205
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA FACULDADE DE EDUCAÇÃO FACED PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINHA DE PESQUISA CURRÍCULO E (IN)FORMAÇÃO FABRÍZIA PIRES DE OLIVEIRA ENTRE O ESQUECER E O LEMBRAR: O LUGAR DO ESQUECIMENTO NA FORMAÇÃO DOCENTE Salvador 2016

universidade federal da bahia – ufba - faculdade de educação

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINHA DE PESQUISA – CURRÍCULO E (IN)FORMAÇÃO

FABRÍZIA PIRES DE OLIVEIRA

ENTRE O ESQUECER E O LEMBRAR: O LUGAR DO ESQUECIMENTO NA FORMAÇÃO DOCENTE

Salvador 2016

FABRÍZIA PIRES DE OLIVEIRA

ENTRE O ESQUECER E O LEMBRAR: O LUGAR DO ESQUECIMENTO NA FORMAÇÃO DOCENTE

Tese submetida ao Colegiado do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, em cumprimento parcial aos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Educação. Orientadora: Prof. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho.

Salvador 2016

OLIVEIRA, Fabrízia Pires de

OL48e Entre o Esquecer e o Lembrar: o lugar do esquecimento na formação docente. / Fabrízia Pires de Oliveira. – Salvador, BA: UFBA, 2016.

198 fls.: il.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Salvador, BA, 2016. 1. Esquecimento. 2. Formação Docente. 3. Memórias. 4. Taxionomia.

FABRÍZIA PIRES DE OLIVEIRA

ENTRE O ESQUECER E O LEMBRAR: O LUGAR DO ESQUECIMENTO NA FORMAÇÃO DOCENTE

Defendida em 13 de dezembro de 2016.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho. (FACED/UFBA)

BANCA EXAMINADORA Cláudio Orlando Costa do Nascimento Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal do Recôncavo Baiano Maria Roseli Gomes Brito de Sá Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia Giovana Cristina Zen Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia Márcea Andrade Sales Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia Universidade do Estado da Bahia

DEDICATÓRIA

A

meu filho Rodrigo Oliveira Queiroz, razão maior do meu viver, estímulo que me impulsiona a viver a cada dia na busca dos meus sonhos e realizações, meu pedido de perdão pelas

ausências, e agradecimentos por conceder a mim a oportunidade de me realizar ainda mais.

AGRADECIMENTOS Memórias, Esquecimentos... Agradecimentos a pessoas que me ajudaram a me constituir no

que sou hoje e na ajuda com este trabalho. São referências que marcaram e marcarão para

sempre meu estar-no-mundo.

Inicio com a maior referência que tenho: Minha Família, a minha MÃE Agnalva Oliveira Pires

(Ná), professora primária, católica fervorosa – me ensinou as primeiras letras e as primeiras

rezas. Muito obrigada, minha mãe, por me incentivar a prosseguir nos estudos, e especialmente

neste, na ajuda com Rodrigo e nos cafés e orações nas madrugadas de estudos, te amo

incondicionalmente.

Ao meu PAI Gilson Pires Dantas (mamona preta), ex-taxista, hoje agricultor e que adora um“se

diverte”, com sua simplicidade e mesmo sem entender direito o que significa um apesquisa de

doutorado, se orgulha que eu terei mais uma “formatura”. O que seria de mim, meu pai, sem o

senhor para administrar minhas coisas do dia a dia?

Meus irmãos: Hernandes – companheiro de todas as horas, o tio amigo de Rodrigo e Giovanni

Stephann –, obrigada pelo carinho e incentivo de sempre para concluir esse trabalho, minha

cunhada Carol, pelo respeito e admiração que tens por mim.

A minha querida avó Juscelina, e AIÁ Ana ou simplesmente Dona (in

memorian) – Saudades eternas.

Meus Tios e Tias de Ibititá, Maria (Ia), Ana, Dide, Iêda, Nicinha, Iracema, Ceiça, Lene, Miguel,

Lando, Valtinho e Tom pelos incentivos constantes em tudo que proponho fazer, jamais

esquecerei da ajuda financeira do meu tempo de cursinho em Salvador, e especialmente ao meu

exemplo de ser gente, de viver, Artur José de Oliveira Filho, tio Artuzinho.

As minhas tias e tios de Tapiramutá: Lia, Neci, Evani, Daí, Gilda, Joel, Jorge, Som, João.

Primos e Primas, especialmente a Fredson, Kívia e Fátima, pelos saberes trocados e partilhados

constantemente. A Olandes José, nosso Claúdio, por ter me substituído com toda dignidade e

profissionalismo na secretaria de educação de Ibititá.

A meu ex-marido João Neto, ajudou-me e incentivou-me muito a lutar pelos meus objetivos, e

esteve sempre ao meu lado na seleção e nos anos iniciais do doutorado.

A Luís Felipe Dourdado Colpo, ou simplesmente Nino; simplicidade, companheirismo e a

leveza no amor que precisava.

Não poderia deixar de agradecer a Ronayde, companheira incansável em Itacimirim, mesmo

com nossas “brigas” (rs), o que seria de mim sem seu zelo, amizade e as deliciosas comidas e

cafés trocados? Obrigada, minha amiga, por ter me suportado.

Roseli de Sá – Minha eterna professora, amiga e conselheira. Rose, querida, obrigada por me

sentir tão acolhida no mundo da academia. As nossas coisas em comum nos aproximaram ainda

mais: o cafezinho com biscoito, as rezas... A admiração profissional é desde a docência na

graduação, seu ingresso no projeto Irecê, sua confiança e respeito com meu trabalho e com meu

tempo foram fundamentais para o percurso da minha formação.

Maria Helena Bonilla – Coordenadora de pós-graduação em Educação, muito obrigada por

compreender meu tempo de estudo e ter me proporcionado a realização deste trabalho. Sem seu

cuidado e acolhimento, não seria possível chegar até aqui.

Isis Celta – Nossa boneca Emília, muito obrigada pelas trocas nas viagens (auto)biográficas.

Ana Paula Moreira – “Pops” – Obrigada pela cama partilhada do seu AP.

Edilene Maioli – Amiga de longas, e que sempre me incentivou a não disistir.

Marcea Sales (Xú) – Obrigada pelo zelo, inspiração e afeto.

Verônica Domingues – Com seu vozeirão, Faaaá, cadê você? Conte com meu apoio.

Clívio – Pelas caronas até o Costa Azul e as trocas de conhecimentos taxionômicos.

Nesses anos de convivência no Projeto Irecê, muitas pessoas que por aqui passaram e outras

que passam deixaram ou deixam marcas significativas em meu processo formativo: Rita Dias,

Gideon, Luiza Seixas, Celinha, Ivana, Maiza.

Josevania da Conceição – “Boca” – Obrigada pela atenção, carinho e ajudas mil,

com você eu aprendi a “cortar papel”.

Andreia Vieira, quanta solidariedade...

Deise e Joaquim, muito obrigada pela compreensão, serei eternamente grata a vocês.

Aos professores da FACED, especialmente: Roberto Sidinei, Cleverton, Maria Couto, Lícia

Beltrão, Tuca Tourinho, Nelson Pretto.

Aos funcionários da Pós, especialmente Kátia, Ricardo e Gal.

Aos Colegas do doutorado, especialmente a Eliene.

A equipe do projeto Irecê: Local – Gil, dona Val e Tereza.

A Emanuela Dourado, Solange Maciel, pela contribuição, incentivo e amizade com essa

pesquisa e todo processo formativo.

Aos professores-cursistas da 1ª e 2ª turma que proporcionaram a realização deste

trabalho: Everaldo Pereira, Jussara Sena, Rita de Cássia, Gervásio, Claudia.

A minha comadre e companheira Rita Chagas e Afonso, que me incentivaram a

ingressar no mundo da pesquisa.

A Elisio Silva, pela sua “arte do esquecimento, obrigada pela sua amizade, zelo e dedicação.

Ao meu povo de Ibititá:

Ao prefeito, amigo e companheiro Cafú Barreto, pela confiança depositada com

meu trabalho; obrigada por entender as minhas “ausências” e me ajudar durante esses quatro

anos de estudo.

As amigas do FALAME – Meire, Elita, Mônica e Letícia, quantos choros, desabafos, medos...

Obrigada pelo companheirismo e amizade de irmãs que somos; sem esquecer da companheira

e amiga irmã, Danila Torres.

Eleusa Coronel, pela amizade e incentivo constante de viver... “O que ocorre”

Aos colegas e amigos da secretaria de educação: Ricardo (meu filho do coração), Rosivane,

Rose, Tadeu, Morato, Regi, Viviane, Cinthia, João Batista, Val, Tá, Lucélio, Relmo.

Enfim, a todos que a memória agora não selecionou, mas que certamente...

Estarão em alguma das dimensões do esquecimento.

A arte de esquecer

A chave mestra que concede ao ser

A imprevisibilidade, É a mesma que o condena

À irreversibilidade. A autonomia e o intento

Capazes de gerar uma ação, Podem trazer fortuna ou danação.

A vontade do nada da história Aliada aos martírios da memória,

Tendem a nos envenenar com o ressentimento. Porém, para o bem de nós mesmos,

Fomos agraciados pela arte do esquecimento. Felizes de nós, esquecidos, Pois sabemos tirar proveito

De nossos equívocos, E nos alegremos por sabermos

Que a culpa e a moral É o que temos de menos natural.

Para viver é preciso esquecer E somente assim

O novo sempre poderá vir a ser. (Simy)

RESUMO

Esta tese se move na seara da temática Esquecimento e Memória; analisa as implicações do esquecimento nos currículos de formação de professores. Investiga as relações entre memória e esquecimento a partir do Programa de Formação de Professores da Universidade Federal da Bahia/Faculdade de Educação, em parceria com as Prefeituras Municipais de Irecê e Tapiramutá/BA, conhecido como Projeto Irecê. A pesquisa busca apresentar tanto questões conceituais e teóricas ligados ao esquecimento, como a discussão do lugar do esquecimento no Curso de Pedagogia do Projeto Irecê. Destacaremos o conceito de esquecimento na filosofia nietzschiana. O esquecimento é entendido como atividade, força possibilitadora do novo, simbolizando uma forma de saúde forte, uma força plástica. Esse conceito se relacionará com outros conceitos essenciais para a compreensão do sentido de atividade, apoiados em autores como Ricoeur e Freud. A pesquisa bibliográfica pautou-se em referências sobre memórias, autobiografias e esquecimento. A investigação foi inscrita na abordagem qualitativa de base fenomenológica e existencial, para a análise interpretativa das fontes (memoriais, diários de ciclos, e-mails, pareceres avaliativos etc.), é apresentada à taxionomia do esquecimento com oito dimensões. A formação do educador diante dessa perspectiva envolve as múltiplas referências que compuseram o seu saber ser e seu saber fazer ao longo da existência de cada ser-no-mundo, como um processo de criação, para inaugurar novas possibilidades de vida e formação de uma cultura autêntica, num constante devir singular da arte de esquecer e lembrar. Palavras-chave: Esquecimento. Formação Docente. Memórias. Taxionomia.

ABSTRACT

This thesis moves on the theme of Forgetting and Memory and analyzes the implications of forgetting in teachers training curricula. It investigates the relations between memory and forgetfulness from the Teachers Training Program of Universidade Federal da Bahia-UFBA (Federal University of Bahia/College of Education) in partnership with municipal government of Irecê and Tapiramutá/BA, known as Irecê Project. The research seeks to present conceptual and theoretical issues related to forgetfulness, as well as the discussion of the place of forgetfulness in Irecê Pedagogy Course Project. We will highlight the concept of forgetfulness in Nietzsche´s Philosophy. Forgetfulness is understood as activity, an enabling force of the new, symbolizing a strong health form and seen like a plastic force. This concept will be related to other one that is essential to understanding the sense of activity, based on authors as Ricoeur and Freud. The bibliographic research was based on references about memories, autobiographies, and forgetfulness. It was inscribed in a qualitative approach of phenomenological and existential basis, for the interpretative analysis of the sources (memorials, diaries of cycles, e-mails, evaluative opinions, etc.) and it is presented to the taxonomy of oblivion with eight dimensions. Educator´s formation in this perspective involves multiple references that made up her/his knowledge and his/her know-how throughout the existence of each being-in-the-world, as a process of creation that inaugurates new possibilities of life and formation in a authentic culture that is in a constant and singular becoming in the forgetting and remembering art. Keywords: Forgetfulness. Teacher Training. Memories. Taxonomy.

SIGLAS

ABPC - Associação Brasileira de Psicanálise Contemporânea

ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

ANDE - Associação Nacional de Educação

ANFOPE - Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação

APLB - Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia (Associação dos

Professores Licenciados da Bahia)

CEAP - Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica

CEFAMS - Centro Específico de Formação e Acompanhamento para o Magistério

CEG - Câmara de Ensino de Graduação

CEII - Centro de Educação Integrado de Irecê

CIPA - Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica

CNE - Conselho Nacional de Educação

DIREC - Diretoria Regional Educação e Cultura (RNE - Núcleo Regional de Educação)

DOU - Diário Oficial da União

EAD - Educação à Distância

ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino

FACED - Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia

FACI - Faculdade de Ibititá

FAI - Faculdade Irecê

FEP - Grupo de Estudos sobre Formação em Exercício de Professores

FORMACCE - Currículo, Complexidade e Formação

GEAC - Grupo de Estudos Acadêmicos

GEC - Grupo de Educação e Comunicação

GELIT - Grupo de Estudos Literários

GRAFHO - Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral

IAT - Instituto Anísio Teixeira

ICS - Instituto de Ciências e Saúde

IES - Instituições de Ensino Superior

LDB - Lei de Diretrizes e Bases

MEC - Ministério da Educação

PARFOR - Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica

PIBIC - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica

PME - Plano Municipal de Educação

PPGEduC/UNEB - Programa de Pós-Graduação em Educação e

Contemporaneidade/Universidade do Estado da Bahia

PRÓ-LICENCIATURA - Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício no

Ensino Fundamental e no Ensino Médio

PROFORMAÇÃO - Programa de Formação de Professores em Exercício

PROGESTÃO - Programa de Capacitação à Distância para Gestores Escolares

PROINFANTIL - Curso de Formação para o Magistério

PROLETRAMENTO - Programa de Formação Continuada de Professores das Séries

Iniciais do Ensino Fundamental

SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

SEMOC - Semana de Mobilização Científica da Universidade Católica de Salvador

SUPAC - Superintendência de Administração Acadêmica

TCC - Trabalho de Conclusão de Curso

TOPA - Programa Todos pela Alfabetização

UEFS - Universidade Estadual de feira de Santana

UFBA - Universidade Federal da Bahia

UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais

UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UNEB - Universidade do Estado da Bahia

UNOPAR - Universidade Norte do Paraná

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 16 CAPÍTULO I 2, MEMORIAL, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NA TRAMA DA MINHA

FORMAÇÃO 21 2.1 O ESQUECIMENTO SENTIDO NA PELE DA MEMÓRIA 23 2.2 AS MINHAS HISTÓRIAS 29 2.3 EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS: UFBA, REDE UNEB 2000, UNOPAR, PARFOR, IAT 51 2.4 ATUAÇÃO NA REGIÃO – A LIDA 53 2.5 O CAMINHO PARA O MESTRADO 54

2.5.1 Divulgando a pesquisa: CIPA, ENDIPE, SEMOC, SIMPÓSIO UNEB, SBPC 55

2.6 O DOUTORADO: O ESQUECIMENTO DO ESQUECIMENTO 56 2.7 GESTORA DA EDUCAÇÃO – MUNICÍPIO DE IBITITÁ 57 CAPÍTULO II 3 AS MEMÓRIAS COMO DISPOSITIVO DOS CURRÍCULOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES 59 3.1 AS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES PÓS-LDB 9.394/1996 62 3.2 O PROJETO IRECÊ: MEMÓRIA E FORMAÇÃO DOCENTE 72

3.2.1. O diário de ciclo 73 3.2.2. O memorial-formação 77

CAPÍTULO III 4 O LUGAR DO ESQUECIMENTO NA MEMÓRIA 85 CAPÍTULO IV 5 OS “RASTROS”DA MEMÓRIA – ESQUECIMENTO: OS CAMINHOS DA PESQUISA 113

5.1 UMA FENOMENOLOGIA DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO 115 5.2 A TAXIONOMIA DO ESQUECIMENTO 122 CAPÍTULO V 6 A ARTE DE ESQUECER E LEMBRAR NO/DO PROJETO IRECÊ 132 6.1 ESQUECIMENTO DE USO DE ABUSO 135 6.2 ESQUECIMENTO COMANDADO 142 6.3 ESQUECIMENTO DE REGISTRO 150 6.4 ESQUECIMENTO RECALCADO 159 6.5 ESQUECIMENTO DE LUTO 164 6.6 ESQUECIMENTO DE RUPTURAS 167 6.7 ESQUECIMENTO SILENCIOSO 176 6.8 ESQUECIMENTO FELIZ 178 7 CONCLUSÃO 186

REFERÊNCIAS 192

16

1 INTRODUÇÃO

A PARTIDA...

[...] E ao me lembrar de tudo quanto esqueço

(o voo de ave é uma existência à-toa?) Escrevo a minha vida que se esfuma

Na distância... – Ah, bem sei que habito numa Bola que rola e piso um chão que voa...

(MILANO, 1973, p.123)

Figura 01 – Praia da Espera – Itacimirim/BA

Fonte: Acervo da autora.

Ponto de partida, ponto de chegada, ponto de espera... Não sou mulher de pescador, mas foi

nos ares de Itacimirim o quanto lembrei e esqueci, para a trama que desencadeia o contexto

desta investigação-formação. Precisava do uso e abuso, do silêncio, da ruptura, da fuga e luto,

do registro, de comando, de recalque, de felicidade... Entre caminhadas na praia, lembranças

do sertão, esquecimentos dos prazos, revolta pelo golpe sofrido no Brasil, saudade de casa...

Perda da vozinha querida. Ali estava Itacimirim, vinda Pedra Pequena do Tupi-Guarani, antiga

vila de pescadores. Hoje refúgio de quem busca, na calmaria de suas águas, o aconchego que

aquece e rememora.

E entre o supermercado de Pojuca e os quitutes de Ronayde, do beijo em Maria e Pedro... Sob

minha íris a tese se compunha. A casa dos Carvalhos com sua presença formativa forte,

17

Singularidades, Emergências, Centros Instáveis, Simultaneidade, Caos, Sincronicidade,

Cooperação...

Do mar aberto e calmo, dos pescadores e suas redes, da ansiedade quase que palpável da esposa

ribeirinha a aguardar seu pescador... Praia da Espera.

A escolha pelo trecho estreito, pela calmaria aparente, pela ruptura com a efervescência da

secretária de educação de um município pequeno em plena campanha eleitoral. Mas as

discussões estavam postas... Experiências vividas, reminiscência da memória leitora, das

disciplinas cursadas no doutorado, no nascimento da professora pesquisadora, da bolsista de

Inez Carvalho, da autora, da mãe de Rodrigo. Sou memória. Sou esquecimento. Sou mar. Sou

sertão. Fui Águia Branca. Hoje Cidade Sol.

O presente trabalho nasce da finitude de acontecimentos e reverbera-se nas significações das

memórias lembradas e esquecidas da minha trajetória no Programa de Formação de Professores

da Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação, com os municípios de Irecê e

Tapiramutá na Bahia, mais conhecido por Projeto Irecê. A reminiscência implica dizer sobre o

“lugar do esquecimento” no campo de formação de professores e na contribuição formativa e

autoformativa nas experiências da formação docente.

A pesquisa ora apresentada vincula-se ao Programa de Pós-graduação em Educação da

Universidade Federal da Bahia, objetivando apresentar as discussões e os percursos

concernentes à construção da Tese: Entre o Esquecer e o Lembrar: o lugar do esquecimento

na formação de professores, com vistas a situar o leitor das possibilidades de um novo “olhar”

para os currículos que utilizam como formação, o trabalho com memórias.

A origem da presente pesquisa vincula-se às experiências que tive como pesquisadora e

formadora no Projeto Irecê, desde a iniciação científica em 2001 até os dias atuais, como

orientadora da turma de especialização em currículo escolar e também como gestora municipal

de educação do município de Ibititá, um dos novos municípios contemplados com a ampliação

formativa do Projeto Irecê, Mestrado Profissional.

A pesquisa objetiva analisar e compreender quais são os “espaços” (formais, informais,

emergentes) disponibilizados (intencionalmente ou não) para o esquecimento, pelos currículos

18

que utilizam como dispositivo de formação o trabalho com memória(s). Para tal, compreendo

ser pertinente discutir aspectos teóricos relacionados ao esquecimento, a partir de autores como

Nietzsche, Ricoeur e Freud.

O esquecimento é entendido como atividade, força possibilitadora do novo, simbolizando uma

forma de saúde forte, uma força plástica. Nietzsche mostra como o esquecimento pode ser um

fator permissivo da felicidade do homem. Para ele, o esquecimento seria uma força ativa capaz

de absorver animicamente as impressões acumuladas na memória, acúmulo este responsável

pela prisão do homem ao seu passado, como se este passado tivesse um peso e fosse arrastado

pelos seus próprios calcanhares, como se arrastasse correntes. Dessa maneira, Nietzsche fala

sobre a felicidade dos animais que de nada sabem porque de nada se lembram.

Para esta investigação, é senhor compreender que é como dano à confiabilidade da memória

que o esquecimento é sentido. Dano, fraqueza, lacuna. Sob esse aspecto, “a própria memória se

define, pelo menos numa primeira instância, como luta contra o esquecimento” (RICOEU,

2010, p. 424).

O trabalho estrutura-se em cinco sessões, as quais buscam apresentar questões teóricas sobre a

“arte” de lembrar e esquecer no processo formativo. Baseamo-nos em Ricoeur, no sentido de

que o esquecimento está associado à memória e pode ser considerado como uma de suas

condições.

Na primeira sessão, “Memorial, Memória e Esquecimento na trama da minha formação”,

apresento meu memorial, escrito inicialmente no meu TCC do curso de Pedagogia

FACED/UFBA. Atualizado em outros momentos, já como aluna do Programa de Pós-

graduação. Para a tese, acrescento a gestora da educação e a questão do esquecimento que não

está presente nas outras versões. O memorial está estruturado da seguinte forma: Memória, As

minhas histórias, A itinerância no projeto Irecê, O caminho na pós-graduação, gestora da

Educação – município de Ibititá/BA, O esquecimento do esquecimento.

Contudo, rever meu próprio memorial trouxe-me a inquietação que gerou esta tese: o

esquecimento do esquecimento nos currículos que utilizam como diapositivo de formação o

trabalho com memórias.

19

Concluo a seção com as intenções da pesquisa, ou seja, compreender a temática Esquecimento

nos currículos de formação de professores, tendo como campo o curso de Pedagogia do

Programa de Formação de Professores da Universidade Federal da Bahia/Faculdade de

Educação, em parceria com os municípios de Irecê (duas turmas) e Tapiramutá/BA (uma

turma).

A segunda sessão, “As Memórias como dos dispositivos dos Currículos de Formação de

Professores”, é apresentada na direção do trabalho com histórias de vida nos currículos de

formação de professores, bem como do espaço conquistado no cenário da formação docente.

Diante do contexto, o currículo do Projeto Irecê utilizou as narrativas como dispositivo

formativo, memorial, diário de ciclo..., configurando-se atividade autobiográfica para formação

docente. O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) manifestou-se na perspectiva do texto

memorialístico como uma proposta articulada à produção textual, desenvolvida no processo, ao

longo dos seis semestres de duração do curso de Pedagogia. A proposta pautou-se na

reconstituição da história dos/das docentes, sendo a condição de narradores tecida

continuadamente, num texto em que passado e futuro se transformam na ação reflexiva através

da memória.

A terceira sessão, ‘O Lugar do Esquecimento na Memória’, se desenvolve em apresentar o

sentido do esquecimento ao qual nos baseamos para a compreensão do trabalho, apoiados em

autores como Nietzsche, Ricoeur e Freud. O esquecimento é entendido como atividade, força

possibilitadora do novo, simbolizando uma forma de saúde forte, uma força plástica. Ainda

nessa seção, discutiremos o lugar do esquecimento na memória, na perspectiva da fábula de

Borges, com Funes, o memorioso.

Na quarta sessão, “Os Rastros da Memória-Esquecimento: os caminhos da pesquisa”,

busco apresentar princípios epistemológicos e metodológicos que sustentam a opção pela

pesquisa fenomenológica e existencial (DUTRA, 2002). Para a análise interpretativa das fontes,

apresento a fenomenologia da memória-esquecimento com a ideia de “Rastros do

Esquecimento”, baseada em Paul Ricoeur, e as dimensões da taxionomia do esquecimento:

esquecimento de uso e abuso, esquecimento de registro, esquecimento de comando,

esquecimento de ruptura, esquecimento de luto ou fuga, esquecimento recalcado,

esquecimento silencioso, esquecimento feliz. Entendo que os oito tipos apresentados na

20

taxionomia do esquecimento mantêm entre si reciprocidade e dialogicidade constante com a

memória.

“A arte de Esquecer e Lembrar no/do Projeto Irecê” caracteriza-se como quinta sessão, tendo

em vista a apresentação das dimensões da taxionomia do esquecimento iniciadas por trechos

da fabulosa narrativa da Odisseia, o “banquete” do esquecimento, a partir da caracterização dos

cenários memorialísticos do Projeto Irecê. Apresentarei algumas histórias, com a intenção da

interação leitora e construção de significações do/no Esquecimento.

Convido o leitor a partilhar comigo das aprendizagens construídas até o presente momento, no

sentido de ampliar novos “olhares” sob o campo dos currículos de formação de professores que

trabalham como dispositivo formativo com memórias. Mas antes que me esqueça, mesmo que

por um breve momento, vamos às memórias, aos esquecimentos.

21

21

CAPÍTULO I

2 MEMORIAL, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NA TRAMA DA MINHA FORMAÇÃO

Ah quanta vez na hora suave Em que me esqueço...

Não ignoro o que esqueço. Canto por esquecê-lo.

Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer-me do modo de lembrar

que me ensinaram.

Fernando Pessoa

Figura 02 – Noite estrelada (The Starry Night), 1889, Vincent Van Gogh.

Óleo sobre tela, 921 x 737 mm. MoMA.

Fonte: Google Art & Culture.

Inicio esta tese com a tela Noite estrelada, de Vincent Van Gogh, feita em 1889, a qual foi

pintada com elementos de sua memória, através de observações de paisagens. Dentro do asilo,

o holandês recordava as paisagens que viu em Provence e traduzia-as em pinturas, eternizando

sua memória.

E as memórias são eternas? Como eternizá-las? Será preciso eternizá-las? Registros, linguagem,

narração...

22

Inspirada nas nossas vivências nos cursos de Licenciatura em Pedagogia nos municípios de

Irecê e Tapiramutá pela Faced/Ufba e na narrativa de Jorge Luís Borges em seu conto “Funes,

o memorioso”, nesse trabalho questiono sobre quais são os “espaços” disponibilizados para o

esquecimento pelos currículos que utilizam como dispositivo de formação o trabalho com

memória(s). O intuito do presente texto é apresentar o sentido do esquecimento ao qual nos

baseamos para a compreensão do trabalho, apoiados em autores como Nietzsche, Ricoeur,

Freud e Weinich.

Não pretendo apresentar todos os acontecimentos oportunizados pelo esquecimento nos cursos,

até porque muitos deles foram esquecidos por mim e pela equipe, mas os que as nossas

memórias preservaram têm um lugar importante para a análise que busco fazer.

O esquecimento é entendido como atividade, força possibilitadora do novo, simbolizando uma

forma de saúde forte, uma força plástica. Diferente do protagonista da história de Borges, Irineu

Funes que sofreu um acidente que lhe fez perder a capacidade de esquecer. A incapacidade de

esquecer se transformou na doença de Funes que acabou sendo apelidado de o memorioso.

Nada escapava à arrebatadora memória de Funes. Cada folha caída no chão, cada

acontecimento, por mais insignificante que pudesse parecer, não escapava às garras de sua

memória excessiva. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia

duvidado; cada reconstrução, porém, já tinha requerido um dia inteiro (BORGES, 2005).

Na fábula de Luís Borges, haveria, portanto, uma medida no uso da memória humana? Segundo

uma fórmula da sabedoria antiga, o esquecimento não seria, portanto, sobre todos os aspectos,

o inimigo da memória?

Partindo da fábula “borgeana” e guiados por esses questionamentos, inicio o presente texto

como meu memorial, escrito inicialmente no meu TCC do curso de pedagogia Faced/Ufba.

Atualizado em outros momentos, já como aluna do Programa de Pós-graduação, compreendo

esse escrito como a continuidade do meu processo de reflexão. Para a tese acrescento a gestora

da educação e a questão do esquecimento, que não está presente nas outras versões.

Ingressei em 2008 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da

Bahia, com o tema de pesquisa Memória na Formação Docente: um Estudo do/no Projeto Irecê.

A pesquisa buscou a interpretação do movimento formativo dos professores da rede municipal

23

de Irecê em processo de formação superior no Curso de Pedagogia da Universidade Federal da

Bahia1.

Rever meu próprio memorial trouxe-me a inquietação que gerou esta tese: o esquecimento do

esquecimento nos currículos que utilizam como dispositivo de formação o trabalho com

memórias.

2.1 O ESQUECIMENTO SENTIDO NA PELE DA MEMÓRIA

No trabalho com a formação de professores da Rede Municipal de Tapiramutá, o esquecimento

permeou quase todo o curso. Um lugar chamado de “entroncamento de Porto Feliz/BA” hoje

compõe o “lugar outro da memória” de muitos da equipe que viajaram até lá para suas aulas,

pelo fato de ter sido o lugar onde o esquecimento teve um lugar privilegiado, ou por ter tornado

traumas e desesperos. Nas memórias do curso, pude notar que esses esquecimentos não

passavam despercebidos, oportunizando discussões densas dentro do grupo, também via e-

mails, como os que resgato aqui.

De: cliviopimentel<[email protected]> Para: Tapira Orientadores <[email protected]> Enviadas: Quarta-feira, 12 de Dezembro de 2012 11:29 Assunto: [tapiramutaorientadores] Minha vez de ser esquecido. Olha pessoal, É com muita tristeza que venho comunicar meu esquecimento em Porto Feliz. Esquecer as pessoas em plena madrugada naquele lugar é um absurdo, é um desrespeito à existência do outro. Eu sempre fiquei muito tocado quando as pessoas relatavam aqui na lista que foram esquecidas, já que, como muitos sabem, sou um pouco medroso. Passar por isso foi terrível. Desci do ônibus ainda meio tonto de sono, não percebi que não havia carro para me pegar e não sinalizei para o motorista do ônibus me esperar, já que tinha em mente, se caso isso um dia acontecesse comigo, iria para Irecê e faria contato de lá. Acabei aguardando sozinho

1O campo empírico da investigação que alimenta o presente estudo é o Curso de Pedagogia Ensino Fundamental/séries iniciais, realizado pela Ufba nas cidades de Irecê/BA e Tapiramutá/BA, com vistas à formação de professores da Rede, aqui denominados de professores-cursistas. O memorial começa a ser elaborado desde a seleção para ingresso no curso, é alimentado no percurso curricular dos cursistas e apresentado como trabalho de conclusão do curso.

24

naquele lugar horrível, sem contato algum e com celular descarregado. No final, consegui carona de um carro que, por sorte, passava por lá naquele momento. O medo de não saber a quem estava pedindo carona foi menor do que o de ficar ali até de manhã... Cheguei lá às 03:00 e sai de lá praticamente 04:00. Rose, Inez e Prof. Aureo, sinceramente, eu vou pensar duas vezes se volto aqui pra terminar esse GEAC. Por enquanto, não tenho mais vontade alguma de fazer isso. Arrasado, InezCarvalho<[email protected]>Para [email protected] 12/12/12 às 4:27 PM Prof. e equipe, Reconheço que a nossa comunicação, daqui de Salvador, não foi eficiente. É uma pena, independente das responsabilidades, que mais uma vez alguém tenha ficado na madrugada de Porto Feliz. Temos que nos esforçar mais ainda para que não volte a acontecer. Um abraço INEZ

De: Janete Modesto de aquino<[email protected]> Para: "[email protected]" <[email protected]> Enviadas: Quarta-feira, 12 de Dezembro de 2012 16:57 Assunto: Re: [tapiramutaorientadores] Minha vez de ser esquecido.. Lamentamos que Clívio tenha ficado em Porto Feliz às 02:40 da manhã do dia 12/12, sem ter um motorista sequer esperando por ele. Não há nenhuma informação no moodle nem comunicação via telefone ou email sobre a vinda de Clivio. A equipe de Tapiramutá estranha que haja uma crítica contundente de que somos responsáveis por uma falta que na realidade não o somos. Vale salientar que o cronograma de viagens do mês de dezembro foi solicitado, por email e tel. Todavia, não foi enviado. Para esta semana foi informado por Maiza via telefone somente a vinda dos professores Flavio, Elica e Isis. Atenciosamente, Aureo Bispo e equipe

De: cliviopimentel<[email protected]> Para: Tapira Orientadores <[email protected]>

25

Enviadas: Quarta-feira, 12 de Dezembro de 2012 11:29 Assunto: [tapiramutaorientadores] Minha vez de ser esquecido. Rsrss... Vcs são ótimas.. Porto feliz ta mais pra entre-lugar né!?Rsrss.. Clivio Pimentel Jr. Enviado via iPhone Em 13/12/2012, às 11:22, Fabrizia Pires de Oliveira <[email protected]> escreveu:

Clívio, uma analogia com meu tema de pesquisa....só para brincarmos um pouco, lamento o ocorrido.... "Entre o Esquecer e o Traumatizar: O lugar do esquecimento em um Curso de Formação de Professores - Porto Feliz/BA.

De: Rosane Vieira <[email protected]> Para: cliviopimentel<[email protected]>; Inez Carvalho <[email protected]>; Fabrizia<[email protected]> Enviadas: Quinta-feira, 13 de Dezembro de 2012 0:31 Assunto: esquecimento Precisamos discutir esquecimento em Tapira... Acho que memória tem ficado na BR... Desculpe a piada infame! Figura 03 – Esquecido na estrada

Fonte: Google imagens

26

Entre tantos esquecimentos, como este narrado por Clívio via e-mail, alguns tiveram maior ou

menor importância, porém não deixaram de ter, seja para bem ou para o mal, para a reflexão ou

para o trauma, para alimentar a memória ou apenas para dar lugar ao esquecimento. Nessa

trajetória, a minha memória me permite destacar com mais pertencimento o esquecimento de

alguns integrantes da equipe Ufba/Irecê no hotel Quatro Rodas, quando os alunos já estavam à

espera da aula no Espaço Ufba. Recordo-me que os motivos circundavam entre o esquecimento

da equipe administrativa em colocar na escala de transporte para pegar um/a professor/a no

hotel ou até mesmo o próprio motorista (já com a escala em mãos) de esquecer de buscar.

Os cursistas ficavam furiosos, questionando, relatando que o tempo da aula ficava prejudicado,

porém, ainda que houvesse muitas explicações nossas ou do motorista, geralmente a razão se

dava pelo esquecimento. E hoje, como uma memória aqui trazida, essa “experiência formativa”

se tornava constantemente num “movimento contemplativo e de reflexão”.

Dou uma pausa somente por um instante nesse e-mail, discutiremos com mais afinco o

esquecimento ali sentido... nas próximas seções, salientamos que Porto Feliz é um

entroncamento que leva à cidade de Tapiramutá, onde o ônibus de linha semileito faz sua parada

e segue o destino até Irecê. Os fios que tecem a narrativa sobre as memórias apresentadas no

meu memorial nos remetem a compreender o “esquecimento como o outro lugar da memória”

(MOTTA, 2008, p. 85).

Falar de memória(s) em um memorial é algo que me aproxima daquilo que vivencio no dia a

dia no tecer das minhas vivências e experiências no continuum formativo que me tornaram e

me torna professora, pois para Souza: O sentido da recordação é pertinente e particular ao sujeito, o qual implica-se com o significado atribuído às experiências e ao conhecimento de si, narrando aprendizagens experienciais e formativas daquilo que ficou na sua memória. (SOUZA, 2004, p. 215)

Por experiência entendemos como Larossa, que a coloca como elemento de transformação do

sujeito, ou seja, só pode ser considerada experiência a vivência/ação que nos transforma. Para

ele, experiência é aquilo que 'nos passa', ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos,

nos forma e nos transforma. Assim, para que a vivência se configure em experiência formativa,

é preciso que haja um movimento contemplativo e de reflexão.

27

Memória e experiência imbricam-se na constituição da identidade histórica, em uma

perspectiva heideggeriana, de cada ser-no-mundo, e a narrativa é um elemento propulsor de

compreensão desses percursos. Para escrever essas histórias envolvo as múltiplas referências

que me compuseram, o meu saber e fazer ao longo de sua existência.

Falar de memória é remeter a um mundo de realidade, fantasias e sonhos; abordarei aspectos já

discutidos em meu memorial, que foi apresentado à Faculdade de Educação da Ufba como

requisito para conclusão do curso de Pedagogia.

Toda memória transmite experiência, combina, comprime, exagera e destila o passado, em

vez de simplesmente refleti-lo. Conforme Delgado (2003, p. 21):

As narrativas são caracterizadas pela arte de contar, de traduzir em palavras as reminiscências da memória. Como fontes para construção do conhecimento histórico, seu potencial é inesgotável”. Uma História é uma narração, com base na “realidade histórica” ou puramente imaginária (Le Goff, 1996), pode ser também uma narração histórica, uma fábula, uma narrativa épica; ou ainda uma história linear. (FEITOSA, 2005, p. 27).

Dessa forma, a história contempla, em sua dimensão temporal, pelo menos dois aspectos: “o da

sucessão linear e o da simultaneidade social” (DELGADO, 2003). Se a percepção do passado

implica mais que o movimento linear, e sabemos que a natureza linear da narrativa restringe a

compreensão histórica, pode-se deduzir daí que circunstâncias sociais, culturais, políticas foram

ou ainda são usadas atualmente para legitimar a linearidade (FEITOSA, 2005).

Dessa maneira, a memória se constitui de si mesma e de seu avesso. Não se trata apenas da

lembrança, uma faculdade psíquica. Ela se institui, simultaneamente, da lembrança e do seu

relato. A Memória é, em suma, a narrativa do que é memorado (FERREIRA, 2003 apud

FEITOSA, 2005).

Assim narrarei as lembranças dos fatos que selecionei, trazendo para o presente acontecimentos

já vividos. Por acreditar que memória é, segundo Ferreira (2003, p. 111 apud FEITOSA, 2005,

p. 28), “construção do passado pautado por emoções e vivências importantes, por acreditar que”

é através, sobretudo, das nossas narrativas que “construímos uma versão de nós mesmos no

mundo” (BRUNER,1996, p. 14 apud MACEDO, 2005).

28

“Um jogo” entre o que esquecer, o que lembrar e o que falar que, embasado em vestígios

concretos, resulta em uma história. “Um jogo que estarei usando para inventar a história”

(CARVALHO, 2001 p. 10).

Fatos que selecionei, lembrar para o presente, acontecimentos já vividos dentro do Projeto Irecê.

Toda memória transmite experiência, combina, comprime, exagera e destila o passado, em vez

de simplesmente refleti-lo. Conforme Delgado (2003, p. 21), “as narrativas são caracterizadas

pela arte de contar, de traduzir em palavras as reminiscências da memória. Como fontes para

construção do conhecimento histórico, seu potencial é inesgotável”. Uma História é uma

narração, com base na “realidade histórica” ou puramente imaginária (LE GOFF, 1996), pode

ser também uma narração histórica, uma fábula, uma narrativa épica; ou ainda uma história

linear (FEITOSA, 2005).

Dessa forma, a história contempla, em sua dimensão temporal, pelo menos dois aspectos: “o da

sucessão linear e o da simultaneidade social” (DELGADO, 2003). Se a percepção do passado

implica mais que o movimento linear, e sabemos que a natureza linear da narrativa restringe a

compreensão histórica, pode-se deduzir daí que “circunstâncias sociais, culturais, políticas

foram ou ainda são usadas atualmente, para legitimar a linearidade” (FEITOSA, 2005 p. 27).

Por acreditar que memória é, segundo Ferreira (2003, p.111 apud FEITOSA, 2005 p. 28),

“construção do passado pautado por emoções e vivências importantes”, ao longo do Curso os

professores envolvidos alimentam o memorial de cada um, por acreditar que é através,

sobretudo, das nossas narrativas que “construímos uma versão de nós mesmos no mundo”

(BRUNER, 1996, p. 14). Dessa maneira a memória se constitui de si mesma e de seu avesso.

Não se trata apenas da lembrança, uma faculdade psíquica. Ela se institui, simultaneamente, da

lembrança e do seu relato. A Memória é, em suma, a narrativa do que é memorado (FERREIRA,

2003 apud FEITOSA, 2005).

Cientes de que pesquisar é antes de tudo inquietar-se, é questionar a realidade procurando

respostas sempre temporárias, pois, no contato com as mesmas, novas inquietações engendram-

se levando-nos à busca incessante de novas respostas e explicações, vou inventando minha

história, respeitando ou pelo menos tentando respeitar os conhecimentos trazidos e

compartilhados entre todos envolvidos na pesquisa. Inventar: palavra que etimologicamente

29

vem de invenire: fazer vir à luz do dia o que já existe, vivido amplamente na experiência

cotidiana (CARVALHO, 2001).

Assim outras vozes aparecerão além da minha. Um aspecto a ser levantado é que a história de

micronarrativas provoca a valorização da memória, principalmente a social e popular.

Reacendendo a polêmica questão se memória é história. Roger Chartier, baseando-se em

enormes reconhecidos como Eric Hobsbawn e Français Bédarida, argumenta que, embora as

relações entre memória e história sejam fortes, não são conceitos (história e memória) similares,

pois apenas a história “está inscrita na ordem de um saber universalmente aceitável,

‘científico’” (CHARTIER, 2000, p. 19 apud CARVALHO, 2001, p. 8).

A ideia foi vivenciar o cotidiano do Projeto Irecê com o entendimento de não “permitir que

nossos métodos determinem a nossa visão em relação ao cotidiano, mas permitir que nossa

visão determine os nossos métodos” (DOUGLAS, 1971, p. 11 apud CARVALHO, 2004, p.

56).

“Os seres humanos são ao mesmo tempo sujeitos e objetos de investigação nas ciências sociais

e o estudo do mundo social é, em essência, o estudo de nós mesmos” (J. K. SMITH apud

SANTOS FILHO, 1995).

Em uma pesquisa do cotidiano, tem papel importante o conhecimento e a aceitação da

indexibilidade, essa linguagem própria de cada grupo, que as ciências absolutistas procuram

contornar sem nunca conseguirem. Então, os grupos podem e devem ser olhados sob vários

ângulos: diferentes, complementares ou mesmo contraditórios.

“Abandona-se, assim, a ideia de uma teoria única e se descobrirão perspectivas ao invés de

categorias” (CARVALHO, 2004, p. 54). É nessa direção que convidamos o leitor para percorrer

as nossas memórias e a itinerância no Projeto Irecê.

2.2 AS MINHAS HISTÓRIAS

MINHA ESCOLA (PARA O “BEM” E PARA O “MAL”) INESQUECÍVEL

A INFÂNCIA

30

Lembro-me com saudades da minha infância, nasci numa cidadezinha do interior da Bahia,

chamada Ibititá, na conhecida rua da mata. Minha mãe costumava relatar a história do meu

nascimento, foram três dias em trabalho de parto, muito sofrimento até eu vir ao mundo, nasci

de parteira, mãe Du, muito conhecida na cidade. Viver na mata era realmente encantador, o

lugar das fantasias, das brincadeiras, dos sonhos. As árvores, os “pés de manga”, as brincadeiras

de lama, de casinha, de boneca, de “bila”, o corre–corre após a chuva atrás da “tanajuras” com

minhas primas me faz recordar de uma época de extrema felicidade. A rua da Mata era afastada

do centro da cidade, na verdade era uma chácara do me avô, nessa época só morava mesmo

minha família, que posteriormente transformou em uma rua. Minha mãe vem de uma família

muito pobre e negra, que, graças a sua determinação, conseguiu concluir o ensino médio,

naquela época poucos conseguiam. Ela começou a lecionar com 15 anos para a rede municipal

e logo depois foi efetivada como professora do estado, isso era uma conquista enorme para uma

família sem tradição em uma cidade cheia de preconceitos. Sendo filha de professora municipal

e estadual eu era a privilegiada entre minhas primas; eu tinha a bicicleta, a bota da Xuxa e o

bambolê rosa com laços de fitas amarelas. Chegava a época da escola, minha primeira

experiência escolar foi aos 5 anos na escola estadual Hermano Marques Dourado, gostava muito

da escola, as cantigas, as brincadeiras e a professora Mirtes me traz saudades, e a hora da

merenda então... as lancheiras da Xuxa (moda na época, anos 80), adorava cantar a música:

“Chegou a hora de merendar, vamos comer bem devagar, agora preste bem atenção papel e

casca não se pões no chão”. Na alfabetização já fui para outra escola estadual onde minha mãe

trabalhava, com a justificativa que lá havia uma excelente professora que alfabetizava muito

bem, a professora Verbênia. Não gostei muito, achava a escola feia e sem graça, bem diferente

da outra em que havia estudado o pré-escolar, chorei muito pedindo para voltar para a antiga

escola, mas acabei me acostumando. Essa responsabilidade pela aprendizagem da língua, da

leitura e da escrita que foi atribuída pela sociedade à escola, surgiu em especial após o

iluminismo, período em que nasce a escola burguesa que herdamos.

No ano seguinte surge a primeira escola particular em Ibititá, Caminho Feliz, existe até hoje,

fui para lá na primeira série, cheguei parecendo um “bichinho do mato”, das meninas era a

única que não morava no centro, ao responder onde morava, a resposta era sempre assim: Ah,

aquela rua de casinhas depois da rua Silveira (rua proveniente de quilombos) que só mora

negros! Mas não “me achavam negra”, por meu pai ser branco, pareço mais uma índia, e era

assim que os professores me chamavam; Tia Ivana foi uma professora que marcou muito minha

vida, ela mantinha uma relação de carinho e atenção com todos os alunos, minha primeira

31

paixão aconteceu na 4ª série com um menino chamado Fabrício, ela sempre me colocava para

dançar quadrilha com ele, parecia que sabia dos meus sentimentos... A Caminho Feliz promovia

muitos eventos, como funcionava em uma casa alugada, as donas estavam construindo a nova

sede da escola. Participava de todos os eventos, mas o maior e melhor que me lembro foi a festa

de inauguração da escola nova, que pena que já estava na 4ª série, participei do desfile de

abertura, desfilamos à beira da piscina, além de uma quadra nova e um parque até então nunca

visto pelas crianças de Ibititá, contávamos os minutos para o recreio, as brincadeiras, o vôlei na

quadra nova, vem como uma câmara lenta na minha memória. A forte presença de ludicidade

podia ser vista naquele espaço escolar. Ludicidade, é bom que se frise, entendida não

exclusivamente ligada à existência de jogos e brincadeiras (RAMOS, 2000), mas tomando a

conceituação de ludicidade proposta por Luckesi, como um “fazer” humano mais amplo, que

se relaciona não apenas à presença das brincadeiras e jogos, mas também a um sentimento,

atitude do sujeito envolvido na ação, que se refere a um prazer de celebração em função do

envolvimento genuíno com a atividade, a sensação de plenitude que acompanha as coisas

significativas... (apud RAMOS, 2000).

Não poderia deixar de falar dos meus melhores amigos; Bruno, Lidiane, Lívia e Vanessa, que

formam meus companheiros de vida escolar. Posso dizer que minha infância na escola foi muito

feliz.

A ADOLESCÊNCIA

Chegado o momento do “colégio”, e agora? A única opção da cidade era o colégio estadual

Democrático de Ibititá, meus melhores amigos também foram para essa mesma escola, tudo era

novo, vários professores com disciplinas específicas. Lotada na 5ª B com Lidiane, já Bruno e

Vanessa já foram para a 5ª C, achei tudo muito estranho e quanta novidade..., as paqueras, o

recreio já podia ser na rua, não existia um porteiro, assistíamos às aulas quem quisesse, não

havia inspetor. E eu sempre voltava, não havia imposição, era uma das melhores alunas da sala,

nem precisava estudar muito para passar nas provas, a média era 5,0. Ao chegar o final do ano

os próprios professores, colegas da minha mãe, conversaram para dizer que era um

“desperdício” eu estudar em Ibititá, argumentavam que o ensino público era fraco e as várias

aulas vagas prejudicavam os bons alunos. Esse rótulo de boa aluna me acompanhou até na

faculdade, colocando sempre um peso em minhas costas, ao mesmo tempo em que gostava, me

incomodava também. Nesse momento, nem passava por minha cabeça a possibilidade de ir

32

estudar em outro município, ainda mais em Irecê, a cidade maior da região, mais desenvolvida

e que minha mãe todo final de mês iria fazer compras de produtos que não encontrava em Ibititá,

eu contava os dias para poder comer “Chambinho” (iogurte).

A Possibilidade de poder ir estudar em Irecê foi algo bastante significativo naquele momento,

como ganhar uma boneca que você almeja muito, mas que nem comenta com os pais, já para

não ouvir, um não posso. Muitas novidades em minha cabeça, quando soube que Bruno, Lidiane

e Vanessa já estavam matriculados para estudar no CEII (Centro de Educação Integrado de

Irecê), o colégio mais famoso da região, que atendia em sua maioria uma classe social

privilegiada, comecei a me articular com minha mãe para convencer meu pai.

Meu pai não gostou nem um pouco da ideia, sendo filha única, ele era muito ciumento,

acabamos convencendo-o. No dia seguinte, o mesmo foi na escola, para saber se realmente eu

poderia estudar e se teria condições de pagar. Ao chegar de Irecê, com todos os livros e a farda

do CEII nas mãos, pulei junto com minha mãe de alegria, parecia um sonho, fui correndo contar

para todos os vizinhos, que nessa época já não era mais na mata, morávamos já em outra rua.

O diretor e dono do colégio era filho de Ibititá que, ao fazer faculdade em Brasília, resolveu

montar um colégio com professores capacitados e também com nível superior. Como no filme

efeito borboleta, vou quebrar a linearidade da história, muitos dos meus professores do CEII

hoje são colegas de trabalho em Irecê, no curso de Pedagogia Ufba/Irecê. Foi uma época de

marco na educação no município de Irecê, um colégio com o quadro docente de professores

licenciados nas áreas específicas e ainda preparatório para o vestibular, a maioria dos

profissionais atuais da região foram estudantes de lá.

Fui para o CEII no outro dia, as aulas já haviam começado há uma semana, a maratona de

acordar às 6:00 da manhã para pegar o ônibus escolar estava só iniciando, o colégio

disponibilizava um ônibus exclusivo para transportar os alunos de Ibititá x Irecê. Nem dormi

direito na noite anterior, às 5:00 da manhã já estava de pé, foi um encanto chegar em outra

cidade, entrar no colégio e ver as coisas novas e diferentes. Coelho (2000, p. 78-79) nos diz,

em seu rico ensaio sobre cultura: [...] Quando viajo, não apenas saio de meu lugar: saio de mim

mesmo, mudo meu ponto de vista, sou forçado a ver outras coisas de outro modo e a ver as

mesmas coisas de outro modo. Essa relação entre o deslocamento e a existência [...] não pode

ser menosprezada. E não sendo o conhecimento monopólio do espaço escolar é indispensável

33

estabelecer, com o estudante, relações entre conteúdos adquiridos na escola e fora dela,

valorizar e aproveitar qualquer experiência vivida por ele.

