226

The Bridge Kingdom - VISIONVOX

Embed Size (px)

Citation preview

1

LARA

LARA APOIOU OS COTOVELOS NO MURO BAIXO DE ARENITO, OS OLHOS FIXOS NO SOL BRILHANTE

descendo sobre os picos das montanhas distantes, nada entre aqui e lá além de dunasabrasadoras, escorpiões e lagartos ocasionais. Intransitável para quem não tivesse um bomcamelo, as provisões corretas e uma boa dose de sorte.

Não que ela não tenha sido tentada a experimentar mais de uma vez.Um gongo foi tocado, as reverberações ecoando sobre o complexo. Ele a chamava para jantar

todas as noites nos últimos quinze anos, mas essa noite, estremeceu-a como um tambor deguerra. Lara respirou fundo para acalmar os nervos, depois se virou, caminhando pelo pátio detreinamento na direção das palmeiras altas, as saias cor de rosa roçando delicadamente naspernas. Todas as onze de suas meias-irmãs estavam convergindo para o mesmo lugar, cada umavestida com um vestido diferente, a cor cuidadosamente selecionada por sua Mestra de Estéticapara complementar sua fisionomia.

Lara detestava rosa, mas ninguém pediu sua opinião.Depois de quinze anos presas dentro do complexo, essa seria a última noite das irmãs juntas,

e seu Mestre de Meditação ordenou que passassem a hora antes do jantar em seus locaispreferidos, contemplando tudo o que haviam aprendido e tudo o que realizariam com asferramentas que lhes foram dadas.

Ou pelo menos, o que uma delas realizaria.O cheiro do oásis pairava sobre Lara na mais fraca das brisas. O cheiro de frutas e verduras,

de carne defumada e, acima de tudo, de água. Preciosa, preciosa água. O complexo estavalocalizado em uma das poucas fontes, no meio do deserto vermelho, porém longe de rotas decaravanas. Isolado. Secreto.

Do jeito que o pai delas, o Rei de Maridrina, gostava. E pelo que ela sabia sobre ele, era umhomem que sempre conseguia o que queria, de um jeito ou de outro.

Parando na beira do pátio de treinamento, Lara roçou a parte de baixo dos pés contra aspanturrilhas, tirando o pó da areia antes de deslizar sobre delicadas sandálias de salto alto, com oequilíbrio estável como se estivesse usando botas de combate.

Click, click, click. Seus saltos ecoavam o ritmo frenético de seu coração enquanto andavapelo chão de mosaicos e atravessava a pequena ponte, o som suave de instrumentos de cordaserguendo-se do gorgolejar da água. Os músicos haviam chegado com a comitiva de seu pai parafornecer o entretenimento para as festividades da noite.

Ela duvidava que fariam a jornada de volta.Uma gota de suor escorreu por suas costas, a fita que segurava uma faca contra a parte

interna de sua coxa já estava úmida. Você não vai morrer hoje à noite, ela entoousilenciosamente. Não hoje à noite.

Lara e suas irmãs dirigiram-se para o centro do oásis, um pátio cercado pela primavera, que otransformou em uma ilha de vegetação. Elas caminharam em direção à enorme mesa coberta deseda pesada e com os talheres necessários para uma dúzia ou mais de pratos que viriam. Oscriados, todos mudos, estavam de pé atrás das treze cadeiras, os olhos fixos nos pés. Quando asmulheres se aproximaram, puxaram as cadeiras para trás e Lara sentou-se sem conferir, sabendoque a almofada cor de rosa estaria embaixo dela.

Nenhuma das irmãs falou.Debaixo da mesa, Lara sentiu uma mão agarrar a dela. Ela permitiu que seus olhos

deslizassem para a esquerda, encontrando brevemente o olhar de Sarhina, antes de voltar aoprato. Todas as doze eram filhas do Rei, agora com vinte anos de idade, cada uma nascida poresposas diferentes. Lara e suas meias-irmãs foram levadas a este lugar secreto para recebertreinamento que nenhuma garota maridriniana jamais havia recebido. Treinamento que agoraestava completo.

O estômago de Lara se revirou, e ela deixou cair a mão de Sarhina, a sensação da pele de suairmã mais próxima, fria e seca em relação à sua, a fez se sentir doente.

O gongo soou novamente, e os músicos ficaram em silêncio enquanto as meninas selevantavam. Um batimento cardíaco depois, o pai delas apareceu, seus cabelos prateadosbrilhando à luz da lamparina enquanto atravessava o caminho em direção a elas, seus olhos azuisidênticos aos de todas as garotas presentes. O suor escorria pelas pernas de Lara, porém anos detreinamento a fizeram analisar cada detalhe. O índigo de seu casaco. O couro gasto de suas botas.A espada amarrada em sua cintura. E, quando ele se virou para dar a volta na mesa, o fracocontorno da lâmina escondida em suas costas.

Quando ele se sentou, Lara e as irmãs seguiram o exemplo, nenhuma delas fazendo barulho.— Filhas. — Recostando-se na cadeira, Silas Veliant, o Rei de Maridrina, sorriu, esperou que

o provador oficial do Rei assentisse, depois tomou um longo gole de vinho. Todas espelharam omovimento, mas Lara mal sentiu o gosto do líquido carmesim quando lhe cruzou a língua.

— Vocês são o meu bem mais precioso — disse ele, acenando com o copo para abrangertodas elas. — Vinte das minhas filhas que foram trazidas para cá, vocês foram as sobreviventes.O que vocês fazem, como prosperaram, é uma conquista, pois o treinamento que receberam teriasido um teste para o melhor dos homens. E vocês não são homens.

Foi apenas esse treinamento que impediu Lara de estreitar os olhos. De mostrar qualqueremoção.

— Todas vocês foram trazidas aqui para que eu pudesse determinar qual de vocês é a melhor.Qual de vocês será minha faca no escuro. Qual de vocês se tornará Rainha de Ithicana. — Seusolhos tinham toda a compaixão de um escorpião do deserto. — Qual de vocês irá partir àsdefesas de Ithicana e, ao fazer isso, permitirá que Maridrina retorne à sua antiga glória.

Lara assentiu uma vez, todas as irmãs fazendo o mesmo. Não houve antecipação. Pelomenos, não pela escolha do pai. Tinha sido feita dias atrás, e Marylyn estava sentada no extremooposto da mesa, com os cabelos dourados trançados como uma coroa na cabeça, o vestido lamêpara combinar. Marylyn tinha sido a escolha óbvia, brilhante, graciosa, bonita como o nascer dosol - e tão sedutora quanto o pôr do sol.

Não, a expectativa era pelo que viria a seguir. A escolha já foi feita sobre quem seriaoferecida ao príncipe herdeiro - Rei, agora - do Reino de Ithicana. O que permaneciadesconhecido era o que seria feito com o resto delas. Elas eram de sangue real, e isso as faziam

valer alguma coisa.Todas as irmãs, incluindo Marylyn, haviam se reunido em uma pilha de travesseiros nas

últimas duas noites, cada uma especulando sobre seu destino. Com quem dos vizires do Rei elaspoderiam se casar. Para quais outros Reinos poderiam ser oferecidas como noivas. Nem ohomem, nem o Reino importavam. O que toda garota se importava era que se libertaria destelugar.

Mas todas aquelas longas noites, Lara havia descansado nos arredores, sem oferecer nada,usando o tempo para assistir suas irmãs. Para amá-las. Para lembrar como ela lutou com cadauma delas tantas vezes quanto as abraçou com força. Os sorrisos delas. Os olhos delas. Do jeitoque, mesmo passada a infância, elas se aninhavam como uma pilha de filhotes recém-afastadosda mãe.

Porque Lara sabia o que as outras não sabiam: que seu pai pretendia que apenas uma irmãdeixasse o complexo. E essa seria a futura Rainha de Ithicana.

Uma salada decorada com queijo e frutas vibrantes foi colocada diante dela, e Lara comeumecanicamente. Você viverá, você viverá, você viverá, entoou para si mesma.

— Durante toda a história, Ithicana dominou o comércio, criando Reinos e quebrando-oscomo se fosse um deus das trevas. — O seu pai se dirigiu a elas, com os olhos brilhando. — Meupai, o pai dele, e o pai antes dele, tentaram quebrar o Reino da Ponte. Com assassinos, comguerra, com bloqueios, com todas as ferramentas à sua disposição. Mas nenhum deles pensou emusar uma mulher.

Ele sorriu maliciosamente. — As mulheres Maridrinianas são delicadas. Elas são fracas. Sãoboas para nada mais do que manter a casa e criar filhos. Exceto vocês doze.

Lara não piscou. Assim como nenhuma de suas irmãs, e ela se perguntou se ele percebia quecada uma delas estava pensando em esfaqueá-lo no coração por causa do insulto de suaspalavras. Ele deveria saber bem que cada uma delas era capaz de fazer isso.

Seu pai continuou: — Quinze anos atrás, o Rei de Ithicana exigiu uma noiva para seu filho eherdeiro como uma oferenda. Como pagamento. — Seus lábios se curvaram em um sorriso deescárnio. — O bastardo está morto há um ano, mas seu filho pediu a dívida. E Maridrina estápronta. — Seus olhos foram para Marylyn, depois para os criados que se moviam para limpar ospratos da salada.

Nas sombras da noite crescente, Lara sentiu o movimento. Sentiu a presença da massa desoldados que seu pai trouxe. Os criados reapareceram com tigelas de sopa fumegantes, o cheirode canela e alho-poró flutuando à frente deles.

— A ganância de Ithicana, sua arrogância, o desprezo por vocês, será a queda deles.Lara permitiu que seus olhos deixassem o rosto de seu pai, contemplando cada uma de suas

irmãs. Com todo o treinamento, todo o conhecimento de seus planos, ele nunca pretendeu quenenhuma delas, exceto a escolhida, vivesse depois do jantar.

As sopas foram colocadas diante deles, e todas as irmãs esperaram que o provador do paidesse o primeiro gole e assentisse. Depois, todas pegaram as colheres e começaram a comerobedientemente.

Lara fez o mesmo.O seu pai acreditava que esplendor e beleza eram os atributos mais importantes da filha que

escolheu. Que seria a garota que tinha mostrado maior perspicácia em combate e estratégia. Agarota que havia mostrado mais talento nas artes do quarto. Ele pensou que sabia quaiscaracterísticas eram mais importantes - mas esqueceu uma.

Sarhina endureceu ao lado dela.

Sinto muito, Lara sussurrou silenciosamente para suas irmãs.Então o corpo de Sarhina começou a ter espasmos.Oro para que todas vocês encontrem a liberdade que merecem.A colher de sopa na mão de Sarhina voou sobre a mesa, mas nenhuma das outras meninas

notou. Nenhuma delas se importava. Porque todas estavam sufocando, a espuma subindo até seuslábios quando esses se contraíram e arquejavam, uma por uma, caindo para frente ou para trás oupara o lado. Então todas elas estavam descansando imóveis.

Lara colocou a colher ao lado da tigela vazia, olhando uma vez para Marylyn, que estava debruços no prato. Levantando-se, contornou a mesa, erguendo a cabeça da irmã da tigela elimpando cuidadosamente a sopa antes de descansar a bochecha de Marylyn contra a mesa.Quando Lara olhou novamente, seu pai estava pálido e de pé, com a espada meiodesembainhada. Os soldados que estavam escondidos nos flancos avançaram, encurralando osservos em pânico. Mas todo mundo, todo mundo, estava olhando para ela.

— Você estava enganado em sua escolha, pai. — Lara ficou parada com confiança enquantose dirigia ao Rei. Olhou para ele, permitindo que a parte sombria, gananciosa e egoísta de suaalma subisse à superfície e o encarasse. — Eu serei a próxima Rainha de Ithicana. E deixarei oReino da Ponte de joelhos.

2

LARA

LARA SABIA O QUE VIRIA A SEGUIR, MAS PARECIA TER ACONTECIDO RAPIDAMENTE. E, NO

entanto, ela tinha certeza de que todos os detalhes seriam gravados em sua mente até o dia emque morresse. Seu pai colocou a espada de volta na bainha, depois estendeu a mão parapressionar os dedos contra a garganta da garota mais próxima, mantendo-os ali por váriosmomentos, enquanto Lara observava indiferente. Então ele acenou uma vez para os soldados queos cercavam.

Os homens que pretendiam despachar Lara e suas irmãs voltaram suas espadas para oscriados, cujas bocas sem língua proferiam gritos sem palavras enquanto tentavam fugir domassacre. Os músicos foram abatidos, assim como os cozinheiros nas cozinhas distantes e ascriadas forrando camas que nunca mais voltariam a ser usadas novamente. Logo, todos os querestaram eram o fiel grupo de soldados do Rei, com as mãos cobertas pelo sangue de suasvítimas.

Com isso, Lara permaneceu imóvel. Apenas o conhecimento de que ela era a única filharestante, que era a última aposta restante - a impediu de abrir um caminho livre da carnificina efugir para o além do deserto.

Erik, o Mestre de Armas, aproximou-se através das palmeiras, uma lâmina brilhando em suamão. Seus olhos foram de Lara para as formas imóveis de suas irmãs, e ele deu um sorriso triste.— Não estou surpreso em encontrar você ainda de pé, pequena barata.

Era o apelido que ele lhe deu quando ela chegou, com cinco anos e quase sem vida, graças auma tempestade de areia que havia acontecido em sua jornada até o complexo. — Gelo e fogopodem devastar o mundo, mas ainda assim a barata sobrevive — ele disse — Assim como você.

Ela poderia até ser uma barata, mas a razão pela qual ainda respirava era graças a ele. Erik aenviou ao pátio de treinamento como punição por uma pequena transgressão duas noites antes, eela ouviu membros da guarda de seu pai planejando a morte dela e de suas irmãs. Uma conversaliderada pelo próprio Erik. Seus olhos ardiam quando ela o olhava - o homem que foi mais umpai do que o monarca de cabelos prateados à direita - mas ela não disse nada, não lhe deu nemum sorriso em troca.

— Está feito? — o pai dela perguntou.Erik assentiu. — Todos foram silenciados, Majestade. Exceto eu. — Então seus olhos se

voltaram para as sombras não tocadas pelos abajures da mesa. — E Magpie.Dessas sombras surgiu seu Mestre da Intriga, e Lara encarou fria e brevemente o homem que

havia orquestrado todos os aspectos da noite.E na voz nasal que ela sempre detestava, Magpie disse: — A garota fez a maior parte do

trabalho sujo para você.— Lara deveria ter sido sua escolha o tempo todo. — A voz de Erik estava sem expressão,

mas a dor encheu seus olhos quando passou pelas meninas caídas antes de voltarem ao rosto deLara.

Lara queria pegar sua faca - como ele ousava lamentar quando não fez nada para salvá-las -mas mil horas de treinamento a ordenaram a não se mexer. O Mestre das Armas fez umareverência ao Rei. — Por Maridrina. — Então passou a faca pela garganta.

Lara cerrou os dentes, o conteúdo de seu estômago subindo, amargo e sujo, cheio do mesmoveneno que ela havia dado a suas irmãs. No entanto, não desviou o olhar, forçando-se a observarErik cair no chão, o sangue pulsando em sua garganta em grandes quantidades até seu coraçãoparar.

Magpie contornou a poça de sangue e entrou completamente na luz. — Tão dramático.Magpie não era seu nome verdadeiro, é claro. Era Serin, e de todos os homens e mulheres

que treinaram as irmãs ao longo dos anos, ele era o único que saia e entrava do complexo àvontade, administrando a rede de espiões e conspirações do Rei.

— Ele era um bom homem. Um súdito leal. — Não havia expressão na voz de seu pai, e Larase perguntou se queria dizer as palavras ou se eram para o benefício dos soldados que assistiam.Até a lealdade mais firme tinha seus limites, e seu pai não era bobo.

Os olhos estreitos de Magpie voltaram-se para ela. — A Lara, como você sabe, Majestade,não foi minha primeira escolha. Ela teve pontuação quase mínima em quase todos ostreinamentos, com a única exceção do combate. Seu temperamento continuamente tira o melhordela. Marylyn — apontou para a irmã — era a escolha óbvia. Brilhante e bonita. Habilmente nocontrole de suas emoções, como ela claramente demonstrou nos últimos dias. — Ele fez umbarulho de nojo.

Tudo o que ele disse sobre Marylyn era verdade, mas não era a soma dela. Espontaneamente,lembranças inundaram a mente de Lara. Visões de sua irmã cuidando de um gatinho, o menor desua ninhada, que agora era o gato mais gordo do complexo. De como ouvia em silêncio qualquerdos problemas de suas irmãs e depois oferecia o mais perfeito conselho. De como, quandocriança, ela deu nomes a todos os criados, porque achava cruel que eles não os tivessem. Entãoas lembranças desapareceram, deixando apenas um corpo imóvel diante dela com cabelosdourados cobertos de sopa.

— Minha irmã era gentil demais. — Lara voltou a cabeça para o pai, com o coraçãodisparado no peito enquanto o desafiava. — A futura Rainha de Ithicana deve seduzir seugovernante. Fazendo-o acreditar que ela é inocente e sincera. Deve fazê-lo confiar nela enquantousa sua posição para aprender todas as suas fraquezas até o momento em que o trairá. Marylynnão era essa mulher.

Os olhos de seu pai não piscaram quando a estudou, e então ele deu um leve aceno deaprovação. — Mas você é?

— Eu sou. — Sua pulsação rugiu em seus ouvidos, sua pele pegajosa, e não por causa docalor.

— Você nem sempre erra, Serin — disse o pai. — Mas nisso acredito que você estavaenganado e o destino interveio para corrigir esse erro.

O Mestre da Intriga ficou rígido e Lara se perguntou se agora estava percebendo que suaprópria vida estava na balança. — Como você disse, Majestade. Parece que Lara possui umaqualidade que não tinha considerado nos meus testes.

— A qualidade mais importante de todas: crueldade. — O Rei a estudou por um momento

antes de voltar para o Magpie. — Apronte a caravana. Cavalgamos para Ithicana hoje à noite. —Então ele sorriu para ela como se fosse a coisa mais preciosa. — Está na hora da minha filhaconhecer seu futuro marido.

3

LARA

CHAMAS LAMBIAM O CÉU NOTURNO QUANDO O GRUPO PARTIU, MAS LARA ARRISCOU APENAS UM

olhar para trás para o complexo em chamas que havia sido sua casa, o chão e as paredesmanchadas de sangue que escureciam enquanto o fogo consumia todas as evidências de quinzeanos de história. Apenas o coração do oásis, onde a mesa de jantar estava rodeada pelaprimavera, permanecia intocado.

Ela quase não podia suportar deixar suas irmãs adormecidas cercadas por um anel de fogo,inconscientes e impotentes até que a mistura de narcóticos que ela deu desaparecesse. Suaspulsações, que haviam sido desaceleradas para uma quase morte por tempo demais, deveriamestar acelerando, suas respirações aparecendo para quem olhasse atentamente. Se Lara dessedesculpas para garantir a segurança de todas, arriscaria ser descoberta, e então tudo isso seriainútil.

— Não as queime. Deixe para que os abutres limpem seus ossos — disse ao pai, com oestômago se retorcendo, até que ele riu e aceitou seu macabro pedido, deixando suas irmãscaídas sobre a mesa, os servos massacrados formando um sangrento contorno em torno delas.

Era para isso que suas irmãs iriam acordar: fogo e morte. Pois somente deste modo, com opai delas acreditando que estavam todas mortas, elas poderiam ter alguma chance no futuro. Elalevaria a missão adiante enquanto suas irmãs faziam suas próprias vidas, agora livres para seremdonas de seus próprios destinos. Lara explicou tudo no bilhete que enfiou no bolso de Sarhinaenquanto o pai ordenava que o complexo fosse varrido pelos sobreviventes. Pois ninguémdeveria ser deixado vivo para que não sussurrassem uma palavra sobre a garota errada, que agorase encaminhava para um casamento em Ithicana.

Sua jornada pelo deserto vermelho seria repleta de dificuldades e perigos. Mas, naquele exatomomento, Lara estava convencida de que a pior parte seria ouvir a conversa de Magpie o tempotodo. A égua de Lara estava carregada com o enxoval de Marylyn, enquanto era forçada acavalgar atrás do Mestre da Intriga.

— A partir deste momento, você deve ser uma perfeita dama Maridriniana — ele instruiu,sua voz abafando os nervos da menina. — Não podemos arriscar que alguém a veja se comportarde outra maneira, nem mesmo aqueles que Sua Majestade acredita que são leais. — O homemlançou, então, um olhar significativo para os guardas de seu pai, que formaram a caravana comfacilidade.

Nem um deles olhou para ela.Os guardas não sabiam o que ela era. O que ela foi treinada para fazer. Qual era o objetivo

dela além do cumprimento de um contrato com o Reino inimigo. Mas todos acreditavam que ela

havia assassinado suas irmãs a sangue frio. O que a fez pensar quanto tempo seu pai os deixariaviver.

— Como você fez isso?Horas em sua jornada, a pergunta da Magpie tirou Lara de seus pensamentos, e ela apertou o

lenço de seda branco ao redor do rosto, apesar do fato dele estar de costas para ela. — Veneno.— Ela permitiu que uma pitada de acidez penetrasse em sua voz.

Ele bufou. — Não somos ambiciosos agora que acreditamos que somos intocáveis?Ela passou a língua pelos lábios secos, sentindo o calor do sol surgir atrás deles. Então, ela se

permitiu mergulhar na piscina de calma que seu Mestre de Meditação havia lhe ensinado a usarquando fazia estratégias, entre outras coisas. — Eu envenenei as colheres de sopa.

— Como? Você não sabia onde estaria sentada.— Eu envenenei tudo, com exceção das que estavam na cabeceira da mesa.O Magpie ficou em silêncio.Lara continuou: — Tomei pequenas doses de vários venenos por anos para aumentar minha

tolerância. — Mesmo assim, ela se purificou no momento em que teve a chance, vomitandovárias vezes até seu estômago ficar vazio, depois tomando o antídoto, o mal-estar atordoante erao único sinal persistente de que havia ingerido um narcótico.

O pequeno corpo do Mestre da Intriga ficou tenso. — E se os lugares na mesa tivessem sidoalterados? Você poderia ter matado o Rei.

— Ela claramente acreditava que valia o risco.Lara inclinou a cabeça ao notar o toque dos sinos no freio do cavalo enquanto o pai passava,

o animal enfeitado com prata em vez de latão que as montarias dos guardas usavam.— Você adivinhou que eu pretendia matar as meninas das quais não precisava — disse ele.

— Mas, em vez de avisar suas irmãs ou tentar escapar, você as matou para tomar o lugar daescolhida. Por quê?

Porque, para as meninas, lutar para sair desse ambiente significaria uma vida em fuga. Fingira morte delas era o único caminho. — Posso ter passado minha vida isolada, pai, mas os tutoresque você selecionou me educaram bem. Conheço as dificuldades que nosso povo enfrenta sob acoleira de Ithicana no comércio. Nosso inimigo precisa ser derrotado e, de minhas irmãs, eu era aúnica capaz de fazer isso.

— Você matou suas irmãs pelo bem do nosso país? — Sua voz estava cheia de diversão.Lara forçou uma risada seca para fora de seus lábios. — Dificilmente. Eu as matei porque

queria viver.— Você jogou com a vida do Rei para salvar sua própria pele? — Serin virou-se para olhá-la,

sua expressão aterrorizada. Ele a treinou, o que significava que era do direito do Rei culpá-lo portudo o que ela havia feito. E seu pai era conhecido por ser impiedoso.

Mas o Rei de Maridrina apenas riu com alegria. — Jogou e venceu. — Estendendo a mão, eleafastou o lenço de Lara para cobrir sua bochecha com a palma. — O Rei Aren não verá vocêchegando até que seja tarde demais. Uma viúva negra em sua cama.

Rei Aren de Ithicana. Aren, seu futuro marido.Lara ouviu apenas vagamente o pai ordenar aos guardas que fizessem acampamento, o grupo

pretendia dormir durante o calor do dia.Um dos guardas a levantou das costas do camelo de Serin e ela se sentou em um cobertor

enquanto os homens montavam o acampamento, usando, então, esse tempo para pensar no queestava por vir.

Lara conhecia tanto quanto - provavelmente até mais - que a maioria dos Maridrinianos sobre

Ithicana. Era um Reino tão envolto em mistério quanto em neblina: uma série de ilhas que seestendiam entre dois continentes, as massas de terra protegidas por mares violentos tornando-asainda mais traiçoeiras pelas defesas que os Ithicanos haviam colocado nas águas para afastar osinfiltrados. Mas não foi isso que tornou Ithicana tão poderosa. Era a ponte que se estendia acimae entre essas ilhas - a única maneira segura de viajar entre os continentes durante dez meses porano. E Ithicana usou esse patrimônio para manter famintos os Reinos que dependiam docomércio. Desesperados. E, acima de tudo, dispostos a pagar qualquer preço que o Reino daPonte exigisse por seus serviços.

Vendo sua barraca erguida, Lara esperou até que os homens colocassem suas malas dentroantes de deslizar para a mais bem-vinda sombra, reprimindo o desejo de agradecê-los quando elapassou.

Ela ficou sozinha por pouco tempo para tirar o lenço antes de seu pai entrar, com Serin noscalcanhares. — Agora, vou ter que começar a treinar você sobre os códigos — disse o Mestre daIntriga, esperando até o Rei sentar-se antes de se instalar na frente de Lara. — Marylyn criouesse código, e ouso dizer que ensinar a você em tão pouco tempo será um desafio.

— Marylyn está morta — respondeu a princesa, pegando um pouco da água morna do cantilantes de fechá-lo cuidadosamente.

— Não me lembre — ele retrucou.O sorriso dela estava cheio de uma confiança que não sentia. — Aceite o fato de que eu sou

tudo o que resta das meninas que você treinou, e então não vou precisar refrescar sua memória.— Comece — ordenou o seu pai, e então ele fechou os olhos, sua presença na tenda da filha

por decoro de luto, apenas.Serin começou suas instruções sobre o código. Ela precisava depender inteiramente da

memória, pois não podia levar anotações para Ithicana. Era um código que nunca poderia usar,sua utilidade era inteiramente baseada no Rei de Ithicana, que gentilmente a permitiria secorresponder com sua família. E a bondade, disseram-lhe, não era um atributo pelo qual ohomem era conhecido.

— Como você sabe, os Ithicanos são exemplos de decifradores de códigos e qualquer coisaque você conseguir enviar estará sujeita a uma análise minuciosa. Há chances de que elesdesvendem este código.

Lara levantou a mão, contando em seus dedos enquanto pontuava. — Eu devo esperar estarcompletamente isolada, tanto dos Ithicanos quanto do mundo exterior. Eu posso ou não terpermissão para me corresponder, e mesmo que eu possa, há chances de que nosso código sejadescoberto. Não há como você me contatar para uma resposta. Não há nenhuma forma de enviaralgo através do povo deles, porque você ainda precisa ter a lealdade de alguém. — Ela fechou amão em um punho. — Além de esgueirar-me, o que significa o fim da minha capacidade deespionar, como você espera que lhe transmita as informações?

— Se essa fosse uma tarefa fácil, já a teríamos realizado. — Serin tirou um pedaço pesado depergaminho de sua mochila. — Há apenas um Ithicano que se corresponde com o mundoexterior, e esse é o próprio Rei Aren.

Tomando o pergaminho, que estava gravado com o brasão de Ithicana: a ponte curva, asbordas enfeitadas de dourado, ela examinou o documento, que solicitava a entrega de umaprincesa de Meridrina para ser sua noiva de acordo com os termos do Tratado dos Quinze Anos,assim como solicitava um convite para negociar novos termos comerciais entre os Reinos. —Você quer que eu esconda uma mensagem com isso?

Ele assentiu, entregando-lhe um frasco de líquido transparente. Tinta invisível. — Vamos

tentar atrair mensagens dele para lhe dar a oportunidade, mas não é propenso a se corresponderfrequentemente. Por esse motivo, devemos voltar a estudar o código de sua irmã.

A lição foi um trabalho tedioso e Lara estava exausta. Levou todo o seu autocontrole paranão suspirar de alívio quando Serin finalmente partiu para sua própria tenda.

O pai dela se levantou, bocejando.— Posso fazer uma pergunta, Vossa Majestade? — ela perguntou antes que ele pudesse

partir.Ao seu aceno, ela lambeu os lábios. — Você o viu? O novo Rei de Ithicana?— Ninguém o viu. Eles sempre usam máscaras quando se encontram com pessoas de fora. —

Então o pai balançou a cabeça. — Mas eu o conheci uma vez. Anos atrás, quando era criança.Lara esperou, as palmas das mãos ensopando a seda por baixo das saias.— Há rumores de que ele é ainda mais cruel do que seu pai. Um homem severo, que não

mostra piedade a forasteiros. — O olhar do pai encontrou o dela e a piedade incomum em seusolhos fez as mãos dela virarem gelo. — Eu sinto que ele irá tratá-la cruelmente, Lara.

— Fui treinada para suportar a dor. — Dor, fome e solidão. Tudo o que ela poderia enfrentarem Ithicana. Ensinando-a a suportar e permanecer fiel à sua missão.

— Pode não vir na forma de dor, como você a entende. — O pai pegou a mão dela e a viroupara revelar a palma, estudando-a. — Seja cuidadosa com a bondade deles, Lara. Acima de tudo,os Ithicanos são astutos. E o Rei deles não desistirá de nada sem exigir o que lhe é devido.

O coração dela disparou.— O coração do nosso Reino está preso entre o deserto vermelho e os Mares de Tempestade,

com a ponte de Ithicana sendo a única rota segura para lá — continuou ele. — Nem o deserto,nem o mar se dobram a nenhum mestre, e Ithicana... Eles veriam nosso povo empobrecido,faminto e destruído antes mesmo de permitir que o comércio fluísse livremente. — Ele largou amão dela. — Por gerações, tentamos de tudo para fazê-los ver a razão. Fazê-los ver o mal quesua ganância causa ao povo inocente de nossas terras. Mas os Ithicanos não são homens, Lara.Eles são demônios escondidos em formas humanas. O que temo que você descobrirá em breve.

Observando o pai sair da tenda, Lara flexionou as mãos, querendo envolvê-las em armas.Para atacar. Para mutilar. Para Matar.

Não por causa de suas palavras.Por mais severo que fosse o aviso do pai, era um que ela já ouviu inúmeras vezes antes. Não,

foi a queda dos ombros dele. A resignação em seu tom. A desesperança que apareceubrevemente em seus olhos. Todos os sinais de que, apesar de tudo que seu pai havia colocadonessa jogada, ele não acreditava realmente que ela teria sucesso em sua missão. Por mais queLara detestasse ser subestimada, ela odiava aqueles que tinham pena caso se machucasse. E comsuas irmãs agora livres de seus grilhões, nada mais importava para ela do que Maridrina.

Ithicana pagaria pelos crimes contra seu povo e, quando terminasse com o Rei, ele faria maisdo que se curvar.

Ele iria sangrar.

Nas quatro outras noites de viagem ao norte o grupo viu dunas de areia vermelha dando lugar acolinas cobertas de mato seco e árvores grossas, depois montanhas escarpadas que pareciamtocar o céu. Eles seguiram ravinas estreitas e, lentamente, o clima começou a mudar, a infinitasujeira marrom intercalada com manchas verdes e o ocasional desabrochar de flores. O leito seco

do riacho que eles seguiram começou a ficar enlameado e, várias horas depois, a caravana estavacavalgando entre águas vagarosas, porém, além disso, a terra estava seca como osso. Dura eaparentemente inabitável.

Homens, mulheres e crianças pararam de trabalhar em seus campos para proteger os olhos ever o grupo passar. Eles eram todos magros, vestindo roupas simples surradas e chapéus de palhade abas largas que os protegiam do sol incessante. Eles sobreviviam das colheitas esparsas e dogado magro que criavam; não havia outra escolha para eles. Embora, nas gerações anteriores, asfamílias pudessem ganhar o suficiente em seus negócios para comprar, através da ponte, carne egrãos importados de Harendell, os crescentes impostos e pedágios de Ithicana mudaram isso.Agora, apenas os ricos podiam pagar os bens e a classe trabalhadora de Maridrina foi forçada aabandonar seus negócios por esses campos secos para alimentar seus filhos.

Mal os sustenta, pensou Lara, com o peito apertado enquanto as crianças corriam para ver acaravana passar, as costelas visivelmente salientes sob as roupas esfarrapadas.

— Deus abençoe Vossa Majestade — eles gritaram. — Deus abençoe a Princesa! — Asmeninas corriam ao lado do camelo de Serin, estendendo a mão para as tranças de floressilvestres que Lara colocou sobre os ombros e depois sobre a sela quando cresceram demais.

Serin deu a ela um saco de moedas de prata para dispersar e foi uma luta manter os dedosfirmes enquanto os pressionava em mãos minúsculas. Eles aprenderam o nome dela rápido, e,quando o riacho lamacento se transformou em cachoeiras de cristal correndo pelas encostas emdireção ao mar, eles gritaram: — Abençoe a princesa Lara! Vigie nossa linda princesa! — Masfoi um canto crescente de “Abençoe Lara, a Mártir de Maridrina” que gelou suas mãos. Isso amanteve acordada muito tempo depois que Serin terminou suas aulas todas as noites, depoisencheu sua cabeça de pesadelos quando o sono a levava. Sonhos os quais estava presa pordemônios provocadores, os quais todas as suas habilidades haviam falhado, os quais, nãoimportando o que ela fizesse, não poderia se libertar. Sonhos os quais Maridrina queimava.

E todos os dias, eles viajavam para mais perto.Quando a terra ficou exuberante e úmida, juntou-se à caravana um contingente maior de

soldados, e Lara foi transferida do camelo para uma carruagem azul puxada por uma equipe decavalos brancos, com os adornos decorados com as mesmas moedas de prata do cavalo de seupai. E, com os soldados, veio toda uma comitiva de servos atendendo a todas as necessidades deLara, lavando-a, esfregando-a e polindo-a enquanto viajavam para a capital de Maridrina,Vencia.

Os seus sussurros entravam pelas paredes de sua barraca: que seu pai havia mantido a futuranoiva de Ithicana escondida no deserto todos esses longos anos para sua própria segurança. Queela era uma filha preciosa, nascida de uma esposa favorecida, escolhida a dedo por ele para uniros dois Reinos em paz, seu charme e graça servidos a Ithicana por Maridrina concediam todos osbenefícios que um aliado deveria ter, o que permitiria ao Reino prosperar mais uma vez.

A própria ideia de que Ithicana cederia tanto era ridícula, mas Lara achou graça pelaingenuidade. Não quando captou a esperança desesperada em seus olhos. Em vez disso, elacuidadosamente alimentou sua fúria, escondendo-a sob sorrisos gentis e graciosas aberturas dajanela da carruagem. Era uma força que ela precisava, já que ouviu os outros sussurros também.— Tenham pena da pobre e gentil princesa — disseram os servos com tristeza nos olhos. — Oque será dela entre aqueles demônios? Como ela sobreviverá à brutalidade deles?

— Você está com medo? — Seu pai fechou as cortinas da carruagem quando seaproximaram dos arredores de Vencia, para grande desgosto de Lara. Era a cidade de seunascimento e não a via desde que foi tirada dos limites do harém e levada ao complexo para

começar seu treinamento aos cinco anos de idade.Ela se virou para ele. — Eu seria uma tola se não tivesse medo. Se descobrirem que sou uma

espiã, eles vão me matar e depois cancelar as concessões comerciais por rancor.Seu pai fez um barulho concordando, depois puxou duas facas incrustadas com rubis

Maridrinianos debaixo do casaco, entregando-as a ela. Lara as reconheceu como as armascerimoniais que as mulheres Maridrinianas usavam para indicar que estavam casadas. Elasdeveriam ser usadas por um marido em defesa da honra de sua esposa, mas geralmente erammantidas paradas. De decoração. Sem utilidade.

— Elas são adoráveis. Obrigada.Ele riu. — Olhe mais de perto.Puxando de suas bainhas, Lara testou as bordas e as achou afiadas, mas o balanço estava

errado. Então o pai estendeu a mão e apertou uma das jóias, e o cabo de ouro caiu para revelaruma faca de arremesso.

Lara sorriu.— Se eles não permitirem que você se comunique com o mundo exterior, precisará esperar

um pouco enquanto aprende os segredos deles, depois fugir. Talvez até consiga se libertar evoltar para nós com o que aprendeu.

Ela assentiu, sacudindo as lâminas para frente e para trás para sentir. Não havia chance devoltar e voluntariamente entregar sua estratégia de invasão. Fazer isso seria suicídio.

Depois de aprender a intenção de seu pai de matar ela e a suas irmãs no jantar, Lara tevetempo de considerar por que seu pai queria que as filhas não estivessem destinadas a morrercomo Rainhas. Era mais do que o desejo de manter sua trama em segredo até que conseguissetomar a ponte. O pai dela queria que essa trama fosse mantida em segredo para sempre, pois, sealguém descobrisse sobre sua capacidade de usar as outras filhas vivas como ferramentas denegociação, tudo seria negado. Ninguém jamais confiaria nele. Assim como ele nunca confiarianela. O que significava que, se Lara voltasse com sucesso ou não, também seria silenciada.

O pai dela interrompeu seus pensamentos. — Eu estava lá quando as meninas mataram pelaprimeira vez — disse ele. — Você sabia?

As lâminas pararam em suas mãos quando Lara lembrou. Ela e as irmãs tinham dezesseisanos quando a fila de homens acorrentados foi levada ao complexo sob o olhar atento de Serin.Eles eram assaltantes de Valcotta que haviam sido capturados e trazidos para testar o valor dasprincesas guerreiras de Maridrina. Matar ou ser morta, Mestre Erik havia dito a elas quandoforam empurradas uma a uma para o pátio de combate. Algumas de suas irmãs hesitaram ecaíram sob os golpes desesperados dos invasores. Lara não. Ela nunca esqueceria o som de carnesendo cortada que sua lâmina fazia quando afundava na garganta do oponente. A maneira comoele a encarou com espanto antes de cair lentamente na areia, sua força vital se acumulando ao seuredor.

— Eu não sabia — disse ela.— Facas, se bem me lembro, são sua especialidade.Matar era sua especialidade.A carruagem roncava pelas ruas de paralelepípedos, os cascos dos cavalos fazendo pequenos

sons agudos contra a pedra. Do lado de fora, Lara ouviu aplausos ininterruptos e, abrindo acortina, tentou sorrir para os homens e mulheres imundos que ladeavam as ruas, com os rostospálidos de fome e doença. Pior estavam as crianças entre eles, olhos sem brilho e sem esperança,moscas zumbindo perto de seus olhos e bocas.

— Por que você não faz algo por eles? — ela exigiu do pai, cujo rosto estava inexpressivo

quando olhou pela janela.Ele virou os olhos azuis para ela. — Por que mais você acha que eu te criei? — Então ele

enfiou a mão no bolso e deu a ela um punhado de prata para atirar da janela, o que ela fez. Elafechou os olhos enquanto seu povo empobrecido lutava pelo metal reluzente. Ela os salvaria.Arrancaria a ponte do controle de Ithicana e nenhum Maridriniano passaria fome novamente.

Os cavalos diminuíram a velocidade, descendo as íngremes e sinuosas ruas do porto abaixo.Onde o navio esperava para levá-la a Ithicana.

Ela puxou a cortina para olhar pela primeira vez o mar, o cheiro de peixe e salmoura no ar.Havia ondas brancas na água, a subida e queda das ondas roubando sua atenção quando o paiarrancou as facas de suas mãos para devolvê-las na hora certa.

A carruagem atravessou um mercado que parecia quase desprovido de vida, as barracasvazias. — Onde está todo mundo? — ela perguntou.

O rosto do pai dela estava sombrio e ilegível. — Esperando você abrir os portões paraIthicana.

A carruagem entrou no porto e parou. Não houve cerimônia quando o pai a ajudou a descer.O navio que os esperava ostentava uma bandeira azul e prata. As cores de Maridrina.

Ele a conduziu rapidamente pelo cais e subiu na prancha do navio. — A travessia paraSouthwatch leva menos de uma hora. Há criados esperando para arrumá-la abaixo.

Lara lançou um olhar para trás para Vencia, para o sol brilhando quente e luminoso acimadela, depois voltou a vista para as nuvens, a névoa e a escuridão que se estendiam pela estreitavia diante dela. Um Reino para salvar. Um Reino para destruir.

4

LARA

LARA ESTAVA NO CONVÉS DO NAVIO, QUE BALANÇAVA E EMPINAVA COMO UM CAVALO SELVAGEM,cravando as unhas no parapeito, lutando para impedir que o conteúdo do estômago caísse nomar. Para piorar a situação, criada no deserto, ela nunca aprendeu a nadar - uma fraqueza que jácomeçava a assombrá-la. Toda vez que o navio saltava no vento forte, sua respiração ficava presacom a certeza de que eles virariam e se afogariam. As únicas coisas que a distraíam das visões deondas se fechando sobre sua cabeça eram os perigos que certamente a encaravam.

À noite, estaria casada. Ela estaria sozinha em um Reino estrangeiro que tinha a reputação dopior tipo de crueldade. Seria a esposa de um jovem que era o senhor de tudo. Essa era a vida daqual ela estava protegendo suas irmãs, sacrificando a sua própria, e, tudo isso, pelo bem de seupovo. Mas agora as consequências dessa escolha estavam terrivelmente pertos. Nuvens pairavambaixas sobre o mar de ondas brancas, movendo-se inconstantemente como bestas, mas, atravésdeles, ainda que levemente, ela conseguia distinguir a sombra de uma ilha. Ithicana.

Seu pai se juntou a ela no parapeito. — Southwatch.As roupas dele manchadas de viagem foram substituídas por uma camisa branca impecável e

um casaco preto, sua espada polida pendurada em um cinto decorado com discos de prata eturquesa. — Aren mantém uma tropa completa de soldados lá o tempo todo e eles têm catapultase outras máquinas de guerra apontadas para o oceano, prontas para afundar qualquer um quetente tomar a ilha. Existem pontas de ferro no fundo do mar para rasgar qualquer navio queconsiga se aproximar de qualquer outro ponto que não seja o píer, o qual é equipado comexplosivos, caso achem que foi comprometido. A ponte não pode ser tomada pela frente. — Suamandíbula se flexionou. — Foi tentado muitas outras vezes.

Inúmeros navios e milhares de homens perdidos a cada tentativa. Lara conhecia a história daguerra que terminou quinze anos atrás com Ithicana triunfante, mas os detalhes surgiram ecaíram em sua mente como as ondas nas quais o navio passava. Seus joelhos estavam trêmulos,todo seu corpo estava fraco de enjoo.

— Você é a esperança do nosso povo, Lara. Nós precisamos daquela ponte.Ela temia que se abrisse a boca, derramaria o que restasse no estômago ao mar, então apenas

assentiu uma vez. A ilha estava à vista agora, dois picos de pedra enfeitados com uma vegetaçãoexuberante apareciam subindo do mar. Na base deles, havia um píer solitário coberto de armas,um aglomerado de edifícios de pedra sem adornos e, além, uma única estrada que levava aoinício da ponte.

A manga do pai roçou seu pulso. — Nem por um segundo acredite que eu confio em você —ele murmurou, roubando a atenção dela. — Vi o que você fez com suas irmãs e, embora possa

afirmar ter Maridrina em primeiro lugar em seu coração, sei que foi motivada pelo desejo desalvar sua própria pele.

Se salvar a própria vida tivesse sido com o que ela se importava, teria falsificado a própriamorte. Mas Lara não disse nada.

— Enquanto sua crueldade a torna perfeita para esse papel, sua falta de honra me fazquestionar se você colocará a vida de nosso povo acima da sua. — Agarrando seus braços, ele agirou em sua direção, nada em seu rosto revelando que aquilo era algo além de uma conversaentre um pai amoroso e sua filha. — Se você me trair, irei te caçar. E o que irei fazer com você,fará com que você desejasse ter morrido ao lado de suas irmãs.

O som de tambores de aço dançava através do mar e pelos seus ouvidos, destacados pelo somdistante de trovão.

