas infinitas

manifestações – não nos interessam definições como cultura de massa e cultura

superior, por exemplo; são excessivamente esquemáticas sob esse ponto de vista e

em última análise falsas. Para a dinâmica da creação e de sua força libertadora, tudo

tem a mesma importância, segundo aquele que cria: Mondrian era, há anos atrás

estímulo para mim, mas também o eram os programas de auditório, no rádio, com

Emilinha Borba, fãs-clube, etc, ou Elvis Presley com o rock-and-roll – enquanto

Kant me interessava, depois Hegel em igual intensidade, descobria que para mim era

impossível viver sem o Morro da Mangueira e do samba: cada centímetro do chão

da Mangueira eu amo com a mesma intensidade com que me dedico ao meu trabalho

creador. Os chatos de sempre diziam: como pode um rapaz tão inteligente,

acostumado a ler Shakespeare e Kant, ir parar na Mangueira. Jamais dei-lhes a

menor bola. Aquele que cria é assim: aberto, à vontade; basta uma tentativa de

encerramento, de condicionamento, e adeus liberdade creadora. Esse

condicionamento é interior, é claro.

Moraram?

Fiquemos então bem à vontade para discutirmos – sejamos mais alegres,

desprendidos, mais debochados, para ver se conseguimos entender um pouco mais

das coisas – das manifestações da creação humana, que não conhece classe, raça, ou

credo.

Cadê lo basê ???

(REVISTA NAU, novembro, 2013, p.11)

Este trecho foi retirado de um texto preparado e lido por Hélio Oiticica no evento

citado. Nele, a ideia do trânsito entre o popular e o erudito que se estabelece na obra de arte,

proposta vivida por Oiticica, não se faz como uma atitude de concessão para o outro que é

diferente, mas pelo desmanche dessas fronteiras através da valorização de espaços coletivos

de convivência entre criações e criadores. Esse vínculo também se (re)faz dinamicamente nas

141

festas de rua, onde as fantasias vestidas, vividas ou imaginadas não se circunscrevem em

rótulos sociais.

Bakhtin (1993) e seu conceito de carnavalização têm muito a contribuir para essa

discussão sobre as imbricações político-sociais e estéticas que embaralham as fronteiras entre

vida e arte. Para uma análise cuidadosa do movimento tropicalista dos anos de 1960, Miranda

(1997) utiliza a carnavalização bakhtiniana e a relaciona com o carnaval brasileiro. Da mesma

maneira que a festa nacional traz uma inversão dos hábitos (passa-se a noite em claro,

embriaga-se, não se trabalha e preocupa-se muito mais com prazer sensual e com a diversão),

as identidades também se invertem: os machões se fantasiam de mulher, os adultos em bebês

de chupeta, os brancos em índios e negros, os pobres em reis e rainhas, a classe média em

bloco dos sujos e os bastante vivos vestem mortalhas. As inversões são assimiladas por tudo e

todos que participam da festa, sem exceção; no mundo ao revés, a imagem espelhada reflete

uma totalidade inexistente no cotidiano da modernidade.

O tropicalismo propôs uma reinvenção da identidade cultural brasileira e uma

efetivação do modernismo oswaldiano (manifesto antropofágico e pau Brasil) pela

assimilação dos elementos díspares da nação, em uma linguagem que agregasse uma estética

experimental, desierarquizante e descentralizadora, com a inclusão de elementos de todos os

extratos sociais e culturais. A discussão sobre o fazer artístico e suas relações com a

diversidade social e cultural brasileira, proposta por Oiticica no trecho acima, fazem presentes

essas referências do movimento tropicalista do qual Oiticica foi um ativo representante, mais

que isso; tropicália é o nome de uma obra de autoria do artista plástico, que acabou sendo

utilizada por vários membros do movimento e pela crítica, das artes visuais (incluindo o

cinema novo de Glauber Rocha e o teatro de José Celso Martinez) à música.

Tanto a antropofagia quanto o tropicalismo propuseram uma negação da postura

servil de uma cultura brasileira periférica em relação à europeia. Se remastigar (da

antropofagia) e sobrepor, sem distinção ou hierarquias (do tropicalismo) os elementos

díspares das culturas era uma proposta para formação de um novo projeto cultural; repelia-se,

dessa forma, uma relação de causa e efeito entre a economia e a cultura, para pensar essa

última em uma dialética desierarquizante, que colocava a alteridade como necessidade para

um exercício mais lúcido e abrangente da autocrítica e da identidade brasileira.

142

A invenção de um cotidiano mais fraterno e múltiplo, em que todas as classes, seus

credos e práticas culturais pudessem conviver, sem dissimular as suas diferenças, faz parte,

tanto do que foi proposto por Oiticica e pelo tropicalismo em geral, quanto das práticas dos

poetas marginais, de Chacal e dos poetas beats. A valorização de substâncias alucinógenas,

principalmente da maconha, aparece como um hábito comum a todos eles. Aparentemente

muito simples, apenas um ato ilícito de uma juventude boêmia, o uso frequente de substâncias

entorpecentes possui sentidos simbólicos, sociais e políticos bastante complexos que se

refletem na construção da linguagem poética. O hábito de usar entorpecentes e/ou

estimulantes sempre esteve presente em todas as sociedades, desde as mais primitivas até as

mais modernas, em todo o planeta, sem distinção, como uma forma de intensificação e/ou

entorpecimento das sensações corporais.