Fui apresentada à turma como aluna nova, sentei perto dos meus amigos de Ibititá e aos poucos

fui me entrosando com o restante da turma, que a maioria era filhos de empresários e políticos

da região. A cobrança para manter a turma atenta nas aulas, era sempre que não podíamos

brincar, pois quem quisesse passar no vestibular tinha que aprender e memorizar todos os

conteúdos, e para passar no vestibular não havia possibilidade de “bagunça”. Isso nos remete a

analisar a própria hierarquia nas/das relações inerentes à estrutura escolar reproduzida

exemplarmente na sala de aula, de que para o estudante realizar alguma ação pedagógica é

necessário que haja o comando do professor, que haja um líder ordenando, determinando, fora

desse modelo reina a “bagunça”! E se o “líder” não for o professor, isso representa o caos? O

autor de Teoria da Emergência (JOHNSON, 2003, p. 29) nos chama a atenção: “Quando vemos

formatos recorrentes e estruturas emergindo de nosso caos aparente, nossa reação imediata é

procurar líderes”. E mais adiante conclui: “Nossas mentes podem estar ligadas para procurar

líderes, mas sem dúvida estamos aprendendo a pensar bottom-up” (JOHNSON, 2003, p. 49).

Em casa fui muito cobrada por meus pais, alegando-me que não era fácil para eles me manter

em um colégio caro. Roupas e supérfluos só o necessário, pois o salário da minha mãe era

aplicado praticamente com meus estudos, os gastos de casa por conta do meu pai.

Consegui passar direto na 6ª série, recebi parabéns de toda a família, a maioria dos alunos

provenientes de outros municípios e em escola pública eram quase sempre reprovados no final

do ano.

A escola promovia muitos eventos, gostava muito de me envolver na organização; a feira de

artes, a feira de ciências, a copa escolar então... evento esportivo muito disputada, o Cláudio

Abílio era o colégio rival na época, eram eventos muito bons!! A coordenadora da escola, Rúbia

Margareth, era muito animada e conseguia mobilizar os alunos a se envolverem completamente.

Mas realmente a minha maior recordação era a disputa de notas, a partir da nota 8,0 o aluno

recebia adesivos e destaque no mural da escola, a cada unidade eram selecionados do 1º ao 3º

lugar por sala e exposto no mural, eu queria e conseguia sempre estar no mural, além do

concurso de redação que acontecia todos os anos, o aluno que vencesse não era de imediato

34

anunciado, era enviada para os pais uma carta em segredo, só na hora da premiação os alunos

ficavam sabendo. A angústia no dia da entrega do prêmio me sufocava, “meu coração até doía”.

No dia da entrega do certificado, havia aula normal e no intervalo os pais iam chegando para a

entrega do certificado. No ano que minha mãe ou meu pai aparecia era só felicidade, no ano em

que perdia ficava triste.

O ensino médio se aproximava e cada vez mais o vestibular na cabeça. Montamos um grupo de

estudo na casa de Bruno e todos os dias estudávamos sem parar, encontrava dificuldades em

Física e Matemática, com História e Geografia tinha facilidade, então um ajudava o outro para

as avaliações assistemática e sistemática, estávamos lá nós todos os sábados pela manhã

fazendo prova, perdíamos a feira livre de Ibititá. Na semana de prova, que eu até gostava, não

havia aula, quando terminava a prova cedo íamos para a praça de Irecê, comer sonho e paquerar.

Não gostava muito de perder a metade do sábado e, o pior, não tive muitas sextas-feiras à noite

para namorar e ir para festa, parecia um castigo, as festas na boate recém-inaugurada em Ibititá

eram quase sempre às sextas-feiras.

No final do ano quem não conseguisse passar direto tinha as opções da prova final e a

recuperação, o aluno que não precisasse realizar essas avaliações recebia um certificado que

parecia mais um troféu: “primeiro vinha uma mensagem de Paulo Freire: “Ninguém educa

ninguém, os homens se educam em comunhão”; logo em seguida a frase: PARABÉNS, VOCÊ

CONSEGUIU APROVAÇÃO DIRETA EM TODAS AS DISCIPLINAS, ESPERMOS QUE

ESSA PRÁTICA SEJA CONSTANTE EM SUA VIDA”. Eu estudava muito durante o ano

inteiro para ganhar aquele certificado, muitas vezes minha tia que morava em Salvador bancava

minhas férias por lá em retribuição pelo ano de estudo. Hoje analiso que carrega o peso das

cobranças que recebia dos meus pais, mas entendo perfeitamente meus pais, principalmente

minha mãe, que queria que eu chegasse mais longe do que ela pôde chegar.

Posso dizer que tive momentos bons e ruins no CEII, e as amizades construídas nesse período

foi meu maior troféu. Bruno é como se fosse um irmão para mim.

IDA PARA SALVADOR

35

No ano de 1999, fui morar em Salvador com Vanessa, dividíamos apartamento com uma moça

mais velha de Ibititá que já morava há mais tempo, o sonho de morar na capital e a vontade de

entrar em uma universidade era grande demais.

No começo foi muito difícil, longe da família não era nada fácil, mas aos poucos fui conhecendo

as belezas naturais de uma cidade tão encantadora. Fui fazer cursinho no Sartre, no relógio de

São Pedro, famoso por abranger um número alto de estudantes do interior. No começo eu nem

sabia que profissão queria seguir, pensava em odontologia, mas sem nenhuma certeza.

Ao visitar minha tia, irmã do meu pai, ela me convidou para irmos à escola em que trabalhava,

ela era a vice-diretora de uma creche-escola na Graça, bairro nobre de Salvador; me encantei,

resolvi naquele dia que queria ser professora, no fundo acho que já era isso que me fascinava,

pelas brincadeiras com as amigas e com o exemplo de casa com minha mãe. A beleza e a

infraestrutura que a escola apresentava estava muito longe dos padrões da escola pública que

conhecia. Minha família não gostou muito da ideia, dissera que eu tinha condições de ser uma

médica ou advogada e que ser “pedagoga” era para quem não tinha “opção”, mas que a decisão

seria minha. Chegando o final do ano, passei nas três universidades públicas em que tinha me

inscrito, Ufba, Uneb e Uefs. Optei pela Ufba, pelo nome que a Universidade Federal carregava.

A GRADUAÇÃO –A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA MENTE: “O PROJETO

IRECÊ”

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele

se dispõe para a gente é no meio da travessia.

João Guimarães Rosa

O ingresso na Universidade Federal da Bahia, em 2000, no Curso de Licenciatura em

Pedagogia, deu-se em um misto de euforia, comprometimento político e a curiosidade natural

de quem adentra o espaço acadêmico. A opção pelo curso de Pedagogia foi uma inspiração que

surgiu desde a época de criança ao acompanhar minha mãe, professora e diretora em escolas

públicas do município de Ibititá/BA, minha terra natal, e tomou corpo à medida que realizei os

testes vocacionais oferecidos pelo cursinho pré-vestibular que cursei no ano de 1999, já

residindo em Salvador/BA.

36

O Projeto Irecê: uma utopia possível – uma proposta que emerge a partir de discussões e

aprofundamentos teóricos sobre currículo realizados, ao longo de alguns anos, pelo grupo que

idealizou o projeto. Foi este caminho que o curso de Pedagogia/Ensino Fundamental/séries

inicias Ufba/Irecê escolheu para percorrer. Um percurso difícil, com muitas idas e vindas, mas

com a alegria e as dores de perceber que é possível a interlocução entre teoria e prática ou,

ainda, a possibilidade do objeto de estudo dos professores no curso, ser o processo educativo,

a educação em seu acontecer cotidiano, nos diversos espaços da prática social, dialogando com

o arcabouço que foi construído ao longo dos anos por vários teóricos no campo do currículo e

pelas práticas pedagógicas cotidianas.

O curso surgiu da demanda por formação em nível superior para professores em exercício da

Rede Municipal de Irecê, oportunizando o cumprimento do disposto no Art. 62 da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), que visa conferir, ao conjunto de

professores da educação básica do País, como patamar mínimo de escolaridade, o nível

superior.

ALGUMAS HISTÓRIAS DA GRADUAÇÃO

Esta minha história começa em julho de 2001. Através do mural de avisos da Faced, fiquei

interessada por uma vaga para bolsista Pibic (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação

Científica) com o professor Nelson Pretto. Durante a entrevista da seleção, fiquei sabendo sobre

a existência do Projeto de Formação de Professores da Faculdade de Educação em parceria com

a Prefeitura Municipal de Irecê.

A cidade de Irecê fica a 470km de Salvador, no semiárido baiano, com uma população de mais

de 57.000 habitantes, com uma agricultura de subsistência baseada na produção de feijão, milho

e mamona. A microrregião comporta 19 cidades: Lapão, João Dourado, América Dourada, São

Gabriel, Cafarnaum, Mulungu do Morro, Souto Soares, Iraquara, Canarana, Barro Alto, Barra

do Mendes, Ibipeba, Ibititá, Uibaí, Presidente Dutra, Central, Itaguaçu da Bahia, Gentio do

Ouro e Jussara.

Irecê comercializa tudo que é produzido nas cidades vizinhas, o que o torna o comércio local

forte. Nasci em Ibititá, uma cidade da microrregião de Irecê. Tanto minha mãe quanto eu

37

tínhamos o interesse que estudasse num bom colégio. Como as melhores escolas particulares

encontram-se em Irecê, fui estudar da 6ª série do ensino fundamental até terminar o ensino

médio no colégio CEII, era uma verdadeira maratona, íamos de transporte escolar e voltávamos

todos os dias para Ibititá, essa prática ainda é muito comum por estudantes de cidades vizinhas.

Esta familiaridade com os costumes e com a cultura local seria um ponto positivo naquela

seleção.

Seriam escolhidas três bolsistas Pibic, o tema de pesquisa do professor Nelson Pretto era

relacionado com as novas tecnologias. O conhecimento em informática era um fator decisório

naquela seleção. Nelson Pretto já foi logo perguntando: “Quem entende mesmo de computação

aqui”? Percebi ali que já teria dançado...por saber apenas noções básica de informática. Das

treze alunas que concorriam as três vagas, só uma levantou a mão, uma carioca que tivera feito

curso técnico em informática no Rio de Janeiro, ficou como primeira bolsista, a segunda bolsa

ficou com uma voluntária que já trabalhava no grupo de pesquisa do professor Nelson há um

ano; a terceira bolsista ficaria para o Projeto Irecê, durante a entrevista, após contar minha

origem fui selecionada por unanimidade, até mesmo pelas colegas que estavam disputando

comigo.

Escolhida, conheci a professora Maria Inez Carvalho, coordenadora do Projeto Irecê, cheguei

num momento em que o projeto já estava elaborado e começando a montar a equipe.

Nunca poderia imaginar que fosse ouvir, na capital, falar com tanta frequência o nome Irecê.

Justo Irecê que me fazia lembrar de tudo que vivi durante a minha vida, meu colégio, meus

professores, meus amigos... me empolguei bastante. Mandamos o projeto para a seleção do

Pibic e ficamos na torcida pela aprovação.

Em agosto de 2001 o resultado do Pibic com a contemplação de uma bolsa que no caso seria a

minha.

Encantei-me pela proposta do projeto. E procurei logo saber: por que Irecê? Com tantas outras

cidades mais perto de Salvador, por que ir para tão distante? Surgiu da demanda por formações

em professores existentes no município, e formalmente encaminhada em novembro de 2001,

pelo então prefeito de Irecê Beto Lélis, na Faculdade de Educação e também na possibilidade

que a Faced criasse um curso específico de formação de professores em nível superior para

38

Irecê. Estava nascendo aí o grande desafio de colocar em prática os anos e anos de estudo no

campo do currículo que a Faced desempenhara.

Pode-se, então, aqui analisar-se o papel de um mural. Percebi a importância do mural como

espaço de informação importante para os estudantes. Todos os dias ao chegar na Faced era

como um ritual ler os murais espalhados pelos andares, não que tenha deixado de fazer isso nos

dias atuais, mas a interatividade com a troca de e-mail e as listas de discussões faz o mural ficar

em segundo plano, naquele ano de 2001 ainda não tínhamos os tabuleiros digitais

(computadores espalhados pelos andares da Faced, com acesso fácil e rápido à internet). “O

escrever passa a ser a interlocução, comunicação, portanto pleno de significação de vida, de

emoção” (BONILLA, 2004).

Naquele momento, não poderia imaginar que, depois de quase três anos de caminhada, estaria

fazendo este link entre a informação do mural da Faced e o Projeto Irecê. “Ao estabelecer-se a

comunicação entre o que estava distinguido, procura-se obter uma visão poliocular dos

fenômenos, deixando emergir sua complexidade” (MORIN, 1998, p. 30 apud BONILLA,

2004).

Como disse Drummond, encontramos uma pedra, para não dizer várias no caminho. Neste

caminho tortuoso nos deparamos com os entraves burocráticos, com os embates ideológicos,

com o compromisso descompromissado do poder público, com o imaginário social da figura

do “chefe”, com a discordância teórica, com o não entendimento da proposta por muitos.

Assim, entre “o mar e o sertão” fomos tecendo os fios que ligam os saberes do espaço

acadêmico aos saberes dos professores-cursistas. Em uma simbiose cheia de sutilezas.

Fui aos poucos me envolvendo e de tal forma que já fazia parte da equipe. Sofri nos momentos

difíceis, comemorei cada passo à frente que conquistávamos, e segurei os momentos de

aprendizado para o meu crescimento pessoal dentro do processo de Piaget de desequilíbrio,

equilíbrio e acomodação. Passei a ser vista pelos alunos e professores da graduação da Faced

como referência do projeto, acreditei no compromisso social de divulgá-lo em todos os espaços

de aprendizagem.

39

Nas disciplinas que estudara durante o semestre na Faced, era sempre solicitada pelos

professores e colegas que explicasse como era o projeto, como funcionava. Alguns professores

na intenção de conhecê-lo e outros por já conhecerem e não acreditarem na proposta. Então

servia de exemplo nas aulas como comparativo de um projeto escrito “por um ‘bando de loucos’

que saía escrevendo maluquices pela Faced”. Assim expressou uma professora da Faced/Ufba.

Aquilo me deixava revoltada, mas aos poucos fui entendendo que faz parte de qualquer

processo de construção do conhecimento, as linhas de pesquisa dentro da Faculdade de

Educação da Ufba são divergentes e é nessas discussões que trocamos ideias e (re)formulamos

ou não nossa maneira de pensar e encarar o mundo.

O CURSO

Não poderia faltar nesse memorial como funciona o Programa de Formação de Professores do

município de Irecê, pois abrange um conjunto de projetos que são implementados,

desenvolvidos e avaliados de forma interdepedente. Dentro desses sete projetos citados abaixo,

o P7 já foi desenvolvido com as 19 cidades da microrregião: Lapão, João Dourado, América

Dourada, São Gabriel, Cafarnaum, Mulungu do Morro, Souto Soares, Iraquara, Canarana,

Barro Alto, Barra do Mendes, Ibipeba, Ibititá, Uibaí, Presidente Dutra, Central, Itaguaçu da

Bahia, Gentio do Ouro e Jussara. O P4 está em fase de implantação e o P1 está em andamento.

São eles:

P1 – Projeto de Formação em nível superior dos professores de Irecê/Bahia

P2 – Projeto de bibliotecas virtuais

P3 – Projetos Ciberparques

P4 – Projeto Centro de Cultura comunicação

P5 – Projeto de capacitação em Gestão Escolar

P6 – Projeto de reestruturação arquitetônica e urbanista das edificações escolares.

P7 – Projeto de capacitação para os professores da microrregião.

Analisaremos o P1 por ter sido a primeira demanda do município. Ficou assim denominado:

Curso de Pedagogia/Ensino Fundamental/Séries Iniciais Ufba/Irecê.

O Curso é uma parceria da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia com o

município de Irecê. O projeto é uma iniciativa experimental e apresenta um currículo além da

40

lógica disciplinar tradicional cuja tônica é a inclusão, os estudantes são os professores efetivos

da rede municipal de Irecê que são chamados de professores-cursistas.

O Curso está dividido em Ciclos, que correspondem aos semestres letivos da Ufba, sendo um

total de seis ciclos nos quais são oferecidas Atividades Curriculares que estão divididas em três

categorias:

• Atividades Temáticas – Ex.: oficinas, mesas-redondas, cursos e grupos de estudos literários

e cinematográficos. Ressaltando que devido à diversidade na natureza, cada uma delas

apresenta diferentes cargas horárias e podem ser desdobradas ou repetidas para o ciclo

seguinte de acordo com o interesse dos professores-cursistas ou se a equipe achar necessária.

• Atividades em exercício – Cada professor-cursista é acompanhado pela equipe de orientação

em sua prática pedagógica e deverá apresentar algum tipo de produção que relacione o seu

fazer pedagógico com o saber acadêmico.

• Atividades de Registro e Produção – São produções textuais que são realizadas pelos

professores-cursistas ao longo dos ciclos. Ex.: Memorial, Diário de Ciclo e produção livre,

lembrando que os memoriais só nos ciclos pares.

As atividades emergem das demandas dos professores-cursistas, isso pressupõe um trabalho no

sentido da construção do conhecimento imbricado com a prática, mas não são elementos de

uma grade fechada, como afirma Pretto (2001) em uma entrevista para a Revista CEAP: “Não

é à-toa [sic] que o currículo é chamado de grade curricular, pois é uma prisão”.

As atividades curriculares contemplam as áreas do conhecimento – definidas por Eixos

Temáticos onde estão pensados os conceitos/temas a serem possivelmente trabalhados durante

o curso.

A inserção destes eixos no campo das possibilidades pensadas do projeto visa a garantir uma formação na qual a aquisição de conhecimentos seja concebida como uma intricada rede de conteúdos, que englobe informações acerca das produções construídas sócio-historicamente, que estas informações passem a fazer parte intrínseca do mundo de significações dos professores-cursistas e, portanto, geradoras de competências e habilidades que catalisarão o fazer cotidiano. (PROJETO, p. 20).

41

A equipe é composta por coordenadores que são professores da Faced/Ufba e orientadores que

estão divididos em pares – um de Salvador (mestres e mestrandos da Faced/Ufba) com outro

de Irecê (professores com especialização do município). Os professores-cursistas estão

distribuídos em grupos de orientação.

O Curso iniciou no primeiro semestre de 2004 com 159 professores-cursistas, desta forma, por

se tratar de um currículo além da lógica disciplinar tradicional, os professores-cursistas

constroem seu próprio percurso de aprendizagem, indicando, com o suporte pedagógico da

equipe de orientação, as atividades curriculares que desejar realizar, perfazendo um total de

3.200 horas de carga horária, o que lhe garantirá a conclusão do curso.

A BUROCRACIA

Aprovação do Curso

Muitos foram os caminhos até a aprovação do Curso. A minha participação nos trâmites que

envolveram e envolvem o projeto e a vivência no cotidiano do Curso, com participações em

reuniões tanto em Salvador como em Irecê, me proporcionou viver de perto os passos do

projeto.

Como a Ufba tem autonomia, por ser uma universidade pública, pode fazer tramitar processos

até mesmo de criação de novos cursos, como é o caso do projeto Irecê, primeiramente na esfera

interna e só depois encaminhando para o MEC só para reconhecimento. A aprovação é de inteira

responsabilidade da Ufba.

No caso de reformulações, como aconteceu com o Curso de pedagogia da Faced em Salvador,

que deixou de formar especialistas em supervisão e orientação, passou para o título de

Pedagogo, nem chega a ir para o MEC. Instituições privadas exigem visitas do MEC antes da

aprovação. Após aprovação no âmbito dos Colegiados, no caso de reformulação e das

comissões constituídas provisoriamente, no caso de criação de cursos, o processo vai todo

instruído para a Câmara, passando primeiramente pela Supac (Superintendência Acadêmica).

A Supac vai averiguar se o processo atende à Resolução 05/2003 da Câmara de Ensino de

Graduação (CEG), que regulamenta os processos de criação de cursos novos e de reestruturação

e alteração de cursos já existentes.

42

Depois encaminha a CEG, que vai indicar um(a) relator(a). Atualmente, com a expectativa de

um grande número de processos de reformulação, foi instituída uma comissão, composta de 04

membros: Maerbal Marinho, pró-reitor de graduação, Nilse Oliveira, da escola de Nutrição,

Cristina Mello, da escola de Enfermagem e Teresa Barral, do ICS (Instituto de Ciências da

Saúde), para apreciar todos os processos.

Os processos saem das unidades instruídas com o projeto de criação/reformulação, nos termos

de um projeto pedagógico, com as ementas dos componentes curriculares devidamente

aprovados pelos departamentos e com a indicação de espaço físico, composição do corpo

docente, processo de seleção etc.

Ao ser aprovado na CEG, o curso estará autorizado a funcionar. Vai até aí a autonomia da Ufba.

Cursos novos terão que ser também reconhecidos, e isso quem faz é o MEC. A partir de 50%

do tempo de duração previsto para o curso, deverá ser encaminhado o processo de

reconhecimento ao MEC, com o relato de tudo que aconteceu, incluindo os componentes

curriculares que foram dados, o número de alunos e seu aproveitamento e uma previsão do que

vai acontecer daí para frente.

O MEC enviará uma comissão para examinar as condições das instalações, entrevistar

professores, alunos e coordenação, em confronto com a proposta original, podendo fazer

sugestões de alteração para posterior aprovação, aprovar simplesmente ou desaprovar.

Durante esse período de tramitação várias vezes o projeto teve que ser reformulado, ou melhor,

explicado para atender as exigências dos padrões da Universidade; um exemplo disso foram os

ementários construídos para os tipos de atividades pelos alunos da disciplina na pós-graduação

da Faced/Ufba que estudava especificamente o Projeto Irecê. Como aluna ouvinte da disciplina,

participei também dessa construção e fiquei toda orgulhosa em hoje olhar o projeto e ver que

ali tem um ementário construído por mim. No início a equipe perguntou-se da viabilidade, se

com tantas modificações afetaria a essência do projeto. Mas por outro lado percebeu a

importância de outros olhares para o crescimento e o melhor entendimento das outras pessoas

sobre o projeto.

43

Não é difícil de imaginar o quanto demoravam todos esses trâmites, até porque não existe só o

Projeto Irecê no universo da Ufba, porém um detalhe que observei bastante é a questão da

centralização de determinada funções para específicos funcionários, processos ficavam e ficam

parados devido àquele funcionário que fazia uma parte dentro do processo entrar de férias. É

um direito de cada funcionário tirar férias; só me pergunto o porquê da centralização. Outra

pessoa não pode aprender o que determinada pessoa faz?

Diversas dificuldades burocráticas foram encontradas no caminho da aprovação do curso, o

tempo para que o processo fosse tramitado entre os setores da Ufba demorava semanas, e muitas

vezes as salas ficavam ao lado uma da outra. As reuniões entre os membros da Câmara muitas

vezes não tinham quórum, as greves e as férias dos funcionários só faziam atrasar ainda mais o

processo de aprovação. Contou-se com o apoio de muitos funcionários, mas na grande maioria

a demora nos trâmites era emperrada por pessoas que não acreditavam no projeto, pelo menos

foi o que senti.

Entretanto valeu a pena as idas na Reitoria da Universidade em busca de agilizar o processo de

aprovação do regimento do curso e o esforço nas subidas pelas escadinhas de Medicina... O

curso foi aprovado pela Câmara de Ensino de Graduação em junho de 2003.

PROCESSO SELETIVO

O processo seletivo foi um processo de seleção diferenciado das formas convencionais de

ingresso utilizadas na Ufba, “dos apavorantes vestibulares”, justificando pelo próprio caráter

do Curso que acredita na “democracia pela diferença”. Como já previa o projeto (p. 17), “Na

prática, o processo de ingresso no curso será um movimento de adesão de caráter inclusivo, de

formação horizontal, descentralizado, respeitando os impedimentos legais”.

Aconteceu em sistemas de oficinas, com 12 h de produção/experimentação, e em 10 h de

produção definitiva para a construção do Memorial, o gênero textual escolhido para a seleção.

Essas oficinas foram desenvolvidas por professores da Ufba, com oficinas temáticas: Eu

Estudante, Eu Professor(a), Eu no programa de formação de professores da Faced/Ufba

privilegiando os tipos textuais: o narrativo, o descritivo e o crítico-reflexivo.

44

Os professores-cursistas puderam assim colocar no caderno azul (ficou assim conhecido porque

todos os cursistas receberem um caderno azul para registrar suas produções) suas ideias,

sentimentos, emoções... sobre as oficinas temáticas Eu Estudante, Eu Professor(a), Eu no

Programa de Formação de Professores da Faced/Ufba. Neste processo de inscrição/inclusão,

todos que fizeram o processo seletivo foram aprovados, porém havendo a classificação do

primeiro ao último lugar.

Sobre os memoriais, disse a professora Lícia Beltrão no VI seminário da rede municipal de

educação - Irecê-Ba: Até o final do curso, sabemos que cada memorial vai espichar, para cima, para um lado, para outro... Outras vozes se misturarão a todas aquelas que já se alojaram nele, faz tempo. Os fios, os mais tensos, os mais frágeis, os mais grossos, irão alinhavar, costurar, dar nós, com ou sem pontas. Enquanto isso, o caderno azul, certamente cantará: “O que está escrito em mim/comigo ficará guardado, se lhe dá prazer/ a vida segue sempre em frente, o que se espera em frente, o que se há de fazer/ só peço a você um favor, se puder: não me esqueça num canto qualquer”. E nós professores do grupo de seleção/inclusão, estaremos enquanto não estivermos ocupados na criação de outros processos educativos que emancipem os sujeitos, com esse, estaremos repetindo com Eni Orlandi: “ler é compreender que o sentido pode ser outro”, na expectativa de continuarmos a “ver o que nos acostumamos ( ou não acostumamos) a não ver”.(BELTRÃO, 2003, p. 09).

ABERTURA DO CURSO

O Curso de Pedagogia - Ensino Fundamental/Séries Iniciais inicia-se com a noite de abertura

no dia 28 de janeiro de 2004 no Hotel Golden na cidade de Irecê, estando presente toda a equipe

do projeto. O diretor da Faced, Nelson Pretto, realizou uma palestra na qual enfatizou o

desencadeamento da produção do conhecimento e o papel do professor nos diversos espaços de

aprendizagem, em especial naqueles possibilitados pela chamada sociedade tecnológica. Os

professores-cursistas tentavam ao máximo acompanhar aquela aula inaugural, mas a

reclamação era gritante no final da aula: “Não deu tempo copiar as transparências, o

professor Nelson passou ligeiro demais”.

Percebemos aí o modelo de escola tradicional onde a cópia gera a dinâmica da reprodução social

que está centrada na reprodução cultural para a alienação e massificação das classes populares

pela “cultura dominante”.

45

Nessa mesma noite, estiveram presentes o então prefeito de Irecê Beto Lélis, o secretário de

educação do município e demais secretários. O prefeito Beto Lélis, que iria se afastar do

mandato para concorrer às eleições em outro município, fez um discurso emocionado pela

realização de ver o primeiro dia de aula dos professores ainda no seu mandato e encerrou suas

palavras assim: “Está consumado, depois de lutas e batalhas, conseguimos então trazer a

Universidade Federal da Bahia para o sertão”. Os professores-cursistas pareciam não

acreditar na tão esperada Universidade e tremiam com todas as informações sobre o

funcionamento do curso e o próprio funcionamento do Ciclo um, dadas pela coordenadora Inez

Carvalho.

Por não ter acontecido o ciclo zero que seria um ciclo piloto para verificar o cotidiano

pedagógico, a plausibilidade das atividades propostas e repensar algumas propostas, o ciclo um

foi um ciclo de experimentação como todo o curso em si, mas especificamente, por ser o

primeiro, foi construído no fazer cotidiano, a “emergência” e urgência que surgia.

No seminário de fechamento do Ciclo Um e de preparação para o início do Ciclo Dois, na

avaliação dos professores-cursistas com a equipe de coordenação e orientação sobre o Ciclo

Um, foram apontadas falhas, dificuldades e desejos de melhorias para com o curso,

principalmente no que diz respeito à falta de computadores, biblioteca e um espaço próprio da

própria faculdade (este já conquistado), datas de entregas de trabalho e função da equipe de

orientação.

O que mais me chamou a atenção, naquele momento, nas minhas sentadas na plenária junto

com os professores-cursistas e nas apresentações das amostras de trabalhos desenvolvidos por

eles nas atividades do Ciclo Um, foi o crescimento notável da grande maioria desses

professores, é claro, cada um ao seu tempo. Com o término do Ciclo Um, pude perceber que,

como construtores do seu próprio percurso de aprendizagem, os professores-cursistas, uns mais

outros menos, puderam neste Ciclo Um repensar sua vivência de sala de aula, construindo e

desconstruindo seu próprio caminho. A construção de novos saberes e a complexidade do que

emerge nos espaços de aprendizagem me fizeram perceber, nas minhas idas e vindas a Irecê, o

desejo de crescer estampado no rosto de mães e pais de família que como eles mesmos

declararam: perderam noites de sono na re/construção do conhecimento, e, segundo Inez

Carvalho, “complexidade não é descarte, não há o todo definitivo, em algum momento sim, em

46

outros momentos o todo vai se tornando distante” (CARVALHO, 2004. Exposição Oral aula

da disciplina da pós-graduação sobre o projeto Irecê).

No dia das inscrições para o Ciclo Dois, por exemplo, alguns professores-cursistas tinham

bastante “autonomia” nas escolhas das atividades, outros ainda muito dependentes diziam:

“Só me matriculo se minha amiga também estiver ou se a atividade não for dar trabalho”.

Fui solicitada várias vezes a esclarecer dúvidas sobre cada atividade. Há também aqueles

professores-cursistas que só estão interessados no título de nível superior pela Ufba, aliás, o

nome Ufba é pronunciado com muito orgulho. Um professor-cursista queria logo a carteirinha

de estudante, não para se beneficiar com os descontos que esta proporciona, mas com a foto

dele, o nome dele e a comprovação de que ele é estudante da Ufba, para com isto ele mostrar

para as pessoas.

Tendo esta “autonomia” de construir seu percurso de aprendizagem, tenho a preocupação se

não estarão simplesmente preocupados em atingir a carga horária da disciplina necessária para

a conclusão do curso na Ufba.

ENCONTROS DE ORIENTAÇÃO

Viajando mais uma vez para a realização da minha pesquisa de campo ao município de Irecê,

pude participar de alguns encontros que estavam sendo realizados naquela semana.

No Ciclo Um havia seis grupos de orientação, com a saída de dois orientadores de Irecê e um

de Salvador; os grupos ficaram divididos em quatro grupos; tive a oportunidade de conversar

com todos os orientadores de Irecê, são eles que estão mais diretamente em contato com os

professores-cursistas. Os grupos se reúnem semanalmente, e as reuniões são marcadas em

turnos diferentes para que com isso atendam a todos. Muitas coisas eram comuns nos encontros

de orientação do Ciclo Um, o curso tendo um currículo além da lógica disciplinar tradicional,

as dúvidas dos cursistas para o entendimento do curso eram muitas, dúvida também na

realização dos trabalhos finais solicitados pelos professores era o maior problema, é que no

Ciclo Um a comunicação com os professores de Salvador era difícil, com os computadores e a

criação da lista de discussão dos professores-cursistas facilitou muito, porque agora eles mesmo

enviam um e-mail para o professor para entender melhor os trabalhos finais.

47

Alguns grupos no Ciclo Um funcionavam melhor que outros, alguns orientadores sem dúvida

estavam mais empenhados no trabalho, era comum a reclamação dos professores-cursistas

quando alguns orientadores se ausentavam por muito tempo. No Ciclo dois melhorou bastante

com a diminuição dos grupos, porém o número de professores-cursistas em cada grupo cresceu,

e encontram assim dificuldades para certas atividades, principalmente para a orientação

individual.

Participei de um encontro de orientação no Ciclo Dois, para entender melhor como

funcionavam os encontros semanais. O tema do encontro era a discussão das cartas enviadas

com instruções pela coordenação das Atividades Registro e Produção e das Atividades em

Exercício.

Apesar da maioria seguir rigorosamente a ordem das orientações que continha na carta, cada

um encontra seu próprio caminho, é uma questão de estilo. Uns encontram facilidade com texto

dividido pelos tópicos orientados pela carta, já outros acham melhor escrever um texto corrido.

Os professores-cursistas acharam bem mais fácil a proposta da elaboração do projeto do

Ciclo Dois:

“Refletir e relatar do que já se conhece é bem mais fácil ”.

Assim com planos de ação já pensados, novas coisas vão acontecendo – a Emergência do

curso.

“Pensar no que já fez é uma reflexão sobre a própria prática exercida em sala de aula”.

(professor-cursista)

Um modelo a ser seguido pela carta da Ufba.

“Com as perguntas oferecidas na carta tenho mais facilidades em prosseguir no

relatório”. (professor-cursista)

Esta fala só demonstra a dependência e o modelo tradicional de escola que ainda carregamos.

As dificuldades encontradas por alguns professores-cursistas, seja na elaboração do projeto, ou

em atividades temáticas, são encontradas estratégias dentro do próprio subgrupo de orientação

para a superação das mesmas. Alguns professores-cursistas que estão mais avançados, seja no

48

tempo de entrega dos trabalhos ou na qualidade dos mesmos, emprestam suas produções para

os que sentem mais dificuldade na elaboração das mesmas, um momento de troca de saberes.

É uma sugestão de uma das orientadoras, que justifica: “As ideias dos outros podem ajudar

a construir nossas próprias ideias”.

Outra estratégia é um banco de textos alimentado pelos próprios professores-cursistas, textos

estes relacionados a assuntos que estão sendo estudados durante o ciclo com várias fontes

bibliográficas.

AUTONOMIA DOS PROFESSORES-CURSISTAS

Após terminar o encontro, fui conversar um pouco com um dos professores-cursistas. Além de

perceber sua desenvoltura dentro do grupo, a orientadora também o indicou para que fizesse

parte da minha pesquisa, por perceber nele um crescimento notável.

O Ciclo Um para ele foi de descobertas, da aceitação do “Novo”. O curso para ele precisava,

antes de qualquer coisa, ser entendido. Após se deparar com a ideia do curso, viveu momentos

de profunda confusão na cabeça, mas gostou do desafio. Para ele o que mais lhe chamou atenção

dentro do curso foram os Eixos Temáticos e a autonomia de escolher temas dentro das

atividades temáticas que mais lhe interessam, seja para sua prática de sala de aula ou a assuntos

novos que lhe chamam atenção, é fundamental e saber que abrangem Eixos Temáticos

necessários para a formação de um Universitário é melhor ainda.

É um professor-cursista que alimenta o Diário de Ciclo todos os dias, mesmo que não tenha

tido atividade naquele dia.

“O Diário não é do curso e sim meu, mesmo que estude textos que não foi pedido por

algum professor do curso, registro no diário, pois faz parte do meu estudo”.

Durante a conversa, ele sempre frisava em tudo de novo que o curso trazia. Fiquei com uma

preocupação após essas declarações. Será que o curso para ele será sempre de espera de coisas

novas? O que será o “novo”? Penso eu que não seja o novo como descarte do velho. Como

lembra: “Todas [...] já estão presentes neste instante, contidas uma dentro da outra, apertadas

espremidas inseparáveis” (CALVINO, 1990, p. 147).

49

Perguntei se ele se sentia autônomo dentro do Projeto. Respondeu que sim, que se sente livre

para criticar, mas sempre com sugestões, que jamais faz uma crítica sem sugestões. Que no ato

das inscrições muitas vezes essa autonomia não pode ser contemplada como o projeto se

pensava devido ao número de vagas que não há para todos e realmente “acabam se

matriculando atividades que sobram”. O que seria autonomia para ele?

Reflito analisando a autonomia que o curso proporciona aos professores-cursistas no percurso

de aprendizagem que cada um desenvolve. A conquista da autonomia – falamos de conquista, porque a autonomia é um trabalho de construção do ser humano educando-se em sociedade e suas contradições – permite o que há de mais importante na vida social das sociedades modernas, ou seja, a conquista do saber viver em liberdade do outro e construir a própria liberdade, respeitando a liberdade o outro e construir a própria liberdade na interdependência com aqueles com os quais convivemos. (MACEDO, 2005, p. 8).

O conceito de autonomia para a grande maioria dos professores-cursistas entrevistados é ter vez

e voz para criticar e sugerir na parte administrativa do curso. Será se não está faltando trabalhar

junto com os professores-cursistas o conceito de autonomia? E a equipe de orientação, como

poderá ajudar nesse percurso de aprendizagem sem que com isso os professores-cursistas não

percam a autonomia dentro do projeto?

A dependência dos professores-cursistas, visível nesse começo de curso, de sempre estar

procurando estruturas já prontas, é uma herança trazida da escola tradicional. Quando emerge,

e sempre vai emergir, dentro do curso, coisas não pensadas antes, a reação é na maioria das

vezes assim:

“Isto não foi combinado, professora”.

O impulso de construir modelos centralizados para explicar tal comportamento permanece quase tão forte quanto na época de Engels. Quando vemos formatos recorrentes e estruturas emergindo de nosso caos aparente, nossa reação imediata é procurar líderes. (JOHNSON, 2001, p. 29, grifo nosso).

Diante de tudo que vivi nesses três anos do Projeto Irecê, pude vivenciar de perto as dificuldades

para implantação de um curso universitário. Ainda mais um curso como este, que foge das

50

“grades fechadas” do currículo e mergulha no novo, não no novo como descarte do velho, mas

no novo onde o professor possa deliberar sobre o currículo e melhorar sua prática. Deliberação é mais uma atitude do que uma série de passos. O método pelo qual no intricado e qualificado processo intelectual e social do dia a dia da sala de aula, o professor, individual ou coletivamente, identifica problemas, estabelece bases para decisões nas respostas, e então escolhe entre as soluções possíveis. (CARVALHO, 1996, p. 145).

Outra coisa bastante importante que observei para o bom andamento do curso são as boas

relações com a prefeitura parceira. Qualquer atraso na verba destinada ou o não cumprimento

do combinado no que toca à prefeitura, acarreta sérios problemas para o andamento do curso.

A escolha da metodologia utilizada para a pesquisa do Pibic e consequentemente para a minha

monografia, na vivência no cotidiano do Projeto, foi de fundamental importância para o meu

entendimento sobre vários aspectos do projeto, além do sentimento e da participação como um

membro da equipe. Em um primeiro momento conheci, me encantei e mergulhei no Projeto

Irecê, pois acredito nas suas concepções e, mesmo como dificuldades que ocorreram e outras

que certamente estarão por vir, acho um grande projeto que a Universidade Federal da Bahia

está proporcionando ao sertão baiano.

Nos âmbitos pedagógicos, já são notáveis o crescimento e desenvolvimento dos professores-

cursistas após a realização de dois ciclos.

O Ciclo Um foi um ciclo de descobertas, de medos, de acertos, de erros, da aceitação do

desconhecido, de um currículo diferente do que estudaram e do que costumavam trabalhar. No

Ciclo Dois os professores-cursistas estão mais seguros, confiantes, acreditando no potencial

que cada um carrega dentro de si, o curso despertou muitos talentos que estavam escondidos ou

pouco explorados. Há um grande crescimento em cada um deles, claro, cada um ao seu tempo,

uns mais avançados, outros menos, a flecha do tempo não para. “O pensamento complexo

afronta a complexidade do tempo, entendo que não existe apenas o tempo de duas flechas, mas

também o tempo que se pode ser simultaneamente irreversível e reiterativo” (MACEDO, 2002,

p. 32 ).

51

Paro somente por um instante com esse memorial, ele “espichará” em outro momento para

frente, para trás, pros lados, e outros estarão por vir nesse intenso movimento que a vida nos

proporciona.

Naquele momento, não poderia imaginar que hoje, depois de quase nove anos, estaria fazendo

parte da equipe de orientação local da 2ª turma do Curso de Pedagogia Ufba/Irecê, um processo

formativo e autoformativo.

Formação é uma palavra que apareceu com grande significado naquele momento. Afinal, estava

vivenciando a minha: era a minha itinerância, estava na estrada literal e metaforicamente

(Salvador/Irecê ou Irecê/Salvador). Segundo Gadamer, em “formação” (Bildung) encontra-se

a palavra “‘imagem” (Bild), sendo que essa última abrange ao mesmo tempo “cópia” e

“modelo” (GADAMER, 1999, p. 50). Com essa conotação, a formação designa mais o

resultado de um processo de devir do que o próprio processo. “A começar pela própria

denominação, tão questionada – diria mesmo tão rechaçada em alguns meios, pela remissão

possível à ideia de formatação, de limitação de espaços e possibilidades” (SÁ, 2008).

A partir dessa concepção de formação e tendo em vista esses muitos cenários, com tantas

histórias e memórias, o meu fazer profissional inscreve-se também na minha história pessoal e

profissional. A implicação com a pesquisa de iniciação científica, Pibic, no Projeto Irecê, me

remete à reflexão sobre meu percurso de formação, exercitando a endoetnografia como

denomina Macedo (2008) a pesquisa em que o/a pesquisador/a se depara com sua própria

itinerância (neste caso, minha itinerância no cenário familiar da região em que nasci), buscando

sendo possível tornar “o familiar-estranho e o estranho-familiar” (MACEDO, 2008).

2.3 EXPERIÊNCIAS FORMATIVAS: UFBA, REDE UNEB 2000, UNOPAR, PAFOR, IAT

Em 2005, concluo minha graduação e, já com família formada, decido criar meu filho no

interior. Fui morar em Irecê e vou trabalhar no Curso de Pedagogia Ufba/Irecê 1ª turma. Atuo

como professora de atividades temáticas2 e participo principalmente na articulação da

2A estrutura curricular do Curso está dividida em Ciclos, que correspondem aos semestres letivos da Universidade Federal da Bahia. Durante os ciclos são oferecidas Atividades Curriculares que estão estruturadas por Eixos Temáticos. O Eixo das Atividades compreende as Atividades de Registro e Produção (diário de ciclo, memorial e produção livre); as Atividades Temáticas (seminários, projetos, grupos de estudos, oficinas, cursos e palestras) e as Atividades em Exercício. Os estudantes do Curso são chamados de professores-cursistas

52

implantação da Biblioteca do espaço Ufba/Irecê. Em 2008 inicia-se a 2ª turma, e passo a

pertencer ao quadro das professoras-orientadoras locais. Em 2009, passo a ministrar também

atividades temáticas no Curso de Pedagogia da Faced/Ufba no município de Tapiramutá/BA.

Ainda em 2005, no segundo semestre, novas experiências vão surgindo com formação de

professores; fui convidada para trabalhar como professora-orientadora no Curso de

Pedagogia/Rede Uneb 2000 na cidade de Ibititá, um marco para a minha terra Natal com o

convênio celebrado com a Universidade do Estado da Bahia, Campus XVI, Irecê/BA. Na Faci

(Faculdade de Ibititá), assim ficou conhecida, tive a oportunidade de vivenciar outra estrutura

de currículo de formação de professores. O envolvimento nas ações acadêmicas e

administrativas, como organização de seminários temáticos, orientação dos trabalhos

acadêmicos e TCC dos professores-alunos, e principalmente na elaboração junto à coordenação,

do projeto de reconhecimentos do Curso, me fizeram ter oportunidades tão significativas para

pensar as políticas de formação de professores no Brasil. Permaneci na Rede Uneb de Ibititá

até a conclusão do Curso de Pedagogia da 1ª turma.

Em 2006, fui convidada a trabalhar em uma Universidade Particular EAD, Unopar. O trabalho

como tutora nas turmas de Pedagogia me oportuniza novamente uma nova experiência de

formar professores, o Ensino a distância. Com o ingresso no mestrado tive que reduzir minha

jornada de trabalho e permaneci na Unopar até o ano de 2008.

Em 2010, inicio como professora no Programa de Formação de Professores Plataforma Freire

(Parfor). Ministrei os componentes curriculares Fundamentos Teóricos da Ação Pedagógica I

e Estágio Curricular Supervisionado no município de João Dourado/BA, no semestre 2010.2.

Com o início do Curso de Pedagogia na cidade de Ibititá, por questão de comodidade, opto em

lecionar esse mesmo componente na referida cidade no semestre que se inicia em 2011.2.

Participei de bancas de monografia de graduação e especialização na Faced/Ufba em Salvador

e na Uneb/Irecê, além de mesas-redondas e palestra em Jornadas Pedagógicas em algumas

cidades do território de identidade de Irecê.

Em 2010, ministrei o Curso oferecido pelo Instituto Anísio Teixeira (IAT): Currículo, Docência

e Práxis no ensino Médio para os professores da rede Estadual da Diretoria Regional de

Educação no território de Irecê (DIREC 21). O Curso foi coordenado pelo professor Roberto

53

Sidinei Macêdo e pela Professora Denise de Jesus Guerra. Uma pesquisa-formação na área de

currículo entre o IAT e o grupo de pesquisa coordenado pelo professor Roberto Sidinei, o

Formacce da Faced/Ufba.

Em 2011, o IAT me convoca novamente para assumir um novo projeto: Círculos de Avaliação,

que tem como objetivo instituir a cultura da avaliação institucional nas escolas estaduais e

municipais. Percorro sete municípios da Direc 21, acompanhando o projeto.

2.4 ATUAÇÃO NA REGIÃO: A LIDA

Em 2005, assumi também a coordenação técnica pedagógica da secretaria municipal de

educação de Ibititá, e foi neste locus de trabalho, como observadora do currículo em

movimento, que me permiti vivenciar o acontecer das práticas pedagógicas discutidas/refletidas

nos cursos de pedagogia que acompanharam minha itinerância formativa. Trabalhei ainda como

coordenadora em uma escola municipal na cidade de Ibipeba/Ba, município vizinho a Ibititá.

Foi com a “lida” como formadora e coordenadora que senti necessidade de fazer uma

especialização em psicopedagogia, pois me inquietava com os alunos que não acompanhavam

o ritmo de aprendizagem esperados para um bom desempenho escolar.

Os convites para trabalhos na área de educação não paravam de surgir, já não dava conta mais;

surge a HUMUS, minha empresa de assessoria em educação, e foi bastante intenso o trabalho

com formação de professores e organização de jornadas pedagógicas nas cidades de Ibipeba,

Barra do Mendes, Itaguaçú e Cafarnaum. Montamos uma equipe de colegas parceiros da região

e do grupo FEP da Faced/Ufba.

A efervescência dos Programas e Projetos do Ministério da Educação, em regime de

colaboração com os estados e municípios, me permitiu participar de muitas formações e

capacitações em cursos, jornadas e simpósios (Topa, Proletramento, Progestão, Pacto pela

educação, Círculos de avaliação)3 e atuar no território de Irecê como formadora/multiplicadora

desses projetos, algo enriquecedor e de inúmeras experiências com a educação da região.

3 TOPA – Programa do Governo do Estado da Bahia para alfabetizar Jovens e Adultos. PROLETRAMENTO – Programa de Formação de Professores na área de Leitura e Escrita. Pacto pela Educação – Programa do governo do Estado da Bahia para alfabetizar crianças até os oito anos de idade. PROGESTÃO – Programa de Formação para gestores da educação.

54

Muitos desses programas utilizaram também como proposta de formação o trabalho com

memórias. Destaco ainda o trabalho formativo com os Conselhos de que fiz parte no município

de Ibititá: Conselho Municipal de Educação, Conselho do Fundeb4 e Conselho do meio

ambiente, além de pertencer à comissão executiva que elaborou o Plano Municipal de Educação

de Ibititá (PME).

2.5 O CAMINHO PARA O MESTRADO

A experiência como pesquisadora desde a graduação e o envolvimento com grupo de pesquisa

FEP (Formação em Exercício de Professores) da Linha de Pesquisa da pós-graduação em

educação – Currículo e (In) Formação, mais precisamente no Curso de Pedagogia Ufba/Irecê,

instigaram-me a continuar a me aventurar no mundo da pesquisa.

Para preparar o anteprojeto, cursei em 2007 algumas disciplinas como aluna especial no

programa de pós-graduação da Faced/Ufba e especialmente na disciplina Epistemologia do

Educar, com o professor Dante Galeffi, e a partir do encontro com a hermenêutica

fenomenológica ocorridos nos estudos da disciplina, saí mais provocada com a temática que

queria pesquisar: Memória na Formação de Professores.

Ingressei como aluna regular do mestrado da Faced/Ufba no ano de 2008, a cada oportunidade

que surgia na Faced, nos encontros da linha de pesquisa FEP (Grupo de estudo sobre Formação

em Exercício de Professores), nas disciplinas do mestrado, na organização do I seminário do

FEP, nas comunicações dos eventos de Educação e na participação dos seminários dos outros

grupos de pesquisa, enfim, onde era possível falar sobre o que estava pesquisando, me

surpreendia, repensando nos aspectos relacionados com a dissertação ou com o campo de

pesquisa, na condição de professora-sujeito, que se reinventava, quando publicizava escrevendo

textos reflexivos e interpretando minha forma de perceber o mundo a minha volta.

A interpretação é sempre uma atividade criativa aberta à especialização hermenêutica. Dessa

maneira, Memória na Formação Docente: Um estudo do/no Projeto Irecê foi se configurando

como pesquisa a partir do momento em que me apropriei das narrativas dos percursos

4 FUNDEB – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica.

55

formativos dos professores-cursistas e a reflexão sobre as relações docentes e o “a-con-

tecerem” um Curso de Formação em Exercício.

Diante desse panorama, a trama da formação é tecida na itinerância de cada sujeito. Essa

itinerância, por sua vez, comporta também a errância5 empreendida por cada pessoa. Pensar a

formação dos educadores, nesta perspectiva, requer considerar o currículo também nessa

dimensão, compreendendo a dialógica dos processos formativos dos professores, sua práxis.

Dessa forma, pensar num currículo que contemple o autoconhecimento com vistas à

auto/interformação, mediado pelo exercício da memória e pelas narrativas das histórias de vida,

confere uma postura de autonomia ao sujeito em suas itinerâncias, pois é, para o professor, uma

possibilidade de compreensão intencional de seus percursos e de seu papel nos processos

formativos de si e do outro.

2.5.1 Divulgando a Pesquisa: Cipa, Endipe, Semoc, Simpósio Uneb, SBPC...

Uma pesquisa científica tem a pretensão de desenhar uma compreensão do real e da realidade

que se apresente como problema ou questão, produzindo, por consequência, conhecimento, ou

seja, uma crença verdadeira justificada. Por sua vez, as diversas abordagens epistemológicas

existentes no campo das investigações, tanto das ciências humanas quanto nas ciências naturais,

moldam adequadamente as indagações que fazemos, a partir das decisões que tomamos sobre

o conhecimento que produzimos.

Divulgar a pesquisa de mestrado em vários estados do Brasil foi algo bastante singular para

(re)pensar os conhecimentos produzidos. A troca de informações e aprendizagens entre os

colegas pesquisadores foi rica a cada espaço visitado, além, é claro, das belas paisagens

turísticas que enriqueceram cada viagem.

Destaco as comunicações orais no congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica (IV

Cipa) na faculdade de educação da Universidade de São Paulo; a 62ª reunião da SBPC na

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, Natal; o XV Encontro Nacional de

Didática e Prática de Ensino (Endipe) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); a

semana de mobilização científica (XIII Semoc), na Universidade Católica do Salvador; o VIII

5 Entendida conforme Macedo (2002), como momentos necessários de desordem, frequentemente fecundos à formação.

56

Colóquio Nacional e I colóquio Internacional do Museu pedagógico da Universidade Estadual

do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista e o Simpósio ‘Memória, (Auto)biografia e

Formação da Universidade do Estado da Bahia, grupo de pesquisa Grafho/PPGEdUc/Uneb.

Essa última exposição resultou na publicação do artigo apresentado no livro Memoriais,

Literatura e práticas culturais de leitura, organizado pelos professores Elizeu Clementino de

Souza e Verbena Maria Rocha Cordeiro, da Universidade do Estado da Bahia.

2.6 O DOUTORADO: O ESQUECIMENTO DO ESQUECIMENTO

As pesquisas na área de currículo, historicamente, pouco têm investigado as correlações entre

Memória e esquecimento... e a literatura especializada pouco tem trazido contribuições acerca

dessa articulação. Quanto às implicações entre currículo e memória, há uma vasta literatura e

experiências teórico-metodológicas em cursos de formação espalhados por todo o País.