— E se eu tiver sucesso como Rainha? — Sua boca estava com um gosto azedo, e ela virou acabeça, observando as centenas de pessoas na ilha esperando pelo navio. Esperando por ela.

— Você será a salvadora de Maridrina. Você será recompensada com mais do que possaimaginar.

— Eu quero minha liberdade. — Sua língua parecia estranhamente grossa enquanto falava.— Quero ser deixada sozinha, para minha própria sorte. Livre para ir aonde eu escolher, parafazer o que eu quiser.

Uma sobrancelha prateada se levantou. — Como você e Marylyn são diferentes.— Éramos.Ele inclinou a cabeça. — Ainda assim.— Temos um acordo então? A ponte em troca da minha liberdade?Seu aceno de cabeça foi marcado pelo som alto de um trovão. Era mentira, e ela sabia disso.

Mas poderia viver com as mentiras dele porque seus objetivos eram alinhados.— Içar velas — berrou o capitão do navio, e Lara agarrou o parapeito enquanto o barco

perdia velocidade, os marinheiros correndo para se prepararem para o desembarque. Os tamborescontinuaram sua batida, o ritmo cada vez mais rápido, assim como o coração de Lara, enquanto onavio flutuava contra o píer vazio, os marinheiros pulavam para fora do navio para amarrar.

A passarela de desembarque foi abaixada e seu pai a pegou pelo braço, levando-a em direçãoa ela. As batidas se intensificaram.

— Você tem um ano. — Ele pisou na pedra sólida do píer. — Não vacile. Não falhe.Lara hesitou, tonta, e, pela primeira vez desde a noite em que libertou as irmãs do destino

sombrio, estava morrendo de medo. Então ela deu o primeiro passo no mundo que agora era seunovo lar.

O tambor soou com uma batida trovejante, depois parou. Segurando firme o braço do pai,Lara subiu o píer, engolindo um suspiro enquanto observava os Ithicanos mascarados pelaprimeira vez.

Seus capacetes de aço eram esculpidos como feras furiosas, com bocas cheias de dentesrosnando e testas com chifres curvos. Ela não podia ver nada dos homens abaixo, exceto osolhos, que pareciam brilhar com malícia enquanto a observavam passar, mãos em espadas elanças. Ninguém falou; os únicos sons eram do zumbido do vento entre as duas torres de pedra eo chamado da tempestade que ainda viria.

Desviando os olhos dos soldados, o olhar de Lara desceu até a estrada asfaltada, subindo atéa boca escancarada da ponte de Ithicana. Estava fechada como um túnel, talvez uns quatrometros de largura e tão alta quanto, feita de pedra cinza que ficou verde devido a exposição ao arúmido. Uma grande ponte levadiça foi içada, toda a base da ponte emoldurada por uma guarita.

Uma figura saiu da abertura escura, os espinhos de aço da ponte levadiça pendiam acima delecomo presas, e Lara sentiu seu estômago revirar.

O Rei de Ithicana.Vestido com calças, botas pesadas e uma túnica cinza-esverdeada, ele era alto e tinha ombros

largos. Anos de treinamento lhe diziam que ele era tão soldado quanto qualquer um que estavana estrada. Mas esses detalhes foram perdidos, seu coração palpitando, enquanto ela analisava ocapacete que escondia o rosto do Rei. Tinha um focinho como o de um leão, aberto para revelarcaninos brilhantes e chifres como os de touro brotando em suas têmporas.

Não era um homem, mas sim um demônio.A tontura persistente da viagem passou sobre ela em ondas e, com isso, veio o medo que a

possuía como um espírito furioso. O salto de sua sandália deslizou sobre a pedra e Lara tropeçoucontra seu pai, sentindo o chão se mover como o balançar do barco.

Isso era um erro. Um horrível, terrível erro.Quando apenas alguns passos estavam entre eles, o pai parou e virou-se para ela. Na mão

livre dele havia um cinto de joias, com as camufladas facas de arremesso presas uma de cadalado. Enrolou-a na cintura de seu vestido encharcado, apertando a fivela. Então ele beijou as suasduas bochechas antes de voltar para o Rei de Ithicana. — Como está no acordo, estou aqui paraoferecer minha filha mais preciosa, Lara, como um símbolo do compromisso de Maridrina comsua aliança contínua com Ithicana. Que haja paz entre nossos Reinos.

O Rei de Ithicana assentiu uma vez e seu pai a empurrou levemente entre seus ombros. Compequenos passos, ela caminhou em direção ao Rei e, enquanto isso, um raio apareceu no ar, olampejo fazendo o semblante do capacete se mover, não como se fosse de metal, mas de carne.

O tambor recomeçou, uma batida firme e dura: Ithicana viva. O Rei estendeu a mão e,embora todos os instintos lhe dissessem que se virasse e fugisse, Lara a pegou.

Por razões que não conseguia entender, esperava que estivesse fria como metal e igualmentefirme - mas estava quente. Dedos longos se curvaram em torno dos dela, as unhas cortadas. Apalma da mão estava calejada, a pele, como a dela, coberta com pequenas cicatrizes brancas. Oscortes e machucados que não podiam ser evitados quando o combate era o modo de vida dealguém. Ela olhou para aquela mão. Ofereceu algum conforto estranho; o que estava diante delanão passava de um homem.

E homens podem ser derrotados.Uma sacerdotisa se aproximou à sua esquerda e amarrou uma fita azul em volta das mãos

deles, amarrando-as antes de confirmar os votos do casamento Maridriniano, para que todospudessem ouvir mesmo com o som da tempestade chegando. Votos de obediência da parte dela.Votos de criar centenas de filhos com ele. Lara podia jurar que ouviu um leve bufar de diversãopor trás do capacete do Rei.

Mas quando a sacerdotisa levantou as mãos para proclamá-los marido e mulher, ele faloupela primeira vez. — Ainda não.

Acenando para a sacerdotisa assustada se afastar, ele soltou a fita que deveria ser trançadanos cabelos de Lara durante o primeiro ano de casamento. A seda voou em direção ao mar. Umdos soldados dele de capacete saiu da fileira, correndo para ficar diante deles.

E então ele gritou: — Você, Aren Kertell, Rei de Ithicana, jura lutar ao lado desta mulher,defendê-la até o último suspiro, valorizar seu corpo e nenhum outro, e ser leal a ela enquantoambos viverem?

— Eu juro. — As palavras do Rei foram destacadas pelo bater de cem espadas e lançascontra escudos, e Lara estremeceu.

Mas o choque do barulho não foi nada comparado ao que sentiu quando o soldado se viroupara ela e disse: — Você, Lara Veliant, Princesa de Maridrina, jura lutar ao lado deste homem,defendê-lo até o seu último suspiro, valorizar seu corpo e nenhum outro, e ser leal a ele enquantovocês ambos viverem?

Ela piscou. E porque não havia mais nada a dizer, sussurrou: — Eu juro.Assentindo, o soldado sacou uma faca. — Agora, não seja um bebê, majestade — ele

murmurou, e o Rei respondeu com uma risada tensa antes de estender a mão.O soldado atravessou palma da mão do Rei com a faca e, antes que Lara pudesse se afastar,

ele agarrou o braço dela e passou a faca pela mão dela. Ela viu o sangue escorrer antes de sentir apicada. O soldado apertou as palmas de suas mãos juntas, o sangue quente do Rei de Ithicana semisturando com o dela antes de escorrer pelos dedos entrelaçados.

O soldado ergueu as mãos deles, quase levantando Lara junto. — Eis o Rei e a Rainha deIthicana.

Como que para ressaltar suas palavras, a tempestade finalmente caiu sobre eles com umretumbante trovão que fez o chão estremecer. Os tambores aumentaram seu ritmo frenético, e oRei de Ithicana retirou as mãos do punho do soldado, abaixando o braço para que Lara nãoestivesse na ponta dos pés. — Eu sugiro que você embarque logo no seu navio, Vossa Excelência— disse ele ao pai de Lara. — Antes que essa tempestade persiga-o até sua casa.

— Você sempre pode oferecer sua hospitalidade — respondeu o pai dela, e a atenção de Larapassou dele para Serin, que estava com o resto dos Maridrinianos mais a frente. — Nós somos,afinal, uma família agora.

O Rei de Ithicana riu. — Um passo de cada vez, Silas. Um passo de cada vez. — Ele se viroue gentilmente puxou Lara para as profundezas da ponte, a ponte levadiça descendo atrás deles.Ela teve apenas a oportunidade de dar uma breve olhada por cima do ombro para o pai, suaexpressão vazia e ilegível. Mais além, Serin encontrou seu olhar, inclinando a cabeça uma vezem um lento aceno de cabeça antes que ela sumisse de vista.

Estava escuro lá dentro, cheirando levemente a esterco e suor de animais. Nenhum dosIthicanos tirou o capacete, mas, mesmo com os rostos escondidos, Lara sentiu seus olhares.

— Bem vinda a Ithicana — disse o Rei - seu marido. — Sinto muito ter que fazer isso.Lara o viu levantar a mão segurando um frasco. Ela poderia ter se esquivado. Poderia tê-lo

derrubado com um único golpe, lutando para se libertar dos soldados. Mas ela não podia deixarque soubessem disso. Em vez disso, lançou-lhe um olhar chocado quando ele segurou o frascocontra o seu nariz, o mundo girando em torno dela, a escuridão tomando conta dela. Seus joelhosdobraram e ela sentiu braços fortes pegando-a antes de cair no chão. A última coisa que ouviuantes de desaparecer da consciência foi a voz resignada do Rei: — No que me meti com você?

5

AREN

AREN, TRIGÉSIMO SÉTIMO GOVERNANTE DE ITHICANA, ESTAVA DEITADO DE COSTAS, OLHANDO

para as manchas de fuligem no telhado do acampamento. Seu capacete repousava ao lado de suamão esquerda e, quando ele virou a cabeça para encarar a monstruosa coisa de aço que haviaherdado junto com seu título, decidiu que o ancestral que teve a ideia dos capacetes era tanto umgênio quanto um sádico. Gênio, porque isso dava medo aos inimigos de Ithicana. Sádico, porqueusá-los era como enfiar a cabeça em uma panela que cheirava a meias suadas.

O rosto de sua irmã gêmea apareceu na sua vista, com uma expressão divertida. — Nana aexaminou. Disse que ela está em boa forma, aparentemente saudável e, tirando a tragédia, viveráprovavelmente muitos anos.

Aren piscou uma vez.— Decepcionado? — Ahnna perguntou.Rolando sobre um cotovelo, Aren sentou-se ereto no banco. — Ao contrário das opiniões de

nossos Reinos vizinhos, não sou tão depravado que desejo a morte de uma garota inocente.— Você tem certeza de que ela é inocente?— Você acha que não é?Ahnna franziu o rosto, depois balançou a cabeça. — Na verdadeira moda Maridriniana, eles

lhe deram uma violeta bonita e recatada. É bom de olhar e nada mais.Lembrando como a jovem tremia ao subir o píer, segurando firmemente o braço do pai, seus

enormes olhos azuis cheios de terror, Aren estava inclinado a concordar com a avaliação de suairmã. Mesmo assim, pretendia manter Lara isolada até que pudesse entender sua verdadeiranatureza. E entender exatamente onde está a sua lealdade.

— Nossos espiões aprenderam mais alguma coisa sobre ela?Ahnna balançou a cabeça. — Nada. O Rei parece tê-la escondido no deserto e, até que ela

saiu das areias vermelhas, nem os Maridrinianos sabiam o nome dela.— Por que todo o segredo?— Dizem que foi para a proteção dela. Nem todo mundo está satisfeito com a nossa aliança

com Maridrina, Valcotta, acima de tudo.Aren franziu a testa, insatisfeito com a resposta, apesar de não saber dizer o porquê.

Maridrina e Valcotta estavam continuamente em guerra pelo trecho fértil de terra que descia acosta oeste do continente sul, a fronteira desejada pelos dois Reinos. Era possível que aimperatriz valcottana tivesse tentado romper a aliança assassinando a princesa mas ele achouimprovável. Primeiro que Silas Veliant tinha mais filhas do que ele sabia o que fazer, e o tratadonão era específico sobre qual garota seria enviada. Segundo que todos os Reinos do norte e do

sul sabiam que o casamento de Aren com uma princesa Maridriniana não passava de um atosimbólico; todas as partes envolvidas estavam mais interessadas nos termos comerciaissubjacentes ao acordo e à paz que eles compraram. O tratado existiria mesmo sem a princesa.

Mas terceiro, e o que mais o incomodava, que não era da natureza Maridriniana se esconderde ninguém. Pelo contrário, Silas teria gostado do assassinato de uma ou duas filhas, porquefortaleceria o apoio de seu povo à guerra contra Valcotta.

— Ela já acordou?— Não. Desci assim que Nana a considerou uma esposa saudável e em forma para você,

porque eu queria ser a pessoa a contar as notícias maravilhosas.A voz da sua gêmea transbordava sarcasmo, então Aren lançou-lhe um olhar de aviso. —

Lara é sua Rainha agora. Talvez devesse mostrar um pouco de respeito.Ahnna respondeu mostrando seu dedo do meio. — O que você vai fazer com a Rainha Lara?— Com aqueles peitos, eu sugiro que a leve para a cama — uma voz grave interrompeu.Aren virou-se para encarar Jor, o capitão de sua guarda de honra, que estava sentado do outro

lado da fogueira. — Obrigado pela sugestão.— O que eles estavam pensando, vestindo-a de seda na chuva? Poderiam muito bem tê-la

feito desfilar nua na frente de todos.Aren tinha, de fato, notado. Mesmo ensopada pela chuva, ela tinha sido deslumbrante, sua

forma curvilínea, seu rosto requintado emoldurado por cabelos da cor de mel. Não que eleesperasse mais alguma coisa. Apesar de ter passado do auge, o Rei de Maridrina permaneceu umhomem vital, e sabia que ele escolheu a maioria de suas esposas por beleza e nada mais.

O pensamento do outro Rei deixou o estômago de Aren azedo. Ele lembrou a expressãopresunçosa no rosto de Silas enquanto entregava sua preciosa filha.

Era uma expressão que o Rei Rato tinha direito de usar.Enquanto Ithicana estava agora vinculada em termos comerciais novos e indesejáveis, tudo o

que o Rei de Maridrina havia desistido era uma de suas inúmeras filhas e uma promessa decontinuar a paz que havia permanecido entre os dois Reinos nos últimos quinze anos. E não pelaprimeira vez, Aren amaldiçoou seus pais por fazerem seu casamento com Maridrina parte doacordo.

— Um pedaço de papel com três assinaturas fará pouco para unir nossos Reinos — sua mãesempre respondia quando ele reclamava. — Seu casamento será o primeiro passo para criar umaverdadeira aliança entre os povos. Você irá liderar pelo exemplo e, ao fazer isso, garantirá queIthicana faça mais do que apenas sobreviver por um triz. E se isso não significa nada para você,lembre-se de que seu pai deu a palavra em meu nome.

E um Ithicano sempre mantinha sua palavra. Por isso, no décimo quinto aniversário doacordo, apesar de seus pais terem morrido há um ano, Aren enviou uma mensagem a Maridrinapara trazer sua princesa para o casamento.

— Não posso argumentar que ela é agradável aos olhos. Só espero ter sorte. — Embora a vozde Ahnna fosse leve, Aren não perdeu como seus olhos castanhos ficaram entorpecidos com amenção de sua metade da barganha. O Rei de Harendell, seu vizinho ao norte, ainda não haviachamado a noiva Ithicana de seu filho, mas com Aren agora casado com Lara, era apenas umaquestão de tempo. Harendell já deveria saber os termos que Maridrina havia negociado, e elesdesejariam extrair seu próprio peso de carne. Ambos os acordos incitariam retaliação porAmarid. O relacionamento do outro Reino do norte com Ithicana já estava cheio de conflitos,uma vez que seus navios mercantes competiam pelos negócios com a ponte.

Dando a Jor um olhar significativo, Aren esperou até que a guarda de honra se tornasse

escassa antes de dizer à irmã em voz baixa: — Não vou fazer você se casar com o príncipe, senão desejar. Eu os compensarei de outra maneira. Harendell é mais pragmático que Maridrina;eles podem ser comprados. — Porque uma coisa era Aren levar uma garota que não haviaescolhido e nunca conheceu como noiva por uma questão de paz. Outra coisa era entregar suairmã a um Reino estrangeiro, onde estaria sozinha em um lugar estranho para ser usada comoquisessem.

— Não seja idiota, Aren. Você sabe que eu colocarei o bem do nosso Reino em primeirolugar — murmurou Ahnna, mas se apoiou no ombro esquerdo dele, onde ficou com ele e lutoupor ele a vida toda. — E você não respondeu minha pergunta.

Isso porque ele não sabia o que ia fazer com Lara.— Não podemos baixar a guarda — disse Ahnna. — Silas pode ter prometido paz, mas nem

por um segundo acredite que ele pretenda honrar isso por ela. O bastardo provavelmentesacrificaria uma dúzia de filhas se nos visse abaixando nossas defesas.

— Estou ciente.— Ela pode ser linda — continuou sua irmã, — mas nunca acredite em um batimento

cardíaco que não seja intencionalmente. Ela é filha do nosso inimigo. Ele quer que você sedistraia com ela. Ela provavelmente foi instruída a seduzi-lo, a descobrir o que pode sobre ossegredos de Ithicana, na esperança de que seja capaz de devolvê-los ao pai. Não precisamos delesegurando esse tipo de moeda de troca.

— Como exatamente ela conseguiria isso? Não é como se a mandássemos para casa paravisitas. Ela não terá contato com ninguém fora de Ithicana. Ele tem que saber disso.

— Melhor prevenir. Melhor que ela seja mantida no escuro.— Então eu deveria mantê-la trancada na casa de nossos pais nesta ilha vazia pelo resto de

seus dias? — Aren olhou para as brasas brilhantes do fogo. Uma rajada de vento levou a chuvapara o buraco no telhado acima, as gotas sibilando quando atingiram a madeira carbonizada. —E se... — ele engoliu em seco, sabendo que tinha obrigações com seu Reino — quando tivermosum filho, devo mantê-lo trancado aqui também?

— Eu nunca disse que seria fácil. — Sua irmã pegou sua mão, a virando para observar ocorte na palma da mão, sangrando onde ele havia cutucado a ferida. — Mas nosso dever éproteger nosso povo. Para manter Eranahl em segredo. Para mantê-lo seguro.

— Eu sei. — Mas isso não significava que não sentia uma obrigação com sua nova noiva.Quem ele trouxe através dos trechos escuros da ponte, sabendo que quando ela acordasse, estariaem um lugar completamente diferente do que qualquer outro que conhecesse. Não a vida queescolheu, mas uma que lhe foi imposta.

— Você deveria ir para casa — disse Ahnna. — O efeito do sedativo passará em breve.— Você vai. — Aren deitou-se no banco, ouvindo o trovão rolando sobre a ilha, a

tempestade quase passou, embora logo fosse substituída por outra. — Ela já sofreu o suficientesem ter que acordar em um quarto com um homem estranho.

Ahnna olhou por um momento como se pudesse argumentar, depois assentiu. — Vou mandaruma mensagem quando acordar. — Levantando-se, ela deixou o acampamento em passossilenciosos, deixando-o sozinho.

Você é um covarde, ele pensou. Porque tinha sido apenas uma desculpa para evitar ver agarota. Sua mãe acreditava que essa princesa era a chave para alcançar a grandeza de Ithicana,mas Aren não estava convencido.

Ithicana precisava de uma Rainha que fosse uma guerreira. Uma mulher que lutaria até amorte por seu povo. Uma mulher que era esperta e implacável, não porque queria ser, mas

porque seu país precisava que ela fosse. Uma mulher que o desafiaria todos os dias pelo resto davida. Uma mulher que Ithicana respeitaria.

E havia uma coisa que ele tinha certeza: Lara Veliant não era essa mulher.

6

LARA

LARA ACORDOU ASSUSTADA, COM A CABEÇA DOENDO E COM UM GOSTO AZEDO NA BOCA.Sem se mover, abriu os olhos, estudando o que podia do quarto. Ela viu uma janela aberta,

através da qual entrava uma brisa úmida com cheiro de flores e de uma rica vegetação da qualnão podia nomear, já que passara a vida cercada de areia. A vista era de um jardim florido, comuma suave luz prateada, como se estivesse sendo filtrada por nuvens carregadas. O único som erao leve tamborilar da chuva.

E um zumbido feminino.Ela relaxou a mão que se fechou em punho, preparada para atacar, e, lentamente, virou a

cabeça.Uma mulher extraordinariamente impressionante, talvez cinco anos mais velha que Lara,

com longos cabelos escuros e encaracolados, estava no centro da sala usando um dos vestidos deLara. Um dos vestidos de Marylyn, ela percebeu com uma pontada.

Vendo o jeito que ela inclinou a cabeça, Lara sabia que a outra mulher a ouviu se mover, mascontinuou como se não tivesse, balançando as saias de seda curtas demais de um lado para ooutro, continuando com o zumbido.

Lara não disse nada, observando os móveis de madeira esculpida, polidos até refletirem, evasos de flores brilhantes estavam em quase todas as superfícies planas. Os pisos eram feitos depequenos pedaços de madeira dispostos em desenhos elaborados; as paredes eram de gessobranco e decoradas com obras de arte vibrantes. Uma porta levava ao que parecia ser a câmara debanho e a outra, fechada, que ela supunha levar a um corredor para fora. Satisfeita por terentendido o ambiente ao seu redor, Lara perguntou: — Onde estou?

— Oh, você está acordada! — a mulher disse com surpresa fingida. — Você está na casa doRei na ilha de Midwatch.

— Certo. — Se Midwatch estivesse, como o nome sugeria, no meio de Ithicana, ela ficarainconsciente por mais tempo do que pensava. Eles a drogaram, o que significava que nãoconfiavam nela. Nenhuma surpresa nisso. — Como eu cheguei aqui?

— Você chegou a Midwatch pelo mar.— Quanto tempo eu passei dormindo?— Você não estava adormecida exatamente. Só não estava… presente. — A mulher

encolheu os ombros em forma de desculpas. — Perdoe-nos. É da natureza de todo Ithiacano serreservado e ainda estamos aceitando o fato de ter uma estranha entre nós.

— Parece que sim, — murmurou Lara, notando que a mulher não havia respondido suapergunta, embora soubesse exatamente com o que a haviam drogado e por quê. Manter uma

pessoa inconsciente por dias tem consequências - geralmente fatais. Drogá-la para limpar suamemória era mais seguro.

Porém, falho. Especialmente quando o indivíduo que estava sendo drogado já havia sidoexposto no passado. Os flashes de memória já se arrastavam pelas bordas dos pensamentos deLara. Memórias sobre andar. Andar com sapatos mal ajustados sobre uma superfície dura. Elaestava na ponte e, em algum momento ao longo de sua extensão, eles tiraram-la de lá.

Voltando o olhar para a mulher, ela perguntou: — Por que você está usando meu vestido?— Você tem um baú inteiro deles. Eu estava pendurando eles para você e pensei em

experimentar um para ver se gostava.Lara levantou uma sobrancelha. — E gostou?— Ah, sim. — A estranha arqueou as costas, sorrindo para o reflexo no espelho. —

Totalmente inútil, mas atraente apesar disso. Eu poderia usar um ou dois no meu próprioarmário. — Estendendo a mão, ela tirou as alças do vestido dos ombros, permitindo quedeslizasse pelo corpo e se acumulasse no chão a seus pés.

Ela não usava nada por baixo, seu corpo todo musculoso, seus seios pequenos e empinados.— Lindo vestido o que você usou para o seu casamento, a propósito. — Ela passou uma

túnica de manga curta por cima da cabeça e depois vestiu uma calça confortável por baixo. Haviaum conjunto de braçadeiras no chão, e ela as prendeu como se tivesse feito isso mil vezes. — Eupediria emprestado como minha parte no Tratado dos Quinze Anos, mas receio que sua jornadatenha os desgastado um pouco.

Lara piscou, ao se dar conta — Você é a princesa de Ithicana?— Entre outras coisas. — A mulher sorriu. — Mas eu não quero revelar todos os nossos

segredos. Meu irmão nunca me perdoaria.— Seu irmão?— Seu marido. — Pegando um arco e aljava, a mulher - a princesa - caminhou pelo chão. —

Eu sou Ahnna. — Ela se inclinou para beijar a bochecha de Lara. — E eu estou ansiosa paraconhecê-la, irmã.

Houve uma batida na porta e um criado carregando uma bandeja de frutas fatiadas entrou,colocando a comida em uma mesa antes de anunciar que o jantar seria às sete horas.

— Vou deixar você em paz — disse Ahnna. — Dar a você uma chance de se estabelecer.Tenho certeza de que acordar aqui foi um choque.

Depois de anos da tutela agressiva de Serin, seria preciso muito mais do que acordar em umcolchão de penas para chocar Lara, mas permitiu um leve tremor em sua voz quando disse: — ORei... Ele é... Ele vai...

Ahnna deu de ombros. — Aren não é terrivelmente previsível em suas idas e vindas, receio.Melhor que você se sinta confortável em vez de esperar que ele volte para casa. Tome banho.Coma algumas frutas. Tome uma bebida. Ou dez.

Um pouco de decepção passou por Lara, mas ela sorriu para Ahnna antes de fechar a porta evirar a trava. Ela olhou para o pedaço de metal por um longo momento, surpresa pelos Ithicanospermitirem sua privacidade, depois deixou de lado o pensamento. Tudo o que sabia sobre elesera mais especulação do que verdade. Melhor viver sua situação como se ela não soubesse nada.

Depois de colocar o vestido que Ahnna havia descartado e amarrar suas facas, que ela ficousurpresa ao se encontrar sentada em cima, Lara andou pela sala procurando sinais de que estavasendo espionada, mas não havia buracos nas paredes ou no teto, sem rachaduras nas tábuas dochão. Pegando sua bandeja de frutas, ela entrou no que presumiu ser a casa de banho, apenaspara descobrir que não tinha nada parecido com uma banheira, apesar das prateleiras de madeira

estarem carregadas de toalhas macias, esfoliantes, sabonetes e toda uma coleção de pentes epincéis. No entanto, havia outra porta.

Lara abriu a porta de madeira sólida, revelando um exuberante pátio inclinado com umabeleza que nunca tinha visto antes. As paredes das construções estavam ocultas por trepadeirascobertas de brilhantes flores rosas, roxas e laranjas, e duas árvores com enormes folhas divididassubiam em direção ao céu, vários pássaros coloridos sentados em seus galhos. Um caminho feitode pedras cortadas emolduradas por pequenas pedras brancas serpenteava pelo pátio, mas o que adeixou sem fôlego foi o riacho que fluía através do centro de tudo.

A construção, ela percebeu ao entrar no pátio, foi desenvolvida quase como uma ponte sobreuma pequena cachoeira. A água caía em cascata sobre placas de rocha em uma piscina abaixo,que fluía através de um canal para outra piscina e depois mais outra, antes de correr sob o outrolado da casa para fora.

Na base da cachoeira, à beira da piscina, ela notou os bancos de pedra curvos sob a água. Aliera onde se devia tomar banho. O vapor subiu levemente de sua superfície e um rápido mergulhodo dedo do pé deixou sua pele rosada pelo calor. Havia apenas uma outra entrada para o pátio, eessa era uma porta oposta à que levava aos seus quartos.

Atravessando o riacho por uma pequena passarela, Lara caminhou até a porta esilenciosamente testou a maçaneta. Trancada. Os quartos do outro lado também tinham janelasfeito o dela, mas estavam fechadas e com cortinas.

Inclinar a cabeça para o céu não revelou nada além de nuvens agitadas, e ao testarrapidamente as videiras nas paredes as revelou fortes o suficiente para suportar seu peso, caso eladecidisse fugir. Inúmeras maneiras de escapar, o que significava que essa casa não era para seruma prisão.

Uma voz chamou sua atenção.— Ela está acordada então?Aren.— Há cerca de meia hora.— E?Lara correu pelo caminho próximo às flores, ajoelhando-se onde a água corria sob o prédio.— Ela estava mais calma do que eu previa. Principalmente, ela queria saber por que eu

estava usando um de seus vestidos. Suponho que todos temos nossas prioridades.Silêncio. Então, — Por que você estava usando um dos vestidos dela?— Porque eles eram bonitos e eu estava entediada.O Rei bufou, e Lara se arrastou alguns metros abaixo da construção até que pudesse ver as

pernas deles. Ele segurava um arco frouxamente em uma mão, que balançava para frente e paratrás. Ela queria ir mais longe, tentar ver o rosto dele, mas não podia arriscar ser ouvida.

— Ela disse alguma coisa importante?— Eu tive conversas mais emocionantes com seu gato. Os jantares juntos estão destinados a

ser animados.— Chocante. — O Rei chutou uma pedra, lançando-a para dentro do riacho, jogando água no

rosto de Lara. — Filha mais preciosa minha bunda. Aposto que ele tem botas que são maispreciosas do que aquela garota.

Eu aceito essa aposta, seu bastardo hipócrita, pensou Lara.Ele acrescentou: — Essas concessões não eram o que eu queria deste tratado, Ahnna. Não

gosto delas e não quero assinar.— Você precisa. Maridrina cumpriu o final do acordo. Se quebrarmos a confiança, haverá

consequências, sendo a perda de paz a primeira delas.Os dois começaram a andar, depois houve botas rastejando, o baque medido de duas pessoas

subindo as escadas, e a voz de Ahnna era fraca quando disse: — Dar ao Rei Maridriniano o queele quer o fará depender ainda mais de nós. Pode valer a pena.

E Lara ouviu por pouco sua resposta: — Maridrina passará fome antes mesmo de ver asregalias deste tratado.

As brasas da fúria de Lara queimavam quentes nas palavras dele, lembranças das criançasmagras que tinha visto nas ruas de seu Reino enchendo seus olhos. Endireitando-se, ela invadiu ocaminho de seu quarto, com a intenção de encontrar aquele Rei imbecil e mergulhar uma de suasfacas em suas entranhas Ithicanas.

Mas ela não faria isso.Parando no caminho, ela olhou para o céu e respirou fundo, encontrando calmaria no mar de

fogo que era sua alma. Por mais delicioso que fosse estripar o marido, isso não resolveria osproblemas de Maridrina. Caso contrário, seu pai teria enviado um assassino há muito tempo parafazer exatamente isso. Não era uma questão de derrubar um homem, mas derrubar um Reino, epara fazer isso, ela precisava jogar o longo jogo. Adiar o ataque para quando fosse mais eficaz.Para lembrar para o que ela foi treinada e o porquê. Para ser a mulher que seu pai havia criadopara salvar sua terra natal.

Uma porta bateu atrás dela, e Lara a encarou, esperando que uma das servas tivesse vindooferecer seus serviços.

Ela não poderia estar mais enganada.O homem estava nu, exceto pela toalha enrolada na cintura que o impedia de ser

completamente exposto a ela. Mas o que podia ver era mais que suficiente. Alto e de ombroslargos, seu corpo musculoso era tão definido como se fosse esculpido em pedra, seus braçosmarcados com velhas cicatrizes brancas contra a pele bronzeada. E o rosto dele... Cabelosescuros emolduravam maçãs do rosto altas e um queixo forte, temperado por lábios carnudos. Osolhos dele a percorreram, fazendo com que a cor subisse para as bochechas dela.

— É claro que de todos os quartos em que ela poderia ter colocado você, ela escolheu esse —disse ele, e a familiaridade de sua voz era como um balde de água gelada sendo jogado sobre suacabeça quando percebeu quem estava diante dela. Tudo o que viu agora era aquela máscaraperversa, e tudo o que ouviu foi Maridrina morrendo de fome.

As mãos de Lara se contraíram nas facas da cintura, mas ela cobriu o movimento ajustando acintura do vestido.

Ele não foi enganado. — Você ao menos sabe como usá-las?O pensamento de que ela poderia matar esse homem arrogante e condescendente, onde ele

estava, dançou em sua cabeça, mas Lara apenas lhe deu um sorriso doce. — Eu já cortei carnes osuficiente.

Os olhos dele brilharam com interesse. — Então a princesinha é corajosa, afinal. —Gesticulando para as facas dela, ele disse: — Eu quis dizer, você sabe como lutar com elas?

Dizer não significava que nunca poderia ser pega usando-as de qualquer maneira sem parecermentirosa, então Lara levantou uma sobrancelha confusa. — Fui criada para ser sua Rainha, nãouma soldada comum.

O interesse em seus olhos cintilou. O que não faria. Ela deveria seduzi-lo e, nisso, ganhar asua confiança. Mas para que isso acontecesse, ele tinha que a querer. O vapor tornou a seda deseu vestido úmida, e ela podia senti-la agarrada aos seios. Ela foi treinada para isso. Tinhapassado por inúmeras lições onde havia aprendido exatamente o que precisava fazer para atrair o

interesse de um homem. E para mantê-lo. Endireitando as costas, disse: — Você está aqui paraReivindicar o que lhe é devido?

Sua expressão não mudou. Na verdade, ele parecia entediado com ela. — A única coisa quedevo é tomar um banho antes do jantar. Arrastar seu traseiro de Southwatch foi difícil. Você émais pesada do que parece.

As bochechas de Lara ardiam.— Dito isto, se você estiver inclinada a fazer o mesmo, poderá ir primeiro. Como você não

vê um banho há três dias, provavelmente precisa mais do que eu.Ela olhou para ele, sem palavras.— Mas, se você está aqui apenas para admirar a… Vegetação, talvez me conceda um pouco

de privacidade. — Ele deu um sorriso preguiçoso. — Ou não. Eu não sou tímido.Era o que ele esperava. Ela ser uma pequena esposa Maridriniana obediente e atender às

necessidades dele, querendo ou não.Era o que ele esperava, ela pensou, vendo ele a observando, mas não era o que ele queria.

Pensamentos passaram por sua mente, um após o outro. Das roupas que ele usava, as cores eramfeitas para misturar na selva ao seu redor. As cicatrizes, claramente vieram de batalha. O arcoque ele segurava na mão, pronto para usar a qualquer momento. Esse homem é um caçador, eladecidiu. E o que ele quer é uma caça.

Ela estava mais do que feliz em dar-lhe uma. Especialmente se isso significasse adiar umacerta inevitabilidade que estava desesperada para evitar.

— Então você pode esperar. — Ela sorriu internamente pela surpresa que iluminou seusolhos. Soltando o cinto, ela largou as armas perto da beira da piscina e depois deu as costas parao Rei, puxando as alças do vestido. Tirando a seda úmida de seu corpo, Lara chutou a peça delado, sentindo os olhos dele quando entrou na piscina, apenas com os cabelos pendurados nascostas para esconder sua carne nua.

Estava muito quente. Uma temperatura em que se precisava entrar com calma, lentamente,mas Lara rangeu os dentes e desceu os degraus, girando apenas quando a água em turbilhãocobriu seus seios.

O Rei olhou para ela. Ela deu um sorriso sereno. — Eu vou deixar você saber quando euterminar.

Ele abriu a boca como se quisesse discutir, depois balançou a cabeça uma vez e se virou.Lara permitiu que ele desse três passos antes de gritar: — Vossa Majestade.

O Rei de Ithicana voltou-se para olhá-la, sem esconder a excitação em sua expressão.Lara deixou a cabeça cair para trás e a cachoeira caiu sobre seus cabelos. — Por favor, deixe-

me o sabão. Receio ter esquecido de trazer alguma coisa comigo. — Ela hesitou e acrescentou:— A toalha também.

O sabão caiu na água ao lado dela com um splash. Lara abriu os olhos a tempo de vê-lo tirara toalha da cintura e jogá-la em uma pedra, batendo os pés no caminho enquanto voltava nu parao quarto.

Mordendo o interior de suas bochechas, Lara lutou para conter seu sorriso. Este homempodia ser um caçador. Mas ele estava enganado se acreditava que ela era a presa.

7

LARA

LARA FICOU NAS FONTES TERMAIS ATÉ QUE SUA PELE ESTIVESSE ROSADA E ENRUGADA, EM PARTE

para irritar o Rei de Ithicana e em outra metade porque a sensação de estar totalmente imersa emágua morna era uma delícia desconhecida. No oásis, o banho era limitado a uma bacia, um panoe uma esfoliação vigorosa.

De volta a seu quarto, ela cuidou de sua aparência, escolhendo um vestido azul-celeste quedeixava seus braços e a maior parte de seu decote descobertos, trançando seus cabelos molhadosem uma coroa que revelava seu pescoço e ombros. Em seu baú havia uma caixa de cosméticocom o fundo falso escondendo pequenos vidros de venenos e drogas, dos quais enfiou um dosfrascos em seu bracelete criado para isso. Ela escureceu os cílios e passou um pouco de pódourado pela pele, manchando os lábios de um leve rosa quando o relógio na mesa bateu setehoras. Então, respirando fundo, ela saiu para o corredor e seguiu o cheiro de comida.

O piso polido do salão refletia a luz das belas arandelas feitas de vidro valcottano. As paredesestavam cobertas com uma treliça de finos pedaços de madeira de cor âmbar, sobre a qualpendiam várias pinturas brilhantes emolduradas em bronze. O final do corredor levava a umacozinha, então ela tomou a porta que dava para a esquerda e se viu em um vestíbulo revestido demármore, uma pesada porta externa emoldurada por janelas que nada revelava na escuridãocrescente.

— Lara.Girando a cabeça ao som do nome, ela olhou através das portas abertas para uma grande sala

de jantar, dominada por uma linda mesa feita de madeira com quadrados esmaltados, ao redor daqual estavam colocadas uma dúzia de cadeiras. Ahnna sentava-se com a cadeira empurrada paratrás e um copo equilibrado sobre um joelho coberto pela calça.

— Como foi o seu banho? — A diversão nos olhos de Ahnna sugeria que não tinhaconhecimento da conversa de Lara com o irmão.

— Delicioso, obrigada... — Ela cortou em um suspiro surpreso. Sentado em uma cadeira emfrente à princesa estava o maior gato que ela já vira, era pelo menos do tamanho de um cachorro.Analisando ela com olhos dourados, ele levantou uma pata e lambeu, passando a se arrumar namesa de jantar. — Bom Deus — ela murmurou. — O que é isso?

— Esse é o Vitex. Ele é o animal de estimação de Aren.— Animal?A outra mulher deu de ombros. — Aren o encontrou abandonado quando era apenas um

gatinho. Levou-o para dentro de casa e depois não conseguiu que a maldita criatura fosseembora. Ele mantém as cobras afastadas, tenho que admitir.

Lara observou o animal com cautela. Era grande o suficiente para derrubar um humano, seconseguisse saltar — Ele é amigável?

— Às vezes. Melhor deixá-lo vir até você, no entanto. Agora, Vitex. Xô! — A enormecriatura lançou-lhe um olhar de desdém, depois pulou da cadeira e desapareceu da sala.

Lara sentou-se em frente à princesa, contemplando a parede cheia de janelas, que elaesperava ter uma vista impressionante à luz do dia. — Onde está todo mundo?

Ahnna tomou um longo gole de vinho, depois pegou a garrafa no centro da mesa e encheu ataça de Lara e a sua, o ato fazendo Lara piscar. Em Maridrina, apenas criados serviam umagarrafa. Você não se servia. Ela pensou que seus compatriotas poderiam morrer de sede para nãoromper com o costume.

— Essa é a residência privada dos meus pais — Ahnna interrompeu com umestremecimento, depois se corrigiu — do meu irmão, então não há mais ninguém aqui agora, anão ser nós três, além da cozinheira e dois criados. E eu vou embora amanhã quando minharessaca acabar. — Ela levantou o copo. — Saúde.

Lara ergueu a taça obedientemente e engoliu em seco, notando que as taças também eram deValcotta, o vinho de Amarid, e, a menos que ela não entendesse seu brasão, os talheres eram desua terra natal. Ela mentalizou os detalhes para posterior consideração. Ithicana faz mercado paraa maioria dos produtos, comprando em Northwatch, transportando os produtos pela ponte evendendo-os com impostos em Southwatch, apenas para fazer o mesmo processo de volta com asexportações dos Reino do sul. Os comerciantes que percorriam a extensão da ponte pagavampedágios pelo privilégio e eram sempre mantidos sob supervisão por soldados Ithicanos. Aprópria Ithicana não exporta nada, mas parece que eles não tinham escrúpulos em importarprodutos de outros lugares.

— Toda a ilha é de domínio privado do Rei, então? — Lara perguntou, imaginando quandoou se o homem em questão apareceria.

— Não. Meu pai construiu essa casa para minha mãe, para que se sentisse confortáveldurante os períodos do ano em que estivessem aqui.

— Onde eles estavam o resto do tempo?Ahnna sorriu. — Em outro lugar.Segredos.— Há outras pessoas vivendo nesta ilha que eu deveria estar ciente?— A guarda de honra de Aren está aqui. Você os encontrará em algum momento, imagino.A frustração mordeu Lara, e tomou outro gole de vinho para acalmar a sensação. Ela só

estava aqui em questão de horas. Ninguém - nem mesmo Serin e seu pai - poderiam esperar queela encontrasse um caminho para as defesas de Ithicana no espaço de um dia. — Estou ansiosapara conhecê-los, tenho certeza.

Ahnna bufou. — Eu duvido disso. Eles são um pouco ásperos em comparação com o quevocê está acostumada, eu espero. Embora você seja um mistério.

A princesa estava fazendo sua própria investigação. Lara sorriu. — E você? Você diz quepartirá amanhã? Essa ilha não é sua casa?

— Eu sou a comandante de Southwatch.Lara engasgou com a boca cheia de vinho. — Mas você é uma...— Mulher? — Ahnna completou. — Você descobrirá que adotamos um estilo de vida

diferente em Ithicana. O que há entre suas pernas não determina o caminho que você seguirá navida. Metade da guarnição de Southwatch é composta de mulheres.

— Que libertador. — Lara conseguiu exprimir as palavras entre tosses, mesmo quando

imaginava o horror no rosto de seu pai, caso ele descobrisse que a ilha que havia falhado uma eoutra vez em vencer na batalha era defendida por mulheres.

— Pode ser para você também, se quiser.— Não faça promessas que não podemos cumprir, Ahnna — disse uma voz masculina.O Rei de Ithicana entrou na sala de jantar, com os cabelos escuros úmidos pelo banho,

embora ela notasse que o rosto dele ainda estava áspero com barba por fazer. Isso lhe deu umaaparência provocante, mas ela reprimiu o pensamento no momento em que ele surgiu.

— O que há de errado em ela aprender a manejar uma arma? Ithicana é perigosa. Seria parasua própria segurança.

Ele olhou para a mesa e sentou-se no final dela. — Não é com a segurança dela que estoupreocupado.

Lara lançou-lhe um olhar de desdém. — Você se encaixaria bem em Maridrina, VossaExcelência, se o pensamento de sua esposa saber empunhar uma faca coloca tanto medo em seucoração.

— Oh, céus. — Ahnna encheu o copo até a borda e recostou-se na cadeira. — Eu julguei mala sua inteligência, Lara.

— Você está perdendo o fôlego, Ahnna — disse Aren, ignorando o comentário. — Laraacredita que as armas foram feitas para o domínio de soldados comuns e não são dignas de seutempo.

— Eu não disse isso. Eu disse que fui treinada para ser esposa e Rainha, não uma soldadacomum.

— E exatamente o que esse treinamento implica?— Talvez o destino lhe mostre e um dia você descobrirá, Vossa Majestade. Embora agora,

você precisará se contentar com o meu bordado impecável.Rindo alto, Ahnna se serviu de mais uma taça de vinho e depois encheu uma para o irmão. —

Isso pode ajudar.Aren desprezou as duas em favor dos criados que apareciam carregando bandejas de comida,

que colocaram sobre a mesa, desaparecendo apenas para voltar novamente com mais. Haviafrutas e legumes frescos, todos de cores brilhantes, e grandes peixes ainda com suas cabeças. Umpeixe estava em cima de uma cama de arroz fumegante, que Lara olhou e depois dispensou, suaatenção voltando para a carne assada com crosta de ervas, suas origens pesando e abafando suaraiva pelo excesso de comida. Comida que poderia ter ido para Maridrina.