Se os conflitos/proibições em relação ao uso de substâncias psicoativas pertencem ao

domínio da ordem política e/ou administrativa desde o Brasil colonial, as origens de seu

consumo aqui estão ligadas às ações rituais e simbólicas dos indígenas nas coletividades, em

suas relações interpessoais e subjetivas, o que era profundamente valorizado nas normas

sociais e nos processos identitários desses povos.

O uso de drogas no planeta está comprovado desde o neolítico; cabe-nos refletir

sobre sua determinante importância na construção de novas subjetividades no mundo e no

Brasil, que afloraram a partir dos anos de 1960 (como demonstramos melhor no capítulo 2),

propondo uma outra forma de conceber o conhecimento, o corpo, a cultura e a linguagem. A

ingestão de substâncias alucinógenas, nesse período, estava associada a projetos existenciais e

políticos, e a identificações e rupturas com elementos culturais que também se fizeram através

de práticas corporais.

Em várias épocas, nos cinco continentes, os povos migraram e levaram com eles seus

hábitos e cultura, rejeitados, muitas das vezes; alguns costumes provocariam fobia nos

habitantes da região em que se estabeleceram. No Brasil, não foi diferente. Vários elementos

da cultura africana foram marginalizados como seu povo, que criou formas inusitadas para

preservar alguns deles. Os negros angolanos, por exemplo, trouxeram nas embarcações as

sementes da “diamba” e plantavam-nas entre as fileiras de cana, muito mais altas, tornando-as

assim pouco visíveis, para que pudessem cultivá-las e usá-las em intervalos dos penosos

trabalhos forçados. Essa tática inteligente não estaria de alguma forma presente em práticas

disseminadas por sujeitos que espontaneamente se organizam em conjuntos, para procurar

outras formas de viver e fazer a cultura, mesmo que sob a invisibilidade?

143

Apesar de estar disseminado em todo globo, o uso de ervas alucinógenas ainda

provoca muitas discussões e a proibição continua no Brasil. Há muito preconceito sobre seus

usos e efeitos, inclusive aquele que quer admitir sua legalidade apenas nos rituais, como se,

somente assim, os entorpecentes pudessem ser tolerados, quando fizessem parte de coletivos

simbólicos de “outros” povos. Esse desejo de isolar e condensar o que é heterogêneo faz parte

das fantasias ideológicas da sociedade diante da impossibilidade de uma coesão total e da

ânsia de conceber no tecido social um elemento externo, um corpo estranho que, ao ser

excluído, reconstituiria uma impossível sociedade sem antagonismo.

A ideia é bastante equivocada, como bem demonstrou Carla Mourão (2003), quando

ela aproxima o estudo que Slovov Zizek fez sobre a fobia aos judeus à função do objeto

“droga” no imaginário cultural contemporâneo e seus discursos que deslocam e condensam

sentidos para montar totalizações manipuladoras. Sabe-se hoje, por exemplo, que mesmo as

populações indígenas mais isoladas, fazem uso individual e arbitrário de diversas “drogas” e

que os hábitos culturais, como a própria cultura em sua enorme complexidade, jamais

permanece encapsulada em um lugar específico ou em um tempo determinado. Ela viaja

como o homem, e sempre se transforma. Além disso, o próprio conceito sobre o que seja

“droga” é bastante controverso, hoje e no decorrer da própria história, pois nunca houve

consenso algum em sua definição.

Discussões menos retrógradas, como as organizadas por Baptista, Cruz e Matias

(2003), trazem esclarecedoras abordagens sobre o tema; como o da inexistência de um

conhecimento neutro, bem como sua origem, consequência ou aplicação, o da relação do

combate às drogas com posições militaristas, muito interessantes para pensarmos a

contracultura no Brasil, e o das posturas arbitrárias, que demonizam uma ou outra substância,

em detrimento de outras, ao sabor das conveniências políticas e/ou comerciais: “(...) nenhuma

análise séria é feita para relacionar tais acontecimentos considerados trágicos com as

dificuldades reais do cotidiano e a ordem mundial que os propicia” (MINAYO, 2003, p.20).

O entendimento da toxicomania como um sintoma geral da sociedade e de uma

insatisfação fundamental do ser diante dos controles pulsionais impostos pela civilização, já

estava posto desde Freud, em 1930, quando escreveu O mal-estar da cultura, mas a autora

citada acima acrescenta à discussão os problemas socioestruturais das sociedades atuais e a

fetichização do ilícito como um agregador de valor que sustenta o tráfico.

144

Arruda (2003), enfatizando a impossibilidade de totalização do conhecimento sobre o

assunto, faz um elogio a Maffesoli para dizer de sua importante contribuição sobre o

entendimento das subjetividades atuais, da qual a discussão sobre os usos das drogas não pode

prescindir:

Talvez por ser a realidade por excelência uma representação subterrânea, como

disse Maffesoli (1984), alertando-nos que existe uma resistência teimosa do

concreto mais próximo frente a qualquer explicação redutora e simplificadora. O

certo é que a vida e seu predicado cotidiano carregam consigo um todo dual,

irresistível a olhos mais interessados. Contém uma sabedoria do comum, uma

pedagogia da práxis, uma negociação permanentemente comunicativa, uma filosofia

do acaso e da necessidade, um espírito bricoleur, enfim uma presença que, nos

parece, inaugura este próximo milênio. Se não há mais escapatórias da vida

cotidiana, se todo sujeito e toda sociedade estão, inevitavelmente, imersos diante de

tamanha dureza, como sorrir para o amanhã? Diante do miolo da vida cotidiana, o

que podemos encontrar de importante? Não será mais útil pensar utópico, pensar a

história, pensar o tempo e sua duração? (ARRUDA, 2003, p. 89-90)