Participei do IV Cipa (Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica) na Universidade

de São Paulo e observei que a grande maioria das pesquisas e relatos de experiências

apresentados focalizavam a memória, por meio de uma supervalorização do ato de

lembrar/rememorar para a formação de professores.

O desejo de interpretar e compreender os afetamentos da formação, a partir do trabalho com

Memórias e as configurações dessas implicações nos contextos pessoais e profissionais

daqueles professores-cursistas, era algo que me acompanhava desde minha graduação. Assim

como eles, que construíram seus memoriais desde o processo seletivo do curso, a proposta da

monografia que elaborei no final da graduação foi relatar analiticamente a minha itinerância no

Projeto Irecê através de um texto-memorial, já que havia vivenciado intensamente o projeto

desde sua implantação, vale ressaltar que o primeiro da Faced/Ufba aprovado como Trabalho

de Conclusão de Curso (TCC).

Foi “o registro de um processo, de uma travessia, uma lembrança refletida de acontecimentos

dos quais somos protagonistas” (PRADO; SOLIGO, 2005). Basicamente, é usar a ideia de

Bosi (1997, p. 48) para quem “O passado não é o antecedente do presente, é sua fonte”.

Durante os dois anos de investigação na pesquisa de mestrado, fui tecendo os fios que

construíam o trabalho formativo com memória(s) e formação. Durante a imersão nos

memoriais pesquisados, entrevistas e grupo focal, foram surgindo novas inquietações, as quais

nos inspiraram para esta pesquisa.

57

Entre o Esquecer e o Lembrar: o lugar do esquecimento na formação docente tem a

intenção de apresentar as tramas sobre o lugar do esquecimento na formação de professores.

Desse modo, surgem algumas questões: Que lugar ocupa o esquecimento para a formação

docente? Quais são as possibilidades de potencializar suas implicações no continuum formativo

docente?

2.7 GESTORA DA EDUCAÇÃO - MUNICÍPIO DE IBITITÁ

Segundo semestre de 2012, mais uma greve da Ufba, e as eleições municipais afloram por todo

o País. Participei ativamente da construção de um plano de governo para disputar as eleições

do município de Ibititá, fui indicada pelo grupo vitorioso e pela própria APLB para assumir a

pasta da educação da gestão 2013-2016. Em outubro de 2012, no Cipa, a cabeça fervilhando

com as discussões em torno da memória e do esquecimento e as dúvidas, se assumiria ou não a

nova missão. Afinal, coincidiu com o caminho para a pesquisa do doutorado. Ao apresentar

meu artigo, um recorte do meu projeto de pesquisa, despertou no público um interesse notório

para discutir o esquecimento na formação de professores.

O convite de caráter irrevogável estava associado ao meu perfil de educadora no município, e

da filha da terra que poderia contribuir com a educação do seu município. E assim sendo, tornei-

me Dirigente Municipal de Educação, e estou neste cargo, dando a continuidade à história da

Educação da minha cidade.

As atividades da secretaria ramificaram-se em outras atividades que articularam projetos e

programas com outros municípios, o contato com os colegas secretários e prefeitos nos

possibilitou uma articulação com os novos municípios parceiros do Projeto Irecê. Ibititá, Lapão,

Barra do Mendes e João Dourado. Os primeiros municípios a oferecerem o Curso do Mestrado

Profissional da Faced/Ufba: Irecê, Ibititá e Lapão e a especialização em currículo escolar: Barra

do Mendes e João Dourado. Assumi também a docência em um curso de enfermagem na

Faculdade de Irecê (FAI). A possibilidade de trabalhar com Memoriais em um curso de saúde

foi bastante instigante, a disciplina Integração nos permitia avançar com a diversidade de

linguagens, e o enfoque na autoformação dos enfermeiros com o trabalho com o memorial.

58

A atividade acadêmica, sintetizada neste memorial descritivo, possibilitou estar aberta a uma

experiência formativa, que é preciso o retorno para si através do contar, narrar, relatar suas

próprias experiências. É necessário, também, correr o risco das desorganizações, das escolhas

e percursos, das errâncias e dos desequilíbrios de ser o que se é. Trata-se de uma perspectiva

que pressupõe um sujeito protagonista de seu percurso de formação e dos diálogos que

estabelece sobre sua atuação profissional.

Remexer, vasculhar, revolver da memória lembranças de alguns momentos formativos foi um

exercício de rememorar minhas próprias experiências, a fim de perceber o caminho do

esquecimento nas minhas memórias.

Qual! Não posso interromper o memorial; aqui me

tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade,

dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem

sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis

59

CAPÍTULO II 3 AS MEMÓRIAS COMO DISPOSITIVO DOS CURRÍCULOS DE FORMAÇÃO DE

PROFESSORES

Logo de partida, há logo de enunciar que há aqui um duplo desafio na escrita: nesse espaço textual

– o capítulo dois – é delimitado o mar dos contextos. Nele apresento o contexto que desenha o

crescente uso das narrativas (auto)biográficas na formação de professores e, por conseguinte, o

contexto que desenha a construção da pesquisa aqui textualizada. Por essa característica, o

capítulo dois carrega em si o espírito de Ulisses: as ideias, autores, referências que constroem

essa parte do texto hão de aventurar-se em cada outro pedaço desse mar que chamamos Tese.

As aventuras de Ulisses nos ajudaram – leitores e autora – a adentrar a textualidade da pesquisa.

Agora, uma outra aventura nos abre caminho, a saber, a aventura (auto)biográfica, a aventura que

nos faz perguntar sobre a memória quando assumido o caráter formativo das narrativas de vida e

formação em cursos de formação de professores em exercício. E as escolhas das palavras já

anunciam a característica primeira desse capítulo: A Aventura (auto)biográfica: teoria e empiria

é título de coletânea de textos organizado por Maria Helena Menna Barreto Abrahão e publicada

no ano de 2004. Considerado um dos referenciais clássicos para os estudos do método

(auto)biográfico no Brasil, o livro pode ser colocado como uma das diversas publicações que

surgem no cenário das pesquisas em educação quando fortalecidas as associações e grupos de

pesquisas que tomaram para si a proposta do giro epistemológico proposto por Pineau.

Como é preciso escolher onde iniciar a aventurar-se, a Tese, caminhando entre as questões sobre

a memória, toma como ponto de partida a construção do campo de estudos sobre o método

(auto)biográfico no Brasil, o contexto que nos ajuda a compreender o desenho da pesquisa.

A história da formação dos educadores no Brasil revela limites e contradições em seu contexto

sociopolítico. Diversas pesquisas6 sobre a História da Educação no Brasil demonstram que as

diferentes e contínuas reformas educacionais de cada período histórico refletiam uma concepção

de formação como meta, em uma perspectiva dicotômica e com a finalidade de moldar os sujeitos

aos objetivos e necessidades da sociedade de cada época, sem atentar para a formação do sujeito

na sua história de vida pessoal e profissional. Muito diferente do que concebe Ricuer (2010),

6 Lelis (1993), Oliveira (1994), Reis Filho (1981), Pereira e Teixeira (1999) e Pimenta (1995).

60

narrar a vida é fazer metáfora da vida. Acho que esse é um bom movimento para pensarmos a

poesia da narrativa na/da formação: da meta para a metáfora.

Segundo Jussara Macedo (2003), as primeiras tentativas de formação docente para o ensino

primário aparecem em 1830 quando se criou a primeira Escola Normal Brasileira fundada em

Niterói, Rio de Janeiro. Nessa época, a Escola Normal nunca contou com leis ou regimentos

próprios, que determinassem critérios para a escolha de professores capacitados para o ensino,

pois a única exigência legal era de que os candidatos possuíssem boa saúde física e mental, além

de que fossem de boa conduta (GATI apud OLIVEIRA, 1994). Dessa forma, percebe-se que a

formação exigida ao professor no Período Imperial referiu-se apenas à circunspeção da saúde e

da moral do indivíduo, não existindo, portanto, qualquer menção a competências pedagógicas ou

ao nível de estudo.

Na República até a década de 1930, as legislações que vigoraram estabeleciam a formação do

professor através da transmissão de uma cultura geral. As disciplinas que faziam parte do

currículo evidenciavam as questões teóricas dissolvendo os princípios pedagógicos.

Com o Movimento da Escola Nova (1932), o eixo de atenção voltou-se para o método e para o

aluno. As questões relativas ao processo ensino-aprendizagem passaram a ser o foco dos estudos,

nos centros de formação dos professores. Em 1939, o curso de Pedagogia é regulamentado, e os

bacharéis poderiam atuar na administração pública e na área de pesquisa. Já os licenciados, com

um ano de estudos em Didática e Prática de Ensino, poderiam lecionar no ginasial.

As próximas alterações no regime de ensino, relacionadas à formação de professores, só

ocorreram na década de 60 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional7 de 20 de

dezembro de 1961 (LDB 4024/61). Criou-se um currículo mínimo para o bacharelado em

Pedagogia, com sete disciplinas determinadas pelo Conselho Federal de Educação, além de outras

duas abertas, definidas a critério das próprias instituições de ensino. Em 1962 o estágio

supervisionado e o currículo da licenciatura em Pedagogia foram regulamentados, e o curso

passou a ter entre as disciplinas obrigatórias Psicologia da Educação e Didática e Prática de

Ensino.

7 Doravante LDB.

61

Nesta década de 1960, o Brasil passou por um período de efervescência política liderado pelos

militares – com o Golpe Militar de 1964. Assim, com a finalidade de reproduzir na escola os

valores políticos do golpe, mais reformas educacionais foram elaboradas, inclusive a Reforma

Universitária, em 1968, que possibilitou aos cursos de Pedagogia oferecer as habilitações

Inspeção Educacional, Administração, Orientação e Supervisão Escolar e Magistério. Porém,

em 1969 a divisão entre licenciatura e bacharelado na Pedagogia acabou, e as instituições foram

obrigadas a formar no mesmo curso os professores, que iriam lecionar nas Escolas Normais, e

os "especialistas", como supervisores e inspetores.

A partir da década de 1970, devido às necessidades de qualificação de mão de obra para o

mercado de trabalho, o Magistério tornou-se profissionalizante e ganhou caráter finalizador,

sendo lecionado em nível de segundo grau, a LDB de 1971 unificou o Ensino Médio, antes

dividido em Clássico, Científico e Normal. Assim, a Escola Normal passou a se chamar

Magistério e os que a cursavam mantiveram o direito de lecionar da 1ª à 4ª série. Uma

contextualização da construção das metas, e poderíamos pensar como os cursos de formação

tratam tais metas ao longo da história, os modelos de egressos que são construídos e assumidos

com propostas curriculares meramente técnicas e objetivas para o mercado de trabalho. De

acordo com Pimenta (1995, p. 57):

A Lei 5692/71 possibilitou um profundo estrago na formação de professores primários – acabou de desmontar um ensino que vinha precário e não acenou com nenhuma possibilidade de melhoria real. As pesquisas realizadas após alguns anos de implementação dessa Lei não apontam nenhum avanço na formação de professores.

A realidade da formação dos educadores até este período propiciou um certo desgosto aos

profissionais da educação, e, então, algumas propostas começaram a emergir. Assim, na década

de 1980, nasceram dois movimentos marcantes sobre a formação de professores: o de

revitalização do Ensino Normal e o de reformulação dos cursos de Pedagogia. Em 1982,

surgiram os Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (Cefams),

criados pelo Governo Federal para aprofundar a formação de professores em nível médio com

carga horária em período integral.

Porém, é a partir dos anos 1990 que discussões se intensificam e que ocorrem algumas

(re)formulações legais na educação, incluindo-se aí a formação dos educadores. O destaque

pode ser dado para a promulgação da LDB 9394, de 1996, que, no seu artigo 87º, versa sobre a

62

exigência da formação superior para os professores da Educação Infantil e séries iniciais do

Ensino Fundamental. A partir desta Lei, algumas diretrizes e referenciais foram criados,

regulamentando práticas educativas no País, inclusive, quanto à formação de professores8. O

acesso ao nível superior, negado anteriormente, tornou-se obrigatório.

3.1 AS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES PÓS-LDB 9.394/1996

A formação de professores em exercício aparece no cenário nacional a partir da LDB 9394/96,

das Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação Básica, das Reformas

Curriculares dos Cursos de Licenciatura, da expansão da educação em campos não formais, das

mudanças sociais, político-econômicas, educacionais e, sobretudo, no âmbito da produção do

conhecimento que impõe novos paradigmas, novas formas de pensar e agir do homem na sua

relação consigo mesmo, com outros homens e com o mundo.

Além dessa “obrigatoriedade” da formação em nível Superior para o educador, a partir da LDB

9.394/96 vários pareceres e resoluções determinaram os novos rumos para a educação

brasileira. De acordo com Macedo (2003), a Resolução 02/1997 abriu espaços para que outros

profissionais se tornassem professores ao permitir que qualquer portador de diploma superior

através de uma complementação pedagógica mínima de 540 horas possa exercer o magistério

na educação básica. Tal resolução parece retomar a concepção das licenciaturas curtas dos anos

de 1970.

A autora critica a visão tecnicista e fragmentada da formação do professor da educação básica

evidenciada pela criação dos Institutos Superiores de Educação (Resolução 01/1999). Observa

que, retirando a formação do professor do ambiente acadêmico, promove-se uma desvinculação

entre o ensino, pesquisa e extensão, uma vez que as ISEs9 não terão obrigação com o

desenvolvimento de pesquisas como as universidades.

8 Como exemplo citamos duas legislações que têm relevância no tema: Parecer CNE/CP nº 5/2005, incluindo a emenda retificativa constante do Parecer CNE/CP nº 3/2006, publicados no DOU de 15 de maio de 2006 e no DOU de 11 de abril de 2006 e a Resolução CNE/CP 1/2006, publicada no DOU de 16 de maio de 2006, Seção 1, p. 11, que instituem as diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. 9 Instituições de Ensino Superior.

63

Para Souza (2003), a Lei nº 9.394 e as políticas implementadas pelo Conselho Nacional de

Educação privilegiam a implantação da certificação, confundida com qualificação docente

quando desloca a formação do professor/professora das universidades e faculdades para as

ISEs. O autor afirma que a LDB não contempla os estudos, pesquisas e proposições de entidades

da educação brasileira, como a Ande, Anped, Anfope10.

A Anfope, a partir da realização de diversas pesquisas, propõe princípios políticos para a

formação dos profissionais da educação, levando-se em consideração a estrutura

socioeconômica do Brasil, bem como suas implicações no campo educacional e na escola, no

contexto da economia neoliberal. A instituição que sinaliza como um dos pilares para a

formação docente, uma formação teórica de qualidade que busca, entre outros aspectos, a

problematização da educação enquanto disciplina, a compreensão da totalidade processo do

trabalho do professor/professora e a luta contra o aligeiramento da formação profissional, critica

“propostas neo-tecnicistas que pretendem transformá-lo em um ‘prático’ com competência para

lidar exclusivamente com os problemas de sua prática cotidiana”. (SOUZA apud ANFOPE,

2003, p. 35).

A aprovação da LDB se dá no momento de grandes transformações contemporâneas, em que a

economia brasileira é redirecionada de acordo com princípios neoliberais, em que a lógica

desenvolvimentista visa atender aos interesses da expansão do capital internacional, o Estado

prevê a diminuição com os gastos sociais, o fosso entre as economias desenvolvidas e as

subdesenvolvidas se amplia, o indivíduo passa a ser visto como consumidor. A educação, como

parte integrante desse todo social e responsável pela formação da mão de obra é mais uma vez

atrelada às exigências do mercado, sendo que escola é transformada também em consumidora

para atender aos interesses do capital.

Nesse contexto, as políticas de formação de professores implementadas a partir da Lei nº

9.394/1996, que propõe um currículo centrado no desenvolvimento de competências, estão

vinculadas “a uma concepção produtivista e pragmatista na qual a educação é confundida com

informação e instrução, com a preparação para o trabalho, distanciando-se do seu significado

mais amplo de humanização, de formação para a cidadania” (SHEIBE, 2002, p. 53).

10Associação Nacional de Educação, Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação, Associação Nacional para Formação dos profissionais da Educação.

64

Analisando as políticas propostas para a formação de professores a partir da referida LDB,

Veiga (2002) afirma que as mesmas estão baseadas na perspectiva de formação do professor

como tecnólogo do ensino. Esta concepção está imbricada num projeto relacionado ao projeto

de sociedade globalizada neoliberal, sob as orientações de organismos internacionais como o

Banco Mundial.

Analisando o conjunto de competências definidas pela reforma curricular para a formação

docente para professores da educação básica, a autora afirma que a concepção da competência

como núcleo central do processo formativo representa “uma tentativa de racionalização

pedagógica”. Isso fortalece o caráter instrumental dos cursos de formação e reforça a dicotomia

teoria-prática/ensino-pesquisa. Essa concepção abre a possibilidade para uma formação

descontextualizada sócio e politicamente, pois não levam em consideração as demandas sociais

e reduzem o professor a um “profissional tarefeiro, mero executor de atividades rotineiras,

acríticas e burocráticas” (VEIGA, 2002, p. 78-79).

Contrapondo-se a essa perspectiva, a autora defende a formação do professor como agente

social, em que a educação é concebida como “uma prática social e um projeto lógico de

emancipação”. Desse modo, a implementação de políticas de formação docente devem

contemplar as lutas históricas da categoria como a “formação inicial e continuada até as

condições de trabalho, salário, carreira e organização da categoria” (VEIGA, 2002, p. 82).

Nesse breve histórico, notou-se que a formação do educador sempre atendeu as perspectivas

externas das demandas sociais – não que não acredito que não precisa atender, mas não somente

elas, não queremos aqui recair na crítica que Bourdieu faz ao método autobiográfico, onde há

a anulação do social/coletivo e parte para as subjetividades cruas, comungo da ideia de Mena

Abrahão (2004), a viagem autobiográfica carregam em si o social. A formação era entendida

como um processo de fora para dentro do sujeito, e o caráter teórico, técnico ou estritamente

prático servia para treinar o educador nas atividades do ensino. A partir da década de 1990, se

intensifica a produção de pesquisas11 que apontam a necessidade da compreensão da formação

como um processo que ocorre na vida do sujeito e, desse modo, a formação começa a ser

percebida como um processo que não termina com o fim da escolarização, seja no Magistério

ou no curso de Pedagogia. As experiências formativas dos percursos da vida dos sujeitos, nas

11 Algumas publicações que se dedicam a essa temática: Alves (2001), Delory-Momberger (2008), Freire (1996), Joss (2004), Nóvoa (1992), Sá (2005), Souza (2004, 2008) e Tardif (2000, 2002).

65

esferas pessoal e profissional, começam a ser entendidas como referências que compõem o

saber-ser e saber-fazer do professor. Um destaque que sempre faço nesse contexto é a

publicação do livro Formaçãodeprofessores:pensarefazer(1992).Nele há texto “A construção

do conhecimento e o currículo dos cursos de formação de professores na vivência de um

processo; Neotecnicismo e formação do educador”, de Nilda Alves. Uma produção

emblemática para a época por já apresentar esse deslocamento do sujeito da/na formação.

A partir da compreensão historicamente constituída acerca da formação de professores, no

Brasil, foi possível lançar a possibilidade de se pensar com um outro olhar sobre a formação de

professores, para problematizar a tendência à homogeneização do sujeito e de sua formação e,

assim, provocar possíveis deslocamentos e possíveis rupturas que levem a possíveis

(re)direcionamentos de (re)pensar o sujeito-professor.

Nesse sentido, a abordagem (auto)biográfica nas Ciências Humanas e Sociais que surge na

Alemanha, com os trabalhos de Wilhelm Dilthey (1833-1911), tenta superar a ruptura dos

modelos positivistas. Dilthey coloca a reflexividade autobiográfica no centro do paradigma

compreensivo e toma a autobiografia como modelo hermenêutico para a compreensão do

mundo humano. As (auto)biografias como procedimento pedagógico de formação são

introduzidas no contexto universitário da formação de adultos, em países de língua francesa,

por volta dos anos 1970/1980, momento em que o Brasil institucionaliza os memoriais

(PASSEGI, 2006a, p. 68). O trabalho realizado por Desroche, na Escola Prática dos Altos

Estudos de Paris (EHESS) é lembrado por Pineau (1999) como uma iniciativa pioneira da

abordagem autobiográfica. Para Desroche (1990), aprendizagem e autobiografia caminham

juntas na escrita de si que ele denominou autobiografia refletida (autobiographie raisonnée),

concebida como um retorno reflexivo do sujeito “sobre seu trajecto para dele construir um

projecto de procura-ação-formação”, conforme afirma Pineau (1999, p. 331). As práticas que

se desenvolveram, quase simultaneamente em Montreal (Pineau), Genebra (Dominicé), Paris

(Courtois/Bonvalor), Louvain-la-Neuve (de Villers).

Fizeram o objeto de uma primeira troca em 1981, em Montréal no programa do simpósio da Rede Internacional de Formação e Pesquisa em Educação Permanente, visto que essas práticas revelaram o potencial formador de uma reflexão sobre sua trajetória de vida. Assim, a corrente pedagógico-biográfico se constituiu no fim dos anos 70 e se desenvolveu durante os anos 80. (JOSSO, p. 133, grifo nosso).

66

A pesquisa (auto)biográfica em contextos de formação e metodologia de pesquisa forma é plena

de significado, em que o sujeito se desvela, para si, e se revela para os demais. Para Abrahão,

“Produzir pesquisa (auto) significa utilizar-se do exercício da Memória como condição sine

qua non” (2004, p. 202). Esse processo de construção tem na narrativa a qualidade de

possibilitar a autocompreensão, o conhecimento de si, daquele que narra sua trajetória.

Em Portugal e no Brasil, essa abordagem é introduzida notadamente no contexto da formação

docente, pelos trabalhos de Antônio Nóvoa (1995a, 1995b, 1992), que se formou na escola de

Genebra. “Mas é sob a denominação de história de vida em formação que essa corrente assume

o caráter de um movimento socioeducativo em torno de uma associação internacional”

(PASSEGI, 2010, p. 30); destacamos os trabalhos pioneiros: Josso (2002), Nóvoa (2000),

Pineau (2004) e Dominicé (2006).

Diversas pesquisas12 engrossam a literatura atual sobre esta temática e apontam para a

necessidade de se considerar o profissional da educação como um sujeito em formação

permanente que busca suas referências nos saberes profissionais e experienciais construídos em

suas vivências pessoais e no trabalho. O processo formativo “não se dá em um vazio histórico

e social, mas sim através de sujeitos sociais e individuais complexos, determinados e

determinantes (portanto instituintes), ao mesmo tempo” (BARBOSA, 1998, p. 76).

Comungamos com Moita (1995), que considera a pesquisa (auto)biográfica a metodologia

como potencialidades de diálogo entre o individual e o sociocultural, já que “põe em evidência

o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para

ir dando forma à sua identidade num diálogo com seus contextos” (p. 113).

De acordo com esta perspectiva, a formação de educadores com a pesquisa (auto)biográfica

procura levar em consideração o caráter subjetivo e dinâmico das teias construídas pelos

sujeitos em seus percursos e necessita atentar para as imbricações do currículo neste processo.

Diante desse cenário, a trama da formação é tecida na itinerância de cada sujeito. Essa

itinerância, por sua vez, comporta também a errância13 empreendida por cada pessoa. Pensar a

12 Algumas publicações que se dedicam a esta temática: Nóvoa (1992, 1995), Alves (1993), Moreira (1994), Hypolito (1997), Nunes (2001), Monteiro (2001) e Tardif (2002). 13 Entendida conforme Macedo (2002), como momentos necessários de desordem, frequentemente fecundos à formação.

67

formação dos educadores, nesta perspectiva, requer considerar o currículo também nessa

dimensão, compreendendo a dialógica dos processos formativos dos professores, sua práxis.

Dessa forma, pensar num currículo que contemple o autoconhecimento com vistas à

auto/interformação, mediado pelo exercício da memória e pelas narrativas das histórias de vida,

confere uma postura de autonomia ao sujeito em suas itinerâncias, pois é, para o professor, uma

possibilidade de compreensão intencional de seus percursos e de seu papel nos processos

formativos de si e do outro.

Neste contexto, a proposta do trabalho com memórias na formação de professores estaria em

conformidade com o pensamento de Gadamer (2003, p. 154), no que diz respeito à compreensão

do indivíduo a partir do conhecimento histórico: A verdadeira intenção do conhecimento histórico não é explicar um fenômeno concreto como caso particular de uma regra geral, mesmo que esta última fosse subordinada aos desígnios puramente práticos de uma eventual previsão. Seu verdadeiro objetivo, mesmo utilizando-se de conhecimento gerais, é, antes, compreender um fenômeno histórico em sua singularidade em sua unicidade.

Ainda que Gadamer (2003) aqui se refira ao conhecimento histórico, em virtude da natureza

epistemológica própria das ciências humanas, entendemos ser possível estender essas

formulações, não apenas ao conhecimento histórico – entendido como algo específico das

ciências históricas –, mas ao conhecimento em geral acerca do homem, na visão de que o

conhecimento do/e sobre o homem é sempre de caráter histórico.

Nenhuma aproximação, teórica ou prática, no processo de ensino-aprendizagem é neutra, as

experiências de vida que os docentes trazem na memória têm um efeito em suas práticas

profissionais. Os estereótipos, algumas vezes observados em sala de aula, a despeito de uma

formação intelectual possivelmente consistente, podem ser ressonâncias de situações

experimentadas pelo educador em algum momento cotidiano de sua vida. Fazer, então, com

que cada professor perceba a si mesmo, incentivando um pensar crítico sobre os significados

de suas ações pessoais – o que pensam e como experimentam as coisas, como olham o mundo

e o que fazem em sala de aula – tem sido uma alternativa metodológica para a concretização

dos pressupostos teóricos de processos de ensino-aprendizagem que tenham o sujeito e a cultura

como pontos de referência. Contudo, é preciso enfatizar que o conceito de memória aqui

empregado não se refere apenas às lembranças ou a uma faculdade psíquica. A memória institui-

68

se a partir da lembrança, mas também, e principalmente, com o seu relato. A memória torna-se,

em suma, a narrativa do que é memorado (FERREIRA apud FEITOSA, 2005).

Para os professores, trazer à memória aspectos importantes do processo de formação

profissional pode se constituir num instrumental importante para essa interpretação da “vida

interior”, como também no desenvolvimento da (auto)crítica e compreensão de sua prática

docente. Kenski, em seu texto Memória e prática docente, afirma que a análise crítica das

diversas situações vivenciadas pelos professores abre caminhos para que estes possam superar

ou reformular concepções pessoais sobre práticas envolvidas no processo de ensino-

aprendizagem. Dentro do contexto de análise das experiências vividas e de nossa percepção de

realidade, Russell (1977) observa, por sua vez, que:

Na vida quotidiana assumimos como certas muitas coisas que, se as examinarmos melhor, descobrimos serem tão contraditórias que só uma reflexão demorada permite que saibamos em que acreditar. Na busca da certeza é natural que comecemos pelas nossas experiências imediatas e, num certo sentido, sem dúvida que o conhecimento deriva delas.

A memória é uma experiência histórica indissociável das experiências peculiares de cada

indivíduo e de cada cultura. Conforme nos lembra Bosi (2003), existe um substrato social da

memória articulada com a cultura, tomada em toda sua diversidade estética, política, econômica

e social, a memória é contextual. Benjamim (1994 apud DUTRA, 2002, p. 372) argumenta que

na narrativa “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a

relatada pelos outros”, na narrativa contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida

pelo outro, o ouvinte. Schmidt (1990 apud DUTRA, 2002, p. 372) complementa a ideia:

A narrativa é preciosa, pois conecta cada um à sua experiência, à do outro e à do antepassado, amalgamado o pessoal e o coletivo. E o faz de uma maneira democrática ou, mais precisamente, da única maneira possível para que uma prática social seja democrática – fazendo circular a palavra, concedendo a cada um e a todos o direito de ouvir, de falar e de protagonizar o vivido e sua reflexão sobre ele.

Assim, entendemos que trabalhar com memória na pesquisa e/ou no ensino é partir para a

desconstrução/construção das próprias experiências, tanto do professor/pesquisador como

também dos sujeitos da pesquisa e/ou do ensino, a narrativa é construção de si, do outro, do

mundo.

69

O rememorar as próprias experiências é um exercício que pode favorecer a presença da

subjetividade, ou seja, “[...] o sujeito tende a destacar situações, suprimir episódios, reforçar

influências, negar etapas, lembrar e esquecer” (CUNHA, 1997). Este mosaico de situações

torna-se, no entanto, significativo, e as aparentes contradições encontradas podem ser

exploradas com fins pedagógicos. Para tal, é exigido entender, antes de tudo, que as apreensões

que se constituem as narrativas dos sujeitos são a sua representação própria da realidade e,

como tal, são passíveis de reinterpretações. A compreensão, “processo pelo qual com a ajuda

de signos percebidos do exterior através dos sentidos, conhecemos uma interioridade”

(DILTEY apud TOURINHO; SÁ, 2002), se faz “a partir da própria vida” encarada como

sentido, como experiência conhecida a partir de dentro, já que a experiência concreta e não

especulação deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada para uma teoria das ciências do

espírito (TOURINHO; SÁ, 2002). Para Berger e Luckmann (1985), estas análises têm particular

importância para a sociologia do conhecimento porque revelam as mediações existentes entre

universos macroscópicos de significação, objetivados por uma sociedade e os modos pelos

quais estes universos são subjetivamente reais para os indivíduos.

Josso enfatiza a preocupação pela objetividade, indissociável da preocupação por um

fundamento científico nas “ciências humanas”, cria uma tensão entre a compreensão interior

indispensável à abordagem da singularidade e a explicação, pela estrutura e pelos tipos, que

tende para uma dissolução do singular em proveito de uma generalização. A autora apresenta

ainda o sentido contemporâneo do aprender consigo a aprender como categoria de análise das

histórias de vida, propõe, no seu livro Experiências de Vida e Formação, a interpretação das

narrativas a partir dos níveis: Nível um – evidência do processo de formação; Nível dois –

evidência do processo de conhecimento; Nível três – evidência dos processos de aprendizagem

(JOSSO, 2004).

Outro aspecto importante é que o trabalho com as narrativas se torna profundamente formativo,

na medida em que proporciona transformações e redirecionamentos nas práticas de ensino-

aprendizagem. Como bem expressa Ferrer, “[...] compartir a historicidade narrativa e a

expressão biográfica dos fatos percorridos se converte em um elemento catártico de des-

alienação individual e coletiva, que permite situar-se desde uma nova posição no mundo”.

(FERRER apud CUNHA, 1997). Assim, “O nosso pensamento não pode ir além da própria

vida, não tentamos encontrar ideias por detrás da vida porque é a partir da própria vida que

70

temos que desenvolver o nosso pensamento e é para ela que orientamos as nossas questões”

(PALMER, 1997 apud TOURINHO; SÁ, 2002, p. 8).

Por certo, o professor constrói sua performance a partir de inúmeras referências. Entre elas está

sua história familiar, sua trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com o ambiente de

trabalho, sua inserção cultural no tempo e no espaço. Provocar para que ele organize narrativas

destas referências é fazê-lo viver um processo profundamente pedagógico, no qual sua condição

existencial e social. Através da narrativa ele vai (re)descobrindo os significados que tem

atribuído aos fatos que viveu e, assim, vai (re)construindo a compreensão que tem de si mesmo.

Ricoeur (1986) nos chama a atenção para a preocupação com um procedimento compreensivo

dos outros e da história que tenha “validade universal”, “arrancando-se do imediatismo da

compreensão dos outros”, a fim de compreender o autor melhor do que ele mesmo se

compreendeu” (RICOEUR, p. 142-145).

Na perspectiva de Kenski (1994), o narrado é praticamente uma reconceitualização do passado

a partir do momento presente, e esta condição qualifica a reflexão contextualizada, ou seja,

aquela que ressignifica o vivido. Shor, em diálogo com Freire, reforça esta perspectiva,

afirmando que, constantemente, devemos pesquisar as palavras faladas e escritas dos estudantes

para saber o que eles sabem, o que eles querem e como eles vivem, “[...] porque as suas falas e

seus textos são um acesso privilegiado a suas consciências” (FREIRE; SHOR, 1987, p. 20).

A perspectiva de trabalhar com as narrativas tem o propósito de fazer a pessoa tornar-se visível

para ela mesma. O sistema social comumente envolve as pessoas numa espiral de ações sem

uma reflexão necessária. “Acabamos agindo sob o ponto de vista do outro, abrindo mão da

nossa própria identidade, da nossa liberdade de ver e agir sobre o mundo, da nossa capacidade

de entender e significar por nós mesmos” (CUNHA, 1997). Para o educador, esta perspectiva é

problemática, porque não só ele se torna vítima desta armadilha, como não consegue estimular

seus educandos a que se definam a si mesmos como indivíduos.

Contudo, diferentemente da ação humana tradicional, motivada pelos costumes, tradições,

hábitos e crenças, quando o indivíduo age movido pela obediência aos hábitos fortemente

enraizados em sua vida, é preciso desenvolver a condição da racionalidade prática, que é criada

pelos conhecimentos e saberes do indivíduo. Neste sentido, Pérez Gomez (apud NÓVOA,

1995) afirma que o professor tem de ser o sujeito da análise que faz de seu próprio cotidiano,

71

implicando a imersão consciente do homem no mundo de sua experiência, num mundo

carregado de conotações, valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas,

interesses sociais e cenários políticos.

Esta compreensão é fundamental para aqueles que se dedicam à análise de depoimentos, relatos

e recuperações históricas, especialmente porque a estes se agregam as interpretações do próprio

pesquisador, numa montagem que precisa ser dialógica para poder efetivamente acontecer.

Discutir as memórias na formação do professor é procurar tornar possível sua intervenção na

construção do seu espaço pedagógico, para que ele não seja mais um produto dos saberes, mas

que ocupe um lugar na construção do seu saber.

Conforme Gadamer (2003), em seu texto O problema da consciência histórica, o homem na

contemporaneidade tem a possibilidade de ter total consciência da historicidade do tempo

presente e da relatividade de toda opinião, diferentemente das antigas tradições, fechadas em si

mesmas. Como consequência, visões de mundo – até mesmo as mais antagônicas – devem

formar um todo compreensivo e coerente. A necessidade de compreensão de múltiplos pontos

de vista, que nos coloca na perceptiva do “outro”, exige de nós a constituição de um certo senso

histórico, que deve ser entendido como “a disponibilidade e o talento do historiador para

compreender o passado a partir do próprio contexto em que ele emerge” (GADAMER, 2003,

p. 122). O entendimento deste senso histórico é particularmente importante para nosso trabalho,

em virtude do objeto com o qual trabalhamos, ou seja, o memorial no processo de formação do

professor. Assim, ter um senso histórico apurado é superar, de modo consistente e consequente,

a ingenuidade do senso comum que nos leva a julgar o passado a partir de medidas

supostamente evidentes da atualidade.

De modo específico, a consciência contemporânea assume com o senso histórico uma posição

crítica reflexiva com relação a tudo que é comunicado pela tradição. Tal atitude reflexiva

denomina-se “interpretação” (GADAMER, 2003), pois, quando um significado de um texto

qualquer não é de imediato compreendido, uma interpretação é necessária, resultando na

explicitação das condições que conduziram o texto em questão a ter esse ou aquele significado.

De modo geral, a interpretação é aplicada não apenas aos textos, mas, de forma mais

abrangente, a tudo que nos é transmitido pelas tradições. No processo de interpretação é exigido

olhar para além do sentido mais imediato em virtude deste nos chegar, em certa medida,

72

mascarado ou mesmo deformado por alguma ideologia. Para tanto, é necessário, antes de tudo,

um “estranhamento” em relação ao que deve ser interpretado, pois o que é imediatamente

evidente não requer interpretação. Para as ciências humanas na contemporaneidade, todo

material com que ela trabalha – e aí incluímos o memorial – requer uma interpretação crítica,

sendo esta uma postura decisiva e fundamental.

Somos conduzidos a uma mudança de perspectiva no que diz respeito à abordagem do homem

em seus aspectos mais humanos. Esta nova perspectiva descarta, entre outras coisas, a

possibilidade de uma observação científica absoluta e direta com a realidade – que é sempre a

realidade humana –, e coloca em pauta os projetos do homem e seu sentido para este. A memória

é um desses projetos. Diz-nos Heidegger (1998 apud TOURINHO; SÁ, 2002): “A memória é

a concentração do pensamento. Em relação a quê? Em relação a isso que nos atém ao modo

próprio de ser, à medida que, ao mesmo tempo, o pensamos cuidadosamente junto de nós”.

Nesse sentido, as narrativas dos professores-cursistas indicam trilhas para a compreensão do

significado de estar-no-mundo que vai além da práxis vivida na sala de aula. As atualizações

seriam singularidades de cada pre-sença, conforme concepção de Heidegger (1998). Nesse

estar-no-mundo de possibilidades, a pre-sença vai des-velando referências e configurando sua

existência (SÁ, 2009).

Partindo-se do pressuposto de que um memorial possui uma função pedagógica formativa, isto

é, a de ser um exercício de elaboração e reelaboração crítica das experiências pessoais em

conexão com as experiências profissionais de sujeitos que atuam como educadores, sua(s)

compreensão/interpretação(ões) propõe(m) uma reflexão sobre suas práticas vivenciadas na

relação pedagógica. Esses processos formativos, fortalecidos pela polissemia do conceito, têm

como condição primeira o contato com o múltiplo, com o estranho, constituindo-se numa

viagem formativa de experiências com a alteridade e a construção da própria identidade.

3.2 O PROJETO IRECÊ: MEMÓRIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Memória é, aqui, a concentração do pensamento que, concentrado, permanece junto ao que foi propriamente pensado porque queria ser pensado antes de tudo e antes de mais nada.

(HEIDEGGER, 2006)

73

3.2.1 O diário de Ciclo

Ofício n° 11/2005

Caro (a) professor(a) cursista

No dia 16 de abril de 2005 estivemos reunidas em Salvador, na Faced (Equipe Irecê e Salvador)

para deliberarmos sobre vários assuntos referentes ao curso de Pedagogia-UFBA-Irecê.

Dentre os pontos discutidos, a atividade em exercício, exigiu uma maior atenção, pelas

questões técnico-pedagógicas envolvidas e, também, em decorrência das exigências legais,

quanto à forma de cumprimento e registro dessa atividade.

Alguns aspectos foram reafirmados e outros definidos nesta reunião:

• Freqüência nos encontros semanais de orientação;

- duração 4 horas;

- contabilidade dessas horas para atividade em exercício;

- a freqüência mínima nos encontros de orientação é de 75% (incluindo faltar que porventura

ocorram, por estar participando das atividades temáticas).

• Diário do Ciclo

- é obrigatória a apresentação de 6 produções (1 por ciclo);

- o diário passa a ser “a escrita” da prática pedagógica do cursista;

- serão emitidos 2 pareceres: um do processo (orientador Irecê) e um do produto (orientador

Salvador).

• Creditação das horas (atividade em exercício)

- só serão creditadas as horas da atividade em exercício quem tiver participação mínima nos

encontros de orientação;

- quem entregar o diário de ciclo até o prazo definido;

- se o diário estiver documentado (anexos que ilustrem, comprovem à prática mostrada no

diário de ciclo, especialmente que demonstre os resultados da intervenção pedagógica da

ação dos cursistas na escola);

- se o diário estiver acompanhado do parecer do processo do orientador local (a construção

do diário requer acompanhamento do orientador, que apreciará a sua produção durante o

ciclo e dará retornos que ajudarão no aprimoramento do texto);

74

- quando o orientador Salvador emitir parecer de apreciação do parecer do produto (diário

de ciclo).

Vale salientar, portanto, a importância do momento de inscrição nas atividades do ciclo. Dentre

outras coisas, chamamos a atenção para que ao escolher as atividades temáticas, você leve em

consideração o dia destinado aos encontros de orientação, para que não coincidam com outras

atividades.

Todos esses encaminhamentos visam o aperfeiçoamento do curso e, por conseguinte, de você

cursista (...)

Atenciosamente,

Equipe de Orientação/Coordenação

O Eixo das Atividades de Registro e Produção, do Curso de Pedagogia – Ensino

Fundamental/Séries Iniciais – Ufba, para os professores da Rede Municipal de Irecê,

possibilitou compreensões e interpretações desses professores-cursistas acerca do “espaço” da

escola, da sala de aula, da sua escolarização e dos seus alunos, através das suas narrativas: no

Diário de Ciclo, documento apresentado em todos os ciclos (períodos que temporalmente

correspondem aos semestres), em que as narrativas pedagógicas trazem as reflexões acerca do

“seu fazer” na escola, tecidas com as reflexões sobre o seu processo de formação; e no

Memorial, documento que traz um texto discursivo com as impressões/reflexões dos

professores sobre a sua formação ao longo de toda a escolaridade, tecidas com a formação

proporcionada pelo curso. Essas histórias que trazem relatos de vida dos seus “espaços” são

alguns dos objetos do estudo abordado neste trabalho.

Delory-Momberger defende a construção biográfica do espaço, associado a sua definição de

biografia: “conjunto das representações construídas da existência”, do mesmo modo que ela se

inscreva numa escritura de tempo – numa cronografia:

Toda biografia se inscreve numa escritura de espaço, numa geografia. Perguntar-se sobre a maneira pela qual o espaço nos constitui e pela qual nos constituímos, biograficamente, no e com o espaço, é pergunta-se sobre a maneira pela qual praticamos e experimentamos o espaço [...]. As práticas coletivas e individuais do espaço: O “habitar”. Essa noção, que abrange muito mais do que o simples espaço privado de moradia, designa a relação particular que liga os homens e as sociedades humanas ao conjunto de seus espaços de

75

vida – relação que é feita de ação e de pensamento, de práticas e de representações, de realidade e de imaginário. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 69-70).

Essas observações nos levam, evidentemente, a nos indagar sobre o modo como o espaço

significa para nós e como nós o fazemos significar. E nos convida a situar que as experiências

e as práticas do espaço ganham efeito e sentido, na narrativa. Delory-Momberger categoriza a

experiência no espaço como “biogeografia e que vai permitir cruzar abordagem sincrônica e

abordagem diacrônica, espacialidade e temporalidade” (2012, p. 75).

Neste curso, os professores têm a possibilidade de construírem seus percursos de aprendizagem.

Assim, a cada ciclo, diversos tipos de atividades são elencadas para que os professores optem

pelo(s) caminho(s) que querem trilhar, integrando-as no percurso da sua própria aprendizagem.

Desta forma, a responsabilidade pela formação é compartilhada entre todos aqueles que fazem

parte do Projeto de Formação:

O objeto de estudo dos professores no curso, é o processo educativo, a educação em seu acontecer cotidiano, nos diversos espaços da prática social em que se processa, traduzido mais especificamente, na ação docente que confere sentido e organicidade, às diferentes ênfases do trabalho pedagógico, que constitui na base comum de formação dos profissionais de educação. (FACED/UFBA, 2003, p. 27).

A dimensão pesquisa realiza-se na modalidade que denominamos Investigação em Campo

Piloto, “um tipo de pesquisa que demanda a criação de seu próprio campo”. O currículo do

referido curso de Pedagogia – campo específico da presente pesquisa – contempla as discussões

contemporâneas sobre inovações curriculares e formação de professores, as narrativas foram

introduzidas como dispositivo de formação. Maioli caracteriza como Artefatos:

Os artefatos são materiais usados no cotidiano do curso, que buscam redimensionar a prática docente, não unicamente promovendo processos de ampliação do repertório didático e pedagógico, mas investindo clinicamente na reflexão sobre a utilização desses elementos e sua implicação na carreira e no trabalho docente a prática docente. Os grupos de atividades que agregam esses artefatos são as Atividades em Exercício e as Atividades de Registro e Produção. Os materiais que concretizam esses artefatos e sintetizam seus registros são os Projetos Didáticos ou os planos de intervenção didática, elaborados nas e a partir das atividades temáticas, e os Diários de Ciclo e Memoriais de Formação. Esses dois últimos materiais citados têm na autobiografia e no trabalho com a memória seus suportes teórico-conceituais mais importantes. (MAIOLI, 2008, p. 120).

76

O diário de ciclo concebido pelo Projeto Irecê, cuja concepção é apresentar a prática pedagógica

refletida através do texto narrativo, evidencia uma das marcas da memória recente, pois

demarca as reflexões dos professores-cursistas durante o Ciclo cursado, com suas

compreensões da prática da sala de aula, e as aprendizagens das atividades temáticas cursadas

durante o ciclo, focado no processo narrativo de dimensão formadora, torna possível apreender

as inter-relações entre as diversas situações e dimensões experienciais da/na sala de aula. No

que concerne aos diários autobiográficos, Holly afirma que:

[...] os educadores que optaram pela elaboração de diários profissionais ou pessoais escolheram observar-se a si próprios, tomar a experiência em consideração e tentar compreendê-la. A escrita de diários biográficos constitui-se em “escrita sobre a vida” (bio=vida, grafia=escrita), tentando compreender e articular as experiências de uma outra pessoa. A escrita de diários autobiográficos envolve o processo de contar a história da sua própria vida. A escrita de diários biográficos e autobiográficos inclui, e geralmente, a reconsideração e a reconstrução da experiência a partir de uma vida, quer seja a sua própria (autobiografia) ou a de outras pessoas (biografia). (HOLLY, 2006).

O trabalho com o diário de ciclo e com o memorial de formação no Projeto Irecê, acompanhado

pela equipe de coordenação e orientação evidencia o desvendar de elementos quase misteriosos

por parte do próprio sujeito da narração que, muitas vezes, nunca havia sido estimulado a

expressar organizadamente seus pensamentos numa dimensão tempo/espaço. Tais reflexões

favorecem o caráter temporal da experiência humana, pessoal/coletiva, é articulado pela

narrativa, em especial quando clarifica a dualidade “tempo cronológico/tempo

fenomenológico”. A correlação tempo e narrativa em Paul Ricoeur leva-nos a reflexões das

correlações históricas, em que o presente, o passado e a expectativa de futuro se imbricam numa

perspectiva tridimensional (RICOEUR, 1995).

O rememorar as próprias experiências é um exercício que pode favorecer a presença da

subjetividade, ou seja, “o sujeito tende a destacar situações, suprimir episódios, reforçar

influências, negar etapas, lembrar e esquecer” (CUNHA, 1997). Este mosaico de situações se

torna, no entanto, significativo, e as aparentes contradições encontradas podem ser exploradas

com fins pedagógicos e significativos. A narrativa expressa nos diários.

As narrativas são, pois, elementos que trazem forte significado pessoal e articulam trazendo

“não uma vida como de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu” (BENJAMIN,

1996, p. 37). Assim, trabalhar com narrativas não é simplesmente recolher fatos diferentes, em

77

contextos narrativos diversos, mas sim participar de uma memória presentificada. Costa (2001,

p. 73) já nos afirmava que a narrativa deve ser entendida “como construção do narrador e do

ouvinte e, ainda, como expressão singular do momento de sua produção [...] (já que) na

construção da narrativa, narrador e ouvinte compartilham memórias, as quais permitem o

outrora configurar-se como presente (apud ABRAHÃO, p. 211).

3.2.2 O Memorial-Formação

Cada um de nós compõe a sua história, cada ser em si carrega o dom de ser capaz...

Almir Sater e Renato Teixeira

RoseS<[email protected]>Paraireceorientadores-2008@yahoogrupos.com.brCCLuizaSeixaspaulasantosFabriziaPiresdeOliveira 04/14/11 às 9:29 AM Oi, gente, encontrei uns arquivos no fundo do baú sobre acompanhamento de memoriais. Ontem nós aproveitamos alguns deles, principalmente a imersão e as outras questões do Geac anterior para estimular a escrita em nossa primeira orientação. Foi bem legal. Poka, Lu e Fá, quem sabe ainda podem aproveitar algo? Maiza, arquive aí a Carta para a banca e a normatização, vamos precisar disso. Beijão. R

Toda interpretação está ligada a um contexto. Esse contexto existe dentro de outros contextos e é assim que entramos em um ciclo hermenêutico. Isso faz da interpretação um terreno muito escorregadio.

(Ken Wilber, por Marie-Christine Josso. 2004). Da Bahia, como Diretor de Redação do jornal “A Tarde”, acompanhei a estréia na função de presidente da República do metalúrgico que um dia vira preso no DOPS. Voltei a Brasília 11 meses depois interessado em acompanhar de perto a experiência de um governo de esquerda governar pela direita. E eu que pensava que já vira tudo!

(Ricardo Noblat. Perfil. 2006)

78

No esforço de re-tomar a infância distante, a que já me referi, buscando a compreensão do meu ato de ler o mundo particular em que me movia, permitam-me repetir, re-crio, re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no tempo em que ainda não lia a palavra.

(Paulo Freire. A importância do ato de ler. 1997).

Foi difícil começar a escrever este livro, e estava sendo difícil acabar. Resolvi então ir a Paris; longe do meu cotidiano, talvez me fosse mais fácil botar o ponto final.

(Danuza leão. Quase tudo. 2005).

Até hoje me pergunto até que ponto o sábio Quipe Scopell sabia que estava me dando um amuleto eterno, pois na verdade eu precisaria tê-la vendido [uma pele de crocodilo] muitas vezes em meus anos de esfaimado perene. E no entanto, ainda a conservo, empoeirada e quase petrificada, porque desde que a carrego na mala pelo mundo inteiro não tornei a ter falta de um único centavo para comer.

(Gabriel Garcia Márquez. Viver para contar. 2003).

Evidenciar mundos distintos daqueles da pura informação abstrata, engendrar universos de referência e territórios existenciais, nos quais a singularidade e a finitude sejam considerados pela lógica multivalente de ecologias mentais.

(Felix Guattari por Marie-Christine Josso. 2004). ....................Por Roseli Sá

14/04/2011

(Re)Lembrar, recordar, extrair da memória histórias de nossa história de vida, recordações que

não necessariamente precisam ser nossas, dado que às vezes narramos histórias de nossa história

de vida que foram guardadas nas lembranças de outrem, memórias doutros que complementam

nossas memórias do vivido, nos ajudando a compreender na complementariedade destas

memórias do acontecimento vivido e do acontecimento lembrado, o processo formativo pessoal

e profissional do sujeito, as transformações de sua existencialidade e subjetividade singular-

plural (JOSSO, 2008), e de buscar sentidos e significados sobre o que e por que nos tornamos

o que somos no processo de vir a ser o que se é, o Devir, assim como nossas projeções de vida

para um estado futuro, pensando nos diversos tempos-espaços de vida do sujeito na rede de

interações com o outro (família, comunidade, redes sociais, grupos culturais...). A imersão

dos/nos Rastros da memória do Projeto para as interpretações/compreensões desta tese se

configura ir ao encontro da minha memória num tempo/espaço formativo de experiências

singulares.

79

Para Souza (2004), a memória tem uma dimensão temporal, pois é escrita num tempo que

permite deslocamento sobre as experiências. Souza traz Thompson, no seu texto A Memória e

o Eu, para afirmar que “a recordação da própria vida é fundamental para nosso sentimento de

identidade” (1998, p. 208). Dessa maneira, recorrer à memória remete à ressignificação das

experiências para a compreensão de si.

O sentido da recordação é pertinente e particular ao sujeito, o qual implica-se com o significado atribuído às experiências e ao conhecimento de si, narrando aprendizagens experienciais e formativas daquilo que ficou na sua memória. (SOUZA, 2004, p. 215).