Ela esperou que um dos servos a servisse, mas todos partiram. Então os irmãos reaiscomeçaram a se servir, colocando em seus pratos salada, peixe e carne, tudo ao mesmo tempo,sem levar em conta a ordem das coisas. — Este é um jantar mais diversificado do que estouacostumada — disse ela. — Eu nunca comi peixe antes, embora suponha que seja um alimentobásico aqui.

Aren levantou a cabeça, olhando as opções, e Lara viu o seu canto do olho piscar — Existemalgumas ilhas com javalis. Bode. Frango. Cobra geralmente faz parte da alimentação. Todo oresto é importação, geralmente de Harendell pelo mercado da Northwatch.

Os espiões de Serin relataram que nem todas as mercadorias que entram na ponte emNorthwatch saíam em Southwatch, indicando que os Ithicanos usavam a estrutura paratransportar produtos para dentro de seu próprio Reino. Existem maneiras de entrar e sair daponte além das aberturas de Northwatch e Southwatch, Serin gritava continuamente para Lara esuas irmãs. Esses são os pontos fracos. Encontre uma forma de entrar.

Colocando porções saudáveis de tudo, Lara cortou sua fatia de carne, observando a suculenta

piscina que se formou embaixo. Então ela deu uma mordida. Sorrindo para um dos criados quereapareceu com mais vinho, ela disse, — Isso está delicioso.

Nenhum deles falou por um longo tempo e, por sua parte, o silêncio de Lara foi resultado desua boca estar cheia de comida. Era melhor do que qualquer coisa que ela já provara, fresca etemperada com especiarias que nem podia nomear. Era isso que significava possuir a ponte,pensou ela, imaginando toda essa comida chegando em Maridrina.

— Por que seu pai manteve você no meio do deserto vermelho? — Aren finalmenteperguntou.

— Para nossa segurança.— Nossa?Dê a verdade, quando puder, a voz de Serin a instrui em seus pensamentos.Ela engoliu um pouco de peixe regado com manteiga cítrica. — Eu e minhas irmãs. Bem,

meias-irmãs.Os dois irmãos pararam de mastigar.— Quantas filhas ele estava… ele está escondendo lá? — Aren perguntou.— Doze, contando comigo. — Lara tomou um gole de vinho e voltou a encher o prato. —

Meu pai selecionou dentre nós a garota que acreditava que seria mais adequada como suaRainha.

Aren estava olhando para ela com uma expressão vazia, enquanto sua irmã gêmea assentiusabiamente antes de perguntar, — A mais bonita, você quer dizer?

— Não, receio que não.— A mais inteligente?Lara balançou a cabeça, pensando em como rapidamente Sarhina e Marylyn poderiam

decifrar códigos. E construí-los.— Por que você então? — Aren interveio.— Não era da minha conta questionar as razões por trás da decisão dele.— Certamente você tem uma opinião sobre o assunto?— Certamente: minha opinião não importa.— E se eu te perguntasse? — Ele franziu a testa. — Estou perguntando.— Meu pai é o monarca mais antigo da história de Maridrina. Sua sabedoria e compreensão

do relacionamento entre nossos dois Reinos foi o que o guiou a me escolher para ser sua esposa.Ahnna se empurrou abruptamente em direção a seu irmão, sua voz urgente quando disse: —

Aren, nós fomos infiltrados. Há um espião entre nós.Lara sentiu seu estômago revirar quando os olhos de Aren se voltaram para ela. Seus dedos

se contorceram em direção às facas na cintura, prontos para lutar se precisasse.— Não há outra explicação para isso — disse Ahnna. — De que outra forma o idiota daquele

Rei poderia saber qual filha seria a pior esposa de todas para você?Bufando, Aren balançou a cabeça. Lara escondeu seu alívio atrás de outra garfada de peixe,

que agora tinha o mesma sensação de engolir serragem.— Não é de admirar que ele estivesse tão orgulhoso no casamento — continuou a princesa.

— Ele provavelmente imaginou que você a mandaria de volta depois de uma semana.— Ahnna. — A voz do Rei de Ithicana estava cheia de advertência.— É realmente incrível. É quase como se ela tivesse sido criada para levá-lo a uma sepultura

precoce.Mais preciso do que você imagina, pensou Lara.— Ahnna, se você não calar a boca, eu vou afogar você no seu vinho.

Ahnna ergueu o copo, brindando. — Você é bem-vindo a tentar, irmão querido.Lara escolheu esse momento para interromper, enquanto, ao mesmo tempo, enchia a taça dos

dois irmãos. Servir o próprio vinho se tornou fácil depositar várias gotas do pequeno frascoescondido em sua mão em cada copo, garantindo que ambos dormissem pesadamente essa noite.— Falando em meu pai, você permite que eu me comunique com ele?

Eles a encararam, o descontentamento com o pedido dela claro, enquanto os dois bebiamtodo o vinho, aparentemente inconscientes de como se espelhavam. Lara sorriu internamente,sabendo que o narcótico misturado ao álcool faria bem o seu dever.

Por fim, Aren perguntou, — Por que você gostaria? E, por favor, não me diga que é parasustentar, o que obviamente não é, um relacionamento íntimo de pai e filha.

Uma dúzia de respostas desagradáveis se formou em sua mente, e Lara engoliu cada umadelas. Ela precisava que o maldito homem se apaixonasse por ela. — Ficou claro para mim que,para proteger os interesses de Ithicana, nunca mais poderei ver minha família, minha casa ou atémeu povo novamente. Que essa casa, por mais adorável que seja, deve ser minha prisão pelotempo que achar melhor. Caneta e papel são tudo o que me resta para manter minha conexãocom tudo o que me resta. Ou seja, se você permitir.

Ele desviou o olhar, sua mandíbula flexionada como se estivesse travando um grande debateinterno. Então seus olhos se voltaram para sua irmã, a mulher dando a ele um leve aceno decabeça. O que foi interessante. Ahnna se mostrou como a alegre e compassiva da dupla, mastalvez essa não fosse uma avaliação precisa de sua personagem.

No entanto, qualquer aviso que tivesse passado entre irmão e irmã, Aren escolheu ignorá-lo.— Você pode se corresponder com seu pai. Mas suas cartas serão lidas e, se contivereminformações que põem em risco Ithicana, você será solicitada a removê-las. Se você for pegausando um código, seus privilégios serão revogados.

O que ele pedisse para ela remover revelaria muita coisa, um conceito que não foi perdido naComandante de Southwatch. Os olhos de Ahnna brilharam com irritação, e ela abriu a boca antesde fechá-la novamente, não querendo comprometer seu desempenho. Embora Lara não tivessedúvida, argumentaria contra a correspondência assim que Lara estivesse fora do alcance de voz.

— Eu não me importo que minhas cartas particulares sejam lidas — argumentou Lara,apenas porque ele esperava isso.

— E eu não me importo tanto de lê-las — Aren retrucou. — Mas todos devemos fazer coisasque não queremos fazer, por isso sugiro que se acostume. — E sem outra palavra, ele empurrou acadeira para trás e saiu da sala com um leve oscilação em seus passos.

Ahnna soltou um suspiro sem entusiasmo. Puxando a rolha de outra garrafa de vinho, encheua taça de Lara até a borda. — Em Southwatch, é o que chamamos de bebida de Ahnna.

Apesar de saber que o comportamento da mulher era um ato para ganhar sua confiança, Larasorriu, tomando um gole do líquido. — Ele é sempre tão rápido em se irritar? — ela perguntou,enquanto pensava: ele é sempre tão idiota?

O sorriso no rosto da outra mulher desapareceu. — Não. — A voz dela estava ligeiramentearrastada, e ela franziu a testa para o copo. — Deus, quanto disso eu bebi?

— Amarid faz os melhores vinhos do mundo - difícil em não se render.Pouco tempo depois, o queixo de Ahnna bateu na mesa com um baque forte. Um dos criados

entrou naquele momento preciso, com o queixo caído ao ver sua princesa roncando na mesa dejantar.

— Se rendeu demais — disse Lara com uma careta. — Você vai me ajudar a levá-la para oquarto dela?

Ahnna era um peso morto entre os dois enquanto meio a arrastavam, meio carregavam pelocorredor até o quarto, que era tão lindo quanto o de Lara.

— Se você segurá-la, Majestade, vou verificar os lençóis se têm cobras.Cobras? O pensamento distraiu Lara o suficiente para que quase caísse de lado sob o peso de

Ahnna quando o garoto a soltou. Ele caminhou até a cama e deu um chute sólido antes de jogar aroupa de cama, felizmente desprovida de serpentes.

Colocando Ahnna na cama, Lara desviou de um chute no rosto quando a mulher mais altarolou sobre o estômago com um resmungo abafado. Tirando a bota, que tinha uma lâmina afiada,Lara jogou-a ao lado da cama, seguida pela outra, depois limpou as mãos. — Obrigada por suaajuda — disse ela ao garoto, saindo do quarto e esperando que a seguisse. — Qual o seu nome?

— É Eli, minha senhora. Devo dizer que isso não é normal para Ah... Vossa Alteza. — Elemordeu o lábio inferior. — Talvez eu deva deixar Vossa Excelência...

— Tudo bem. — Lara fechou a porta. — Não há necessidade de envergonhá-la ainda mais.O criado parecia pronto para discutir, então Ahnna soltou um ronco alto, audível através da

porta grossa, e pareceu pensar melhor. — Você precisa de mais alguma coisa essa noite, VossaExcelência?

Lara balançou a cabeça, querendo que ele fosse embora. — Boa noite, Eli.Curvando-se, ele disse: — Muito bem. Por favor, verifique sua cama se tem...— Cobras? — Ela deu-lhe um sorriso que o deixou com as bochechas vermelhas contra os

cachos castanhos e macios de seus cabelos caóticos. Ele se curvou novamente antes de fugir pelocorredor. Lara ouviu o barulho de pratos sendo removidos da sala de jantar e depoissilenciosamente voltou para o quarto de Ahnna, trancando a porta atrás dela.

A princesa não se mexeu muito enquanto Lara procurou metodicamente qualquer informaçãoque pudesse usar, cobiçando silenciosamente o arsenal de armas da mulher, que eram asmelhores possíveis. Mas, além da cobiça, não havia nada além de algumas souvenires, uma caixade jóias com alguns itens inúteis e uma caixa de música com um fundo falso cheio de poesia. Umquarto de infância agora pouco usado.

Depois de desligar a lamparina, Lara espiou a porta para garantir que o corredor estivessevazio antes de caminhar para o seu próprio quarto. Havia barulho de movimento nos doisextremos do corredor; sem chance de ela chegar ao outro lado da casa sem que um dos criadospercebesse. Mastigando a unha do polegar, Lara olhou o relógio. O narcótico não tinha aintenção de durar muito, e o Rei não se entregou ao vinho da mesma forma que sua irmã. O quesignificava que estava com pouco tempo.

Tirando o vestido, Lara pegou um uma toalha, juntamente com esponja e sabonete e, comlamparina na mão, saiu para o pátio. O ar da noite estava fresco, uma leve névoa de chuvaamortecendo seus passos enquanto andava descalça pelo caminho de pedra em direção ao quentejardim. Colocando seus suprimentos de banho ao lado do riacho, Lara tirou a anágua e entrou naágua fumegante, levando uma de suas facas com ela. Então diminuiu a luz e permitiu que seusolhos se ajustassem à escuridão.

O barulho da selva conseguiu ser ao mesmo tempo ensurdecedor e calmante, uma cacofoniaincessante que acalmou o tamborilar rápido de seu coração enquanto ela descansava os cotovelosna beira da piscina, examinando os arredores. O chiar dos pássaros se fundia com o farfalhar dasfolhas, os agudos dos macacos que ressoavam de um lado para o outro através das árvores. Umacriatura, talvez uma espécie de sapo, emitia um barulho repetitivo de coaxar, insetos zumbiam e,misturado a tudo isso, o barulho da cachoeira atrás dela.

Ver. Ouvir. Sentir.

Este último sempre lhe serviu melhor. O mestre Erik chamou isso de sexto sentido - a parteinconsciente da mente que pega o que todos os outros sentidos fornecem e acrescenta algo mais.Uma intuição que poderia ser sintonizada e aperfeiçoada com o sentido mais valioso de todos.

Então, ouviu um som ou viu um movimento, Lara não poderia dizer, mas sua atenção foi dalinha do telhado para a abertura sob a casa através da qual o córrego corria.

Guarda.Com certeza, enquanto olhava para a escuridão, seus olhos finalmente perceberam a forma de

um pé apoiado em uma rocha. Um lampejo de irritação que eles ousariam vê-la enquanto tomavabanho foi apagado pelo claro entendimento. Aren era o Rei de Ithicana e ela era filha de umReino inimigo. É claro que qualquer metro entre eles seria protegido.

Depois de garantir que não havia outros guardas, ela marcou as linhas de visão. Procuroulugares que lhe dariam cobertura. Ela olhou para a sua anágua branca repousando à luz e entrouno riacho que escoava para a piscina, rastejando nos cotovelos para manter o corpo embaixo damargem. A água morna acariciou seu corpo nu enquanto ela se arrastava até a ponte decorativa,que usava como cobertura para relaxar, movendo-se silenciosamente atrás de um arbusto comfolhas largas.

De lá, ela rapidamente atravessou o pátio, indo para baixo da janela do Rei, que estavaentreaberta.

Ajustando uma folha para cobrir o braço, ela se esticou para cima e abriu a janela.Respire.Usando os dois braços, ela se levantou através da pequena brecha, a moldura raspando sobre

sua bunda nua enquanto se jogava para dentro, aterrissando silenciosamente sobre os pés dentrodo quarto mal iluminado, a lâmina da faca presa entre os dentes.

Ela foi recebida pelo enorme gato amaldiçoado de Aren, encarando-a com olhos dourados.Lara prendeu a respiração, mas o animal apenas pulou no parapeito da janela e saiu para o pátio.

Seu olhar foi imediatamente para o homem esparramado na grande cama com dossel. Arenestava deitado de costas, vestindo apenas roupas de baixo, os lençóis emaranhados em torno desuas pernas.

Com a faca na mão, Lara deu um passo cuidadoso em direção à cama, usando um dos tapetespara limpar os pés. Não tinha necessidade de deixar suas pequenas pegadas.

Não havia dúvida em sua mente, depois de vê-lo nu mais cedo, que ele era um espécimeimpressionante de um homem, mas desta vez, não tinha medo de ser pega olhando. Duas vezes alargura de seus próprios ombros, ele era musculoso como um indivíduo que se exercitavaregularmente. Luta, a julgar pelas cicatrizes, mas sua forma física falava de uma vida ativa, nãode um homem que se recostava e governava de um trono.

Circulando na cama, ela examinou o rosto dele: maçãs do rosto altas, mandíbula forte, lábioscarnudos e cílios pretos pelos quais uma esposa do harém morreria. Barba marcava a linha de suamandíbula definida, e ela teve que conter a vontade de estender a mão e passar o dedo por ela.

Maridrina passará fome antes mesmo de ver o benefício deste tratado.As palavras dele ecoaram em sua mente e, por vontade própria, a mão de Lara serpenteou,

descansando a ponta da lâmina contra a pulsação constante da garganta do homem. Seria fácil.Um corte e ele sangraria em questão de segundos. Ele não poderia acordar a tempo suficientepara tocar o alarme. Ela teria ido embora quando perceberem que ele estava morto.

E ela não teria ganhado nada além de destruir a única chance de Maridrina ter um futuromelhor.

Lara abaixou a faca e caminhou até a mesa. Seu coração disparou quando pegou uma caixa

de madeira polida de pergaminho pesado gravada com a ponte de Ithicana, as bordas brilhandocom dourado. O mesmo papel de carta que Serin havia mostrado a ela que Aren usava paracorrespondência oficial. Ela imediatamente procurou por qualquer coisa que fosse dirigida aMaridrina. Tudo o que encontrou foram pilhas de notas curtas em papel barato, e ela folheou,recolhendo os relatórios de espiões de todos os Reinos do norte e do sul. Mais relatórios das ilhasNorthwatch e Southwatch, receitas, requisitos para armas, soldados e suprimentos.

Provisões para Eranahl...Franzindo a testa, ela tirou a folha de papel de debaixo de uma pilha quando a cama rangeu

atrás dela.Girando, seu estômago despencou quando seu olhar se encontrou com o de Aren. Ele estava

apoiado em um braço, os músculos do ombro pressionados contra o elegante marrom dourado desua pele.

— Lara? — Sua voz era áspera, os olhos embaçados por narcóticos, sono e... luxúria. Seuolhar percorreu seu corpo nu, depois ele esfregou os olhos como se não tivesse muita certeza seela era real ou uma aparição.

Faça alguma coisa!Seu treinamento, ensinado por seus mestres, finalmente começou. Ou seguia com o que

prometia ali nua ou encontraria uma maneira de fazê-lo voltar a dormir. A primeira era aestratégia mais segura, mas... Mas essa não era uma carta que ela ainda estava disposta a jogar.

— Como você chegou aqui? — Seu olhar estava afiado. Se não agisse logo, ele se lembrariade vê-la quando acordasse, e isso não fazia parte de seu plano.

Acredite que você é algo a desejar, e ele acreditará também, disse a voz de Mezat, a Senhorado Quarto das irmãs, invadindo os pensamentos de Lara. O desejo é sua arma para manejar tãoperversamente quanto qualquer espada.

Isso parecia muito simples quando estava no complexo. Muito menos agora. Mas ela nãotinha outra escolha.

Tirando o frasco da pulseira, Lara cobriu o dedo com a droga antes de levá-lo à boca paracobrir os lábios.

— Shh, Vossa Excelência. Agora não é hora de conversar.— Uma pena. Você tem um jeito tão agradável com as palavras.— Eu tenho outros talentos.Um sorriso lento surgiu no rosto dele. — Prove.Uma gota do narcótico caiu no lábio inferior de Lara enquanto passeava com falsa confiança

em direção à cama, sentindo Aren a beber. Observando sua excitação tomar conta. Talvezhouvesse algo nos ensinamentos de Mezat, afinal.

Subindo na cama, montou nele, seu pulso rugindo em seus ouvidos quando ele estendeu amão para segurar sua bunda. Seus lábios se separaram como se fosse dizer alguma coisa, mas elao silenciou com um beijo.

O primeiro beijo de sua vida, e ela estava dando para seu inimigo.O pensamento dançou para fora quando ele gemeu nela, sua língua perseguindo seus lábios

cheios de drogas, depois mergulhando mais fundo em sua boca, a sensação abrindo umainesperada enxurrada de calor entre suas pernas.

Ela silenciosamente desejou que as drogas funcionassem enquanto o beijava novamente,forte e exigente, sentindo a outra mão roçar a parte inferior de seu peito até que o agarrou e oprendeu no colchão. Ele riu baixinho, mas ela viu a maneira como as pálpebras dele tremiam,quase inconscientes, mesmo quando a outra mão dele desceu pelo seu traseiro, pela parte de trás

da perna e depois pela parte interna da coxa. Para cima e para baixo. Lara sentiu as drogascomeçarem a surtir efeito nela, ao mesmo tempo em que sentia algo construindo em seu núcleo.

Ele rolou, pegando a outra mão e prendendo os dois no colchão, mordendo os dentes naorelha dela e puxando um suspiro dos lábios dela. O quarto girou acima dela, mesmo quando suapele queimava, seus lábios beijando sua garganta. Entre os seios dela. Um beijo singular, logoabaixo do umbigo, transformando sua respiração em suspiros irregulares.

Então Aren suspirou uma vez, caiu e ficou imóvel.Lara encarou o teto sem piscar, com o coração na garganta. Mas cada batida parecia ficar

mais lenta, o sono a puxando, acolhendo-a em seu abraço caloroso.Mova-se, ela ordenou a si mesma, escapando debaixo do peso dele.Sabendo que tinha apenas alguns minutos antes que a droga a derrubasse, Lara tropeçou em

direção à janela, dando ao quarto apenas um olhar passageiro para garantir que estava como oencontrou. Seus braços estremeceram quando ela se afastou, pés dormentes encontrando o chãofrio, lama escorrendo entre os dedos dos pés enquanto voltava pelo pátio. De volta ao riacho, aágua dançava sobre sua pele, que, apesar do narcótico, parecia tão sensível que o toque doía.

A água estava quente. Estranhamente reconfortante quando a puxou para baixo, acolhendo-aem suas profundezas.

Logo ela estava sufocando. Ofegante. Lutando para se manter consciente enquanto alcançavaa beira e se arrastava para fora da piscina.

Seu corpo balançou quando puxou a anágua sobre a cabeça. Ela tropeçou no caminho,rezando para que o guarda pensasse que estava bêbada. As mãos dela bateram na madeira sólidada porta, empurrando-a para dentro. Girando e a trancando.

Vá para a cama. Não lhes dê um motivo para suspeitar.Vá para a cama.Vá para a...

8

AREN

AREN GUARDOU A PEDRA DE AMOLAR QUE ESTAVA USANDO PARA AFIAR A LÂMINA DE UMA FACA,olhando para as profundezas da selva que cercava sua casa. Embora cem sons emanassem dasárvores - o fluxo de água, os chamados dos animais, o zumbido dos insetos - a ilha pareciaquieta. Serena. Pacífica.

Um corpo quente e peludo esfregou em seu braço, e Aren estendeu a mão para atingir asorelhas de Vitex, o grande gato ronronando contente até que algo nos arbustos chamou suaatenção. Havia uma mulher correndo e, mesmo agora, Aren viu seus olhos amarelos observando-a por baixo de uma folha grande.

— Quer ir buscá-la? — ele perguntou ao seu gato.Vitex apenas sentou-se e bocejou. — Bom plano. Deixe ela vir até você. — Aren riu. —

Deixe-me saber como isso funciona para você.Atrás deles, havia o som de botas contra o mármore e a porta se abrindo. A irmã dele piscou

quando saiu.— Você está em melhor forma do que eu pensava — disse ele secamente.Ahnna franziu o cenho para ele, usando um pé para empurrar o gato para dentro para poder

fechar a porta. — Por que isso?— Porque a quantidade de vinho que você deve ter consumido para desmaiar à mesa

provavelmente significa que minha adega está vazia.— Bom Deus, eu bebi tanto assim?— Se a conversa que ouvi vindo da cozinha é verdade. — Pegando o arco, Aren se levantou

de onde estava sentado no degrau da frente, batendo a ponta da arma no dedo do pé. — Eli eLara arrastaram você de volta para o seu quarto.

Passando a mão sobre os olhos, Ahnna balançou a cabeça como se quisesse clareá-la. — Eulembro de conversar com ela e depois… — Ela balançou a cabeça novamente. — Desculpe. Edesculpe que estou atrasada. Eu dormi como um cadáver.

Ele também, o que era estranho, já que tinha sido uma noite limpa. Sem uma tempestade paraproteger as costas de Ithicana, Aren normalmente se agitava e se revirava na metade da noite. Eleteria se atrasado ao levantar se o maldito gato não o tivesse acordado.

— Bom dia, crianças.Aren se virou para ver Jor aparecer através da névoa, com um pãozinho que ele claramente

retirara da cozinha em uma mão.O homem mais velho deu um aceno a Aren. — Você está muito bem descansado para um

homem que acabou de se casar.

Ahnna gargalhou. — Eu não acho que teve muita companhia ontem à noite. Ou qualquernoite.

— Já irritou a nova esposa?Aren ignorou a pergunta, uma visão de Lara de pé ao lado de sua cama nadando em seus

pensamentos, seu corpo nu tão coordenadamente perfeito que deveria ter sido um sonho. O gostode seus lábios, a sensação de sua pele sedosa sob as mãos dele, o som de sua respiração irregularcom desejo. Tudo tinha sido tão vívido, mas sua memória parou por aí.

Definitivamente um sonho.Puxando uma folha de papel dobrada do bolso, Aren entregou a Ahnna. — Suas ordens de

marcha para Southwatch.Ela desdobrou, os olhos correndo sobre os termos comerciais revisados com Maridrina, as

sobrancelhas franzindo com o aborrecimento renovado.— Vou com você até o acampamento — disse ele. — Eu preciso de um mensageiro para

levar a Northwatch a cópia deles. Maridrina já enviou compradores pela ponte com ouro. Elesvão querer começar. — Para Jor, disse — Quem a está vigiando?

— Lia.— Bom. Mantenha-a aqui. Não espero que Lara cause nenhum problema, mas...Jor tossiu. — Sobre Lara. Aster está aqui. Ele quer uma palavra.— Ele está no acampamento?— Na água.— Claro que ele está. — O comandante da guarnição de Kestark - ao sul de Midwatch - era

membro da velha guarda. Ele foi nomeado perto do fim da vida do avô de Aren, e a mãe de Arenhavia passado quase todo o seu Reinado procurando uma razão legítima para substituí-lo, semsucesso. O velho bastardo se apegou à tradição Ithicana como uma craca a um barco, e, Aren nãodeixou de notar que, de todos os comandantes da guarda, Aster era o único que não tinhaparticipado de seu casamento. — Suponho que não devemos deixá-lo esperando.

A névoa pairava no ar como um grande cobertor cinza, reduzindo o sol a uma esfera de pratae tornando impossível ver mais de algumas dezenas de passos em qualquer direção. Na enseada,o guarda-costas de Ahnna esperava por ela, assim como os seus, homens e mulheressilenciosamente empurrando sua embarcação para a água. Ahnna se juntou a ele em um dosnavios de Midwatch.

O ar estava calmo, sem brisa para encher a vela, e o ruído da corrente subindo de ondebloqueava a entrada da enseada parecia uma violação vulgar do silêncio. Os remos mergulhavamdentro e fora da água enquanto o grupo passava por perigos à espreita, a poucos metros abaixo dasuperfície, movendo-se ao ar livre e em direção à sombra da ponte.

— Aren.Virando-se para olhar para a irmã gêmea, Aren seguiu o olhar dela para a água, onde avistou

uma enorme forma nadando embaixo deles. O tubarão era mais comprido do que o barco em queestava sentado - e mais do que capaz de destruí-lo, caso tivesse vontade - mas não era por issoque Ahnna havia apontado o predador. Sua chegada anunciava uma calmaria nos Mares deTempestade, e não demoraria muito para que as águas de Ithicana estivessem vermelhas desangue.

Sua espinha formigou e Aren pegou uma luneta, observando os arredores, seus esforçosencontrando nada além de cinza. Uma coisa boa, porque escondia as idas e vindas de seu povo,mas também servia ao inimigo.

— Está semanas adiantando. Nana ainda não falou do final da temporada. — Mas, apesar de

todas as palavras de Ahnna, ele notou que a mão dela havia caído em direção a arma presa nacintura, os olhos atentos. — Eu preciso voltar para Southwatch.

Através da névoa, uma embarcação começou a aparecer. Aster - sempre a favor dosimbolismo aberto - optou por esperar diretamente embaixo da ponte.

— Vossa Excelência. — O homem mais velho estendeu a mão para juntar os dois barcos. —Estou aliviado em vê-lo bem.

— Você estava esperando o contrário? — Os navios balançaram quando seus guardastrocaram de lugar com o comandante, dando aos três um pouco de privacidade.

— Dado o que você trouxe para sua casa, sim.— Ela é pouco mais que uma garota, sozinha e à nossa mercê. Eu acho que posso me

controlar.— Até uma criança pode colocar veneno em um copo. E os Maridrinianos são conhecidos

por isso.— Fique tranquilo, Aster, minha vida não corre perigo por Lara. Silas Veliant não é bobo -

ele sabe que ter sua filha me assassinando só lhe custaria seu novo acordo comercial comIthicana.

— Lara. — Aster cuspiu na água. — Eu posso ouvir na sua voz que ela já está cavando suasgarras. Você deve saber que há uma razão pela qual eles enviaram uma mulher tão bonita quantoela.

— Como você saberia como ela é, comandante? — Ahnna interrompeu. — Eu não te vi nocasamento, embora suponha que seja possível que estivesse se escondendo nos fundos.

Aren mordeu a língua. O comandante de Kestark era pequeno para um Ithicano, e ele nãogostava de ser lembrado disso.

— Eu ouvi como ela é. — O olhar de Aster era tão morto quanto o do tubarão nadando láembaixo enquanto os observava. — Eu não participei porque não apoiei sua escolha em tomá-lacomo sua esposa.

Ele não estava sozinho nisso. Muitos, especialmente a geração mais velha, protestaramveementemente contra o sindicato. — Então por que você está aqui agora?

— Para lhe dar um conselho, Vossa Excelência. Leve a menina Maridriniana até a água eafogue-a. Segure-a até que você esteja bem e com certeza ela esteja morta, depois alimente o marcom seu cadáver.

Por um momento, ninguém falou.— Inocente. Essa é uma palavra. — Aster fez uma careta, lançando seu olhar para a ponte

acima deles antes de voltar para Aren. — Eu esqueço como você é jovem, Vossa Excelência.Você era apenas um garoto mantido em segurança em Eranahl na última vez que fomos à guerracom Maridrina. Você não lutou nas batalhas em que jogaram toda a frota contra nós, bloqueandoSouthwatch e o comércio enquanto todo o nosso povo passava fome. Você não estava lá quandoSilas Veliant percebeu que não podia vencer à força e se vingou nas ilhas periféricas, seussoldados matando famílias e amarrando seus corpos para que os pássaros se alimentassem.

Aren não tinha idade suficiente para lutar, mas isso não significava que não se lembrava decomo seus pais estavam desesperados quando propuseram o tratado a Maridrina e Harendell. —Tivemos quinze anos de paz com eles, Aster. Quinze anos em que Silas não levantou a mãocontra Ithicana.

— Ele ainda é o mesmo homem! — Aster rugiu. — E você levou uma de suas filhas para acama! Eu te tolerei em muitas coisas, Aren Kertell, mas não até agora, em que eu te achei umtolo.

Ahnna tinha uma faca na mão, mas Aren sacudiu a cabeça com um aviso. Ele passou o anopassado sendo pressionado e questionado por seus comandantes da guarda e levaria mais do quealguns insultos para quebrar seu temperamento. — Eu sei, assim como qualquer pessoa, que tipode homem Silas Veliant é, comandante. Mas esse tratado nos comprou paz e estabilidade comMaridrina, e não farei nada para prejudicar isso.

Aren esperou que o outro homem se acomodasse, depois continuou. — Enquanto o resto domundo avança, Ithicana definha. Nossa única indústria é a ponte e a luta para mantê-la. Nós nãocultivamos nada. Nós não criamos nada. Não sabemos nada além de guerra e sobrevivência.Nossos filhos crescem aprendendo centenas de maneiras de matar um homem, mas mal sãoalfabetizados o suficiente para escrever seus próprios nomes. E isso não é bom o suficiente.

Aster o encarou, tendo ouvido esse discurso antes. Mas Aren repetiria isso mil vezes se erapreciso para homens como Aster aceitarem a mudança que Ithicana precisava.

— Precisamos de alianças - verdadeiras alianças. Alianças que vão além de pedaços de papelassinados por Reis. Alianças que permitirão ao nosso povo oportunidades além da espada.

— Você é um sonhador, assim como sua mãe. — Aster levantou a mão, sinalizando para osoutros barcos retornarem. — E é um futuro bonito que você imagina, eu lhe darei isso, VossaExcelência. Mas não é o futuro de Ithicana.

Os barcos bateram juntos, e o comandante pulou entre eles, instalando-se entre seus guardas.— E para que seu sonho não se transforme em nosso pesadelo, faça-nos um favor, VossaExcelência, e mantenha essa mulher trancada.

9

LARA

LARA DORMIU MELHOR DO QUE EM UM BOM TEMPO, EM PARTE DEVIDO AOS NARCÓTICOS E EM

outra parte devido ao silêncio. O sono dela durante a viagem por Maridrina era constantementeinterrompido pelo ruído do ambiente. Soldados, servos, cavalos, camelos… Mas aqui haviaapenas os sons fracos de pássaros cantando nas árvores do pátio.

Foi pacífico.Mas essa sensação de paz era uma capa que escondia a violenta verdade deste lugar. E a

violenta verdade de si mesma.Vestindo-se silenciosamente, Lara se aventurou na direção da sala de jantar. Ela se preparou

para a possibilidade de que Aren se lembrasse do que aconteceu em seu quarto na noite passada.Que perceberia que ela o drogou e sua missão terminaria antes mesmo de começar.

A mesa estava carregada com bandejas de frutas e carnes fatiadas, iogurte cremoso epequenos doces salpicados de canela e noz-moscada. Mas seus olhos eram todos para a vistaatravés das enormes janelas. Embora fosse tarde da manhã, a luz do sol era ofuscada por umfiltro de nuvens, tornando-o mais brilhante que o crepúsculo. No entanto, revelou o que aescuridão da noite anterior havia escondido: a selva perigosa, as árvores altas, a folhagemembaixo tão densa que era impenetrável, toda coberta de névoa.

— Onde está Vossa Majestade? — ela perguntou a Eli, esperando que ele não notasse a corque surgiu em suas bochechas. As circunstâncias haviam saído de seu controle na noite anterior.De mais de uma maneira.

A criada mais velha lançou um olhar penetrante para Eli. — Vossa Majestade se levantoucedo. Ele foi com a comandante para garantir que os novos termos comerciais com Maridrinafossem transmitidos para os mercados Northwatch e Southwatch.

Graças a Deus. Ela não tinha certeza se estava pronta para ficar cara a cara com ele. Nãodepois das coisas que haviam feito, ele lembrando delas ou não. Lara deu um aceno morto àmulher, esperando que isso escondesse seu desconforto. — Os novos termos comerciais serãouma dádiva de Deus para minha terra natal. Somente o bem pode vir disso.

Uma sombra parecia passar sobre o olhar da empregada mais velha, mas ela apenas inclinoua cabeça. — Assim você diz, minha senhora.

— Qual é o seu nome? Eu conheci Eli e gostaria de conhecer melhor o resto de vocês.— É Clara, minha senhora. Eli é meu sobrinho e minha irmã, Moryn, é a cozinheira.— São só vocês três? — Lara perguntou, lembrando-se da legião de servos que

acompanhavam sua festa desde os arredores do Deserto Vermelho até Ithicana.Um sorriso lento apareceu no rosto de Clara. — Vossa Majestade costuma ficar na

companhia de seus soldados, e não nesta casa. Embora eu espere que sua presença mude isso,minha senhora.

Havia um leve brilho nos olhos da criada que aqueceu as bochechas de Lara. — Você sabequando ele voltará?

— Ele não disse, minha senhora.— Entendo. — Lara permitiu que uma pitada de decepção entrasse em sua voz.A satisfação a encheu quando o rosto da mulher se suavizou. — Ele fica ocupado durante a

maioria dos dias, mas seu estômago o traz para jantar em casa, se nada mais o traz.— Sou proibida de ir em algum lugar?— A casa é sua, minha senhora. Sua Majestade pediu que se sentisse confortável.— Obrigada. — Lara então os deixou para limpar a mesa quando começou sua expedição

pela casa.Além de seus quartos e de Aren, havia outros quatro quartos, a sala de jantar, a cozinha e os

aposentos dos empregados. Toda a parte de trás da casa estava cheia de cadeiras estofadas, umavariedade de jogos nas mesas e paredes cheias de livros. Ela queria pegá-los, mas apenas passouum dedo pelas lombadas antes de seguir em frente. Todos os quartos estavam cheios de janelas,mas a vista era a mesma de todos: a selva. Bonito, mas totalmente desprovido de civilização.Talvez seja assim que Ithicana seja, pensou Lara. A ponte, a selva e pouco mais.

Ou talvez seja apenas o que eles queiram que ela pense.Retirando-se para seus quartos, examinou a seleção de roupas Ithicanianas no guarda roupa,

escolhendo uma calça e uma túnica que deixava os braços nus, bem como um par de botas decouro duras, e depois caminhou pelo corredor e saiu pela porta da casa da frente.

Teste seus limites de uma maneira que não os faça suspeitar de suas capacidades, Serininstruiu silenciosamente. Eles esperam que você seja ignorante, desamparada e indulgente.Capitalize seus erros.

Já pensando que poderia ser seguida, Lara começou a andar. Havia um caminho que levavapara cima, mas optou por seguir a primavera, sabendo que acabaria por levá-la ao mar.

Foi apenas uma questão de minutos até que ela ouviu o passo fraco de alguém andando atrásdela. O estalo de um galho. Um suave respingo de água. Quem quer que fosse, tinha a discriçãode um caçador, mas ela aprendeu a dizer a diferença entre a areia se movendo com o vento e aque se movia sob o peso de um homem, então capturar os sons errantes de perseguição nessaselva não era nada para ela.

Observando os sinais de várias armadilhas na selva, Lara continuou a seguir o riacho, logo seviu encharcada de chuva e suor, a umidade do ar fazendo-a sentir como se estivesse respirandoágua, mas ainda assim não viu ponte nem praia. Seu seguidor também não fez nenhummovimento para interferir.

Apoiou a mão no tronco de uma árvore e fingiu cansaço enquanto olhava para cima, tentandoe não conseguindo penetrar na copa e na névoa.

Serin explicou em detalhes do que sabiam sobre a ponte. Que a maioria dos píeres eramtorres naturais de rocha projetando-se para fora do mar, mantendo os vãos muitas vezes anoventa ou sessenta metros acima da água. Havia apenas algumas ilhas nas quais a pontedesembarcava e essas eram defendidas por todo o tipo de mecanismo projetados para afundarnavios. O seu objetivo principal era descobrir como os Ithicanianos acessavam a ponte ao longode sua extensão, mas ela precisava encontrar essa primeiro.

O riacho estava descendo uma ladeira cada vez mais íngreme, a água agora fria derramandosobre bordas em pequenas cachoeiras, enchendo o ar com um rugido suave. Segurando em

trepadeiras e apoiando-se nas rochas, Lara desceu, já temendo a dor da subida de volta.Então a bota dela escorregou.O mundo virou de lado, um borrão verde quando ela caiu, seu cotovelo batendo

dolorosamente contra uma rocha. Então estava caindo.Lara gritou uma vez, agitando os braços enquanto lutava para agarrar uma videira. Ela bateu

em uma piscina de água, a força expulsando o ar de dentro de seus pulmões. A água fechou sobresua cabeça, bolhas escorrendo de sua boca quando chutou e bateu os braços. Suas botas bateramno fundo e ela dobrou os joelhos para começar a nadar quando...

Encontrou-se com água apenas até a cintura.— Inferno — rosnou Lara, caminhando até a beira da água. Mas antes de chegar à praia, um

sibilo chamou sua atenção.Congelando onde estava, Lara examinou o ambiente, os olhos pousando na cobra marrom e

preta se movendo furiosamente no mato. A criatura era maior do que a menina e estava presaentre ela e a parede do penhasco. A garota deu um passo hesitante de volta para a água, mas seumovimento parecia agitar a criatura. Foi isso que conseguiu por não atender ao aviso de Eli.

Foi preciso muito autocontrole para não alcançar uma das facas presas à cintura, suas orelhasescutaram o som de botas e um juramento murmurado baixinho. Jogar facas era suaespecialidade, mas seu seguidor estava no topo do penhasco e a última coisa que precisava eraser vista usando uma de suas armas.

A cobra se levantou, com a cabeça e olhos em sua altura. Sibilando. Brava. Pronta paraatacar. Lara respirava com firmeza. Dentro e fora. Vamos lá, quem quer que você seja, elaresmungou silenciosamente. Lide com essa criatura agora.

A cobra balançava de um lado para o outro, e os nervos de Lara começaram a se desgastar. Amão dela se fechou sobre a faca, o dedo dela abriu o punho removível da faca de arremesso.

A cobra se lançou.Um arco estremeceu, uma flecha preta e esticada acertando a cabeça da criatura no chão. Seu

corpo se debateu violentamente, depois ficou imóvel. Lara se virou.Aren se ajoelhou na beira da cachoeira que ela caiu tão graciosamente, com um arco na mão,

uma aljava cheia de flechas espreitando sobre seus ombros largos. Ele se endireitou. — Temosum problema com cobra em Ithicana. Não é tão ruim nesta ilha em particular, mas — ele pulouda margem, aterrissando quase sem som ao lado dela — se ela a tivesse picado, você nãodemoraria muito para partir deste mundo.

Lara olhou para a cobra morta e seu corpo estremeceu. Apesar de tudo, ela se encolheu etentou esconder o movimento com uma pergunta. — Como você pode dizer que é fêmea?

— Tamanho. Os machos não ficam tão grandes assim. — Agachado, ele arrancou a flecha docrânio do animal. Limpando o sangue e pedaços de escama da ponta da flecha, que era de trêsgumes, ao contrário das pontas farpadas dos Maridrinianos, ele voltou seu olhar sombrio paraLara. — Você deveria ficar em casa.

Ela abriu a boca, prestes a dizer a ele que não havia recebido tal instrução, quando eleacrescentou — Não se faça de boba. Você sabia o que Clara quis dizer.

Ela mordeu o interior da bochecha. — Eu não ligo por estar confinada.Ele bufou, depois colocou a flecha limpa de volta na aljava. — Eu pensei que você estaria

acostumada com isso.— Estou acostumada com isso. Mas isso não significa que eu tenha que gostar.— Você foi trancada naquele complexo do deserto para sua própria segurança. Considere

minhas motivações para mantê-la confinada aqui da mesma maneira. Ithicana é perigosa.

Primeiro que a ilha inteira está presa. Segundo que você não andará dois passos sem passar poralgum tipo de criatura capaz de colocá-la em seu túmulo. E terceiro que uma princesinha mimadacomo você não sabe as regras básicas de se cuidar.

Lara rangeu os dentes. Levou cada grama de controle em seu corpo para não dizer a ele oquão errado estava nessa conta.

— Dito isso, você chegou mais longe do que eu esperava — refletiu Aren, os olhospercorrendo o corpo dela, suas roupas molhadas e grudadas na pele. — O que eles mantinhamvocê e suas irmãs fazendo naquele complexo? Correr em círculos e limpando areia?

Era uma pergunta inevitável. Embora seu corpo fosse pequeno, ele estava composto com osmúsculos magros de inúmeras horas de treinamento - o corpo dela não era o da maioria dasnobres Maridrinianas. — Viver no deserto é difícil. E meu pai me queria preparada para o...vigor da vida em Ithicana.

— Ah. — Ele sorriu. — Que pena que ele também não preparou você para a vida na selva.— Estendendo a mão com o arco, ele jogou a ponta dele sobre o ombro dela e, pelo canto doolho, Lara observou uma forma negra navegar pelo ar.

Uma aranha do tamanho da palma da mão pousou na terra antes de se arrastar para assombras. Ela assistiu com interesse, imaginando se era venenosa. — Não é pior que osescorpiões do deserto vermelho.

— Talvez não. Mas suspeito que o Deserto Vermelho não esteja cheio deles. — Pegandouma pedra, ele a lançou uns doze metros para a esquerda.

Houve um estalo alto e uma tábua coberta de estacas de madeira se levantou do chão.Qualquer um que acionasse o dispositivo se veria com meia dúzia de buracos no corpo, dacintura para baixo. Ela viu o orvalho se agarrando ao fio de um arame uma dúzia de passos atrás,mas, na verdade, isso a pegaria no escuro. — Você deve ter vencido o concurso de quem é omachão — disse ela de uma maneira que implicava que ele realmente não tinha. — Vamoscontinuar?

Em vez de retroceder com uma resposta espirituosa, Aren se aproximou, sua mão sefechando no pulso dela. Lara deveria ter recuado, mas, em vez disso, congelou, lembrando asensação daquela mão em seu corpo nu, os movimentos suaves para cima e para baixo em suacoxa.

Ela começou a se afastar, mas ele girou o braço dela, franzindo a testa para o corte raso nocotovelo. Alcançando a bolsa em seu cinto, ele extraiu uma pequena lata de pomada e um rolo decurativo e começou a cuidar da lesão com as mãos experientes. Os músculos de seus antebraçosse flexionaram sob o aço e o couro das braçadeiras dobradas ao redor deles. Tão perto, elaganhou uma nova apreciação pelo quanto ele era maior do que ela, com a cabeça e os ombrosmais altos e facilmente com o dobro do seu peso. Tudo isso massa magra e músculos.