Esse “pensar utópico” a que a autora, Francimar Arruda, professora de Teoria do

Imaginário (UFF), refere-se, traz uma relação estreita com nosso objetivo aqui, o de se pensar

a arte performática como uma proposta de linguagem compartilhada do tempo em sua

duração. Essa utopia de uma arte que vive de sua inserção em um tempo que perdura

coletivo, que pode estar sendo feita de novo, conjuntamente, em qualquer outro instante da

existência, traduz-se em um encantamento perdido que opera como uma espécie de “sutura”

com a transcendência e com um sentido maior para a existência humana.

Esse pensar e fazer utópico espanta a dor do individualismo e, muitas vezes, esteve

associado a uma intensificação das sensações corporais, que fez com que os usuários das

drogas passassem a se interessar muito mais pelos estímulos imediatos compartilhados. Esses

elementos do instante, em contato com um universo de sensações estimuladas e aguçadas,

tornam-se significantes flutuantes que irrompem no fazer do objeto artístico performático em

sua relação com o que ocasionalmente o circunda, e os fazem significados.

O sujeito e o objeto, o autor e a obra, o texto e o contexto, o produtor e o receptor

interagem no momento da performance e se modificam mutuamente por força das

circunstâncias do momento em que se efetiva a comunicação. Sua análise desvirtua-se,

portanto, de um pensamento racionalmente estabelecido em função de um objetivo e um

sentido fixos. Chacal fala de sua experiência com esta utopia: “Admirava aquele tipo de vida.

Várias pessoas morando juntas, fumando juntas, fazendo tudo juntas, no palco, em casa, na

145

cozinha, no campo de futebol. Era o espírito do tempo. Paz, amor, viagem e invenção. A

utopia sendo realizada.” (CHACAL, 2010, p.34)

Muitos jovens viam nas experiências com o uso da cannabis, como os poetas da

geração beat, os hippies e mais tarde os poetas marginais, um alargamento da percepção da

realidade de uma forma mais sensorial, e por isso se colocavam em uma perspectiva

privilegiada para ver e viver o instante, reagindo a ele para construir uma arte mais

performática, em trânsito, livre das amarras convencionais. Oiticica e Chacal falam também

abertamente disso. Oiticica, no trecho de seu discurso transcrito aqui, fez, em público,

exatamente após o elogio à alegria e ao deboche de que a liberdade criativa deveria estar

prenhe, um convite, que parece se estender a todos os presentes: “Cadê lo basê?” (NAU...,

2013, p. 13)

O convite parece ter sido aceito por muitos artistas, que acreditavam em uma

sensibilidade coletiva, que poderia, através das atividades conjuntas, da reflexão e de uma

nova linguagem estética, construir uma relação mais ética entre as pessoas em geral, e que

criariam ainda, através de novas aberturas coletivas para a imaginação, outros laços sociais,

mais humanizadores. Existia uma postura irreverente, de deboche em relação à concepção da

arte como acabada e solene, e uma ação desconstrutora dos comportamentos sérios,

respeitadores das hierarquias. Esse riso descontraído não era ingênuo, ou fruto da alegria de

seres descompromissados com as contingências da vida “real”, mas uma postura crítica,

baseada em argumentos de quem fazia uma avaliação da história das culturas e aprendia que o

trânsito entre elas traz fraturas e reincorporações dinâmicas ao longo dos tempos. A alegria de

redescobri-las e reinventá-las enseja um prazer como o de ir além de seu próprio tempo e

lugar.

Como propõe Menezes (1974), esse entendimento da cultura e da arte como uma

(re)configuração incessante da experiência humana, enxerga na grande festa coletiva

brasileira uma concepção carnavalizadora do mundo e da vida que faz reviver uma unidade

utópica, mesmo que provisória. Essa energia, constantemente desestabilizadora, esteve

presente nos congraçamentos de homens pagãos, que carregavam a natureza dentro de si

mesmos, antes da oposição entre natureza e cultura.

Em Roma Antiga, por exemplo, houve companhias ambulantes de teatro

performático, pois nos “mimos”, as cenas eram “montadas” a partir da relação com a recepção

do público local, e geralmente se resumiam a uma brusca mudança de vida de alguém, o que

146

era imitado por outro, no palco, recurso que provocava risos, fazendo lembrar o homem na

condição semelhante a um brinquedo de corda, ou marionete, numa sociedade que já excluía a

espontaneidade e fazia também seres previsíveis. As marcas originais da linguagem

irreverente dos latinos, como uma atitude de recusa à domesticação dos instintos, aos hábitos

burocráticos, e uma procura pelos instáveis e insaciáveis sentidos, trouxeram elementos mais

afeitos à farsa, à desconstrução, que perduram até a modernidade, como vemos no texto

abaixo, de Chacal, retirado de seu livro autobiográfico, Uma história à margem:

Ficava-se zanzando pelas esquinas, alterados pelo álcool, mandrix e outros

coadjuvantes. Ali, num simples piscar de olhos, paixões se faziam, poemas tatuavam

guardanapos e o coração era rasgado com frequência por conta de um amor mal

resolvido. Ali fui preso sem documento, dei boa noite a poste, amei intensamente. Dentro do tenebrião que era o país naquele período, o Baixo Leblon com seus sinos

dionisíacos, sua luz negra, embalou e iluminou os passos trôpegos e a gargalhada

desafiadora da poesia marginal. (CHACAL, 2010, p. 52)

“Sinos dionisíacos”: o surgimento do teatro nas festas em homenagem a Dionísio,

deus do vinho, filho natural de Zeus, já denota uma exaltação a essa natural necessidade

humana; a submersão da identidade de um à de um outro, seja através da representação pela

palavra e/ou ação teatral, da performance, seja pela embriaguez do vinho, consumido

largamente nos festejos, elevando a alma ao transe. Da mesma forma as drogas são usadas até

hoje, para uma outra forma de conexão com o instante. As saturnais, em honra a Saturno,

deus semeador, eram acompanhadas de um clima de permissividade, de congraçamento

inclusive para os escravos, semelhante ao que ocorre no carnaval, em que a convivência entre

as várias classes sociais acontece nas ruas.

Chacal comenta sobre a convivência coletiva no lugar mais aberto do mundo, onde

uma festa se repetia a cada dia para reverenciar os sentidos e a natureza, a praia:

Naquela sensual faixa de areia, você podia encontrar Caetano Veloso, Arnaldo

Jabor, Regina Casé, a Isabel do vôlei, Cristiane Torloni, Nei Matogrosso, Cazuza,

Evandro Mesquita, Perfeito Fortuna, Luís Fernando Guimarães, Patrícia Travassos.

Ali o pessoal começou aplaudir o sol. O povo solar reconhecia e reverenciava aquela

gloriosa epifania dia após dia.

À noite, o Baixo Leblon era o point dos artistas e boêmios d’então. Ali no Luna Bar,

encontrei Ferreira Gullar, com seu seminal Poema Sujo recém-lançado, flutuando

sobre o salão, Alceu Valença, Carlos Vergara, Hélio Oiticica (CHACAL, 2010,

p.51)

147

Esse sentido do prazer e da alegria de viver de forma intensa e compartilhada era

reverenciado nas festas da antiguidade, mas existe também um sentido agônico de liberação

de uma tensão prévia represada, como se, somente naquele momento, todos pudessem

partilhar de um sentimento de eternidade. A própria palavra “prot(agon)ista” apresenta o

papel daquele que encarna uma luta, o que faz com que ele se aproxime de todos. A Poética

de Aristóteles (1996) já considerava a poesia mais universal e filosófica do que a história, pois

ela poderia acontecer, as possibilidades estão em aberto.

Na Idade Média, os rituais cômicos também se opunham à cultura oficial de tom

sério e traziam a consciência do tempo e da morte, convertendo o sagrado em motivo de

burla; um morto, por exemplo, podia ser simultaneamente objeto de pranto e escárnio. A

carnavalização medieval de que nos fala Bakhtin traz um riso ambivalente: “Não há pontos de

vista da seriedade em oposição ao riso. O riso é o único personagem positivo”. (BAKHTIN,

1993, p. 438) O corpo grotesco, impuro, repleto de orifícios e secreções põe visível o

princípio da vida material, ordinária, na mesma medida em que possui uma dimensão

cósmica; rebaixar é ir à terra, é voltar ao começo, à condição de adubo, semente.

Na antiguidade, quase mil anos antes, nos cortejos fálicos, embrião do carnaval, o

membro exposto em carros, ou colado ao corpo como em uma fantasia exagerada, já possuía

essa conotação de abundância; a fertilização. No medievo, também temos esse riso grupal,

que higieniza com uma outra espécie de catarse, chamada por Bakhtin (1993) de “catarse da

trivialidade” (p.439), pois assimila todos, sem discriminar. Acomoda de uma forma dialética,

porque inclui em si um sentido trágico, embora diferente daquele da tragédia clássica, já que é

impiedoso, não há compaixão sequer consigo mesmo, o riso se dirige a todos, sem exceção.

Mas a visão do lado implacável da existência está ali, denunciando a pequenez dos seres

humanos como apenas e simplesmente um elemento a mais diante do universo e da fatalidade.

O riso, então, não é necessariamente alegria, como poderemos ver no poema abaixo,

de Chacal, de Muito prazer, Ricardo. Nele, a gargalhada é, sobretudo, uma percepção da

fraqueza humana, do irracional e da incongruência, uma atitude redutora das tensões diante do

normativo social e da inflexibilidade. De fato, há no poema a inclusão de um sentido trágico

que se colocou como forma, como linguagem, capaz de interiorizar os impactos e transformá-

los em movimentos de ficção, em jogos irônicos de (des)entendimentos:

148

Gargalhada

uma gargalhada num canto da sala

nervosa

de unhas roídas

estalou e rolou

nos aposentos

como se a alegria

tivesse sido convidada

mas não foi.

é que houve um malentendido.

(CHACAL, 2007, p.351)

Há uma forma lúdica na linguagem dos textos de Chacal, que se refere a estruturas

intemporais e onipresentes, na cultura e na concepção da vida como um movimento constante:

golpe e contragolpe, ascensão e queda, pergunta e resposta; na poesia, encarnam-se nas

repetições, vazios e acentos, em ritmo ou rima. Menezes (1974) nos acrescenta que esse

“jogo” é de difícil definição operatória, mas estabelece uma relação psicossociológica para o

entendimento da cultura como um impulso criativo.