O termo memorial (séc. XIV), do latim tardio memoriale, designa “aquilo que faz lembrar”. Ele

é utilizado em várias áreas do conhecimento. Em arquitetura, refere-se a um monumento

(Memorial da América Latina); em contabilidade, designa um livro de anotações; em direito:

um relatório; em literatura ou em história: um “relato concernente a fatos ou indivíduos

memoráveis” (PASSEGI, 2010). “É a escrita de memórias e significa memento ou escrito que

relata acontecimentos memoráveis”. (PRADO; SOLIGO, 2004, p. 7). Podemos compreender

um memorial como expressão da memória, uma referência narrativa do que é memorado.

O livro Metamemória: memórias, travessia de uma educadora, escrito em 1981, para um

“concurso de professor titular na Universidade Federal de Minas Gerais”, publicado em 1991,

(SOARES, 1991, p. 31 apud PASSEGI, 2010), situa dois momentos importantes na história dos

memoriais: “ o momento em que essa exigência se generaliza nas universidades federais (anos

1880) e aquele em que se difunde em institutos de formação (anos 1990)” (PASSEGI, 2010, p.

31).

A institucionalização do memorial perpassa o momento histórico de redemocratização do País,

a busca de transparência nos concursos públicos e a valorização do mérito acadêmico nas

instituições federais. Nesse sentido, a “validade” dessas narrativas acadêmicas, servirá de

inspiração para a proposta do memorial formação como prática reflexiva.

Nessa direção, o trabalho com histórias de vida nos currículos de formação de professores

passou a ganhar cada vem mais espaço no cenário da formação docente. Diante do contexto, o

currículo do Projeto Irecê potencializa as narrativas como dispositivo de formação docente, e o

Memorial integra as atividades de Registro e produção, configurando-se atividade

autobiográfica para formação docente. O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) manifestou-

80

se na perspectiva do texto memorialístico como uma proposta articulada à produção textual,

desenvolvida no processo, ao longo dos seis semestres de duração do curso de Pedagogia. A

proposta pautou-se na reconstituição da história dos/das docentes, sendo a condição de

narradores tecida continuadamente, em um texto em que passado e futuro se transformam na

ação reflexiva através das vivências, e se configurou em experiências formativas.

Por pautar-se nessas âncoras, o curso procurou desenvolver-se em conformidade com elas desde

o processo seletivo, que procurou fugir das formas convencionais “dos apavorantes

vestibulares” de ingresso utilizadas na Ufba, justificando pelo próprio caráter do Curso que

acredita na “democracia pela diferença”. Como já previa o projeto: “Na prática, o processo de

ingresso no curso será um movimento de adesão de caráter inclusivo, de formação horizontal,

de centralizado, respeitando os impedimentos legais” (p. 17).

Aconteceu em sistemas de oficinas, com 12 horas de produção/experimentação, e em 10 horas

de produção definitiva para a construção do memorial, o gênero textual escolhido para a

seleção. Essas oficinas foram desenvolvidas por professores da Ufba com oficinas temáticas:

Eu Estudante, Eu Professor(a), Eu no programa de formação de professores da Faced/Ufba

privilegiando os tipos textuais: o narrativo, o descritivo e o crítico-reflexivo.

Os professores-cursistas puderam, assim, colocar no caderno azul (ficou assim conhecido

porque todos os cursistas receberem um caderno azul para registrar suas produções) suas ideias,

sentimentos e emoções sobre as oficinas temáticas Eu Estudante, Eu Professor(a), Eu no

Programa de Formação de Professores da Faced/Ufba. Foi o primeiro movimento de trabalho

com memórias. Foi o início da escrita dos memoriais, que foram realimentados continuamente

ao longo dos ciclos, até se constituir em trabalho final do curso.

Sobre os memoriais, disse a professora Lícia Beltrão no VI Seminário da Rede Municipal de

Educação – Irecê-Ba:

Até o final do curso, sabemos que cada memorial vai espichar, para cima, para um lado, para outro... Outras vozes se misturarão a todas aquelas que já se alojaram nele, faz tempo. Os fios, os mais tensos, os mais frágeis, os mais grossos, irão alinhavar, costurar, dar nós, com ou sem pontas. Enquanto isso, o caderno azul, certamente cantará: ‘O que está escrito em mim/comigo ficará guardado, se lhe dá prazer/ a vida segue sempre em frente, o que se espera em frente, o que se há de fazer/ só peço a você um favor, se puder: não me esqueça num canto qualquer’. E nós professores do grupo de seleção/inclusão,

81

estaremos enquanto não estivermos ocupados na criação de outros processos educativos que emancipem os sujeitos, com esse, estaremos repetindo com Eni Orlandi: ‘ler é compreender que o sentido pode ser outro’, na expectativa de continuarmos a ‘ ver o que nos acostumamos (ou não acostumamos) a não ver. (BELTRÃO, 2003, p. 09).

É nesta esteia da formação/experiência como centralidade imanente que as memórias narrativas

são valorizadas como fundamentais para a formação. Na dimensão ensino deste projeto, as

histórias de vida dos professores foram incentivadas e valorizadas, sendo

aproveitadas/transformadas nos dados fundamentais da dimensão pesquisa

Nesta perspectiva, percebemos na proposta pedagógica e curricular apresentada pelos Projetos

Irecê e Tapiramutá, que na verdade trata-se de um único projeto de formação de professores

desenvolvido nas duas localidades mencionadas, neste trabalho denominaremos Projeto Irecê-

por a cidade de Irecê ter sido a pioneira, assim ficou conhecido, uma possibilidade de ir ao

encontro dos Rastros da memória-esquecimento, considerando que tal projeto foi concebido a

partir do:

Conceito de Campo das possibilidades pensadas como desencadeador14 do Campo das atualizações, o que permite abandonar a ideia de aplicação/execução direta de um curso “pré-pensado” e optar pela formulação de um Campo das possibilidades pensadas como o propiciador de uma construção curricular mais em processo e menos como um modelo a ser aplicado. É a Pedagogia do A-con-tecer, inspirada nos estudos prigoginianos15 da Teoria das Possibilidades/atualizações, na vertente defendida pelo Professor Felippe Serpa16 de que o mundo funciona como um jogo em que se vão precipitando (atualizando/emergindo) as diversas possibilidades postas. (SALES; CARVALHO; SÁ, 2007, p. 3).

Conforme projeto pedagógico do curso, o memorial é o momento em que cada professor-

cursista expõe, na forma de narrativas críticas, suas experiências pessoais e profissionais,

sistematizando seus saberes, por um lado, e possibilitando reformulações desses saberes, de

outro. Em linhas gerais, o professor-cursista descreve e analisa as relações de sua vida pessoal

com sua atuação profissional em conexão com sua formação no curso de Pedagogia e as

necessidades e desafios da educação do Município e região.

A construção das narrativas faz aparecer uma relação de interdependência entre a construção

da narrativa e a compreensão do processo, com efeito, construir o relato autobiográfico

14 Desencadear - Soltar, desatar, desprender (o que estava preso ou atado por cadeias). 15 Ver: PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. 16 Ver escritos de Felippe Serpa, principalmente textos escritos para o Rascunho Digital www.faced.ufba.br.

82

necessita de questionamentos sobre os elos, as rupturas, os silêncios, as omissões e os

esquecimentos da narrativa. A memória é “tratada” ou “direcionada” nos memoriais dos cursos

de formação.

A segunda nota sobre o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência com experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem pré-ver nem pré-dizer. (LARROSA, s/d)

Na narrativa as palavras ganham formas de linguagem, e as imagens/cotidiano traduzem formas

de ser e viver, reminiscências elaboradas e reelaboradas, histórias revisitadas, paisagens de um

espaço-tempo de vida, de trabalho, de aprendizagem. Memórias, histórias e narrativas refletem

e refratam o mundo cotidiano, criado na experiência e recriado na rememoração.

Pensar o mundo é torná-lo inteligível, graças a uma atividade simbólica que tem o seu terreno

de eleição no uso apropriado da língua. As palavras desenham o significado do mundo. Se

linguagem e silêncio se misturam na expressão da palavra, “podemos dizer também que todo

enunciado nasce do silêncio interior do indivíduo em permanente diálogo consigo mesmo”

(BRETON, 1997, p. 17-18).

O que vou lhes propor aqui é que exploremos juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par experiência e sentido. O que vou fazer a seguir é sugerir um certo significado para estas duas palavras em distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar algumas palavras e tratar de compartilhá-las. (LARROSA, s/d)

Walter Benjamim, ao criticar a cultura e a modernidade, evidencia o caráter central da memória na

recomposição da experiência humana: onde há experiência no sentido estrito do termo, entra em

conjunção a memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo

83

(1994). Para Benjamim, a perda da capacidade de narrar é uma consequência do esvaziamento da

experiência do homem moderno. Ele distingue experiência de vivência: vivência seria a reação,

uma ação que se esgota no momento de sua realização; experiência é a ação refletida, rememorada

e compartilhada, que permanece para além do vivido. A rememoração articula a dimensão sensível

da memória ao ato de lembrar, o que torna comunicável à experiência. Na rememoração as

lembranças estão sujeitas a atualizações, releituras e reelaborações, fruto de reflexões sobre o

acontecimento lembrado.

As discussões apresentadas nos revelam lançarmos alguns questionamentos a respeito desses

dispositivos formativos nos cursos de formação de professores, e especialmente no projeto Irecê,

para “considerar que somos sujeitos trabalhando com a formação profissional de outros sujeitos

que, por sua vez, trabalharão com a formação geral de outros sujeitos” (PEREIRA apud Abrahão,

2010, p. 124).

Durante os estudos do mestrado, pude observar essa “tendência” ou um “modismo” no trabalho

com memórias nos currículos de formação de professores; como exemplo, citamos os cursos do

Ministério da Educação (MEC), em parceria com estados e municípios: o Proinfantil, o

Proformação, Proletramento, Pró-Licenciatura, Progestão, recentemente o MEC lançou, pela

chamada Plataforma Freire, o Plano Nacional de Formação, Parfor. Esses cursos/programas

utilizam como eixo articulador o trabalho com memorial-formação. Figura 04 – Édipo e a Esfinge, Giorgio de Chirico, 1922. D"Et Quid Amabo nisi quod aenigma est?" (E o que devo amar senão o enigma?

Fonte: Google imagens.

84

Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse ‘conhece-te’ propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. (Fernando Pessoa por Marie-Christine Josso. 2004).

O prestígio das narrativas e sua ampla difusão nos espaços educativos, de modo especial a

crescente valorização das narrativas autorreferentes, das biografias e história de vida de um

modo geral, respondem a uma nova modalidade de controle social, operada na esteira de uma

sociedade cada vez mais fluida e pautada pelo fascínio da linguagem a da consciência de si.

Assim, a dimensão “experiencial” e “narrativa” da formação ganha prestígio, assumindo-se de modo tácito que o conhecimento se dá pela progressiva e desejável consciência que o agente das práticas toma a respeito de si próprio. Trata-se do primado das práticas reflexivas, onde se re-encena a cada prática a duplicação própria à produção do conhecimento no campo das ciências humanas. No dueto reflexão-ação encontra-se o sujeito com consciência epistemológica de sua prática e esse mesmo sujeito que conhece se constitui como objeto desta consciência. (RATTO apud ABRAHÃO, 2010, p. 82).

Resgatar a história pessoal como parte privilegiada da construção da docência se constitui no

movimento formativo afirmando as dimensões pessoais (o eu individual) e as dimensões

profissionais (o eu coletivo), através da memória. Significa, principalmente, redescobrir o

reservatório oculto, que diria o esquecimento, mas que está vivo dentro das nossas consciências

e das nossas narrativas. Diante do apresentado, nas próximas seções vamos garimpar os rastros

da memória provocada no Projeto Irecê e, com ela, nos lançar nos “espaços” (formais,

informais, emergentes) disponibilizados (intencionalmente ou não) para o esquecimento no

currículo do Curso de Pedagogia Ufba/Irecê/Tapiramutá.

85

CAPÍTULO III

4 O LUGAR DO ESQUECIMENTO NA MEMÓRIA

“Ah quanta vez na hora suave

Em que me esqueço... Não ignoro o que esqueço.

Canto por esquecê-lo. Procuro despir-me do que aprendi.

Procuro esquecer-me do modo de lembrar Que me ensinaram”.

(Fernando Pessoa)

As fontes (auto)biográficas constituídas no Curso de Pedagogia Ufba/Irecê configuram-se

como objeto do presente estudo para desvelar os Rastros do esquecimento do processo

formativo dos professores-cursistas. Memorial, Diário de Ciclo, Cartas, Relatórios, Grupos de

estudos memorialísticos: literários e cinematográficos, Blogs de memórias etc. foram

dispositivos utilizados como “elementos basilares” para a formação dos sujeitos envolvidos no

processo formativo. O trabalho com memórias antecedeu o ingresso no Curso, já que a escrita

do memorial substitui o tradicional vestibular. O memorial começa a ser elaborado desde a

seleção para ingresso no curso, é alimentado no percurso curricular dos cursistas e apresentado

como trabalho de conclusão do curso. É nesta esteira da formação/experiência como

centralidade imanente que são valorizadas as memórias narrativas como fundamentais para a

formação. Para Maioli,

As leituras discutidas e os textos oferecidos tiveram preocupação com as características que dariam conformidade ao grupo. “Músicas, filmes, textos escritos que vão desde a tradicional ‘Normalista’, música de Benedito Lacerda e David Nasser, versão de Nelson Gonçalves até a atual ‘Seres Tupy’ de Pedro Luiz e a Parede”. (MAIOLI, 2008, p. 123, grifo nosso).

Os fragmentos de memoriais intercalados no decorrer dessa seção foram utilizados como “petiscos”, para produção dos memoriais nos encontros de orientação, e para a tese interpreto como “Rastros da memória-esquecimento”. Durante a pesquisa do TCC da graduação em 2005, narrei uma participação em um dos grupos de orientação.

O tema do encontro era a discussão das cartas enviadas com instruções pela coordenação das Atividades Registro e Produção e das Atividades em Exercício. Apesar da maioria seguir rigorosamente a ordem das orientações que continha na carta, cada um encontra seu próprio caminho, é uma questão de estilo. Uns encontram facilidade com texto dividido pelos tópicos orientados pela carta, já outros acham melhor escrever um texto corrido. Os

86

professores-cursistas acharam bem mais fácil a proposta da elaboração do projeto do Ciclo Dois: Um modelo a ser seguido pela carta da UFBA – “Com as perguntas oferecidas na carta tenho mais facilidades em prosseguir no relatório” (professor-cursista). (OLIVEIRA, 2005, p. 35).

Rastro 1: Memorial: Fragmento de Introdução

Semanários, reuniões pedagógicas, avaliações diagnósticas, projetos de aprendizagem, vídeo-

conferência, reflexão da prática em sala de aula, curso de pedagogia... Nunca imaginei que

expressões como essas fariam parte da minha vida um dia. Minha vida gira em torno disso. A

noite finda e o silêncio reina. Enquanto as pessoas dormem sonhando com o dia de amanhã,

estou fazendo alguma atividade relacionada à prática docente, sempre ali, em frente ao

computador. Fico tão solitária com meus pensamentos que chego a fazer relação com um

trecho do poema de Mário Quintana:

O relógio vai bater,

As molas rangem sem fim

O retrato na parede

Fica olhando para mim...

O tempo vai passando e os encargos são muitos, eu ali, esforçando-me para produzir no

silêncio da noite, após as aulas da faculdade.

Quando pequena, estudava e buscava a aprendizagem com uma perspectiva de mudança.

Queria planejar minha vida, para isso, perseguia as minhas metas, que não eram nem um

pouco audaciosas ou gananciosas. Elas baseavam-se apenas numa formação básica. Queria

concluir meus estudos para trabalhar em qualquer outra área que não fosse da educação:

moda, artes plásticas e dramáticas, decoração...

Ansiava poder trabalhar, ganhar um salário que pudesse manter-me de forma digna, sem

riquezas, somente o necessário para viver. Confiando em minhas habilidades, segui esse

pensamento por longo tempo, a minha mãe dizia sempre com ar de experiência: “Trabalho é

aquele que nos sustenta”. Ela sempre esteve certa. O professor não é bem remunerado, mas

faz malabarismos para organizar turnos de trabalho a fim de reforçar o orçamento.

87

Foi num final de dezembro de 1989, quando ela, sem levar em conta a minha opinião,

matriculou-me no curso de Magistério, no C.E.A.T (Colégio Estadual Alberto Torres) [...]

O grupo de pesquisa FEP (Formação em exercício de Professores) da Faced/Ufba, do qual sou

integrante, tem se dedicado no campo da pesquisa de formação de professores em exercício.

No ano de 2002, surge a primeira experiência de implantação de curso de nível superior para

professores em exercício, o Projeto Irecê, sou sujeito formada e formadora do trabalho com

memórias, fui a primeira bolsista de iniciação científica do projeto, e orientadora da segunda

turma do Curso de Pedagogia em Irecê, além de professora de atividades temáticas,

direcionadas para a escrita do memorial em Tapiramutá, meu Trabalho de Conclusão de Curso

da graduação (TCC) demarcou um momento de amplas discussões entre os professores da

Faced/Ufba, foi o primeiro TCC em formato de memorial. Imersos na “Aventura

(Auto)biográfica, o FEP se atentou às discussões das narrativas, experiências e subjetividades

na formação dos sujeitos. Para Carvalho e Sá:

[...] é fundamental estabelecer que estávamos em meio a discussões e embates teóricos sobre a questão da objetividade e da subjetividade nas ciências, sobre o lugar dos sujeitos na história e na produção de conhecimentos, sobre a importância das histórias de vida para a formação de professores, com destaque para as discussões veiculadas nas célebres coletâneas organizadas por AntonioNóvoa (1995a, 1995b); com os estudos sobre O método (auto) biográfico e a formação publicado em 1988 pelo mesmo Nóvoa juntamente com Mathias Finger e mais recentemente reeditado (NÓVOA e FINGER, 2010). A busca de legitimação dessas referências, notadamente na formação de professores, aproximou-nos depois das pesquisas de Pineau (2006, 2008), de Josso (2004), de Dominicé (2010), de Delory-Momberger (2008), bem como dos nossos Souza (2003, 2004, 2008), Passegi (2006, 2008, 2010) e Abraão (2004), entre muitos outros. Buscamos situar nesses estudos os sujeitos do currículo como narradores de si, considerando, como Delory-Momberger (2008), a valorização da narrativa nesses tempos que induzem as pessoas a manifestarem as marcas pessoais de sua passagem no mundo a partir da identificação da consciência de si e de sua ação sobre o mundo e entregar a esses sujeitos, como nos ensina Pineau (2006), o encargo de seus procedimentos de formação e a definição de suas necessidades. (CARVALHO; SÁ, 2015, no prelo)

Em Ricoeur, o resultado mais ambicioso de toda essa abordagem epistemológica da referência

historiadora ao passado – análise que, a bem da verdade, chega às raias da ontologia – é

justamente a ênfase conferida à dimensão existencial da experiência humana com o tempo. A

implicação temporal de “ser no mundo” (d’être-au-monde) é também uma condição que o

88

rastro, ao significar o passado, suscita sob a categoria da historicidade – ou, por assim dizer, da

condição de ser histórico.

Rastro 2: Memorial: Fragmento de Introdução 2

MEMÓRIAS DE UM CAMINHANTE

O discorrer dos fatos não necessariamente retilíneos ou cronológicos, nem tampouco

respeitado qualquer estrutura de linearidade, seja ela de pensamento, seja de circunstancias,

ou ainda de temporalidade que descreverei nestas minhas memórias, representam a dinâmica

da construção, ressignificação para a reconstrução de minha própria existência, como homem,

inserida no contexto do “eu”, singularmente constituído de história, de ação na história e sob

efeito da História, especialmente as experiências singularmente desencadeadas por três filmes

assistidos durante o curso de formação, no programa de formação de professores Ufba/Irecê:

Nenhum a Menos; A Casa dos Espíritos e Filhos do Paraíso. Devo, no entanto conjeturar que

essa tentativa de suscitar minhas memórias enredadas pela lógica cinematográfica, onde as

imagens, cenografias e enredos quase surrealistas expiram sentimentos, hipoteticamente

realizável e adaptável aos moldes da sétima arte, vai requerer um profundo exercício de

interiorização no mais intimista dos seus significados para efetivar essa viagem no meu eu.

Sem egolatrismos nem a superficialidade, presente em muitas das cenas apresentadas pelo

cinema.

Nessa minha história vivida e trazida aqui, sem roteiros definidos nem apetrechos peliculares

das telonas, muitas vezes enturvecidos por uma insurgência rebelante, tal qual os sonhos de

Pedro, personagem de Antonio Bandeiras, em A casa dos Espíritos, noutras sufocado por uma

extrema angustia jovial de cumprir com “aquilo que me foi imposto” como a professorinha

mirim de “nenhum a menos”, espero apresentar as marcas do entrelaçamento das ideias do eu

“menino-homem” fortemente presente em Os Filhos do Paraíso e do eu “homem-menino”

característico de A casa dos Espíritos, cujas lembranças às vezes se confundem e se esvaem na

imensidão das probabilidades improváveis e nas efêmeras peraltices deste principiante

exegeta.

Apresento como ideia central dessas memórias, diferentemente do que trouxera nas versões

anteriores, os “quases” da minha vida, sobressaltados pelo desejo ardente de não cometer o

89

pecado da presunção. Não pretendo, com isso, desprezar qualquer memória ou negar a minha

história. Pelo contrário, quero apresentar dados de uma história que poucas vezes apareceu

nas versões anteriores das minhas memórias.

Tentarei buscar essas lembranças nas imagens impregnadas de sensibilidade e nas lagrimas

que me rolaram sobre a face, naquele laboratório da Escola Odete, naquela manhã de sábado

com a professora Telma Brito, assistindo pela primeira vez o filme os Filhos do Paraíso ou

quem sabe, na memória altiva e arrogante do Fazendeiro senador de A Casa dos Espíritos.

O certo, porém, é que continuarei considerando as perspectivas de formação, tanto as trazidas

pelo programa de formação da Ufba, como as adquiridas na educação básica,

independentemente delas terem se dado nos bancos da universidade ou nas mesas de bares,

nos filmes assistidos ou nas minhas breves cenas teatrais, nos nossos bate-papos informais com

os colegas ou com os vizinhos e parentes. Afinal de contas, as minhas memórias são resultados

de todas essas influências.

Quero buscar explicitar com mais ênfase as contribuições e as influências trazidas pelos meios

e pelas realidades sócio-políticas e culturais de cada época em que elas se deram e a

importância delas para tornar-me quem sou, hoje, e o que elas projetam para o que possa me

tornar a partir daqui.

Outra importante consideração que gostaria de trazer neste primeiro momento é a, que

de forma assistemática, buscarei trazer os diversos momentos da minha vida, sob o prisma da

similaridade e da subliminaridade, conforme explicitado anteriormente ao referenciar o

menino-homem e o homem-menino, sem necessariamente me ater diretamente na elucidação

de onde cada um se apresenta num determinado momento da minha vida, certamente o

reacionarismo de Esteban Trueba e a subversividade utópica de Pedro, personagens de A casa

dos Espíritos se encontrarão presentes e se confundirão com meus próprios desejos e anseios.

Diante deste paradoxo, os diferentes “eus”: estudante, professor, pai, esposo, ser político,

caipira, intelectual, autor, ator, diacronizado por estímulos circunstanciais ou não, se

apresentam como janela aberta à espera da brisa que acalanta a alma e faz ressuscitar a

esperança e os sonhos de novas manhãs primaveris. Assim, poeticamente apresentado, parece-

me ser a forma mais original de dizer que adquiri um nível de percepção e consciência que já

90

permite entender que os saberes adquiridos até então, são infinitamente insipientes e

sofismaticamente volúveis. Portanto, parto do pensamento Socrático do “só sei que de nada

sei”, para inferir novas aventuras e novos mergulhos retóricos, em busca de novos conceitos e

reformulação do pensamento.

Para Pereira, o conteúdo da memória é dado por, pelo menos, três diferentes naturezas de

registros, que são sua substância: as figuras relativamente estáveis e sua duração, o que inclui

os saberes, os fatos, as ações, os fatos, as ações históricas e as diferentes condutas praticadas

no plano estratificado do cotidiano; as rupturas, as eclosões de acontecimentos que atravessam

aquelas figuras e as projetam num movimento de desmaterialização (o que inclui tanto a

produção de novos traços, de novas combinações, quanto o despertar de traços adormecidos);

e as lacunas , os buracos, as falhas de percurso, as quais indicam o processo de desfazimento

da figura até então vigente e o nascimento de uma nova figura. Esses três tipos de registro,

portanto, constituem a substância não da, mas das memórias (PEREIRA apud ABRAHÃO,

2010).

A minha pesquisa de mestrado, intitulada: Memórias na Formação do Professor: um estudo

no/do Projeto Irecê, buscou interpretar como os professores-cursistas compreenderam seu

processo formativo ao narrar suas memórias, utilizadas como dispositivo de formação pelo

currículo do Curso de Licenciatura Ufba-Irecê. Foi durante o processo e a imersão da/na

pesquisa que me deparei com o ESPANTO, que poderia associar com as rupturas, as eclosões,

citado por Pereira (2010), dos acontecimentos durante o período da investigação. me despertou

a inquietação do presente estudo da tese, e o lugar do ESQUECIMENTO?

O lugar do esquecimento na memória apresenta o sentido do esquecimento ao qual nos

baseamos para a compreensão do trabalho. O esquecimento é entendido como atividade, força

possibilitadora do novo, simbolizando uma forma de saúde forte, uma força plástica. Nietzsche

mostra como o esquecimento pode ser um fator permissivo da felicidade do homem. Para ele,

o esquecimento seria uma força ativa capaz de absorver animicamente as impressões

acumuladas na memória, acúmulo este responsável pela prisão do homem ao seu passado, como

se este passado tivesse um peso e fosse arrastado pelos seus próprios calcanhares, como se

arrastasse correntes. Dessa maneira, Nietzsche fala sobre a felicidade dos animais que de nada

sabem porque de nada se lembram; para o autor, a memória é a capacidade de reter as

91

experiências vivenciadas, enquanto o esquecimento seria o desgaste do tempo sobre essas

experiências fazendo com que se percam as recordações registradas pela mente.

Rastro 3: Memorial: Fragmento de Introdução

Memorial

Recordações passadas, mudanças presentes, perspectivas futuras.

O processo da vida se opera em tentativas sucessivas de libertação. Estamos todos os dias

renovando, na criatura que fomos na véspera, a criatura que seremos na manhã. Mais do que

renovando-a: refazendo-a, porque não tornamos a ser jamais o que fomos, salvos apenas de

uma velhice posterior, mas construímos de fato uma vida própria, que das experiências e uma

certa memória de duração com que vamos acreditando na sua continuidade.

Cecília Meireles*

Minha trajetória pessoal e profissional tem girado em torno de alegrias, tristezas e as vezes,

emoções tão grandes que nem podem ser contadas, um desafio constante, em cada vitória faz

renascer a esperança e a vontade de continuar sonhando e realizando estes sonhos.

Em 1985, enquanto no Brasil aconteciam movimentos com estudantes lutando pela anistia de

políticos brasileiros e pelas eleições diretas para presidente da república e na educação o

Mobral estava sendo extinto, ficando em seu lugar o projeto Educar, eu estava entrando na

escola com doze anos de idade na 1ª série. Exatamente dois anos antes do meu nascimento,

coincidentemente no mês de agosto de 1971, acontece a reforma do Ensino de 1º e 2º graus e

do ensino médio com a Lei 5692 tornando a obrigatoriedade escolar dos sete aos quatorze

anos. Por que então eu estava entrando na escola com a idade de doze anos, se para mim este

prazo, já estava quase se esgotando, de acordo com o texto da nova lei.

MEIRELES. Cecília, crônicas de educação I - obra em prosa Rio de janeiro: nova fronteira,

2001, p.33.

Hoje compreendo que o motivo de ter ingressado tardiamente na escola, era advinda da

herança cultural familiar que vinha se repetindo geração após geração chegando até meus

irmãos (ãs) mais velhos, que dos quinze, só oito sobreviveram, em que sou a última, e sem saber

92

por que, eu não queria continuar ampliando aquela cultura de excluído da educação,

obrigados ou não a se conformar com aquela situação.

Não me recordo de como foi este período inicial da minha vida escolar, não sei se já era

alfabetizada.

Recorrendo à obra Confissões de Santo Agostinho, Ricouer problematiza o esforço de recordação e o esquecimento:

Não é somente o caráter penoso do esforço de memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou aquela tarefa; porque amanhã será preciso não esquecer...de se lembrar. A que [...] chamaremos de dever de memória consiste essencialmente em dever de não esquecer. (RICOEUR, 2007, p. 48).

A polissemia dos sentidos e conceitos do termo Esquecimento nos remete à mitologia greco-

romana, esquecimento, um mito dos primeiros tempos gregos (Hesíodo, Píndaro). Lete é uma

divindade feminina que forma um par constante com mnemosyne, deusa da memória e mãe das

musas. Lete vem da linguagem da noite (em grego Nyx, Noz em latim, sua mãe é a Discórdia

(em grego, Eris, em latim, discórdia)). Mas na interpretação desse mito a genealogia tem só um

pequeno papel, pois “Lete” (ele ou ela) é sobretudo nome de um rio do submundo, que confere

o esquecimento às almas dos mortos. Nessa imagem e campo de imagens, o esquecimento está

inteiramente mergulhado no elemento líquido das águas. Há um profundo sentido no

simbolismo dessas águas mágicas. Em seu macio fluir desfazem-se os contornos duros da

lembrança da realidade, e são liquidados (WEINRICH, 2001). Ainda na forma verbal em latim:

Oblivisci derivou-se em latim o substantivo oblivio (esquecimento), que se encontra em muitas locuções, por exemplo: in oblivionem venire (cair no esquecimento) e aliquid oblivioni dare (entregar algo ao esquecimento). Na linguagem especializada da retórica jurídica, Lex oblivioni significa “esquecimento legalmente ordenado” ou “anistia” [...]. Na língua cotidiana, porém, predomina o verbo esquecer derivado do latim cadere (cair), usado também como reflexivo esquecer-se junto com seu substantivo esquecimento e o adjetivo esquecido. (WEINRICH, 2001, p. 17-18).

A filosofia/literatura utiliza algumas imagens para representar o esquecimento: Hegel se refere

a “funda cova do eu”; Thomas Mann, ao “poço do passado”; Tomás Ribeiro, ao “abismo das

olvidas eras”. Usamos, também, a imagem do esquecimento como “um buraco na memória”.

Por isso, a expressão “cair no esquecimento” no português é recorrente em várias outras línguas:

em inglês, se fala “to fall into oblivion”; em francês, “tomber dans l’oubli” (WEINRICH, 2001,

p. 21).

93

Weinrich ainda destaca que as metáforas do esquecimento se relacionam com as da memória.

Quando, por exemplo, a memória é descrita como uma paisagem “tópica”, no campo

imagístico, o esquecimento ocupa nessa paisagem os lugares ermos como terrenos arenosos que

são desmanchados pela ação do vento, ou seja, são esquecidos. Nesse caso, dá na mesma

escrever na areia ou no vento, a mensagem não se conserva. Há um célebre poema de Percy B.

Shelley chamado “Ozymandias” em que as ruínas de um império estão soterradas pela areia do

deserto, e apenas uma desgastada estátua do rei Ozymandias luta para que a passagem do tempo

não a destrua, já que a glória de seu império foi esquecida. Entretanto, sabemos que é uma luta

perdida. A imagem do esquecimento também pode ser encontrada no poema “The Haunted

Palace”, de E. A. Poe, em que o eu-lírico nos informa da existência de um antigo palácio,

outrora radiante. Hoje, as portas descoradas não lembram a ornamentação de pérolas e rubis de

um outro tempo já sepultado (WEINRICH, 2001).

Rastro 4: Memorial: Fragmento de Introdução

Buscando no íntimo de minhas lembranças, escondidas

em uma infância comum, recordei-me dos meus cinco

anos. Poucas vezes tive o privilégio de ser arrumada por

minha mãe, com uma jardineira rosa e branca a qual me

caracterizava como parte do grupo de alunos da escola

“Descanso da Mamãe”, onde, com a professora Ilza,

comecei a decodificar as primeiras letras. Da cartilha,

não me recordo o nome, mas era aquela que possuía uma

lição chamada “A babá e o bebê”.

Hoje, apesar de tanto corre-corre, sinto prazer e tenho como ritual arrumar meus filhos para

irem à escola, bem como orientá-los diariamente nas atividades escolares e convivências

sociais. Talvez, seja uma necessidade que não tenha sido bem resolvida em minha infância ou

por perceber a importância do acompanhamento familiar no progresso das crianças nas

questões emocionais, cognitivas e afetivas, além de ser a base na construção de valores

imprescindíveis na formação do caráter.

Foram poucos os bons momentos vividos naquele ambiente que tinha o cheiro de material

escolar novo, o de massa de modelar quando retirada do plástico pela primeira vez. Logo tive

94

que mudar de cidade e sair da minha adorada escola, já que minha mãe viera a falecer. Período

do qual o tempo fez questão de apagar os momentos de ausência e readaptação. Daí então,

meus pensamentos voam para 1981, especificamente o dia em que fui submetida a um teste, o

qual me daria a oportunidade de ser matriculada em uma nova escola para cursar a 1ª série

do ensino fundamental.

Era um ditado. As palavras eram ditadas pela professora e, automaticamente, eu as escrevia

convencionalmente, chegando ao final sem errar nenhuma. Veio-me, então, a notícia de que

estava apta a cursar a 2ª série. Que concepção de educação tinha aquela escola!? Ou melhor,

os educadores da época? Bem diferente da que temos hoje, pois pensamos com outras

perspectivas. Ao analisarmos o conhecimento da criança, levamos em conta não só os aspectos

cognitivos, que são identificados a partir da avaliação diagnóstica e da observação do

professor durante certo período. Ora, se para mim a primeira série seria uma alegria, a

segunda então...

Para Nietzsche, o esquecimento é como uma força plástica, inibidora e ativa, capaz de nos

libertar de impressões repetitivas e doentias ao lidar com algum ultraje, decepção,

descontentamento, enquanto caberia à memória a tarefa de preservação. Podemos localizar tal

concepção nietzschiana principalmente em sua obra de 1887, intitulada Genealogia da moral.

A fluidez da lembrança nos remete pensar o esquecimento, por um lado, a um descanso, a uma

libertação de algo aprisionador que poderia ser uma lembrança desagradável e insistente

proporcionada pela memória, este seria o esquecimento libertador. Por outro lado, o

esquecimento também é visto como algo devastador, responsável pela palavra não empenhada,

responsável pela confusão mental e social de um indivíduo ou até mesmo de uma sociedade.

A condição humana de sobrevivência como ser sociável nos remete à compreensão da relação

do esquecimento com a memória, e a supremacia desse ser humano forte, que rememora suas

lembranças para a demarcação histórica e política do seu meio social. Segundo Lemm,

“Nietzsche crê que o envolver-se no esquecimento permitiria que a memória fosse

redirecionada ao futuro, não ao passado e que somente mediante a função de abrir o futuro que

a história pode se converter em algo de valor para a vida humana” (apud CAMPOS, 2014, p.).

A história é, assim, a formação consciente de todo um conjunto de experiências sociais

acumuladas ao longo do tempo demarcadas no presente. Essas demarcações temporais

95

constituem as temporalidades características da própria história. E essa história não é

visualizada como as estáticas representações dos fatos passados. A história é dinâmica, ela

pulsa segundo as determinações do presente e dos interesses que se hegemonizam nas relações

sociais. É dessa forma que nas diferentes fases da história, alguns de seus elementos são

melhores visualizados em detrimento de outros que posteriormente poderão ser elevados a

maior grau de destaque do que outrora já tiveram. A história é, portanto, o principal suporte

para a conservação das identidades (LE GOFF, 1996).

Nietzsche utiliza o termo Digerir para apresentar um esquecimento ativo, capaz de remover

registros enfraquecedores e desnecessários das ações vivenciadas no dia a dia dos sujeitos, a

fim de se abrir para novas experiências e novas construções históricas.

Os dilemas e conflitos desse sujeito “empodeirado pela memória” pode ser compreendido

como uma busca desenfreada de um espaço possível de culto ao passado, como denomina Pierre

Nora (1993, p. 15, grifo nosso):

Aceleração da história. Para além da metáfora, é preciso dar-se conta do que a expressão significa: uma oscilação cada vez mais rápida num passado definitivamente morto, a percepção global de qualquer coisa como desaparecida – uma ruptura de equilíbrio. A extração do que ainda restava de vivido no calor da tradição, no emudecimento do costume, na repetição do ancestral, sob um impulso profundo de um sentimento histórico. O acesso à consciência de si sob o signo do findo, o arremate de algo desde sempre iniciado. Fala-se tanto na memória porque ela não existe mais. A curiosidade pelos lugares onde se cristaliza e se refugia a memória está ligada a esse momento particular de nossa história.

Para Carvalho e Sá, “Enfraquecer o sujeito não é minimizar a subjetividade, pelo contrário, é

ampliá-la. A subjetividade vai além da natureza humana, e é forjada pelo circundante que pode

ser, e na maioria das vezes o é, distante tempo/espacialmente” (2015, p. 5).

A abertura do espaço do esquecimento na constituição dessa subjetividade permite o nuance da relação memória-esquecimento.

Há uma lógica paradoxal em relação ao processo de esquecimento e memória, ou melhor, em relação ao jogo entre esquecimento e memória. Para ele, esse jogo estaria na formação inicial da memória da vontade estendendo-se no decurso do processo civilizatório. Nesse ponto, acreditamos que pode haver uma semelhança interpretativa entre Giacoia e Lemm (2009), em relação a esse jogo entre memória e esquecimento. Enquanto Giacoia vê no paradoxal jogo entre memória e esquecimento uma reafirmação da memória da vontade justamente diante daquilo que não deve ser esquecido, Lemm acredita que o esquecimento antecede a memória humana, que a vida é histórica justamente por ser esquecimento. Para ela, quem recorda o faz porque pode esquecer,

96

sendo assim, o que compõe a historicidade do bicho-homem é o esquecimento e não a memória. (CAMPOS, 2014, p. 22).

É com todas estas contradições inerentes a qualquer processo de formação humana, e com a

tensão instalada no processo de lembrar/esquecer que nos inquietamos como a memória foi

“tratada” no Projeto Irecê. Há uma “cumplicidade secreta, que faz do esquecimento um

comportamento semipassivo e semi-ativo, como se vê no esquecimento de fuga, expressão da

má-fé, e sua estratégia de evitação” (RICOUER, 2007, p. 455), que resulta num “querer-não-

saber”. É a polaridade do ter ou não ter consciência de algo a ser rememorado que se torna

positiva a ideia de esquecimento proposta na presente análise.

Rastro 5: Memorial: Fragmento de Introdução

O PRESENTE TECIDO COM O PASSADO

[...] tecer o presente com o passado e assim o presente parecia outros dias, quando eu vi o que era tecer em pedaços, aprendi um pouco também. É por isso que eu conto esta história aos pedacinhos [...]

Gláucia de Souza.

Adentrando no fascinante mundo das lembranças, emerge o passado, que se faz presente. Nesse

processo de busca, passado e presente se confundem, se entrelaçam e produzem sentidos

diversos às vezes difusos, ou confusos, entretanto carregados de historicidade. Nesse processo

de imersão no passado, desvendando as trilhas por onde andei, reconstruindo as

construções/desconstruções de minhas certezas/incertezas, analisando meus erros/acertos

quando a teimosia da dúvida insistia em mostrar tantos caminhos possíveis, vou

fazendo/refazendo minha história. Dialogando com as lembranças e construindo um caminhar

diferenciado, observo mais um pedaço da minha vida. Foi nesse percurso que cheguei à sala

de aula depois do Curso de Pedagogia UFBA/Irecê. Esse caminhar diferenciado, partindo do

entendimento de que o ato educativo nunca é neutro, a concepção de homem, de mundo ou de

sociedade encontra coerência com minha prática. A reflexão crítica sobre a prática foi sendo

construída. Busco um pensar e um fazer pedagógico transformador, autônomo e reflexivo,

ciente de que:

97

[...] os caminhos são múltiplos se pensarmos nos percursos profissionais, humanos de cada um. No atelier de cada docente, na sua disciplina, na sala de aula, há muita criatividade individual. Mas há, sobretudo, muita criatividade coletiva. Estamos saindo dos nossos ateliers individuais. (ARROYO, 2004, p. 171).

Falar da minha itinerância de estudante deixou-me muito feliz. Nasci numa cidadezinha pobre e pequena no interior do Rio Grande do Norte. É justamente a compreensão e definição das “condições históricas” que norteiam as conjunções

e disjunções desses extremos da memória. Isto é, o que se lembra e o que se esquece dependem

da maneira como a memória é tratada em determinadas circunstâncias – sociais, culturais etc.

–, assim como a forma com que a história é pensada e exercida. Para Ricoeur, a fundamentação

dessas condições passa pelo entendimento do tempo, quer dizer, do modo como os sujeitos

compreendem a si como históricos de acordo com suas posturas diante do passado e do futuro

(IVANO, 2015).

A narração é resultado de uma seleção de memória e esquecimento, numa sociedade em que é

incumbida ao sujeito a tarefa de fazer sociedade para si e para o outros, o indivíduo é remetido

aos seus próprios meios subjetivos e reflexivos para se constituir, ele próprio, como mediador

e agente de ligação. Os registros fortes da memória. A fala de si, especialmente sob a forma de

narração, é um instrumento privilegiado dessa tentativa de mediação, na medida em que narra

subjetividades e coletividades. Assim, “Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos

necessidade de lhe consagrar lugares” (NORA, 1993, p. 08).

A história de Irineu Funes é simples, porém desconcertante. Personagem da ficção de Borges,

Funes teria tido uma vida comum, sem mais nem menos, como qualquer cristão. Um acidente,

um tombo para ser mais preciso, mudou definitivamente o rumo da vida desse peão de uma

estância no sul do Uruguai. A capacidade de tudo lembrar ou, em outras palavras, a

incapacidade de esquecer tornou-se a “doença” de Funes, apelidado de “o memorioso”. Nada,

nenhum minucioso detalhe, escapava da implacável memória de Funes. Sabia as formas das

nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia

compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernando em couro que vira somente uma

vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro às vésperas da batalha do

Quebracho. A memória de Funes não tinha limites!

98

Haveria, portanto, uma medida no uso da memória humana? Segundo uma fórmula da sabedoria

antiga, o esquecimento não seria, portanto, sobre todos os aspectos, o inimigo da memória?

Acreditamos que a memória, que se relaciona ao desejo de perenidade, não deve ser vista como

órgão do tempo passado, mas a faculdade do eterno e do presente, que conserva o passado no

presente e o faz aderir a nós. O esquecimento é o outro lugar da memória, uma faculdade que

permite apagar o tempo, ou, na impossibilidade de apagá-lo de todo, esvaziá-lo ou empalidecê-

lo, ensejar aos homens suportá-lo como uma dimensão da existência, sem interiorizá-lo e

transformá-lo em consciência histórica.

Tanto a memória quanto o esquecimento constituem-se como forças operantes da vontade de poder que constitui o todo humano.

A linguagem e a consciência, na sua aparição simultânea, surgem para facilitar a memorização dos signos que permitem a comunicação gregária. É preciso, então, a geração de uma memória, pois os instintos, no seu agir automático e inconsciente, no seu desenrolar espontâneo, agem e esquecem as experiências vividas. O esquecimento, por sua vez, longe de ser interpretado por Nietzsche como uma falha, ou como a incapacidade temporária da consciência para reter o já vivido, trata-se de um mecanismo de proteção, de preservação orgânica; o esquecimento é uma forma de digestão psíquica que permite relaxar diante das experiências vividas, se distender diante do passado. (BARRENECHEA, 2009, p. 103).

A experiência-chave, como acabamos de dizer, é a do reconhecimento. Falo dele como de um

pequeno milagre. De fato, é no momento do reconhecimento que se considera a imagem

presente como fiel à afecção primeira, ao choque do acontecimento. Onde as neurociências

falam simplesmente de reativação dos rastros, o fenomenólogo, deixando-se instruir pela

experiência viva, falará de uma persistência da impressão originária (RICOEUR, 2010). “De

fato, o esquecimento continua a ser a inquietante ameaça que se delineia no plano de fundo da

fenomenologia da memória e da epistemologia da história” (RICOEUR, 2010, p. 423).

As neurociências focadas na memória podem instruir, uma primeira vez, a conduta da vida no

nível desse saber refletido em que consiste uma hermenêutica da vida. Além da utilidade direta,

há a curiosidade pelas coisas da natureza, entre as quais o cérebro é, provavelmente, a mais

maravilhosa produção (RICOEUR, 2010).

Freud (1898) já havia instituído o esquecimento como parte do recalque, necessário ao humano,

e capaz de trazer o inconsciente à tona (MOTTA, 2008). Devemos, inicialmente, lembrar que

parte pequena do passado ficou registrada em objetos de cultura. Grande parte da memória

99

histórica corresponde a ausências, perdas, ao que foi excluído, ao que deixou de ser registrado,

por não fazer parte dos “grandes acontecimentos” responsáveis por mudanças profundas na

vida econômica e política.

Quantas vezes nos surpreende evocar, de repente, algo que nos aconteceu há muitos anos: uma

cena de nossa infância, uma velha canção que não ouvíamos há décadas, algo que ouvimos ou

aprendemos muito tempo atrás. Segundo o psicólogo Ivan Izquierdo (2005), os velhos são

famosos por recordar melhor os fatos ou eventos antigos do que aquilo que lhe aconteceu há

uma semana ou há duas horas. Ainda segundo o autor, “As memórias carregadas de emoção

mantêm-se no cérebro durante décadas” (IZQUIERDO, 2005, p. 56). Não poderíamos deixar

de citar, mesmo não sendo nesse momento nosso aprofundamento de reflexões, as pesquisas e

estudos da neurociência, para as descobertas e avanços das patologias da memória. Para os

neurobiólogos, sabe-se que a memória é o meio pelo qual uma pessoa recorre às suas

experiências passadas a fim de usar essas experiências no presente. A memória refere-se aos

mecanismos dinâmicos associados à retenção e à recuperação da informação sobre a

experiência passada.

Os psicólogos cognitivos revelam que nesse processo mnemônico são identificados, segundo

Sternberg (2000), três operações comuns: codificação, armazenamento e recuperação. Assim,

na codificação, dados sensoriais são transformados numa forma de representação mental; já no

armazenamento, a pessoa conserva a informação codificada na memória; e na recuperação o

indivíduo extrai ou usa a informação armazenada na memória (Revista Época, 2004).

Além disso, é sabido também, com os avanços das pesquisas da neurociência, que o

armazenamento de informação na memória acontece a curto e a longo prazo. O armazenamento

a curto prazo refere-se à manutenção ou retenção da informação por alguns segundos, como

quando se olha um número de telefone no catálogo e imediatamente após a discagem ele é

apagado da memória. Já no armazenamento a longo prazo, conteúdos que são guardados na

memória permanecem durante longos períodos de tempo ou mesmo indefinidamente.

Na obra Esquecimento e Fantasma, Freud conceitua a memória “como um arquivo aberto a

todos aqueles que são ávidos do saber, está assim sujeita a ser deteriorada por uma tendência

de vontade, tal como acontece como qualquer parte da nossa actividade dirigida para o exterior”

(FREUD, 1991, p. 18).

100

Quanto ao seu esquecimento ou, mais precisamente, ao seu conceito psicanalítico, o

recalcamento, ou pensamento recalcado, o tema do texto de Freud de 1898 é o fenômeno da

falha de memória (Phänomen von Vergesslichkeit) relativamente aos nomes próprios (nomina

propria). Na Psicopatologia (1901), Freud diz que "tentou então a análise psicológica de um

caso vulgar de esquecimento temporário de nomes próprios". O método utilizado é designado

por Freud de "análise psíquica" (FREUD, 1991).

Figura 05 – Operação do esquecimento cortical.

Fonte: Acervo da autora

Antes de mais, o esquecimento do nome Signorelli não é um fenômeno de esquecimento

corrente, isto é, perda gradual da capacidade de relembrar, recordar ou reproduzir o que foi

previamente apreendido. Uma vez que o nome Signorelli não caiu no esquecimento – pois,

segundo o relato de Freud, tratava-se de um nome que lhe era familiar –, segue-se então que o

acesso a esse conteúdo de memória, foi perturbado, sofreu a interferência de algo, e essa

perturbação explicará a ocorrência do lapso. Freud procura assim mostrar que o esquecimento

do nome Signorelli não é explicável sem a interferência de determinadas influências

(Einflüsse). Na Psicopatologia, Freud afirma que O esquecimento do nome só foi esclarecido quando me lembrei do assunto que estávamos a discutir imediatamente antes desta conversa (sobre os frescos do pintor Signorelli). O esquecimento revelou-se então como uma perturbação do novo tema, provocada pelo tema precedente. (FREUD, 1991).

Compreende a memória como mecanismos que constituem a lembrança. O esquecimento para

Ricoeur é compreendido sob o olhar da hermenêutica das condições históricas, todas as

abordagens realizadas num “colóquio ininterrupto”. De quem é a memória daquele que lembra

101

“representação presente de uma coisa ausente”, “representação de uma coisa anteriormente

percebida” (RICOUER, 2007, p. 27), imaginação da memória do que é lembrado.

Encontramos, na obra de Foucault (2004), uma reflexão bastante interessante sobre o papel da

escrita na constituição da subjetividade, especificamente aqui a escrita memorialística narrativa.

Nesse sentido, ele destaca que a escrita, como uma atividade pessoal, revela uma verdade dita,

no entanto com a singularidade do que nela se afirma e a particularidade da circunstância do

que determinou seu uso. De acordo com o autor:

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um “corpo” [...]. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim [...] como o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue”. (FOUCAULT, 2004, p. 152).

O imperativo da escrita de memórias é uma acusação contra o esquecimento e silêncios. A

ideologia da comunicação assimila o silêncio ao vazio, a um abismo no seio do discurso, não

compreende que, às vezes, é a palavra que forma a lacuna do silêncio. Pensar o mundo é torná-lo

inteligível, graças a uma atividade simbólica que tem o seu terreno de eleição no uso apropriado da

língua. As palavras desenham o significado do mundo. Se linguagem e silêncio se misturam na

expressão da palavra, “podemos dizer também que todo enunciado nasce do silêncio interior do

indivíduo em permanente diálogo consigo mesmo” (BRETON, 1997, p. 17-18).

Rastro 6: Memorial: Fragmento de corpo do texto. Teorizações sobre leitura e escrita Felizmente a escola mudou. Hoje, exige-se que ela desenvolva a capacidade de aprender o que

subentende o domínio da leitura e da escrita. Esta aprendizagem pode ser uma prática

construída com a participação das diferentes áreas e nos diferentes espaços da escola. Tal

construção se dá pela participação do professor, criação de espaços coletivos para a ação

comum e pela utilização de multiplicidade de linguagens e de novos códigos. O principal papel

da escola já não é mais o de mera transmissão de informações. O papel da escola em relação

ao ler e ao escrever alterou-se nos últimos tempos, exigindo do educador a compreensão do

contexto do mundo contemporâneo, quando a palavra escrita amplia os modos de atingir a

população, e exige de todos, competências para agir com autonomia e criticidade.

102

A crítica dos pesquisadores atuais, à forma como a escola tratava à escrita, aponta para o

caráter mecânico do exercício de técnicas motoras relacionadas ao desenho das letras ou ao

estabelecimento das associações de formas sonoras a formas gráficas e à sua memorização.

Ensinam-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a

linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba

obscurecendo a linguagem escrita como tal.

É uma pena que só conseguimos compreender os malefícios que a escola nos causou, depois

que somos convidados a escrever ou necessitamos intensificar as leituras. Hoje fico me

perguntando o que a escola fez com aquela menina cheia de sonhos e que acreditava que ao

adquirir o “passaporte” para a escola estaria ingressando no mundo da leitura e da escrita?