Mas Erik, seu mestre de armas, era tão grande quanto ele, e treinou Lara e suas irmãs comolutar contra aqueles que eram maiores e mais fortes. Quando Aren terminou de enfaixar o braço,ela imaginou onde atacaria. Para o arco do pé ou do joelho. Faca para abrir as tripas. Outra nagarganta antes que tivesse a chance de controlá-la.

Ele amarrou o curativo. — Desisti de muita coisa para esse acordo com seu pai e tudo o querecebi em troca, além da promessa de paz contínua, foi você. Então você vai me desculpar pornão querer vê-la morta nos primeiros dias da sua chegada.

— E, no entanto, você obviamente estava contente em me permitir passear por suas selvasperigosas.

— Eu queria ver onde você iria.— Apontando para que o seguisse, Aren se moveu através da

folhagem que cobria o chão da floresta, fazendo um uso mínimo do facão brilhante que elesegurava em uma mão. — Você estava tentando escapar?

— Fugir para onde? — Ela se forçou a aceitar o braço dele enquanto ele a guiava sobre umaárvore caída. — Meu pai me mataria por desonrá-lo se eu voltasse para Maridrina, e não possuohabilidades que me permitam sobreviver sozinha em outro lugar. Quer eu queira ou não, Ithicanaé onde tenho que ficar.

Ele riu baixinho. — Pelo menos você é honesta.Lara conteve sua própria risada. Ela era muitas coisas, mas honesta não era uma delas.— Então o que você estava fazendo aqui fora?Guarde as mentiras para necessidades. — Eu queria ver a ponte.Aren parou, virando-se para dar-lhe um olhar afiado. — Por quê?Ela encontrou seu olhar sem vacilar. — Eu queria ver a parte da arquitetura que valia os

direitos do meu corpo. Minha lealdade. Minha vida.Ele recuou como se ela tivesse lhe dado um tapa. — Os direitos dessas coisas são seus, não

do seu pai.Não era o que ela esperava que ele dissesse. Mas, em vez de aliviar sua apreensão sobre esse

aspecto específico de sua missão, fez sua pele queimar quente com uma raiva que não conseguiaexplicar direito, então apenas deu um breve aceno de cabeça. — Se você diz.

Cortando uma videira fora do caminho com o facão, Aren subiu uma ladeira íngreme, semesperar para ver se ela o seguia. — Você estava indo na direção errada, a propósito. Agora tenteme acompanhar. Há apenas uma breve janela na qual você poderá ver a ponte através da névoa.

Eles subiram, principalmente por uma trilha estreita, durante a qual não disseram umapalavra um para o outro. Não havia nada a ser visto, além de uma selva sem fim, e Lara estavacomeçando a acreditar que Aren estava brincando com ela quando ele entrou em uma clareiracontendo uma torre de pedra.

Inclinando o rosto para o céu, ela deixou a chuva interminável lavar o suor do rosto,observando as nuvens girarem e rodopiarem pelos ventos que não rompiam a copa das árvores.

Aren apontou para a torre. — A quebra na cobertura de nuvens será breve nesta época doano.

A torre cheirava a terra e bolor, as escadas de pedra circulando para cima, desgastadas nocentro por incontáveis passos. Eles chegaram ao topo - um pequeno espaço vazio aberto portodos os lados, revelando uma selva enevoada em todas as direções. A vigia estava no ápice deuma pequena montanha, percebeu, e ela mal conseguia distinguir o mar cinzento abaixo. Nãohavia praia. Nenhum píer. E o mais importante, nenhuma ponte maldita.

— Onde é?— Paciência. — Aren apoiou os cotovelos na parede de pedra emoldurando o espaço.Mais curiosa do que irritada, Lara foi ficar ao lado dele, observando as árvores, as nuvens e o

mar, mas sua atenção foi atraída para ele. Ele cheirava a couro úmido e aço, a terra e a folhas,mas, por baixo disso, o nariz dela sentiu o cheiro de sabão e algo distintamente, e nãodesagradável, masculino. Então uma rajada de vento rugiu através da torre, afugentando todos osaromas, exceto o do céu e da chuva.

As nuvens se abriram com uma velocidade incrível, o sol queimando sobre elas com umaintensidade que ela não sentia desde que deixara o deserto, transformando as faixas de verdedesbotado em uma esmeralda tão vibrante que quase machucava seus olhos. A névoa correu como vento, deixando para trás um céu safira. Foi-se a ilha misteriosa, e o que foi deixado em seulugar era toda cor e luz brilhantes. Mas não importava como procurasse, ela não conseguia ver

nada remotamente parecido com uma ponte.Uma risada divertida encheu seus ouvidos quando as pontas dos dedos pegaram seu queixo,

gentilmente erguendo o rosto. — Olhe mais para longe — disse Aren, e os olhos de Lara forampara o mar agora azul-turquesa.

O que ela viu a deixou sem fôlego.

1 0

LARA

TODAS AS DESCRIÇÕES DADAS A ELA DURANTE O TREINAMENTO ERAM NADA EM COMPARAÇÃO COM

a realidade. Não era uma ponte. Era A Ponte, pois não havia nada que se comparasse a ela nomundo.

Como uma grande serpente cinza, a ponte serpenteava até onde os olhos podiam ver,juntando-se aos continentes. Ela repousava em cima de uma torre cárstica naturalmente formadaque parecia ter sido colocada pela mão de Deus para esse fim, desafiando o Mar de Tempestadeque batia contra seus pés. Ocasionalmente, seu comprimento cinza flutuava sobre as ilhasmaiores, repousando sobre grossas colunas de pedra construídas por mãos antigas. A ponte erauma façanha da arquitetura que desafiava a razão. Isso desafiava a lógica. Por todos os direitos,isso nem deveria existir.

E era exatamente por isso que todo mundo a queria.Desviando os olhos da ponte, Lara olhou para Aren cujo olhar estava fixo na estrutura de

pedra. Embora devesse ter visto todos os dias de sua vida, ele ainda exalava um sentimento deadmiração, como se também não pudesse compreender sua existência.

Antes que ela pudesse desviar o olhar, ele virou a cabeça e seus olhos se encontraram. À luzdo sol, ela viu que os olhos dele não eram pretos, mas castanhos, o marrom manchado de verdeesmeralda que espelhava seu Reino. — Ver isso reforça seu senso de auto-valor?

Sua pele queimava quente, e ela se virou, precisando se mover. — Eu não sou umamercadoria.

Ele respirou fundo. — Não é isso que significa. A ponte é… Para Ithicana, é tudo. E Ithicanaé tudo para mim.

Assim como Maridrina era tudo para ela.— É... impressionante. — Uma palavra fraca para a estrutura antiga.— Lara — Pelo canto do olho, ela o viu alcançá-la, depois retirou a mão como se ele

pensasse melhor em tocá-la. — Eu sei que você não escolheu estar aqui.Ele passou a mão pelos cabelos, as bochechas contraídas como se estivesse lutando por

palavras, e o coração dela começou a bater com força antecipando o que ele diria. — Quero quevocê saiba que não precisa fazer nada que não queira. Que isso... isto é o que você quer que seja.Ou não quer que seja.

— O que é isto para você?— O tratado significa paz entre Ithicana e Maridrina. Significa vidas salvas. Talvez um dia

signifique o fim da violência em nossos litorais.— Eu não acho que estávamos falando sobre o tratado. — Ela pretendia entender o que

motivava esse homem, o que incluía seus desejos.Aren hesitou. — Espero que nosso casamento seja o primeiro passo para um futuro em que a

vida de meu povo não esteja ligada a esse antigo pedaço de pedra.A declaração era tão contraditória com o que ele havia dito sobre a ponte ser tudo, que Lara

abriu a boca para pedir que ele explicasse, mas ela foi interrompida pelo som de uma trombeta aolonge. Ela tocou uma música e repetiu duas vezes. Aren xingou após o primeiro som, com a mãoalcançando a grande luneta montada no centro da torre de vigia. Ele procurou pela água, soltandouma série de maldições quando avistou o que estava procurando.

— O que é isso?— Invasores. — Ele se jogou nas escadas, depois se segurou no batente da porta,

interrompendo o progresso. — Fique aqui, Lara. Somente... não se mexa. Vou mandar alguémpara você.

Ela começou a discutir, mas ele já tinha saído. Inclinando-se sobre a borda da torre, o viu sairda base, correr pela clareira e desaparecer de vista.

Ficando na ponta dos pés, Lara espiou pela luneta. Demorou um momento, mas elafinalmente viu o navio passando sob a ponte em direção a Midwatch, com o convés repleto dehomens armados em uniformes, a bandeira Amaridiana voando no mastro. Uma embarcaçãonaval. E não, acreditando nas palavras de Aren, uma que havia chegado em paz.

Um estalo alto dividiu o ar. Lara observou como um projétil rasgava o cordame, um mastrose estilhaçando e tombando de lado. Ele caiu, velas e cordas pegando as pontas de metalcolocados na base de um dos pilares da ponte. O navio tombou, derramando incontáveis homensna água. Outro barulho ecoou em sua posição, e um buraco apareceu no casco. Um buraco quedesapareceu rapidamente quando o navio afundou na água.

Com as mãos congeladas na luneta, Lara prendeu a respiração quando violentas barragens demunição destruíram metodicamente o navio enquanto os que ainda estavam a bordo subiam maisalto ou nadavam em direção à costa, barbatanas circulando-os ameaçadores, sem segurança aoalcance. Enquanto ela observava, um dos marinheiros foi empurrado para baixo e seu sanguecorreu frio quando uma nuvem de vermelho floresceu onde ele estivera. Depois disso, foi umfrenesi, os tubarões atacando um após o outro, a água agora mais vermelha que azul.

Movendo a luneta para onde a ilha encontrava o mar, ela procurou qualquer sinal deIthicanos, ansiosos para ver suas defesas em ação. Mas o ângulo era ruim, a selva obscurecia suavisão do que estava acontecendo na beira da água.

Essa poderia ser sua única chance de ver como os Ithicanos repeliam os invasores por dentro,e ela estava perdendo por causa de um ponto de vista ruim.

Lara se viu correndo. Desceu as escadas e entrou na clareira, seus olhos treinados nocaminho que Aren havia tomado, confiando que isso a levaria aonde ela precisava ir. A selva nãopassava de um borrão de verde enquanto corria, o ar úmido pesado em seus pulmões enquantoela pulava sobre rochas, deslizava na lama, recuperava o equilíbrio e continuava andando. Aágua não estava longe e estava em declive.

O caminho irrompeu ao ar livre, cortando a beira de um penhasco. Muito abaixo, o oceanobatia contra a rocha pura. Ela virou uma curva, encontrando-se no topo de uma encosta íngreme.Lara parou, escondendo-se atrás de uma pedra.

Ela viu uma enseada que não tinha podido ver da torre de vigia. Com uma praia de areiabranca e águas azul-turquesa, ela estava escondida do oceano por falésias rochosas, a aberturapara o mar era uma lacuna quase pequena demais para um pequeno barco. O espaço estavaatualmente bloqueado por uma corrente pesada conectada a edifícios de pedra de cada lado.

A praia estava cheia de soldados. O olhar de Lara foi para os estranhos barcos parados naareia, que não mostravam sinais de ir a lugar algum, antes de desviar a atenção para os Ithicanosque estavam no alto dos penhascos com vista para o mar, a forma alta de Aren entre eles.

Franzindo a testa, Lara olhou ao redor da pedra, tentando determinar onde estava localizada acatapulta que os Ithicanos haviam usado contra o navio, quando ouviu cascalho solto deslizandopelo caminho atrás dela. Então uma voz: — ...dificilmente vale as pedras que atiramos neles. Umvento forte colocaria esse pedaço decrépito de merda no fundo do mar.

Com o coração disparado, Lara procurou uma maneira de escapar, mas a praia estava cheiade soldados, à esquerda havia um emaranhado de trepadeiras, e à direita havia um abismo nasrochas irregulares que se projetavam no oceano. A única maneira de evitar ser pega espionandoera a frente.

Saindo do esconderijo, Lara desceu a encosta íngreme e entrou na praia, ignorando asexpressões assustadas dos soldados.

Um homem levou os dedos aos lábios e deu um assobio agudo, fazendo com que os queestavam nos penhascos - incluindo Aren - se virassem. Ele não estava tão distante, entãoconseguiu distinguir a surpresa e a subsequente irritação que cruzou o seu rosto.

Antes que os soldados pudessem detê-la, Lara circulou a enseada, subindo os degrausesculpidos na rocha que dava acesso ao penhasco com vista para o mar. Aren a encontrou notopo, claramente não inclinado a permitir que ela observasse o que estava acontecendo. — Eudisse para você ficar na torre, Lara.

— Eu sei, eu... — Ela fingiu perder o equilíbrio no degrau estreito, escondendo um sorrisoenquanto ele a segurava pelo braço, puxando-a para o topo da falésia e dando-lhe uma visão livreda ponte e do navio afundando ao lado dela. — O que está acontecendo?

— Não é da sua conta. Vá para a praia e alguém a levará de volta para casa. — Ele apontoupara um de seus soldados, e a mente de Lara correu, tentando entender por um motivo.

— Há homens se afogando! — Ela acenou para o soldado tentando pegar seu braço. — Porque você não os está ajudando?

— Esses são assaltantes. — Aren empurrou a luneta que estava segurando em sua mão. —Vê a bandeira? Esse é um navio Amaridiano. Eles estavam tentando encontrar um caminho paraa ponte sob a cobertura do nevoeiro.

— Eles podem ser comerciantes.— Eles não são. Olhe para a ponte. Vê as linhas penduradas?Através da luneta, Lara fingiu olhar para os homens pendurados em cordas quando realmente

estava examinando a estrutura em si, procurando por aberturas. Este era um ponto de vista queninguém, exceto os Ithicanos, tinha, e era possível que ela aprendesse algo valioso. Mas Arenarrancou a luneta da mão antes que pudesse obter mais do que um rápido olhar.

— Este é um ato de guerra contra nós, Lara. Eles merecem o que recebem.— Ninguém merece isso — respondeu ela, e embora sua reação tenha sido um ato, seu

estômago ainda torceu quando as ondas atingiram o navio, engolindo os destroços inteiros.Todos os Amaridianos estavam na água agora, alguns tentando alcançar as cordas pendentes,outros nadando na direção da ilha em que ela estava. — Ajude-os.

— Não.— Então eu vou. — Ela se virou, ansiosa para usar uma demonstração dramática de empatia

para olhar mais de perto a pequena embarcação na praia, apenas para se encontrar cara a caracom três soldados de Aren. — Deixem-me passar.

Nenhum deles se mexeu, mas também não pegaram suas armas. Lara olhou por cima do

ombro, observando as estruturas gêmeas de pedra com portas sólidas e sem janelas, queprotegiam o mecanismo de elevação da corrente. Ela suspeitava que eles sempre estivessemguardados. No entanto, seus olhos foram atraídos de sua avaliação para o punhado demarinheiros que, contra todas as probabilidades, estavam ao alcance da brecha que levava àenseada. Mas vários deles estavam se debatendo, as ondas pesadas caíam sobre suas cabeças.

— Por favor. — Lara não deveria se importar se os Amaridianos viviam ou morriam, mas eladescobriu que sim, o tremor em sua voz era genuíno ao dizer: — Isso é crueldade.

O rosto de Aren estava escuro de raiva. — Crueldade é o que esses homens teriam feito como meu povo se conseguissem superar nossas defesas. Ithicana nunca pediu isso. Nós nuncainvadimos suas terras. Nunca matamos seus filhos por esporte. — Ele apontou o dedo para osmarinheiros, e a bile subiu na garganta de Lara quando outro foi empurrado sob as ondas, a águaespumando de vermelho quando o tubarão o despedaçou. — Eles trouxeram guerra para nós.

— Se você deixá-los morrer, você se mostrará melhor? — Restavam apenas três marinheiros,e eles estavam perto. Porém barbatanas se arrastavam ao redor deles. — Mostre um pouco depiedade.

— Você quer piedade? — Aren girou nos calcanhares, estendendo a mão na aljava enquantose virava. Três manchas borradas de preto e os marinheiros restantes afundaram sob as ondas.Ele girou de volta para encará-la, os nós dos dedos brancos onde eles agarraram seu arco.

Lara caiu de joelhos, fechando os olhos e fingindo angústia, enquanto procurava seu própriofoco interior. Ithicana estava mostrando suas cores verdadeiras. Pátios não pacíficos e fontestermais calmantes, mas violência e crueldade. E Aren era seu mestre.

Mas ela seria sua desgraça.— Espere os ventos morrerem, depois tire os que estão pendurados na rocha — ordenou

Aren a seus soldados. — A última coisa que precisamos é que um deles encontre o caminho namaré baixa. — Então as botas passaram por ela e desceu os degraus da praia escondida.

Lara ficou onde estava, sorrindo interiormente, enquanto os Ithicanos davam a ela e seuultraje moral um amplo espaço, enquanto considerava as palavras de Aren: um caminho para amaré baixa. Para onde, era a pergunta. Na enseada? Ou ele estava se referindo a um prêmiomuito maior?

Os ventos morreram, o sol recuou atrás de outro banco de nuvens e as chuvas voltaram,molhando-a até os ossos. Mas ela não se mexeu. Em um silêncio estóico, ela assistiu os soldadosempurrarem os barcos para a água, navegarem sob a ponte e atirarem metodicamente nosmarinheiros que haviam conseguido se agarrar às cordas durante todo o calvário, seus corpossem vida caindo no oceano abaixo.

Ela não disse nada quando retornaram, apenas marcou a rota sinuosa que tomaram, que eramuito proposital para não ter um modelo, a necessidade revelada à medida que as marés seinvertiam, as águas fugindo para revelar as armadilhas mortais sob a superfície. Agulhões de açoe pedras irregulares, todos destinados a destruir qualquer embarcação que se aproxima, semsaber o caminho correto.

A maré atingiu seu ponto mais baixo, e Lara começou a subir, convencida de que tinha vistotudo o que havia para ver. Então uma sombra na base do píer da ponte mais próxima chamou suaatenção. Não, não é uma sombra. Uma abertura.

Seu coração acelerou, e foi difícil manter um sorriso no rosto enquanto a alegria a enchia. Elaencontrou um caminho para a ponte.

1 1

AREN

— A RAINHA DE AMARID DEVE ESTAR REALMENTE DESESPERADA POR TER UMA TRIPULAÇÃO EM

seus navios com pessoas desse tipo. — Gorrick virou o cadáver que havia sido puxado dooceano, o sangue escorrendo para a areia branca. Faltava uma perna, cortesia de um dos tubarõesde Ithicana. Também faltava o polegar esquerdo, mas os tubarões não tinham culpa. Pois o dígitoque faltava, combinado com a marca nas costas da mão, indicava que esse homem havia passadoalgum tempo em uma das prisões de Amarid por roubo.

Ajoelhado, Aren examinou o uniforme puído do soldado morto, os cotovelos gastos nos doisbraços. — Todos são condenados, você disse?

— Todos aqueles que pudemos conferir.De pé, Aren franziu o cenho para as águas cobertas de névoa da enseada. A frota Amaridiana

conhecia bem os destruidores de navios de Midwatch, mas a embarcação navegou em direção aesses, tornando-os alvos fáceis. Talvez um navio antigo com uma tripulação de condenados fossetudo o que a Rainha Amarid estava disposta a arriscar no final da temporada de tempestades, masainda assim... Qual era o objetivo?

Aren voltou-se para Gorrick. — Escreva um relatório e envie-o aos comandantes das guardasde Watch, informando-os de que os ataques chegaram mais cedo. — Então ele caminhou apassos largos em direção ao acampamento, sem nenhum interesse em voltar para sua casa.

— Sua esposa já foi atrás de você, Vossa Excelência? — Jor estava deitado ao lado do fogo, umlivro em uma mão. — Ela não parecia muito satisfeita com a forma de misericórdia Ithicana.

Ela não tinha ficado.Lara sentou-se e ficou emburrada na beira do penhasco até ele se perguntar se precisava

arranjar alguém para arrastá-la de volta para casa. Então, de repente, ela se levantou, trotoudescendo os degraus da praia e passou por ele sem dizer uma palavra, os guardas que colocoupara vigiá-la pareciam que prefeririam estar nadando com tubarões do que vigiando sua novaRainha. Cerca de uma hora depois, Eli havia chegado com uma carta escrita por Lara ao pai e,agora, com os comentários de Aster frescos em seus ouvidos, Aren estava pensando se deveriaenviá-la ou não.

— Eu duvido que ela tenha visto muita violência antes. — Aren foi em direção a sua camaantes de pensar melhor e se sentar ao lado do velho soldado. — Leia isso.

Pegando a carta de Lara, o homem mais velho leu e depois deu de ombros. — Parece-meuma prova de vida.

Aren estava inclinado a concordar. A carta dizia pouco mais do que ela estava bem, estavasendo tratada com gentileza, juntamente com uma longa descrição de sua casa, com grandeênfase nas fontes termais. Mesmo assim, ele a leu várias vezes procurando por código, sem tercerteza se estava feliz ou desapontado quando não encontrou nenhum.

— Interessante que ela não menciona você. Eu acho que você terá uma cama fria no seufuturo.

Aren bufou, os restos embaçados do sonho que ele teve de Lara em seu quarto, em sua cama,em seus braços, passando por seus pensamentos. — Ela parece ter problemas em ser o preço dotratado.

— Talvez ela estivesse esperando um marido mais bonito. Algumas pessoas lidam mal com adecepção.

Aren levantou uma sobrancelha. — Essa é provavelmente a única coisa que não foidecepcionante para ela.

Jor balançou a cabeça. — Talvez ela não goste de bastardos arrogantes.— Ouvi dizer que existem Reinos onde as pessoas mostram um pouco de respeito por seus

monarcas.— Eu posso respeitá-lo e ainda acho que sua merda fede tanto quanto a do próximo.Revirando os olhos, Aren aceitou a caneca que Lia, uma de seus guardas de honra, passou

para ele, sorrindo até ela dizer — Você está apenas chateado que o Rei Rato de Maridrina lheenviou uma garota com uma opinião, em vez de uma idiota sem cérebro que faria — ela fez umgesto vulgar, — sem questionar.

— Como você, Lia? — Jor disse com uma piscadela, rindo enquanto jogava o conteúdo desua caneca para ele. Aren pegou a carta da mão do homem antes que pudesse sofrer mais danos.

— Você realmente não pretende enviá-la, não é? — Jor perguntou.— Eu disse a ela que sim. Além disso, se Silas está querendo uma prova que está viva, é

melhor satisfazê-lo. A última coisa que precisamos é dar a ele uma desculpa para procurá-la.— Mentira. Podemos conseguir um falsificador para continuar a correspondência.— Não. — Os olhos de Aren flutuaram através das linhas de escrita pura. — Vou mandá-la

ou dizer a ela que decidi não mandar. Existe alguma coisa aqui que precisamos nos preocuparcom que Magpie leia?

Jor pegou de volta, lendo mais uma vez, e, não pela primeira vez, Aren amaldiçoou ternascido alguns minutos antes de Ahnna. Aqueles poucos minutos condenáveis que o fizeram Reie seu comandante, quando ele daria qualquer coisa para que seus papéis fossem revertidos. Eleera adequado para lutar e caçar e sentar-se ao redor do fogo, fazendo piadas ruins com outrossoldados. Não por política e diplomacia e por ter toda a droga do seu Reino dependendo de suasescolhas.

“— Pela descrição de sua casa chique, eles podem adivinhar que ela está na Midwatch comvocê. Eles perceberão pelos detalhes dela sobre a selva que estamos concedendo a ela algumaliberdade para se movimentar. Falando nisso, — Jor levantou a cabeça — o que ela estavafazendo correndo pela ilha? Ela veio da mesma direção que você, que não era a casa...

Aren havia chegado à casa pouco antes de Lara partir em sua exploração não autorizada dailha e, em vez de ter Lia a impedindo, ele decidiu ver para onde sua esposa pretendia ir. — Elaestava vagando.

As sobrancelhas de Jor se levantaram. — Com qual propósito?

— Procurando a ponte.Todos os olhos na sala comunal se viraram para olhá-lo, e Aren fez uma careta. — Foi mera

curiosidade... — Ele não sabia exatamente por que estava defendendo Lara, apenas que as coisasque ela disse a ele haviam tocado uma ferida. Tinha sido tão fácil se concentrar nos sacrifíciosque ele estava fazendo como parte deste casamento que não parou para pensar no que issocustara a ela. Do que isso continuaria custando a ela. Exatamente pelas mesmas coisas que elequeria proteger Ahnna e por que pagaria uma fortuna a Harendell em vez de forçar sua irmã a umcasamento que ela não queria. — Quase foi picada por uma cobra, então espero que ela não voltea vagar tão cedo.

— Eu não ficaria tão confiante com isso — disse Lia. — Quando a bloqueamos dos barcos,ela parecia pronta para me dar um soco no rosto. Ela pode não ser uma guerreira, mas não écovarde.

— Estou inclinado a concordar — disse Jor. — Eu vou ter alguns guardas extras postadospara ficar de olho nela quando você não estiver por perto.

Aren assentiu lentamente. — Envie a carta a Southwatch para Ahnna e nossos decifradoresde código olharem e pedirem a um falsificador para transcrevê-la em um papel novo. Então enviepara Maridrina. — Seu povo conhecia todos os códigos de Magpie. Se ela estivesse usando um,eles descobririam.

— Você acha que ela é uma espiã?Expirando fundo, Aren considerou sua nova esposa, que não era nada do que ele esperava.

Os Reis Maridrinianos usavam suas filhas como moeda de troca, maneiras de garantir alianças efavores dentro e fora do Reino. Lara e todas as suas irmãs tinham sido criadas sabendo que umcasamento arranjado com ele - ou com outra pessoa - fazia parte do futuro delas. Elas tinhamsido treinadas para cumprir seu dever como esposa, independentemente das circunstâncias.

No entanto, Lara havia deixado claro que o tratado garantia sua presença em Ithicana, nãoseu cumprimento como esposa, e ele respeitava isso. Todas as mulheres que compartilharam suacama tinham feito isso porque queriam, e a ideia de passar a vida com uma mulher que estava láapenas por dever era desagradável. Ele preferiria uma cama fria. — Vou dar-lhe algum espaço.Eu acho que se ela foi enviada aqui para espionar, ela virá até mim em busca de informações. OsMaridrinianos não são conhecidos por sua paciência.

— E se ela o procurar? — Jor perguntou.— Pensarei nisso quando o dia chegar.— E se ela não procurar?De certa forma, se Lara era, de fato, uma garota inocente que foi enviada para garantir um

tratado de paz, isso tornava a tarefa de Aren mais difícil do que se a expusessem como espiã.Porque ele tinha sua própria agenda quando se tratava de sua esposa Maridriniana, e ele não iriamuito longe se ela odiasse suas entranhas. — Eu vou conquistá-la, suponho.

A bebida de Lia espirrou entre seus lábios. — Boa sorte com isso, Vossa Excelência.Ele deu um sorriso preguiçoso. — Eu conquistei você.Lia deu a ele um olhar que implicava que era a criatura mais estúpida a andar na terra. — Ela

e eu não somos iguais.No entanto, não achou isso até que Lara continuou a dar os ombros para ele por uma noite,

depois uma semana, depois duas, que ele, então, começou a pensar que talvez Lia estivesse certa.

1 2

LARA

AS SEMANAS APÓS O NAUFRÁGIO E O MASSACRE NA PRAIA PASSARAM SEM INCIDENTES. AREN

levantava-se ao amanhecer e não voltava até tarde da noite, mas ele não a deixou sozinha.Sabendo da exploração não autorizada de Lara a ilha, os criados a vigiavam, Clara sempreparecendo espanar ou esfregar nas proximidades, o cheiro da essência de polimento de madeiraimpregnado em seu nariz. Embora, na verdade, as tempestades que passaram fizeram mais doque os servos ou guardas jamais puderam fazer para manter Lara em casa. Ventos violentos,raios e um dilúvio incessante de chuva eram ocorrências regulares. Moryn, a cozinheira, disse aela que esses eram os últimos suspiros da temporada e nada em comparação com os tufões quetestemunharia quando a próxima temporada chegasse.

Embora estivesse desesperada para dar uma nova olhada na abertura do píer, Lara,propositalmente, não fez nada para chamar atenção, usando esse tempo para procurardiscretamente na casa por alguma pista que pudesse ajudar no planejamento da invasão deIthicana por Maridrina. Os mapas eram seu objetivo principal e a única coisa que ela nãoconseguia encontrar. Serin tinha inúmeros documentos detalhando as ilhas que compunham oReino, nas quais sempre se desenhava uma longa linha representando a ponte, mas nenhuma comdetalhes. Lara agora via por si mesma - era quase impossível se infiltrar no Reino devido à faltade praias, agravadas pelas defesas na água, que os Ithicanos pareciam capazes de mudar eredesenhar à vontade.

O outro mistério era onde os próprios habitantes da ilha residiam. Nenhuma civilizaçãogrande o suficiente jamais foi vista no mar, e os desembarques e ataques bem-sucedidos falavamapenas de pequenas aldeias, levando Serin e seu pai a acreditar que a população é pequena,violenta e não civilizada, dedicada às necessidades básicas, a defesa cruel de sua ponte e poucomais que isso. Mas, embora ela só estivesse em Ithicana há pouco tempo, Lara não estavainclinada a concordar com essa avaliação.

Foi o que Aren disse a ela na torre. A Ponte... Para Ithicana, é tudo. E Ithicana é tudo paramim.

O tom em sua voz mostrou sentimento genuíno. Havia civis aqui. Os civis que Arenacreditava precisarem de proteção, e todo o seu treinamento dizia que eles seriam a maiorfraqueza de Ithicana. Ela só precisa determinar onde eles estavam e como explorar esseconhecimento. Depois, passar isso para Maridrina.

Ela já havia enviado sua primeira carta ao pai, uma carta sem códigos cuidadosamenteelaborada para garantir que não dava motivo para os Ithicanos deterem-na. Um teste para ver seAren permitiria que ela se correspondesse antes que tentasse a tarefa mais arriscada de conseguir

informações que passassem por decodificadores em Southwatch.A prova de que Aren tinha sido fiel à sua palavra veio na resposta do pai dela. E a carta foi

entregue por ninguém menos que o próprio Rei Aren.Ela o viu chegando em casa pela janela, encharcado pela chuva mais recente, e não pela

primeira vez, imaginou o que ele faria durante seus dias. Na maioria das vezes ele voltavamolhado, lamacento e com cheiro de suor, o rosto sombreado de cansaço. Parte dela queria seaproximar dele - temia que tivesse errado sua estratégia de ganhar sua confiança e o haviaalienado completamente. Mas outra parte disse a ela que tinha feito a escolha certa em forçá-lo aprocurá-la.

— Isso chegou em Southwatch para você. — Ele deixou cair os papéis dobrados no colodela. Ele tinha tomado banho e estava vestido com roupas secas agora, mas a exaustãopermanecia.

— Você leu, eu presumo. — Ela desdobrou a carta, notando a imitação de Serin do roteiro deseu pai e sentindo a mais leve pontada de decepção. É claro que foi ele quem escreveu. Eleconhecia os códigos, não o pai dela. Ela deixou de lado, não querendo ler ainda.

— Você sabe que sim. E para poupar o problema, meus decifradores de códigos traduziram opéssimo código com destreza. A transcrição está na parte de trás. Desta vez, deixarei isso passarporque não veio de você, mas não haverá segundas chances.

Tanta coisa para o código inquebrável de Marylyn. Folheando a página, ela leu em voz alta:— Aliviado por você estar bem, querida filha. Envie uma mensagem se você for maltratada, enós atacaremos de volta

Aren bufou.— O que você esperava? Que ele me casaria com você e não se importaria com o que

acontecesse comigo?— Mais ou menos. Ele conseguiu o que queria.— Bem, agora você sabe de outra forma. — E agora ela sabia que obter informações de

Ithicana seria tão desafiador quanto previsto — Talvez você mesmo envie uma carta paratranquilizá-lo de suas boas intenções.

— Não tenho tempo para manter uma correspondência casual com seu pai, ou — ele pegou acarta — com Magpie, a julgar pela caligrafia.

Caramba, os Ithicanos eram bons. Lara desviou o olhar. — Seu tempo é claramenteprecioso. Por favor, continue o que for que você tenha que fazer

Ele começou a se virar, depois hesitou e, pelo canto do olho, ela o viu avistar o baralho decartas que deixara empilhado na mesa. — Você joga?

Uma mistura de nervos e excitação a encheu, a mesma sensação que teve antes de entrar nopátio de treinamento para lutar. Esse era um tipo diferente de batalha, mas isso não significavaque ela não venceria.

— Claro que eu jogo.Ele hesitou e perguntou: — Você ligaria de jogar?Dando de ombros, ela pegou o baralho e habilmente o embaralhou, as cartas fazendo sons

agudos em suas mãos. — Deseja mesmo jogar comigo, Majestade? Devo te avisar, sou muitoboa.

— Um dos seus muitos talentos?O coração de Lara pulou e se perguntou se ele lembrava mais do encontro íntimo do que ela

imaginava. No entanto, ele apenas a olhou por um momento, depois sentou-se em frente a ela,apoiando um pé no joelho. — Você tem alguma moeda para apostar ou estou arriscando meu

dinheiro dos dois lados da aposta?Ela deu um sorriso frio. — Escolha outra forma de aposta.— Que tal verdades?Lara levantou uma sobrancelha. — Isso é um jogo de criança. O que devemos fazer depois?

Apostar um com o outro de correr sem roupa pela casa?A nudez estava mais de acordo com o que pensou que ele sugeriria. As cartas eram um

truque de sedução que Mezat, sua Senhora do Quarto, tinha ensinado às irmãs. Todos os homens,ela lhes dissera, estavam felizes em arriscar suas próprias roupas pela chance de ver seios nus.Exceto, ao que parece, o Rei de Ithicana.

— Podemos salvar as corridas nuas para a temporada de tempestades. É muito maisemocionante se houver um raio cortando sua bunda.

Balançando a cabeça, Lara embaralhou as cartas novamente. — Poker? — Melhor escolherum jogo em que ela não perderia.

— Que tal Trunfo?— Mais sorte do que habilidade nesse jogo.— Eu sei. — A maneira como ele disse foi como um desafio. E para melhor ou pior, ela

nunca recusou um desafio, então deu de ombros. — Como você quiser. Para cada nove?— Entediante. Que tal uma verdade para cada vitória?Sua mente correu com perguntas que ela poderia perguntar. Com perguntas que ele poderia

perguntar, e as respostas que ela daria.Chegando ao canto da mesa, Aren pegou uma garrafa de licor de cor âmbar, tomou um gole

na boca da garrafa e depois a colocou entre eles. — Para tornar as coisas mais divertidas.Uma das sobrancelhas dela se levantou. — Tem copos na mesa de canto, não sei se você

sabe.— Menos trabalho para Eli dessa maneira.Revirando os olhos, ela tomou um gole. O conhaque, como era para ser, ardeu como fogo por

sua garganta. Então ela deu as cartas, xingando silenciosamente quando ele teve o trunfo. —Então?

Pegando a garrafa, Aren a olhou pensativamente e o coração de Lara começou a martelar.Havia mil coisas que ele poderia perguntar, pelas quais ela não tinha resposta. Pelo qual teria quementir, e depois manter viva essa mentira pelo tempo que passasse aqui. E quanto mais mentirasela tinha para manter, maior a chance de ser pega.

— Qual é — ele tomou um gole — sua cor favorita?Lara piscou, seu coração saltitando e depois se acalmando, enquanto olhava para longe dos

olhos castanhos do Rei, sentindo o calor subir por suas bochechas. — Verde.— Excelente. Tem bastante por aqui, então não preciso moldar seus favores com esmeraldas.Dando uma risada suave com diversão, Lara entregou as cartas, que ele rapidamente

embaralhou e depois distribuiu.Ela venceu a próxima rodada.— Eu não vou fazer perguntas sem sentido — ela alertou, pegando a garrafa dele. Suas

perguntas precisavam ser estratégicas - não destinadas a descobrir os segredos da ponte, mas aentender o homem que guardava esses segredos tão perto de seu coração. — Você teve prazerem matar aqueles invasores? Ao vê-los morrer?

Aren estremeceu. — Ainda está brava com isso, então?— Duas semanas não é tempo suficiente para eu esquecer o massacre a sangue frio de um

navio cheio de homens.

— Suponho que não. — Aren recostou-se na cadeira, os olhos distantes. — Prazer. — Eledisse a palavra como se estivesse provando, experimentando e depois balançou a cabeça. — Não,não prazer. Mas há uma certa satisfação em vê-los morrer.

Lara não disse nada, e seu silêncio foi recompensado um momento depois.— Eu servi no Midwatch desde os quinze anos. Comando desde os dezenove anos. Nos

últimos dez anos, perdi a noção do número de batalhas que lutei contra invasores. Mas lembro-me de todas as treze vezes que chegamos tarde demais. Quando chegamos ao nosso povo, depoisque os atacantes já tinham chegado a esses. Famílias abatidas. E para quê? Peixe? Eles não têmnada que valha a pena levar. Então eles tiram suas vidas.

Lara apertou as palmas das mãos nas saias, suor molhando a seda. — Por que eles fazemisso, então?

— Eles acham que podem aprender a entrar na ponte através deles. Mas os civis não usam aponte. Eles não conhecem seus segredos. Você pensaria que depois de todos esses anos nossosinimigos teriam descoberto isso. Talvez eles tenham. — O rosto dele se contorceu. — Talvezapenas os matam por prazer.

Os dedos dele roçaram os dela quando passou pelo mesa, quentes contra a pele gelada dela.Aren venceu a próxima rodada.

— Já que estamos fazendo perguntas difíceis... — Ele bateu um dedo no queixo. — Qual é asua pior lembrança?

Ela tinha cem piores lembranças. Mil. De abandonar suas irmãs ao fogo e à areia. De Erik, ohomem que tinha sido como um pai para ela, tirando a própria vida na frente dela porqueacreditava que ela matara suas próprias irmãs. De ficar sozinha em uma cova no chão porsemanas. De estar morrendo de fome. De ser espancada. De ter que lutar por sua vida, enquantoseus mestres lhe diziam que era para fazê-la forte. Para ensiná-la a suportar. Fazemos isso paraprotegê-la, eles disseram a ela e a suas irmãs. Se você precisa de alguém para odiar, alguémpara culpar, olhe para Ithicana. Para o seu Rei. Se não fosse por eles, se não fosse por ele, nadadisso seria necessário. Derrube-os, e nenhuma garota maridriniana jamais sofrerá assimnovamente.

As lembranças provocaram algo profundo dentro dela, um surto irracional de raiva, fúria emedo. Um ódio por esse lugar. Um ódio ainda mais profundo pelo homem sentado à sua frente.

Lentamente, empurrou as emoções profundamente dentro dela, mas quando ela levantou acabeça, Lara pôde dizer que Aren tinha visto tudo isso exposto em seu rosto.

Dê a ele uma verdade.— Nasci no harém em Vencia. Eu morava lá com minha mãe entre todas as outras esposas e

filhos mais novos. Depois que o tratado foi assinado, meu pai levou todas as crianças do sexofeminino com idade apropriada para o complexo para a proteção delas - para a nossa - deValcotta e Amarid e qualquer outra pessoa que tentasse atrapalhar a aliança. Eu tinha cinco anosde idade. — Ela engoliu em seco, a visão da lembrança difusa, mas os sons e cheiros vivos comose tivesse acontecido ontem. — Não houve aviso. Eu estava brincando quando os soldados meagarraram e me lembro de chutar e gritar quando eles me arrastaram para longe. Eles cheiravamhorrivelmente - como suor e vinho. Lembro-me de mais homens segurando minha mãe no chão.Ela lutando, tentando chegar até mim. Tentando impedi-los de me levar. — Os olhos de Laraarderam e ela afugentou as lágrimas com um grande gole de conhaque. Depois outro. — Eununca mais a vi.

— Eu já não gostava do seu pai antes — disse Aren calmamente. — Muito menos agora.— A pior parte é... — Ela parou, olhando para o interior de suas pálpebras, tentando

encontrar o que estava procurando. — É que não consigo me lembrar do rosto dela. Se euencontrasse ela pela rua, não tenho certeza se saberia quem seria.

— Você saberia.Lara mordeu o interior de suas bochechas, odiando que ele, de todas as pessoas, dissesse algo

que lhe traria conforto. É por causa dele que você foi tirada de sua mãe. É culpa dele. Ele é oinimigo. O inimigo. O inimigo.

Uma batida soou alto contra a porta, e Lara pulou, arrancada de seus pensamentos pelainterrupção.

— Entre — disse Aren, e a porta se abriu para revelar uma bela jovem cheia de armas. Seuslongos cabelos negros estavam raspados nas laterais, o resto preso em um rabo de cavalo no topode sua cabeça - um estilo que parecia ser o preferido das guerreiras - e seus olhos eram de umcinza pálido. Meia cabeça mais alta que Lara, seus braços nus eram sólidos com músculos, suapele marcada com cicatrizes antigas.

— Essa é Lia. Ela faz parte da minha guarda. Lia, essa é Lara. Ela é...— Rainha. — A jovem inclinou a cabeça. — É uma honra conhecê-la, Vossa Excelência.Lara inclinou a cabeça, curiosa sobre as guerreiras de Ithicana. Seu pai havia dito a Lara e

suas irmãs que elas seriam subestimadas porque eram mulheres, mas as mulheres aqui pareciamser tão respeitadas quanto qualquer homem.

Lia voltou sua atenção para o Rei e entregava-lhe um pedaço de papel dobrado. — Atemporada foi declarada encerrada.

— Eu ouvi as cornetas. Duas semanas antes do ano passado.Lara pegou sua própria carta, esperando que eles dissessem mais se acreditassem que estava

distraída. Serin havia escrito sobre seu irmão mais velho, Rask, que era herdeiro. Aparentemente,ele lutou com sucesso em algum torneio, e o Magpie descreveu os eventos com detalhes vívidos.Não que ela se importasse, nunca tendo tido nada a ver com o irmão. Os decodificadores deIthicana haviam circulado as letras que formavam o código, não seu código, ela percebeu, ocódigo de Marylyn. Relendo o documento, de olho no código que sua irmã mais velha haviacriado, Lara conteve um sorriso ao ver os padrões circulados. Aparentemente, os Ithicanos eramfalhos, afinal.

O sorriso escondido dela desapareceu quando analisou o código. Maridrina recebendoapenas produtos podres. Grãos de moldagem. Gado doente. Navios Valcoticanos partindo comos porões cheios de mercadorias melhores.

Serin havia explicado os novos termos comerciais que haviam sido negociados como partedo tratado. A retirada dos impostos sobre as mercadorias que Maridrina compraria emNorthwatch, que depois seriam enviadas para Southwatch sem pedágio. Ao todo, era um bomnegócio para Maridrina e uma grande concessão para Ithicana. A menos que alguém considerecolocar todo o risco de deterioração das mercadorias durante o transporte nos ombros deMaridrina. Se o grão comprado em Northwatch apodrecia antes de chegar a Southwatch, era aperda de Maridrina e não era problema de Ithicana. E quem imaginaria que Maridrina iriareceber as piores mercadorias quando era Ithicana quem estava coordenando o transporte. Aspáginas amassaram-se levemente sob o aperto de Lara, e desviou os olhos da escrita ao ouvirAren dizer — Não posso contornar o pedido dela, suponho.

Lia concordou, depois inclinou a cabeça. — Vou deixar você com isso.Lara observou a outra mulher sair, lutando para dominar sua expressão. A mensagem de

Serin não a surpreendeu, mas ainda era irritante saber que o homem sentado calmamente diantede suas cartas de baralho estava conscientemente fazendo escolhas para prejudicar seu povo.