Mas, na modernidade, o utilitarismo, o trabalho/produção em série e um princípio

maniqueísta de bem estar vai paulatinamente extirpando o lúdico da vida dos homens a ponto

de o próprio corpo passar a ser desprezado, como no moralismo de religiosidades estreitas, ou

se transformar em mero objeto, como na comunicação de massa. E são essas referências que a

poesia performática quer ver desmanteladas em favor de uma reflexão que se instaura no

fazer, no instante criativo, em que o corpo pode encenar uma afasia e presentificar a

composição de várias forças dissonantes, como em um impossível teatro. Veja-se em

América:

Ato um

a impossibilidade do teatro

o momento, ato único a cavalo

o limite entre a loucura e a razão

o eco e o engasgo

a esquizofrenéticafala

....................................

(CHACAL, 2007, p. 311)

149

Está sempre presente nessa linguagem um jogo de contraposições e uma razão de

pequenas racionalidades intervalares que não se encaixam. E o jogo, como nos coloca

Huizinga (2004), não pode ser pensado apenas como uma atividade humana esporádica, mas

como elemento integrado à própria cultura desde a forma mais elementar, até sua mais

sofisticada elaboração. Ao pensarmos na constituição da inteligência humana, que caminhará

com a aquisição da linguagem e com a capacidade de comunicação, voltamos novamente à

ideia de jogo, já que o desenvolvimento cognitivo se processa também “pelo jogo

fundamental das assimilações recíprocas a se coordenar entre si até constituir essa conexão

entre meios e fins que caracteriza os atos da inteligência” (PIAGET, 1978, p.8). E esse ato de

jogar se torna ainda mais evidente quando nos lembramos do encantamento infantil e do riso

nos processos de aquisição da linguagem, ou quando pensamos nas estruturas arcaicas do

pensamento mítico em que a linguagem poética era, simultaneamente, doutrina e adivinhação,

arte e ritual. O poeta arcaico estava sempre situado entre o sagrado e o incognoscível e as

perguntas dos concursos de enigmas, em sua maioria, referiam-se exatamente a dilemas de

caráter cosmogônico, resolvidas através de mitos.

No poema de Chacal abaixo, também de América, a questão enigmática do cosmos

permanece, mas os elementos líricos posteriores a essa época trazem a decisiva intervenção da

racionalidade humana que tenta dar explicações aos antigos enigmas, mas que, apesar disso,

permanecem sem resposta. A mesma pergunta, como que num círculo sem início ou fim,

começa e termina o poema.

À Geral

onde andará a estrela vermelha?

no céu

no céu da tua boca

no céu da tua boca aberta

na fé do teu coração sangrando

na fé do teu coração

na fé da tua ação

na fé

no ferro

onde andará a estrela vermelha?

(CHACAL, 2007, p.312)

A estrela vermelha, ou estrela da manhã simboliza o movimento do eterno retorno, a

vida, o sangue correndo, a renovação. Na tradição mística, o sagrado, inerente à humanidade.

Assim, há no poema um conflito de forças entre a matéria e o espírito, que pode ser pensado

150

como esse duplo da natureza humana, que muitas vezes vê nas estrelas um acesso, uma janela

para o céu, mas também a energia para a criação, para a inspiração poética, como o é também,

nas elegias, a bem-amada. Tanto o comunismo, como o zapatismo mexicano se apropriaram

desse símbolo para expressar a luta incessante na fé do fazer humano rumo à justiça. Mas

onde estará?

O filósofo francês Paul Veyne (1984), ao discutir sobre as relações entre razão, mito,

crença e pluralidade das noções de verdade, afirma que, a partir do advento da cristandade, os

mitos e os contos mitológicos pagãos passam a ser considerados no mínimo pueris, mas,

apesar disso, serão condenados pelo fato de conterem imoralidades. O cristianismo antigo,

para estabelecer a existência de Deus, desejava fazer desparecer os deuses pagãos e suas

histórias por tê-los como concepções indignas, importando-se muito menos com o fato de eles

serem falsos. E conclui:

(...) a mitologia grega, cuja ligação com a religião era das mais fracas, no fundo não

foi outra coisa senão um gênero literário muito popular, um vasto quadro de

literatura, sobretudo oral, se for válido usar o termo literatura, anteriormente à

distinção da realidade e da ficção, quando se admite o elemento lendário

tranquilamente. (VEYNE, 1984, p. 27)

Acrescenta ainda que a função social da literatura é, sobretudo, pragmática em

função de seu desejo de diálogo com o receptor, ou seja, ela é performática:

(...) estabelece uma certa relação entre os ouvintes e o próprio poeta. A literatura

não se reduz a uma relação de causa ou de efeito com a sociedade, e a linguagem

não se reduz mais a um código e a uma informação. Comporta também uma

“ilocução”, isto é, o estabelecimento de diversas relações específicas com o

interlocutor. Prometer ou ordenar são atitudes irredutíveis ao conteúdo da

mensagem; este não consiste em informar sobre uma promessa ou sobre uma ordem.

A literatura não reside inteiramente no seu conteúdo; (VEYNE, 1984, p.30)

A palavra na literatura é também atitude e efeito, é linguagem em movimento. Por

isso, o riso sempre foi mal tolerado em todos os momentos de repressão social e política; o

moralismo é sisudo, e rir, além de deslocar as certezas acerca da racionalidade, da verdade ou

do certo ou errado, está fatalmente ligado a um tempo e espaço comum em relação ao

receptor, possuindo uma significação coletiva, indispensável para ser risível e, com isso,

151

reduzir as tensões e/ou colocá-las na berlinda, fato que pode sempre ser muito perigoso para

os donos do poder/ da verdade.