Não desejei aprender de forma mecânica ou em doses homeopáticas. Não me recordo de ter

dito para minhas professoras que havia limites para ler e escrever, que não queria ser

incentivada ou desafiada a escrever bilhetes, cartas, relatórios, poemas, poesias, os mais

diversos tipos de textos. E as leituras? Onde estavam os textos literários? E os poetas? Quantos

livros de literatura infantil deixei de ler. Sei que iria ser uma leitora inveterada. Até hoje

lembro-me com saudades da aula de Língua Portuguesa em que a professora Tânia Galante

leu para nossa turma da 5ª série o poema E agora, José? Foram breves instantes de eterno

prazer e dos quais voltei a compartilhar ao participar do I Sarau Literário promovido pela

UFBA no Ciclo V do Curso de Pedagogia. O ambiente estava organizado propositadamente

para a grandiosidade do evento. E que surpresa boa, ao chegar deparei-me com a poetisa

Núbia Paiva declamando seus belos poemas infantis, de repente ela começou a declamar um

poema intitulado Bola de gude, boneca de milho... Na hora pensei: esta poesia precisa fazer

parte do meu memorial. Então, destaquei alguns versos que para mim tinham gosto e cheiro

da infância e que guardam no fundo do baú da saudade as minhas doces e eternas lembranças.

...Piquenique não! Panelada era o nome

A melhor coisa da vida Todo mundo ia brincar E esquecia da comida.

Arroz queimado e feijão cru. Era a piada no meio da prosa

Nunca uma comida ruim Fora tão gostosa.

103

Boneca era sabugo de milho Que um pano velho Pegava pra enrolar

Ou a espiga com cabelo Lá no meio da roça

Que dava vontade de roubar.

Os meninos jogavam pião As meninas jiribita

Tinha quem passasse Todo o tempo Soltando pipa

Brincar de boca de forno Era para as maiores Crescer era o desejo

Brincar de caí no poço Passo pro primeiro beijo...

“Oh! Que saudades da aurora da minha vida de minha infância querida que os anos não trazem

mais...” Hoje compreendo o quanto estas experiências foram importantes para minha

formação, principalmente porque pude revisitar as etapas da minha infância, as coisas que

vivi. Lembranças, vozes, memórias... Narrações que revelam e traçam um começo, um ponto

de partida para uma reflexão, produção cultural, práticas educativas, vivências e expressões

de cultura. Ao mesmo tempo em que me ajudam a estabelecer um começo para o texto

pretendido, as lembranças/memórias daquela vida vivida, como substrato do que me constitui

hoje são, também, as referências do lugar de onde falo e constituo meu discurso.

É verdade, as crianças trazem suas experiências, vivências, conhecimentos construídos na

relação que estabelecem com o seu contexto, com o mundo a sua frente, ao seu redor. Mas é

igualmente certo que, em regra, os saberes e vivências que identificam e particularizam cada

uma, não são acolhidos.

Reforçando os princípios defendidos por Vygotsky a aprendizagem se processa em uma relação

interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Ao lado dos processos cognitivos de

elaboração pessoal há um contexto que dá sentido ao aprendido, e ainda condiciona suas

104

possibilidades efetivas de aplicação e uso nas situações vividas. Entre o homem e os saberes

próprios de sua cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem,

não só o professor, nem só a escola.

Eu pequenininha, olhava para a professora e tinha a certeza de que ela sabia de tudo, enquanto

eu não sabia de nada. A verdade era o que os livros e a professora diziam. Era um ensino

voltado à memorização, pois estudávamos e depois o aprendizado era avaliado em relação às

notas que obtínhamos nas provas. Para mim era interessante, me esforçava, decorando todo o

conteúdo tido nas aulas, as notas “boas” que eu conseguia era um mérito por todo meu esforço

durante as aulas, prestando atenção às explicações das professoras. Nunca fui de passar a

noite toda estudando, nem me lembro de ficar fazendo dever de casa durante o turno oposto às

aulas, mas as notas eram as melhores da classe. Nunca criei uma disciplina muito rígida de

estudo e até hoje não tenho e dessa maneira consegui aprender bastante. É verdade que se

tivesse sido mais rígida com meus estudos, talvez hoje estivesse fazendo uma pós-graduação

(mestrado, doutorado), talvez trabalhando menos e ganhando mais, ou talvez não.

Durante muito tempo, a alfabetização foi entendida como mera sistematização do bê-á-bá. Em

uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos e marcada por reduzidas práticas

de leitura e escrita, a simples consciência fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e

letras para produzir/interpretar palavras ou frases curtas, parecia ser suficiente para

diferenciar o alfabetizado do analfabeto. O mais interessante é que fui muito feliz naquele

espaço ao aprender, brincar com os amigos no intervalo, cair, melar, estudar, memorizar. E

hoje entendo porque muitos professores ainda resistem em abandonar as velhas práticas e

defendem com tanta veemência que o ensino tradicional é o melhor, talvez ainda guardem os

resquícios da “boa e velha infância” que tiveram e confundem os ranços do método tradicional

com as lembranças de vida.

Nessa década (1980), em que pese toda a movimentação em torno de mudanças políticas e

mudanças no campo da educação, os meus registros são de um cotidiano escolar

marcadamente conservador. A ligação com os princípios tradicionais era evidente na postura

dos professores que se limitavam a realizar exposições verbais dos conteúdos, atividades

durante as quais era terminantemente proibida qualquer desvio de atenção ou conversa

paralela, o silêncio era a principal regra que deveríamos obedecer depois de ordenados em

fileiras nas salas de aula. Uma grande ênfase era dada à repetição, as rotinas de trabalho na

105

sala de aula passavam pela leitura individual e em voz alta das lições do livro de Língua

Portuguesa.

Na narrativa as palavras ganham formas de linguagem e as imagens/cotidiano traduzem formas

de ser e viver, reminiscências elaboradas e reelaboradas, histórias revisitadas, paisagens de um

espaço-tempo de vida, de trabalho, de aprendizagem. Memórias, histórias e narrativas refletem

e refratam o mundo cotidiano, criado na experiência e recriado na rememoração.

Pode-se inferir que a memória, por ser articulada à indestrutibilidade do Desejo, refere-se à

fantasia, do lado do esquecimento e da construção. Nesse viés, argumentamos que, atrelado à

memória, o esquecimento como elemento inerente à formação, de alguma forma, evoca a

opacidade trabalhada com base em Heidegger. Na errância do ser-no-mundo, opera-se o

movimento de velamento e desvelamento do ser, mediante o qual cada pre-sença singular vai

“formando” sua compreensão de mundo e, diria aqui, vai descobrindo suas possibilidades de

atuação no mundo... e configurando sua existência (SÁ, 2004). David Lowenthal se aproxima

do dito freudiano ao afirmar "só é possível lembrar porque é permitido esquecer”.

A escrita é sempre um remédio e um veneno, como refletiu Ricoeur (2010), pois tem a dupla

capacidade de dizer protegendo os fatos do esquecimento, mas também de substituir o esforço

de memória. Na tripartição do estudo fenomenológico da memória, Ricoeur assim divide seus

argumentos: “Memória e imaginação”; “A memória exercitada: uso e abuso”; “Memória

pessoal, memória coletiva”. Na segunda parte, após considerar os “abusos da memória

artificial”, notadamente a ostentação decorrente dos artifícios mnemotécnicos desenvolvidos

pela ars memoriae, o filósofo elabora uma tipologia dos usos e abusos da memória natural. Os

intertítulos sinalizam as formas de abordagem de sua classificação: a. “nível patológico-

terapêutico: a memória impedida” (em que usa de categorias clínicas da psicanálise,

principalmente); b. “nível prático: a memória manipulada” (em que faz a crítica das ideologias);

c. “nível ético-político: a memória convocada/obrigada”, isto é, a abordagem do chamado

“dever de memória” (RICOEUR, 2010, p. 82). A problemática do esquecimento, formulada em

seu nível de maior profundidade, intervém no ponto mais crítico dessa problemática de

presença, de ausência e de distância, no polo oposto a esse pequeno milagre de memória feliz

constituído pelo reconhecimento atual da lembrança passada.

Para Ricoeur, o esquecimento está associado à memória e pode ser considerado como uma de

suas condições. O autor classifica-o em três categorias: “O esquecimento e o apagamento de

106

rastros”, “O esquecimento e a persistência dos rastros” e “O esquecimento de recordação:

usos e abusos”. De início e maciçamente, é como dano à confiabilidade da memória que o

esquecimento é sentido. “Dano, fraqueza, lacuna. Sob esse aspecto, a própria memória se

define, pelo menos numa primeira instância, como luta contra o esquecimento” (RICOEUR,

2010, p. 424). A partir do exame dessas “figuras do esquecimento manifesto”, o filósofo propõe

uma “pragmática do esquecimento”. Ricoeur aponta que:

Desde o comentário dos textos de Platão e Aristóteles, fundamentados na metáfora da impressão na cera, propus distinguir três espécies de rastros: o rastro escrito, que se tornou, no plano da operação historiográfica, rastro documental; o rastro psíquico, que é preferível chamar de impressão, no sentido da afecção, deixada em nós por um acontecimento marcante ou, como se diz, chocante; enfim, o rastro cerebral, cortical, tratado pelas neurociências. (RICOEUR, 2010, p. 425).

O esquecimento e o apagamento de rastros – A representação do passado através dos

registros, da antiguidade aos nossos dias. Esse esquecimento é atribuível a um apagamento dos

rastros, ele é vivido como uma ameaça: é contra esse tipo de esquecimento que fazemos

trabalhar a memória, a fim de retardar seu curso e até mesmo imobilizá-lo. A relação entre a

significação fenomenológica da imagem-lembrança e a materialidade do rastro, ideia paradoxal

segundo a qual o esquecimento pode estar tão estreitamente confundido com a memória, que

pode ser considerado como uma de suas condições Essa imbricação do esquecimento com a memória explica o silêncio das neurociências em relação à experiência tão inquietante e ambivalente do esquecimento comum. Mas o primeiro silêncio é, nesse caso, o dos próprios órgãos. A esse respeito, o esquecimento comum segue o destino da memória feliz: essa é muda em sua base neuronal. Os fenômenos mnemônicos são vividos no silêncio dos órgãos. O esquecimento comum está, sob esse aspecto, do mesmo lado silencioso que a memória comum. Esta é a grande diferença entre o esquecimento e as amnésias de todos os tipos sobre os quais é fértil a literatura clínica. Mesmo a infelicidade do esquecimento definitivo continua a ser uma infelicidade existencial que convida mais à poesia e à sabedoria do que à ciência. (RICOEUR, 2010, p. 435).

O esquecimento e a persistência dos rastros – Um acontecimento que nos marcou, tocou,

afetou e a marca afetiva permanece em nossos espíritos. Sobrevivência das imagens. Uma

fenomenologia da memória quando da distinção das duas memórias; “a memória-hábito, que é

simplesmente agida e sem reconhecimento explícito, e a memória-rememoração, que não

prescinde de um reconhecimento declarado”. Entre a lembrança e a imagem, postulamos, então,

107

a existência da lembrança “pura” como um estado virtual da representação do passado, anterior

à sua vinda em imagem sob a forma mista da lembrança-imagem (RICCEUR, 2010, p. 439).

“O esquecimento de recordação: usos e abusos” é subdividido em contraposição às definições

anteriores da “memória exercitada”, qual sejam: “O esquecimento e a memória impedida”, “O

esquecimento e a memória manipulada” e, por fim, “O esquecimento comandado: a anistia”.

O esquecimento e a memória impedida – Nível psicopatológico, nesse esquecimento, Ricoeur traz Freud e a psicanálise para argumentar essa memória. A memória impedida evocada em “Rememoração, repetição, perlaboração”, e em “Luto e melancolia” é uma memória esquecidiça. Uma das razões para acreditar que o esquecimento por apagamento dos rastros corticais não esgota o problema do esquecimento é que muitos esquecimentos se devem ao impedimento de ter acesso aos “tesouros enterrados da memória” (RICOEUR, 2010).

Assim. A psicanálise é, para o filósofo, o aliado mais confiável a favor do inesquecível. Uma das convicções mais firmes de Freud foi mesmo o passado vivenciado e indestrutível. Essa convicção é inseparável da tese do inconsciente declarado zeiltlos, subtraído ao tempo, entenda-se ao tempo da consciência com seus antes e seu depois, suas sucessões e suas coincidências. Sob esse aspecto, impõe-se uma comparação entre Bergson e Freud, os dois advogados do inesquecível. Não vejo incompatibilidade alguma entre suas duas noções de inconsciente. O de Bergson cobre a totalidade do passado, que a consciência atual centrada na ação fecha atrás dela. O de Freud parece mais limitado, se assim se ousa dizer, na medida em que cobre apenas a região das lembranças cujo acesso é proibido, censurado pela barreira do recalque, vinculada à da compulsão de repetição, parece confinar a descoberta na região do patológico. (RICOEUR, 2010, p. 453).

É nessa habilidade, entrelaçada em intenções inconscientes, que se deixa reconhecer numa outra

vertente da vida cotidiana: esquecimento, lembranças encobridoras, atos falhos assumem, na

escala da memória coletiva, proporções gigantes, que apenas a história e, mais precisamente, a

história da memória é capaz de trazer à tona. Deste modo, entre a memória e a consciência abre-

se todo um campo de "influências" que perturbam a normalidade psíquica. Por sua vez, para

Freud a causa dessas influências deve ser procurada naquilo que ele designa de “pensamentos

recalcados”.

O esquecimento e a memória manipulada – Manipulação da memória, principalmente por via

ideológica. Ricoeur ainda argumenta, nessa discussão, a função mediadora da narrativa, os abusos

de memória tornam-se abusos de esquecimento. De fato, antes do abuso, há o uso, a saber, o

caráter inelutavelmente seletivo da narrativa. Assim como é impossível lembrar-se de tudo, é

impossível narrar tudo. “A ideia de narração exaustiva é uma ideia performativamente

108

impossível”. A narrativa comporta necessariamente uma dimensão seletiva. Alcançamos, aqui, a

relação estreita entre memória declarativa, narratividade, testemunho, representação figurada do

passado histórico (RICOEUR, 2010).

Esquecimento comandado: a anistia – Memória comandada, obrigada, abusos do esquecimento,

sob as formas institucionais, ultrapassa as fronteiras da amnésia, trata-se principalmente da

anistia. A anistia, enquanto esquecimento institucional, toca nas próprias raízes do político e,

através deste, na relação mais profunda e mais dissimulada com um passado declarado proibido.

“O que é feito, então, do pretenso dever do esquecimento?” “Além do fato de uma projeção no

futuro no modo imperativo ser tão imprópria para o esquecimento quanto para a memória”

(RICOEUR, 2010, p. 462).

Para Nietzsche, o esquecimento como atividade, assimilação, encontraria na atividade humana

uma utilidade. A utilidade estaria relacionada a uma capacidade de higiene do espaço psíquico,

expelindo de seu interior toda a mobília que apenas estivesse causando uma poluição visual, ou

seja, eliminando tudo o que estivesse obstruindo o espaço psíquico. Neste caso, a metáfora

mobília corresponderia aos registros de vivências e sentimentos responsáveis pela barreira à

novidade, à vida, ao devir. Em Genealogia da moral, Nietzsche é favorável ao esquecimento

como digestão, quando diz ser esse uma fonte de alívio, de limpeza e saúde da ordem psíquica

(CAMPOS, 2014).

[...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. (GM, 2009, p.43).

A relação do esquecimento com a memória, a partir da Genealogia da moral, pode ser estendida

a uma compreensão do homem soberano, e que aqui associamos ao “sujeito forte” da

modernidade. Essa compreensão nos remete ao entendimento do homem que para sua

sobrevivência precisa conviver em sociedade e constituir sua identidade demarcadora. As

estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de configuração da

memória. Pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando

diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela. Para quem atravessou

todas as camadas de configuração e de refiguração narrativa desde a constituição da identidade

pessoal até a das comunitárias que estruturam nossos vínculos de pertencimento, o perigo maior,

109

no fim do percurso, está no manejo da história autorizada, imposta, celebrada, comemorada – da

história oficial.

O desejo de interpretar e compreender os afetamentos da formação, a partir do trabalho com

Memórias e as configurações dessas implicações com o esquecimento, contribui para a apreensão

de se repensar os “dispositivos” utilizados nos cursos de formação de professores. Nesse sentido,

as narrativas dos professores-cursistas, em seus memoriais, indicam Rastros para a compreensão

do significado de “estar-no-mundo” que vai além da práxis vivida na sala de aula. As atualizações

entre memória e esquecimento seriam singularidades de cada pre-sença, conforme concepção de

Heidegger (1998). Nesse estar-no-mundo de possibilidades, a pre-sença vai des-velando

referências e configurando sua existência (SÁ, 2009).

Rastro 7 : Orientações para as bancas examinadora – TCC

Caro/a Examinador/a, Agradecemos o seu aceite para participar da banca examinadora dos Memoriais de formação do curso de Licenciatura em Pedagogia – ensino fundamental/séries iniciais UFBA/Irecê e, apresentamos a seguir as orientações para apreciação dos trabalhos - textos individuais impressos (se aplica a todos os avaliadores) e apresentação coletiva nas instalações (se aplica aos avaliadores que viajarão para as Instalações).

ORIENTAÇÕES No campo semântico, o termo memorial significa exposição de cenários memorialísticos, na qual

o autor (ou um dos personagens) evoca fatos que tenha assistido ou que tenha tomado parte. É,

indubitavelmente, um texto. Será apresentado em duas formas: trabalho individual impresso e

texto coletivo das instalações.

Como orientação para o trabalho das bancas examinadoras, dispomos dos seguintes

procedimentos e indicadores de leitura:

Para o texto individual impresso:

O/A examinador/a deverá emitir um parecer escrito para cada memorial com a menção:

indicado para Aprovação ou indicado para reprovação. Destacamos que cada Memorial contém

110

obrigatoriamente o texto memorialístico e um apêndice que se configura em uma análise dos 3

anos de curso relacionando-os às práticas pedagógicas de cada autor/a.

Para orientar a composição do parecer, apresentamos alguns indicadores de leitura (não

pretensos limites mínimos ou máximos): o texto individual impresso contempla:

uma narrativa dos fatos que compõem a história dos sujeitos durante sua vida escolar? uma descrição encarnada em reflexão, teoria e análise das atividades que participou no curso de formação? contribuições deste curso para a atuação pedagógica do/a professor/a ou gestor/a, cotidianamente? o percurso formativo, enfocando passagens na condição de estudante, de professor/a e de professor-cursista? elementos teóricos que subsidiaram a formação e acontecimentos marcantes constitutivos da profissionalidade? potencialidade argumentativa? uma escrita normativa no que diz respeito, principalmente, ao cuidado com os aspectos ortográficos, gramaticais e de formatação, condizente com a natureza de um trabalho acadêmico? evidências da implicação do autor com os fatos narrados? clareza na narrativa sobre o(s) foco(s) escolhido(s)? Para o texto coletivo das instalações: A banca examinadora reunida após a visita às instalações emitirá parecer coletivo com a

indicação de Aprovação ou Reprovação.

Para orientar a composição do parecer, apresentamos alguns indicadores de leitura (não

pretensos limites mínimos ou máximos):

O texto coletivo das instalações contempla:

utilização adequada de diversas linguagens?

articulação com as subjetividades do/as autores/as?

estética como estruturante das ideias?

um conjunto representativo dos textos individuais impressos?

Reforçamos que a opção por uma produção coletiva foi uma forma de ser coerente com alguns

dos princípios pedagógicos que estruturaram o curso. Foram valorizados, nestes 3 anos e meio,

os trabalhos em rede, tecnológica ou não; e a utilização das mais diversas linguagens nos

processos de ensino e aprendizagem.

CRONOGRAMA Até 12/04 – entrega do parecer do texto individual impresso para o endereço eletrônico: [email protected] 14/04 – visita às instalações, conversa com os professores-cursistas, reunião das bancas para conclusão do processo avaliativo e divulgação dos resultados.

111

Entraremos em contato para os detalhes da viagem que acontecerá no dia anterior às Instalações.

Saudações.

Salvador, 26 de março de 2012.

Equipe de Coordenação / Orientação Projeto Irecê – FACED UFBA - SMEC

O esquecimento convida a uma releitura das nossas práticas formadoras com o trabalho com

narrativas e histórias de vida. De fato, o esquecimento propõe uma nova significação dada à ideia

de profundidade que ocupou a fenomenologia da memória no campo da formação de professores.

É nesse jogo de horizontes, no mesmo sentido em que pudemos falar de jogo de escalas, que essa

investigação interpretará, até que ponto o Projeto Irecê utilizou memórias “comandadas”,

“memórias impedidas”, “memórias “manipuladas” e como os horizontes do esquecimento foram

disponibilizados pelo currículo, no sentido dado por Gadamer e que assumo, horizonte não quer

dizer somente fusão dos horizontes, mas também fuga de horizontes, inacabamento.

Contudo, para que haja essa interpretação é necessária a mediação entre os signos e os seus

sentidos através da linguagem. É por isso que a ascensão da filosofia da linguagem constitui o

chamado giro linguístico a partir do qual se reconhece o papel essencial da linguagem na

construção da realidade social, neste estudo, ênfase nas narrativas docentes. Por isso que, para

Habermas, no lugar do sujeito solitário (solipsismo), que constitui seus objetos (objetivismo),

emerge, agora, a ideia de um conhecimento mediado linguisticamente e referido à ação. O

conhecimento é, portanto, situado, de antemão, no contexto de uma práxis intersubjetiva entre

memória e esquecimento, historicamente mediada (HABERMAS, 2007). E é tal práxis que visa

sustentar na análise dos Rastros a compreensão dos processos de construção histórica do

professor enquanto sujeito social.

Rastro 8: Memorial: Fragmento de finalização O Curso chegou ao fim, melhor dizendo esta etapa foi concluída. E esta é a minha história, pelo

menos a história que consegui guardar no baú das recordações e agora deixo documentada para

que outras pessoas possam conhecê-la. Cada memória significa e dá sentido ao que sou e às

minhas ações. Toda a minha história está recheada de significados que norteiam a minha busca

por práticas e muitos só foram descobertos com a produção deste memorial de formação. Eu fico

com a certeza de que os cursistas que levaram a formação a sério, o resultado está explicitado

112

na prática da sala de aula, traduzida no reflexo das atitudes, comportamentos e aprendizagens

dos alunos e na concretização do próprio sujeito que buscou, investiu, suou a camisa e alcançou

mais um degrau do conhecimento.

De tudo, ficaram três coisas:

a certeza de que estamos sempre começando...

a certeza de que precisamos continuar...

a certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...

(Fernando Pessoa)

Este memorial buscou apresentar um conjunto de fatos e reflexões com o objetivo de tecer uma

análise sobre o meu processo de formação e produção percorrida até o presente momento.

113

CAPÍTULO IV

5 OS “RASTROS” DA MEMÓRIA – ESQUECIMENTO: OS CAMINHOS DA PESQUISA

Com base nos apontamentos feitos nos capítulos 1, 2 e 3 desta tese, relativos ao objeto de

pesquisa e à abordagem (auto)biográfica orientadora dessa investigação, adoto como opção

metodológica a perspectiva fenomenológica e existencial para esta pesquisa. Conforme

esclarecimentos de Dutra (2002), essa opção justifica-se na medida em que a análise do

esquecimento no currículo do Projeto Irecê exige, antes de tudo, uma compreensão prévia do

existir humano enquanto fenômeno singular do mundo.

Sendo assim, é importante ressaltar que, com o conceito de intencionalidade, a fenomenologia

se contrapõe então à filosofia positivista do século XIX, presa a uma visão objetiva do mundo.

À crença na possibilidade de um conhecimento científico neutro, privado de subjetividade, e,

por consequência, mais distante do homem concreto, a fenomenologia se opõe, apontado uma

retomada da “humanização” da ciência, estabelecendo uma nova relação entre sujeito e objeto,

homem e mundo, estes considerados como polos inseparáveis de uma mesma realidade.

O conceito de fenômeno em sua raiz grega significa “o que aparece”. Daí a fenomenologia

abordar os objetos do conhecimento tais como aparecem, isto é, como se apresentam à

consciência. Neste sentido, inexiste uma realidade “em-si”, separada da relação com o sujeito

que a conhece, isto é, não existe um ser “escondido” atrás das aparências ou do fenômeno. A

consciência desvela paulatinamente o objeto através de perspectivas variadas. Assim, para a

fenomenologia, a consciência se torna doadora de sentido, isto é, fonte de significado para o

mundo. Conhecer, então, se torna um processo interminável, quando a consciência realiza uma

exploração exaustiva do mundo. No entanto, a consciência que o homem tem do mundo é mais

ampla que o mero conhecimento intelectual, visto que a consciência se torna fonte de

intencionalidades não apenas cognitivas, mas também afetivas e práticas. Assim, o olhar que o

homem lança sobre o mundo é o modo pelo qual este experiência o próprio mundo.

Na tradição filosófica da teoria do conhecimento, o próprio conhecimento é descrito a partir da

relação dicotômica entre sujeito e objeto. Neste viés, o homem – o sujeito do conhecimento ou

sujeito cognoscente – é tido como um dos polos na produção/compreensão/interpretação do

114

conhecimento. Dito de outra forma, o homem é percebido em separado do mundo que o rodeia,

resultando numa espécie de objetivação deste homem.

Para Heidegger (2006), no entanto, essa visão dicotômica sujeito/objeto deve ser ultrapassada.

É necessário um conhecimento mais profundo para que se revele o que está encoberto, isto é, a

verdade do ser. Esta compreensão da verdade do ser, no entanto, diz respeito à compreensão do

ser humano que cada um de nós é a cada momento. Não se trata propriamente de uma

antropologia, pois esta, como ciência, recairia na dicotomia sujeito/objeto, mas de analisar a

existência que Heidegger (2006) denomina dasein.

O dasein – que em última instância somos nós mesmos – designa a realidade humana que é

marcada pela temporalidade. Neste sentido, “A busca do sentido do ser não significa, portanto,

uma essencialização de um ser universal e metafísico”. Heidegger (2006) desenvolve a ideia do

ser-no-mundo, fundamento do daisen, que poderia ser definido como pré-sença, estar-aí, ser-aí

(TOURINHO; SÁ, 2002).

Assim, quando considerada a perspectiva de transformação do conhecimento científico do

significado do ser humano, a tarefa da analítica existencial heideggeriana é a de resguardar as

estruturas ontológicas do dasein dos riscos próprios ao procedimento da objetivação

coisificante, comum nas abordagens científicas, e mesmo filosóficas, consideradas por

Heidegger (2006) como insuficientes. Em nosso ser ou estar no mundo, ou em nosso processo

de interpretação do mundo, vamos lançando mão ou nos deparando com, e nos apropriando de

referências que poderão possibilitar a ampliação da compreensão de mundo.

Com vistas a instrumentalizar esse método, utilizo como técnica de pesquisa o método estrutural

de leitura, a partir da perspectiva filosófica, como o definiu Victor Goldschmidt (1970). Isso

porque a pesquisa é desenvolvida, sobretudo, com fontes escritas, complementadas pela

oralidade dos sujeitos pesquisados. “Segundo esse método, deve-se dedicar atenção

privilegiada à estrutura interna do texto, o seu caráter sistemático e orgânico”

(GOLDSCHMIDT, 1970, p. 14).

Como nos aponta Macedo Júnior, “neste tipo de leitura se admite a premissa metodológica [...]

de que um texto deve ser lido como parte de um sistema coerente de argumentos, conceitos e

proposições” (MACEDO JÚNIOR, 2007, p. 16). Assim, a pesquisa foi desenvolvida com vistas

115

a fazer uma interpretação do lugar do esquecimento no currículo do Projeto Irecê, e a

identificação dos “Rastros” do esquecimento. Nesse tipo de pesquisa interessa muito mais o

processo do que o produto, por isso, faz-se necessária uma suspensão temporária ao

interpretarmos os rastros encontrados.

É importante frisar que não estamos com isso afirmando preconceitos que porventura possam

existir do pesquisador para com o objeto pesquisado e nem realizando uma defesa de posição

neutra, típica das pesquisas positivistas, mas uma suspensão como um exercício dialético, que

consegue conceber movimento e contradição no bojo de todo e qualquer processo de

conhecimento ou vivência social, até mesmo porque integrei a equipe do Projeto Irecê desde

sua implantação.

5.1 UMA FENOMENOLOGIA DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO

Como afirmado anteriormente, a fenomenologia é uma disciplina descritiva cujo escopo é

principalmente a natureza da experiência humana, isto é, as características estruturais dos

diversos tipos de experiência (percepção, pensamento, memória, imaginação, emoção, desejo,

vontade e ação), além de como as coisas (aqui nesta pesquisa, os fenômenos) são

experimentadas. A fenomenologia afirma que nossa experiência se dirige para as coisas através

de conceitos, pensamentos, ideias e imagens, cujo conteúdo compõe o significado de uma

determinada experiência, ainda que tais conteúdos sejam diferentes das coisas mesmas que eles

(re)apresentam. Conforme a fenomenologia husserliana, a estrutura central de uma experiência

é a sua intencionalidade, isto é, o modo como experiência se dirige, através do seu conteúdo ou

significado, para um determinado objeto do mundo.

Os fenômenos, por sua vez, são considerados como “coisas” ou “fenômenos” tal como

aparecem a nossa consciência, não sendo considerados, contudo, “estados mentais”, mas tão

somente o mundo quando visto por uma determinada perspectiva. Aqui a consciência do tempo

se incorpora aos fenômenos de três modos, conforme Husserl: como “impressão primal”, que é

a consciência do evento presente percebido como presente; como “retenção”, a consciência

intencional do evento passado como passado; e finalmente como “protensão”, consciência

intencional de um evento futuro prestes a acontecer (HUSSERL, 1991). Contudo, uma questão

emerge daí: como é possível que os atos mentais possam ser experimentados conforme uma

determinada temporalidade? Husserl nos adverte então para a existência do que ele denominou

116

de “consciência constituinte absoluta”, isto é, um tipo de consciência atemporal (HUSSERL,

1991).

De forma complementar – ainda que inseparável da temporalidade e da própria consciência

temporal – existe uma série de condições subjetivas e práticas sociais que possibilita a

intencionalidade manifestar-se: habilidades e competências individuais, a consciência de si, do

outro e das coisas, a diversidade cultural e linguística, bem como o contexto em que se

concretiza a ação individual no mundo circundante. Metodologicamente, a experiência

consciente é então analisada na fenomenologia ou como uma descrição pura da experiência

vivida (no pensamento de Husserl e de Merleau-Ponty) ou como uma interpretação dos tipos

de experiência a partir de um contexto em que se realiza (a exemplo da hermenêutica

heideggeriana). Tal como primeiramente proposta em suas investigações lógicas (1990), a

fenomenologia toma por seu objeto as coisas do mundo como fenômenos, isto é, em seu

acontecimento. Não pressupõe a existência independentemente. Assim, consciente, pois, dessas

condições subjetivas e práticas sociais em que me insiro enquanto pesquisadora, compreendo a

dificuldade em objetivar meu tema de pesquisa desde as aulas de projeto de tese I e II17, quando

a pergunta dos professores e colegas eram sempre as mesmas, “como você vai encontrar esse

esquecimento”? “Vai perguntar ao professor-cursista o que ele esqueceu”? “Como encontrar

esses ‘espaços’ para o esquecimento no currículo do projeto Irecê?” Confesso que, quanto mais

lia sobre o assunto, mais pensava sobre meu caminho metodológico e as possíveis

possibilidades para a interpretação do meu tema de pesquisa.

Nesse processo metodológico, o diálogo com Paul Ricouer foi esclarecedor, sobretudo, a partir

da leitura da obra A memória, a história, o esquecimento, publicada no Brasil em 2007. Nessa

obra foi possível localizar a noção de Rastro, que assumiu, nessa investigação, o lugar de

conceito por meio do qual busquei encontrar o suposto esquecimento. Dicionarizada como

“vestígio; pegada ou sinal deixado ao caminhar; qualquer sinal que fica quando algo passa: o

rastro do navio”, o rastro também é classificado, em sentido figurado, como “sinal; o que dá

pistas do aparecimento de: o ladrão não deixou rastro” (HOLANDA, 2009).

É nesse sentido que recuperamos a ideia de rastro, também explorada por Gagnebin em seus

ensaios sobre a memória e o esquecimento. Para a teórica, o rastro é constituído – inclusive o

17 Disciplinas obrigatórias do programa de pós-graduação – doutorado em educação da Faced/Ufba. Os projetos são socializados para possíveis intervenções e contribuições dos colegas e professores.

117

rastro da escrita – por duas características básicas: uma não intencionalidade e uma potencial

violência. O rastro escrito, ao contrário do que criam as antigas civilizações, em que a escrita

ocupava o espaço de duplo do mundo real, e a palavra conservava o seu poder mágico, bem

como o escritor o seu posto de malabarista de verdades, deixou de ser um rastro privilegiado,

ainda que seja “mais duradouro do que outras marcas da existência humana” (GAGNEBIN,

2006, p. 113). A escrita, para Gagnebin: É rastro, sim, mas no sentido preciso de um signo ou, talvez melhor, de um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara. Rastro que é fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado por um animal que corre ou por um ladrão em fuga, ele denuncia uma presença ausente – sem, no entanto, prejudicar sua legibilidade. Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação, o decifrar dos rastros também é marcado por essa não intencionalidade. O detetive, o arqueólogo, o psicanalista, esses primos menos distantes do que parecem ser à primeira vista, devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta, mas também tentar adivinhar o processo, muitas vezes violento, de sua produção involuntária. Rigorosamente falando, rastros não são criados – como são outros signos culturais e linguísticos –, mas sim deixados ou esquecidos. (GAGNEBIN, 2006, p. 113).

Os rastros seriam tanto as marcas de que algo se passou, ou de que algo passou por um lugar,

bem como a ação que produziu aquele vestígio. A passagem que produz a marca confere ao

rastro uma dinâmica, a possibilidade de resgatar a narrativa que criou tal marca da passagem;

e, ao mesmo tempo, essa marca tem uma permanência no aqui e no agora, ligada ao documento

que contém o rastro. O rastro é, ao mesmo tempo, móvel e estático, porque fala de um ato que

aconteceu e que também se faz visível naquele momento em que é reconhecido enquanto tal,

numa inscrição mais duradoura

Tendo em vista essa compreensão prévia, já que eminentemente etimológica, inspiramo-nos em

Ricoeur para a qualificação desse conceito capaz de orientar as técnicas de pesquisa a serem

desenvolvidas na taxonomia apresentada no capítulo 5. Segundo Ricouer, toda a problemática

do esquecimento se decide na articulação dos rastros, que o autor classificou em três espécies:

o rastro escrito, que se tornou, no plano da operação historiográfica, rastro documental; o rastro

psíquico, que é preferível chamar de impressão, no sentido de afecção, deixada em nós por um

acontecimento marcante, ou, como se diz, chocante; enfim, o rastro cerebral, cortical, tratado

pelas neurociências, esse já apresentado na seção anterior.

118

Partindo dessa classificação, criamos uma “Taxionomia do Esquecimento”, baseada na ideia de

Ricoeur quando apresenta a “taxionomia da memória, fenomenologia da memória”, na sua obra

A memória, a história, o esquecimento. Além dos estudos de Connerton (2008) sobre o

esquecimento. As dimensões apresentadas do esquecimento têm o intuito de compreender o

campo e objeto investigado nessa tese, bem como o lugar do esquecimento nos currículos de

formação de professores. E este é o sentido rastreado metodologicamente neste trabalho, haja

vista que, através da memória do Projeto Irecê, intento fazer uma interpretação do lugar do

esquecimento no currículo, e a identificação e classificação dos “Rastros” do esquecimento no

processo de formação de professores.

Tal identificação e classificação dos Rastros do esquecimento na Taxionomia proposta serão

feitas, portanto, a partir dos seguintes instrumentos de pesquisa: memoriais (de conclusão dos

cursos de graduação em Pedagogia Irecê e Tapiramutá), pareceres avaliativos das atividades de

Registro e produção (diários e memoriais), diários de ciclo, e-mails da equipe trocados sobre o

trabalho com memórias, ata de reuniões realizadas em Irecê ou em Salvador pelo grupo de

pesquisa FEP, “conversas” com o grupo gestor, a memória remissiva da autora - itinerância

no/do Projeto Irecê e tese sobre o trabalho com memórias no projeto.

A taxionomia do esquecimento proposta para esse trabalho, inspirada na taxionomia da

memória em Ricoeur (1990), que aborda o esboço fenomenológico da memória, com a

descrição dos fenômenos mnemônicos do ponto de vista das capacidades das quais eles

constituem a efetuação “bem-sucedida” da memória me fez lembrar a taxionomia de Bloom.

Logo, é preciso falar em esquecimento para falar em reconhecimento. Não seria o esquecimento

outra coisa que não aquilo de que nos lembramos de ter esquecido, porque dele nos recordamos

e o reconhecemos?

É para conjurar a ameaça de um esquecimento mais radical que Santo Agostinho, retórico,

arrisca-se a associar à lembrança da memória uma lembrança do esquecimento, “é a memória

que retém o esquecimento” (RICOEUR, 2007, p. 111). E os Rastros seriam o testemunho da

existência desse esquecimento. Seria a imagem do esquecimento que a memória retém do que

o próprio esquecimento. Desde os comentários dos textos de Platão e de Aristóteles,

fundamentados na metáfora da impressão na cera, que os Rastros se constituem como vestígios.

119

Nas ciências neuronais, costuma-se enfrentar diretamente o problema dos rastros mnésicos,

visando a localizá-los ou subordinar as questões de topografia às de conexidade, de hierarquia

de arquitetura sinápticas; daí, passa-se as relações entre organização e função e, com base nessa

correlação, identifica-se o correspondente mental (ou psíquico) cortical em termos de

representações e imagens, entre as quais as imagens mnésicas. O esquecimento é então evocado

nas proximidades nas disfunções das operações mnésicas, na fronteira incerta entre o normal e

o patológico.

Nesse sentido, dito como se pensa a noção de Rastro e como esse elemento é necessário para a

organização da taxonomia do esquecimento, faz-se necessário tecer algumas considerações

acerca do que consideramos ser a taxonomia. A palavra Taxonomia (do grego

antigo τάξις táxis, arranjo, ordenação e nomia νοµία, método, norma), é todo sistema de

classificação, é a disciplina acadêmica que define os grupos de organismos biológicos, com

base em características comuns e dá nomes a esses grupos. É um termo bastante usado em

diferentes áreas e é a ciência de classificação, denominação e organização de um sistema pré-

determinado e que tem como resultante um framework conceitual para discussões, análises e/ou

recuperação de informação (KRATHWOL, 2002).

Sabe-se da importância metodológica que assumiram esses espaços e essas distribuições “naturais” para a classificação, nos fins do século XVIII, das palavras, das línguas, das raízes, dos documentos, dos arquivos, em suma, para a constituição de todo um ambiente de história (no sentido agora familiar da palavra), em que o século XIX reencontrará, após esse puro quadro das coisas, a possibilidade renovada de falar sobre palavras. E de falar sobre elas não mais no estilo do comentário, mas segundo um modo que se considerará tão positivo, tão objetivo quanto o da história natural. (FOCAULT, 2000, p. 179)

No campo da pedagogia, Benjamin S. Bloom e outros educadores assumiram a tarefa de

classificar metas e objetivos educacionais com a intenção de desenvolver um sistema de

classificação para três domínios: o cognitivo, o afetivo e o psicomotor; criaram para isso, no

domínio cognitivo, a Taxonomia de Bloom. A principal ideia da taxonomia é que aquilo que os

educadores esperam que os alunos saibam (englobado na declaração de objetivos educacionais),

possa ser arranjado numa hierarquia do nível de menor complexidade para o de maior. Os níveis

são entendidos para ser sucessivos, de modo que um nível deve ser dominado antes que o

próximo nível seja alcançado.

120

Segundo Bloom e outros, vários pesquisadores utilizaram-se dessa terminologia conceitual

baseada em classificações estruturadas e orientadas para definir algumas teorias instrucionais.

Benjamin S. Bloom e seus colegas criaram a taxonomia buscando uma forma de facilitar a troca

de questões de testes entre professores de várias universidades, cada questão avaliando o mesmo

objetivo de aprendizagem. A taxonomia original de Bloom provê definições cuidadosas para as

seis principais categorias do domínio cognitivo: conhecimento, compreensão, aplicação,

análise, síntese e avaliação. Segundo o autor, estas categorias são ordenadas da mais simples

para a mais complexa. Além disso, a taxonomia é uma hierarquia cumulativa, onde uma

categoria mais simples é pré-requisito para a próxima categoria mais complexa. Existem verbos

associados a cada um dos níveis da taxonomia mencionados anteriormente. São eles: Lembrar,

Entender, Aplicar, Analisar, Avaliar e Criar.

A categoria lembrar, estrutura do processo cognitivo na taxonomia de Bloom relacionado a

reconhecer e reproduzir ideias e conteúdos, nos instiga a analisar como os “abusos” da memória

foram tão legítimos no campo da educação, e a taxionomia de Bloom reforçou na medida em

que reconhece distinguir e selecionar uma determinada informação e reproduzir ou recordar

está mais relacionado à busca por uma informação relevante memorizada. Para a teoria de

Bloom a categoria lembrar recupera conhecimento relevante da memória de longo termo.

Tornou-se a categoria mais alta da hierarquia desse sistema (THOMPSON et al., 2008).

Os processos categorizados pela Taxonomia dos Objetivos Cognitivos de Bloom, além de

representarem resultados de aprendizagem esperados, são cumulativos, o que caracteriza uma

relação de dependência entre os níveis e são organizados em termos de complexidades dos

processos mentais. A taxionomia de Bloom foi supervisionado por David Krathwohl, que

participou do desenvolvimento da Taxonomia original no ano de 1956, e, no ano de 2001, o

relatório da revisão foi publicado num livro intitulado A taxonomy for learning, teaching and

assessing: a revision of Bloom’s taxonomy for educational objectives (ANDERSON et al.,

2001).

Repousavam numa espécie de a priori histórico que as autorizava em sua dispersão, em seus

projetos singulares e divergentes, que tornava igualmente possíveis todos os debates de opiniões

de que eles eram o lugar. Esse a priori não é constituído por um equipamento de problemas

constantes que os fenômenos concretos não cessariam de apresentar como enigmas à

curiosidade dos homens; tampouco é formado por um certo estado de conhecimentos,

121

sedimentado no curso das idades precedentes e servindo de solo aos progressos mais ou menos

desiguais ou rápidos da racionalidade; nem mesmo é determinado, sem dúvida, pelo que se

denomina a mentalidade ou os “quadros de pensamento” de uma dada época, se com isso se

entender o perfil histórico dos interesses especulativos, das credulidades ou das grandes opções

teóricas.

Esse a priori é aquilo que, numa dada época, recorta na experiência um campo de saber possível, define o modo de ser dos objetos que aí aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes teóricos e define as condições em que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro. O apriori histórico que, no século XVIII, fundou as pesquisas ou os debates sobre a existência dos gêneros, a estabilidade das espécies, a transmissão dos caracteres através das gerações, é a existência de uma história natural: organização de um determinado visível como domínio do saber, definição das quatro variáveis da descrição, constituição de um espaço de vizinhanças onde todo indivíduo, qualquer que seja, pode vir localizar-se. A história natural, na idade clássica, não corresponde à pura e simples descoberta de um novo objeto de curiosidade; recobre uma série de operações complexas que introduzem, num conjunto de representações, a possibilidade de uma ordem constante. Constitui como descritível e ordenável ao mesmo tempo todo um domínio de empiricidade. O que a aparenta às teorias da linguagem a distingue do que nós entendemos, desde o século XIX, por biologia e a faz desempenhar no pensamento clássico um certo papel crítico. (FOCAULT, 2000, p. 218).

O conhecimento histórico, integrado à memória individual e coletiva, se perpetua no modo

mnemônico de se educar, que Ricoeur chama de “traços trans-históricos da memória” e suas

expressões variáveis ao longo da história. É importante notar a supremacia da memória e dos

processos mnemônicos na área da educação. Ainda para o autor:

O projeto de descrever as maneiras de aprender visando a uma tal afetuação fácil do ponto de vista das técnicas de aquisição, e de tentar discernir as falhas pelas quais o abuso pode se insinuar no seu uso. Seguiremos uma ordem de complexidade crescente em que as oportunidades do mau uso aumentarão na medida da ambição de domínio exercida sobre o processo inteiro de memorização. Porque é mesmo nessa ambição de domínio que reside a possibilidade de resvalar do uso para o abuso. (RICOEUR, 2010, p. 73, grifo nosso).

Ricoeur apresenta a fenomenologia da memória estruturando em duas perguntas básicas: De

que há lembrança? De quem é a memória? Essas duas perguntas são formuladas dentro do

espírito da fenomenologia husserliana. Privilegiou-se, nessa herança, a indagação colocada sob

o adágio bem conhecido segundo o qual toda consciência é consciência de alguma coisa. “Essa

abordagem “objetal” levanta um problema específico no plano da memória. Não seria ela

fundamentalmente reflexiva, como nos inclina a pensar a prevalência da forma pronominal:

122

lembrar-se de alguma coisa e, de imediato, lembrar-se de si? RICOEUR, 2010, p. 23). Somos

aquilo que somos ou somos aquilo que pensamos ser, graças a intricados processos mnemônicos

reforçados pela cultura da educação memorizada. É justamente pelo processo educativo que

nos apropriamos, implícita ou explicitamente, das regras necessárias para o jogo da vida social.

Como mostrou Hannah Arendt, educar alguém é trazer esse alguém (que não estava aí) para

uma vida social (que já estava aí). Essa vida social que já estava aí se dá segundo um conjunto

de significados, artefatos, rituais, costumes, práticas, crenças e valores ao qual são reforçados

ou anulados por processos da memória e/ou do esquecimento.

5.2 A TAXIONOMIA DO ESQUECIMENTO

“Daquilo...daquilo” esquecera-se completamente; mas lembrava-se a todo o momento que se esquecera de qualquer coisa de que não era possível esquecer-se... e angustiava-se e afligia-se perante essa recordação; gemia, enfurecia-se ou espantava-se, ficava tomado de um medo indomável. Então erguia-se na cama, queria disparar; mas havia sempre alguém que o dominava à força, e caía de novo na inércia e no torpor. (Dostoiévski, Crime e Castigo)

Polônia, Segunda Guerra Mundial, 10 de abril de 1945. Elie Wiesel, com dezesseis anos, foi

libertado do campo de concentração de Buchenwald pelas tropas americanas. Cerca de um ano

antes fora deportado com toda família e os demais judeus de sua aldeia natal de Sighet, pequena

cidade na Transilvânia, para Auschwitz. Já na primeira seleção sua mãe e as três irmãs, Hilda,

Bea e Tzipora, foram separadas dele e de seu pai, e ele nunca mais teve notícias delas. Eliezer

(o padre chamava assim) ficou junto com seu pai nos campos de concentração de Auschwitz e

Buna, e juntos lutaram diariamente para sobreviver. Só no final da marcha de morte para

Buchenwald, poucos dias antes da libertação, o pai morreu exausto e debilitado, com o nome

do filho nos lábios.

Elie Wiesel era o único sobrevivente de uma família judia e única testemunha que ainda podia

falar em nome deles. Isso não ocorreu imediatamente depois da libertação. Só dez anos mais

tarde, instigado pelo escritor francês François Mauriac, Elie Wiesel escreveu em francês, sob o

título Moite (Nuit), o que os torturadores e assassinos de Auschwitz e Buchenwald, pessoas em

uniformes alemães, tinham feito ao seu povo sua família e a ele próprio. Em muitos outros

livros e artigos Elie Wiesel escreveu desde então sobre o Holocausto e sempre tentou colocar

em palavras compreensíveis o incompreensível desse genocídio e preservar do esquecimento a

123

lembrança das vítimas. Que isso tenha acontecido na linguagem do luto e do amargor, mas sem

ódio nem ideias de vingança, revela uma profunda humanidade que todos os leitores desse

autor, agraciado em 1986 com o Prêmio Nobel da Paz, podem reconhecer como um sinal de

esperança.

Elie Wiesel escreveu seu livro Noite e todos os outros textos para cumprir um juramento que

datou da sua primeira noite em Auschwitz. A família já está separada, os fornos de cremação

fumegam, os prisioneiros recém-chegados entendem que fim os aguarda. O juramento de Elie

Wiesel diz o seguinte na linguagem solene e poética, quase bíblica, que o autor lhe conferiu em

retrospectiva: Não esquecerei jamais essa noite, a primeira noite de acampamento que fez de minha vida uma longa noite sete vezes almadiçoada; Não esquecerei jamais essa fumaça; Não esquecerei jamais os rostinhos das crianças cujos corpos se transformavam em volutas de fumo sob o azul mudo; Não esquecerei jamais as chamas que consumiram para sempre a minha Fé; Não esquecerei jamais esse silêncio noturno que me roubou para sempre a vontade de viver; Não esquecerei jamais os instantes que assassinaram o meu Deus e a minha alma, meus sonhos que viraram areia do deserto; Não esquecerei jamais aquilo, mesmo que seja condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Jamais.

Não posso imaginar nenhum leitor de Noite, de Elie Wiesel, que pudesse ler esse juramento sem ser profundamente oprimido por entender bem o seu significado. Aqui não se permite mais nenhum esquecimento. Aqui também não existe arte de esquecer, e não deve haver nenhuma. Mas tendo em vista os textos posteriores do autor, e outros documentos da literatura do Holocausto, já aqui pode-se dizer que com esse juramento os problemas da memória de Auschwitz não foram resolvidos, e os perigos do esquecimento não foram definitivamente afastados. Percebemos isso já quando Elie Wiesel escolheu para seu juramento, em lugar da simples afirmação “Recordarei”, a negação dupla “Não esquecerei jamais” Ele realmente não esquecerá jamais? E os que vierem depois dele, não esquecerão? (WEINRICH, 2001, p. 252).

A arte de esquecer, o esquecer seria uma arte? Motivação de um novo agir, uma reorganização

da memória? Segundo Nietzsche, constatamos que com a indagação pela memória e o

esquecimento se levanta quase que inevitavelmente a questão moral. Portanto, não se trata

apenas daquilo que nós – com ou sem arte – podemos lembrar ou esquecer, mas também daquilo

que – com ou sem arte – precisamos absolutamente lembrar, e devemos esquecer. Para

Weinrich,

[...] liga-se diretamente a isso a questão de saber se e em que medidas as realizações da memória e do esquecimento estão em nosso poder, portanto se

124

podemos também na melhor consciência efetivamente lembrar ou esquecer aquilo que queremos lembrar ou esquecer. (2001, p. 185).

Brasil, Camaçari, Bahia, setembro de 2015, caminhada com a orientadora na praia de

Itacimirim, comento sobre a intenção do meu itinerário da pesquisa, em busca dos caminhos

trilhados entre o esquecer e o lembrar dos professores do Projeto Irecê em análise. Construímos

algumas reflexões sobre o binômio memória-esquecimento, que nos serviram de base para

formular a Taxionomia do Esquecimento, com a classificação das dimensões do esquecimento

a ser feita neste e no próximo capítulo.

Mas, foi mais precisamente em meados do ano 2014, no decorrer do caminhar da pesquisa, para

alcançar o objetivo de compreender os espaços do esquecimento na formação de professores,

que formulei a seguinte questão norteadora: quais são os “espaços” (formais, informais,

emergentes) disponibilizados (intencionalmente ou não) para o esquecimento pelos currículos

que utilizam como dispositivo de formação o trabalho com memória(s)? Entretanto, ao me

deparar com a atualização do meu memorial para a escrita da tese, percebi como foi “forte” a

minha formação pedagógica como aluna e como formadora com o trabalho com as

(auto)biografia de formação. A imersão na leitura de Paul Ricoeur sobre o esquecimento como

parte integrante do movimento da memória, me possibilitou pensar também em dimensões do

esquecimento a partir das minhas reflexões sobre o uso e abuso das memórias nos currículos de

formação de professores. Corroboro e me associo a essa ideia, devido a minha experiência como

professora-orientadora no curso de pedagogia do Projeto Irecê.