Cartas estalaram contra a mesa. Outra mão. Outra verdade.Pegando-as, Lara olhou para a mão, sabendo que eles já estavam levemente bêbados e que

ela deveria pensar em uma pergunta que lhe valesse alguma coisa. Mas quando ganhou, apergunta que saiu foi algo diferente. — Como seus pais morreram?

Aren ficou rígido, depois passou a mão pelos cabelos. Estendendo a mão, ele puxou a garrafada mão dela, virando-a.

Lara esperou. Nas pesquisas fracassadas dos mapas, ela encontrou outras coisas. Coisaspessoais. Desenhos do Rei e da Rainha anteriores, a semelhança entre Aren e Ahnna e sua lindamãe era marcante. Ela também encontrou uma caixa cheia de souvenires que apenas uma mãeguardaria. Dentes de leite em uma jarra. Retratos. Notas escritas em letras infantis. Havia,também, esculturas grosseiras, com o nome de Aren riscado no fundo. Uma família muitodiferente da dela.

— Eles se afogaram em uma tempestade — respondeu simplesmente. — Ou pelo menos elemorreu. Ela provavelmente já estava morta.

Havia mais nessa história, mas estava claro que ele não tinha intenção de compartilhá-la. Eque estava ficando sem paciência para este péssimo jogo de sorte. Mais cartas na mesa. Laravenceu novamente.

Você o provocou, ela disse a si mesma. Ele andou bebendo. Agora é a hora de forçar abarra.

— Como é dentro da ponte? — Os olhos dela saltaram das cartas, para a garrafa vazia, paraas mãos dele, que descansavam nos braços da cadeira. Fortes. Capazes. A sensação dessescorrendo pelo seu corpo dançava pela pele de Lara, o gosto da boca dele na dela, e ela empurrouos pensamentos para longe enquanto suas bochechas - e outras partes do corpo - esquentavam.

Os olhos do Rei se afiaram, a névoa de conhaque desapareceu. — Você não precisa sepreocupar com o que a ponte é ou não, pois nunca terá motivos para estar nela.

Aren se levantou. — Minha avó deseja conhecê-la, e não há como dizer não a ela. Iremosamanhã ao amanhecer. De barco. — Ele se inclinou, descansando as mãos nas laterais da cadeiradela, os músculos de seus braços destacando-se em um forte alívio. Invadindo seu espaço.Tentando intimidá-la da maneira que seu maldito Reino intimidava qualquer outro.

— Deixe-me esclarecer tudo, Lara. Ithicana não manteve a ponte revelando seus segredoscom uma garrafa de conhaque; portanto, se essa for sua intenção, você terá que ser mais criativa.Melhor ainda, salve-nos de todo o problema e esqueça que ela existe.

Lara recostou-se na cadeira, sem quebrar o contato visual. Com as duas mãos, ela levantou asaia do vestido, cada vez mais alto, até que suas coxas fossem reveladas, vendo a intensidade doolhar dele mudar para um alvo diferente. Erguendo uma perna, pressionou um pé nu contra opeito dele, observando os olhos dele correrem do joelho até a coxa até as roupas de baixo de sedaque ela usava por baixo.

— Que tal você pegar sua ponte — ela disse docemente — e enfiar na sua bunda. — Osolhos dele se arregalaram quando ela endireitou a perna, empurrando-o para fora de seu espaço.Pegando o livro, puxou a saia de volta ao lugar. — Vejo você amanhã bem cedo. Boa noite,Vossa Excelência.

Uma leve risada encheu seus ouvidos, mas ela se recusou a olhar para cima quando ele disse— Boa noite, Princesa — e saiu da sala.

1 3

AREN

VITEX ABRIU CAMINHO EM UM PADRÃO SERPENTEADO ENTRE OS TORNOZELOS DE AREN,ronronando enquanto parecia, aparentemente, não inclinado a desistir em sua busca de atenção,apesar do fato de que Aren o estava ignorando por pelo menos dez minutos.

A folha de papel quase em branco sobre a mesa o provocou, as bordas douradas brilhando àluz da lamparina. Ele chegou a escrever a saudação formal ao Rei Silas Veliant de Maridrina,mas nem uma palavra mais. Sua intenção era atender ao pedido de Lara e corresponder ao paidela, para garantir ao homem o bem-estar de sua filha. Mas agora, com a caneta na mão a pontode pingar nos caros artigos de papelaria, Aren se viu sem saber o que dizer.

Principalmente porque Lara permanecia um enigma. Ele tentou aprender mais sobre anatureza dela durante aquele terrível jogo de cartas e, depois de ouvir como ela havia sido tiradada mãe, ficou muito claro que se era uma espiã, não era por amor ao pai. Mas isso nãosignificava que ela era inocente. A lealdade, em certa medida, podia ser adquirida, e Silas tinhaos meios.

Irritado com a natureza circular de seus pensamentos, Aren jogou a caneta de lado. Pegandoa caixa de papelaria, ele puxou o lado falso para revelar a gaveta estreita projetada para esconderdocumentos de olhares indiscretos e empurrou a carta para o pai de Lara lá dentro. Elecompletaria quando tivesse mais certeza de que o bem-estar de Lara era algo que ele poderiagarantir.

Dando um tapinha na cabeça do gato, ela levou o animal até o outro lado da porta ecaminhou pelo corredor. Eli estava polindo talheres, mas ele olhou para a aproximação de Aren.— Indo para o acampamento, Vossa Excelência?

Era dolorosamente tentador fugir para o acampamento, onde ele podia sentar-se ao redor dofogo com seus soldados, beber e apostar satisfatoriamente, mas isso levantava questões sobre oporquê de não passar as noites com sua nova esposa. — Apenas um passeio até as falésias.

— Vou deixar uma lamparina acesa para você, Vossa Excelência. — O garoto voltou aotrabalho.

Abandonando uma lamparina, Aren andou pelo caminho estreito até um local onde rochasnuas pairavam sobre o mar. Ondas bateram contra a rocha negra dos penhascos abaixo, a águacorrendo enquanto recuava apenas para surgir novamente, batendo contra Midwatch como umimplacável e impenetrável martelo. Feroz, mas de alguma forma pacífica, o som embalando ossentidos de Aren enquanto encarava a escuridão sobre o mar.

Gemendo, ele relaxou, a água que acumulava nas rochas umedecia suas roupas enquantoolhava a noite, o céu uma colcha de retalhos de nuvens e estrelas, luz em nenhuma direção para

distrair o brilho. Seus cidadãos sabiam mais que isso, especialmente na meia-estação. Omomento do ano em que as tempestades deixam de proteger Ithicana, e seu Reino é forçado aconfiar em aço, inteligência e sigilo.

Isso mudaria alguma vez? Poderia mudar?Com o papel amassado contra seu peito, as páginas dobradas dentro do bolso da sua túnica, o

mesmo papel que o levou a procurar Lara hoje à noite. Eram ordens para matar.Duas meninas de quinze anos haviam roubado um barco em uma aparente tentativa de

escapar de Ithicana. Elas haviam planejado ir para o norte, até Harendell, de acordo com asinformações recolhidas de seus amigos.

A ordem de matar era para elas. A acusação: traição.Era proibido aos civis deixarem Ithicana. Somente espiões altamente treinados tinham o

direito de sair, e sempre na ordem de que, se fossem capturados, eles deveriam morrer com suaprópria espada antes de revelar os segredos de Ithicana. Somente os soldados em seu exércitosabiam todos os caminhos para entrar e sair da ponte, mas era impossível manter as defesas dailha dos civis que viviam neles, e todos sabiam sobre Eranahl. Foi por isso que qualquer civilpego tentando sair era açoitado. E quem conseguisse a tentativa era caçado.

E os caçadores de Ithicana sempre pegavam sua caça.Quinze. Aren cerrou os dentes, sentindo a bile subir por sua garganta. O relatório não

explicava por que as meninas haviam fugido. Não precisava. Aos quinze, elas foram designadaspara sua primeira guarnição. Seria a primeira guerra das marés, e elas não teriam escolha a nãoser lutar. E, em vez de lutarem, arriscaram suas vidas para fugir. Para encontrar outro caminho.Outra vida.

E ele deveria ordenar a execução delas pelo crime.Seus pais raramente brigavam, mas essa lei provocou gritos e portas batidas, sua mãe

passeava pelos aposentos com tanto fervor que ele e Ahnna ouviam com medo de um ataquedela, de seu coração parar, para nunca mais bater novamente. Fechando os olhos, ele ouviu o ecoda voz dela, gritando para o pai: — Estamos numa jaula, uma prisão de nossa própria autoria.Por que você não vê isso?

— É o que mantém nosso pessoal seguro — gritava seu pai. — Abaixe a guarda e Ithicanaestá acabada. Eles vão nos separar em sua luta para possuir a ponte.

— Você não sabe disso. Pode ser diferente, se ao menos tentássemos.— Os invasores que vêm todos os anos dizem o contrário, Delia. É assim que mantemos

Ithicana viva.E sempre, ela sussurrava: — Estar vivo não é viver. Eles merecem mais.Aren balançou a cabeça para afastar a memória. Exceto que ela apenas retrocedeu, contente

em assombrá-lo.Permitir que os civis viessem e partissem de Ithicana praticamente assegurava que todos os

segredos do Reino vazassem. Aren sabia disso. Mas se Ithicana tivesse fortes alianças comHarendell e Maridrina, as consequências desses vazamentos seriam muito mais palatáveis. Comas frotas desses dois Reinos apoiando a defesa da ponte, isso daria a alguns de seu povo a chancede seguir outros caminhos além da espada. Sair e estudar. Trazer esse conhecimento para casa ecompartilhá-lo. Isso significaria que ele não teria mais que assinar ordens de matar crianças.

Mas as gerações mais antigas foram inflexíveis contra essa mudança. Uma vida inteira deguerra os transformou contra forasteiros, os encheu de ódio. E os encheu de medo. Ele precisavade Lara para ajudá-lo a mudar isso, para fazê-los ver os Maridrinianos como amigos, não comoinimigos. Convencê-los a lutar por um futuro melhor, independentemente dos riscos.

Porque como estavam as coisas... Não poderia continuar para sempre.Puxando os papéis do bolso, Aren os despedaçou, permitindo que a brisa os levasse ao mar.Então houve uma comoção nos arbustos, e Aren estava de pé, com a lâmina na mão a tempo

de ver Eli irromper. O servo derrapou até parar, sem fôlego e disse — É a Rainha, VossaExcelência. Ela precisa da sua ajuda.

1 4

LARA

MÃOS SEGURAVAM SEUS PULSOS, PRENDENDO-OS À MESA. PANO COBRIA SEUS OLHOS. SEU NARIZ.Sua boca.

A água jorrava, uma torrente sem fim.Apenas para cessar.— Por que você foi enviada para Ithicana? — uma voz sussurrou em seu ouvido. — Qual é o

seu propósito? O que você quer?— Ser noiva. Para ser Rainha — ela engasgou, lutando contra as restrições. — Eu quero paz.— Mentirosa. — A voz enviou medo através dela. — Você é uma espiã.— Não.— Admita!— Não há nada a admitir.— Mentirosa!A água vazou e ela se afogou novamente. Incapaz de expressar a verdade para se salvar.

Incapaz de respirar.Havia areia sob os dedos, fria e seca. Ela não conseguia se mexer, os pulsos e tornozelos

amarrados à cintura. Amarrada como um porco.Escuridão.Ela rolou, colidindo com uma parede, mais areia caindo sobre a cabeça, arrastando os

cabelos. Para trás, o mesmo.Não há saída.Só para cima.Medo a paralisando, ela levantou a cabeça e viu figuras sem rosto a encarando.Tão longe. Com os pulsos amarrados com tanta força que a pele se soltou, não havia como

subir.— Por que você veio para Ithicana? Qual é o seu propósito? Você é uma espiã de seu pai?— Para ser Rainha. — Sua garganta ardia, tão seca. Com tanta sede. — Ser uma noiva da

paz. Eu não sou espiã.— Mentirosa.— Eu não sou.Areia a atingiu no rosto. Não apenas grãos minúsculos, mas pedaços de rocha que

machucaram e cortaram. Forçando-a a se encolher. Para rastejar. Onze pás atiraram areia nelapor todos os lados. Atingindo-a. Machucando-a. Enchendo o buraco.

Enterrando-a viva.

— Diga-nos a verdade!— Eu estou! — A areia estava no seu queixo.— Mentirosa!Ela não conseguia respirar.Ela estava sentada em uma cadeira, os pulsos amarrados. Suas unhas puxando e arranharam

as cordas, o sangue escorrendo pelas palmas das mãos. Tecido cobriu os olhos, mas podia sentiro calor das chamas.

— Eles farão pior com você em Ithicana, Lara — a voz de Serin soou em seu ouvido. —Muito pior. — Ele sussurrou os horrores, e ela gritou, precisando fugir. Precisando escapar.

— Piores coisas serão feitas para suas irmãs — ele cantou, tirando o capuz.Havia fogo em seus olhos. Queimando. Queimando. Queimando.— Você não vai tocar nas minhas irmãs — ela gritou. — Você não pode tê-las. Você não as

machucará.Exceto que era Marylyn segurando os carvões aos seus pés, não Serin. Sarhina, com lágrimas

escorrendo pelo rosto, quem apertou o nó.E foi Lara quem estava queimando. Seu cabelo. Suas roupas. Sua carne.Ela não conseguia respirar.Uma mão estava segurando-a, sacudindo-a. — Lara? Lara!Lara levantou a mão, segurando o punho da faca, lembrando-se a tempo de parar antes de

esfaquear Aren na cara.— Você estava tendo um pesadelo. Eli me buscou quando ouviram você gritando.Um pesadelo. Lara respirou fundo, cavando fundo em seu corpo por alguma aparência de

calma. Só então viu a porta pendurada torta em sua moldura, a trava em pedaços espalhados pelochão. Aren usava as mesmas roupas que anteriormente, com os cabelos úmidos e grudados natesta.

Desviando os olhos, Lara pegou um copo de água, com a boca amarga pelo excesso deconhaque. — Não me lembro de nada. — Uma mentira, dado o cheiro de cabelo queimado queainda enchia seu nariz. Pesadelos que não eram sonhos, mas lembranças de seu treinamento. Eladisse algo incriminador? Ele percebeu que estava pegando a faca debaixo do travesseiro?

Aren assentiu, mas sua testa franziu, sugerindo que ele não acreditava nela. Os lençóisencharcados de suor descolando de sua pele quando ela se inclinou para fora da cama paraencher seu copo com a jarra de água, sabendo que a camisola que usava mal cobria seus seios eesperando que o brilho da pele o distraísse.

— Quem fez isso com você?Lara congelou, certa por um momento que tinha gritado algo condenador enquanto estava

presa em seu estado de fuga. Seus olhos saltaram para a porta aberta, calculando suas chances deescapar, mas então os dedos do homem roçaram a pele de suas costas, seguindo um padrãofamiliar. Cicatrizes, nas quais sua irmã Sarhina esfregava óleo todas as noites durante anos, atéque desapareceram em finas linhas brancas.

— Quem fez isto? — O calor em sua voz fez sua pele formigar.Serin ordenou que fizessem isso depois que ela escapou do complexo e entrou no deserto

para assistir a uma das caravanas que passava, incontáveis camelos e homens carregados demercadorias para vender em Vencia. Por seus problemas, ela recebeu uma dúzia de chicotadas,Serin gritando o tempo todo que colocou tudo em risco. Lara nunca tinha entendidocompletamente por que ele estava tão bravo. Não havia chance da caravana avistá-la, e tudo oque ela queria era ver quais mercadorias carregavam.

— Meus professores foram rigorosos — ela murmurou. — Mas foi há muito tempo. Euquase esqueço que elas estão lá.

Em vez de apaziguá-lo, Aren apenas parecia ficar mais irritado. — Quem trata uma criançadessa maneira?

Lara abriu a boca, depois a fechou, nenhuma resposta boa vindo à mente. Todas as irmãssofreram espancamentos por infrações, embora nenhuma com a mesma frequência que ela. — Euera uma criança desobediente.

— E eles tentaram bater até arrancar esse traço? — Sua voz estava como gelo.Puxando o lençol para cobrir seu corpo, Lara não respondeu. Não confiava em si mesma.— Aconteça o que acontecer, ninguém levantará a mão a você. Você tem minha palavra. —

Levantando-se, ele pegou a lamparina. — O amanhecer está a apenas algumas horas de distância.Tente dormir um pouco. — Ele saiu da sala, fechando a porta quebrada atrás dele.

Lara estava deitada na cama, ouvindo o tamborilar suave da chuva contra a janela, aindasentindo o traço dos dedos de Aren em sua pele nua. Ainda ouvindo a obstinação em sua voz deque ela nunca se machucaria em Ithicana, uma promessa tão inteiramente em desacordo comtudo o que sabia sobre ele e seu Reino. A palavra dele significa merda, ela lembrou a si mesma.Ele deu sua palavra para permitir o livre comércio de Maridrina, e toda a terra natal dela nãoganhou nada além de carne podre.

Seu objetivo era a ponte. Encontrar um caminho para superar as defesas de Ithicana e entrarna estrutura cobiçada por todos. E hoje, Aren a estava levando em uma excursão ao seu Reino.Com sorte, ela veria como eles viajavam, onde e como lançavam seus barcos, onde seus civisestavam localizados. Era o primeiro passo para uma invasão bem-sucedida. O primeiro passo emdireção a Maridrina retornando à prosperidade.

Concentre-se nisso, ela disse a si mesma. Concentre-se no que isso significa para o seu povo.Mas nenhum número de respirações profundas aliviou o pulso rápido em sua garganta.

Levantando-se da cama, ela foi até a porta da antecâmara. Pulando, ela agarrou o batente, asunhas cravando na madeira enquanto se levantava e abaixava, os músculos nas costas e nosbraços flexionando e queimando enquanto repetia o movimento trinta vezes. Quarenta.Cinquenta. Imaginando suas irmãs fazendo flexões ao lado dela, incentivando uma a outraenquanto lutavam pela vitória.

Caindo no chão, Lara deitou-se no chão e passou a flexões, seus músculos do abdômenqueimando feito bestas enquanto fazia cem. Duzentas. Trezentas. O deserto vermelho era maisquente que Ithicana, mas a umidade aqui a matava. O suor escorria por sua pele enquanto elapassava de exercício para exercício, a dor fazendo mais do que qualquer meditação para afastarpensamentos indesejados.

Quando Clara bateu na porta com uma bandeja cheia de comida e uma xícara de caféfumegante, Lara estava faminta e incomodada se a criada notasse seu rosto vermelho e suasroupas suadas.

Tomando café, ela enfiou a comida mecanicamente na garganta, depois tomou banho antesde vestir as mesmas roupas que usara durante sua última caminhada pela floresta, incluindo aspesadas botas de couro. Ela amarrou as facas na cintura e moldou os cabelos em uma trançaapertada que pendia no centro das costas. A luz estava começando a brilhar nas pesadas cortinasda janela quando saiu do quarto.

Ela encontrou Eli varrendo o corredor. — Ele está esperando por você na frente, minhasenhora.

Aren estava realmente esperando, e Lara levou um momento para observá-lo através da

janela de vidro antes de tornar sua presença conhecida. Ele se sentou nos degraus, os cotovelosapoiados na pedra atrás dele, os músculos dos braços nus sob as mangas curtas da túnica, asbraçadeiras dobradas nos antebraços. O sol nascente, pela primeira vez não obscurecido pelasnuvens, cintilou no arsenal de armas amarradas à si, e Lara fez uma careta para o seu único parde facas, desejando que estivesse armada da mesma forma.

Empurrando a porta, Lara respirou fundo o ar úmido, provando o sal do mar na brisa suave echeirando a terra úmida. Uma névoa prateada flutuava pelo dossel da selva, o ar cheio dezumbidos de insetos, o canto de pássaros e os gritos de outras criaturas para as quais ela nãotinha nome.

Aren levantou-se sem reconhecer ela ou seu pesadelo, e ela seguiu alguns passos atrás parapoder observá-lo sem escrutínio enquanto desciam a trilha estreita e enlameada. Ele tinha umagraça predatória sobre si: um caçador, seus olhos percorrendo o chão, o dossel, o céu, o arcosegurando frouxamente na mão esquerda, em vez de pendurar por cima de um ombro, como ossoldados de seu pai os carregavam. Ele não seria pego de surpresa, e ela de braços cruzados seperguntou quão bom lutador ele era. Se, se tudo der certo, ela será capaz de superá-lo.

— Você sempre parece querer matar alguém — observou ele. — Possivelmente eu.Chutando uma pedra solta, Lara fez uma careta para o caminho lamacento. — Eu não tinha

percebido que a Rainha viúva ainda vivia. — De fato, ela tinha a impressão de que todos os querestavam da linhagem real eram o Rei e sua irmã.

— Ela não está viva. Nana é a mãe do meu pai. — Aren virou a cabeça quando algofarfalhou nos arbustos. — Minha mãe, Delia Kertell, nasceu na linhagem real. A família de meupai era de nascimento comum, mas ele subiu nos escalões militares e foi escolhido para se juntarà guarda de honra dela. Minha mãe gostava dele e decidiu se casar com ele. Minha avó... ela éuma curandeira, de algum renome. Embora outros possam usar palavras diferentes paradescrevê-la, minha irmã inclusa.

— E por que ela quer me ver exatamente?— Ela já viu você — disse ele.Lara estreitou os olhos.— Quando você veio pela primeira vez e ainda estava dormindo. Ela verificou se sua saúde

estava boa. O que ela quer, é conhecer você. Quanto ao porquê... Ela é intrometida e todos,inclusive eu, são aterrorizados demais para dizer não a ela.

A ideia de uma estranha inspecionando seu corpo enquanto ela estava inconsciente pareciaprofundamente invasiva. A pele de Lara se arrepiou, mas cobriu a reação com um encolher deombros. — Verificando se meu pai havia enviado uma garota cheia de varíola para enviá-lo aoseu túmulo?

Aren tropeçou e largou o arco, xingando quando se abaixou para recuperá-lo da lama.— Não é o método mais rápido de assassinato, mas eficaz, no entanto. — Ela acrescentou. —

E alguns podem dizer que a repugnância dos últimos anos, horas, dias da vítima valem a penaesperar.

Os olhos do Rei de Ithicana se arregalaram, mas ele se recuperou rapidamente. — Se é assimque você pretende me convencer, vai querer se mudar rapidamente. As pústulas e erupçõescutâneas reduzirão seu apelo, receio.

— Hmm. — Lara cantarolou, em seguida, bateu a língua contra os dentes em fingidadecepção. — Eu esperaria até que a demência assumisse o controle, para me poupar da memória.Mas é preciso fazer o que é necessário.

Ele riu, o som rico e cheio, e Lara se viu sorrindo. Eles fizeram uma curva e entraram em

uma clareira dominada por um grande edifício, um grupo de soldados Ithicanos perambulando àluz do sol.

— Quartel de Midwatch — disse Aren a título de explicação. — Esses doze são os meus -nossos - guardas de honra.

A estrutura de pedra era grande o suficiente para abrigar centenas de homens. — Quantossoldados estão aqui?

— O suficiente. — Ele caminhou pela clareira em direção aos que os esperavam.— Majestades — disse um deles, curvando-se profundamente, embora houvesse diversão em

seu tom, como se tais honoríficos raramente fossem usados. Alto e cheio músculos, ele tinhaidade suficiente para ser o pai de Aren, seus cabelos castanhos cortados rasgados de cinza. Laraolhou fixamente em seus olhos castanhos escuros, algo em sua voz familiar, e depois de umbatimento cardíaco, ela reconheceu como a do homem que havia conduzido a parte Ithicana deseu casamento.

— Este é Jor — disse Aren. — Ele é o capitão da guarda.— Que bom vê-lo novamente — respondeu ela. — Todos os soldados Ithicanos têm

empregos paralelos ou você é uma exceção?O soldado piscou uma vez, então um sorriso cresceu em seu rosto, e ele deu-lhe um aceno de

aprovação. — Bom ouvido, princesa.— Memória fraca, soldado. Já não sou mais uma princesa - você mesmo garantiu isso. — Ela

passou por todos eles, seguindo o caminho estreito para o mar.O homem mais velho riu. — Espero que você durma com um olho aberto, Aren.— E uma faca debaixo do seu travesseiro — acrescentou Lia, e todo o grupo riu.Aren riu junto com eles, e Lara se perguntou se sabiam que ele ainda não havia consumado o

casamento deles. Que pelas leis de ambos os Reinos eles poderiam seguir caminhos separados.Lançando um olhar para trás por cima do ombro, ela encontrou o olhar de Aren sem piscar e elerapidamente desviou o olhar, dando um chute violento na raiz que atravessava a trilha.

Não demorou muito para chegar à pequena enseada onde eles escondiam os barcos, que eramde vários tamanhos. Pareciam canoas, exceto que tinham uma armação externa ligando-os a umou dois cascos adicionais, o que ela supunha que os equilibrassem nas ondas. Alguns delesestavam equipados com mastros e velas, incluindo o par no qual o grupo carregava armas eequipamentos. Uma pitada de medo cresceu no peito de Lara. Os barcos eram pequenos emcomparação com o navio que ela pegara para a travessia para Southwatch, e os mares além dasparedes do penhasco que protegiam a enseada pareciam subitamente mais ásperos do quemomentos atrás, os albatrozes subindo alto e ferozmente, certos para inundar os navios frágeis.

Uma dúzia de desculpas encheu sua mente do porquê ela não deveria, não podia, deixar acosta. Mas era por isso que estava em Ithicana - para encontrar uma maneira de superar suasdefesas - e Aren estava prestes a revelar as informações sem qualquer concessão de sua parte. Elaseria uma tola por deixar passar a oportunidade.

Aren entrou no barco, então estendeu a mão para ela, mantendo facilmente o equilíbrioquando o navio subiu e desceu embaixo dele. Lara se manteve firme, mordendo o interior de suasbochechas ao sentir a análise dele. Ele abriu a boca, mas ela o venceu. — Eu não sei nadar, se éisso que você está se perguntando. — Ela odiava admitir a fraqueza e, pelo leve sorriso em seurosto, ele sabia disso.

— Não sei se já conheci alguém que não sabia nadar.Ela cruzou os braços. — Dificilmente é uma habilidade necessária no meio do deserto

vermelho.

Todos os soldados cuidadosamente se ocuparam em várias tarefas, cada um deles ouvindoclaramente.

— Bem. — Aren virou-se para apertar os olhos para o mar. — Você viu o que espreita nestaságuas. Afogar-se pode ser o caminho mais fácil.

— Que reconfortante. — Ela ignorou a mão dele e entrou no barco antes que pudesse perdera coragem. Ele balançou sob o peso adicionado e Lara caiu de joelhos, agarrando-se à borda.

Rindo baixinho, Aren se ajoelhou ao lado dela, segurando um pedaço de tecido preto. —Desculpe por isso, mas alguns segredos devem ser mantidos. — Sem esperar peloconsentimento, ele a vendou.

Merda. Ela deveria saber que não seria tão fácil. Mas a visão não era a única maneira dedescobrir informações, então manteve a boca fechada.

— Vamos — ele ordenou, e o barco se afastou da praia.Por um momento, Lara pensou que não seria tão ruim, e então eles devem ter escapado da

enseada, porque o barco começou a afundar e mergulhar como um cavalo selvagem. O coraçãode Lara trovejou em seu peito, e ela se agarrou ao fundo, não se importando com o que Aren ou oresto dos Ithicanos pensavam dela quando a água espirrou em suas roupas, molhando-as. Se elestombassem, ou se um deles a jogasse, nenhum treinamento a ajudaria. Ela estaria morta.

E depois comida.No caminho de seu terror, veio uma onda de náusea, a boca cheia de sálvia azeda, não

importava quantas vezes ela engolisse. Você consegue fazer isso. Tenha controle de si mesma.Ela cerrou os dentes, lutando contra o conteúdo crescente de seu estômago. Não vomite, elaordenou a si mesma. Você não vai vomitar.

— Ela vai vomitar — disse Jor.Como se fosse uma sugestão, o café da manhã de Lara subiu rápido e violentamente, e se

inclinou cegamente em direção à beira direita, enquanto o barco tombava bruscamente na mesmadireção. Seu aperto no barco escorregou quando ela vomitou, e caiu de cara na água. O mar friose fechou sobre sua cabeça e ela se debateu, imaginando a água enchendo seus pulmões,nadadeiras circulando ao seu redor. Dentes se levantando para empurrá-la para baixo.

Ela já esteve aqui antes. Afogada. Sufocada. Estrangulada.Um terror antigo com uma nova cara.Ela não conseguia respirar.As mãos agarraram sua túnica, puxando-a de volta para o barco. Ela bateu em algo sólido e

quente, então alguém abriu a borda do tecido que cobria seu rosto, e se viu olhando para asprofundezas dos olhos castanhos de Aren.

— Eu peguei você. — Seu aperto nela era tão feroz que deveria doer, mas era quase tãoreconfortante quanto estar em terra firme. Atrás dele estava o píer da ponte com a abertura emsua base, tão tentadoramente perto que seu medo diminuiu. Mas Aren puxou a venda de volta,mergulhando-a de volta na escuridão.

A perda de sua visão enviou uma onda de tontura através dela. O suor misturado com a águaescorria pelo seu rosto, sua respiração saindo em pequenos suspiros frenéticos.

Ela respirou fundo, lutando pelo vazio calmo que foi treinada a buscar se algum dia fossetorturada quando um dos guardas disse. — Poderíamos pegar a ponte. Isso parece cruel.

— Não — Jor retrucou. — Não vai acontecer.Mas Lara ainda sentia Aren. Ele estava considerando a ideia. O que ele só estaria fazendo se

também acreditasse que a aterrorizar desnecessariamente era crueldade. Então ela deixou seumedo tomar conta.

Uma vez que fez isso, não havia como voltar atrás. O terror dela era um animal selvagem,algo que a consumia. Seu peito apertou, seus pulmões paralisaram e estrelas dançaram em suavisão.

As ondas lançavam o barco para cima e para baixo, os agulhões lançados no mar raspando aolongo do casco forrado de metal. Lara agarrou-se a Aren, a força do braço dele a segurandocontra o peito e as unhas cravando nos ombros dele, as únicas coisas que a impediam de cair naloucura.

Vagamente, ela ouviu o grupo discutindo, mas suas palavras eram um zumbido monótono,tão obscuro quanto uma língua estrangeira. Mas o comando de Aren: — Apenas faça! — cortouo névoa de confusão.

Os soldados ao seu redor resmungaram e xingaram. As chapas de aço no casco se chocaramcontra a rocha e, um segundo depois, cessaram as resistências e ondas do mar. Eles estavamdentro do píer da ponte, mas o pânico dela não diminuiu, pois ainda havia água por toda parte.Ela ainda poderia se afogar.

Um estalo de uma tocha. O cheiro de fumaça. O barco se mexia quando os soldadosdesembarcaram. Lara lutou para tomar nota desses detalhes, mas seu foco estava na água ao seuredor, no que estava escondido nela.

— Há uma escada. — O queixo de Aren, áspero com barba para fazer, roçou sua testaenquanto se mexia. — Você pode alcançar e agarrar? Você consegue escalar?

Lara não conseguia se mexer. Parecia ter tiras de aço em volta de seu coração, cada expiraçãoera dolorosa. Houve uma batida fraca e repetitiva no fundo do barco, e levou muito tempo paraperceber que era porque ela estava tremendo e a bota batendo no casco. Mas não conseguiaparar. Não conseguia fazer nada além de agarrar-se ao pescoço de Aren, os joelhos delaapertando as coxas dele como um torno.

— Eu prometo que não vou deixar você cair. — A respiração dele estava quente contra aorelha dela e, muito lentamente, ela dominou o pânico o suficiente para soltar o pescoço delecom uma mão, estendendo a mão para encontrar o metal frio da escada. Mas foi preciso toda abravura que possuía para soltá-lo, se erguer, alcançando cegamente os próximos degraus.

Aren estava com ela, segurando sua cintura com um braço, o outro apoiado no aço. Ele alevantou, mantendo-a firme até que seus pés encontraram a escada.

— Quão longe? — ela sussurrou.— Mais sessenta degraus, de onde estão suas mãos agora. Eu estarei bem embaixo de você.

Você não vai cair.A respiração de Lara era ensurdecedora em seus ouvidos quando ela subiu, toque por toque,

seu corpo todo tremendo. Ela nunca se sentiu assim antes. Nunca teve tanto medo - nem mesmoquando encarou a morte nos olhos quando seu pai veio tirar Marylyn do complexo. Elacontinuou subindo e subindo, até que alguém a agarrou pelas axilas, puxando-a de lado e acolocou em pedra sólida.

— Vamos manter a venda só mais um pouco, Majestade — disse Jor, mas Lara mal seimportava. Havia uma superfície sólida sob suas mãos, e o chão não estava se movendo. Elapodia respirar.

Pedra raspou contra pedra, botas bateram suavemente, depois mãos fortes agarraram seusombros. Sua venda foi retirada e Lara se viu olhando para o rosto preocupado do Rei de Ithicana.Ao redor deles estavam os soldados, três deles segurando tochas que piscavam em amarelo,laranja e vermelho. Mas além deles, bocejava uma escuridão mais profunda que uma noite semlua. Uma escuridão tão completa, era como se o próprio sol tivesse deixado de existir.

Eles estavam dentro da ponte.

1 5

LARA

— VOCÊ ESTÁ BEM, LARA?Levou alguns segundos para a pergunta de Aren se registrar, a atenção de Lara toda para a

pedra cinza abaixo dela, que estava manchada de escuro e com terra e líquen. A ponte não erafeita de blocos, como pensara, mas um material liso e perfeito. Como argamassa... mas maisforte. Ela nunca tinha visto algo assim. O ar estava mofado e amadeirado com o cheiro deferrugem, umidade e estrume. A voz de Aren ecoou nas paredes, perguntando por seu bem-estarrepetidamente antes que o som desaparecesse no corredor sem fim de preto.

— Lara?— Estou bem. — E ela estava, no sentido de que seu pânico se acalmava com a solidez da

ponte sob seus pés, a excitação borbulhando lentamente tomando seu lugar. Ela conseguiu.Encontrou um caminho para a ponte.

Todo mundo estava olhando para ela, trocando armas e suprimentos com óbvio desconforto.Aren cedeu ao seu medo e, ao fazê-lo, revelou um dos segredos de Ithicana. Jor, em particular,não parecia satisfeito.

O rosto de Aren estava ilegível. — Precisamos nos mexer. Não quero perder a maré emnosso retorno. — Ele franziu a testa. — Não enquanto eles estão criando gado.

Gado. Comida. Segundo a carta de Serin, o melhor era encontrar o caminho para os porõesdos navios valcottanos, não os estômagos Maridrinianos.

Jor levantou a venda. — Melhor colocarmos isso de volta.Os passos do grupo reverberam enquanto eles andavam, a mão de Lara apoiada no braço de

Aren para orientação, o vento e o mar apenas levemente audíveis. A ponte se inclinava e securvava, subindo em declives suaves e mergulhando em declínios enquanto serpenteava pelasilhas de Ithicana. Foi uma viagem de dez dias de caminhada entre as ilhas Northwatch eSouthwatch, e ela mal podia imaginar como seria ficar dentro da ponte por tanto tempo. Semnoção do dia ou da noite. Não existia outra maneira de sair senão correr em direção às bocasdesse grande animal.

Embora haviam outras saídas; ela sabia disso com certeza agora. Mas quantas? Como elaseram acessadas a partir do interior da ponte? As aberturas eram apenas para os cais, ou haviaoutras? Como os Ithicanos sabiam onde estavam?

Estrangeiros de todos os Reinos, comerciantes e viajantes, atravessavam a ponteregularmente. Eles sempre estavam sob escolta Ithicana, mas ela sabia que não estavam com osolhos vendados. Serin havia dito a ela e suas irmãs que as únicas marcações na ponte eram asque estavam estampadas no chão, indicando a distância entre o começo e o fim. Até onde ele

sabia, não havia outros sinais ou símbolos, e os Ithicanos eram aparentemente exigentes emremover quaisquer marcas que alguém tentasse colocar. Aqueles que foram pegos foramproibidos para sempre de entrar na ponte, não importando quanto dinheiro oferecessem pagar.

As respostas não seriam facilmente obtidas. Ela precisava ganhar a confiança de Aren e, parafazer isso, precisava que ele pensasse que a estava conquistando.

— Sinto muito pela minha... perda de compostura — ela murmurou, esperando que os outrosnão ouvissem, embora a acústica tornasse impossível que eles não ouvissem. — O mar é... Eunão estou...

Ela se esforçou para articular uma explicação para seu medo, estabelecendo-se com, —Obrigada. Por não me deixar afogar. E por não zombar de mim sem piedade.

Com a venda nos olhos, Lara não tinha como julgar sua reação, e o silêncio se estendeu antesque ele finalmente respondesse. — O mar é perigoso. Somente a guerra leva mais vidasIthicanas. Mas é inevitável em nosso mundo, por isso devemos dominar nosso medo.

— Você parece não temer nem um pouco.— Você está errada. — Ele ficou em silêncio por uma dúzia de passos. — Você me

perguntou como meus pais morreram.Lara mordeu o lábio, lembrando: Eles se afogaram.— Minha mãe estava doente há anos com um coração ruim. Ela foi tomada por um ataque

uma noite. De um que ela não se recuperaria. Embora houvesse uma tempestade, meu pai insistiuem levá-la para minha avó com a pequena esperança de que ela pudesse ajudar. — A voz deAren tremeu e ele tossiu uma vez. — Ninguém sabia ao certo, mas me disseram que minha mãenem estava respirando quando a carregou no barco e zarpou. A tempestade entrou rapidamente.Nenhum deles foi visto novamente.

— Por que ele fez isso? — Ela estava fascinada e horrorizada. Este não era apenas um casal,mas o Rei e a Rainha de um dos Reinos mais poderosos do mundo conhecido. — Se ela já tinhaido, por que arriscar? Ou, no mínimo, por que ele não mandou alguém a levar?

— Momento de estupidez, suponho.— Aren. — A voz de Jor estava repreendendo de onde andava atrás deles. — Diga direito ou

não conte nada. Você deve isso a eles.Lara ponderou o guarda mais velho, curiosa sobre o relacionamento deles. O pai dela teria a

cabeça de qualquer um que ousasse falar com ele dessa maneira. No entanto, Jor parecia falarsem medo; e, de fato, ela não sentiu nada além de uma leve irritação do Rei andando à suaesquerda.

Aren respirou fundo e disse: — Meu pai não a enviou com outra pessoa, porque não era otipo de homem que colocava seu bem-estar à frente de outro. Por que ele arriscou tudo…Suponho que foi porque amava minha mãe o suficiente para que a esperança de salvá-la valesse aprópria vida.

Arriscar tudo pela pequena chance de salvar aqueles que você amava... Lara conhecia essacompulsão porque era assim que se sentia em relação às irmãs. E isso ainda podia custar aprópria vida.

— Romance malfadado à parte, meu argumento é que sei como é perder algo para o mar.Odeio isso. Temer. — Ele chutou um pouco de pedra, fazendo-a chocalhar à frente deles. — Elenão conhece nenhum mestre, certamente não eu.

Ele não disse mais nada sobre o assunto, ou sobre qualquer outra coisa.Não havia senso de tempo na ponte, e parecia que eles estavam caminhando por toda a

eternidade, quando Aren finalmente parou.

Cega, Lara ficou totalmente quieta, confiando em seus outros sentidos enquanto os soldadosse moviam. As botas roçavam contra a pedra, os ecos dificultando que soubesse de que direçãoeles estavam trabalhando, mas então uma brisa roçou sua mão esquerda ao mesmo tempo em queatingiu sua bochecha, o ar fresco enchendo suas narinas. A abertura estava na parede, não nochão.

— As escadas são íngremes demais para navegar às cegas. — Aren a jogou por cima doombro, a mão quente contra a coxa dela enquanto equilibrava seu peso. O instinto a fez segurar ohomem pela cintura, os dedos cravando nos músculos duros de seu estômago enquanto ele seabaixava. Somente no último segundo ela pensou em estender a mão, passando pelocomprimento de uma placa sólida que devia ser a porta. Uma porta que, a menos que ela errasseo alvo, se misturava perfeitamente na parede da ponte.

Os sons da selva cresceram quando eles desceram uma escada curva, depois a suave luz dosol filtrou através de sua venda.

Aren a colocou de volta em pé sem aviso prévio. Lara balançou quando o sangue correu desua cabeça, a mão dele nas costas dela, guiando-a para frente antes que pudesse se orientar.

— Bom o suficiente — anunciou Jor de algum lugar à frente, e a venda foi arrancada de seusolhos. Lara piscou, olhando em volta, mas havia apenas selva, o dossel bloqueando até a ponte.

— Não é longe — disse Aren, e Lara silenciosamente seguiu atrás dele, tomando cuidadopara manter o caminho estreito. Os guardas os cercaram, armas seguradas frouxamente em suasmãos, seus olhos vigilantes. Ao contrário do pai, que estava constantemente cercado por seugrupo de soldados, era a primeira vez desde o casamento que ela via Aren ser tratado como umRei. A primeira vez que os viu protegê-lo tão agressivamente. O que era diferente? Essa ilha eraperigosa? Ou era algo mais? Houve um estalo nas árvores, e Jor e Lia se aproximaram dela, asmãos indo para as armas, e Lara percebeu que não era o Rei que eles estavam preocupados emproteger. Era ela.

Eles contornaram a beira de um penhasco com vista para o mar, a água a dez metros abaixobatendo violentamente contra as rochas. Lara procurou nas duas direções um lugar onde oshomens pudessem aterrissar, mas não havia nenhum. Supondo que fosse da mesma maneira emtoda a ilha, ela podia ver por que os construtores a escolheram como um píer. Era quaseimpenetrável. No entanto, dado que Aren pretendia vir de barco, devia haver um caminho.

A casa apareceu do nada. Em um minuto, eram árvores, trepadeiras e vegetação; no outro,uma sólida estrutura de pedra, as janelas flanqueavam com as onipresentes persianas que todosos edifícios de Ithicana provavelmente possuíam. A pedra foi revestida com líquen verde e, àmedida que se aproximavam, Lara determinou que era feita do mesmo material que a ponte,assim como as dependências à distância. Construída para suportar as tempestades letais queatingiam Ithicana dez meses do ano.

Dando uma volta pela casa, ela viu uma figura curvada trabalhando em um jardim cercadopor pedras.

— Prepare-se — Jor murmurou.— Finalmente digno de me agraciar com sua presença, Majestade? — A velha não se

levantou, nem se afastou de suas plantas, mas sua voz era clara e forte.— Só recebi seu bilhete ontem à noite, vó. Eu vim o mais rápido que pude.— Ha! — A mulher virou a cabeça e cuspiu, o líquido voando sobre o muro do jardim para

bater contra um tronco de árvore. — Arrastou os calcanhares até aqui, suspeito. Isso ou o peso dasua coroa está deixando você lento.

Aren cruzou os braços. — Eu não tenho uma coroa, que você bem conhece.

— Foi uma metáfora, seu tolo.Lara levou a mão à boca, tentando não rir. De alguma forma, o movimento chamou a atenção

da velha, apesar de estar de costas. — Ou o atraso do meu neto é o resultado dele tentando tirar ovômito do seu rosto, princesinha?

Lara piscou.— Cheirei você a cem passos de distância, garota. Presumo que todos esses anos nas dunas

não lhe deram estômago para as ondas?Corando, Lara olhou para suas roupas, que ainda estavam úmidas por cair do barco. Quando

olhou para cima, a avó de Aren estava de pé, com um sorriso divertido no rosto. — É a suarespiração — explicou ela, e Lara lutou para não pisar no pé de Aren quando ele cobriu a própriaboca para esconder um sorriso. A velha percebeu.

— Um pouco de enjoo não a teria matado, seu idiota. Você não deveria ter cedido.— Tomamos precauções.— Da próxima vez, deixe-a vomitar. — O olhar dela voltou para Lara. — Todos me chamam

de Nana, então você pode também. — Então ela apontou um dedo para um dos guardas. — Vocêarranca e veste esse pássaro. E vocês dois — apontou o queixo para outra dupla, — terminam depegá-los e depois os lavem. E você. — Ela apontou um olhar de aço para Lia. — Há uma cestade roupa que precisa ser lavada. Veja isso antes de ir.