Ainda hoje permanecem formas de cercear o riso, que procuram, inutilmente,

estabelecer o que poderia ser risível ou não, pois o cômico desafia o racional, o natural ou o

socialmente estabelecido e o poeta, o jogral ou o bobo da corte sempre terão seu grau de

parentesco com o festivo em que transitam o jogo aberto e a ausência de soluções conclusivas.

Chacal evidencia, em toda sua obra, essas marcas.

Assim, em seu jogo poético, há sempre um trânsito de gêneros em movimento que se

estabelecem tanto na leitura/recepção quanto no próprio discurso, palavra refeita sem cessar a

partir de outra(s), que se apresenta(m) como (re)invenção da vida, alegre e triste, cômica e

trágica, inesperada e imprevisível, montando performances da ilocução, ela mesma semente/

adubo de palavras que se comunicam através dos tempos e espaços: a poesia.

A performance, foco desse entendimento sobre a arte praticada pelo poeta Chacal,

explode os sentidos, quebra das palavras a sua inteireza para transformá-las em potência,

como no poema abaixo de Letra Elétrika:

Helpless

o sus do susto o pó da pólvora eu quero

engolir sílabas e vomitar o pânico

só assim minhas unhas

encarnadas vão à máquina

para numa rajada de letras

tirar cada segundo ao marasmo

é assim que vejo cultura: bala no bandido

tiro no que encarquilha a linguagem

a língua é boa solta

fazendo escarcéu da sua boca

se embrenhando nos labirintos

dos seus ouvidos

perdida perdida

(CHACAL, 2007, p. 131)

O título do poema já adverte o leitor: não há aqui socorro possível para quem quer

uma poesia em que as palavras permaneçam íntegras. Ela se faz de jatos dos sentidos no

instante, das frações colhidas dele para “tirar cada segundo ao marasmo” (verso 6). É “tiro no

que encarquilha a linguagem” (verso 8), atravessa a palavra, retirando dela as velhas rugas

152

encrostadas pelos depósitos do tempo, que impedem o fluxo das ideias, e assim, através do

projétil perfurante, traz à superfície sentidos que podem passar em trânsito, sem se agarrar em

convenções paralisantes. Por isso, a palavra pode ir “se embrenhando nos labirintos” (verso

11), percorrendo espaços desconhecidos, embora pré-existentes. Os seus mistérios estão

postos para quem se arrisca a se deslocar através deles: “a língua é boa solta”, “fazendo

escarcéu da sua boca” (versos 9 e 10), e traz essa vaga forte e poderosa que se cria pela

exaltação dos sentidos soltos, em processo: “perdida, perdida” (último verso)

Se a cultura é vista como a “bala no bandido” (verso 7), ela persegue então os

sentidos marginais que estão incorporados no que a sociedade rejeita e quer aprisionar na

exclusão. E se o eu lírico, no sentido contrário, quer construir sua poesia ao “vomitar o

pânico” (verso 2), ele não poderá deixar de ser expelido, será lançado de ímpeto, vertido com

a força do jato de um material não digerido, indesejado, mas que voltará a incomodar com

sua presença.

Mas toda essa potência da linguagem poética vai transitar em rumos imprevisíveis.

Marcos Siscar (2010), ao falar do “Cisma da poesia brasileira”, define essa dificuldade

fundada na oposição entre uma poesia intelectual, formalista, “concretista, semiótica,

tecnológica” e aquela do cotidiano, que “busca inspiração na língua e na cultura popular” (p.

153). Mas propõe uma perspectiva para o impasse ao dizer que esse embaraço “impôs uma

tarefa à nova poesia brasileira, a de encontrar uma voz própria” (p.155) e que a superação se

faz como promessa. Ao delinear os rumos dessa promessa fala em dramatização da angústia

do sentido e em “simulação da dificuldade ou a ficção de sua solução” (SISCAR, 2010, p.

163).

Acreditamos que as palavras usadas pelo professor da UNICAMP; “dramatização” e

“simulação”, novamente nos levam ao caminho que propusemos percorrer aqui, o de se

pensar a poesia como performance, como uma ação em processo em que o desejo de

significação se encena e se coloca no plano das possibilidades, em um devir em que a

função do leitor, do receptor e simultaneamente do autor/eu lírico é que a constroem.

E é dessa promessa que nos fala Chacal, quando empina a palavra poética abaixo, em

Letra Elétrika, para que a interroguemos em seus tons, contornos e sensações, e que, pelos

contrastes das imagens em diálogo, suas formas e sentidos nos convidam a participar da

imprevisibilidade desses movimentos performáticos do “céu do papel”:

153

Papagaio

estranho poder o do poeta

escolhe entre quais e cais

quais palavras lhe convém.

depois as empilha papagaio

e as solta no céu do papel.