Minha escolha pelo expediente da problematização metodológica com a taxionomia se justifica,

sobretudo, e diria se aproxima com a taxionomia de Bloom ao pensar algumas dimensões

complexas e inter-relacionadas entre si, sobretudo na objetivação do esquecimento no sentido

do entrecuzamento da memória-esquecimento. E se distancia, a partir do momento em que não

caracterizamos uma organização de um sistema já “pré-determinado” e hierarquizado do

esquecimento, não atribuímos ainda ao esquecimento o fracasso dos processos de

aprendizagem, já que a categoria lembrar ocupa o nível mais alto da sua taxionomia.

Ousaria associar o sentido da taxionomia do esquecimento com a taxinomia abordada por

Foucalt em as palavras e as coisas. O autor destacou que todo saber clássico relaciona-se com

a mathesis, ciência universal da medida e da ordem. A ordenação de naturezas simples realiza-

125

se por meio da ma-thesis, que tem como método universal a álgebra. Já a taxonomia

(classificação) é um modo para ordenar naturezas complexas, por meio da instauração de um

sistema de signo. A taxinomia

[...] não se opõe à mathesis: inclui-se nela e, no entanto, distingue-se dela; porque ela é também uma ciência da ordem – uma mathesis qualitativa. Mas entendida no sentido estrito, a mathesis é a ciência das igualdades, portanto das atribuições e dos juízos; é a ciência da verdade; a taxinomia, por sua vez, trata das identidades e das diferenças; e a ciência das articulações e das classes; é o saber dos seres. (FOCAULT, 2000, p. 220).

Para que a taxinomia seja possível, é “necessário que a natureza seja realmente contínua e na

sua plenitude mesma. Lá onde a linguagem requeria a similitude das impressões, a classificação

requer o princípio da menor diferença possível entre as coisas” (FOCAULT, 2000, p. 220).

Ainda na obra acima mencionada, Focault apresentou as aventuras de Dom Quixote que traçam

o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos; nelas já se travam novas

relações. Dom Quixote não é o homem da extravagância, mas antes o peregrino meticuloso que

se detém diante de todas as marcas da similitude. Ele é o herói do Mesmo. Assim como de sua

estreita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno do

Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença,

nem alcançar o coração da identidade. Ora, ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo

magro como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros. E cada episódio, cada

decisão, cada façanha serão signos de que Dom Quixote é de fato semelhantes a todos esses

signos que ele decalcou (FOCAULT, 2000).

Quanto à ordem, estabelece-se sem referência a uma unidade exterior: “Reconheço, com efeito, qual é a ordem entre A e B sem nada considerar senão esses dois termos extremos”; não se pode conhecer a ordem das coisas “na sua natureza isoladamente”, mas, sim, descobrindo aquela que é a mais simples, em seguida aquela que é a mais próxima para que se possa aceder necessariamente, a partir daí, até as coisas mais complexas. Enquanto a comparação por medida exigia primeiro uma divisão, depois a aplicação de uma unidade comum, aqui comparar e ordenar são uma única e mesma coisa: a comparação pela ordem é um ato simples que permite passar de um termo a outro, depois a um terceiro etc., por um movimento “absolutamente interrupto”. (FOCAULT, 2000, p. 73).

Dos signos de Focault aos rastos do esquecimento. Não é um signo totalizante, mas um rastro

que perpassa da/na memória. Esquecimento, talvez, não seja mais que um rastro em meio a

uma grande paisagem memorialística modelada pela memória. Mas, apoiando-nos nas ideias

126

sobre o rastro aventadas por Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar esquecer escrever (2006),

fazemos coro à sua voz: assim como ao detetive interessa “a marca impressa que deixa, por

exemplo, aquele que quis apagar seus rastros, no cuidado de realizar um crime perfeito”

(LEVINAS apud GAGNEBIN, 2006, p. 114).

Retomemos a articulação entre educação e memória no pensamento moderno, conforme a

reflexão nietzschiana. A principal crítica de Nietzsche à educação moderna está dirigida contra

o excesso de memorização praticado nos estabelecimentos de ensino alemães do século XIX.

O apelo ao cultivo da memória, da repetição de modelos pré-estabelecidos, não caracteriza uma

educação que valorize a vida, que possibilite a criação e o avanço da cultura. É uma educação

que está preocupada em produzir mão de obra para o mercado, que leva à massificação e

despersonalização dos discentes, afastando-os de sua singularidade, de suas possibilidades

criativas. Essa tendência educativa valoriza a formação erudita, a busca incessante pelo

acúmulo de saber que será utilizável no mercado, no circuito produtivo.

Nietzsche, na Genealogia da moral, faz crítica ao excesso de memória e ressalta a força ativa

do esquecimento, mas não estabelece a prevalência do esquecimento sobre a memória. O que,

na verdade, quer destacar é a dinâmica e a harmonização que deve existir entre a memória e o

esquecimento, mostrando que ambos são necessários ao homem. Contudo, é necessário dosar

lembranças e esquecimentos, pois uma memória excessiva acaba por deteriorar a harmonia e o

bom funcionamento psíquico do ser humano. É importante para o homem que deseja “chegar a

ser o que se é” encontrar a medida certa entre o lembrar e o esquecer, isto é, a medida que

potencializa a vida.

Nietzsche interpreta o esquecimento como uma força ativa em oposição ao ressentimento,

processo de caráter reativo. O ressentimento liga-se a um excesso de memorização, um

constante re-sentir e, por isso, não moveria o homem à ação, já que promove a interiorização e

não a exteriorização das suas forças existentes. Memória e esquecimento, na visão do filósofo,

não constituem conceitos opostos, nem há prevalência de um sobre o outro, mas isso evidencia

uma dinâmica que nasce na relação social: dinâmica que oscila entre o lembrar e o esquecer.

Nietzsche, ao discutir a relação entre memória e esquecimento, na Genealogia da moral, utiliza

o método genealógico para avançar nessa discussão, levantando uma hipótese ligada aos valores

morais, consolidados e cristalizados como verdades no meio social. Em sua análise, o filósofo

desenvolve uma crítica a tais valores, questionando os ideais estabelecidos em sua época,

127

portanto, faz-se necessário, neste trabalho, evidenciar tal crítica e a visão diferenciada do

filósofo sobre a origem e vigência desses valores. Desta forma, abordamos a concepção de

homem na interpretação de Nietzsche, assim como sua perspectiva acerca de uma vida

afirmativa em contraposição à vida declinante que ele denuncia como sintoma da época

moderna.

Em outro sentido, mas muito mergulhada nas ideias dos autores sobre esquecimento, propomos

o desenvolvimento de oito tipos de esquecimento: esquecimento comandado; esquecimento

feliz; esquecimento de registro; esquecimento recalcado; esquecimento de fuga ou luto;

esquecimento de rupturas; esquecimento silencioso; e esquecimento de uso e abuso. Cada um

desses tipos será apreciado de acordo com o modo como eles aparecem no itinerário de

formação analisado no capítulo que se segue. Entretanto, elaboro uma síntese, abaixo, com a

esquematização desses tipos.

Esquecimento Comandado –. Na construção dessa primeira dimensão do esquecimento,

inspiramo-nos em Paul Ricoeur quando aborda o nível prático da memória manipulada. É um

esquecimento liderado, em que pode haver manipulações intencionais ou não. Oriundo das

instituições formais da sociedade (igreja, escola, universidade, impressa...). Os abusos de

memória colocados sob o signo da memória obrigada, comandada. Abusos, no sentido forte do

termo, que resultam numa manipulação forte do termo, numa manipulação concertada da

memória e do esquecimento por detentores de cultura e poder. Esse esquecimento situa-se no

cruzamento entre a problemática da memória e a identidade, tanto coletiva como pessoal. Trata-

se ainda do fenômeno da ideologia. “Anistia, e de modo mais marginal, do direito de graça,

também chamado de graça anistiante” (RICOEUR, 2010, p. 459). A anistia enquanto

esquecimento institucional, toca nas próprias raízes do político e, através deste, na relação mais

profunda e mais dissimulada com um passado declarado proibido. Aproxima-se da Amnésia

estrutural discutida por Connerton (2008), que ocorre quando uma pessoa tende a se lembrar

apenas das ramificações de sua genealogia que são socialmente importantes. No esquecimento

produzido pela amnésia estrutural, o que está em jogo são as possibilidades de lembrança e

esquecimento de genealogias que possam ser consideradas socialmente importantes. Deste

modo, na cultura europeia, por exemplo, a ascendência masculina tende a ser melhor memorada

do que as ascendências femininas. Entre culturas matriarcais, diferentemente, a genealogia

matrilinear é mais importante.

128

Esquecimento de uso e abuso – É o esquecimento gerado a partir do uso e abuso da memória,

antes do abuso, há o uso, a saber, o caráter seletivo da narrativa. Uma relação estreita entre

memória declarativa, narratividade, testemunho, representação figurada do passado histórico.

As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de configuração. O

esquecimento está associado à memória, à ideia paradoxal segundo a qual o esquecimento pode

estar tão estreitamente confundido com a memória. E pode ser considerado como uma de suas

condições. O esquecimento de uso e abuso é uma imbricação com a memória de uso e abuso

discutido por Ricoeur. O exagero das intervenções no campo pedagógico da arte do lembrar

para a composição da identidade docente, esse esquecimento é gerado a partir do uso e abuso

da memória, a forte tendência metodológica para a compreensão de si. O reconhecimento de si

através do ato mnemônico. Para Ricoeu, “Quem pode afirmar nunca ter confiado em tais

reencontros da memória? Os acontecimentos norteadores, os acontecimentos fundadores de

uma existência solitária ou compartilhada não dependem dessa confiança primeira? O

esquecimento como acontecimento.

Como dito, optei pela taxionomia para expressar minhas compreensões sobre o esquecimento.

Cada dimensão é um campo vasto para novas imersões, invenções, novos arranjos e

interpretações. As tentativas de compreensão/interpretação das análises dessas dimensões na

próxima seção, sempre em movimento, estabelecem uma coerência com nosso olhar

investigativo no campo dos currículos de formação de professores que trabalham com

memórias, assim outras vozes dialogarão comigo como um jogo de interpretações. Por isso,

passamos para o próximo capítulo, no qual, avaliaremos os modos como as oito dimensões do

esquecimento aparecem nos materiais analisados nessa investigação.

Esquecimento de Registro – A terceira dimensão do esquecimento é a que se caracteriza pelo

apagamento dos registros históricos, diretamente associado à epistemologia da história, suas

condições ideológicas e políticas. Em outros termos, poderíamos dizer, à hermenêutica da

condição histórica para o esquecimento.

Para tornar mais evidente os contornos dessa dimensão, baseamo-nos no esquecimento por

anulação que diferente da amnésia estrutural, que resulta de um déficit de informação, se

constitui a partir de um excesso de informações. Esse tipo de esquecimento por anulação surge

principalmente nos séculos XX e XXI em decorrência do gigantesco volume de informação

produzida pela sociedade de massas mundialmente conectada via internet. Parte significativa

129

destas informações não precisa de imediato estar disponível, ou seja, é possível que, mesmo

tendo a possibilidade de ser recuperada, ela possa ser esquecida (CONNERTON, 2008). Se por

um lado o esquecimento de registro opera com o esmaecimento de memórias e histórias de vida,

o esquecimento como anulação, que, talvez, possa ser compreendido como uma variação dessa

terceira dimensão do esquecimento, o aprofunda num contexto de produção e circulação de

conhecimento nunca antes visto na história da humanidade, de modo a inviabilizar o registro

na memória de número tão elevado de informações.

Esquecimento Recalcado – O quarto tipo de esquecimento é um solo fértil para o campo da

Psicanálise e da Psicologia. Isso porque o esquecimento traumático é aquele oriundo de

traumas, de recalque. O trauma está ligado a um fenômeno cultural que se instala na história da

cultura do século XX, sobretudo relativamente às Guerras Mundiais e ao holocausto. A função

da psicanálise, nesses casos, seria de fazer com que essa memória parcial ocupe um lugar

latente, que ela denuncie esse recalque e objetive os motivos de suas dores, até externalizar-se

ao ser, e assim, poder ocupar o lugar de um verdadeiro esquecimento, enquanto trauma

superado e, fundamentalmente, enquanto memória re-significada. O recalque é uma ideia

presente na teoria de Freud, cuja finalidade era manter fora da consciência uma memória que

causava algum tipo de sofrimento psíquico levando-o a criar o conceito de recalque. No texto

o Recalque (1915), Freud ratifica que este é uma vicissitude da pulsão, aprofundando-se nesta

questão, uma articulação do inconsciente com o esquecimento: Quanto ao esquecimento ou,

mais precisamente ao seu conceito psicanalítico, o recalcamento, Freud afirma: “se, por

exemplo, é relativo a números e algarismos, ele afecta de preferência uma identidade não

empírica, para metaforizar um inefável” (FREUD, 1991, p. 57).

Esquecimento de Fuga ou luto – O quinto tipo, o esquecimento que se quer esquecer, é a

lembrança-imagem que causa desconfortos e dores no indivíduo. Um esquecimento consciente.

Contém uma expressão explícita do desejo de que ações passadas não devam ser perdoadas,

mas tão somente esquecidas. O luto, diz-se no começo, é sempre a reação à perda de uma pessoa

amada ou de uma abstração erigida em substituto dessa pessoa, tal como: pátria, liberdade,

ideal, etc., um fenômeno normal, não melancólico, embora doloroso é que, “quando o trabalho

do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido” (RICOEUR, 2010, p. 86), um trabalho

libertador. No campo da história da humanidade, visa a “restaurar um nível mínimo de coesão

à sociedade civil e para restabelecer a legitimidade do Estado em sociedades onde a autoridade

e as próprias bases do comportamento civis, tinham sido obliteradas por governo totalitário; o

130

esmagador desejo era esquecer o passado recente”. (JUDT, 1992 apud CONNERTON, 2008).

O esquecimento de luto é o custo do trabalho da lembrança; mas o trabalho da lembrança é o

benefício do esquecimento de luto, requer tempo, um tempo de luto.

Esquecimento silencioso – A sétima dimensão é a do esquecimento de silêncios, intencionais

ou não. O silêncio passa então a ser um vestígio arqueológico, um resquício que ainda não foi

assimilado. A ideologia da comunicação assimila o silêncio ao vazio, a um abismo no seio do

discurso, não compreende que, às vezes, é a palavra que forma a lacuna do silêncio. Aproxima-

se do esquecimento como silêncio humilhado, que se torna quase um paradoxo, visto ser mais

fácil esquecer uma dor física do que uma humilhação. Ela se manifesta em um padrão

generalizado enraizado na sociedade civil, e é secreta, não marcada e não reconhecida. E no

silêncio de colusão trouxe por um tipo particular de vergonha coletiva existe detectável tanto

um desejo de esquecer e às vezes o efeito real do esquecimento. No entanto, o silêncio pode ser

uma forma eficiente de expressão, talvez mais do que a própria fala. Neste sentido, a

necessidade do esquecimento revela um "tipo particular de vergonha coletiva” sobre os fatos

que merecem ser esquecidos (CONNERTON, 2008). A linguagem não existe sem a pontuação

do silêncio, que a torna inteligível.

Esquecimento de Rupturas – O sexto tipo de esquecimento é o esquecimento de choques,

acontecimentos que rompem com conceito, paradigmas, esquecimento que gera novos

conceitos, novos conhecimentos, novas aprendizagens... Dialoga com o apagamento repressivo,

pode ser observado sob duas formas: em regimes totalitários, visando a destruir qualquer forma

de lembrança de regimes anteriores; ou, de forma mais sutil, em situações em que há uma

tentativa de sobrevalorizar determinadas formas de cultura em detrimento de outras

consideradas inferiores (invisibilidade). Trata-se, conforme Duncan e Wallach (1980 apud

CONNERTON, 2008), da luta da humanidade contra o poder, transformada na luta da memória

contra o esquecimento.

Esquecimento Feliz – Na segunda dimensão do esquecimento, Nietzsche é nossa inspiração,

naquilo que o filósofo alemão chama de esquecimento ativo, aquele capaz de remover registros

enfraquecedores e desnecessários das ações vivenciadas no dia a dia dos sujeitos, a fim de se

abrir para novas experiências e novas construções históricas, a um descanso, a uma libertação

de algo aprisionador que poderia ser uma lembrança desagradável, digestão psíquica que

permite relaxar diante das experiências vividas, se distender diante do passado. Para Nietzsche,

131

o esquecimento é como uma força plástica, inibidora e ativa, capaz de nos libertar de impressões

repetitivas e doentias ao lidar com algum ultraje, decepção, descontentamento. Podemos

localizar tal concepção nietzschiana principalmente em sua obra de 1887, intitulada Genealogia

da moral. O esquecimento Feliz abre diálogo com o esquecimento prescritivo de Connerton

(2008), por sua vez, lança dúvidas sobre a questão de o esquecimento envolver necessariamente

perdas, visto que descartar memórias que não possuem mais serventia contribui positivamente

na construção de uma nova identidade. Assim, o esquecimento de relacionamentos anteriores,

ou de uma filiação religiosa ou política, por exemplo, é muitas vezes necessária para a

construção de novas identidades individuais ou coletivas. Nietzsche mostra como o

esquecimento pode ser um fator permissivo da felicidade do homem, visto que este, ao se

deparar com um acúmulo excessivo de informações na memória, encontraria aí a sua própria

ruína. Aliás, no processo de autognose e de autorrealização, em que somos guiados pelo mestre,

será importante considerar a dinâmica existente entre o lembrar e o esquecer, já que o

esquecimento (que implica e não se opõe necessariamente ao lembrar) pode abrir as portas para

essa criação, para inaugurar novas possibilidades de vida e de uma cultura autêntica.

“… o esquecimento é a única vingança e o único perdão”

Jorge L. Borges.

132

CAPÍTULO V

6 A ARTE DE ESQUECER E LEMBRAR NO/DO PROJETO IRECÊ

Vamos para a Grécia. É em torno de 500 a.C. Comemora-se uma festa. Essa festa fornece a

moldura para o mito fundador da arte da memória (MNEMOTÉCNICA, ARS MEMORIAE).

(WEINRICH, 2001). Vamos para Irecê e Tapiramutá. Entre os anos de 2002, 2005, 2007 e 2012

comemoramos, então, a instauração de um curso, o Curso de Pedagogia da Universidade

Federal da Bahia. Eis que o sertão comemora, com festa e banquete, a chegada da Universidade.

Eis que na antiga Grécia, poetas como Simônides era convidado, e sua memória visual e

espacial retratava quem sentaria em torno do banquete, “como inventor da mnemotécnica,

considerada uma arte (grego techne, latim ars) que pode vencer até mesmo o esquecimento”

(WEINRICH, 2001, p. 30). Arte longa, vida breve, do latim Ars longa, vita brevis. Para a arte

da memória antiga e medieval é válido – isso já se reconhece como cerne especial da anedota

de Simônides – que nela a memória tem um lugar principal. Assim sendo, é sempre uma

paisagem da memória na qual essa arte se perfaz, e nessa paisagem, tudo o que deve vir a ser

confiavelmente lembrado, tem seu posto determinado. Só o esquecimento não tem lugar ali

(WEINRICH, 2001). Contemporâneo do poeta Simônides, o político e general Temístocles que

viveu em Atenas (524-459 a. C.), foi um dos convidados a estudar a arte da memória. Ao que

Temístocles teria respondido a Simônides, que preferia, pois, aprender a arte de esquecer. O

pequeno trecho da citada anedota se fez conhecido de Camões:

O poeta Simônides, falandoAo capitão Temístocles um dia,Em coisas da ciência praticando,Uma arte singular lhe prometia,

Que netão compunha, com que lhe ensinasseA se lembrar de tudo que o fazia;

Onde tão sutis regras lhe mostrasseQue nunca lhe passasse da memória

Em nenhum tempo as coisas que passassem.Bem merecia, certo, fama e glória

Quem sabe regra contra o esquecimentoQue enterra em si qualquer antiga história.

Mas o capitão claro, cujo intentoBem diferente estava porque havia

As passadas lembranças por tormento;Ó ilustre Simônides! (dizia)

Pois tanto em teu engenho te confiasQue mostras à memória nova via,

133

Se me desses uma arte que em meus diasNão me lembrasse do passado,

Oh, quanto melhor obra me farias! [...]

Anedota de Cícero, Camões (apud WINRICH, 2001, p. 32-33)

E no Projeto Irecê, qual o lugar da memória? Havia, pois, lugar determinado? E o

esquecimento? Teria esse um lugar? Estaria ele mais próximo da memória, do que parece ao

primeiro olhar? Quando comecei a pensar no esquecimento e na abordagem metodológica para

a tese, já havia escolhido o campo de estudo para minhas análises e interpretações sobre o tema,

o Projeto Irecê. Contudo confesso que, durante o processo inicial, fui tomada por óbices na

imersão metodológica, que se dissiparam à medida que me debrucei na apropriação do “campo

teórico” da temática proposta. E assim fui vendo-me imergir num punhado de possibilidades de

análises investigativas no referido projeto. Mesmo porque a nossa compreensão de

esquecimento prevalece como uma força ativa que absorve as impressões da memória. E a

mesa do nosso banquete, essa também é composta de diversos “Rastros”: os memoriais, os e-

mails, o caderno de orientação, as orientadoras, os pareceres dos trabalhos de conclusão do

curso, as coordenadoras e minha memória remissiva, que especificamente nessa seção será

lembrada pela personagem Lete.

Não queremos aqui nesta seção “tratar” o esquecimento como acontecimento, algo que ocorreu e

que se faz ocorrer, tampouco criar categorias ancoradas para simples análises de fatos pontuais.

Para Ricoeur, “Obviamente pode-se perceber o que se esqueceu, e nota-se isso num dado momento.

Mas o que se reconhece então é o estado de reconhecimento no qual se estava” (2010, p. 508). E a

esse estado ao que Nietzsche nomeia de “força”, em Genealogia da Moral, aqui tomarei por

“dimensões do esquecimento, compostas de Rastros do Esquecimento do Projeto Irecê”. É rastro, sim, mas no sentido preciso de um signo ou, talvez melhor, de um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara. Rastro que é fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado por um animal que corre ou por um ladrão em fuga, ele denuncia uma presença ausente – sem, no entanto, prejudicar sua legibilidade. Como quem deixa rastros não o faz com intenção de transmissão ou de significação, o decifrar dos rastros também é marcado por essa não-intencionalidade. O detetive, o arqueólogo, o psicanalista, esses primos menos distantes do que parecem ser à primeira vista, devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta, mas também tentar adivinhar o processo, muitas vezes violento, de sua produção involuntária. Rigorosamente falando, rastros não são criados – como são outros signos culturais e linguísticos –, mas sim deixados ou esquecidos. (GAGNEBIN, 2006, p.113, grifo nosso).

134

Uma lembrança é um acontecimento, e com ela vêm à tona as dimensões postas pelo esquecimento,

interpretadas aqui com seus dilemas próprios. Esses se devem ao fato de que, enquanto a memória

lida com acontecimentos até nas trocas que dão lugar a retribuição, reparação, absolvição, o

esquecimento desenvolve situações duradouras e que, nesse sentido, podem até mesmo serem

chamadas de históricas.

E tal como contador de causos que a cada prosa versa um pouco de si e do mundo sob seus olhos,

assim darei por apresentar algumas memórias. Elas vividas por mim, e também pelo outro que se

fez memória em torno de mim, delas quais as recordações me são fiéis tal qual a ocasião, d’outras

que o arteiro esquecimento tomou-me sem que me desse por perceber. E deixo-as à disposição do

caro leitor, para que nelas interaja e construa suas próprias significações.

E foi ao longo do curso de Licenciatura em Pedagogia Ufba/Irecê, que pude observar

atentamente as estratégias formativas envolvendo o trabalho com memórias. Embora já ali

como integrante da equipe em diversas atividades e ações, meus questionamentos feitos nessa

investigação, sequer me haviam surgido. Somente a partir de experiências reais e leituras que

abordavam histórias de vida e formação de professores, é que fui adentrando em inquietações

agora aqui partilhadas.

As dimensões da taxionomia do esquecimento são iniciadas por trechos da fabulosa narrativa da Odisseia. Das delícias dos príncipes e plebeus, com as aventuras de Telêmaco. A Odisseia é um poema de paz, representava uma época posterior à das guerras, das convulsões, da conquista do mundo. A tradução de Odorico Mendes (2009), na interpretação da cultura humana o epíteto de Divino, — HOMERO, é o primeiro, mas não o único poeta da Grécia que, além da memória, também concede ao esquecimento um lugar de honra na literatura, como descreveu em detalhes e com argumentos convincentes Michéle (Simodon), Hesíodo tem aqui um papel-chave. Na Teogonia ele apresenta pela primeira vez a deusa da memória Mnemosyne (em latim, Memória), que está próximo do dia claro e do deus do sol Apolo, opondo-se a escura deusa Lete, parenta da noite. As duas deusas têm seus direitos e seus reinos, as duas podem receber sacrifícios dos mortais, conforme desejam ajuda poderosa para lembrar ou esquecer. Do esquecimento deseja-se cura e ajuda quando dor e sofrimento oprimem um mortal. Pois poder esquecer sua desgraça já é metade da felicidade. Disso sabem, na poesia, sobretudo os trágicos (principalmente Eurípedes) e os poetas do amor. (WEINRICH, 2001).

Assim, as dimensões com a taxionomia do esquecimento: esquecimento comandado, esquecimento

de uso e abuso, esquecimento de registro, esquecimento recalcado, esquecimento de fuga ou luto,

esquecimento de rupturas, esquecimento silencioso, esquecimento feliz, que agora dão

135

conformidade a essa análise, fruto da aminha autoria, poderão lançar possibilidades de um possível

diálogo interpretativo com meu tema de estudo. Eis os esquecimentos!

6.1 ESQUECIMENTO DE USO E ABUSO

Que te aguardam, comigo em laço estreitoImortal ficarias, bem que anelesTua esposa abraçar, cuja lembrançaTe rala de contino; em garbo e talheA sobrelevo; que as mortais não podemComparar-se em beleza às divindades”.Ulisses respondeu: “Sublime deusa,Não te agraves portanto; eu sei que em tudoA prudente Penélope transcendes,Nem da morte és escrava ou da velhice;Mas para os lares meus partir suspiro.Se um deus me empece, como os já passados,Suportarei constante os outros males”.Cai a noturna treva: ambos num leitoNo amor se deliciam. Na alvorada,Uma túnica e um manto Ulisses veste;Veste a ninfa um sendal cândido e fino,Faixa de ouro gentil ata à cintura,Orna a cabeça de elegante coifa.A despedir o amante resignada.(LIVRO V, ODISSEIA)

E o banquete da arte de lembrar e esquecer inicia a conversa com a convidada caixa de e-mails, essa

diria carregada, cheia, quase 100.000 e-mails desde o dia em que o e-mail foi criado... Fora-me

apresentada por Lete, essa já como bolsista de iniciação científica do Projeto Irecê. Nessa ocasião,

lembro-me de que ela estava na companhia da professora e uma das líderes, e do também professor

Nelson Preto, que compunha o GEC (Grupo de Educação e Comunicação), além um dos parceiros

do Projeto Irecê dentro da Universidade. A tecnologia é um dos eixos estruturantes do projeto, e

sem o domínio da mesma seria difícil o acompanhamento de um curso semipresencial em cidades

distantes da capital baiana.

Lete aos poucos foi retirando o que a memória selecionava na pesquisa do e-mail, e se intrigava...

Quantos e-mails poderiam ser descartados, apagados ou esquecidos? Por que estavam ali? E por

que não consegui apagá-los, como o rio Lete? (do grego Λήθη Lếthê, "esquecimento" ou

"ocultação", um rio do reino Hades, onde quem bebesse de suas águas esquecia-se das vidas

passadas). Ah! As memórias do Curso, eram registros, documentos, precisava usá-las, guardá-las.

Bem como os relatórios das pesquisas, os apoios aos colegas pesquisadores... Eram também suas

136

memórias, guardadas na caixa do seu e-mail. Lete então se depara com um dos e-mails já do final

do curso, era esse, ele continha um texto, resgatado pela memória da orientadora Paulinha.

Instalações artísticas: entre sons e cores, aromas e sabores

Por Paulinha Moreira.

“Chegamos ao fim de mais um ciclo”. Era o que eu pensava, com um misto de alegria e leve

melancolia, naquela manhã de sábado, enquanto nos dirigíamos ao Espaço UFBA-Irecê para

participar da apresentação dos trabalhos de conclusão de curso, memorial-formação, dos

professores-cursistas da segunda turma do Projeto Irecê.

Desde a primeira turma, tínhamos a convicção de que as tradicionais “defesas” de trabalhos

acadêmicos não se coadunavam com os princípios do currículo e com o trabalho que

desenvolvemos ao longo do curso. Por isso, optamos por uma apresentação dos memoriais que

valorizasse a utilização das múltiplas linguagens, a construção coletiva e a estética local. Foi assim

que surgiu a ideia das Instalações Artísticas, através das quais os professores-cursistas

coletivamente apresentaram seus memoriais, que também foram avaliados individualmente por

uma banca de professores convidados. Com a segunda turma não poderia ser diferente.

Os professores-cursistas se dividiram em três grupos e, após a realização de oficinas com artistas

do município, cada grupo concebeu e construiu sua instalação. A data combinada para visitação

às instalações foi 10 de setembro de 2011.

Figura 06 – Instalações artísticas UFBA Irecê

Fonte: Acervo da autora.

137

Naquela manhã de sábado, chegando ao Espaço UFBA-Irecê, a primeira coisa que vi foi um ônibus

escolar estacionado em frente ao auditório. De longe, não prestei muita atenção nele. Ao passar

por perto, percebi que havia várias palavras coladas dentro do nome “Escolar”. Foi então que

percebi que estava diante da primeira instalação.

Dentro do ônibus, algumas professoras-cursistas ainda trabalhavam. Certamente faziam os últimos

retoques. Preferi não continuar olhando, para não estragar a surpresa [...].

O exercício da memória é o seu uso; ora, o uso comporta possibilidade do abuso. Entre o uso e

abuso insinua-se o espectro da “mimética” incorreta. É pelo viés do abuso que o alvo veritativo da

memória está maciçamente ameaçado, abrindo portas para o esquecimento, resultante da relação

entre a ausência da coisa lembrada e sua presença na forma de representação. Lembrança do final

do curso, um acontecimento! Instalações artísticas, apresentação coletiva dos memoriais de

formação, TCC da segunda turma de Irecê. Paulinha narra as memórias apresentadas nos

memoriais dos professores-cursistas; a arte encenada, lembrada esteticamente, Paulinha vê,

vislumbra fragmentos do outro, fragmentos seus, afinal é parte integrante da equipe de

orientação e coordenação do Curso. A memória coletiva do sertão, de um grupo de professores

em formação, marcos individuais, histórias selecionadas, memória agrupada... E os espaços

silenciados? Omissos? Esquecidos? Estavam postos? Sim, não, talvez...

Em busca dos desdobramentos que essas questões naturalmente impõem sobre o trabalho com

memórias em programas de formação de professores, e no sentido de investigar a pertinência

do esquecimento que é gerado a partir do uso e abuso da memória, entendemos que, entre o

esquecimento de uso e abuso, em ambos há uma imbricação com a memória. Como já citado

nos capítulos anteriores, o exagero das intervenções no campo pedagógico da arte do lembrar

para a composição da identidade docente, foi e continua sendo uma forte tendência

metodológica para a compreensão de si.

Não queremos aqui jamais anular o reconhecimento de si através do ato mnemônico, mas por

outro lado considerar e vislumbrar, no campo de formação de professores, a força formativa do

esquecimento, que está associado à memória, como uma de suas condições. Os Artefatos

funcionais formativos em cena, assim Edilene Maioli chamou os memoriais e diários de ciclos,

cuja composição está associada à carreira e à docência. As produções livres, incluindo as

apresentações das instalações artísticas, seriam dispositivos formativos de primeira ordem,

138

junto com os grupos de estudos literários e cinematográficos por serem elementos curriculares

que têm sua existência intimamente ligada a uma conquista dinâmica e gradativa de autonomia

intelectual, ética e estética dos cursistas (MAIOLI, 2008).

Seu objetivo tácito é a viabilização e ampliação de outras dimensões da vida do sujeito que não só a dimensão profissional, muito embora seus efeitos sejam perfeitamente identificáveis nesta esfera e determinantes para uma formação integral. A preocupação na proposição de materiais que deem vida e dinamizem tais dispositivos, está ancorada na provocação estética como fim em si mesma, com a pretensão de que o sujeito tenha oportunidade de se tornar um sujeito de cultura, e não simplesmente um sujeito culto à moda das universidades ocidentais do último milênio. Os elementos delineados na matriz curricular do curso de Licenciatura em Pedagogia UFBA/IRECÊ e que dão conformidade aos dispositivos destacados são os Grupos de Estudos Literários, os Grupos de Estudos Cinematográficos e as Produções Livres, incluindo nessas produções as apresentações dos memoriais de conclusão de curso, em forma de instalações artísticas. No enquadramento conceitual que este trabalho tem defendido ao tratar da questão da estética e da formação, os dispositivos de primeira ordem apresentados neste currículo são sem sombra de dúvidas os elementos responsáveis por essa manifestação autônoma do poder criativo, inclusive no trânsito entre as diversas linguagens utilizadas. (MAIOLI, 2008, p. 108).

O trabalho com a memória antecede a o ingresso no curso, com isso a cada ciclo essas memórias

são retroalimentadas. Para Maioli (2008, p. 123),

Durante o curso o memorial vai sendo ampliando, ganhando novos sentidos para ser apresentado no final do curso. Em minha avaliação como orientadora, ficou claro que o texto narrativo amplia a possibilidade de se acionar ideias, impressões e conhecimentos passados que, de algum modo estão disponíveis para serem evocados. O texto narrativo memorialístico é um dispositivo de acompanhamento cuja constituição aborda duas condições de apropriação da memória:1. Condição de conservação - memória retentiva2. Condição de evocação recordação.

As dimensões trabalhadas com o memorial extrapolam a vida profissional, proporcionam aos

professores-cursistas uma autoformação, e com isso trazem à tona sentimentos e sentidos.

Retomando a anedota de Cícero, ele também sabia relatar o que inquietava especialmente o general

em matéria de lembrar e esquecer. “Também o que não quero guardar na lembrança, eu guardo;

mas o que eu quero esquecer, não posso esquecer” (WEINRICH, 2001, p. 33). A arte desejável de

esquecer ou pelo menos imaginável do esquecer. Nos memoriais de formação, a apropriação da

memória e dispositivos utilizados para essa lembrança e evocação nos possibilita dialogarmos a

condição de que o que era possível esquecer, não podia ser esquecido. O cenário do nascimento,

um sertão nordestino narrado muitas vezes como folclore ou imaginação criada pela cultura do

139

registro, do uso e abuso da memória. Sentam-se a nossa mesa do banquete os professores-cursistas

para alimentar nosso diálogo, Rita de Cássia Antunes é a primeira convidada, senta-se também

Everaldo Rocha e Elinea Vicente Sena.

Não existe presente sem passado, ou seja, nossas visões e comportamentos estão marcados pela memória, por eventos e situações vividas. Desta forma, este Memorial é o resultado de uma narrativa da própria experiência retomada a partir dos fatos significativos que me vêm à lembrança. Escrever este Memorial consiste, para mim, em um exercício sistemático de escrever minha própria história, rever a própria trajetória de vida e aprofundar a reflexão sobre ela. Sendo assim, a escrita do memorial passa a ser um exercício de auto-conhecimento. (ANTUNES, 2007, p. 7, grifo nosso).

Não há para nós uma defesa propriamente dita do esquecimento, ele não precisa dessa bandeira,

e atuará sempre que assim lhe for conveniente, mas, fundamentalmente, tomar o esquecimento

em suas últimas instâncias, já que um esquecimento de uso e abuso não resultaria em memórias

posteriormente evocadas. Ou seja, o esquecimento deve ser posto em sua máxima, na extinção

definitiva de qualquer rastro ou vestígio da coisa-em-questão-a-ser-esquecida, para que seja um

verdadeiro rastro, firme e obtuso, rumo ao devir.

Antes de comentar a análise dos diários dos ciclos quatro e cinco, quero deixar bem claro que o uso do registro é imprescindível, e não podemos deixar de relatar fatos importantes das nossas aulas para que não se percam no tempo. (ANTUNES, 2007, p. 33)No início do curso, fomos informados de que a cada ciclo escreveríamos um diário, contendo as impressões e as avaliações da vivência ao longo do ciclo. Saber não foi suficiente para que a atividade ocorresse com sucesso, devido à minha dificuldade em refletir e registrar. É como enfatiza Warschauer sobre: O registro ajuda a guardar na memória fatos, acontecimentos ou reflexões, mas também possibilita a consulta quando nos esquecemos [...] (WARSCHAUER, 1995, p. 62-63 apud ANTUNES, 2007, p. 33)A paixão pelo esporte fazia-me esquecer, além da timidez, a extrema pobreza de não poder comprar uma bola das mais simples existentes no mercado, nem mesmo um tênis. (ROCHA, 2007, p. 17) Infelizmente neste período de 3 (três) anos, não tenho em minha mente, lembranças de todos os colegas que fizeram parte das turmas em que estudei. (ROCHA, 2007, p. 14)

Experiências constituídas e imbricadas no trabalho com memórias no Projeto Irecê, no

tratamento das narrativas prevalece o sujeito forte que autorreflete nas lembranças da infância,

na formação de ser professor. O movimento da memória e esquecimento para a construção da

obra de arte do curso de Pedagogia Tapiramutá e Irecê, é uma obra que compreende a formação

como processo interno, subjetivo e complexo. Na Grécia, mais uma vez pharmaka pode ajudar.

140

Nele mostra-se novamente a ambivalência das forças espirituais humanas; entre lembrar e

esquecer, conhecem-se drogas para as duas coisas. Do lado da lembrança, o artista da memória

Simônides, inventor já conhecido dessa arte, confessa que já tomou drogas que reforçam a

memória. Do lado do esquecimento, acresce-se às drogas conhecidas de Homero a planta

Nepenthes. Uma possível resposta a essa contradição seria, polissemicamente, compreender que as conceituações contemporâneas de Narrativas curriculares transitam em um continuum que vai desde o entendimento do mundo atual como Modernidade Incompleta (no qual as narrativas ajudariam a cumprir os ideais modernos do belo, do bom e do justo para todos e levariam para a liberdade do sujeito pela consciência) e o entendimento como Pós-Modernidade (no qual as narrativas possibilitariam a compreensão do mundo a partir de experiências singulares e levariam a percepção de ser sujeito, menos pela liberdade consciente de ser o que se é, e mais por sermos escravos, mesmo conscientes, daquilo que somos). (CARVALHO; SÁ, 2015, p. 11).

As práticas conjuntas da memória e do esquecimento manifestam o esquecimento de uso e

abuso, pela prática da experiência da memória. Lembrar-se é, em grande parte, não esquecer.

As manifestações do esquecimento individual estão inextricavelmente misturadas em suas

formas coletivas. As histórias dos professores-cursistas do Curso do projeto Irecê manifestam

práticas de esquecimentos coletivos de professores e professoras do Brasil, elucidado, pois, no

parecer do memorial intitulado “Formação e inovação: um mergulho nas minhas memórias

como educanda e educadora”, da professora-cursista Ana Cristina Ferreira de Souza Cordeiro,

do Curso de Licenciatura em Pedagogia, ensino fundamental/séries iniciais, Ufba/Irecê.

É com imensa satisfação que redijo esse parecer. Em alguns momentos a leitura conseguiu me emocionar e fazer pensar na história não oficial dos professores e professoras. Quem são e como vão se constituindo essas pessoas professores. Será que as agências superiores têm consciência da diversidade do corpo docente ao qual impõe seus planos, projetos, políticas educacionais?! Essas histórias tão belas contadas nos memoriais (eu li apenas dois, mas tem uma turma inteira fazendo isso), deveria ficar registrado em um documentário ou mesmo em um trabalho escrito que resgatasse os vários temas que vão emergindo desses trabalhos de final de curso. Lemos Nóvoa, vidas de professores. Poderíamos criar a nossa vida de professores e registrar as singularidades desse processo na Bahia, em Irecê. Um material que agregasse a história de vida e o imaginário desses personagens que apesar de todas as adversidades fazem uma educação possível. (CORDEIRO, 2011, p. 1).

A sobrecarga para a memória não vem mais da história (pelo menos não só dela), mas do próprio

presente, que é maciçamente evidenciado pelos meios de massa os quais deixam pouco espaço

para a memória de um autor que chega com uma nova história. Segundo a convicção de

Beellow, o escritor continua tendo de cumprir uma tarefa importante, só ele pode “colocar de

141

novo em ordem a consciência distraída” (p. 270). Mas só conseguirá isso se ele próprio se

impuser disciplina e ordem e “não fazer tempo a nenhum leitor”. “Assim para o escritor surge

por si, como máxima suprema do seu escrever”: “Ele escreverá com tanta brevidade quanto for

capaz”. Ao assumir, nas propostas curriculares dos cursos desenvolvidos pelo FEP e aqui tomados como campo das discussões, as instabilidades, as descontinuidades e, sobretudo os descentramentos no mundo contemporâneo, passamos a descentrar, também, o sujeito do currículo, o sujeito da formação, em uma flagrante afinidade com a crítica pós-estruturalista – assentada basicamente em Nietzsche e Heidegger – ao sujeito cartesianokantianohumanista, ou seja, o sujeito autônomo, livre e transparentemente autoconsciente, que é tradicionalmente visto como a fonte de todo o conhecimento e da ação moral e política. (PETERS, 2000 apud CARVALHO; SÁ 2015, p. 6).

Agora retomamos a análise da articulação entre educação e memória no pensamento moderno,

conforme a reflexão nietzschiana. A principal crítica de Nietzsche à educação moderna está

dirigida contra o excesso de memorização, praticado nos estabelecimentos de ensino alemães

do século XIX. O apelo ao cultivo da memória, da repetição de modelos pré-estabelecidos, não

caracteriza uma educação que valorize a vida, que possibilite a criação e o avanço da cultura. É

uma educação que está preocupada em produzir mão de obra para o mercado, que leva à

massificação e despersonalização dos discentes, afastando-os de sua singularidade e de suas

possibilidades criativas. Essa tendência educativa valoriza a formação erudita, a busca

incessante pelo acúmulo de saber que será utilizável no mercado ora no circuito produtivo. Para

chegar a ser o que se é, precisa-se dosar e harmonizar, algo a ser lembrado e algo a ser

esquecido:

Todo o ato, para ser criado, exige o esquecimento: é impossível criar-viver sem esquecer. Do mesmo modo, todo ato criador exige a recordação: é impossível criar-viver sem relembrar. O criador não renega a tradição; pelo contrário, retoma-a para redimensioná-la. A faculdade ativa do esquecimento é capaz de assimilar o passado, transformá-lo e transfigurá-lo. (NIETZSCHE, 1998, p. 238).

A mesa do banquete começa a instigar como esquecer lembrando. Seria possível essa

afirmação? Mesmo que não intencionalmente, ele estaria ali, posto? Um esquecer vivo? Atuante

nos memoriais? O nível de manifestação do esquecimento de uso e abuso é aquele em que as

figuras do esquecimento se dispersam e desafiam toda tipologia, como o comprova a variedade

quase incontrolável das expressões verbais, dos ditos de sabedoria popular, dos ditados e

provérbios e da história oficial tão difundida nos centros educacionais. Lete lembra logo do que

142

Gervásio, professor-cursista, diria... Em prosa e verso... Cativante com sua sabedoria popular e

de vida, recheados de experiências e vivências.

Em um primeiro momento fiz a leitura direta de todo o texto, tomado pela descrição encarnada das suas histórias. Quase ao final, lembrei do meu papel de avaliador de um Trabalho de Conclusão de Curso e retomei a leitura, não mais como quem lia um texto de literatura, mas uma escrita memorialística de um processo formativo e acadêmico. Explicito essa passagem para marcar a qualidade textual do Memorial de Gervásio e sua capacidade de transportar o leitor para seus tempos históricos da sua vida pessoal e profissional, relatados no seu texto. (BITES DE CARVALHO, 2010, p. 01).

Nem o uso pedagógico, tampouco o uso profissional da memorização esgotam o tesouro das

maneiras de aprender, sancionadas por uma recitação sem erros e sem hesitação. Muitos

profissionais – médicos, juristas, cientistas, engenheiros e nós professores recorreremos,

durante a vida, a uma copiosa memorização de habilidades, que nos mantém apoiados em

repertórios, lista de itens e protocolos, sempre à mão para uma atualização oportuna. Todos nós,

supostamente, dispomos de uma memória exercitada. A prática conjunta da memória e do

esquecimento revela manifestações individuais e coletivas do esquecimento. Em grande parte,

um simples anverso daquelas que dizem respeito à memória. Não se tratará, entretanto, de uma

simples parelha, na medida em que serão integrados ao plano da fenomenologia da memória,

fenômenos complexos entre memória e esquecimento.

[...] tantas coisas

Agora posso esquecê-las.

Chego ao meu centro,

À minha Álgebra, meu código,

Ao meu espelho.

Logo saberei quem sou.

(Elogio da Sombra – Borges)

6.2 ESQUECIMENTO COMANDADO

Lembram-me anúncios do Tebano cego: Lembra-me Circe, que vedou-me a entrada Na ilha do Sol, delícias dos humanos; Atribulado amoesto: “Ouvi-me, sócios. Com paciência agouros de Tirésias E os de Circe, que à ilha me proíbem Do Sol portar, a todos nós funesta; Dela o fusco navio impeli fora”.

143

Este anúncio os confrange, e molestou-me Euríloco tenaz: “Ímprobo Ulisses, Tu não cansas, teus membros são de ferro, Pois de fadiga e sono a gente opressa Na ilha vedas saltar onde aprestemos Boa ceia, e à matroca temerário Em trevas pelo ponto errar nos mandas. Em procela, e noturna, onde abrigar-nos, Se Noto ou Zéfiro em tufão rebenta, Os mais duros às naus, mau grado aos numes? Ceda-se à escuridão; toca a cearmos, E o pélago amanhã sulque-se embora”. Do consenso geral tirei que a perda Nos traçava um demônio: “Eis-me vencido, Clamo, Euríloco! Ao menos jurai todos, Em rês alguma não bulir nefandos; O que Circe nos deu comei tranquilos”. Juraram-me formais, e em porto ancoro Ante uma fonte amena. Ao desembarque, Curam da ceia; já repletos, lembram Os que Cila voraz nos engolira, Até que ao pranto lhes sucede o sono. Da noite por um terço indo-se os astros Grã borrasca o Nimbífero carrega, Pego e terra embruscando, e rui do pólo Denso negrume; e assim que a matutina Aurora aponta, em gruta a nau pusemos, De ninfas gentilíssimas assento. Oro em conselho: “Mantimentos sobram; Será fatal comermos bois e ovelhas Do acre Sol, que vê tudo e tudo exouve”. Seu brio suadi. Sós Euro e Noto Sopraram de contino um mês inteiro: Pão tendo e vinho, abstinham-se das reses, Cuidadosos das vidas; gastam mesmo As vitualhas, pela fome urgidos Que o ventre nos roía, à caça andamos De aves e peixes, do que anzóis pilhavam, Dardos, seta ou rojão. Pela ilha fui-me Os deuses a rogar, se algum maneira De sair me indicasse: as mãos lavando Num abrigado, imploro à etérea corte, Que me infundiu nas pálpebras o sono (LIVRO XII, ODISSEIA)

No fim da Renascença aparecem mais uma vez os mestres da retórica, que prometem, com um

(último) intenso esforço da memória, controlar todo o saber antigo e novo do qual agora a

144

humanidade dispõe. Um deles é o mestre de retórica Lambert Schenkel, que em 1593 escreveu

um tratado erudito, De memória. O filósofo René Descartes (1596-1650), como já se pode ler

em Frances A. Yates, leu esse autor e teve um curioso interesse por seus conselhos

mnemotécnicos. Obviamente, notara, na leitura da obra de Lambert Schenkel, que seu método

não era nada adequado para ele. “Descartes seguirá outro caminho, tentando resolver o

problema da memória bem longe daquela velha mnemotécnica, e em direção oposta a outras

artes. Em suas Cogitationes privatae (1619-1621) ele escreveu sobre isso” (WEINRICH, 2001,

p. 93).Quando li as estimulantes tolices de Lamber Schrnkel, refleti que poderia facilmente abranger com minha imaginação tudo aquilo que jamais descobri, desde que referisse sempre as coisas a suas causas (per reductionem rerum ad causas). E se essas finalmente ainda forem referidas a uma única causa, ficará claro que para as ciências em geral nem é preciso uma memória. [...] Nisso consiste a verdadeira arte da memória, no extremo contraste com aquela que realiza aquele tolo. Não que ele não tivesse nenhum sucesso com sua arte, mas esbanja papel demais com ela, porque não mantém a ordem certa. Esta, porém, consiste em que as imagens da memória são colocadas em uma relação de dependência mútua. Schenkel, em contrapartida, voluntária ou involuntariamente, falha exatamente naquilo que forma a chave de todo o mistério. (WEINRICH, 2001, p. 93-94)

Descartes critica que esse tipo de arte da memória é realizado sem razão. Para o filósofo, a

memória é estritamente racional. Retomamos a nossa mesa do banquete, e quem se aproxima

agora são as orientadoras Emanuela Dourado e Solange Maciel, essa carregada pelo seu

Caderno de Orientação, que é posto sobre a mesa junto com o vinho de Pramno de Ulisses,

que misturado ao queijo, farinha de cevada, e mel amarelo, torna-se o fruto da memória... Ou

poderia ser do lótus?

A forma como nosso currículo foi elaborado de maneira não linear, não verticalizada, foi o que mais me encantou no curso de formação, porque as atividades, mesmo sendo escolhidas de forma a contemplar o horário de estudo de cada professor, acabavam puxando vertentes umas com as outras, como fios que entrelaçavam de uma atividade e outra, como, por exemplo: tópicos da Psicologia infantil, Psicomotrocidade, os princípios da hermenêutica e o estudo feito no grupo de orientação com Solange Maciel, foram atividades que puxaram esses fios e foram entrelaçando e formando uma rede de conhecimento. Todas estas atividades discutiam temas relacionados à memória e à importância que devemos dar ao funcionamento do cérebro, do movimento corporal, das emoções, das performances, das interpretações, porque tudo isso faz parte do ensino-aprendizagem. (ANTUNES, 2007, p. 20-21, grifo nosso)

145

Figura 07 – Fragmento de memorial

Fonte: Acervo da autora.

O caderno de orientação

Por Solange MacielSou eu que vou seguir você [...]

O que está escrito em mim

Comigo ficará guardado

Se lhe dá prazer

A vida seque sempre em frente

O que se há de fazer

Só peço a você um favor

Se puder

Não me esqueça num canto qualquer

(O Caderno. Toquinho)

146

Figura 08 – Fragmento de memorial

Fonte: Acervo da autora. Após a razão na memória trazida por Descartes na renascença, decidi dar por início a conversa.

E como pesquisadora e orientadora da segunda turma, lancei o seguinte questionamento para

Irecê:

A partir da premissa que o esquecimento é o outro lugar da memória e que tanto a memória

quanto o esquecimento constituem-se como forças operantes da formação dos sujeitos, cheguei

à seguinte pergunta de investigação da tese:

Quais são os “espaços” (formais, informais, emergentes) disponibilizados (intencionalmente

ou não) para o esquecimento pelos currículos que utilizam como dispositivo de formação o

trabalho com memória(s)?

Nesse sentido, pela sua experiência formativa nos Cursos de Pedagogia do Projeto Irecê,

gostaria da sua “contribuição” para a interpretação/compreensão da pesquisa com a resposta do

seguinte questionamento:

Os currículos dos cursos de Pedagogia do Projeto Irecê esquecem/esqueceram o esquecimento?