Lia abriu a boca para protestar, mas Nana a venceu. — O que? Boa demais para esfregar asanáguas das gavetas de uma velha? E antes que diga sim, lembre-se de que eu limpei sua bundade merda mais vezes do que gostaria de contar quando você era bebê. Seja grata por eu aindapoder fazer isso por mim mesma.

A guarda alta fez uma careta, mas não disse nada, apenas pegou a cesta e desapareceu ladeiraabaixo para recuperar a água.

— Presumo que Jor tenha saído para incomodar minhas alunas. — Nana levou Lara aperceber, com um sobressalto, que o homem os abandonara sem que ela notasse. — Ainda nãofoi revelado que elas não estão interessadas em um velho lascivo como ele.

— Suas garotas podem se cuidar — respondeu Aren.— Esse não era o meu ponto, não era? — Nana fechou o portão do jardim e depois se

arrastou na direção deles. Os cabelos eram de prata maciça e a pele enrugada, mas os olhos eramperspicazes e exigentes quando olhou para o neto. — Dentes!

O comando latido fez Lara pular, mas, sem hesitar, Aren se inclinou e abriu a boca,permitindo que sua avó inspecionasse seus dentes brancos e retos. Ela grunhiu de satisfação edepois deu um tapinha na bochecha dele. — Bom garoto. Agora, onde está sua irmã? Meevitando?

— Os dentes de Ahnna estão bem, avó.— Não são os dentes dela que me preocupam. Harendell já perguntou sobre ela?— Não.— Envie ela de qualquer maneira. Isso mostra boa fé.— Não. — A palavra saiu de Aren como um rosnado, o que surpreendeu Lara. Certamente

ele não pretendia quebrar seu contrato com o Reino do norte? Não quando ele estava disposto acumprir sua metade sem discussão?

— Ahnna não precisa da sua atenção, garoto. Ela pode cuidar de si mesma.— Isso é entre eu e ela.Nana grunhiu e cuspiu antes de voltar sua atenção para Lara. — Então foi isso que Silas nos

enviou, não é?

— Prazer em conhecê-la. — Lara inclinou a cabeça com o mesmo respeito que daria a umamatrona maridriniana.

— Vamos ver quanto tempo esse prazer dura. — Mais rápido do que Lara imaginaria queuma velha pudesse se mover, Nana estendeu a mão e agarrou-a pelos quadris, torcendo-a paraum lado e para o outro, antes de passar as mãos pelos lados de Lara, rindo quando Lara osafastou. — Construída para cama e não para reprodução. — Ela olhou para o neto. — O que eutenho certeza que você notou, mesmo que não tenha se aproveitado.

— Vó, pelo amor de Deus...Estendendo a mão, Nana deu um peteleco no lóbulo da orelha de Aren — Cuide da sua

língua, garoto. Agora, como estava dizendo... — ela voltou-se para Lara — você terádificuldades, mas dará conta. Você tem força de vontade. — Ela passou um dedo rápido por umavelha cicatriz no braço de Lara, uma que ela ganhou em uma luta de facas contra um guerreirovalcottiano. — E você conheceu a dor.

Essa mulher era muito astuta. Foi perto demais. Lara retrucou: — Eu não sou uma éguareprodutora.

— Graças a Deus por isso. Temos pouco tempo para cavalos aqui em Ithicana. O queprecisamos é de uma Rainha que produza um herdeiro. Ao contrário de seu pai, meu neto nãoterá um harém inteiro para garantir que a linhagem real continue. Só. Você.

Lara cruzou os braços, irritada, embora não tinha o direito de estar. Não havia chance delaproduzir nada. Ela recebeu um ano de tônico contraceptivo. Não haveria surpresas pela frente.

— Venha comigo, eu lhe darei algo para a enjoo do mar. Garoto, você vai encontrar outracoisa para mantê-lo ocupado.

Lara a seguiu para dentro. Ela esperava que o interior da casa estivesse úmido e mofadocomo a ponte, mas em vez disso estava seco e quente, os painéis de madeira polida nas paredesrefletiam as chamas na lareira. Uma parede abrigava prateleiras do chão ao teto cheias de jarroscheios de plantas, pós, tônicos coloridos e o que pareciam ser insetos de vários tipos. Haviatambém várias longas gaiolas de vidro, e Lara estremeceu ao ver formas enroladas se moveremdentro delas.

— Não gosta de cobras?— Eu tenho um respeito saudável por elas. — Isso ganhou uma gargalhada de aprovação.Depois de vasculhar as prateleiras, Nana pegou uma raiz retorcida que passou para Lara. —

Mastigue isso antes e enquanto estiver na água. Isso ajudará a manter as náuseas afastadas. Laracheirou incerta, aliviada ao descobrir que o cheiro, pelo menos, não era desagradável.

— Mas não tenho nada para superar o medo. Esse é o seu próprio problema para gerenciar.— Como não sei nadar, sinto que meu medo de água é tão saudável quanto meu respeito por

cobras.— Aprenda. — A nitidez do tom da velha transmitia uma falta de tolerância à reclamação

que lembrou Lara brevemente, dolorosamente, do mestre Erik.Com um empurrão, Nana abriu as cortinas que cobriam uma das janelas, permitindo que a

luz do sol entrasse dentro e depois chamou Lara para mais perto. — Você tem os olhos do seupai. E do seu avô.

Lara deu de ombros. — A cor é uma pequena prova de que sou uma verdadeira princesa deMaridrina.

— Eu não estava falando sobre a cor. — Rápida como as cobras nas gaiolas, Nana pegouLara pelo queixo, pressionando os dedos dolorosamente contra sua mandíbula. — Você é umacoisinha astuta, assim como eles. Sempre procurando uma vantagem.

Resistindo ao desejo de se afastar, Lara olhou de volta nos olhos da mulher, que eramcastanhos. Como os de Aren. Mas o que ela viu dentro deles era muito diferente do que viu nodele. — Você fala como se conhecesse minha família.

— Eu era espiã quando jovem. Seu avô me recrutou para o harém dele. Ele tinha o hálitomais sujo do que qualquer homem que já conheci, mas aprendi a prender o fôlego e a pensar emIthicana.

Lara piscou. Essa mulher havia se infiltrado no harém como espiã? O fato de poder fazer issoera alarmante por si só, mas apenas as meninas mais bonitas foram trazidas para o harém do Rei,e Nana era...

— Ha, ha! — A risada de Nana a fez pular. — Eu nem sempre pareci a última ameixa secana tigela, garota. Na minha época, eu era muito bonita. — Os dedos dela se apertaram. — Entãonão pense que não sei em primeira mão como você usa seu rosto bonito para alcançar seuspróprios fins. Ou nos confins do seu país.

— Estou aqui para nutrir a paz entre Ithicana e Maridrina — respondeu Lara friamente,considerando se teria que encontrar uma maneira de ver essa mulher abatida. Enquanto ela estavaconfiante em sua capacidade de manipular Aren e aqueles próximos a ele, Nana era outrahistória.

— Este Reino não foi construído por tolos. Seu pai enviou você para causar problemas, e sevocê acha que não estamos observando você, está errada.

Inquietação cintilou no peito de Lara.— Aren se importa muito com honra e ele manterá sua palavra para você, não importa o que

isso lhe custe. — Os olhos de Nana se estreitaram. — Mas não dou mijo por honra. O que meinteressa é a família, e se eu acho que você é uma verdadeira ameaça ao meu neto, não pense porum instante que não vou providenciar para que um acidente ocorra. — O sorriso da mulher eratodo reto com dentes brancos. — Ithicana é um lugar perigoso.

E eu sou uma mulher perigosa, pensou Lara antes de responder: — Ele parece mais do quecapaz de cuidar de si mesmo, mas agradeço sua sinceridade.

— Tenho certeza. — Os olhos de Nana pareciam penetrar diretamente na alma de Lara, e elanão sentiu grande alívio quando a velha fechou as cortinas e apontou para a porta. — Ele não vaiquerer perder as marés. Harendell está com gado e ele odeia vacas na ponte.

Porque eles não estão ganhando dinheiro para ele, pensou Lara amargamente. Mas ela nãopôde deixar de perguntar: — Por que isso?

— Porque ele foi pisoteado durante uma das corridas anuais aos quinze anos. Três costelasquebradas e um braço quebrado. Embora lhe dissesse que o pior era ficar comigo enquanto serecuperava.

Corridas anuais? Do que diabos a velha estava falando? A única razão pela qual havia gadona ponte era porque seu pai havia providenciado a compra deles na Northwatch. Não é aprimeira vez que um desconforto a percorreu com a desconexão entre o que sabia ser verdade e oque estava vendo e ouvindo em Ithicana. Eles devem ter sido vendidos para Valcotta ou outropaís, decidiu. Carregados em navios para que Maridrina fosse ignorada completamente. Apesardos enormes rebanhos de Valcotta, ela não viu por que os importariam.

Afastando o pensamento, Lara seguiu Nana para fora, onde ficou cega por alguns passos pelaluz do sol, mas quando sua visão se acostumou, revelou Aren franzindo a testa enquantopendurava a roupa em um varal, uma raivosa Lia agachada ao lado de um lavatório. Com os pésdentro dele.

— Vejo que houve lacunas na sua educação, garoto. — Nana fez uma careta para um lençol

pingando.— Estou disposto a aceitar certas falhas pessoais. — Aren puxou as mãos, horrorizado, de

um volumoso par de roupas íntimas que Lia estava tentando entregar a ele.Nana revirou os olhos. — Criança inútil. — Mas Lara não perdeu o leve sorriso que cresceu

no rosto da velha quando Aren secou as mãos nas calças.— Você pretende explicar por que me levou a arrastar Lara até aqui? Suponho que não foi

por uma conversa de cinco minutos.— Oh, Lara e eu estaremos conversando bastante nas próximas semanas, porque você a

deixará aqui comigo.A boca de Lara se abriu em horror, não havia treinamento suficiente para esconder sua

consternação com esse acontecimento.Aren balançou dos calcanhares até os dedos dos pés, os olhos estreitados. — Por que eu faria

isso?— Porque ela é a cria do Rei Rato, e eu não vou tê-la perambulando pela Midwatch enquanto

você estiver distraído com assuntos mais importantes. Aqui eu posso ficar de olho nela.E provavelmente organizar um acidente dentro de uma semana.— Não.Nana colocou as mãos enrugadas nos quadris. — Eu não estava lhe dando uma escolha,

garoto. Além disso, o que você precisa dela? Apesar de toda a prática que teve ao longo dosanos, você nunca a teve nas costas uma vez, segundo minha opinião. E você não terá tempo paraisso nos próximos dois meses, melhor que ela possa estar aqui onde eu possa usá-la.

Aren exalou um suspiro longo e lento, lançando os olhos para o céu como se procurassepaciência. Lara mordeu a língua, esperando a resposta dele. Sabendo que ela estava ferrada seaceitasse o pedido da avó.

— Não. Não a trouxe para Ithicana para mantê-la trancada como prisioneira, e certamentenão a trouxe para que você pudesse mantê-la como serva. Ela vem comigo.

A mandíbula de Nana endureceu, as unhas enlameadas cavando o tecido da túnica. Ele nuncadisse não a ela antes, pensou Lara, espantada.

— Você tem muito de sua mãe em você, Aren. Vocês dois cegos, idiotas idealistas.Silêncio.— Nós terminamos aqui. Lara, vamos embora. — Aren girou nos calcanhares e Lara correu

atrás dele, meio convencida de que Nana enfiaria uma faca nas costas em um último esforço paramantê-la longe de Aren. Por trás, ela ouviu a velha estalar: — Jor, mantenha esse garoto seguroou eu cortarei suas bolas e alimentarei minhas cobras com elas.

— Sempre cuido, Nana — Jor falou lentamente, depois passou por Lara e Aren. — Euandaria mais rápido. Ela não é uma mulher acostumada a ser negada.

Aren bufou, mas manteve o ritmo medido. — Eu deveria ter adivinhado que era isso que elaqueria. Controladora a velha morcego.

Controladora, sim, mas também muito sagaz para seu próprio bem. Lara podia estar indoembora com Aren, mas ele ouviu os avisos de Nana. Se Lara não tivesse cuidado, ele poderiacomeçar a levar esses avisos a sério.

— Você não pode culpá-la por tentar proteger seu neto. Ela gosta de você. — Lara se afastoude uma árvore que hospedava uma aranha enorme.

— A maioria das pessoas é. Sou muito charmoso, ou pelo menos me disseram.Lara lançou-lhe um olhar de pena. — Um Rei raramente deve entender um elogio ao pé da

letra. Bajuladores e tudo mais.

— Que sorte que agora eu tenho você para me dar a crua verdade.— Você prefere mentiras envernizadas?— Possivelmente. Não tenho certeza de que meu ego não testado esteja pronto para tantos

abusos. Meus soldados podem não me seguir se forem submetidos a noites após noites minhaschorando sobre canecas.

— Tente soluçar em seu travesseiro - abafa o barulho.Aren riu, depois olhou para trás na casa. — O que ela disse para você?Segurando a raiz que lhe fora dada, Lara fez uma pausa, percebendo que Nana suspeitava que

Aren iria rejeitar. O que forçou a pergunta: por que ele rejeitou? A razão, ela adivinhou, era maiscomplicada do que o desejo de colocá-la entre os lençóis. — Aparentemente, ela se ofende com aideia de eu vomitar em suas botas.

Ele a recompensou com uma risada baixa que enviou uma emoção inesperada correndo porela. Então ele extraiu a venda de onde estava enfiada no cinto, os ombros dela apertandoreflexivamente quando a envolveu em torno do rosto dela, os dedos cheirando a sabão. — Vocêquer andar ou ser carregada?

— Caminhar. — Embora ela tenha se arrependido da decisão quando tropeçou pela décimasegunda vez, um alívio a encheu quando entraram na escuridão fria do píer, Aren segurou oscotovelos para mantê-la estável enquanto subia os degraus. Ela contou, calculando a distância.

De volta à ponte, o grupo se moveu a toda velocidade, ninguém falando. Portanto, erainconfundível quando o som fraco de uma buzina, longa e triste, cortou pela espessura da pedraque os envolvia. Aren e o resto pararam, ouvindo. Soou novamente, a mesma nota longa, seguidapor um padrão de sons curtos que se repetiam três vezes em rápida sucessão antes de interromperno meio da quarta, como se a buzina tivesse sido arrancada dos lábios do soprador.

— Esse é o pedido de ajuda de Serrith — disse Jor.— Seus civis já partiram para as marés de guerra? — Aren exigiu.Marés de guerra?— Não. — Mesmo com a venda nos olhos, Lara sentiu a tensão atravessar o grupo, estalando

como uma tempestade elétrica.— Quem está mais perto? — Houve um abalo na voz de Aren. Uma sugestão de algo que

Lara ainda não via nele: medo.Jor pigarreou. — Nós.Silêncio.— Não podemos deixá-la sozinha na ponte — disse Aren.— Não podemos poupar ninguém para ficar com ela, e não temos tempo para levar de volta

para Nana.Lara mordeu a língua, querendo pensar, mas sabendo que era melhor não dizer nada.— Não posso fazer nada. Teremos que trazê-la conosco. — As mãos de Aren roçaram o lado

do rosto dela quando ele tirou a venda. — Mantenha-se alerta. Fique quieta. E quando a lutacomeçar, fique fora do caminho.

Rezando para que ele confundisse sua excitação com medo, ela assentiu uma vez. — Eu vou.O grupo começou a correr.

1 6

LARA

LARA LUTOU PARA MANTER O RITMO COM OS ITHICANOS, O AR SECO QUEIMANDO EM SEU PEITO

enquanto o grupo corria pela ponte. Somente a sorte permitiu que ela notasse quando Lia plantouum metro quadrado em um marcador de quilômetro, sua boca se movendo silenciosamentequando começou a contar seus passos.

Lara viu o contador de Lia, guardando o número quando a outra mulher levantou a mão ederrapou para parar. Jor colocou Lia nos ombros enquanto o resto preparava o equipamento.Nenhum deles falou, e Lara manteve-se nas sombras enquanto observava Lia estender a mãopara pressionar a palma contra o que parecia ser pedra lisa. Houve um clique pesado, então, comum esforço, ela levantou uma escotilha no teto da ponte.

Outro caminho.Triunfo correu através de Lara, mesmo quando o ar frio soprava por dentro, pegando os fios

soltos de seus cabelos quando Jor e Aren levantaram os outros soldados para a abertura. EntãoJor se levantou, e só ela e Aren permaneceram.

— Nunca revele nada disso a ninguém, senão mato você eu mesmo. — Sem esperar por umaresposta, ele agarrou Lara pela cintura e a levantou na abertura.

Jor segurou seus braços, levantando-a no topo da ponte antes de se inclinar para puxar Arentambém, os dois fechando a escotilha. Mas era difícil para Lara se concentrar no que os homensestavam fazendo, porque estava em uma ponte através das nuvens.

A névoa úmida se instalou em Ithicana enquanto eles estavam lá dentro, e ela girou e soprou,puxando suas roupas antes de girar para longe em redemoinhos violentos. Abaixo, o mar batiacontra um píer ou uma ilha ou talvez os dois - ela não sabia dizer. Não conseguia ver mais deuma dúzia de passos em qualquer direção, e era como estar em um mundo totalmente diferente.Como estar em um sonho que estava à beira de um pesadelo.

— Cuidado. — Aren advertiu, pegando sua mão. — É escorregadio e estamos em um pontoalto. Você não sobreviveria à queda.

Ela o seguiu em uma corrida lenta, todos lutando para manter o equilíbrio na superfícieescorregadia enquanto a ponte descia em direção ao próximo píer, que Lara só podia verfracamente através da névoa. Mas, antes de alcançá-lo, todos os guardas caíram como setivessem dado um sinal invisível, Aren a carregando com ele.

Quando as mãos de Lara pressionaram contra a pedra molhada, seus olhos pousaram em ummarcador de quilômetro, as engrenagens em sua mente girando quando uma estratégia de invasãocomeçou a se formar.

Jor tinha uma luneta, que se movia de um lado para o outro antes de congelar no lugar. —

Navio Amarid. — Ele passou o instrumento para Aren, que olhou uma vez e depois xingou.— Devemos esperar por reforços — continuou Jor, pegando o objeto de volta e rastejando

para o lado oposto da ponte, olhando na mesma direção que o resto dos soldados. A névoa rodou,revelando uma ilha por um batimento cardíaco antes de obscurecê-la novamente. — Quando elesdesembarcarem toda a equipe, estaremos em menor número.

Ninguém falou, e foi então que os ventos mudaram de direção. Com eles vieram os gritos.— Vamos agora — ordenou Aren.Nenhum dos guardas discutiu. Um deles prendeu um cabo em um grosso anel de metal

embutido na ponte, a outra extremidade presa a um parafuso pesado que foi encaixado em umaarma projetada como uma besta. Então ele entregou a Aren. — Você faz as honras, VossaExcelência?

Aren pegou a arma, ajoelhando-se na pedra. — Vamos lá — ele murmurou. — Deixe-mever.

Os ventos pararam e ninguém parecia respirar. Lara enfiou os dedos na pedra, observando eesperando, a antecipação fazendo seu coração disparar. Então o ar rugiu contra eles, varrendo asnuvens, e Aren sorriu uma vez.

Ele soltou o ferrolho com um som alto, grunhindo contra a força do recuo. O raio voou emdireção à ilha, arrastando o cabo fino atrás dele e, com um estalo alto audível à distância, cravou-se em uma das árvores.

O soldado que lhe deu a arma apertou a folga no cabo e a prendeu. Então, aparentemente semmedo, ele puxou uma luva pesada, prendeu um gancho sobre o cabo e balançou ao ar livre. Laraobservou com espanto o homem disparar ao longo do arame sobre o mar aberto, indo cada vezmais rápido até chegar à terra. Depois, ergueu a luva e diminuiu a velocidade, caindo como umgato no mato debaixo da árvore.

O resto dos soldados o seguiu rapidamente, mas quando Lara olhou por cima do ombro, eladeterminou que Aren não estava prestando a mínima atenção. Em vez disso, ele estavamisturando pós em uma pequena bexiga. Enquanto observava, ele adicionou água à mistura e,com muito cuidado, prendeu o dispositivo a uma flecha com um pouco de barbante. Ele a ergueupara o arco e atirou no navio ancorado abaixo.

Segundos depois, uma explosão sacudiu o ar, o navio visível através da névoa enquantochamas subiam no mastro. — Isso deve mantê-los ocupados.

Passando o arco por cima do ombro, ele tirou um gancho e uma luva como os outros haviamusado. — Eu vou precisar que se segure em mim.

Sem palavras, Lara colocou os braços em volta do pescoço e as pernas em volta da cintura. Ocalor correu através dela quando ele a puxou contra si com a mão livre.

— Não grite. — Ele passou o gancho por cima da linha e pulou.Lara mal conteve seu grito, agarrando-se a ele quando eles caíram, descendo em velocidade

incrível. Lá embaixo, as ondas quebravam contra os penhascos da ilha e ela conseguia distinguiros botes que se retiravam de uma pequena enseada em direção ao navio em chamas para ajudarseus camaradas. O vento rugiu em seus ouvidos, e então eles estavam sobre a selva verde.

— Segure-se firme — disse ele em seu ouvido, então a soltou, estendendo a mão enluvadapara segurar o cabo, reduzindo a velocidade deles até que eles se pendurassem em segurançaacima dos outros.

Lara soltou-se, aterrissando entre eles, e ela balançou propositalmente e caiu de bunda,mesmo quando Aren pousou com graça predatória ao lado dela. Em um movimento praticado,ele extraiu uma máscara de couro idêntica àquelas que todos os guardas estavam usando agora e

a colocou sobre o rosto.— Fique aqui — ele sussurrou. — Fique fora da vista e cuidado com as cobras.Então eles se foram.Lara esperou até a contagem de cinquenta, depois foi atrás deles, facas na mão. Ela se moveu

com cuidado, confiando que a passagem deles teria mandado qualquer cobra sair correndo. Nãofoi difícil determinar a direção que eles foram; só tinha que seguir os gritos.

Uma batalha travada em uma vila, o interior das casas de pedra em chamas, incontáveis mortos e moribundos caídos nos caminhos que corriam entre eles. Alguns estavam armados, amaioria não. Famílias. Crianças. Tudo abatido pelos soldados Amaridianos lutando contra Aren eseus guardas. Mantendo-se atrás de uma árvore, Lara observou o Rei de Ithicana se arremessarcontra os outros homens, facão em uma mão, punhal na outra, deixando apenas cadáveres em seucaminho. Ele lutou como se tivesse nascido para isso, destemido, mas inteligente, e ela se viuincapaz de desviar o olhar.

Até os gritos da praia chamarem sua atenção. Abandonando sua posição, Lara recuou nessadireção, apertando o estômago ao ver os soldados Amaridianos subindo a trilha em direção àvila. O navio estava completamente envolvido pelo fogo, o que significava que eram homensdesesperados sem possibilidade de fuga. E Aren e sua guarda pessoal estavam em menor númerode três para um. A menos que ela quisesse que Amarid fosse o Reino assumindo o controle daponte, ela precisava equilibrar as probabilidades.

Lara escolheu um ponto na borda da brecha de um par imenso de rochas pelas quais ossoldados teriam que passar.

Dois soldados contornaram a curva, surpresos ao vê-la parada no caminho deles. — É ela. Agarota Maridriniana.

Ela esperou que a atacassem, esses homens tanto inimigos de Maridrina quanto de Ithicana,mas eles permaneceram firmes, olhando para ela como se não tivessem certeza do que fazer aseguir. — Você não deveria estar aqui.

Lara deu de ombros. — Má sorte sua, suponho. — Então jogou as facas em rápida sucessão.Os soldados caíram, com as lâminas na garganta. Mais três vieram, e Lara pegou uma dasespadas dos homens mortos e se lançou para frente, cortando o intestino de um homem enquantomergulhava sob a lâmina de outro, cortando seus tornozelos enquanto este rolava. Seu camaradavirou e ela desviou, depois o chutou no joelho, enterrando a lâmina no peito dele quando elecaiu.

Pegando sua arma quando se levantou, Lara atacou o terceiro homem, forçando-o a recuarantes de cortar sua mão no pulso. O soldado gritou, seu sangue espirrando no rosto dela, mesmoquando ele colidiu com os soldados que vieram por trás.

Era gritos e caos. Homens tropeçando nos corpos de seus companheiros enquanto tentavamse espremer pela passagem estreita, Lara matando-os quando conveniente, mutilando-os quandonão era, seu objetivo era impedir que se juntassem à batalha e esmagassem Aren e seus soldados.

Mas quando um par de flechas assobiou sobre sua cabeça, ela se jogou na selva, escondendo-se no mato, enquanto o resto dos soldados Amaridianos passavam correndo. Depois que seforam, ela pegou e embainhou suas armas dando lugar a uma das armas mais pesadas dosAmaridianas. Cortando a garganta enquanto passava, Lara correu a trilha até a vila.

Havia sangue por toda parte. Corpos em toda parte. Vários guardas de honra caíram, e oestômago de Lara afundou enquanto procurava por Aren.

Ela o encontrou lutando com um homem enorme empunhando uma corrente. As roupas deAren estavam ensanguentadas, seus movimentos outrora afiados agora lentos e desleixados. O

guerreiro Amaridiano balançou sua corrente com força e Lara sibilou ao atingir Aren nascostelas, dobrando-o. Ela instintivamente deu vários passos na direção deles, com a faca na mão,pronta para intervir, mas Aren subiu balançando, pegando o grande homem no rosto com opunho, e depois enfiando uma faca em seu intestino. Os dois caíram em uma pilha.

Antes que Aren pudesse se levantar, outro soldado Amaridiano avançou em direção às costasexpostas.

Sem pensar, Lara se jogou entre eles, sua faca afundando sob o esterno, inclinando-se paraperfurar o coração do soldado.

Seu impulso a derrubou, o ar saindo de seus pulmões quando seus ombros atingiram o chão,o soldado moribundo caindo em cima dela. Ele estava se debatendo e chutando, o punho da facacravando em seu estômago, e ela não conseguiu sair de baixo dele.

Não conseguia respirar quando a massa carnuda de seu peito pressionou contra o rosto dela.O peso subiu abruptamente.Lara ofegou, sugando o ar, antes de rolar sobre as mãos e os joelhos, observando Aren

deslizar desnecessariamente uma faca pela garganta do soldado morto. Mãos escorregadias como sangue do outro homem, Aren agarrou seus braços, puxando-a para perto. — Você está bem?Você está machucada? — Ele estava puxando as roupas dela, o sangue do marinheiro mortomisericordiosamente escondendo os das vítimas no caminho.

— Eu estou bem — ela ofegou, finalmente capaz de respirar. — Mas você não. — Ele estavasangrando muito devido a um corte no antebraço, mas ela suspeitava que não fosse o pior.

— Não é nada. Fique de fora. Fique fora de vista. — Ele tentou empurrá-la para trás de umadas casas da vila, mas ela se agarrou aos ombros dele, desesperada para mantê-lo fora da briga.Se ele morresse, tudo seria em vão.

Ele hesitou, e ela enterrou o rosto no ombro dele, certa de que a deixaria de lado e entrarianovamente na batalha. Mas ele estava ferido e exausto, e isso não terminaria bem. O pânicoaumentou em sua garganta, e ela sussurrou a única coisa que conseguia pensar que iria fazer comque ficasse — Por favor. Não me deixe.

As mãos dele estavam quentes nas costas dela, ambas ensopadas com o sangue de seusinimigos. — Lara... — Sua voz estava dolorida, e ela sabia que estava vendo os corpos de seupovo. Que ele estava vendo seus guarda-costas, lutando e vacilando contra o inimigo.

Você poderia lutar.Você poderia lutar por ele e salvar essas pessoas.O pensamento dançou em sua mente, mas ela foi salva de ter que tomar uma decisão pela

chegada de reforços.Soldados Ithicanos invadiram a vila, os guarda-costas de Aren recuaram, cercando ele e Lara

enquanto os outros derrubavam os soldados Amaridianos, despachando implacavelmente osferidos até o único som serem os gemidos e gritos dos moradores.

Aren não a soltou até terminar.A fumaça queimou os olhos de Lara quando olhou em volta. Como ela viu, pela primeira

vez, como era realmente a guerra. Não apenas soldados mortos, mas civis desarmados caídos nochão. As formas ainda de crianças.

Você acha que será diferente quando seu pai vier com seu exército? Você acha que elesmostrarão mais misericórdia?

Os moradores que fugiram começaram a voltar para a vila, principalmente crianças maisvelhas, segurando bebês e mãos de crianças pequenas. Alguns deles começaram a soluçar aoencontrar as formas imóveis de seus pais. Mas muitos ficaram paralisados, rostos perdidos e sem

esperança.— Ainda acredita que aqueles marinheiros da Amaridiana mereciam piedade? — Aren disse

suavemente por trás dela.— Não — ela sussurrou enquanto caminhava em direção ao Ithicano ferido mais próximo,

rasgando tiras de tecido de sua túnica quando caiu de joelhos. — Eu não acredito.

1 7

AREN

AREN OLHOU PARA A BACIA DE ÁGUA, SEU CONTEÚDO LENTAMENTE FICANDO VERMELHO QUANDO

lavou o sangue que cobria suas unhas. O sangue dele. O sangue de seus inimigos.O sangue do seu povo.A água tremeu e ele puxou as mãos para fora da bacia, secando-as em um pedaço de toalha

que lhe foi deixado. Cada centímetro dele doía, especialmente as costelas onde aquele grandebastardo o pegara com a corrente. Nana informou que nada estava quebrado, mas sua lateral jáera um hematoma lívido, e a experiência lhe dizia que amanhã seria pior. No entanto, ele sofreriaisso mil vezes se significasse chegar a Serrith mais cedo. Vinte minutos antes. Dez. Cinco.Mesmo um batimento cardíaco mais cedo poderia ter permitido que ele salvasse pelo menos umdos moradores que foram mortos hoje.

— O chamado para reunir o conselho em Eranahl foi enviado e as respostas recebidas. Todomundo estará lá ao anoitecer.

Ele se virou para encontrar Jor parado atrás dele, o curativo enrolado em sua cabeçaescondendo o corte profundo que havia recebido na luta. Um corte que Lara, de todas as pessoas,costurou. Por vontade própria, os olhos de Aren se voltaram para onde sua esposa se ajoelhavaentre os feridos, silenciosamente seguindo a direção de Nana e seus alunos. Seus cabelos cor demel estavam com um tom escuro de sangue, assim como suas roupas, mas, em vez de prejudicarsua beleza, isso apenas a fazia parecer feroz. Como uma guerreira. Há meio dia, a ideia seriaridícula.

Mas não mais.Jor seguiu seu olhar, dando um suspiro profundo quando viu quem Aren estava olhando. —

Ela possui uma quantidade problemática de informações.— Não havia como evitar.— Não significa que não é um problema.— Ela salvou minha vida.Jor respirou fundo, depois soltou o ar lentamente. — Ela salvou mesmo.— Eu caí e um deles veio às minhas costas. Ela ficou no caminho e enfiou uma faca nele. —

Toda vez que ele piscava, Aren via Lara sob aquele bruto de um Amaridiano, sangue por todaparte. Sentia o medo da certeza de que todo o sangue era dela. — Meio que arruína a teoria deque ela está aqui para me assassinar, não acha?

— Talvez queira fazer isso ela mesma — respondeu Jor, mas sua voz não estava convencida.Lara levantou a cabeça, como se sentisse a análise deles. Aren se virou antes que seus olhos

pudessem se encontrar, e a pilha de Amaridianos mortos entrou em sua linha de visão. Ele puxou

o bastardo dela e cortou sua garganta, mas o homem já estava morto, a faca que Lara pegou emalgum lugar fincada com precisão em seu coração.

Sorte, ele disse a si mesmo. Mas os instintos de Aren estavam dizendo outra coisa.— De qualquer forma, precisamos ficar ainda mais de olho nela agora — disse Jor. — Se os

Maridrinianos determinarem onde ela está e a encontrarem, a cabeça dessa mocinha está cheia desegredos suficientes para nos causar alguns problemas sérios.

— O que você está sugerindo?— Estou sugerindo que talvez ela seja mais problemática do que vale a pena. Acidentes

acontecem. Cobras encontram seu caminho para as camas. Os Maridrinianos podem usá-lafirmemente contra nós...

— Não.— E manter fingindo que está viva. — Jor confundiu o motivo da recusa de Aren. —

Consiga um falsificador para falsificar as cartas dela para o pai. Eles nunca precisam saber.Aren se voltou contra o homem que o vigiava desde criança. — Vou dizer isso uma vez e

nunca mais. Se alguém machucá-la, perderá a cabeça. Isso vale para você, vale para Aster e paraminha avó, também, mesmo que ela me tenha como ignorante. Entendido?

Sem esperar por uma resposta, Aren caminhou até as piras montadas às pressas nos arredoresda vila, o ar denso com o cheiro do óleo encharcando a madeira. Dezenas de corpos, grandes epequenos, foram dispostos em filas iguais, e os sobreviventes estavam ao redor, alguns chorando,outros olhando para o nada.

Alguém passou uma lamparina para ele e Aren olhou para as chamas tremeluzentes, sabendoque ele deveria dizer alguma coisa. Mas quaisquer palavras que pudesse oferecer àquelas pessoasque ele deveria proteger - que ele não protegeu - pareciam vazias e sem sentido. Ele não podiaprometer que não aconteceria novamente, porque aconteceria. Ele não podia prometer vingança,porque mesmo que invadir Amarid fosse uma possibilidade para o seu exército já tenso, não secomprometeria a prejudicar civis Amaridianos apenas porque sua Rainha era uma cadelavingativa. Ele poderia dizer a eles que pretendia enviar uma caixa cheia de cabeças junto com osrestos carbonizados da bandeira do navio de volta à senhora mas o que isso significava? Nãotraria de volta os mortos.

Então ele não disse nada, apenas se inclinou para frente para tocar a tocha na madeiraencharcada de óleo. Chamas rasgaram os galhos, o ar ficou quente e não demorou muito até queseu nariz se encheu com o cheiro horrível de cabelo queimado. Sangue carbonizado. Carnecozinhando. Isso fez seu estômago revirar, e ele rangeu os dentes, querendo fugir, mas seforçando a se manter firme.

— Os navios estão aqui de Eranahl — disse Jor. — Precisamos começar a carregar ossobreviventes ou perderemos o clima. — Como se quisesse enfatizar o ponto, uma gota de chuvabateu na testa de Aren. Depois outro e outro.

— Dê-lhes um minuto. — Ele não conseguia desviar o olhar de uma mãe soluçando, muitoperto das chamas agora sibilantes. Naquela manhã, ela teria acordado acreditando que ao cair danoite ela e sua família estariam a caminho da segurança de Eranahl, e agora estaria viajandosozinha.

— Aren...— Dê-lhes um maldito minuto. — Cabeças se viraram com a nitidez de seu tom, e ele se

afastou das chamas. Passou pelos feridos que Nana e seus alunos estavam preparando para ajornada e pelo caminho até a enseada onde os navios esperavam.

Contornando a curva, ele franziu o cenho para as dezenas de soldados inimigos mortos que

haviam sido arrastados para o lado do caminho quando algo chamou sua atenção: um homemcom uma lâmina Amaridiana embutida no peito. Retrocedendo, Aren examinou os cadáveresmais de perto.

A maioria de seus soldados lutava lado a lado com facas e facões necessários para atravessara densa vegetação rasteira da selva, e as largas lâminas causavam ferimentos distintos. Mas amaioria desses homens tinha feridas infligidas pelas esguias espadas forjadas por Amarid, evários deles tinham as facas de oito polegadas que esses soldados carregavam embutidas em seuscorpos.

Eles foram mortos por suas próprias armas.Aren recuou alguns passos para examinar a cena, os olhos flutuando sobre as poças de

sangue que misturavam-se à chuva criando poças crescentes. Esses homens foram mortos porindivíduos que encontraram no caminho, não pelos seus reforços.

Mas por quem? Toda a sua guarda estava com ele na vila, assim como os civis que podiamlutar.

Um formigamento subiu pela nuca de Aren. Com a mão indo para a lâmina em sua cintura,ele girou. Apenas para encontrar Lara em pé no meio do caminho.

Os olhos dela se voltaram para onde a mão dele permanecia na arma e uma das sobrancelhasdela se ergueu, mas por razões que Aren não conseguia articular, ele não podia soltar o punho.Ela matou aquele soldado com uma lâmina Amaridiana...

Mas sua única lesão visível era uma contusão na bochecha. Não importava que as mulheresMaridrinianas fossem proibidas de lutar, a própria ideia de que ela poderia ter conseguido issosozinha era uma completa loucura - seus melhores lutadores não poderiam ter feito isso sozinhos.

— Para onde eles vão? — A voz dela cortou seus pensamentos.— Existem lugares mais seguros. — Ele se perguntou por que estava sendo tão cauteloso

quando agora ela sabia tanto. Mas uma coisa era ela saber sobre a ponte. Outra coisa era sabersobre Eranahl.

Sem a ponte, Eranahl não existe, a voz de seu pai sussurrou em seu ouvido. Ithicana nãoexiste. Defenda a ponte.

— Se existem lugares mais seguros, por que você não mantém seus civis lá?Havia razões práticas. Manter todos os civis Ithicanos dentro de Eranahl durante o ano todo

era impossível, mas não foi essa a razão que ele deu. — Porque isso seria como mantê-los emgaiolas. E meu povo é... livre. — A palavra ficou presa em sua garganta, uma súbitacompreensão do que sua mãe estava lutando, lhe dando um tapa na cara. Pelo que era Ithicanaque não uma grande prisão, os que nasceram nela proibidos de sair para sempre.

Lara ficou muito quieta, a cabeça inclinada e os olhos sem piscar, como se a resposta deletivesse penetrado profundamente em seus pensamentos, não deixando espaço para mais nada. —A liberdade deles parece ter um custo significativo.

— A liberdade sempre tem um preço. — Quão maior seria o preço para permitir ao seu povoa liberdade do mundo?

— Sim. — A palavra pareceu grudar na garganta, e ela balançou a cabeça uma vez, seusolhos indo para os homens mortos que ladeavam o caminho. Aren a observou atentamente,procurando em sua expressão qualquer indício de que ela fosse de alguma forma cúmplice emsuas mortes, mas só parecia estar nas profundezas de seu pensamento.

— Você deveria ir até a enseada. Os barcos estão esperando.Desviando os olhos dos cadáveres, Lara caminhou em sua direção, silenciosa como qualquer

Ithicano enquanto navegava na ladeira escorregadia. Seu coração pulou, em seguida, acelerou, o

ritmo constante do tum tum de quando ele estava indo para a batalha ou tentando superar umatempestade. A emoção de que, apesar de saber que não deveria, Aren havia procurado a vidatoda.

Lara parou na frente dele. Seu cabelo estava molhado da chuva, uma mecha perdida coladacontra sua bochecha. Levou todo o seu autocontrole para não afastá-la.

— Depois que os barcos estiverem carregados, vou embora para um... encontro. Você ficarácom minha avó até eu voltar para você.

Lara franziu a testa, mas, ao invés de discutir, estendeu a mão e colocou a mão na dele, suapele febrilmente quente. Então, com força surpreendente, ela empurrou para baixo, encaixando alâmina de volta na bainha.

— Vou esperar perto da água. — Sem outra palavra, ela passou por uma poça e caminhoupelo trajeto em direção à praia.

1 8

LARA

MARÉS DE GUERRA.Era assim que os moradores da ilha de Serrith chamavam isso. Os dois meses mais frios do

ano em que os Mares de Tempestade ficavam calmos o suficiente para os inimigos de Ithicanaatacarem.

E este ano as Marés de Guerra chegaram cedo.Tão cedo que os aldeões ainda não haviam sido evacuados para o local misterioso onde

passariam a temporada, e foi provavelmente por isso que a frota Amaridiana havia se arriscadoduas vezes em ser pega em uma tempestade tardia. Enquanto uma localização singular bemdefendida poderia ser protegida, incontáveis pequenos postos civis eram outra questão.

Era o melhor momento para atacar, pensou a parte fria e estratégica de Lara. Quando oexército de Ithicana seria forçado a dividir seus esforços entre proteger dezenas de pequenasaldeias e proteger a ponte. E se isso acontecesse, ela sabia que Aren colocaria a vida de seu povoem primeiro lugar. Estava escrito em seu rosto quando aquelas cornetas soaram, o pânico e odesespero. A disposição de arriscar tudo para salvá-los. E os mortos olharam em seus olhosquando ele examinou a vila massacrada e soube que havia falhado.

Eles não são de sua responsabilidade, ela lembrou-se violentamente. Sua lealdade é paraMaridrina. Aos civis de sua terra natal que sofrem sob o monopólio de Ithicana no comércio.Para as crianças Maridrinianas que não têm nada em seus pratos além de verduras podres ecarne rançosa, se é que têm alguma coisa para comer. Eles estão morrendo com tanta certezacomo se Ithicana estivesse cortando suas gargantas.

Os pensamentos foram suficientes para mudar sua mente para o contrabando de informaçõesde Ithicana. Embora fosse ser possível codificar mensagens curtas em suas cartas para o pai, elanão se atreveu a tentar incluir nenhum dos detalhes que aprendeu sobre a ponte. Se osdecifradores de código os notassem, teria sorte de sair de Ithicana viva, e tudo o que ela fez seriainútil. Aren sabia onde ela esteve e o que aprendeu. Seria fácil para eles sustentar as defesas enão haveria como pegá-los de surpresa.

Não, ela teria que reunir as informações necessárias e depois contrabandear tudo de uma vez.A questão era como.

Instintivamente, ela sabia que o caminho tinha que ser através do próprio Rei de Ithicana.Seus pensamentos foram para sua caixa de cosméticos, dentro da qual a tinta que Serin havia lhedado estava escondida. Ela não apenas precisava convencer Aren a escrever uma mensagem parao pai, mas também roubar por tempo suficiente para escrever a sua própria, não importando oproblema de selá-la novamente sem que ninguém percebesse que havia sido adulterada.

— Pare de tramar e ajude Taryn com a louça, sua teta preguiçosa.A voz de Nana arrancou Lara de seus pensamentos, e ela se virou para fazer uma careta para

a velha. — O quê?— Você não ouviu ou não entendeu? — As mãos de Nana estavam nos quadris dela, uma

grande cobra enrolada no pescoço e nos ombros. Ela levantou a cabeça para olhar Lara, e elaestremeceu.

— Essa é a minha ilha — a avó de Aren latiu. — E na minha ilha, se quiser comer, vocêtrabalha. De pé. — Ela bateu palmas bruscamente.

Lara se levantou, instantaneamente irritada por ter obedecido, mas sentar-se seria infantil.— Fora.Irritada, ela saiu para o ar da manhã, avistando Taryn, que estava sentada ao lado de uma

banheira, até os cotovelos em água e sabão. A jovem era a única dos guardas de Aren a ficar comela - a que tirou o palito mais curto, tinha agarrado prontamente Lara em sua caminhada vendadade volta pela ponte para a ilha de Nana, que se chamava Gamire. Um grupo de soldadosdesconhecidos as seguiu silenciosamente. Lara achou que a relutância de Taryn em passar umtempo com ela, ou talvez o desapontamento por não ter ido aonde Aren havia ido, tornou o papelindesejável, mas depois de uma noite passada na casa de Nana, a verdadeira razão era aparente.

A velha bruxa era uma megera antipática e intimidadora, e Lara não tinha ideia de como elairia impedir de assassinar a cruel mulher enquanto dormia.

— Você vai se acostumar com ela, depois de um tempo. — Taryn mergulhou um prato nabacia fumegante. — Ajuda que a maioria de nós tenha sido remendado por ela pelo menos umavez. — Soltando o prato, a mulher levantou a camiseta para revelar uma série de cicatrizes emformato oval que cobria uma boa parte das costelas. — Caí na água durante uma briga e umtubarão me atacou. Se não fosse por Nana, eu estaria morta.