(CHACAL, 2007, p.115)

154

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O raciocínio desenvolvido neste trabalho – que teve como eixo norteador de análise a

obra poética de Chacal reunida em Belvedere (2007) – explica-se, em suas idas e vindas no

tempo e no espaço, pela amplitude e teor do objeto de estudo proposto, ou seja, a investigação

das relações entre a tradição e a ruptura em manifestações artísticas da modernidade e o

exame dos conflitos daí decorrentes em torno da legitimação de um discurso poético

entendido como “marginal”. Muitos artistas, não se identificando com o ideário positivista

dominante em seu tempo, foram considerados, ao longo dos séculos XIX e XX, como

contraculturais, vivenciando uma experiência tensa, suspensa entre o passado e o futuro,

experiência esta ousadamente integrada por eles ao próprio corpo e sua extensão no espaço: a

palavra poética.

O texto aqui apresentado perseguiu uma conexão mais específica entre os

movimentos contraculturais, existenciais e estéticos do século XX, procurando identificar, em

sua própria estrutura, a complexidade dessas experiências artísticas em sua palavra

performática, onde a razão é sempre provisória. Nos poemas de Chacal, essas performances

transformam-se em diálogos que, ao atravessar os textos, acabam por compor uma

estabilidade também provisória, em que o consenso é apenas uma correferência aos homens

concretos e seus dizeres. O outro é sempre um mediador de uma palavra partilhada e, para sua

compreensão, importa a concretude dos horizontes dos homens e seus conflitos, em uma

perspectiva processual, dialética e histórica, em que os textos são testemunhos desses sentidos

em trânsito.

Não existe um mundo fora da linguagem, assim como não existe uma existência sem

o corpo. E o poeta, inconformado com os mecanismos de adesão cada vez maiores à

sociedade do espetáculo, que substitui o exercício da sensibilidade e da criatividade pelo

monopólio de imagens que reificam o homem e sua complexidade existencial, externa com

ênfase sua indignação. Ela se expressa, não através de uma reflexão racional, que talvez

representasse uma certa aceitação ou conformismo em relação a esse mesmo modelo

representativo da linguagem, mas explorando a inquietude, a ação e a transformação, que são,

elas mesmas, atitudes dissonantes, deslocamentos desconcertantes, jogos formais de uma

palavra poética irreverente.

155

Sabe-se que a transmissão da tradição através de metanarrativas, de um saber

absoluto, em que comportamentos morais e sociais eram representados como fator de

diferenciação entre um “nós” e um “eles”, já não existe mais. Na modernidade, os modelos

de racionalidade não são mais homogêneos, e, como ensina Benjamin (1985), os monumentos

da cultura ocidental são também os de uma barbárie muitas vezes silenciada. O silêncio, o

vazio e a dispersão são, da mesma forma, restos de uma violência praticada, e podem ser

elementos residuais de expressões e sensibilidades coletivas, que, através de gestos

incrustados nas experiências estéticas, tornam visíveis essas dissonâncias. Veja-se como

Chacal trabalha esse tema, em poema de Belvedere:

Sobre o silêncio

hoje não viemos discutir projetos

hoje não viemos pedir

hoje viemos como alguém que visita sua casa

que vem pedir pra família

sobre as dificuldades de tecer a invenção

sobre o abismo que se abre além do entretenimento

sobre o prazer que é lutar pelo que se acredita

hoje viemos dizer pra família

que não vamos mais terminar os estudos

e que nossa cara curtida, nosso olho vermelho

nosso sorriso encarnado e, principalmente, nosso silêncio

dizem tudo.

(CHACAL, 2007, p.16)

Há no poema um tom de intimidade, de proximidade afetiva que se coloca par a par

com as marcas corporais de uma dor silenciada. Se “o real precisa ser ficcionado para ser

pensado” (RANCIÉRE, 2005, p.58), esse “nós”, que visita a casa, a família, expresso

desinencialmente em vários versos (1, 2, 3, 8, 9), e pelos possessivos (versos 10 e 11), pode

ser pensado como os sujeitos que carregam em si a ânsia de ter na palavra poética uma

rebelião contra o domínio do discursivo racional, que aparta a atitude criadora, como uma

potência necessária à imaginação e a novas perspectivas para a canalização da dor em ação,

em atitude e expressão. Aqueles que trazem a intensidade física como uma marca irreverente,

uma disposição de emancipação dos corpos para a autonomia e o prazer de serem e viverem

mais livres, são mais conscientes de si e das lutas que querem travar. São também mais

capazes de intervir, opondo-se ao pensamento ocidental e cristão, que criou a antítese entre

natureza e cultura, entre o corpo e a alma, e se tornam mais aptos a construir gestos

expressivos que evidenciem também no silêncio uma insubmissão, como uma atitude prenhe

156

de significados expectantes, em uma sociedade cada vez mais exausta de palavras vazias e de

vazios de sentido.

Um prazer sensorial, a musicalidade, a brincadeira, uma tradição literária

fragmentada e usada oportunamente, discussões filosóficas e estéticas estão na poesia de

Chacal, como objetivamos demonstrar aqui, tal qual um jogo entre a memória, a perda de

memória e a singularidade. Sabemos, desde Kant, que não é possível, através das condições

formais, estabelecer um juízo estético para o objeto artístico. O belo na poesia possui algo que

sempre escapa, que está entre o subjetivo e o objetivo, entre o individual e o coletivo, ou seja,

há uma independência das verdades racionais, mas que não pode prescindir da consciência

histórica, que é um elemento importantíssimo na percepção estética. Nesse sentido, o poeta

carioca sempre se interroga sobre seu objeto, a poesia, pois ela não tem uma função evidente,

mas é a linguagem, ela própria que se fala, e o leitor é afetado por tudo isso. Se é impossível

adaptar-se à violência e à repressão do discurso dos meios de comunicação de massa, ou

mesmo ignorar a força irreversível de sua presença, Chacal vai estruturar essa condição na

forma do texto poético, como um corpo em que as cicatrizes denunciam os impactos sofridos,

e as fazem elementos da arte.