Qual a memória que está/estava posta? Abre/abriu “espaço” para o esquecimento?

147

SOLANGE MACIEL

Tanto a memória quanto o esquecimento fazem parte do processo de aprendizagem e são

bastante complexos, por isso, em relação à questão se “Os currículos dos cursos de Pedagogia

do Projeto Irecê esquecem/esqueceram o esquecimento?” podemos afirmar que o

esquecimento fez parte dos referidos currículos, assim como a memória, tendo em vista que

ambos “caminham” juntos. Assim, estava posta a memória da formação pessoal e profissional

dos professores da rede municipal de educação, sobretudo através da escrita do memorial

(trabalho de conclusão dos cursos), o qual teve início no processo seletivo e foi sendo

re/construído ao longo da formação, o que possibilitou as diversas transições entre a memória

e o esquecimento, com as reinterpretações ou revisitações do passado, associadas ao presente

vivido, sentido, interpretado. Através da produção do memorial e todo o processo que o

envolvia, provocavam-se os professores a refletirem sobre sua trajetória pessoal e profissional,

cabendo a eles/elas, de acordo com as orientações/estudos, selecionar ou adaptar os fatos

considerados importantes nesse processo, assim como silenciarem sobre questões

comprometedoras, angustiantes, trágicas, pouco significativas, indizíveis ou inconfessáveis, de

acordo com a ocasião. Por isso, em alguns momentos, suscitados pelos estudos e discussões

diversas, ora um fato era evidenciado, ora retirado ou reinterpretado, visto que o memorial

era ampliado/reformulado a cada ciclo do curso, com espaços para lembranças e

esquecimentos. Muitas das atividades desenvolvidas evocavam/provocavam a memória, como,

por exemplo, as atividades fílmicas, audições e análises de músicas, estudos literários e não

literários, análises de textos memorialísticos, revisitação de fotos, palestras, instalações

artísticas relacionadas às vivências dos professores, com cheiros, sabores, sons, vestuários e

objetos. Outro fator importante sobre o processo de memória e esquecimento foi o espaço da

escuta, pois possibilitava a reflexão permanente sobre o que era importante divulgar, por que

e como divulgar, e, do mesmo modo, quais eram os silêncios necessários. Tudo isso de forma

articulada, discutida e orientada por professores das diversas áreas do conhecimento, bem

como dos orientadores de estudo, sempre no exercício da escuta dos professores-cursistas.

Solange Ribeiro da Silva Maciel 31/03/2016.

Em cada Ciclo que passou os professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia/Irecê, pediam uma maneira diferente para a escrita do diário. Lembro-me que quando Inez Carvalho, no Ciclo Um, disse que seria necessário a escrita de um diário em cada ciclo para relatarmos tudo o que acontecesse durante todo o curso de formação. (ANTUNES, 2007, p. 30)

148

Figura 09 – O caderno de orientação. Por Solange Maciel

Fonte: Acervo da autora.

Assim como o memorial e as produções livres, o Diário de Ciclo é um dos dispositivos do

acionamento da memória, esta a de curto prazo. O diário era escrito a cada ciclo, um suporte

conceitual da memória das atividades cursadas refletidas com a prática pedagógica, que

compunha o eixo das Atividades, as Atividades de Registro e Produção. Havia ainda um

direcionamento dessa memória, e a equipe com orientações coletivas e individuais.Percebendo que cometi um erro no Ciclo I porque descrevi todas as atividades das quais participei, especificando datas, cópias de todas as transparências apresentadas pelos professores, e também anotava tudo o que minha orientadora Solange Maciel relatava em cada aula. [...]

O que eu escrevo? Porque eu priorizo isto e não aquilo? Quem irá ler meu texto? Para que finalidade eu escrevo este trabalho?Não havia compreendido ainda que os diários de ciclo seriam justamente para trazer uma idéia de como o curso estava tendo uma ressonância positiva em nossa prática pedagógica. (ANTUNES, 2007, p. 47)

149

O diário, como umas das concretizações dos artefatos funcionais formativos, é o material que se

encontra mais próximo da docência dos professores-cursistas, podendo inclusive ser considerado

instrumento de docência compartilhado (SÁ, 2007). Para Maioli:

Ao longo do curso, e numa perspectiva de acondicionamento em torno das diferentes temporalidades, o Diário de Ciclo foi cumprindo sua função de artefato funcional formativo e em relação à memória do curso, uma memória recente que por sua vez era levantada em percurso, acabou assumindo o lugar de apêndice do memorial no ciclo seis, que foi em tese, o último ciclo do curso. (MAIOLI, 2008, p. 125, grifo nosso)

Em seu discurso do Método, Descartes traça duas etapas de raciocínio: na primeira, o mesmo

lança-se à inaudita proeza, recomendada só aos engenhos fortes, de eliminar da consciência

todos os conteúdos que de alguma forma possam ser enganados ou errôneos. “Isso atinge todas

as idéias oferecidas à razão pelos sentidos, pela imaginação, ou pela memória” [...] resta ao

espírito cético apenas uma certeza: a certeza intuitiva da existência de si próprio como criatura

pensante, expressa na famosa fórmula “Penso, logo existo” (WEINRICH, 2001, p. 94).

Enfim, como se pode perceber é interessante escrever o diário quando desejamos colher sobre o nosso trabalho, ou sobre os momentos que estamos vivendo no curso de formação ou fora dele, para realizarmos reflexões na prática pedagógica e no nosso crescimento pessoal e profissional, a fim de poder voltar a eles em outro momento e analisá-los com tranqüilidade, sozinhos ou acompanhados por alguém que nos ajude a construir uma imagem mais completa da situação a partir da narração. (ANTUNES, 2007, p. 36, grifo nosso)

Fomos construtores da imagem do outro? Até que ponto as intervenções nas memórias dos

professores-cursistas permitiam espaços de reflexões da formação da autoimagem, ou

comandos para uma imagem de formação da qual acreditamos? Talvez, objeta Descartes, seria

um pensar sensato? Ou conteúdos da consciência que mereçam visibilidade na narração?

A narração do meu trabalho de final de curso conta a trajetória da minha vida estudantil, acadêmica e profissional. Dessa forma, ao resgatar meu passado tendo a oportunidade de lembrar dos fatos mais relevantes, ao mesmo tempo em que vivencio o momento presente. (ANTUNES, 2007, p. 7)

Ah quanta vez na hora suave

Em que me esqueço...Não ignoro o que esqueço.

Canto por esquecê-lo.Procuro despir-me do que aprendi.

Procuro esquecer-me do modo de lembrarQue me ensinaram”

Fernando Pessoa

150

6.3 ESQUECIMENTO DE REGISTRO A nós restituído: raro o campoVisitas e os pastores; na cidade,Contino observas os funestos procos”.“Velho irmão, diz Telêmaco, obedeço;Ver-te e ouvir-te aqui venho; tu me informesSe inda está minha mãe no seu palácio,Ou se casou: talvez aranhas torpesJazam de Ulisses no vazio leito”.“Ela, o informa o pastor, no teu palácioConstante sofre; a suspirar consomeA noite aflita e o lagrimoso dia”.A lança então recebe, e o amo salvaA lapídea soleira. O assento UlissesQuer ceder, mas Telêmaco o proíbe:“Não te incomodes, hóspede; um assentoMe ajeitarão”. Seu posto Ulisses toma;Ele abanca-se em ramos que de pelesEumeu forra. O pastor pães em cestinhos,De assados põe de véspera escudelas,Num canjirão mistura o doce vinho,Do grã Laércio em frente se coloca;Os comensais atiram-se às viandas.Fartos enfim, Telêmaco interroga:“Velho irmão, como este hóspede aqui veio?Que nautas o trouxeram? de que terra?A Ítaca não creio a pé viesse”.Assim falaste, Eumeu: “Digo a verdade.Ser de Creta blasona, e haver corridoMuitas cidades por divino influxo.De nau Tesprócia escapo, aqui chegou-se.Dispõe dele a prazer, eu to encomendo;Súplice teu se ufane”. — “Amigo, o jovemLhe bradou precavido, que proferes?Comigo ter um hóspede! Não posso,Tão moço, defendê-lo de uma afronta:Minha mãe ora no ânimo cogitaSe, dedicada ao filho, a seu maridoE ao público respeite, ou se dos GregosSe una ao melhor que à larga a presenteia.Já que nesta choupana o recolheste,Capa e túnica, ancípite uma espadaE sandálias terá, terá passagemPara onde se lhe antoje. Hei de mandar-lhe,Se o cá deténs, a roupa e o mantimento,Para não te comer e aos sócios tudo.(LIVRO XVI, ODISSEIA)

151

Não perca a... Figura 10 – Instalação artística UFBA Irecê

...FEIRA LITERÁRIA!!

(apresentação e inscrição nos livros dos Saraus)

DIA: 27/04/2011 (QUARTA-FEIRA)

HORÁRIO: 19:00

LOCAL: Auditório – Espaço UFBA

Leitura, imaginação,

viagens, poesias,

Interpretação,

invenção...

Fonte: Acervo da autora.

À medida que passamos da ideografia ao alfabeto, o tempo torna-se cada vez mais linear e

histórico. “Os calendários, as datas, os anais, os arquivos, ao instaurarem referências fixas,

permitem o nascimento da História, se não como disciplina, ao menos como gênero literário.

“A história é um efeito da escrita” (LÉVY, 1993, p. 94-95). E a memória? São possíveis ainda

algumas considerações sobre a memória; nesse momento classificamos em dois tipos

fundamentais: a memória proposicional (ou semântica), que diz respeito às informações

conceituais acerca do nosso conhecimento de mundo e de realidade; e a memória de recordação

(também denominada de episódica, pessoal ou experiencial), voltada para os eventos da

experiência cotidiana. Esta última particularmente nos interessa nesta pesquisa em virtude de

ela nos fazer reviver eventos particulares ocorridos no passado e evocados no momento presente

através dos registros (CAMPBELL, 1997; HOERL, 1999 apud CONNERTON, 2008).

A chamada memória autobiográfica, e inspiração para nosso trabalho no Projeto Irecê, é a

memória episódica que envolve nossa própria experiência de mundo, ainda que nem todas as

memórias autobiográficas sejam episódicas (isto é, posso não recordar fatos da minha infância,

como a data exata de meu nascimento). De outro modo, é preciso estar ciente de que existe um

limite de confiabilidade da memória autobiográfica, e que depende da capacidade de cada

152

indivíduo de reter informações significativas no seu intelecto. Neste contexto, a memória

autobiográfica constitui uma ponte entre as minhas ações no tempo presente e as minhas

experiências pessoais passadas. E o que irá emergir nesse acionamento da memória depende de

alguns fatores complexos, sejam biológicos, culturais, políticos, epistemológicos ou didáticos.

Conforme Connerton (2008), pode-se afirmar que a memória possui uma conexão direta com a

identidade pessoal, visto que a forma como o passado é lembrado ao mesmo tempo depende da

autoimagem que cada indivíduo faz de si, servindo ainda de base para mudanças na mesma.

Desta forma, a memória influencia na tomada de decisões, nas escolhas pessoais e no modo

com que significados dos fatos são atribuídos no contexto atual do indivíduo, no nosso caso, os

professores-cursistas do Projeto Irecê.

As reflexões aqui esboçadas nesse memorial resultam de um estudo desenvolvido ao longo de três anos, nas atividades oferecidas por esse curso. O processo de coletas de dados efetivou-se através da utilização de diários de ciclo, potencializados como instrumentos formativos e sistematizadores da reflexão na e sobre a prática docente. (SENA, 2012, p. 21)

Figura 11 – O caderno de orientação. Por Solange Maciel

Fonte: Acervo da autora.

153

Os suportes de inscrição dos fatos (a argila, as tábuas de cera, o pergaminho, o papiro ou o

papel), representaram uma extensão da memória biológica humana. Assim, a escrita estendeu

a memória biológica transformando-a em grande rede semântica de memória em longo prazo.

“O corpus do passado encontra-se definitivamente preservado” (LÉVY, 1993, p. 98).

Percebo que a construção de um novo conceito é um processo difícil, que demora e demanda esforço para ser trabalhado com mais profundidade, porque o que acontece hoje em dia é o acúmulo de informações, e uma aceleração por conta de ter de se cumprir os conteúdos que compõem a grade curricular. (ANTUNES, 2007, p. 21)Para minha prática quanto para minha vida pessoal, as informações além de estarem na nossa memória, devem também estar registradas posteriormente para que possamos rever relembrar e até modificar. (SENA, 2012, p. 20)

Para Platão (428-348 a.C.), a invenção da escrita seria responsável pela obliteração da memória

biológica, provocando o esquecimento. Isso porque, ao se externalizar o que se desejava

guardar, já não era preciso reter na memória, e assim os fatos seriam esquecidos.

Por outro lado, nem tudo que está registrado é lembrado, o que na análise do discurso é

considerado como esquecimento. Para os linguistas, em especial para Ducrot (1977), o discurso

é explorado como lócus de memória, e, nesse contexto, o esquecimento é uma categoria

contemplada; assim, para Orlandi (2000): saber como os discursos funcionam é colocar-se na

encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória institucional que estabiliza,

cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento que é o que toma

possível o diferente, a ruptura, o outro. Continuando o raciocínio de Orlandi (2000), a paráfrase,

o sempre retomado e lembrado, é, portanto, a memória que se estabiliza pela repetição. Já o

esquecimento é a ruptura, a possibilidade do novo e da criação, o que implica dizer que o

esquecimento na análise do discurso tem efeito, ao que parece, positivo, assim como para a

memória biológica, sendo considerado como processo natural de regulação do cérebro no uso

das faculdades mentais normais.

“A cada ciclo, íamos aperfeiçoando e buscando novas formas de registro e novas formas de pensar, agir e refletir” (ANTUNES, 2007, p. 35).

Retomamos nossa mesa do banquete com o diálogo sobre o lugar do esquecimento nos cursos

de Pedagogia do Projeto Irecê; Emanuela Dourado foi integrante da equipe de orientação e

154

coordenação do Projeto Irecê e um dos primeiros membros da equipe local na cidade de Irecê-

Ba.

EMANUELA DOURADO

Na perspectiva apresentada, o diálogo sobre o esquecimento no período do curso foi incipiente.

Consensualmente, acredito que considerávamos que o trabalho memorialístico promove um

exercício de lembranças e esquecimentos, como lapsos de memórias que não ocorrem

linearmente e atualizam o passado a partir de evocações do presente. A memória como diversa

e difusa, podendo fazer combinações infinitas, ressignificando esse lembrar e esquecer ao

articular tempos, espaços, pessoas e significados singulares.

Contudo, penso, a partir dessa provocação, que as proposições, especialmente dos Memoriais

de Formação, abriram espaços para lembranças e, consequentemente, esquecimentos, ao

eleger uma certa linearidade cronológica com os tempos escolares: entrada na escola,

formação até tornar-se professor(a), o magistério, a formação no curso. (Qualquer outra

lógica memorialística, também promoveria "lembrares e esqueceres"... E, certamente, seriam

processos formativas passíveis de questionamentos acerca dessa questão...).

Nesse caso, considerando que nos ciclos pares do curso (re)mexíamos, intencionalmente, nas

memórias de formação dos professores-cursistas via escrita processual, de modo a produzir

rupturas dessa linearidade inicial, também, criamos espaços para outras emergências,

produzindo lembranças, ao tempo em que tantas outras coisas "continuavam" esquecidas...

No entanto, são lembranças presentes do passado, o que por si só já é suficiente para que os

atos memorialísticos tragam diferentes dimensões do vivido e de nós mesmos, nas quais o

lembrar e esquecer estejam "condenados" ao devir.

155

Figura 12 – Fragmento de memorial.

Fonte: Acervo da autora.

E essas dimensões do vivido, e diria aqui do esquecido, foram sendo construídas com a memória

trabalhada no Curso de Pedagogia. A nossa memória sempre fará da nossa autobiografia, uma

biografia não autorizada.

Figura 13 – Tirinha.

Fonte: <www.oslevadosdabreca.com>

156

Partindo deste chamado pensei muito antes de escrever o diário do Ciclo dois, mas cometi o

mesmo erro, e escrevi novamente enumerando por datas e descrevendo as atividades

participadas. Entretanto, iniciei algumas reflexões nas atividades participadas, e comecei a falar

um pouco da minha prática em sala de aula, um tanto que disfarçada, e neste eu finalizo com

um trecho da música Prelúdio de Raul Seixas. (ANTUNES, 2007, p. 31, grifo nosso).

Depois da cozinha, o quintal. E nele, a liberdade. O quintal é um mundo! Um mundo de

brincadeiras, de sonhos, de invenções, de peraltice s. Naquele quintal conviviam o trabalho da

mãe, estampados nas roupas lavadas na pedra e estendidas no varal, e as brincadeiras das

crianças, retratadas na casinha arrumada sob a sombra de um arbusto, na fazendinha com

bois de pedra. Em cada um daqueles jeitos de brincar eu via histórias de um jeito de ser criança

no sertão da Bahia.

Figura 14 – Instalações artísticas

Fonte: Acervo da autora.

Depois de dois milênios e meio depois de Cícero, ousamos convidar Umberto Eco para umas

pequenas palavras nessa prosa; para ele a arte do esquecer consiste em inventar disciplinas

científicas que não apenas não existem, surge aí o método semiótico, através da teoria de signos.

Eco tenta provar que não pode haver uma arte do esquecer como contraparte de uma arte do

lembrar, “porque todos os sinais de presença não são ausências” (WEINRICH, 2001, p. 34,

grifo nosso).

Eco concede a essa arte do esquecimento um modesto lugar na margem da semiótica. Podemos

até iniciar um posterior debate com a história, dizendo que “o esquecimento é a função máxima

da vida, do levar adiante”, e que a memória nada mais seria que uma representação enevoada

157

de um passado que nunca existiu – já que ele só pode existir como interpretação de uma

representação, ou como “ponto de vista” – e que existe como amarras aos seres, a passados que

lhes são impostos (por outros, ou por si mesmo). Estou certa de que o que está escrito permanece na história, como registro de uma vida que aconteceu ontem, mas que se encontra vivo no hoje, e que permanecerá sendo. Foi com essa certeza que escrevi neste memorial parte de minha trajetória de vida para que eu possa continuar refletindo sobre o que está escrito. (ANTUNES, 2007, p. 28)Tenho a convicção de que a escrita é essencial para registrar e marcar o nosso tempo e que seu domínio é indispensável não apenas no aspecto social ou profissional, mas principalmente quanto ao aspecto existencial. Um professor saber escrever, não somente para ser um bom profissional, mas, sobretudo, marcar a sua existência, a existência do seu ser no tempo e no espaço. (SENA, 2012, p. 25)

E essa existência é configurada com o imbricamento das memórias e esquecimentos. O

esquecimento de registro se configura pelo apagamento de registros históricos e o

esmaecimento de memórias e histórias de vida. Baseamos nas ideias de Connerton (2008), para

associar essa dimensão do esquecimento com o volume de informação produzido pela

sociedade de massa, e tão difundida pela internet. Assim, inviabiliza o registro na memória de

número tão elevado de informações. Enquanto a memória biológica define-se como faculdade

mental de registro e na armazenagem de informações no cérebro para posterior reevocação

(lembrança), a memória registrada seria todo o legado preservado de um povo ao longo dos

tempos. Nessa perspectiva, o esquecimento é inerente a essas memórias. Poderíamos ousar

pensar uma dimensão de virtualização do esquecimento: A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez, de virtulis, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe me potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e são apenas duas maneiras de ser diferente. (LÉVI, 1998, p. 6)

E o ciberespaço? A memória não estaria ali? Termo que foi idealizado por William Gibson, em

1984, no livro Neuromancer, referindo-se a um espaço virtual composto por cada computador e

usuário conectados em uma rede mundial. Trata-se, pois, de um espaço que não existe fisicamente,

mas virtualmente. No ciberespaço a questão da preservação da informação e do conhecimento é

questionada, pois, estando no ambiente virtual, não há garantias de que uma informação esteja

disponível após certo tempo. O ciberespaço, devido as suas características intrínsecas, torna

158

evidente o esquecimento, isso porque a preservação nesse meio e neste momento não é um fator

essencial. De acordo com Lévy (1998), as redes de comunicação e as memórias digitais

incorporarão a maioria das representações e mensagens produzidas no planeta, graças ao que

teríamos boas novidades no mundo virtual, mas também apagamentos de memórias. "As

possibilidades materiais de armazenamento nunca foram tão grandes, mas não é a preocupação com

o estoque ou a conservação que impulsiona a informatização” (1993, p. 115).

As oficinas de computação, as atividades operando o TWIKI I e II e os Grupos de Estudos Acadêmicos (Geacs) de Tecnologia realizados pela Professora Maria Helena Bonilla, foram atividades significativas dada a importância de conhecer e ampliar meus conhecimentos acerca do uso da Internet, visto que a humanidade jamais teve acesso de modo tão rápido a tantas informações como atualmente. Estas oficinas e Geacs possibilitaram uma ampliação dos conhecimentos. (ANTUNES, 2007, p. 23)

“Nossas vidas como em um filme” é a chamada que está na parede (e foram tantos filmes em

nossa vida no curso...). Em cada fotograma daquele filme naquelas paredes, cenas de uma

história, cenas de muitas histórias. As vidas dos professores-cursistas em um filme, e os filmes

nas vidas dos professores-cursistas. O projetor, emprestado pelo dono de um cinema que

funcionou na cidade tempos atrás, me remetia às histórias contadas pelos cursistas sobre as

idas ao Cine Barbosa e Cine Nunes.

Figura 15 – Instalações artísticas UFBA Irecê

Fonte: Acervo da autora.

Não me lembro se durante a minha vida estudantil, desde o início até a 8ª série, consegui usar uma farda comprada no mesmo ano. Usei durante um bom tempo, um tênis velho (Kichute), que todos os dias ao chegar em casa, pensava em jogá-lo no lixo, porém, pensando na sua utilidade para ir a escola no outro dia, procurava um meio de lhe fazer mais um conserto. (ROCHA, 2007, p. 20, grifo nosso)

159

Poderíamos nos perguntar como falar da presença do próprio esquecimento se esquecêssemos

do mesmo? Seria uma incongruência, mas me lembro do esquecimento. E não teria na memória

aquilo de que me lembro? Ou talvez tenha o esquecimento na memória para que eu não

esqueça? Ou seria a imagem do esquecimento que minha memória retém e não o próprio

esquecimento? A dimensão do esquecimento de registro é complexa, e muitas vezes

inexplicável, mas poderíamos ousar apoiados nas ideias de Ricoeur, que o “esquecimento

sepulta nossas lembranças” (RICOEUR, 2007, p. 110).

[...] Ó ilustre Simônides

Pois tanto em teu engenho te confias

Que mostras à memória nova via,

Se me desses uma arte que em meus dias

Me não lembrasse do passado,

Oh, quanto melhor obra me farias

6.4 ESQUECIMENTO RECALCADO

Mas o astuto: “Laodamas, tu provocas A que zombem de mim? Não penso em ludos, Penso nas dores que passei tamanhas; A volta mendigando, ao rei depreco E ao popular congresso”. Em face o ataca Súbito Euríalo: “Hóspede, não cuido Que nos certames dos varões te exerças; Menos atleta válido pareces Que de marujos traficante mestre, A especular na carga e mercancia Da remeira galé, de roubos arca”. Torvo Ulisses o mede: E tu pareces Doudo varrido a proferir dislates. Nem tudo Jove dá; beleza nega, Ou loqüela, ou juízo: um não formoso Com suave eloqüência orna o semblante, E olhado com prazer, modesto e firme, No parlamento se insinua e reina, E na rua e na praça um deus o aclamam [...]

(LIVRO VIII, ODISSEIA)

A conversa rende com as orientadoras, começamos a dialogar sobre muitas situações vividas

por cada uma durante os encontros de orientação, ou mesmo em meio às dinâmicas criadas

para evocação das memórias através de músicas e objetos que remetiam à infância, textos,

poesias e comidas que remetiam os professores-cursistas a se deslocarem no tempo e sobre

o tempo. Lete lembra logo de uma dinâmica, compartilhada em um dos encontros de

160

orientação; uma caixa bonita, colorida, chamativa, do seu filho Rodrigo, vários brinquedos,

objetos antigos, cheiros, mensagens, bilhetes, discos de vinil... café sobre a mesa, sequilhos

de Ibititá.

A mesma havia reportado a ideia de encontros de formação com a professora Lícia Beltrão,

com a equipe de coordenação e orientação do projeto Irecê. Na maioria das vezes a dinâmica

era sensacional, narrativas lindas e encantadoras histórias da infância dos estágios de

magistério, lágrimas de saudades, em lembrar os bons momentos. Até que já quase no final

uma professora levanta, abre a caixa, pega um objeto e se manifesta... O objeto a remeteu a

uma lembrança dolorosa, revoltante. A sensação de aconchego e afeto de segundos atrás,

dissipou-se feito névoa. A garganta em nó, e logo seus olhos molharam-se num pranto que

não soube esconder-se... EU NÃO QUERIA ME LEMBRAR DISSO! Pensou ter as palavras

ditas em um balbuciar, como quem sozinha estivesse por um momento. Impressão que lhe

fora embora, assim que percebera os olhares e o silêncio em torno de si. Um silêncio

reflexivo, assustador, formativo. O mesmo pairara agora na mesa do banquete... Uma pausa

para o café. Naquele momento a professora precisava agir, e com conduta de acolhimento

a caixa ia aos poucos recebendo as vivências que nos constituíam como somos, fossem elas

boas ou ruins. Ainda assim, eram experiências.

No auge, o texto de Jorge Larossa (2002), notas sobre experiência e o saber da experiência,

e assim a aula prossegue. Com o passar do tempo e das minhas pesquisas e leituras, a

lembrança da aula e daquele café, precisava aparecer outra palavra: ESQUECIMENTO.

Diferente do Café com Letras, atividade temática ministrada por Lete no Projeto Irecê. Era

hora do café com Freud, seu pensamento, no livro Esquecimento e Fantasma anuncia

algumas palavras para as reflexões do momento. Setembro de 1897, Freud fez uma viagem

relâmpago a Berlim para falar pessoalmente com Fliess sobre o assunto. Um ano anterior,

cria o termo psicanálise num artigo intitulado A hereditariedade e a etiologia das neuroses.

Na viagem, esquece o nome da rua onde tinha de ir fazer a visita, ali começaria sua

inquietação do esquecimento. Ainda nesse texto, descreve o fenômeno do esquecimento nas

ações cotidianas, principalmente dos nomes próprios.

É nesse estágio de nossa observação que recolhemos os ensinamentos da psicanálise na

problemática do esquecimento. Lembramo-nos da reflexão de Freud: o paciente repete ao

invés de se lembrar. Ao invés da repetição, vale o esquecimento. E o próprio esquecimento

161

é chamado de trabalho, na medida em que é a obra da compulsão de repetição, a qual impede

a conscientização do acontecimento traumático. Chama-me atenção Everaldo Rocha,

quando esse destaca um capítulo inteiro em seu memorial, destinando-o para o tema

Traumas e Frustações. Grande parte dessas memórias do seu processo de escolarização

inicia com a citação de Rubem Alves: “Tem coisas na minha vida, que certamente tirava da

minha memória (apud ROCHA, 2007, p. 9).

Alguns traumas me fizeram companhia por muito tempo. Lembro-me quando criança que via nos outros meninos e meninas de minha idade, uma empolgação muito grande para começar a estudar, porém me assustava, quando pensava nas histórias contadas por pessoas que já estudavam. Falavam como o professor agia, do constrangimento que faziam os alunos passarem, de sua rigidez e do seu domínio sobre os alunos e pais. Todos o temiam e o respeitavam muito, pela sua postura forte e impositiva. (ROCHA, 2007, p. 11)

“Uma das maiores frustações da minha vida, foi não ter conseguido ser um jogador de futebol

profissional” (ROCHA, 2007, p. 6).

“Não posso dizer que tive uma boa infância (apesar de morar em uma comunidade pequena)” (ROCHA, 2007. p. 10).“Não tenho muitas lembranças deste período enquanto estive com esta turma de alfabetização” (ROCHA, 2007, p. 12).

Assim, a psicanálise é para o filósofo o aliado mais confiável a favor da tese do inesquecível.

Uma das convicções mais firmes de Freud foi mesmo que o passado vivenciado é indestrutível.

No artigo O Recalque (FREUD, 1915b/1996), encontramos uma referência ao trauma, que será

amplamente discutido em 1920, em Além do Princípio de Prazer (FREUD, 1920). O autor

supõe um processo no qual o estímulo proveniente do exterior é internalizado, o que pode afetar

algum órgão e torná-lo fonte constante de excitação no organismo. Então, tal estímulo adquire

uma grande semelhança com a pulsão; é o caso da dor – denominada por Freud (1915b/1996)

“pseudopulsão” (p. 151). No entanto, no artigo metapsicológico citado, Freud desiste de

perseguir o exemplo da dor, por ela ser “demasiado obscura para nos servir de ajuda em nossos

propósitos” (p. 151). Tive que ir para casa, sem roupa, atravessando uma longa rua, chamando a atenção das pessoas que por mim passavam. Apesar da minha pouca idade, está foi uma das maiores frustações de minha vida, serviu como marca traumática que me perseguia em qualquer atitude que viesse a tomar. (ROCHA, 2007, p. 17)

162

Podemos esquecer ou reprimir a memória consciente de um acontecimento e ainda assim agir

sobre a influência desse episódio que não lembramos. Porém, o recalque não impede as

representações recalcadas de continuarem a existir no inconsciente, de se organizarem e

formarem novos derivados, com o objetivo de alcançar a descarga via consciente. Nesse

sentido, Freud (1900/1996) configura a clínica psicanalítica em torno do método interpretativo,

porque é preciso traduzir o material inconsciente e recalcado, de modo que ele possa se tornar

consciente.

Apenas a poucos passos dali, estava diante daquele professor temido por todos. Minha timidez e o medo eram tanto, que não consigo me lembrar quem estava junto comigo na sala neste dia. (ROCHA, 2007, p. 12)

A narração através da linguagem contribui pelas confusões da memória, pelos atos

falhos e as intenções do inconsciente, que se deixa reconhecer numa outra vertente da vida

cotidiana, assumidos na escala da memória coletiva, e onde só a história da memória se faz

capaz de trazer à tona. Assim como Rosseau em Confissões e os devaneios de um andarilho

solitário, onde um notório esquecido que simplesmente inventou suas lembranças tornou-se um

dos maiores mestres da autobiografia. Assim sendo, os detalhes dos signos da memória,

percepções de esquecimentos manifestos pelo ato da linguagem.

Os rastros das memórias recalques nas falas dos professores-cursistas e nos fragmentos dos

memoriais ou diários são razões para acreditar que o esquecimento por apagamento dos rastros

corticais, não esgota o problema do esquecimento. Acontece que muitos esquecimentos se

devem ao impedimento de ter acesso aos tesouros enterrado da memória. O reconhecimento

frequentemente inopinado de uma imagem do passado tem assim constituído, até agora, a

experiência princeps do retorno de um passado esquecido. Para Ricoer: É por motivos didáticos ligados à distinção entre memória e reminiscência que temos mantido essa experiência nos limites da repentinidade, abstração feita do trabalho de recordação que pôde precedê-la. Ora, é no caminho da recordação que se encontram os obstáculos para o retorno da imagem. A primeira lição da psicanálise é, aqui, que o trauma permanece quando inacessível, indisponível. No seu lugar, surgem fenômenos de substituição, sintomas, que mascaram o retrno do recalcado de modos diversos. (RICOEUR, 2010, p. 453)

Embora censuráveis, as reflexões de Freud sobre a dimensão de lembrar “esquecendo”, em seu

ensaio “Lembranças encobridoras”, nos apresentam a cenas que são evocadas pela memória de

um momento importante e significativo para o sujeito. Dedica ainda atenção aos diferentes

163

propósitos do esquecimento, as falsas tendências da rememoração, cujo objetivo é afastar da

consciência momentos desagradáveis. Deleuze, em sua obra Crítica e Clínica, defende um tipo

de “registro” que se distancia da concepção da psicanálise que vincula o inconsciente à

memória, sendo que esta incide sobre pessoas e objetos em vez de privilegiar os meios, os

deslocamentos, as redistribuições de impasses, limiares e aberturas (ABPC, Apostila de Freud,

2004).

E o próprio esquecimento é chamado de trabalho, na medida em que a obra da compulsão de

repetição impede a conscientização do acontecimento traumático. A primeira lição da

psicanálise é aqui que o trauma permanece mesmo quando inacessível e indisponível. No seu

lugar surgem fenômenos de substituições, sintomas que mascaram o retorno do recalcado de

modos diversos, oferecidos à decifração operada em comum pelo analisado e o analista. A

segunda lição é que, em circunstâncias particulares, porções inteiras do passado reputadas

esquecidas e perdidas podem voltar. Assim, “a psicanálise é, para o filósofo, o aliado mais

confiável a favor da tese do esquecimento” (RICOEUR, 2007, p. 453, grifo nosso).

O recalcado não é, portanto, o esquecido, mas aquilo que pode ser restaurado apenas de forma

lacunar, precisamente porque se trata de algo que se repete, porque não pode ser lembrado e

nem esquecido (FREUD, 1982). Uma das convicções mais firmes de Freud foi mesmo que o

passado vivenciado é indestrutível. Essa convicção é inseparável da tese do inconsciente

declarado, subtraído ao tempo, entenda-se ao tempo da consciência com seu antes e seu depois,

suas sucessões e suas coincidências. Sob esse aspecto, impõe-se uma comparação entre Bergson

(1969) e Freud (1991), os dois advogados do inesquecível. O de Bergson cobre a totalidade do

passado, que a consciência atual centrada na ação fecha atrás dela. O de Freud parece mais

limitado, se assim se ouse a dizer, na medida em que cobre apenas a região das lembranças cujo

acesso é proibido, censuradas pela barreira do recalque; além disso, a teoria do recalque,

vinculada à da compulsão de repetição, parece confinar a descoberta na região do patológico.

Em compensação, Freud corrige Bergson num ponto essencial que, à primeira vista, parece

tornar a psicanálise incompatível com o bergsonismo: “enquanto o inconsciente bergsoniano é

definido por sua impotência, o inconsciente freudiano deve a seu vínculo com a pulsão, o caráter

energético que encorajou a leitura ‘econômica’ da doutrina” (RICOEUR, 2007, p. 453).

O maior constrangimento... cita Rubem Alves... Há memórias das quais me livraria com prazer.

(ROCHA, 2007, p. 17, grifo nosso)

164

- Dizem que uma vez você esteve na vala,

- Ah, dizem?

- E como foi?

- Como foi. Vamos mudar de assunto.

(Arthur Sammler, sobrevivente de holocausto)

6.5 ESQUECIMENTO DE LUTO

Que em porcos, lobos ou leões, vos mude,E a rodar seu palácio vos constranja?Tereis outra caverna do Ciclope,Matadouro dos sócios por audáciaDo insano Ulisses”. Cala, e eu saco a espada,Pretendendo a cabeça decepar-lhe,Bem que parente fosse; mas os nossosCom doçura o impediram: “Se o permites,Ele cá permaneça e a nau vigie,E da deusa à morada nos conduzas”.Saímos pois da praia, e da ameaçaMedroso o mesmo Euríloco nos segue.Circe os outros cuidosa em casa banhaPerfuma e paramenta: em lauto bodoOs achamos de túnicas e mantos.Mestos a prantear se comunicam,E o paço retumbava; a venerandaCirce atalhou: “Não mais, divino Ulisses,Vos exciteis ao luto. Eu sei dos transesPadecidos por vós no mar piscoso,De hostilidades mil que em terra houveste.Comei, bebei, refocilai; no peitoRenasça o ardor que tínheis ao deixardesÍtaca alpestre: agora ah! desabridosPor tão penoso errar, por tantas mágoas,Ao júbilo e prazer sois insensíveis!”(LIVRO X, ODISSEIA)

“Vos exciteis ao luto”, expressão da Odisseia que antagoniza e sentido do luto conhecido por

nós. Recentemente perdi minha avó, dona Juscelina, da cidade de Tapiramutá-BA. A tristeza

natural de perder um ente querido, ainda mais uma avó que nos remete a tantas lembranças

queridas, às férias tão esperadas de Tapira, e o São Pedro então, com seu cortado de abóbora

no fogão a lenha. Além do impacto das lágrimas, o espírito de luto veio à tona, me desloquei

de Itacimirim até Tapiramutá para a despedida final. E após algumas horas o LUTO no perfil

do facebook, sombrio, melancólico. E por ali ficou até completar os sete dias como a tradição

manda... retornei para a linha verde dois dias após o sepultamento e, por coincidência, viajei do

Porto Feliz no último dia da Águia Branca (a empresa de ônibus fora substituída pela Cidade

165

Sol). A Águia tão cheia de simbologias no Projeto Irecê e Tapiramutá, com suas memórias e

esquecimentos tomou outro voo para dar lugar ao Sol.

Poderíamos pensar em um tempo de Luto? Os sete dias para a minha avó eram suficientes? Ou

necessários para a retomada da escrita da tese? Luto é a perda de um ser querido e a dor que daí

resulta: o amor dilacerado por lhe ter sido tomado quem se ama. Ferida afetiva, como que uma

amputação essencial. Fazemos então o luto do que nos falta, ou seja, aprendemos a viver sem.

Aprendizado difícil e doloroso, sempre. Estar de luto é estar em sofrimento. É assim após a

morte de quem você amava mais do que tudo no mundo, quando viver não é mais do que essa

ausência atroz, insuportável, como que uma chaga aberta, quando temos a sensação de que a

alegria tornou-se para sempre impossível... O trabalho de luto, como diz Freud, serve para sair

desse estado. Trabalho de aceitação, de distanciamento progressivo, de reconciliação. Não

contra o amor, mas para amar de outro modo e, depois, a outro ser. Trata-se de fazer a alegria

voltar a ser pelo menos possível. O luto é consumado quando isso é conseguido. É o caminho

mais difícil a levar de uma verdade a uma felicidade (GREGÓRIO, dicionário de filosofia).

A psicanálise, no início do século XX, com o texto seminal de Freud (1982a) intitulado “Luto

e Melancolia”, esmerou-se em examinar os processos psíquicos que entram em jogo nas

experiências diferenciais do luto e na melancolia. A presença da melancolia, como

caracterização e patrimônio inconteste da literatura romântica do século XVIII, implica que

estejam lado a lado a dor e sua expressão; o sublime e o penoso, que forjariam a matéria-prima

da escrita romântica. É relevante que o sublime literário esteja tão aliado à dor, como no

romantismo, e que a própria condição melancólica tenha se evidenciado como substrato

subjetivo de certa disposição da arte, no caso, da literatura. Coisa que, de certo modo, continua

presente na literatura contemporânea.

Lete interrompe a narrativa da pesquisadora sobre o luto da sua avó, para refletir e partilhar

com os convidados sobre a dimensão do esquecimento de luto. Haveria, pois, lembranças que

os memoriais de formação dos professores-cursistas do projeto Irecê gostariam de esquecer?

Lete discorre sobre a luta íntima, que perpassa um professor em formação com a narrativa da

sua própria história, e com histórias que lhe ultrapassam, mas também a pertence.

Ana Cristina escreve sem medo. Um texto de fácil compreensão. Fala de sua vida na roça, dos momentos bons de brincar no barro, com bonecas de espigas de milho, de sentir o cheiro da chuva e da terra molhada. Mas fala também

166

da vida difícil do campo, principalmente de quem vive no interior do Nordeste. Dos retirantes. Da sua própria história como migrante do campo para a cidade GRANDE. Nesse ponto poderia ter focado mais na questão histórica desse momento, analisado com mais argumentos teóricos e fazendo um paralelo com a situação que se encontra hoje as populações o interior do Nordeste. Talvez apontando outras necessidades que merecem ser sanadas para que “as gentes”, do campo, tenham tanta dignidade como o povo da cidade, afinal, os tempos mudaram muito de sua infância pra contexto atual. As crianças querem e precisam mais que a atividade pueril de brincar com os elementos da natureza, ainda que isso seja bem prazeroso. (CORDEIRO, 2011, parecer avaliativo, grifo nosso) Voltei para casa, porque o ano letivo já estava se aproximando. Teria que suportar, por alguns dias, as gozações de alguns colegas, por não conseguir êxito na minha tentativa. Chateações estas, que há tempos me perseguiam, por não me enquadrar nos padrões dos outros colegas, pois não tinha dinheiro nem para comprar uma farda nova, (usava uma que havia sido da minha irmã). E assim foi durante muitos anos. (ROCHA, 2007, p. 25)

Cheguei à cozinha. Ali, a sensação de estar realmente em uma casinha de massapê: o cheiro

do fogão a lenha, as frutas, o café. Não parecia uma instalação, não parecia o Espaço Ufba-

Irecê: eu me sentia realmente na cozinha de uma casinha (o ápice da literalidade?).

Figura 16 – Instalações artísticas.

Fonte: Acervo da autora.

Uma casinha de massapé, realidade de muitos sertanejos do Brasil, na narrativa em alguns

memoriais de formação, nas canções de Luiz Gonzaga, e na arte produzida nas instalações

artísticas. Dava até vontade de morar, sentir e tomar o café! Remete a um tempo histórico,

cultural e econômico de milhões de brasileiros, que durante décadas pertenceram à linha de

pobreza extrema. Não há saudosismo, tampouco “poesia folclórica” da narrativa das palavras

167

de Everaldo. Tudo que há, são memorias empoeiradas e melancólicas, dos dias de pobreza que

passara com sua família.

O esquecimento que se quer esquecer é a lembrança-imagem que causa desconfortos e dores

no indivíduo. Um esquecimento consciente. Contém uma expressão explícita do desejo de que

ações passadas não devam ser perdoadas, mas tão somente esquecidas. O luto, diz-se no

começo, é sempre a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração erigida em

substituto dessa pessoa, tal como: pátria, liberdade, ideal, etc., um fenômeno normal, não

melancólico, embora doloroso “é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra

vez livre e desinibido” (RICOEUR, p. 86, 2010). Um trabalho libertador, que no campo da

história da humanidade visa a

[...] restaurar um nível mínimo de coesão à sociedade civil, para restabelecer a legitimidade do Estado em sociedades onde a autoridade e as próprias bases do comportamento civis, tinham sido obliteradas por governo totalitário; o esmagador desejo era esquecer o passado recente. (JUDT, 1992 apud CONNERTON, 2008)

O esquecimento de luto é o custo do trabalho da lembrança; mas o trabalho da lembrança é o

benefício do esquecimento de luto, requer tempo, um tempo de luto. A lembrança não se refere

apenas ao tempo; ela também requer tempo. O esquecimento, em contraposição ao “peso” da

memória, nada mais é que a “leveza” que favorece o ato de criar.

E era minha vez de beber contigo,

E ergueste a taça plena,

Falaste-me com olhar tão familiar

Amor, eu bebo ao esquecimento

(Conrad Ferdinand Meyer, versos sobre o Lete)

6.6 ESQUECIMENTO DE RUPTURAS

Estala o coração, lágrimas chovem;Das cruezas de Antífates se lembram,E do fero antropófago Ciclope.Chorar que vale? Em corpos dous os nossos,Mando eu um, outro Euríloco deiforme:Sacudidas as sortes no elmo aêneo,Sai a do bravo Euríloco; este parte

168

Com vinte dous gementes companheiros,Que apartam-se de nós também gementes.Num vale acham marmóreo insigne paço,Que cercam lobos e leões, de CirceCom peçonha amansados: contra a genteNão remeteram de unhas lacerantes,Sim alongando a cauda os afagaram,Como festejam cães o meigo donoQue lhes traz do banquete algum bocado;Mas, a tal vista, ao pórtico medrososRetiveram-se os Gregos. Dentro ouviamCantar suave a crinipulcra Circe,Teia a correr brilhante, que só deusasLavram tão fina e bela.(LIVRO X, ODISSEIA)

O segundo episódio em que Ulisses fala do esquecimento trata da bela mais traiçoeira deusa

Circe. O referido episódio está no décimo canto da Odisseia. Ulisses atraca novamente com

seus companheiros em uma costa desconhecida, novamente envia emissários. Nessa missão

chegam ao palácio de Circe e são transformados em porcos e presos num chiqueiro, mas sem

perderem a consciência humana. Todavia, antes que essa metamorfose tivesse ocorrido, Circe

deu aos inocentes emissários uma beberagem encantada que novamente se revela uma droga do

esquecimento, pois, como o fruto do lótus, ela apaga a lembrança da pátria. A receita

farmacológica dessa droga é descrita até com detalhes nos versos homéricos; segundo eles,

trata-se de uma, bem dosada, mistura de vinho de Pramno, queijo, farinha de cevada e mel

amarelo. Também em Circe, essa “droga fatal” (em grego, pharmaconIygron) é de modo que

os convidados que dela bebem sem pensarem em nada “perdem qualquer lembrança de sua

pátria”, o que nesse caso pode ter-lhes aliviado um pouco o destino dos porcos (WEINRICH,

2001).

Falamos aqui do esquecimento da memória, de como a lembrança pode promover também o

mais instituído e irrevogável esquecimento. Pretendo dizer que a lembrança produz em si um

esquecimento, um esquecimento de, pela memória. Uma representação tomada por sequência,

uma representação presente de uma coisa ausente. Luciana Lima, orientadora de Tapiramutá,

nos contempla com as memórias presentes e o que ficou ausente...

LUCIANA LIMA <[email protected]>mailto:[email protected]

Para

FABRIZIA PIRES mailto:[email protected]

04/02/12 às 1:28 PM

169

Oi Fa, querida...

Tudo bem?

Como não temos experiência alguma com as instalações e necessitamos orientar os cursistas, segue

um texto em anexo para, se possível, vcs apreciarem e verificarem se a ideia é esta mesmo para a

sinopse da instalação. Tá muito curto, precisa de fundamentação? Pode ser feito em forma de

banner? Se sim, qual o tamanho (pode ser 1,00 m X 0,80 cm? Se não, qual deve ser o papel para

impressão?

Aguardo um retorno.

Bjos,

Luciana

SINOPSE

INSTALAÇÃO: LIVRES PARA VOAR

Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre tem um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem par voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado. (Rubem Alves, Gaiolas e Asas, 2000)

Visto que a maioria dos componentes do grupo TECER estudou durante o método

tradicionalista, escolhemos uma gaiola como tema central da nossa instalação para

representar a escola tradicional. Neste método de ensino a escola era como uma gaiola,

onde o aluno era passivo, não refletia e aceitava tudo pronto sem questionar. Desse modo,

a escola tradicional não encorajava o aluno a desenvolver a capacidade de voar. Em

contraponto, os pássaros em voo demonstram o avanço dos métodos de ensino, representam

a escola que é “asa”, já que hoje a escola se preocupa prioritariamente em encorajar o

aluno a voar, a refletir e a construir o próprio conhecimento.

Assim a instalação: Livres para voar, retrata o contraste entre a escola tradicional e a

educação atual, pois nos consideramos parte desse contraste e vivemos dia a dia a fim de

170

desenvolver a arte do voo e como professores que somos desejosos de encorajar os alunos

a voarem. No sétimo canto de sua Odisseia, Homero relata como em seu heroico retorno de Troia,

Ulisses é lançado num naufrágio. A narrativa preenche quatro cânticos da Odisseia (IX-XII)

e resume que obstáculos se opuseram durante dez anos à volta do herói para casa. Ulisses

teve de lutar contra penhascos e tempestades, forças inimigas puseram em risco suas vidas,

entre elas não apenas Polifemo de um olho só, mas também o poderoso deus dos mares

Poseidon, que também causara seu naufrágio nas praias dos féaces. Mas os piores e

perigosos óbices ao retorno para casa, à ilha de Ítaca, foram para Ulisses as múltiplas

tentações de esquecimento a que era exposto nas paradas em sua longa errância, e disso ela

fala aos féaces em três episódios de sua narrativa: os lotófagos, Circe e Calipso

(WEINRICH, 2001).

Dos lotófagos Ulisses fala logo no começo de sua história, no canto nove. Volta bem longe

no tempo; sua situação ainda é boa, sua frota é de ainda de doze navios. Com eles ancora

junto de uma costa desconhecida, talvez a ilha de Meninx, hoje Djerba, e envia alguns

homens da tripulação a terra para investigar a ilha. Não retornam mais. Terão deparado com

habitantes hostis que os aprisionaram ou mataram? Não foi o que sucedeu. Os moradores

da ilha, ao contrário, receberam amavelmente os tripulantes, tratando-os com hospitalidade,

e também lhes deram uma fruta com agradável sabor de mel, chamada lótus, da qual

costumava comer regularmente, por isso eram chamados lotófagos (comedores de lótus).

Esse fruto, além do excelente sabor, tinha a qualidade de conceder esquecimento. E assim,

depois de saborearem o fruto do lótus, os marujos de Ulisses não apenas esqueceram o

objetivo de sua viagem, o retorno a Ítaca, mas também a missão do reconhecimento da ilha

que Ulisses lhes dera, entregando-se inteiramente ao prazer do saboroso fruto e às doçuras

da estada entre os amáveis lotófagos (WEINRICH, 2001).

O texto Instalação: Livres para voar, qual seria o naufrágio? Não seria a metáfora da gaiola

da escola tradicional, uma memória refletida por dispositivos de rupturas? A escola

tradicional não despertava voos? E a escola atual não desperta prisões? O banco, a

palmatória, a passividade, são fruto de qual lótus? A narrativa do grupo do TECER saboreou

o fruto lótus ou entregaram ao prazer da narrativa coletiva contada pelas histórias e registros

da escola tradicional.

171

Figura 17 – O caderno de orientação. Por Solange Maciel.

Fonte: Acervo da autora.

Realizei meus estudos de Nível Fundamental em escolas pública, e particular, send: da 1ª à 3ª série em escola pública e a 4ª série na Escola Dinâmica que era particular, assim como também o Ensino Médio que foi realizado em uma instituição privada. Um fato marcante de minha vida escolar foi quando estudei a primeira série fraca na Escola Totônio Marques Dourado Filho. Vale lembrar que tal prática era comum e muito utilizada nesta época e buscava homogeneizar os alunos, colocando aqueles que eram considerados fortes, porque sabiam mais, em uma turma e os fracos, porque sabiam menos, em outra turma, junto com alunos com maiores dificuldades de aprendizagens. Nesta época a escola desconsiderava a aprendizagem existente na interação com o outro. (ANTUNES, 2007, p. 8)Havia iniciado meus estudos em meados de 1975. Minha professora chamava-se Marlene Moitinho, e desde o primeiro dia de aula eu observava tudo o que acontecia. Sempre fui muito curiosa (...) Sendo assim, percebi que os alunos que conseguissem ler o livro “Joãzinho e suas empadinhas”, eram promovidos para a primeira série forte. Percebendo isso, pedi a Anédia Dourado, minha prima, para ler esse livro várias vezes por dia para mim, até que um dia memorizei toda a história, e ao chegar à escola, disse para a professora que eu

172

já sabia ler. Ela, sem acreditar, pediu ansiosa para eu pegar o livro e ler para ela e todos os colegas da turma. Assim fiz o reconto da história que havia memorizado. A professora ficou encantada, achou o máximo e me aprovou para a primeira série forte; aquilo era o sonho de todos os alunos. (ANTUNES, 2007, p. 8)

Assim como o grupo TECER, que precisava apresentar suas memórias na instalação, Ulisses,

preocupado com a demora dos emissários, manda procurar por eles. Encontram-nos na feliz

embriaguez do esquecimento, e, contra a vontade deles, “chorando’’, são trazidos de volta aos

navios. Lá, para não voltarem aos perigosos prazeres dos lotófagos, são acorrentados aos barcos

dos remadores. Mas a si próprio e aos demais marujos da frota, Ulisses proíbe severamente a

saborearem daquela droga. Manda levantar as âncoras depressa e prosseguir viagem

(WEINRICH, 2001).Os diálogos no currículo do Curso de Pedagogia iam sendo tecidos, as narrativas demarcavam

as gaiolas do esquecimento e a as asas da memória, ou vice-versa. Na mesa do banquete quem

senta é Inez Carvalho e Roseli Sá, coordenadoras e líderes do grupo FEP/Faced/Ufba. No campo da prática, montamos um curso em que as narrativas de si, dos professores em exercício, estiveram, de um modo geral, ordinariamente presentes no cotidiano do curso e, efetivamente como dispositivo metodológico, em dois componentes curriculares: Memorial e Diário de Ciclo. Os Memoriais de Formação ou auto-biográficos, como denomina Passegi (2010), privilegiam o conhecimento dos percursos formativos em sua singularidade e permitem a rememoração e o levantamento de acontecimentos significativos que constituem experiências, tratadas em nossos estudos e propostas, a partir de Dewey (1985) e Larrosa (2002a; 2002b), como “o que nos passa e o modo como nos colocamos em jogo, nós mesmos, no que se passa conosco”; diríamos que, como referências fundamentais para o processo de compreensão de mundo. Chamávamos, portanto, os professores para serem sujeitos-fortes, construtores de seu percurso formativo, autores de narrativas de si, a partir de registros de acontecimentos/experiências que compuseram suas singularidades e ao mesmo tempo questionávamos a centralidade absoluta dos sujeitos, como mostram as âncoras dos projetos às quais já nos referimos. Como em uma aspiral cíclica, transitamos, como é comum ao jogo vivido, entre um sujeito-forte e um sujeito-fraco, em um contínuo conflito estabelecido no processo de construção de uma “obra”. (CARVALHO; SÁ, 2005, no prelo).