Uma faca, uma espada ou uma flecha - essas eram feridas que Lara podia entender, masisso... — Criaturas desagradáveis.

— Na verdade não. — Taryn largou a camiseta e voltou ao prato. — Eles foram treinadospara serem devoradores de homens, mas não é a preferência deles.

Pegando um prato pingando e esfregando-o com uma toalha, Lara pensou nos marinheirosAmaridianos sendo arrastados para baixo da superfície. O florescimento de sangue. — Se vocêdiz.

Afastando seu longo rabo de cavalo escuro, Taryn sorriu, revelando dentes brancos e retosque devem agradar muito a Nana. — Eles são criaturas brilhantes. Há alguns que ficam conoscosempre, mas a maioria deles só estão aqui durante as marés de guerra. Isso, mais que o clima, écomo Nana sabe quando a estação das tempestades está chegando ou passando. Os pescadoresnotam seus números.

Seu pai e Serin sabiam disso? Lara mordeu o interior de suas bochechas, considerando asinformações. Um dos riscos de atacar no início da estação calma era que não havia como preverexatamente quando começaria.

— Eles sempre se reúnem nos lugares onde os invasores mais atacam, como em Midwatch.— Taryn girou um pano dentro de uma caneca lascada antes de entregá-la. — Há mitos quedizem que são guardiões do povo de Ithicana, e é por isso que é proibido prejudicá-los, a menosque seja absolutamente necessário. — Ela riu. — Mas é apenas um mito. Eles vêm para sealimentar e não discernem entre nós ou nossos inimigos. Qualquer um na água é um jogo justo.

Lara estremeceu, colocando o copo seco em uma bacia limpa com o resto.— Pare de tagarelar — Nana latiu à distância. — Há outras tarefas que precisam ser feitas.

Taryn revirou os olhos. — Quer fugir?— É possível escapar de Nana?Uma piscada. — Eu tive muita prática.Fiel à sua palavra, depois que os pratos limpos foram guardados, Taryn conseguiu atribuí-las

a uma tarefa que as mandou para uma vila que Lara nem percebeu que estava lá. Ela pegou osIthicanos se apressando entre as casas de pedra ou persuadindo as crianças que estavam seesquivando de suas tarefas. — Por que não é evacuado?

— Eles não precisam ser. A ilha de Gamine está a salvo.Encontre os civis. Lara lembrou as palavras de Serin, a nuca formigando quando duas

crianças passaram correndo por ela, com sacos de aveia nos braços. Os olhos dela voltaram a vera vila. Havia grupos de homens estripando peixe, mas o nariz dela sentiu o cheiro de pão assado,carne vermelha na grelha e o leve cheiro de limão, embora nunca tivesse visto uma árvore defrutas naquele lugar. O que significava que tudo veio como uma importação através da ponte.

— Aqueles que vivem nas outras ilhas... onde eles vão parar nas Marés de Guerra? — elaperguntou, porque não perguntar seria mais suspeito. E porque estava profundamente curiosasobre onde poderia estar essa localização misteriosa.

— Isso é para o Rei lhe contar. — Taryn deu-lhe um olhar de soslaio. — Ou não, conforme ocaso.

— Ele não é particularmente acessível.Dando de ombros como uma maneira de silenciar essa linha de questionamento, Taryn levou

Lara por um caminho estreito através da selva. Elas caminharam até que a brisa aumentou e ocheiro de sal encheu o ar, ondas altas batiam contra as paredes do penhasco. Lara não viu odestruidor de navios até que o soldado mais velho que o tripulava se aproximou. Oreconhecimento satisfeito brilhou em seus olhos ao ver Taryn, mas seu olhar endureceu aopousar em Lara.

— Estamos livres pela próxima hora — disse Taryn. — Use-a com sabedoria e pegue umpouco da carne cozida que eu cheirei.

Depois que o soldado partiu, ela disse: — Não leve para o lado pessoal. Quase todo mundoacima de uma certa idade perdeu um ente querido ou dois na guerra com Maridrina. Mesmodepois de quinze anos de paz, é difícil para eles verem você como algo que não seja o inimigo.

Eu sou o inimigo, pensou Lara. — Você não?— Eu julguei, no começo. — Os olhos cinzentos de Taryn olharam para longe. — Até você

salvar a vida do meu primo.— Primo? — Lara piscou, olhando a morena musculosa sob uma luz diferente. — Aren é seu

primo?— Vejo que te surpreende. — expirando entretida, Taryn disse: — Meu pai era irmão do pai

de Aren, o que faz de Nana minha avó também, se você estiver acompanhando.Ela não tinha estado, mas talvez devesse. A guarda feminina não era exatamente da realeza,

mas muito próxima. E não havia nada nela que sequer sugerisse que era assim. Taryn usava omesmo equipamento monótono que o resto dos guardas, morava nas acomodações sobressalentesdo acampamento, cozinhava e limpava com o resto de seus companheiros. Além de suas armas,que eram de qualidade, não havia nada nela que sugerisse riqueza ou privilégio. Para onde vaitodo o dinheiro? Lara se perguntou, lembrando-se dos números incríveis de receita que viu naspáginas da mesa de Aren. Quando criança, ela acreditava que Ithicana devia ter palácios de ourocheios de tudo o que pegavam de Maridrina e dos outros Reinos, mas até agora ela tinha vistoapenas um luxo modesto.

— Você poderia ter ficado parada e deixado ele ser morto, mas você arriscou sua vida parasalvá-lo. Esse não é o ato de um inimigo.

Se você soubesse. O estômago de Lara ficou vazio, o café da manhã não estava mais tão bom.Pegando uma luneta, Taryn percorreu o oceano, dando a Lara a oportunidade de examinar o

destruidor de navios. A catapulta era grande, feita de madeira maciça e aço, montada em umabase aparafusada ao chão rochoso abaixo dela. Havia várias alavancas e engrenagens, e de cadalado havia dois dispositivos idênticos, mas muito menores. Um olhar por cima do ombro revelouuma pilha irregular coberta de lona verde-acinzentada, que eram sem dúvida os projéteis.

Aproximando à borda da lona, Lara olhou uma pedra que poderia pesar uns vinte quilos. Nãoparecia grande o suficiente para ter causado o dano que ela viu encenar em Midwatch, mascombinado com força suficiente... Ela voltou-se para o destruidor de navios e encontrou Taryn aobservando.

A outra mulher sorriu. — Lançamos Aren, uma vez.— Perdão?— Lia e eu. Embora tenha sido idéia dele, para que você não pense que somos idiotas totais.

— Taryn deu um tapinha na máquina. — Talvez tivéssemos doze ou treze anos, e ele teve agrande noção de que seria divertido ver o quão alto voaríamos. Embora ele tenha sido o único aexperimentar.

— E isto... Funcionou?— Ah, ele voou bem. Mas o que não contava foi o quanto a aterrissagem doeria. — Ela

gargalhou alegremente. — Felizmente, havia um barco de pesca por perto para puxá-lo para fora.Nana nos fez arrastar pedras por semanas como punição, e isso foi depois que Jor gritou conoscopor toda a ilha.

— Ele tem sorte de não ter sido morto. — E quão diferente a vida de Lara teria sido setivesse? Ou ela teria mesmo uma vida? Podia facilmente imaginar seu pai recebendo as notíciasda morte prematura do príncipe de Ithicana, apenas para se virar e exterminar todos osenvolvidos na trama que dependiam do Tratado de Quinze Anos.

Taryn sorriu. — Você poderia dizer isso sobre metade das coisas que ele faz. — Ela bateu naarma novamente. — Você quer tentar?

Arquejando em uma risada, Lara disse: — E agora vejo o coração do plano de me trazer atéaqui.

— Você não. Uma pedra.— Ah. — Lara olhou a máquina sob uma luz totalmente nova. — Sim. Sim, eu quero.Era uma máquina incrível, capaz de ser operada por um único indivíduo, mas, dado o peso

das pedras, Lara estava feliz por haver duas delas. Girou silenciosamente em sua base, e váriasmanivelas permitiram que o usuário a ajustasse para alterar a distância que uma pedra poderia serlançada. As catapultas menores, ela aprendeu, destinavam-se a marcar a distância, tudofinamente calibrado.

— Vamos tentar atingir esse pedaço de madeira. — Sob o olhar atento de Taryn, Laraarremessou pequenas pedras nos destroços flutuantes até que a atingiu.

— Muito bem, Majestade. Agora ajustamos o grande para a mesma distância assim. — Amulher girou as manivelas e Lara observou atentamente até ela recuar. — Agora você faz ashonras.

Mãos suando de emoção, Lara pegou a maior alavanca de todas e puxou. A catapulta sesoltou com um estalo tremendo, e as duas contornaram a máquina para ver como a rochanavegava no ar e colidia com a madeira flutuante.

Taryn deu um soco no ar. — Você afundou seu primeiro navio!Houve uma comoção atrás delas, e o soldado que elas haviam aliviado correu ao lado delas.

— Invasores? — Ele demandou.— Testes. — A voz de Taryn era fria. — Sua Majestade ordenou que todos os destruidores

de navio fossem testados novamente. Este parece estar em ordem. — Taryn assentiu para Lara.— Vamos continuar, Vossa Excelência?

Lara escondeu um sorriso. — Certamente.Elas passaram o dia em um passeio pela ilha testando os destruidores de navios e depois se

encontraram de volta à vila para jantar, onde ficaram em pé em volta de uma fogueira com quasetodos os moradores presentes. Taryn disse a ela que era para homenagear aquelas vidas perdidasna ilha vizinha de Serrith. Lara comeu carne e legumes grelhados dos palitos em que estavamespetados, bebeu a cerveja espumosa de uma caneca que nunca parecia esvaziar e aqueceu asmãos contra as chamas quando a brisa da noite esfriou.

Os aldeões desconfiaram dela a princípio, e Lara ficou um pouco à parte, ouvindo históriasde mitos de Ithicana, de serpentes e tempestades que defendiam as ilhas esmeraldas. Da própriaponte antiga, que suas lendas diziam não ter sido construída, mas crescera da terra como umacoisa viva. Suas palavras aumentaram e diminuíram até que as crianças cochilaram nos braçosdos pais e foram colocadas sob mantas de lã. Em seguida, foram trazidos instrumentos, tambor,violão e flauta, a música acompanhando os homens e as mulheres enquanto cantavam edançavam, Taryn juntando-se com uma voz soprano surpreendentemente adorável. Elesconvenceram Lara a participar do canto, mas ela implorou, dizendo que tinha uma voz terrível,mas era principalmente porque queria assistir. E escutar. E aprender.

Quando a reunião começou a se acalmar, os casais escapando na escuridão de mãos dadas, opovo mais velho formando círculos onde fofocavam e reclamavam, passando um cachimbo depessoa para pessoa, Taryn finalmente descansou a mão no ombro de Lara. — Devemos voltarantes que Nana venha nos procurar.

Guiadas pela fraca luz de uma lamparina, elas subiram o caminho estreito, os sons da selvaferoz e tumultuada ao seu redor.

— Eu não queria ser uma soldada, você sabe.Lara lançou um olhar de soslaio para Taryn. — Não estou surpresa. Você me parece mais

uma pescadora.Taryn cuspiu uma risada, mas seu tom ficou sério. — Eu queria ir para uma das

universidades de Harendell para estudar música.As universidades de Harendell eram renomadas em todos os Reinos, norte e sul, mas a ideia

de que uma Ithicana desejasse participar pareceu estranho a Lara, porque era... impossível. —Mas os Ithicanos nunca saem?

— Porque é proibido. — Taryn acenou com a mão. — Ah, existem espiões que vão, é claro,mas não é a mesma coisa. É uma vida falsa onde você não é você mesmo, e eu não pude suportarisso. De seguir o meu sonho como outra pessoa... — Ela interrompeu. — Eu nunca contei a meuspais, porque sabia que eles desejavam que eu treinasse como guerreira e acabassem sendonomeada para o conselho de Aren. Mas eu disse à minha tia Delia.

Mãe de Aren, pensou Lara. A Rainha.— Minha tia acreditava que a maneira mais segura de ganhar confiança era dando. — Taryn

puxou o braço de Lara, parando-a para permitir que algo deslizasse pelo caminho antes decontinuar. — Todos apoiaram o tratado para acabar com a guerra com Maridrina, mas ninguémapoiou a inclusão de uma cláusula de casamento. Ninguém queria que Aren se casasse com

alguém de fora, especialmente uma maridriniana. Mas tia Delia acreditava que era a únicamaneira de termos paz com nossos vizinhos. A única maneira das pessoas pararem de ver uminimigo quando nos sentamos do outro lado da mesa para negociar.

É mentira, a voz de Serin gritou dentro da cabeça de Lara. Usando bondade para fazer vocêrevelar o que não deveria. Mas Lara silenciou a voz. — Se ela acreditava que esse casamentoimpediria os Maridrinianos de ver Ithicana como inimiga, ela estava enganada.

Taryn balançou a cabeça. — Ela não queria mudar as crenças do seu Reino. Ela queria mudara nossa.

Não se podia dizer mais nada, quando chegaram à casa de Nana, a velha em pé na porta,observando-as se aproximarem. — As crianças rebeldes voltam.

— Nós nos mantivemos ocupadas, Nana.— Ocupadas bebendo, pelo cheiro.Um comentário um tanto hipócrita dado que Lara podia sentir o cheiro de álcool no hálito da

mulher, uma garrafa e um copo meio cheio sobre a mesa atrás dela.— Estou indo para a cama — disse Lara, sem humor para ser repreendida, mas Nana pegou o

braço de Lara com força. Com a outra mão, ela estendeu uma bolsa que estremeceu e chiou. —Primeiro você alimenta as cobras.

Lara olhou a bolsa com desgosto. Não porque tivesse alguma aversão particular a ratos, masporque ela estava cansada da velha bruxa que a ordenava como uma criada. O que ela queria erasair hoje à noite para dar uma olhada no píer da ponte, mas Nana provavelmente pretendia ficarsentada olhando para ela. — Não.

As sobrancelhas de Nana se levantaram. — Não? A princesinha é boa demais para alimentaros animais de estimação de uma velha?

Os dedos de Lara se apertaram reflexivamente. Então seus olhos brilharam nas prateleirasacima das gaiolas de cobras, e uma ideia começou a se formar. — Eu tenho medo de ratos — elamentiu, afastando-se da bolsa enquanto Nana balançava na direção dela.

— Supere isso.Lara foi forçada a pegar a bolsa ou espalhar os ratos por toda parte. Amaldiçoando

silenciosamente a velha, Lara tirou um rato da bolsa pelo rabo, destravou cuidadosamente umadas gaiolas e jogou a criatura para dentro antes de passar para a próxima.

As cobras eram todas venenosas. Taryn havia dito a ela que Nana colhia o veneno e o usavapara criar antídotos, bem como remédios para várias aflições naturais. Havia dezenas de frascosde líquido nebuloso armazenados acima das gaiolas e acima delas, inúmeras outras plantas eremédios, todos claramente rotulados. Entre cada gaiola, Lara examinou o conteúdo, sorrindoquando encontrou o que estava procurando.

Deixando cair o saco ainda contorcido de ratos, Lara gritou: — Isso me mordeu!— Qual cobra? — Nana exigiu, um toque de pânico em sua voz.— Não é uma cobra — ela soluçou, enfiando um dos dedos na boca e mordendo para criar

uma lesão realista. — Um rato!— Droga, garota! — Nana pegou a bolsa, mas já era tarde demais. Os ratos restantes estavam

correndo para todos os lados. — Taryn, pegue as malditas coisas antes que entrem na minhadespensa.

Lara lamentou, subindo em uma cadeira enquanto os roedores tiravam vantagem de sualiberdade. Mas quando as costas de Nana se viraram, ela pegou um pequeno pote das prateleiras.

— Pegue-os, pegue-os!Taryn estava obedientemente perseguindo os ratos, mas ela bebeu o suficiente naquela noite

para que seus movimentos fossem muito lentos, os roedores se esquivavam facilmente até que sevirou para pisar neles com suas botas pesadas. Lara aproveitou o momento para abrir o frasco.

— Não os mate! — Nana tinha dois ratos pelas caudas e os empurrava dentro da bolsa. — Ascobras não os comerão se estiverem mortos! — Ela se lançou para outro rato, e Lara se inclinoupara o lado e jogou um generoso respingo do conteúdo da jarra no copo de Nana, mais uma vezagradecida pela preferência Ithicana por bebidas fortes.

— Peguei um! — Taryn jogou o rato no saco de Nana. Lara fechou o frasco e empurrou-o devolta na prateleira, depois ficou de pé na cadeira, observando inutilmente as duas mulheresrecolherem os ratos restantes.

Murmurando baixinho, Nana começou a terminar de alimentar as cobras, então agarrou amão de Lara, examinando a pequena ferida sangrando. — Idiota. Vai te servir bem se issoinfeccionar.

Tirando a mão do aperto da velha, Lara olhou para ela. — Eu estou indo para a cama. —Suas botas bateram imperiosamente enquanto caminhava até a cama que foi feita para ela, esorriu enquanto, pelo canto do olho, observava Nana tomar o conteúdo de sua caneca.

Agora tinha que esperar.

1 9

LARA

NEM UMA HORA DEPOIS, COM A CASA ESCURA, O GEMIDO DE NANA DIVIDIU O SILÊNCIO. UM

momento depois, a velha cambaleou para fora de sua cama e saiu pela porta. Em um piscar deolhos, Lara foi até a parede de frascos, pegando um que havia notado antes. Medindo uma gota,ela o segurou sob a narina de Taryn, silenciosamente se desculpando pela dor de cabeça quecausaria pela manhã enquanto a mulher roncava suavemente.

Lara saiu em uma poça luminosa. Uma brisa suave percorreu seus cabelos, cheirando a selvae chuva, as estrelas no céu apenas visíveis em trechos através da crescente nuvem de nuvens.Lara pegou o lampião, elevou a chama o mais alto possível e depois caminhou em direção àpequena dependência onde o banheiro estava localizado.

Parando do lado de fora, ela sorriu com os sons vindos de dentro, depois girou em círculo,olhando para a escuridão. Como previsto, um homem alto Ithicano apareceu. — Existe algo emque eu possa ajudá-la, Vossa Excelência? — Ele colocou o polegar no cinto enquanto a olhava.

— Ah! — Lara pulou, depois pressionou a mão na boca como se estivesse assustada. —Bem, eu precisava... — Ela apontou para o prédio exatamente quando um peido tremendoreverberou de dentro da construção, seguido por um gemido de consternação. Lara pode estarfora de seu elemento em Ithicana, mas quando se tratava de narcóticos, ela estava em casa. Nanaestava exatamente onde esperava que estivesse.

Os olhos do guarda se arregalaram à luz da lamparina. — Certo. — Ele obviamente estavatentando não rir. — Entendo. Bem, talvez você possa...

— Um arbusto serve. — Lara riu, empurrando a lamparina para ele. — Você pode segurarisso para mim?

Aliviando-se atrás da cobertura de uma árvore, Lara voltou para o guarda e pegou o lampião.Segurando-o, notou como ele apertou os olhos e piscou com o brilho. — Você acha que ela vaificar bem? — Lara apontou para a casinha. — Você acha que deveríamos...?

— Não! — O pensamento de interromper Nana no banheiro claramente não era algo que elequisesse arriscar. — Tenho certeza que ela vai ficar bem.

— Acredito que sim. — Lara deu um sorriso vencedor, depois se retirou para a casa. Nanaestaria cagando por horas, mas ficaria bem na manhã seguinte. Apagando o lampião, ela opendurou no gancho e entrou.

Mas não fechou a porta completamente.Contando até cinco, ela abriu novamente, recebida por nada além de escuridão. Os olhos dela

não tinham se ajustado da luz brilhante da lamparina, mas isso significava que nem os do guarda.Movendo-se às cegas, Lara deu a volta na esquina da casa, onde esperou até que pudesse

distinguir as sombras das árvores, depois caiu no chão, rastejando silenciosamente ao lado daparede do jardim de Nana até que estivesse na selva.

As árvores nesta ilha não eram tão grossas quanto em Midwatch, a lua fraca e a luz dasestrelas filtrada através das folhas, permitindo que Lara se movesse a passos lentos pelo caminhoem direção ao píer da ponte. Qualquer som que ela emitia estava coberto pela brisa do oceano,mas fazia uma pausa ocasional para ouvir sons de perseguição. Não havia nenhum.

O leve aroma de rocha úmida pairava sobre seu nariz, estranho e ainda familiar, e depois deum batimento cardíaco, Lara reconheceu o odor único da pedra da ponte. Movendo-se maiscautelosamente, para prevenir guardas, ela subiu o caminho até que, através das árvores,distinguiu a grande sombra do píer subindo pela noite. Uma sombra que se espalhava de norte asul: a ponte.

Abrindo caminho entre as árvores, Lara procurou por algum sinal de guarda, mas não havianenhum, então caminhou até a base do píer. Foi construído a partir da combinação de umafloramento de rocha natural e uma pedra de ponte, e sustentava a ponte talvez seis metros acimado solo. O terreno ao redor era rochoso, então não havia um caminho claro que levasse à entradaque sabia que estava lá. Lara correu a unha contra a extensão da pedra da ponte que compunha opíer, procurando na base o contorno da porta, mas logo desistiu. Havia muitos arranhões emarcas, e ela não tinha muito tempo. Então recorreu a empurrar a superfície, jogando seu pesocontra a pedra na esperança de que se abrisse.

Nada.Xingando, Lara foi até a parte do píer que era de pedra natural. Tirando as botas pesadas e

colocando-as na sombra, ela começou a subir. Mais e mais subia, costas e ombros queimandocom o esforço. Ela alcançou o fundo da ponte, sentindo ao lado desta e sorrindo ao encontrarestrias lineares na pedra que forneciam apoios de mão suficientes para ela subir. Seus dedosgritando com ela, Lara subiu pela lateral da ponte, rolando para o topo.

A escuridão se espalhava sob ela em um interminável mar noturno, apenas algumas pontadasde luz do interior da ilha quebrando a escuridão aveludada. Movendo-se devagar, Lara arrastouos dedos pelo meio da ponte, sabendo que acabaria encontrando um marcador idêntico ao dequilômetro no interior.

O suor escorria por suas costas, seu relógio interno dizendo que precisava voltar para a casade Nana, mas ela continuou até encontrá-lo. Então caminhou de volta ao píer, contando seuspassos cuidadosamente já calculados.

Apenas para ouvir vozes vindas da direção oposta.— Malditos idiotas. O que eles estavam pensando em estacionar um grupo de comerciantes

acima de Gamire durante a noite?Foi Jor. Ele e quem sabia quantos outros estavam no topo da ponte com ela.Com o coração batendo forte, Lara caiu de bruços, rastejando até a beirada e espiando.

Abaixo, um grupo saiu das árvores, um deles carregando um pote com uma substância levementebrilhante.

— Eles não sabem que estão acima de Gamire, Jor. — A voz de Lia. — Esse é o pontoprincipal.

— Não faz com que isso seja menos doloroso.Lara rolou para a extremidade oposta do grupo abaixo, então cuidadosamente se abaixou para

o lado, os dedos suados tremendo de esforço.— Vocês dois estão terminando aí em cima?A voz de Aren. Uma das mãos de Lara escorregou e ela ofegou, balançando com uma mão

até recuperar o aperto.— Nós demos uma olhada. Há um grupo de comerciantes acampados para a noite logo

abaixo de nós, e a escotilha do lado de cima está muito perto para que possamos entrar semsermos detectados. É uma caminhada de cinco quilômetros em qualquer direção até a próximaescotilha e, com esses ventos soprando, eu não aconselho. Ninguém está pensando em passar anoite amarrado ao topo da ponte sob a chuva torrencial.

Aren soltou um suspiro cansado. — Nós vamos de barco, então.— Em águas agitadas. Espero que tudo o que Nana deu à sua adorável noiva acalme seu

estômago o suficiente para a jornada. Embora algo forte possa estar em ordem para lidar com seumaldito pânico.

— Deixe Lara em paz. — A voz de Aren não estava divertida. — Ela foi criada no deserto enão sabe nadar. Cair na água é um medo válido.

— Sim, sim — Jor murmurou, e Lara usou o som para descer ainda mais. Quando estava atrês metros do fundo, ela pulou, seus pés descalços fazendo um barulho rápido quando bateu nochão e rolou, dando cinco longos passos até que estava fora de vista nas árvores. A lamaespremeu-se entre os dedos dos pés enquanto ela circulava, observando Aren descansar as mãosno cais, uma acima da outra, e pressionar duas vezes. Um leve clique e um painel de pedra seabriu. Ele entrou.

Acima, Jor e Lia haviam amarrado uma corda através de um dos muitos anéis embutidos naponte e estavam descendo o píer lado a lado. Lia estava puxando a corda pelo laço quando Arenressurgiu e disse: — Tem alguém dormindo bem em cima das portas ensanguentadas.

— Como eu disse — respondeu Jor. — Idiotas.— É isso ai. Vamos lá. — Aren começou a seguir o caminho em direção à casa de Nana.

Para recuperar ela, percebeu.Merda. Lara esperou até que os outros o seguissem antes de subir o píer para recuperar as

botas do esconderijo. Seria uma corrida louca ao voltar para a casa de Nana sem ser detectada,mas não podia sair sem dar uma olhada lá dentro. Pressionando as mãos duas vezes no mesmolocal que Aren, Lara sorriu quando a porta se abriu.

Ela esperava que estivesse totalmente escuro por dentro, mas as escadas curvas que levavampara cima eram iluminadas por mais lamparinas. Subindo os degraus três de cada vez, elaalcançou uma parede de pedra lisa. Sabendo que havia o risco de ser pega, mas julgando quevalia a recompensa, apertou as mãos contra ela duas vezes.

Clique.Ela estremeceu com o som, depois abriu uma fresta da porta, o bloco pesado se movendo em

dobradiças silenciosas. De fato, havia um homem dormindo na frente disso, seus roncosprovavelmente tudo o que impedia os soldados Ithicanos mascarados vigiando por dentro de terouvido o barulho.

A porta precisava ser marcada para que os soldados de seu pai pudessem encontrá-la pordentro. No entanto, ela sabia que os Ithicanos varriam a ponte em busca de sinais de adulteração,de modo que tinha que ser algo que eles não notariam.

Sua mente correu ao longo dos anos das lições de Serin, sabendo que ela precisava de umasolução e que precisava se apresentar imediatamente ou Aren iria alcançar Nana antes dela eencontrá-la desaparecida.

Uma ideia surgiu em seus pensamentos. Puxando a faca, Lara cortou uma ferida superficialno antebraço e depois afastou a lâmina. Cobrindo os dedos em sangue, traçou cuidadosamente aborda externa da porta. Uma vez seco, não seria perceptível contra a pedra. Mas se pulverizado

com o composto certo, reagiria.Não havia tempo para fazer mais nada.Fechando a porta com cuidado, Lara voou escada abaixo e fechou a porta na base. Então

estava correndo o mais rápido que ousava, seus pés descalços arranhando raízes e pedras. Masela não conseguia se mexer tão rápido com suas pesadas botas Ithicanas, mantendo qualquernível de silêncio.

À frente, ela percebeu o brilho fraco da jarra que Aren carregava e diminuiu a velocidade,subindo tão perto deles quanto ousava. Ela pensou em tentar passar por eles nas árvores, mas nãohavia chance deles não a ouvirem. Não no escuro, neste ritmo.

A casa de Nana apareceu à frente.Pense em um plano, ela silenciosamente gritou consigo mesma enquanto observava Aren

contornar a casa. Abriu a porta. Ele voltou então em um flash gritando: — Onde ela está?Puxando as botas, Lara cortou as árvores e depois saiu para a clareira, caminhando através

dela em direção a Aren. — Estou bem aqui, então pare de gritar.Ele olhou para ela, assim como seu guarda-costas e o guarda encarregados de vigiar a casa.

Nana escolheu esse momento para abrir a porta do banheiro apenas com uma camisola e botas.— O que — Aren exigiu saber — você está fazendo vagando pela floresta no meio da noite?A voz de Serin ecoou em sua cabeça: a maioria das pessoas mente para evitar vergonha.

Muito poucas pessoas mentem para se envergonharem, o que inclina os outros a acreditar nelas.Lara olhou para o chão, sabendo que o suor escorrendo pelo rosto e a pele corada apenas

acrescentariam verdade à mentira. — Eu não estava me sentindo bem, e as instalações estavam...— apontou para Nana — ocupadas.

Aren virou-se para a avó. — Você está doente?— De caganeira. Eu vou viver.— Deve ter sido algo que comemos. — Lara pressionou a mão no estômago como se doesse.

— Ou talvez alguma sujeira nos ratos que me fez tocar.— Ratos? Você a fez alimentar suas cobras? — Balançando a cabeça, Aren virou-se para o

guarda. — Onde diabos você estava?— Aqui. Eu não a vi sair. Eu estava vigiando.— Não muito bem.— Eu estava tentando ser discreta — Lara retrucou, chutando a ponta da bota na terra. —

Agora, se você tiver terminado de ficar boquiaberto comigo, eu gostaria de voltar a dormir.Aren exalou um longo suspiro.— O quê? — Lara cruzou os braços sob os seios e olhou para ele.— Uma frota de trinta navios Amaridianos está à espreita na costa de Ithicana. Há uma

tempestade que pode nos levar a gastar mais tempo, mas Midwatch está sob meu comando, e eupreciso voltar para preparar nossas defesas.

— Eles pretendem invadir?— Provável. — Ele exalou. — Você pode voltar conosco ou ficar aqui com Nana para as

Marés de Guerra. Sua escolha.— Eu vou voltar para Midwatch. — Nem no inferno havia como passar outro dia com aquela

mulher horrível. Não importava que, a julgar pela expressão de olhos estreitos de Nana, a velhanão tenha sido totalmente enganada por sua decepção. Sem dúvida, amarraria Lara na cama todasas noites e triplicaria a guarda. E por isso precisava avançar com seu plano de atrair Aren, Laraacrescentou: — Eu quero ir com você.

Sua testa franziu e ele desviou o olhar. — Não podemos atravessar a ponte. Há uma grupo de

comerciantes a caminho de Southwatch, acampados acima deste píer durante a noite, e nãopodemos entrar sem que eles vejam. Terá que ser de barco.

Lara engoliu o desconforto que ardia em seu estômago, ouvindo os ventos crescentes.Controle seu medo, ela ordenou. Há muito a ser ganho aqui, se você mantiver seu juízo sobrevocê.

— Eu vou conseguir — ela murmurou.Aren se virou contra Taryn, que estava esfregando as têmporas. — Não é seu melhor

momento, soldada. Jor vai lidar com o seu castigo quando estivermos em casa.— Desculpe, Vossa Excelência — disse Taryn, e a culpa aumentou brevemente em Lara

antes de engoli-la.Aren levou Lara pela mão na escuridão, Jor na liderança e Taryn grogue atrás, a outra mulher

carregando algo volumoso que esbarrou em seu ombro enquanto corria.Os ventos estavam subindo mais alto a cada segundo, mas sobre eles, as ondas batendo

contra as paredes do penhasco encheram os ouvidos de Lara, e seu coração trovejouviolentamente, sabendo que eles pretendiam navegar por elas. O suor rolou em suas costasenquanto alcançavam o topo da falésia com vista para o mar, nada visível na escuridão, a lua e asestrelas obscurecidas pelas nuvens.

Começou a chover.Uma garoa fria que ensopou seus cabelos e escorreu pelas costas de sua túnica enquanto ela

observava os soldados estacionados na ilha se esforçarem para levantar o que parecia ser umaenorme escada de madeira no ar. A extremidade estava presa a cordas e foram necessários oitopara abaixá-la sobre a beira do penhasco, na escuridão abaixo.

— Há uma grande rocha aflorando abaixo — Aren gritou em seu ouvido. — Descemos edepois iremos para a ilhota onde ancoramos os barcos. A maré está baixa, mas a água aindaestará nos seus joelhos.

— Vamos lá! — Jor estava na escada e desceu em direção ao mar abaixo, Lia o seguindo.— Eu vou primeiro. Então você, então Taryn.Lara assentiu sem palavras, incapaz de falar com o bater de seus dentes. Aren subiu na

escada e desceu, mas quando Lara agarrou os degraus, seus dedos estavam dormentes. Seusbraços e pernas tremiam, e levou toda a sua força de vontade para descer. Para baixo e para baixoem direção à água.

Se eles podem fazer isso, então você pode. Ela repetiu o cântico, os lábios se movendosilenciosamente, as mãos escorregadias de suor, gotas borrifando nas roupas enquanto ondasapós ondas martelavam o afloramento abaixo. Finalmente, às mãos de Aren se fecharam emtorno de sua cintura, firmando-a enquanto ela pisava nas pedras viscosas. Taryn caiu ummomento depois, e quando ela deu a chamada, houve um rangido quando os soldados subiram aescada de volta à ilha.

Lara não viu nada. Nada. Mas ao seu redor, a água rugia. Um passo na direção errada eestava morta. O pensamento a fez cair de joelhos, apertando os dedos nas pedras.

— Não temos tempo para você rastejar — Aren gritou sobre o barulho. — Estaremos emuma situação muito pior se ficarmos presos aqui quando a maré mudar.

Seus joelhos tremiam quando ela se levantou, sua respiração saindo em um grande suspiroquando deu um passo, depois dois, permitindo que Aren a guiasse.

— Jor marcou o caminho. — Aren levantou a mão, usando-a para apontar, porque não podiaver o contorno dele na escuridão.

Lá.

Manchas de algas brilhantes eram fracamente visíveis a cada poucos passos. Seu coração sefirmou e ela seguiu em frente, sua confiança crescendo a cada passo.

— Há cerca de um trecho de três metros daqui que está submerso. Você ficará de joelhos,mas a corrente é forte, então se segure em mim.

— Maldito seja por me forçar a fazer isso.Aren riu, o que a irritou o suficiente para dar o primeiro passo.A bota de Lara encheu-se de água, a corrente empurrando contra sua perna, arrastando-a na

direção oposta à medida que subiu. Ela se agarrou ao cinto de Aren, sentindo a mão firme deTaryn em seu ombro por trás.

Passo.Passo.Seu dedo pegou uma pedra e Lara tropeçou, um soluço rasgou sua garganta quando

recuperou o equilíbrio.Passo.Passo.Uma grande onda surgiu contra ela, e ela deslizou para o lado, as pernas lavadas debaixo

dela. Ela estava até a cintura na água, apenas o aperto no cinto de Aren a mantendo na vertical. Ogrito dela cortou a noite, frenético, desesperado e primitivo, depois as mãos dele se fecharam emtorno de seus braços, arrastando-a da água.

— Você está fora. Está tudo bem. O pior acabou.— No segundo em que estiver em terra seca, vou estripá-lo como um porco! — Ela odiava

ter medo e a única coisa forte o suficiente para afugentar a emoção era a raiva. — Eu vou sufocá-lo enquanto dorme!

Uma dúzia de vozes riu, a voz de Jor a mais alta de todas. — E ela finalmente mostra suasverdadeiras intenções.

Aren bufou. — Você pode cortar seu sarcasmo até que você esteja em um lugar onde nãopossa pegá-lo e jogá-lo no mar. — Então Aren foi para o outro lado da ilhota.

A mão de Taryn pegou seu cotovelo, ajudando a garota a se levantar. — Vamos levar apenasuma hora para chegar a Midwatch. — Ela apertou uma alça na mão de Lara. — Eu pedi a um dosmoradores que fizesse isso para você. Se algo acontecer, você será mantida flutuando até que umde nós possa levá-la de volta ao barco.

Lara passou as mãos pelo objeto, que era uma alça presa a um barril. Um pequeno ato, masuma enorme bondade. E uma que Lara não merecia. — Obrigada.

Os Ithicanos a depositaram em um dos barcos e ela se encolheu ali, agarrando-se com umamão ao barril e a outra à beira enquanto empurravam para a água. Suas vozes eramdespreocupadas, apesar de ser uma loucura que nenhum indivíduo são empreenderia sobnenhuma circunstância.

O barco subiu e desceu sobre as ondas, e seu estômago fez o mesmo, mas Lara nãoconseguiu se soltar o suficiente para pegar a raiz que Nana lhe deu em seu bolso. Ela estavaocupada vomitando na borda quando o grupo ficou em silêncio, as mãos ainda em cabos e lemese cordas.

— Lá estão eles. — A voz de Lia soou.Jor xingou baixinho. — Espero que essa tempestade se torne desagradável e os coloque no

fundo do mar.Erguendo a cabeça, Lara olhou com dificuldade sobre a água. Balançando ao longe havia

dezenas, não, centenas de luzes. E transportado pelo vento na direção deles, havia o som da

música e das vozes cantadas.Navios.A frota Amaridiana.— Nós devemos acender alguns deles — Lia retrucou. — Isso abafaria a festa deles.Como uma só, todas as cabeças se viraram na direção de Aren. Unhas cavando na beira do

barco, Lara esperou para ver como ele reagiria.— Continue para Midwatch. — Sua voz era baixa.— Mas poderíamos afundar alguns deles, — argumentou Lia. — Nós temos os suprimentos.— Midwatch — Aren repetiu. — Eles não atacaram e nós não instigaremos.— Mas eles vão! Você sabe que assim que o tempo mudar, eles invadirão!— Quando invadirem, lutaremos contra eles. Como sempre.Não havia emoção na voz de Aren, mas Lara podia sentir frustração e raiva saindo dele em

ondas.— Ou poderíamos detê-los agora. — Lia não estava desistindo.— Eles estão fora de nossas águas e não mostraram agressão. — Aren se mexeu inquieto, seu

joelho roçando nas costas de Lara. — Se atacarmos sem provocação, Amarid terá motivos paradeclarar guerra contra nós. São alguns navios - um ataque. Nós podemos lidar com isso. A forçatotal da frota de Amarid contra nós é uma questão completamente diferente. Ithicana não instigaconflito - não podemos permitir. Agora, nos leve de volta para Midwatch.

Sem palavras, todos começaram a se mover e os barcos recuperaram a velocidade, pulandoatravés das ondas. No entanto, Lara não conseguia desviar o olhar da luz fraca da frota, odiscurso do pai daquele fatídico jantar mudando e sacudindo em sua cabeça. Durante toda amemória, Ithicana colocou um domínio sobre o comércio, criando Reinos e quebrando-os comose fosse um deus das trevas.

Ela acreditou nisso. Acreditava nele sem questionar. No entanto, as palavras de Aren... elasnão eram de um governante com poder divino. Muito pelo contrário. Foram as palavras de umlíder de um Reino que lutava para sobreviver.

2 0

AREN

AREN ESFREGOU OS OLHOS, QUE PARECIAM ESTAR CHEIOS DE AREIA E DEPOIS SAÍRAM PARA ASSAR

no sol do verão por uma semana. As costelas latejavam, as costas doíam e as palmas das mãosestavam marcadas por bolhas devido a muitos dias de uso excessivo. O pior foi o dente que eletinha quase certeza de ter sido arrancado quando Lara acidentalmente bateu em seu rosto depoisque quase foi varrida pelo oceano. Ele rezou para que isso se resolvesse, ou Nana nunca odeixaria ouvir o fim.

— Estamos o mais prontos possível. — Jor bebeu profundamente de um frasco de prata quetirou do bolso antes de passá-lo pela fogueira para o Rei. — Parece que você precisa disso.

Ele provavelmente precisava, mas Aren acenou com o frasco. Sua equipe mais Lara com orosto pálido reboque, havia retornado a Midwatch pouco antes do amanhecer, e o dia inteirohavia sido gasto em preparação para o inevitável ataque Amaridiano. Agora, havia pouco a fazeralém de observar o tempo. Com os ventos ainda altos, é improvável que os atacantes tentematracar, mas uma tempestade leve como essa não duraria. E certamente não seria suficiente paralevar os navios de volta à segurança dos portos Amaridianos. — Eu vou fazer a próximapatrulha.

Jor levantou uma sobrancelha. — Você já fez o seu turno.— Eu preciso me mover. Você sabe que o ócio me deixa louco.— Está com uma chuva fria. Você vai se arrepender de sua decisão no meio da ilha.— Arrependimento — disse Aren, pegando sua capa, — atualmente é o meu nome do meio.— Você está particularmente choroso essa noite.Coçando a bochecha com o dedo médio, Aren ergueu a mão para reconhecer o soldado que

acabou de chegar do perímetro, depois passou pela porta.— É melhor ir com você. Apenas no caso de você desistir no meio do caminho e correr para

o conforto da casa chique.— Eu não contaria com isso.A chuva forte estava congelando, o vento soprando o capuz da capa de Aren até que desistiu

de cobrir a cabeça. Eles caminharam em silêncio por um longo tempo, mais concentrados emmanter os pés nas pedras escorregadias e na lama enquanto atravessavam os penhascos com vistapara o mar. Mais de alguns soldados haviam morrido e, apesar da série de dias de merda queteve, Aren não se importou em se juntar a eles.

Quando alcançaram o primeiro mirante, os dois olhando para as águas agitadas, Jorfinalmente disse: — Você estava certo em não ceder com eles ontem.

— Talvez. — Os pensamentos de Aren foram para a reunião em Eranahl, para os rostos

duros de seus comandantes de Watch quando eles chegaram, abrindo caminho pelos evacuadosque desembarcavam de seus navios, suprimentos e crianças chorando por toda parte. Aevacuações desorganizadas da atualidade, ele ouviu os murmúrios mais vezes do que poderiacontar. Ele estava inclinado a concordar com o sentimento.

— É dever do conselho questionar você. Eles pressionavam sua mãe constantemente,especialmente sobre isso. Ela aprendeu a saber quando estavam dando bons conselhos e quandoera o medo deles falando - quando defender sua posição e quando conceder.

Aren extraiu sua luneta, examinando a escuridão em busca de quaisquer luzes no horizonteque marcassem um navio. — Você acha que eu estava certo em defender minha posição nisso?

O único som era o vento uivando e as ondas batendo contra os penhascos abaixo. — Eu nãosei. Não sei se há uma escolha certa nisso, Aren. Todos os caminhos levam à guerra. — Jorrecostou-se nas mãos. — Mas o que está feito está feito, pelo menos no que diz respeito à batalhaque estamos enfrentando. Agora, se você me der licença, preciso mijar.

O homem mais velho desapareceu silenciosamente na selva e, em seguida, fez suasnecessidades não tão silenciosamente. Aren permaneceu agachado nas rochas, enfiando as mãosnos bolsos para aquecê-las. Com a evacuação praticamente concluída, seu pessoal haviarespondido à convocação anual de armas, todos entre quinze e cinquenta anos, a caminho ou paraa guarnição designada, a única exceção sendo famílias com crianças pequenas, que enviavamapenas um dos pais. Corpos capazes podem lutar. Os incapazes desempenham outros papéis,sejam eles vigilantes, enviando sinais, organizando quedas de suprimentos ou gerenciando acomplexa tarefa de garantir que cada uma das centenas de postos avançados tenha uma equipeadequada. Ithicana não tinha civis durante as Marés de Guerra. Tinha um exército.

Um exército furioso por Amarid os ter pego com as calças em Serrith. Uma ilha que estavapor acaso sob a vigilância de Aren.

De novo e de novo, ele repetia a reunião do conselho das Marés de Guerra em sua cabeça,vendo centenas de coisas que poderia ter feito de maneira diferente. Dito de forma diferente.

— Eu entendo que você sofreu muitas perdas em Serrith, Vossa Excelência. — Ressoou avoz da comandante Mara ecoando em sua cabeça. — Já são duas vezes que Amarid seaproximou de você, e a Maré de Guerra está apenas começando. A linda garota maridrinianadeve ser uma distração e tanto.