Se com a desconstrução da mímeses restou o enigmático, o caráter linguístico da

obra irrompe e lança uma desconfiança sobre o poder nomeador da linguagem, em que a

construção de visões e imagens plurais estrutura o partilhado, de outros saberes e práticas

sociais muitas vezes vilipendiadas e caladas, demostrando que o papel dos heróis está vazio;

nessa expressão que se monta inventivamente, os modelos acabados não cabem mais, eles

estarão sempre em processo.

Segundo algumas tendências da Teoria da Literatura (disciplina que não é Ciência

nem Filosofia e apareceu somente na segunda metade século XX), a defesa do cânone só pode

ser concebida como um exercício do pensar sobre os bens culturais, afastado dos

essencialismos; um ponto de partida para a produção de conhecimento, não um patrimônio a

ser transmitido.

Nessa teoria, a discussão sobre o estatuto do autor ou a definição de sua morte, abala

a noção de sujeito (da enunciação e do enunciado), e coloca a metalinguagem e a

intertextualidade como elementos constituintes tanto da crítica literária quanto da produção

poética. Assim, todo texto ou leitura é um modo de pensar que nasce do encontro de outros

sujeitos, textos e leituras, que, não sendo totalizável, revela ainda a impossibilidade das

157

suturas entre eles; a inquietação das formas e as deformações sintáticas são, portanto,

condições de sentido na modernidade, em que não há mais qualquer possibilidade de conceber

a literatura em um sentido positivista. Por isso, o trabalho da teoria ou da crítica literária deve

estar absolutamente subordinado ao texto.

Se a noção de representação e seu correlato, o sujeito, lutam no interior da

linguagem, o simulacro, como uma potência do falso, vem perturbar a divisão entre a

aparência e a essência para trazer um deslizamento de tomadas e retomadas em cadeia. A

relação com o outro, que passa a ser um original perdido para sempre, torna-se uma errância,

um desvio em que o intertextual fica fora de controle, as demarcações não são mais

localizáveis, como nos recursos da reciclagem.

Desde Mallarmé, como quisemos demonstrar aqui, está posto esse abalo na noção de

representação e a impossibilidade de um sentido anterior à linguagem. No romantismo já

estava presente essa interrogação da linguagem sobre si mesma, além de um desejo paradoxal

de possuir o jamais alcançável, que negava a condição de estabelecimento de um sentido

único para a humanidade. As vanguardas vieram ampliar ainda mais essas impossibilidades ao

colocar a falta de autonomia da arte. Mas, depois dessas avalanches, à poesia restará um

compromisso ainda maior com a palavra, sua responsabilidade com a liberdade, com a leitura

dos textos e dos sentidos; não como apropriação, mas como uma operação incessante de

descoberta dos significados, que está irreparavelmente atravessada por um vazio impossível

de ser preenchido.

Por tudo isso, a inserção da poesia de Chacal, ou de qualquer outro poeta do grupo,

na nomenclatura “marginal”, dissociada da especificidade dos anos de 1970, torna-se

completamente irrelevante, pois não há um único critério de legitimação possível, ou uma

coerência inabalável, e a construção de leituras com juízo determinista de valor perde cada

vez mais espaço no universo das Letras. Qualquer reflexão sobre a arte e a poesia levanta

discussões éticas e políticas, que, ao expor sua opacidade, coloca também a existência

humana destituída de um sentido fixo, mas possuidora de sentidos expostos através da própria

experiência estética. Mas a obra de arte não é redutível ao objeto artístico, ela é construída

também por abordagens e discursos que se colocam frente a ele.

A experiência estética, como vimos, é também feita de escuta. Mas se a

intransmissibilidade é condição da experiência humana na modernidade, como nos ensinou

Benjamin quando fala sobre o narrador (1985), a incapacidade da representação como verdade

158

também está colocada através de sua inserção no multivocal e na performance; no jogo, no

riso e na festa, como já praticada desde a antiguidade greco-latina. Chacal,

antropofagicamente, sempre soube trabalhar com todos esses elementos porque se expressa

muito bem em uma poesia que resiste em sua singularidade e afirma-se, sobretudo, pela

dispersão, sem promessas ou garantias, como uma resistência à legitimação e à

institucionalização.

Lemos, em todo o conjunto de Belvedere, uma necessidade sempre renovada de

interrogação sobre as imagens e a experiência, aliada a um estranhamento e a um modo de

conceber a forma em que a combinação desses elementos é também uma síntese, às vezes

contraditória, como uma vertigem, ou um excesso. É essa interrogação que aparece sempre

em toda a obra de Chacal, colocando como desnecessária a aprovação acadêmica ou a

legitimação. Mas a história da literatura constitui-se em seu curso, não pela aprovação, ou

não, dos críticos e teóricos da literatura, mas através de uma recepção mais ampla, ou da

leitura sagaz e produtiva das gerações, não necessariamente referendada pela academia.

Como nas análises dos textos de Chacal que fizemos aqui, é a partir de cada texto

que se pode construir a transmissibilidade da memória literária, ou seja, a tradição é feita

também através do funcionamento da própria linguagem poética.

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