A obra memorialística, a arte de lembrar e esquecer descreve as tentativas do discurso atual de

compreensão do mundo, a centralidade do sujeito forte cria dilemas num mundo fluido,

descontínuo e caótico. A memória reforça esse lugar do sujeito forte, poderoso. O esquecimento

seria esse outro lugar do sujeito, com seus dilemas, suas rupturas, sua fluidez, o sujeito mais

fraco. “Enfraquecer o sujeito não é minimizar a subjetividade, pelo contrário, é ampliá-la. A

173

subjetividade vai além da natureza humana, e é forjada pelo circundante que pode ser, e na

maioria das vezes o é, distante tempo/espacialmente” (CARVALHO; SÁ, 2005, p.5, no prelo).

A forma como nosso currículo foi elaborado de maneira não linear, não verticalizada, foi o que mais me encantou no curso de formação, porque as atividades, mesmo sendo escolhidas de forma a contemplar o horário de estudo de cada professor, acabavam puxando vertentes umas com as outras, como fios que entrelaçavam de um atividade a outra, como, por exemplo: Tópicos da Psicologia Infantil, Psicomotricidade, Os princípios da Hermenêutica e o estudo feito no grupo de orientação com Margareth Dourado, foram atividades que puxaram esses fios e foram entrelaçando e formando uma rede de conhecimentos. Todas estas atividades discutiam temas relacionados à memória e a importância que devemos dar ao funcionamento do cérebro, do movimento corporal, das emoções, das performances, das interpretações, porque tudo isso faz parte do ensino-aprendizagem. (ANTUNES, 2007, p. 21)Para ser sincero, de início não acreditava muito no curso, como realmente um curso de licenciatura em pedagogia. Os motivos que me levaram a pensar isso eram vários: a itinerância das atividades, que ora eram realizadas em um local, ora em outros, a maneira como fomos selecionados, uma forma não convencional de vestibular, fazendo a oficina e construção do nosso memorial e finalmente, a apatia e a falta de coragem para prosseguir. (ROCHA, 2007, p. 40)

Figura 18 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Antes do início das visitas, Inez

Carvalho, coordenadora do Projeto,

informou aos professores convidados que

eles teriam toda a manhã para apreciar as

instalações e conversar com os

professores-cursistas sobre seus

memoriais. À tarde eles deveriam se reunir

para elaborar um parecer coletivo sobre

cada instalação. Enquanto isso, nós, da

equipe do curso, responsáveis pela

orientação dos professores-cursistas na

elaboração dos seus memoriais, estávamos

ali para ver o que os cursistas produziram

e ouvir o que os professores-convidados

tinham a dizer. Após os informes de Inez,

cada um seguiu seu caminho. Fonte: Acervo da autora.

174

Como a primeira instalação que eu havia visto fora a do ônibus, fui até ela. Dessa vez, olhei

com cuidado e li cada uma das palavras que estavam coladas nas letras: conceitos estudados,

princípios do curso, atividades do curso... quanta coisa aquele nome “ESCOLAR” carregava!

A-con-tecer, via Ufba; esse era o itinerário do ônibus, estampado no para-brisa. A-con-tecer,

via Ufba: 3.200 horas de viagem! Era o que estava escrito nos tickets de embarque que cada

um recebeu à porta do ônibus.

Dentro do ônibus: traços da infância, lembranças das escolas onde estudaram e onde são

professores, a presença do curso na vida de cada, fragmentos dos memoriais, os fios da

memória, as redes de conhecimento. Enquanto observava, eu pensava nas muitas histórias que

li durante minhas idas e vindas ao longo do semestre para orientar um grupo de professoras-

cursistas na elaboração do memorial-formação. Como integrante da equipe do curso, olhando

para o que estava disposto naquela instalação, eu via e me revia naquelas 3.200 horas de

curso; via e revia como todos e cada professor-cursista interpretava sua própria formação.

Figura 19 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Fonte: Acervo da autora.

Dentro do ônibus, apenas alguns professores convidados e integrantes da equipe do curso.

Onde estavam os professores-cursistas autores daquela instalação? Era o que todos se

perguntavam. Até um motorista subir e nos informar que faríamos um passeio pela cidade de

Irecê. Uma instalação em movimento. Genial!

E entre trechos e traços de memórias, excertos dos memoriais, livros, brinquedos, mouses e

teclados... saímos nós a passear naquele ônibus escolar... Passeio fora do ônibus, viagem

dentro dele (com som de saudade e sabor de geleia de umbu); e todos nós maravilhados e

175

encantados com aquilo que víamos e ouvíamos e saboreávamos. Ao longo do trajeto, fizemos

algumas paradas, e a cada uma delas um ou dois professores-cursistas se juntavam a nós.

A dimensão do esquecimento de rupturas é vislumbrada com acontecimentos que rompem com

conceito, paradigmas, e um esquecimento que gera novos conceitos, novos conhecimentos. A

condição humana de sobrevivência como ser sociável nos remete à compreensão da relação do

esquecimento com a memória, e a supremacia desse ser humano forte, que rememora suas

lembranças para a demarcação histórica e política do seu meio social, assim fez Ulisses.

No decorrer do curso, veio à confirmação e o prazer de registrar, visto que são necessárias. As anotações favoreceram a escrita na hora da elaboração dos diários e trabalhos solicitados e pude reformular erros primários. Em cada ciclo, realimentaríamos o memorial que elaboramos no processo seletivo e também revisitaria meus escritos. [...] percebo que escrevo melhor e que tenho mais consciência em pensar no que é escrito. (SENA, 2012, p. 20).

Dialoga com o apagamento repressivo, grande parte do material esquecido ou de partículas a-

significantes não podem mais ser acessadas, porque se romperam. Não se trata, nesse caso, dos

dispositivos de recalcamento elucidados pela psicanálise, de conteúdos não aceitos pela

consciência, censurados, mas sim de informações que passaram ao longo da memória entre

consciente e inconsciente, gerando novos paradigmas e aprendizagens.

Inimigo fatal de meus estudos,e destruiu o meu saber,

Que roubas o fruto penosoDos meus mais duros lavores,

Esquecimento, rival de minha memória,Não te oponhas à minha glória,

Respeita minhas intenções;Quero que a razão me ilumine,

Que a lei severa das virtudesGuie todas as minhas ações. [...]

(Ode ao esquecimento, Frederic)

6.7 ESQUECIMENTO SILENCIOSO

Foi-se a Lacedemônia a instar MinervaA que volte o magnânimo Ulisseida.Ele e o Nestório ao pórtico repousamDe Menelau: Pisístrato num meigoSono estava; desperto o companheiro,N’alta noite em seu pai medita e pensa.“Telêmaco, a Glaucópide bradou-lhe,Não mais vagues, soberbos tendo em casaNenhum de vós me fale; que, se o velho

176

O suspeita, em prisões há de lançar-meE urdir a morte vossa. Eia, segredo;Completo o vosso escambo e a carga dentro,Avisai-me com tempo: quanto pilhe,Ouro trarei. Mor frete oh! se eu vos desse!Nas casas do senhor penso um meninoTravesso e andejo; à nau guiá-lo posso:Com ele alcançareis copioso lucro,Se for mercado ao longe. — Disse e foi-se.(LIVRO XV, ODISSEIA)

Sempre fui a mais falante da sala de aula, do grupo das primas a mais conversadeira, a “bocuda”.

Já fui chamada até de “Fifi” quando criança, uma personagem de uma novela da qual já não me

recordo o nome, mas que falava pelos cotovelos. Mais ou menos quando tinha uns 10 anos,

minha mãe começa a frequentar a Igreja Católica da cidade, paróquia Senhor do Bonfim.

Primeira comunhão, crisma, grupo jovem, retiros pela Bahia e missas. Os padres que por ali

passavam não eram adeptos aos louvores mais contemporâneos da Igreja Católica, promulgados

no Brasil desde a década de 1970. Passei a ser a coordenadora do grupo jovem Shalom, e nos

“retiros espirituais”, a palavra silêncio ganha um significado de reflexão, de encontro consigo

mesmo... Mas os estudos e formações com a “Revista Mundo Jovem” também nos instigava a

luta pelas causas sociais pela/com a “força da palavra”. A veia falante falou mais alto, continuei

a mais falante, a da oralidade...

Poderíamos pensar o silêncio como o intervalo preciso para as modulações da comunicação, a

respiração do sentido. Mas não tem apenas significado na sua forma, o seu conteúdo desenha,

no fio do discurso, figuras carregadas de sentido: fecho, abertura, interrogação, expectativa,

cumplicidade, admiração, espanto, dissidência, desprezo, submissão, tristeza etc. É,

imediatamente, nos limites dos assuntos a que se refere uma forma de discurso para além da

palavra. O silêncio diz aquilo que as palavras não seriam suficientes para traduzir, inscreve a

emoção no período em que a frase não teria salientado a importância. Marca a reserva de alguém

que procura uma decisão, embora noutras ocasiões seja também a sanção clara do

aborrecimento. O silêncio impõe-se, então, na fuga da palavra.

No início do Curso não me sentia bem naquele ambiente, ficava mais em silêncio por não ser

uma pessoa bem preparada, como muitos ali presentes, mas sabia que experiência vem de um

processo e do exercício da aprendizagem adquirida, através de estudos, pesquisas, curiosidade

e vontade de aprender. Como diz Paulo Freire (1996): “Não existe quem sabe mais e nem quem

sabe menos, o que existem são saberes diferentes”. Pois, foi nessa perspectiva que busquei

177

aprimorar o que já sabia construir e esquecer a timidez para construir caminhos novos para

chegar ao final do Curso. (SANTOS, 2012, p. 27, grifo nosso).

Lete de imediato lembra-se da professora-cursista da segunda turma de Pedagogia do Projeto

Irecê, Cláudia Leite, acompanhou-a como orientadora local. E como a mesma sentia

dificuldades nas apresentações orais e nas outras linguagens que perpassavam pelo grupo, como

a teatral e a musical. A retenção da palavra traduz muitas vezes a tentativa de conservar o controle da comunicação, de não se achar implicado num intercâmbio não desejado é uma postura de observação, de escuta. Permite ver a chegada, esperando o momento favorável, sem mostrar a sua eventual vulnerabilidade ou as suas dúvidas. É também um poder temível, como lembra Susan Sontag ao analisar o filme Persona, de Bergman, “onde o silêncio obstinado de um dos protagonistas lhe confere uma posição virtualmente inviolável de força com a qual manipula e desconcerta a sua companheira, a única a carregar com o fardo da palavra” (SONTANG, 1994, 17). O silêncio do outro, nas circunstâncias que exigem sua palavra, introduz uma posição penosa de espera, a repercussão de uma subordinação difícil de contornar. (BRETON, 1997, p. 79-80)

A dimensão do esquecimento silencioso se manifesta em um padrão generalizado, enraizado

na sociedade civil, de maneira quase que secreta não marcada, nem reconhecida. E no silêncio

de colusão trouxe por um tipo particular de vergonha coletiva, existe detectável tanto um desejo

de esquecer e às vezes o efeito real do esquecimento. No entanto, o silêncio pode ser uma forma

eficiente de expressão, talvez mais do que a própria fala. Neste sentido, a necessidade do

esquecimento revela um “tipo particular de vergonha coletiva” sobre os fatos que merecem ser

esquecidos (CONNERTON, 2008). A linguagem não existe sem a pontuação do silêncio, que

a torna inteligível.

A linguagem é poder, poder de obrigar o outro, de lhe impor idéias, de lhe dar ordem de se calar ou de falar. A palavra não é inocente naquilo que implica que um outro se cale e se subordine a ela, principalmente às suas conseqüências que podem ser mais ou menos pesadas. É muitas vezes um monopólio ou uma prioridade que aproveita ao detentor do poder ou da autoridade hierárquica. A retenção da palavra traduz muitas vezes a tentativa de conservar o controle da comunicação, de não se achar implicado num intercâmbio não desejado, é uma postura de observação, de escuta. (BRETON, 1997, p. 78-79)

Com essas figuras do esquecimento do silêncio, aquele que dá a memória os meios de combater

o esquecimento. Para Ricoeur (2007), “contra o esquecimento destruidor, há o esquecimento

que preserva”. Talvez seja esta a explicação de um paradoxo pouco notável no texto de

178

Heidegger, a saber, que o esquecimento torna possível a memória: assim como a expectativa só

é possível na base de um esperar por, também a lembrança (Erinnerung) só é possível na base

de um esquecer, e não o contrário; pois é no modo do esquecimento que o ser-sido abre

primariamente o horizonte no qual, ao se engajar nele, o Dasein perdido na exterioridade

daquilo com que se preocupa pode se relembrar.

Seguindo as etapas que levam ao nascimento da borboleta apresenta seu movimento de formação em uma construção que segue os passos da metamorfose da borboleta: ovo, larva, pupa e imago. Com isso oportuniza a colheita auto-reflexiva de uma formação potencializadora de um ser-mais. O que se vê é o brilho de quem deixou ser a metamorfose de sua própria imago, que também é um correlato de “imagem”. É quando a metáfora dá lugar ao acontecimento da auto-imagem construída pela autora em sua metamorfose espiritual (GALEFFI, 2011, p. 01, parecer avaliativo de Rita de Cássia Pereira).

O Dasein de Heidegger, os signos de Rosseau, e os “rastros do esquecimento” do Projeto Irecê,

revelaram histórias e memórias de histórias, com consciência ou com o inconsciente. Omissões

na mesa do banquete, histórias silenciadas e esquecidas, algumas intencionais, outras não. O

esquecimento é, ou deve ser espontâneo, ao contrário da lembrança que muitas vezes pode ser

objetiva, e tem diversos meios e métodos de ser preservada e armazenada. Se queremos

esquecer alguma coisa, a melhor maneira é deixar o tempo passar, deixar as coisas se

aquietarem, dormir, silenciar, fazer coisas alhures, despropositais e aleatórias.

Como está calmo o mundoE envolto em penumbra

Tão íntimo e tão belo,Como um quarto silencioso,Onde deveis apagar no sono

E esquecerO sofrimento do dia.

(Canção da tarde – Matthias Claudius)

6.8 ESQUECIMENTO FELIZ

Navego assíduo; na dezena tarde,Ítaca e os lumes seus me apareciam:Rendo-me ao sono ali, cansado e lasso,Pois nunca o leme a outrem confiara,Para em terra o mais cedo nos acharmos.Do generoso Hipótades riquezasCrendo que eu recebera, os da equipagemDiscorriam destarte: “Oh! quanto UlissesPor onde quer que aborde é festejado!

179

Onusto vem de Ilíacos tesouros,E nós, tendo corrido iguais tormentas,Vamos ao pátrio lar de mãos vazias.Brindes lhe fez agora o amigo Eolo;Veja-se que ouro e argento esse odre guarda.”Vencendo o mau conselho, o desataram:Os ventos a ruir, de Ítaca os deitam,A empegá-los em lágrimas desfeitos.Acordo; ao mar calculo se me atire,Ou sofra a nova dor: sofri, jazendoNo fundo oculto; os outros, suspiravam.Procela atrás à Eólia nos remessa:(LIVRO X, ODISSEIA)

“Volta”! – Gritou a saudade

“Lembra”! – Disse a memória

“Esquece”! – Aconselhou a razão

Esses versinhos chamaram-me a atenção em um post numa rede social e como as “artimanhas”

do esquecimento não são tão fáceis de “desmascarar”, o esquecimento seria também o direito

de esquecer uma memória interminável? Para Ricoeur, não é tão simplório falar de

esquecimento feliz como falar de memória feliz. Para o autor a nossa relação com o

esquecimento não é marcada por acontecimento de pensamentos comparáveis ao

reconhecimento – “uma lembrança é evocada, ela sobrevém, ela volta, reconhecemos num

instante a coisa, o acontecimento, a pessoa e exclamamos: É ela, É ele”! (2007, p. 508). O

esquecimento não é um acontecimento, mas num dado momento se reconhece o que se

esqueceu. Nietzsche é nossa inspiração, naquilo que o filósofo alemão chama de esquecimento

ativo, uma “força”. A conversa na mesa do banquete é retomada sobre a ideia da memória feliz

de Ricoeur, que foi baseada na sua apresentação da fenomenologia da memória. Lete abre a

discussão sobre as palavras-chave assumidas pelo grupo de professores pesquisadores do

projeto Irecê: Currículo. Formação. Experiência. Subjetividades. Narrativas. As inspirações

hermenêuticas fenomenológicas, os sujeitos do currículo como narradores de si: Mesmo ouvindo comentários de como seria a escrita dos diários de ciclo, continuei escrevendo meramente um texto descritivo e isso vinha sendo alertado pela minha parecerista. Este fato me levou a ter uma atitude de escrita e reflexão no que se referia aos diários. Daí tentei desenvolver uma escrita auto-avaliação, crítica e reflexiva. No Ciclo Um e no Dois, havia participado de maravilhosas atividades como: paisagem, fotografia e estudo sócio-ambiental, apresentada pelo professor Helmut Muller, nos mostrando com uma maneira simples, como trabalhar interdisciplinaridade; Arte-educação e autoconhecimento, com a professora Ana Paula Feitosa, uma

180

ótima atividade em que tive a felicidade de levá-la para a minha sala de aula e dividir com meus alunos, momentos por mim vivenciados no curso. (ROCHA, 2007, p. 46, grifo nosso)

Narrar ganha aqui, mais uma vez, caráter de suporte para a construção do sentido de nós

mesmos, já que, segundo Larrosa (2004, p. 18), “[...] à pergunta sobre o que somos só podemos

responder contando alguma história. E ao narrarmos a nós mesmos no que nos passa [...] nos

construímos como indivíduos particulares”.

Alguns textos são lançados sobre a mesa, e logo se misturam a alguns pingos de café que ficam

sobre as folhas, o texto escrito pelas coordenadoras Inez Carvalho e Roseli Sá, os sujeitos nas

narrativas curriculares: Formação, Experiência, Subjetividade (20015, no prelo).

Em nosso pensar/praticar Currículo, temos que uma de suas funções é a de subsidiar os percursos formativos e, dado que à Formação é atribuída a condição de nascer de um processo interno de constituição e não necessariamente de uma finalidade técnica (GADAMER, 1999), passamos a considerar, nas propostas curriculares, a singularidade de cada percurso formativo e a importância da narrativa desse próprio percurso como conhecimento curricular significativo. (CARVALHO; SÁ, 2015, p. 10).

A compreensão das conceituações contemporâneas de narrativas curriculares e interpretação

dos Rastros do esquecimento “deixados” nos diários e memoriais de formação, ligam-se a um

re-sentir, na concepção do esquecimento segundo Nietzsche, e, por isso, não moveria o homem

à ação, já que promove a interiorização e não a exteriorização das suas forças existentes.

Nietzsche, ao discutir a relação entre memória e esquecimento, na Genealogia da moral, utiliza

o método genealógico para avançar nessa discussão, levantando uma hipótese ligada aos valores

morais, consolidados e cristalizados como verdades no meio social. Em sua análise, o filósofo

desenvolve uma crítica a tais valores, questionando os ideais estabelecidos em sua época.

Aliás, no processo de autognose e de autorrealização em que somos guiados pelo mestre, será

importante considerar a dinâmica existente entre o lembrar, e o esquecer, já que o esquecimento

pode abrir as portas para essa criação, para inaugurar novas possibilidades de vida e de uma

cultura autêntica, e diária de um esquecimento feliz.Depois de uma viagem entre ruas de barro e ruas asfaltadas, vendo a caatinga seca num dia

ensolarado, sentido a poeira adentrar minhas narinas, voltamos ao Espaço Ufba-Irecê. Desci

do ônibus escolar e caminhei em direção àquele lugar que sempre fora um auditório, mas que

181

naquele dia era outra coisa, que naquele dia se tornou outra coisa, a começar pelo hall de

entrada. Era a segunda instalação.

Figura 20 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Fonte: Acervo da autora.

A primeira coisa que senti foi o cheiro de terra e serragem. Abri a porta. Os cheiros se

intensificaram. Entrei naquele espaço no qual a música de fundo, a penumbra luz e tudo o mais

convidava à introspecção.

Figura 21 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Fonte: Acervo da autora.

182

Ao cheiro de terra e serragem, juntou-se o cheiro das velas queimando. As velas estavam

dispostas sobre uma mureta de tijolos, um caminho cheio de altos e baixos; algumas estavam

acesas e outras, apagadas. São os altos e baixos da formação? As luzes e sobras dos caminhos

de cada um? As opacidades da vida?

Sentia também o cheiro de querosene, emanando de candeeiros acesos, que me fazia lembrar

os causos que meu avô contava após o jantar, na longínqua cidade baiana de Itaiá, onde

costumava passar as férias.

Figura 22 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Fonte: Acervo da autora.

Em silêncio, continuei perscrutando aquele ambiente. Vi uma parede cheia de fotografias,

algumas bem antigas, iguais às que eu costumava ver em casas de vizinhos dos meus avós, lá

na roça. As fotos despertaram em mim um sentimento fúnebre. Uma sensação de morte, de

perda, de vazio, de dor. Fiquei a pensar que a memória tem um tanto de perda; das pessoas

que se foram, dos momentos que não voltam, das lembranças que se perderam. Pensei também

no que escrevemos sobre as instalações da primeira turma do curso: nas instalações, ao invés

de vivenciarem as experiências, foram os professores-cursistas que as proporcionaram.

Em meio a meus devaneios, fui interrompida por três cursistas que me perguntavam se eu já

havia conseguido identificar alguém. Foi então que percebi que naquela parede da memória

havia algumas fotos de crianças, de adolescentes. Olhei aquela parede repleta de fotos,

tentando encontrar os professores-cursistas naqueles rostos. E reconheci muitos. A cada

acerto, as cursistas riam e ficavam felizes se o rosto reconhecido era o de uma delas.

183

Figura 23 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Fonte: Acervo da autora.

Naquela instalação havia muitas tecnologias: do disco de vinil ao CD, da máquina de

datilografar ao notebook, do candeeiro à lâmpada. Diversas temporalidades dispostas em um

mesmo espaço. Havia também uma sala de aula e, ali, mais memórias nas palavras dos

professores cursistas registradas em cartazes que pendiam do teto. Depois de passar pela sala

de aula, cheguei a uma bancada repleta de notebooks. Neles, podíamos ver clipes produzidos

pelos cursistas, nos quais cada um falava si, do curso, da sua formação. Na saída da instalação,

os gostos do lugar: a pamonha, o milho cozido, a farofa, o café. Saí da sala roendo um milho

cozido e ruminando ideias.

Figura 24 – Instalações artísticas UFBA Irecê.

Fonte: Acervo da autora.

Caminhei sob o sol durante alguns instantes, em busca da terceira e última instalação.

Atravessei o espaço de um extremo a outro e me deparei com uma cerca. Havia uma abertura

184

na cerca; era a entrada para a instalação. Fui recebida por uma cursista que me acolheu com

uma bolsa, um embornal.

Um embornal para guardar minhas lembranças.

O esquecimento ali, na narrativa de Paulinha sobre as instalações artísticas não seria coevo,

análogo ou efeito da destruição e da eliminação. Pode-se esquecer, porque os memoriais ainda

estarão lá, fisicamente insistentes e ancorados, para nos fazer lembrar. Zeladores que são da

preservação da dialética do lembrar e do esquecer e, como tais, da celebração inconteste da

memória, não apenas porque permitem lembrar, mas também porque possibilitam esquecer.

Não há, pois, o que corrigir em um memorial quando ele é feito com esmero e criatividade e não apenas para cumprir tabela na aprovação de um trabalho acadêmico. Percebo no memorial avaliado o traço de um trabalho feliz, feito em uma disposição apaixonante, pois sobressai o prazer em se saber capaz de ser-mais, por sua própria conta, a partir sempre de sua condição existencial concreta. Os efeitos se mostram evidentes: a responsabilidade pela emancipação humana através da profissão abraçada. A borboleta é uma personificação da educadora emancipada, capaz de tomar para si a responsabilidade de metamorfosear a vida em seu incessante e infinito transformar-se. Tudo continuará fluindo infinitamente! (GALEFFI, 2001, parecer final Ufba/Irecê)

Para chegar a ser o que se é, precisa-se dosar, harmonizar, algo a ser lembrado e algo a ser

esquecido, assim, o esquecimento de relacionamentos anteriores, ou de uma filiação religiosa

ou política, por exemplo, torna-se muitas vezes necessário para a construção de novas

identidades individuais ou coletivas. Nietzsche mostra como o esquecimento pode ser um fator

permissivo da felicidade do homem, visto que este, ao se deparar com um acúmulo excessivo

de informações na memória, encontraria aí a sua própria ruína.

O que paira sempre em minha mente com muita nitidez e acredito que jamais esquecerei, foi a primeira festinha de encerramento do ano letivo, no primeiro ano em que também fazia parte daquele grupo que estava chegando ao final de um ano cheio de emoções. (ROCHA, 2007, p. 13)

Todavia é em seu texto “O Aleph”, a pautarmos pela forma como encerra o conto, que Borges

coloca em xeque não só a autenticidade dos acontecimentos evocados pela memória, mas o seu

próprio relato: “Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e

perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz” (BORGES, 2000, p. 698).

185

Saio daquela instalação com o som do cata-vento roçando a cerca enquanto gira. Vou

caminhando e pensando em tudo que experimentara naquela manhã de sábado: as lembranças

agridoces, os sons macios, os barulhos cortantes, as imagens leves e pesadas... Penso nos

sentidos evocados por aquelas produções sinestésicas...

Fim de mais ciclo. Missão cumprida. É o que penso. Termino aquela manhã com um misto de

orgulho, alegria e saudade. Orgulho e alegria ao ver o que fora produzido pelos professores-

cursistas em cada instalação, e ao pensar no que as instalações produziram em cada um de

nós.

Saudade de tudo que vivemos ao longo de três anos, principalmente por saber que o trabalho

com aquela turma chegará ao fim. Termino a manhã com a expectativa de que essas

experiências possam ressoar nas escolas, no fazer docente de cada professor. Para que

possamos fazer escola com cada vez mais cor, aroma e sabor.Novembro de 2016, a mesa é retirada, será esquecida por mais um tempo, exatamente nesse

ponto entra também a retórica com sua arte de esquecer. Se as imagens mnemônicas – com ou

sem a ajuda da arte retórica – estão presentes no espírito, a arte de esquecer e de lembrar hão

de ser narradas em outros cafés, outros diários e outros memoriais... Com memórias e

esquecimentos felizes!Considero que o Memorial escrito por Rita Cácia Fernandes Pereira é merecedor de

Aprovação plena, e parabenizo a autora pela bela obra de arte apresentada como coroamento

de uma formação que se transformou em uma implicação com a potencialização da educação

como lugar da liberação humana. Afinal, a realidade de nossa educação local e nacional só

poderá mudar se existirem educadoras e educadores fazedores de uma imago humana para

além dos atavismos e territórios já conhecidos e conquistados. A autora revela potência na

direção do crescimento criador. Votos de novas metamorfoses!

Salvador, 08/09/2011

Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi

186

7 CONCLUSÃO

ESQUECIMENTOS FINAIS...

“Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer

diferenças, é generalizar, abstrair”. (Funes o Memorioso, Ficções, Jorge Luis Borges, 1944)

Para

Fabrizia

06/14/12 às 8:26 AM

A dimensão esquecimento, mais uma vez se fazendo presente.

INEZ

Resumo Cipa Inez II

Seria praticamente impossível lembrar de todas as questões postas incinialmente neste trabalho.

Tentei me atentar a sua premissa, à problemática inicial; contudo, a partir da revisão teórico-

conceitual sobre esquecimento e as implicações para com a memória, fui dando-me conta da

dimensão do esquecer. Do quanto o mesmo foi fazendo-se presente em diversos momentos do

currículo do projeto Irecê, e no seu a-com-tecer. Mesmo que não intencionalmente, todavia com

a presença de elementos não tão “potencializados” nos dispisitivos formativos do Curso de

Pedagogia do Projeto Irecê.

Ao investigar as estratégias para a discussão no espaço acadêmico, sobre a possibilidade de

formação dos sujeitos com os “elementos formativos” das dimensões do esquecimento, assim

como foi o trabalho com os dispositivos memorialísticos do curso (memorial, diário de ciclo,

produção livre, Gelit´s etc.) pude perceber que não há nesta tese anúncio de fórmulas ou

modelos prontos, capazes de promover a descontrução de um ideário de intelectualidade e

produção de pesquisas sobre a formação de professores com as autobiografias formativas, e

nem é essa minha intenção, uma vez que sou parte desse grupo de professores-formadores e

pesquisadores. E foi no quanto vi e nas percepções que pude ter, que analisei a grande

187

contribuição quanto à questão da profissionalidade docente a partir da estética e dos elementos

formativos, otimizados no currículo do projeto Irecê.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES – UFBA/IRECÊ

GRUPO DE ESTUDO LITERÁRIO: ANARQUISTAS GRAÇAS A DEUS

PROFª. FABRÍZIA PIRES

CURSISTA: GERVÁSIO MENDES MOZINE

AUTOAVALIAÇÃO

Analisando os outros Gelits que participei, posso dizer que este foi o que rendi menos.

Devido a um problema de falta de saúde, não consegui me inteirar da forma que exigia o estudo

durante os encontros do Grupo e também do Ciclo Quatro em si. Na verdade não foi fácil para

mim, pois a leitura que fazia em um dia, ia para o esquecimento no dia seguinte. Devido a esse

fator, minha contribuição com as discussões nos encontros ficou um pouco tímida. As falas dos

colegas contribuíram para que eu fosse relembrando o que li. A contribuição da professora

Orientadora, Fabrízia, não poderia ser melhor. Usou de uma diversidade de recursos para

conduzir os estudos, o que facilitou compreender um pouco mais a obra literária de Gattai. Até

uma linha do tempo foi realizada com fotos de tempos passados de minha vida e dos colegas

também. Achei legal, pois me possibilitou a estruturar o que eu precisava de fato colocar em

meu memorial.

Apesar das dificuldades, o livro permitiu que eu desse uma nova cara ao meu memorial,

pois Gattai descreve suas memórias de maneira simples, valorizando todos os aspectos

positivos e negativos de sua vida. O casarão onde morou e a rua dela ganharam detalhes e

gosto. Tudo era bem descrito: o cachorro, o bode Bito, o cinema, o parque, os vizinhos, a vida

do apaixonado por corridas automobilísticas, Ernesto Gattai, seus irmãos e irmãs mais velhos,

sua mãe Angelina que parecia não lhe gostar muito bem, e até a Revolução de 1924 em São

Paulo, com o famoso Tenentismo. Agora fiquei mais ciente com as falas do meu pai ao falar

sobre os revoltosos, sobre Militão e Horácio de Matos.

188

Em meu memorial, já relatava sobre minha rua. Após a leitura do livro, os relatos

ficaram mais apoiados, com as referências tiradas de Anarquistas Graças a Deus.

Por fim posso dizer que fiz o máximo possível para tirar proveito dos estudos que

realizamos. Já posso falar na minha prática da contribuição do livro para entender alguns

períodos de revolta, da imigração, colonização que passou o nosso Brasil e até da revolução

tecnológica, quando um disco de vinil era uma joia rara, quando o cinema mudo ainda era

para poucos, quando o remédio para doenças como a malária ainda não tinha uma definição

do qual era o correto.

Mensurar um aprendizado é muito complexo, mesmo assim, afirmo que aprendi de

forma considerável a mensagem pedagógica do livro. Minha bagagem inicial de contribuição,

de zero a dois e meio, era de pouco mais que zero. No final esta bagagem teve uma evolução

de aproveitamento que possibilita não ser reprovado.

Carinhosamente,

Gervásio Mendes Mozine

04 de julho de 2010.

A tessitura entre esquecimento e memória se configura, na interpretação hermenêutica das

narrativas apresentadas nos memoriais de formação do Curso de Pedagogia Ufba/Irecê, onde

as dimensões analisadas do esquecimento fortalecem o trabalho formativo como uma das

condições da memória. Ou seja, o esquecimento deve ser visto como um verdadeiro rastro,

firme e obtuso, rumo ao devir.

O desejo que sempre me acompanhou, de interpretar e compreender os afetamentos da

formação a partir do trabalho com Memórias, e as configurações dessas implicações nos

contextos pessoais e profissionais daqueles professores-cursitas, era algo que me acompanhava

desde minha graduação. Essa inquietação me levou também a perceber nos congressos e nas

políticas públicas de formação de professores, algo que já sinalizei nos capítulos anteriores, o

“exagero da rememoração”, com a prevalência do “sujeito forte” que precisa “lembrar” a todo

custo para o encontro e mergulho em si mesmo, ainda que em alguns momentos ou

acontecimentos da vida, o mais viável é esquecer para o novo fluir. Contenho-me a um instante

da ideia de profundidade, e proponho pôr em correlação a problemática relativa a esse nível,

189

com abordagem cognitiva de memória espontânea. De fato, o que o esquecimento desperta

nessa encruzilhada é a própria aporia que está na fonte do caráter problemático da representação

do passado, a saber, a falta de confiabilidade da memória, sendo ainda o desafio por excelência,

oposto à ambição da confiabilidade da memória. Ora, a confiabilidade da lembrança procede

do enigma constitutivo de toda a problemática da memória, a saber, a dialética de presença e de

ausência do âmago da representação do passado, ao que se acrescenta o sentimento da distância

próprio à lembrança, diferentemente da ausência simples da imagem, que esta sirva para

descrever ou simular (RICOEUR, 2010).

Ofício n° 11/2005

Caro (a) professor(a) cursista

No dia 16 de abril estivemos reunidas em Salvador, na Faced (Equipe Irecê e Salvador)

para deliberarmos sobre vários assuntos referentes ao curso de Pedagogia-UFBA-Irecê.

Dentre os pontos discutidos, a atividade em exercício, exigiu uma maior atenção, pelas

questões técnico-pedagógicas envolvidas e, também, em decorrência das exigências legais,

quanto à forma de cumprimento e registro dessa atividade.

Alguns aspectos foram reafirmados e outros definidos nesta reunião:

• Frequência nos encontros semanais de orientação;

- Duração 4 horas;

- Contabilidade dessas horas para atividade em exercício;

- A frequência mínima nos encontros de orientação é de 75% (incluindo faltar

que porventura ocorram, por estar participando das atividades temáticas).

• Diário do Ciclo

- É obrigatória a apresentação de 6 produções (1 por ciclo);

- O diário passa a ser “a escrita” da prática pedagógica do cursista;

- Serão emitidos 2 pareceres: um do processo (orientador Irecê) e um do produto

(orientador Salvador).

190

• Creditação das horas (atividade em exercício)

- Só serão creditadas as horas da atividade em exercício quem tiver participação

mínima nos encontros de orientação;

- Quem entregar o diário de ciclo até o prazo definido;

- Se o diário estiver documentado (anexos que ilustrem, comprovem à prática

mostrada no diário de ciclo, especialmente que demonstre os resultados da

intervenção pedagógica da ação dos cursistas na escola);

- Se o diário estiver acompanhado do parecer do processo do orientador local (a

construção do diário requer acompanhamento do orientador, que apreciará a

sua produção durante o ciclo e dará retornos que ajudarão no aprimoramento

do texto);

- Quando o orientador Salvador emitir parecer de apreciação do parecer do

produto (diário de ciclo).

Vale salientar, portanto, a importância do momento de inscrição nas atividades do

ciclo. Dentre outras coisas, chamamos a atenção para que ao escolher as atividades temáticas,

você leve em consideração o dia destinado aos encontros de orientação, para que não

coincidam com outras atividades.

Todos esses encaminhamentos visam o aperfeiçoamento do curso e, por conseguinte,

de você cursista (...).

Atenciosamente,

Equipe de Orientação/Coordenação O Projeto de Formação de Professores UFBA-IRECÊ trouxe uma nova concepção curricular, nós, formadores e envolvidos fomos sendo seduzidos por ela e como em um labirinto, fomos construindo saídas e entradas para as diversas possibilidades que compuseram essa complexa proposta de formação, onde a maior exigência era e deve continuar sendo, uma contínua revisão e (re)construção permanente de saberes, seja sua materialização em Tapiramutá, Porto Velho ou Salvador. (MAIOLI, 2008, p. 129)

Poderíamos pensar nas estratégias do esquecimento que se enxertam diretamente nesse

trabalho de seleção de memórias, como havia mencionado no capítulo anterior, “pode-se

sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diretamente os

191

protagonistas da ação assim como os contornos dela”. A narrativa, por sua vez, comporta

necessariamente uma dimensão seletiva. Para quem atravessou todas as camadas de

configuração e de refiguração narrativa desde a constituição da identidade pessoal até a das

identidades comunitárias que estruturam nossos vínculos de pertencimento, o perigo maior, no

fim do percurso, está no manejo da história autorizada, imposta, celebrada, comemorada da

história oficial (RICOEUR, 2010).

A taxionomia do esquecimento pensada por nós manifesta pensar as nuances em diferentes

dimensões postas pelo esquecimento; num primeiro momento, parece contraditório pensar em

um sistema de classificação complexo para o esquecimento, mas representa discorrer a

taxionomia com a instauração do esquecimento junto ao sistema de “signos” da Memória.

Como já afirmamos na metodologia, não é um signo totalizante, mas um rastro que perpassa

da/na memória. O esquecimento, talvez, não seja mais que um rastro em meio a uma grande

paisagem memorialística modelada pela memória.

Outro aspecto que considero bastante importante para a análise da discussão durante meus

achados, é a virtualização do esquecimento, que seria a inerência do esquecimento nas

memórias de registro, o legado da história da humanidade que “precisa” ser preservado. E assim

o número elevado de informações é lembrado com apoio dos registros, sendo o ato em si,

enquanto o esquecimento seria o a potência, a atualização dessas memórias.

Coloco-me assim numa posição de pesquisadora que requer incluir mudanças significativas na

área de formação de professores, que potencializa o trabalho com memórias autobiográficas,

não sei se para o bem ou para o mal, todavia que instigue novas estratégias de formação. A

Ciência da Informação “esqueceu-se” de que o esquecimento faz parte da memória, pois o

paradigma da área é uma extensão da materialidade dos livros, dos textos e do signo fixo e

territorializado. Sendo assim, cabe também a percepção da escolha do outro quanto ao que é

formativo lembrar, do que é formativo esquecer... E no jogo da vida, vamos lembrar, inventar,

abstrair e esquecer, numa educação para além dos muros das instituições, em que o ato de criar

seja produção de cultura que afirma a vida, num constante devir singular da arte de esquecer.

192

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ABPC. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICANÁLISE CONTEMPORANEA. Apostila de Freud. Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/apostila-completa obra-de-freud.html>. Acesso em: 10 jun 2016.

ANTUNES, Dourado Cássia de. Reflexão no Fazer Docente: Um Reencontro com Minha Profissão. Faculdade de Educação. Curso de Licenciatura em Pedagogia Ensino Fundamental/Séries Iniciais. Irecê, 2007.

APPLE, Michael W. Teoria educacional crítica em tempos incertos. In: GADIN, Luis Armando. Educação em tempos de incerteza. São Paulo: Autentica, 2000.

AZANHA, José Mario Pires. Proposta pedagógica e autonomia da escola. Caderno de Filosofia e História de Educação. CEUSP, v. 03, n. 03. São Paulo: CEUSP, 1998.

BARROS, Daniela Martí. A memória e a Consciência, n. 52, p. 1-4, mar.2005. Disponível em: <www.revistacinetificabrasileira.com.br>. Acesso em: 04 mar. 2016.

BATTELLE, JOHN. A busca: como o Google e seus competidores reinventaram os negócios e estão transformando nossas vidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

BELTRÃO, Lícia Maria Freire. Seleção/inclusão: do ensinar e do aprender na amizade e na liberdade. In: Anais do VI Seminário da Rede Municipal de Educação – Educação Chão e Canção. Irecê-Ba, 2003.

BENJAMIN, Walter. A Obra de arte na era de sua reprodutividade técnica. In: Obras Escolhidas: Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

______. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas: Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Rio de Janeiro: M. Fontes, 1999.

BORGES, Jorge Luis. Obras completas. São Paulo: Globo, 2000.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

BRASIL. LDB. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ministério da Educação: 1996.

BRETON, David Le. Do silêncio. Lisboa, Portugal: Édition Métailié, 1997.

193

BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

BURNHAM, Terezinha. F. Complexidade, multirrefrencialidade, subjetividade: três referências polêmicas para a compreensão do currículo escolar. In: BARBOSA, J. (org). Reflexões em torno da abordagem multirreferencial. São Carlos: EdUFSCAR, 1998, p.35-55.

CARVALHO, José Sérgio. Construtivismo: uma pedagogia esquecida da Escola. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

CARVALHO, Ma. Inez S. S. Por uma perspectiva deliberatória do currículo. Revista da FAEBA. Salvador, n. 5, jan/jun, 1996, p. 137-147.

CARVALHO, Maria Inêz. O a-contecer de uma formação. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 17, n. 29, jan./jun. 2008, p. 159 -168.

DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Rio de Janeiro: Editora 34, 2006.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Vol. I, 125 p.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. Trad. Maria Beatriz Marques Niza da Silva.

DOUGLAS, J. A compreensão do cotidiano. London: Ponttedye E. Regan Paul, 1971. Tradução: Understaning Everyday Life.

DUTRA, Elza. A narrativa como uma técnica de pesquisa fenomenológica. Estudos de psicologia. Rio Grande do Norte, 2002, p. 371-378. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v7n2/a18v07n2.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2009.

FACULDADE DE EDUCAÇÃO – UFBA. Projeto de Formação Continuada de Professores do Município de Irecê-Ba. Salvador, março 2003.

FEITOSA, Ana Paula. Do que tem na minha Caixa de Retalhos: a Garimpagem para um delineamento no conceito de memória. Capítulo um, tese de doutorado, UFBA, 2005.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREUD, S. Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Fred, vol. XIV, Imago, Rio de Janeiro, 1914-1916.

______. Além do princípio de prazer. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: REVISTA DE ESTUDOS LITERÁRIOS 1976. 234 p.

______. Esquecimento e Fantasma. Rio de Janeiro. Ed. Assírio & Alvim, 1991.

GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. São Paulo: FGV, 2003.

194

______. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Rev. Trad. Ênio Paulo Giachini. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Tradução de Flávio Paulo Meurer.

GAGNEBIN, Jeanne. Lembrar esquecer escrever. São Paulo: Editora 34, 2006.

GALEFFI, Dante Augusto. Semântica Fundamental do Discurso Fenomenológico. Apresentado in O Ser-Sendo da Filosofia. Salvador: Edufba, 2001.

GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. Tradução de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira.

GREGÓRIO, Biagi Sérgio. Dicionário de Filosofia. Disponível em: <www.sergiobiagigregorio,com.br>. Acesso em: 14 fev. 2016.

HEIDEGGER, Martin. O que quer dizer pensar? In: Ensaios e Conferências. Vozes: Petrópolis, 2001.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti.

______. Ensaios e Conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2006. Tradução de Emanuel C. Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Schuback.

HOMERO. Odisseia. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer. São Paulo: Vieira & Lent, 2004.

______. Evocando Velhas Memórias. Revista Pátio, ano IX, n. 33, fev/abr, 2005.

______. Memória. Porto Alegre: ARTMED, 2002. LE GOFF, Jacques. Memória. In: ______. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. p. 419-476.

______. Memória. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.

JOHNSON, Steven. Emergência: a Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004. 285 p.

KENSKI, Vani Moreira. Memória e Prática Docente. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org). As Faces da Memória. Campinas: Unicamp, 1996.

LARROSA BONDIA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: n.19, jan./fev./mar./abr., 2002. (Digitado).

LARROSA, J. Nietzsche e a Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. (Pensadores & Educação, 2). 136 p. Tradução de Semíramis Gorini da Veiga.

______. Pedagogia profana. Porto Alegre: Contrabando, 1998.

195

______. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: n. 19, jan./fev./mar./abr., 2002. (Digitado).

LE GOFF, J. 1996. História e Memória. Campinas. Editora da Unicamp.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 1993.

______. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.

LINHARES, Célia. Um desafio para a Formação do Professor. São Paulo: EPU, 1992.

LOWENTHAL, David. Como Conhecemos o Passado. In: ______. Projeto História 17. São Paulo: PUC, 1998.

LUCAS, Clarinda Rodrigues. Os senhores da memória e do esquecimento. Transinformação, Campinas, v. 10, n. 1, p. 1-6, jan/abr. 1998.

MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. O método de leitura estrutural. São Paulo: Editora FGV, 2007.

MACEDO, R. S. Trajetória, intinerário, itinerância e errância no campo do currículo. Trabalho apresentado na 23ª Reunião Anual da ANPED: “Educação não é Privilégio”. Caxambu, 24 a 28/09/2000. (Digitado).

______. Etnopesquisa Crítica, Etnopesquisa-Formação. Brasília: Líber Livro Editora, 2006.

______. Chysallís, currículo e complexidade: a perspectiva crítico-multirrefrencial e o currículo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2002. (Digitado).

MAFFESOLI, M. Elogio da razão essencial. Petrópolis, Vozes, 1998.

MC LAREN, P. A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação. Porto Alegre: Arte Médicas, 1977.

MONTEIRO, Silvana Drumond. O ciberespaço: o termo, a definição e o conceito. Datagramazero – Revista de Ciência da Informação, v. 8, n. 3, jun. 2007. Disponível em: <http:// www.dgz.org.br>. Acesso em: 2 jun. 2016.

MOTTA, Véra Dantas de Souza. O Inconsciente, Máquina Poética de Sonho e de Rememoração. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 17, n. 29, p.79-86, jan/jun., 2008.

NIETZSCHE, F. W. KritischeStudienausgabe [KSA], 15 vol. Ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München: DTV; De Gruyter, 1999.

______. Aurora: Reflexões sobre os problemas morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Trad. de Paulo César de Souza.

196

______. Crepúsculo dos Ídolos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, 1983.

______. Ecce Homo. Porto Alegre: Ed. L&PM, 2006. Trad. de Marcelo Backes.

______. A Gaia da Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Trad. de Paulo César de Souza.

______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Trad. de Paulo César de Souza.

NÓVOA, A. Prefácio. In: ABRAHÃO, M.H.M.B.(org.). História e Histórias de Vida: Destacados Educadores Fazem a História da Educação Rio-grandense. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

NÓVOA, Antônio (Coord.). Os Professores e sua Formação. Portugal: Dom Quixote, 1995.

______. Vida de Professores. Porto: Porto Ed., 1992.

OLIVEIRA, F. P. Projeto Irecê: utopia possível a prática alicerçando a teoria, a teoria consolidando a prática. Monografia, curso de pedagogia FACED/UFBA, 2005.

OLIVEIRA, Vânia M. R. de; CAMPISTA, Valesca do R. O silêncio: multiplicidade de sentidos. SINAIS – Revista Eletrônica – Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n. 02, v. 1, outubro, 2007.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed. São Paulo: UNICAMP, 1997.

______. Análise do discurso. 2.ed. Campinas: Pontes, 2000.

PÉREZ GÓMEZ, Angel. O pensamento prático do professor: a formação do professor como profissional reflexivo. In: NÓVOA, António. Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995. p. 93-114.

RIBEIRO, Raimundo Donato do Prado. Memória e contemporaneidade: as tecnologias da informação como construção histórica. Disponível em: Acesso em: 08/03/2016.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. 3ª reimpressão. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010.

______. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. Tradução de Alain François.

______. O Si-Mesmo como outro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. Tradução de Ivone C. Benedetti.

ROCHA, Everaldo Pereira. Meus Sonhos e Minhas Memórias. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. Curso de Licenciatura em Pedagogia Ensino Fundamental/Séries Iniciais. Irecê, 2007.

197

RODRIGUES, N. Lições do Príncipe e Outras Lições. Ed. Cortez, 1995.

RUSSELL, Bertrand. Fundamentos de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

SÁ, M. R. G. B. de. A formação do pedagogo: construindo existências singulares. In: Hermenêutica de um currículo: O curso de pedagogia da UFBA. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, 2004.

SALES, Márcea. A Arquitetura do Desejo de Aprender: a autoria do Professor em Debate. Salvador, 2004. (Projeto Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Bahia.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1984. Livro X, p.7-26.

SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente. Porto: Afrontamento, 2002.

______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2000.

______. Um discurso sobre ciências. Porto: Afrontamento, 1999.

SANTOS, Neide Cláudia. Memorial de Formação: Experiência e Vivências de uma Professora. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. Curso de Licenciatura em Pedagogia Ensino Fundamental/Séries Iniciais. Irecê, 2012.

SARACEVIC, Tefko. Ciência da Informação: origem, evolução e relações. Perspec. Ci. Inf., v. 1, n. 1, p. 41-62, jan./jun.1996.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, PMI. VI Seminário da Rede Municipal de Educação – Educação Chão e Canção. Irecê-Ba, 2003.

SEIXAS, M. L. C. A práxis nossa de cada dia: significados da experiência refletida e da reflexão experenciada. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, 2006.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão: uma perspectiva histórico-cultural. Educação & Sociedade, ano 21, n. 71, p. 166-193, jul. 2000. VILLAÇA, Nízia. Impresso ou eletrônico? Um trajeto de leitura. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

SOLIGO, Rosaura; PRADO, Guilherme. V. T. Memorial de Formação: quando as memórias narram a história da formação. In: ______. Formação dos Educadores: uma estratégica e transversal as políticas públicas para a educação. 2005. p. 51-60.

SOUZA, Elizeu C. Memórias e trajetórias de escolarização: abordagem experiencial e formação de professores para as séries iniciais do ensino fundamental. Revista da FACED, n. 08, 2004. p. 209-226. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/rfaced/article/view/2825>. Acesso em: 12 out. 2008.

198

______. O Conhecimento de Si: Narrativas do Itinerário Escolar e Formação de Professores. Tese de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

SUDATTI, Ariani Bueno. Silêncio e Sentido. In: Dogmática jurídica e Ideologia: o Discurso Ambiental sob as Vozes de Mikhail Bakhin. Ed. Quartier Latin do Brasil: São Paulo, 2007.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 2005.

VEIGA, Ilma P.; AMARAL Ana Lúcia (orgs). Formação de professores: Políticas e debates. 3. ed. São Paulo: Papirus Editora, 2002.

WEINRICH, Harald. LETE Arte e Crítica do Esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Tradução de Lya Luft.