Todos na sala se mexeram inquietamente, Lara era o ponto crucial da farpa, não as perdas.Eles sabiam que Serrith era um pesadelo para defender, a proximidade da ponte, com a praiapermitindo que os navios se escondessem embaixo dela enquanto lançavam embarcações dedesembarque, tornando inúteis os destruidores de navios. Era necessário mão-de-obra epreparação para adiar um ataque e, mesmo assim, com forte neblina, os soldados estacionados aliteriam apenas alguns minutos - o tempo necessário para os botes chegarem à praia - para sedefenderem. O que seria suficiente se o homem de guarda não tivesse adormecido em seu posto.Um erro que o soldado pagou com sua vida.

— Eu entendo que ela estava com você quando o ataque aconteceu. Na ponte.Não havia esperança de manter isso quieto. Não com todos os evacuados de Serrith agora em

Eranahl. A fofoca se moveu mais rápido que uma tempestade em Ithicana. A única graçasalvadora era que Aster estava atrasado para a reunião. Se o comandante da guarda soubesse oque Lara vira, o velho bastardo estouraria um vaso sanguíneo. — Nunca foi minha intençãomanter Lara trancada. Todos vocês sabem disso.

No entanto, também não tinha sido sua intenção trazê-la para a ponte ou para ver como suasforças armadas a usavam para combater seus inimigos. Mas observando-a entrar em pânico no

barco, ofegante e tremendo incontrolavelmente... Ele não tinha sido capaz de aguentar. Ele nãoestava disposto a admitir isso diante desses homens e mulheres endurecidos pela batalha, cujorespeito precisava ganhar.

— Conhecer suas intenções não é o mesmo que concordar com elas. Os Maridrianos sãoratos. Solte um, e em breve toda a Ithicana ficará infestada com eles.

— Os Maridrianos são nossos aliados — disse Ahnna de onde estava, no extremo oposto dagrande réplica de Ithicana, com a mão apoiada de forma protetora na ilha de Southwatch.

Mara fez uma careta. — Os Maridrianos são nossos parceiros de negócios, na melhor dashipóteses, Ahnna. Nós os pagamos pela paz. Isso não é uma aliança.

Mas poderia ser, pensou Aren antes de interromper. — Eles nos deram quinze anos de pazem troca de nada, Mara. Eles provaram seu compromisso com o tratado, e agora é hora defazermos o mesmo.

— Mas a que custo? — Mara apontou para o meio do mapa, onde os navios modeloAmaridianos estavam pousados para representar a frota inimiga à espreita. — Os Amaridianossempre foram os piores ladrões de Ithicana, principalmente porque eram concorrentes do mesmonegócio: o comércio entre os continentes. Os navios mercantes de Amarid assumiram os maioresriscos, atravessando o norte e o sul mesmo durante a estação das tempestades, principalmente otráfico de mercadorias de que Ithicana não queria participar de seus mercados. Maridrina fez usopesado de seus serviços. Até agora. E a Rainha Amaridiana claramente pretendia manifestar seudescontentamento por esse fato.

— Depois que os termos forem negociados com Harendell, eles verificarão a frota de Amarid— disse Aren. Enquanto Amarid poderia arriscar brigar com Ithicana, travar batalhas com seuenorme vizinho era outra coisa completamente diferente.

— Harendell já pediu por Ahnna?Aren sentiu sua irmã gêmea se mexendo nervosamente atrás dele. — Não.— Iniciou negociações comerciais?— Ainda não. — O suor escorria pelas costas de Aren, foi uma luta não ranger os dentes. —

O que não é surpreendente. Eles estarão esperando para ver como está a paz no sul antes decomeçar a fazer exigências.

— Não cheira a paz. — Todos se viraram para assistir o comandante Aster entrar na sala. —Cheira a guerra pra mim.

Ele entregou a Aren uma carta dobrada selada com cera cor de ametista, estampada com oemblema valcotticano do cajado cruzado. — Encontrei o mensageiro na ponte e pensei em trazerisso diretamente para você.

Você quer dizer que pensou em me ter lendo na frente de todos, pensou Aren, quebrando acera com mais força do que o necessário, lendo as poucas linhas e lutando para manter umacareta no rosto enquanto ele colocava a página na réplica de Midwatch. A imperatriz de Valcottaera uma mulher sensata. Os valcotticanos eram pessoas sensatas. Mas ambos odiavam Maridrinade uma maneira que limitava a religião. Foi um sentimento que os Maridrianos retornaram.

— Então? — Mara exigiu saber ao mesmo tempo que Aster deixou escapar: — Valcottadeclarou guerra contra nós?

De olhos na página, Aren leu: — À Sua Majestade Real, o Rei Aren Kertell, Rei de Ithicana,Governante dos Mares de Tempestade e Mestre da Ponte.

Todos na sala pareciam prender a respiração, e ele sabia o porquê. Até hoje, a imperatrizsempre se referia a ele como Querido Aren, filho amado do meu amigo, que Deus mantenha suaalma em paz. O uso de seus títulos não era um bom sinal.

Ele continuou. — Há muito tempo que Valcotta e Ithicana são amigas...— Amigos que atacam quando o tempo está bom — Jor murmurou de onde ele estava à

esquerda de Aren.— Todos os amigos brigam de vez em quando — disse Aster. — Você vai continuar, Vossa

Excelência?Aren tossiu. — Há muito tempo que Valcotta e Ithicana são amigas, e nos entristece muito

saber que você escolheu trair essa amizade ao ficar no lado de Maridrina contra nós.Alguém na sala soltou um assobio baixo, mas Aren não levantou a cabeça da página. —

Quebra nosso coração saber que nosso querido amigo Ithicano agora ajuda nosso inimigo mortalem seus ataques injustos contra nossas terras. E todos os nossos mortos estão ao seus pés.

Ninguém falou.— Forte é o nosso desejo de manter nossa amizade com Ithicana, mas essa afronta não pode

ficar sem resposta. Quando a calma estiver sobre nós, distribuiremos nossas frotas para bloquearnosso inimigo, Maridrina, de alcançar seus mercados na ilha Southwatch até que essa aliançaofensiva seja quebrada.

Ele foi impedido de ler o resto, quando Aster e Mara começaram a rir, grande parte da salaecoando. — A boa sorte está do nosso lado, afinal — Aster finalmente conseguiu sair. — Silasachou que era tão esperto. Achei que ele conseguiu extrair de nós uma coisa que não queríamosdar, mas nem ele, nem Maridrina verão nada disso.

Aren não tinha rido então, e ele certamente não estava rindo agora. Um galho estalou, e seafastou de seus pensamentos, virando-se para ver Jor voltar para as rochas, ainda no processo deafivelar o cinto.

— Os ventos estão se fortalecendo — disse Jor. — A tempestade vai se enfurecer mais forteantes de dar o último suspiro. Amarid terá que esfriar os calcanhares por alguns dias antes devirem buscar sangue. — O velho soldado sorriu para Aren. — É um momento oportuno paravocê passar algum tempo com sua linda esposa. Ela está começando a gostar de você, possodizer.

— Você chegou a todas essas realizações enquanto estava cagando?— É quando eu penso melhor. Agora vá. Vou terminar a patrulha.Levantando-se, Aren lançou o olhar na direção de sua casa e depois balançou a cabeça. Lara

deveria ser o primeiro passo em direção a um futuro melhor para a Ithicana. Mas com Amaridprestes a travar uma guerra e Valcotta fazendo o possível para destruir o tratado, um futuromelhor não parecia mais um sonho.

Parecia uma ilusão.

2 1

LARA

LARA APOIOU O QUEIXO NOS ANTEBRAÇOS, UM OLHO NO BRILHO FRACO NO LESTE E O OUTRO NOS

Ithicanos agrupados na clareira em frente ao quartel. A água da chuva escorria por sua nuca, masdepois de três noites espionando do telhado da grande estrutura de pedra, ela mal notava ainterminável umidade.

A população de Midwatch havia crescido quatro, se não cinco vezes, nos últimos dias,homens e mulheres chegando de barco para se juntar aos pelotões. Eles eram civis - ou pelomenos haviam sido até o começo das Marés da Guerra - mas chamá-los de tal parecia um nomeimpróprio, pois eles entraram na rotina eficiente de Midwatch habilmente. Até o mais novo, quenão devia ter mais de quinze anos, parecia ter chegado totalmente treinado.

Ainda assim, os oficiais de classificação - que eram todos soldados na Midwatch - passarampor treinamento após treinamento, dia e noite, sem deixar nada ao acaso.

E qualquer coisa que acontecesse de madrugada, Lara era testemunha.Sair da casa de Midwatch não era um grande desafio, apesar do número de guardas que Aren

havia colocado na casa. Primeiro porque ela ganhou um pouco de confiança deles ao salvar avida de Aren durante a batalha na Ilha Serrith, para que eles não estivessem mais esperando quefizesse algo nefasto. Segundo porque as nuvens das tempestades tornavam a noite mais escura,dando-lhe a cobertura perfeita para escapar. E terceiro porque os Ithicanos estavam distraídoscom o que consideravam uma ameaça muito maior do que uma jovem se banhando em uma fontetermal:

Os Amaridianos.A frota permaneceu na costa de Ithicana, embora não houvesse ataques desde Serrith. Eli, a

fonte de grande parte das informações de Lara, havia lhe dito que era improvável que atacassematé o tempo melhorar. As águas eram rasas e cheias de rochas e bancos de areias, assim como asdefesas artificiais pelas quais Ithicana era conhecida, ventos imprevisíveis e pouca visibilidadetornavam o ataque no clima ruim desaconselhável.

Mas a tempestade não duraria para sempre, e Midwatch fervilhava com antecipação dasbatalhas que viriam. O que serviu bem aos propósitos de Lara.

Sua cabeça já estava cheia com o que ela havia aprendido durante sua aventura em Midwatchcom Aren, e as últimas três noites renderam ainda mais. Do seu poleiro, ela aprendeu muitosobre como a ponte era patrulhada, por dentro e por fora, onde sentinelas estavam estacionadosnas ilhas vizinhas e os sinais que eles usavam para se comunicar com Midwatch, que pareciafuncionar como um ponto de controle central para essa área de Ithicana. Ela aprendeu sobre osexplosivos que usavam para abater navios inimigos, disparados por flechas ou lançados por

destruidores de navios e, se a história que ela ouvira era verdadeira, plantados ocasionalmente àmão sob a cobertura da noite.

Ela os assistiu treinar, trabalhando na chuva com apenas uma luz fraca da lamparina paraevitar a atenção de alguém na água. Corpo a corpo, com lâminas e arco, os piores eram pelomenos proficientes. O melhor deles... bem, ela não iria querer lutar contra os melhores, a menosque precisasse. Suas armas eram de excelente qualidade, cada um deles armado até os dentes, aguarnição empilhada o suficiente para suprir peças de reposição.

Midwatch era apenas uma peça do quebra-cabeça, mas se era o padrão que Ithicana semantinha, então o que Serin e o resto de seus mestres haviam dito a Lara e suas irmãs sobreIthicana ser impenetrável tinham uma precisão alarmante.

Mas quanto ao resto do que ela e suas irmãs haviam sido informadas sobre Ithicana... isso,Lara estava questionando. Questionando o que era verdade e o que era mentira, porque eraimpossível que todas as partes tivessem sido honestas com ela. Não com todos alegando ser avítima e ninguém o agressor.

Alguém a estava enganando.Ou todo mundo estava. Afastando uma mecha de cabelo molhado de seu rosto, Lara desejou,

não pela primeira vez, que lhe fosse permitido ter passado um tempo longe do complexo. Tudo oque sabia vinha de livros e de seus mestres. Fora do combate, ela era como uma estudiosa queentendia do mundo, mas nunca saia da biblioteca. Era uma limitação, e uma que apontou paraSerin várias vezes, para sua irritação sem fim.

— Não vale a pena arriscar — ele retrucou. — Tudo o que você precisa é de um deslize desua parte, e tudo pelo que trabalhamos, lutamos, será desfeito. O seu desejo por uma estadia valea pena perder a única chance de Maridrina escapar da coleira de Ithicana? — Ele nunca esperoupor uma resposta, apenas deu um tapa na bochecha dela e disse: — Lembre-se do seu propósito.

Mestre Erik tinha lhe dado uma resposta diferente quando ela pressionou. — Seu pai é umhomem que precisa de controle, pequena barata — disse ele, passando uma pedra de amolar poruma lâmina. — Aqui, ele pode controlar todas as variáveis, mas lá fora — ele usou a arma paragesticular para o deserto, — o verdadeiro controle está além do poder de um Rei. Sua vida éassim por necessidade, minha menina. Mas não será assim para sempre.

Suas palavras a enfureceram na época - uma vaga resposta, na opinião infantil dela - masagora... Agora ela se perguntava se havia mais profundidade em sua resposta do que haviapercebido.

Agora se perguntava se a variável que seu pai mais queria controlar era ela.A porta principal do quartel se abriu e fechou embaixo dela, e a atenção de Lara se animou

quando uma figura alta saiu do prédio. Ele estava com o capuz puxado contra a chuva, roupasidênticas às de todos os outros soldados, mas ela sabia instintivamente que era Aren. Algo sobreo passo dele. O jeito que ele segurava seus ombros. A pitada de orgulho que irradiava deleenquanto examinava as tropas. E algo mais que ela não conseguia identificar...

Ela sabia que o que seu pai e Serin haviam dito sobre o Rei de Ithicana havia sido umamentira - embora ela entendesse o porquê. Era mais fácil esfaquear um demônio pelas costas.Uma coisa muito mais difícil de trair um homem cujas ações e escolhas foram motivadas pelodesejo de fazer o que é certo por seu povo. Mas ela também sabia que sua terra natal e Ithicanaestavam em desacordo, e o que salvaria um, danificaria o outro. O bem-estar de seu povo era suaprioridade, sua missão de dar a eles a única coisa que garantiria seu futuro. E por esse motivo,Aren nunca poderia ser algo para ela, a não ser seu inimigo.

Aren se aproximou dos soldados de treinamento para dizer algo à mulher que liderava os

exercícios, e Lara se inclinou para frente para captar o que era. Quando se aproximou, um pedaçode entulho escorregou do telhado do quartel, aterrissando com um baque suave no chão.

Aren girou nos calcanhares, uma mão indo para a arma presa na cintura, a outra empurrandoo capuz.

Lara congelou. Vestida com roupas pretas, ela estava escondida na escuridão no topo dotelhado. A menos que alguém levantasse uma lamparina para investigar um ruído.

Com a ponta da bota, Aren cutucou o pedaço caído de galho e folhas. Lara silenciosamentedesejou que ele desviasse o olhar. Não é nada. Apenas folhagem solta pelo vento. Acontece cemvezes por dia. Mas, mesmo assim, ela pode identificar como o sexto sentido o dizia que algo nãoestava certo.

— Alguém traga uma lamparina aqui. E uma escada. Acho que temos cobras no telhadonovamente.

Com o pulso rugindo em seus ouvidos, Lara recuou, seus dedos segurando a pedra viscosa deseu esconderijo. Ele ouviria o menor ruído, mas se não se movesse rápido...

Uma buzina soou ao longe, e os Ithicanos - incluindo Aren - pararam o que estavam fazendoe se viraram na direção da água. Outra buzina soou, essa mais perto, e Aren deu um aceno agudo.— Amaridianos estão em movimento. — Ele começou a gritar ordens, mas Lara não podia ficarpara ouvir. O amanhecer estava se aproximando, e ela precisava da cobertura da noite para voltarà casa sem ser detectada. E precisava estar lá dentro quando o sol nascesse, ou sua ausência serianotada.

Passando pela parte de trás do quartel, ela pulou, agarrando um galho de árvore querealmente precisava ser cortado. De árvore em árvore, ela subiu e caiu no abrigo da selva.Usando a rota que havia estabelecido em sua primeira noite, ela cortou o caminho que levava àcasa, movendo-se tão rápido quanto ousou na terra lamacenta.

Gorrick e Lia estavam guardando o exterior, e ela silenciosamente circulou até encontrar umlugar fora da vista dos dois, depois escalou a parede, rastejou sobre o telhado e caiu no pátio.Entrando pela janela rachada, rapidamente limpou a lama de suas botas e roupas, colocando tudode volta no guarda-roupa onde poderia secar sem ser detectado.

Uma batida soou na porta, a trava batendo. — Vossa Excelência? É madrugada.Taryn. A mulher era como um maldito relógio. Desde que ela percebeu o fracasso em vigiar

Lara enquanto estavam na casa de Nana, Taryn pretendia se redimir, monitorando Lara como umfalcão. Ela dormia no corredor do lado de fora da porta de Lara - teria dormido ao lado de suacama se Lara não tivesse notado gentilmente que o ronco de Taryn rivalizava com astempestades em volume.

Se ela não respondesse, Taryn provavelmente quebraria a porta. — Indo!Vestindo uma túnica e enrolando uma toalha no cabelo, Lara correu pelo chão e abriu a porta.

— Algo está errado? Eu ouvi as cornetas?— Amarid — Taryn respondeu vagamente, então seus olhos se estreitaram. — Por que há

lama no seu rosto?— Eu estava apenas lavando. Certas lamas são boas para a pele. Elas limpam os poros.— Lama? — Taryn lhe deu uma carranca duvidosa, depois balançou a cabeça, passando uma

mão cansada sobre os olhos antes de entrar no quarto, dando uma olhada de novo. — Eu dissepara você não deixar sua janela aberta. Você está pedindo para acordar com uma cobra debaixodas cobertas.

— Eu só abri agora — mentiu Lara. — Estava abafado aqui.Taryn verificou debaixo da cama. — A tempestade acabou, então você pode sair se quiser ar

fresco. — Então ela virou a capa e xingou, dando um passo atrás. — O que eu te disse?Uma pequena cobra, preta com faixas amarelas, estava enrolada no centro da cama, sibilando

furiosamente para elas. Murmurando baixinho, Taryn entrou no corredor e gritou por Eli, queapareceu momentos depois, um longo graveto com uma corda na ponta. Ele habilmente pegou acriatura, o laço apertando seu pescoço, depois partiu tão rapidamente quanto ele veio, serpente areboque.

Aparentemente, Lara precisava adicionar checar quarto para cobras em sua rotina aoretornar de uma missão de reconhecimento.

Embora não houvesse muito mais a ganhar do telhado do quartel. Ou de Midwatch, para esseassunto. Era uma noz quase impossível de quebrar, a menos que seu pai conseguisse alguém pordentro. Idealmente, seria ela, mas ela pretendia estar muito longe antes de Maridrina invadir, suavida tanto em perigo pelos soldados de seu pai quanto pelos Ithicanos quando percebessem queos traíra. O que significava que ela precisava encontrar um ponto de entrada que não fosseMidwatch para o pai explorar.

— Eu vou fechar sua janela. — Taryn se afastou para que a tia de Eli pudesse entrar com abandeja do café da manhã, que foi depositada na mesinha. — Ou então comece a trancar Vitexaqui com você à noite.

O pensamento de dormir com o enorme gato a observando deu arrepios a Lara. — Eu voumanter isso fechado. Eu prometo.

Sentando à mesa, Lara carregou dois pratos cheios de comida e depois gesticulou para a outramulher se juntar a ela, ambas bebendo profundamente seus cafés fumegantes. Elas se tornaramcada vez mais familiares em seu tempo juntas, Taryn era fácil de conviver, de uma maneira quelembrou Lara de suas irmãs. — Amarid atacou?

— Ainda não. Eles sabem que não têm mais o elemento surpresa, então procuram pontos defraqueza.

— Aren...— Ele estará na água, certificando-se de que não temos pontos de fraqueza. Por quê? —

Taryn sorriu. — Saudades dele?Lara deu uma risada divertida que poderia ser entendida de qualquer forma, mas as rodas

estavam girando em sua cabeça. Aren indo embora significava que não havia ninguém naMidwatch para dizer não. — Eu queria perguntar uma coisa...

— Ah?— Eu quero me acostumar a estar na água.Taryn parou ao mastigar um bocado de presunto e depois engoliu. — Marés de Guerra não é

exatamente o momento ideal para velejar sem rumo, Lara.Lara deu-lhe um chute suave debaixo da mesa. — Eu sei disso. Eu estava pensando em sentar

em um barco na enseada. Então, talvez no final da Maré de Guerra eu tenha me adaptado à águao suficiente para me aventurar mais sem sujeitar todo mundo ao meu vômito.

Taryn deu outra mordida na carne, a testa franzida. — Há muitas idas e vindas no momento...— Existe outro local que funcionaria melhor? Não quero ficar no caminho. — E se houvesse

outro ponto de desembarque na ilha - talvez um com menos defesas - poderia diminuir suanecessidade de encontrar outra entrada para a ponte.

— Nenhum lugar com uma praia adequada.Lara exalou em decepção. — É só que me sinto tão presa. Quero ver mais de Ithicana, mas

com o meu enjoo e o meu... medo, parece impossível.Presa como Taryn se sentia presa. Limitada onde ela poderia ir e o que pode fazer por

circunstâncias e necessidade. Lara viu suas palavras tocarem o alvo, a outra mulher pousando ogarfo, os olhos distantes enquanto pensava. — Suponho que poderíamos tentar por uma hora ever se alguém discorda.

Lara sorriu. — Deixe-me lavar o resto dessa lama do meu rosto e então podemos ir.Três horas depois, as duas estavam sentados em uma canoa balançando, Lara tentando

acompanhar os acontecimentos na enseada, enquanto periodicamente se inclinava para o ladopara esvaziar suas entranhas.

Taryn a levou para outro prédio não muito longe do quartel, que estava cheio de umavariedade de embarcações que não estavam em uso no momento. Ela selecionou uma pequenacanoa que não caberia mais do que as duas, tão velha que mal parecia navegável. Ninguémsentiria falta desse barco em particular. Enquanto o carregavam até a praia, Lara silenciosamenteconsiderou como poderia escondê-lo para sua eventual fuga.

Ela descansou os antebraços na beira da canoa e observou a corrente que guardava a boca naenseada subir, para que os navios pudessem transportar mercadorias do píer para a costa. Caixasde comida, suprimentos e armas, todos vindos de Harendell. Havia gaiolas de galos cacarejando,três porcos vivos e uma dúzia de cortes de carne, os movimentos dos Ithicanos escondidos poruma névoa pesada.

As cornetas nunca pareciam parar de tocar. Ondas de som que transmitiam inúmerasmensagens diferentes, a julgar pelas várias reações que incitavam, e não algo que pudesse serimitado por um soldado maridriniano não treinado. Lara suspeitava que seu pai precisariarecrutar músicos, caso desejasse transformar a forma de comunicação em seu favor. Tomandoum gole de um cantil com água, Lara esfregou a têmpora latejante enquanto ouvia as notas,tentando memorizar padrões e respostas, embora levasse dias, provavelmente semanas, ouvindoe olhando para que ela entendesse alguma coisa.

A canoa girou, então ela estava de costas para os penhascos que protegiam a enseada do mar,mas o barulho da corrente chamou sua atenção e ela se virou para assistir uma série deembarcações entrando, seus olhos encontrando Aren imediatamente em um deles.

E ele a encontrando.Ela o observou trocar palavras com Jor, depois o navio alterou seu curso da praia para a

pequena canoa de Lara. De pé, ele segurou o mastro quando os dois barcos vieram ao lado. —Suponho que haja uma explicação interessante para isso?

Taryn se levantou, a canoa balançando, e o estômago de Lara balançou junto com ela. — Suagraça acha que a exposição vai curar sua enjoo.

— Como isso está funcionando?Taryn gesticulou para o cardume de pequenos peixes circulando o barco, e Lara sentiu as

bochechas quentes enquanto os dois riam às suas custas. Então Aren disse: — Vá descansar umpouco, Taryn. Eu vou assumir um pouco.

O coração de Lara pulou quando Aren se sentou no assento em sua frente. Ele esperou até ooutro barco chegar perto da praia antes de perguntar: — Por que exatamente você se ofereceupara essa miséria em particular?

Lara olhou para o fundo da canoa, que estava absorvendo um pouco de água através de umapequena fenda que ela precisaria consertar. — Porque se eu não aprender a dominar o mar, nuncapoderei ir a lugar nenhum com você.

— Dominar? — Ele se inclinou para frente, e os olhos dela, por vontade própria, fixaram-senos lábios dele, o calor subindo por suas bochechas quando ela lembrou a sensação deles contraos seus.

— Talvez tolerar seja uma palavra melhor — ela murmurou, notando um arranhãodesagradável no interior do antebraço do homem. — Você está machucado.

— Não é nada. Eu tive uma briga com uma pedra, e a pedra saiu ganhando.Parte dela tinha medo de se aproximar dele, já ciente de que, na presença dele, ela havia

parado de ver e ouvir o que estava acontecendo ao seu redor. Mas, ela disse a si mesma, eletambém era a chave para ver mais de Ithicana, e isso era uma parte necessária de seu plano. —Deixe-me dar uma olhada.

Ele se aproximou, desafivelando a braçadeira que protegia a parte de trás do braço. — Viu?Nada demais.

— Ainda deve ser enfaixado.Não precisava ser enfaixado. Ambos sabiam disso. Mas isso não a impediu de segurar o

pulso dele. Ou ele de lhe fornecer pomada e um rolo de tecido. O barco balançou em uma sériede ondas maiores, e o joelho dele bateu contra o lado da coxa dela, enviando uma onda de calorpelo resto do caminho acima da perna dela, enchendo-a de uma sensação que era definitivamenteuma distração.

Forçando sua atenção para a lesão, Lara pegou alguns pedaços de pedra, melou os arranhõescrus com pomada e embrulhou cuidadosamente o curativo, mas era impossível não notar como arespiração dele movia os fios de cabelo selvagens em sua testa. A maneira como os músculos doantebraço se flexionavam quando ele se movia. A maneira como a outra mão roçou o quadrildela enquanto agarrava a lateral da canoa.

— Você é conhecedora das artes da cura.— Qualquer idiota pode enrolar um curativo no braço.— Eu quis dizer mais com o que você fez em Serrith.Lara deu de ombros, amarrando o curativo. — Espera-se que todas as mulheres

Maridrinianas consigam juntar seus maridos. Eu recebi o treinamento apropriado.— Praticar pontos em um pano não é o mesmo que passar uma agulha e linha numa pele que

sangra. Eu quase desmaiei na primeira vez que tive que fazer isso.Um sorriso surgiu em seu rosto e ela soltou o nó do curativo, insatisfeita. — As mulheres não

têm o luxo de tanta delicadeza, Vossa Excelência.— Você está evitando a pergunta, Vossa Excelência. — Sua voz era leve, provocadora, mas

por baixo ela sentiu uma seriedade, como se ele estivesse procurando uma mentira.— Minhas irmãs e eu praticamos nos criados e guardas sempre que havia um ferimento. Nos

cavalos e camelos também. — Essa era a verdade. O que ela não disse foi que seu verdadeirotreinamento veio da tentativa de salvar as vidas dos guerreiros valcottanos que ela e suas irmãslutavam no pátio de treinamento. Tinha sido uma maneira distorcida de aprender. Em um piscarde olhos, tentando tirar a vida de um homem. No próximo, tentando salvá-lo. Apenas para levá-lo novamente.

— É uma habilidade útil a se ter por aqui. Isto é, se você estiver disposta.Passando a braçadeira sobre o curativo, as costas da mão dela roçaram a palma da mão e ele

fechou os dedos em volta dos dela. Sua linha de pensamento desapareceu. — Eu ajudarei omáximo que puder. Eles são meu povo agora.

Sua expressão se suavizou. — Eles são.Os dois pularam quando algo bateu com força contra o casco da canoa, e Lara olhou para

cima e viu Jor parado no barco ao lado deles, remo à mão. — Está pronto?— Para quê?O homem mais velho lançou-lhe um olhar incrédulo. — As cornetas, Aren. Amarid está se

movendo para o sul.Lara não tinha ouvido nenhuma buzina tocar. Não tinha visto a outra canoa se aproximar.

Não tinha notado nada, enquanto enfaixava o braço. E nem, ao que parecia, Aren.Ele saiu da canoa dela e entrou no outro navio, deixando os dois homens se balançando, e

então eles seguiram em direção à entrada da enseada. Lara olhou para eles, finalmente gritando:— Como vou voltar para a praia?

— Você tem remos — ele gritou de volta, um sorriso selvagem no rosto quando o ventobateu em seus cabelos. — Use-os!

A partir desse momento, um padrão foi formado entre Lara e Taryn descendo após o café damanhã para flutuar na água, chovendo ou fazendo sol. No começo, foi miserável. O movimentoincessante para cima e para baixo fez a cabeça de Lara girar e seu estômago revirar, masgradualmente o mal-estar começou a diminuir, assim como a onda de medo que ela sentia ao sairda terra seca e entrar no barco.

Os ataques foram intermináveis, a música das cornetas tão constante que parecia uma cançãointerminável de guerra. Aren e seus soldados estavam continuamente em movimento,perseguindo invasores, reforçando as defesas e garantindo que as inúmeras estações de vigia epostos avançados fossem mantidos abastecidos. Mais frequentemente, suas excursões setransformavam em pequenas lutas, os barcos voltando cheios de homens e mulheres feridos, osrostos de seus companheiros ansiosos e exaustos.

O pior dos feridos foi para as dezenas de curandeiros estacionados em Midwatch, masaqueles que precisavam apenas de pontos ou curativos foram deixados no barco de Lara para queela ajudasse. Na maioria das vezes, um de seus pacientes era Aren, que foi a única vez que Tarynsaiu de seu lado.

— Estou começando a me perguntar — disse ela, aplicando uma sanguessuga no inchaço emsua bochecha, sorrindo quando ele recuou da criatura — se você está propositadamente tentandose machucar ou se é apenas inepto.

Ele se encolheu quando ela levantou outra sanguessuga do pote. — Existe uma terceiraopção?

— Sente-se quieto. — Ela aplicou a sanguessuga da maneira que os curandeiros haviam lhemostrado, maravilhada com a forma como o inchaço quase instantaneamente reduzia na suabochecha, as criaturas inchadas caindo em suas mãos quando terminaram... Juntamente com ossuprimentos, os curandeiros também insistiram para que ela recebesse um barco melhor,devolvendo sua pequena canoa à doca seca. Ela andava às escondidas à noite para moverlentamente a embarcação para o esconderijo que selecionara perto de um dos penhascos, juntocom vários suprimentos roubados, prontos para facilitar sua fuga na hora certa.

— Você parece estar melhor com a água.— Eu não fico mais enjoada. Embora eu suponha que possa ser diferente ao ar livre, onde as

ondas são maiores.— Talvez um dia testaremos essa teoria.Algum dia. O que significava pouco tempo, em breve. Foi uma luta manter o cenho franzido,

porque ela estava ficando sem ideias para conquistá-lo. Ela ganhou sua luxúria, isso ficou claropela maneira como os olhos dele deslizaram sobre o decote sem tiras de sua túnica. Ganhar suaconfiança, no entanto, estava se mostrando muito mais desafiador.

Ela pensou, por um tempo, era porque o casamento deles ainda não havia sido consumado.Que talvez ele precisasse desse passo antes de lhe entregar as chaves metafóricas do Reino, masela havia rejeitado essa teoria. Aren não era, a julgar pelos comentários imediatos que ouvira deseus soldados, inexperiente com as mulheres, então seria necessário mais do que habilidade noquarto para fazê-lo se apaixonar por ela.

E seria preciso mais do que ele se apaixonar por ela para fazê-lo confiar nela.Por mais que ele pudesse cuidar dela, ele amava mais seu povo. Sua confiança só chegaria se

ele acreditasse que ela era tão leal ao seu povo quanto ele.— Não tenho certeza de que a sanguessuga mereça muita atenção. — A voz de Aren tirou

Lara de seus pensamentos, e ela piscou, percebendo que estava olhando a criatura contorcida emsua mão por muito tempo.

— Elas acabaram de devolver seu rosto bonito, então talvez você deva lhes dar o crédito queelas merecem.

Aren sorriu e Lara percebeu o que ela havia dito. Com todos os outros, ela era estratégica,mas Aren a perturbava. As coisas tinham um jeito de escapar quando ele estava por perto.

— Vai chover hoje à noite. Eu pensei que poderia aproveitar a oportunidade para um jantaradequado em casa. Com você.

Seu rosto estava ardendo, o coração um tumulto no peito. — Hoje à noite?Ele desviou o olhar dela. — Minha capacidade de prever o tempo tem seus limites. Mas sim,

essa noite parece promissora.Diga que sim, sua voz interior gritou. Faça o que você precisa fazer. Exceto estar sozinho

com ele... Lara não tinha certeza do que aconteceria. Ou melhor, ela tinha certeza e queria evitara todos os custos.

Não porque ela não queria que ele a beijasse, porque ela queria.E não porque não queria que ele descartasse as roupas de seu corpo, porque Deus, ela

imaginou isso mais de uma vez.Era porque ela o queria e era preciso evitar essa situação, porque traí-lo já seria bastante

difícil.Buzinas soaram, e desta vez o ritmo não era música, mas um estrondo ansioso que rasgou

seus ouvidos. Aren ficou rígido, sua expressão atenta. — O que é isso? — ela exigiu saber.— Aela.— Quem?— É uma das ilhas sob a vigilância de Kestark. Está sendo atacada.— Kestark?— A guarnição ao sul de nós. — Seus olhos estavam distantes, ouvindo. — Mas o posto

avançado de Aela está pedindo a ajuda de Midwatch.Os soldados já estavam caindo na praia, empurrando barcos para a água. Mais buzinas

soaram e o rosto de Aren empalideceu.— O que está acontecendo?— O destruidor de navios deles está preso. — Ele ficou de pé, gesticulando para os guardas,

que estavam remando com força em direção a eles. — O posto avançado será massacrado.Amarid vai tomar a ilha, e será um pesadelo sangrento tomá-la de volta.

A mente de Lara correu, decidindo um plano enquanto ele se desenrolava em sua mente. Elapegou a mão dele. — Me leve com você. Se houver feridos, eu posso ajudar.

— É para isso que temos agentes de cura.— Cinco deles estão em outro lugar, dois dos quais se machucam. O que deixa apenas cinco

para levar com você. Não basta lidar com o abate.— Outros virão.O barco estava a poucos metros de distância. Ela teve segundos para convencê-lo.— E quantas pessoas morrerão no tempo necessário para chegarem? — Ela apertou os dedos

nos dele. — Eu posso ajudá-los.A indecisão ricocheteou em seu rosto, depois ele assentiu. — Siga ordens. Sem argumentos.

— O outro barco veio ao lado, e ele levou Lara e sua caixa de suprimentos com ele. — Vá! —ele gritou.

Remos os levaram para a brecha, a corrente já estava alta, o oceano coberto de ondas além.Selvagem e imprevisível. Uma pontada de medo percorreu a espinha de Lara quando se sentouno fundo do barco.

— Hora de colocar seu experimento à prova — disse Aren, enquanto eles passavam entre ospenhascos altos, o navio balançando e mergulhando no momento em que atingiu o mar aberto.

— Por Aela! — Jor rugiu. — Vamos dar a esses Amaridianos uma amostra do aço daMidwatch!

— Por Aela! — Os soldados dos outros navios ecoaram o cântico e, atrás deles, cornetaschamavam pela água. Não a onda musical de um sinal, mas uma explosão violenta de raiva.

Um grito de guerra.

2 2

LARA

OS BARCOS MAL PARECIAM TOCAR A ÁGUA ENQUANTO PATINAVAM PELO MAR, UM FORTE VENTO

vindo do norte enchendo as velas. O coração de Lara estava na garganta, mas com a náusea sobcontrole, ela foi capaz de estudar a ponte enquanto eles seguiam seu grande comprimento cinzapara o sul, os olhos vendo observadores empoleirados no topo e o brilho de telescópios nas ilhasdos dois lados.

— Quanto tempo até chegarmos a Aela? — ela gritou sobre o vento.— Não muito tempo — respondeu Aren. — As equipes mais próximas de Midwatch já

estarão lá.O tempo parecia voar e rastejar. Mil detalhes inundaram sua mente, mesmo quando seus

batimentos cardíacos se moveram no baque rápido, mas constante que sempre acontecia antes dabatalha. Você não está aqui para lutar, ela lembrou a si mesma. Você está aqui para observarcom a desculpa de ajudar os curandeiros, nada mais. As palavras não fizeram nada para acalmarsua antecipação.

Quando contornaram uma enorme torre cárstica de calcário, todos os Ithicanos tiraram asmáscaras dos cintos e as vestiram. Armas afrouxadas. Olhos atentos.

Então ela viu.O navio era maior do que qualquer outro que ela já vira antes, uma grande monstruosidade de

três mastros tão alta quanto a própria ponte. Ela avistou a bandeira da Amaridiana, incontáveis soldados correndo pelo convés. Mais além, meia dúzia de botes estavam se movendo em direçãoa uma praia estreita na qual uma batalha estava sendo travada, a areia encharcada de sangue.

Rapidamente ela viu a razão pela qual os Amaridianos haviam escolhido a Ilha Aela além dodesembarque relativamente fácil que a praia lhes proporcionava. Havia um píer no extremo oesteda ilha, a ponte curvando-se para o interior antes de voltar para o mar. E se os Ithicanos estavamlutando tanto para defendê-la, ela apostaria que o píer tinha uma abertura em sua base. —Quantos homens estão naquele navio?

— Quatrocentos — respondeu Jor. — Talvez mais alguns.— E nós?Ninguém respondeu.Aren pegou a mão dela, puxando-a para perto. — Vê a linha de rochas e árvores? — Ele

apontou. — Vamos fazer você e os outros curadores passarem dessa linha. Você ficará lá e osferidos serão levados até você, entendeu?

— Sim.A mão dele apertou. — Mantenha o capuz para que os Amaridianos não a reconheçam. E se

as coisas correrem mal, vá com os outros curadores. Eles sabem como fazer um retiro.E ela apostaria que o retiro estava na ponte. Mas obter essas informações não valia o custo da

vida de Aren.Seu batimento cardíaco não era mais estável, mas um animal selvagem e caótico. — Não

deixe isso ir mal — ela sussurrou. — Eu preciso que você ganhe isso.Mas Aren já estava gritando ordens. — Derrube aqueles botes. O resto de vocês, para a praia!Os barcos ladeavam o enorme navio, o ar denso com flechas disparadas de ambos os lados.

Aren se ajoelhou no barco ao lado dela, esvaziando uma aljava nas costas dos Amaridianossubindo em botes, seus cadáveres caindo na água abaixo. Os dedos de Lara coçavam para pegaruma arma, lutar, mas ela se forçava a se encolher no barco, vacilando toda vez que uma flechabatia na madeira grossa.

Então eles passaram pelo navio.Quatro dos navios Ithicanos se afastaram da manada, pulando as ondas para bater nos botes

cheios de soldados que iam para a costa. Madeira lascada e rachada, homens tombando na água.Os Ithicanos embarcaram nos botes com graça letal, as lâminas brilhando, o sol brilhando nasrajadas de sangue.

O resto dos barcos dirigiu-se para o massacre na praia. Havia corpos por toda parte, a areiamais vermelha que branca. Talvez duas dúzias de Ithicanos segurassem o inimigo na linha deágua, usando o acesso estreito e o terreno mais alto a seu favor, mas estavam recuando.Morrendo sob o ataque Amaridiano.

Eles teriam que se apressar, ou a ilha estaria perdida.Os barcos da Midwatch largaram as velas, cavalgando as ondas quando foram lançadas na

praia. No último segundo, Aren pegou a mão de Lara. — Salte! — ele gritou.Lara pulou, suas botas afundando na areia, o momento quase a fazendo se espatifar. Então

eles estavam correndo em direção aos Amaridianos, que agora estavam espremidos entre duasforças.

Gritos despedaçaram o ar, corpos e membros atingindo a areia, o fedor de sangue e as tripasabertas sufocando. Lara segurou firme sua caixa de suprimentos, mantendo-se atrás de Arenenquanto ele subia a colina, passando por cima de suas vítimas enquanto ela passava. As armasdos mortos caíam na areia, e todo o instinto exigia que ela pegasse uma. Que lutasse.

Você não deve, ela ordenou a si mesma. Não, a menos que você não tenha escolha.Mas a guerreira nela lutou contra a limitação, então, quando um soldado passou pela linha

Ithicana, ela bateu a caixa de suprimentos no rosto dele, observando com satisfação quandotombou para trás, a ponta da lâmina de Aren aparecendo em seu peito.

O Rei de Ithicana usou um pé de bota para empurrar o morto de sua arma, o couro de suamáscara coberto de sangue. Pegando a mão dela, ele a puxou correndo, esquivando-se dospoucos Amaridianos restantes que estavam de joelhos implorando por suas vidas.

— Não lhes mostre piedade! — ele gritou, depois puxou Lara para trás de uma série depedras. Uma mulher Ithicana mais velha, com o rosto desfigurado, roupas ensopadas de sangue,estava fechando as pálpebras de um jovem, com o corpo marcado por várias feridas mortais. Trêsoutros soldados estavam caídos no chão, com ferimentos enfaixados, o rosto contraído pela dor.

Os olhos da curandeira se arregalaram ao ver seu Rei. — Explique a Lara o que você precisaque ela faça — disse Aren. Então ele estava de volta à rocha, gritando: — Taryn, faça odestruidor de navios funcionar e afunde essa vadia!

Os curandeiros da Midwatch apareceram, suas escoltas já os tinham abandonado. — O quevocê quer que eu faça? — Lara perguntou.

— Espere que eles nos tragam os feridos. O que você tem de suprimentos? Estou com pouco.Lara entregou-lhe a caixa, depois subiu correndo pelas costas de uma das pedras para assistir

a batalha se desenrolando abaixo. Seu sangue gelou com a visão.Aren estava na praia com talvez cem Ithicanos, mas além disso, a água estava cheia de botes.

Dezenas deles, todos cheios de soldados fortemente armados, e mais ainda esperando no convésdo navio para serem descarregados. Havia centenas deles. E nenhuma maneira de detê-los.

Os Ithicanos estavam atirando flechas nos corredores da frente, mas não demorou muito paraque esses se tomassem inúteis, não deixando nada para eles além de esperar.

A velha curandeira havia subido ao lado dela, expressão sombria enquanto ela observava acena.

Lara cravou as unhas na rocha. — Não podemos vencer isso. Não com toda essa divergência.— Vencemos contra o pior. Embora este nos custará.Ainda seria uma vitória se todos estivessem mortos? Lara pensou.Deve ter aparecido no rosto dela, porque a mulher mais velha suspirou. — Você já viu uma

batalha antes, Majestade?Lara engoliu em seco. — Assim não.— Eu diria para você se preparar, mas você não pode. — A velha pousou a mão na de Lara.

— Este momento vai mudar você. — Então ela desceu das pedras para se juntar aos curandeirosde Midwatch.

A cena era estranhamente silenciosa, o único som era o rugido das ondas e o ocasional gritode dor, os feridos deixados na praia até a batalha ser vencida. Tão quieto. Muito quieto.

Então o primeiro dos botes atingiu a costa e tudo virou caos.As duas forças se chocaram, o ar se encheu de berros e gritos, o choque de metal contra metal

e armas contra carne.Ondas após ondas de barcos lançavam-se à costa, os navios pesados esmagando e matando

Amaridianos e Ithicanos, a linha d'água era uma massa abundante de humanos. Os marinheiroslutavam para se retirar e voltar ao navio para recuperar mais soldados, mas os homens de Aren seatiravam contra os marinheiros, cortando-os. Puxando as embarcações para a areia.

Ainda mais vieram.Os Ithicanos lutavam com eficiência viciosa, mais bem treinados e melhor armados, porém

em menor número. Eles lutavam até não suportarem mais, sofrendo ferimento após ferimento atédesabarem na praia ou serem puxados sob ondas que eram mais sangue e corpos do que água.

E ainda assim o inimigo chegou.Era a oportunidade perfeita para fugir. Ir olhar o píer da ponte e determinar se ela poderia

usá-lo em sua estratégia, mas seu corpo permaneceu enraizado no lugar.Você tem que fazer alguma coisa. A voz surgiu das profundezas da mente de Lara, incessante

e obstinada. Faça alguma coisa. Faça alguma coisa.Mas o que ela poderia fazer? Não havia feridos por trás dessas pedras para ela cuidar, e não

haveria até que a batalha terminasse. Ela podia pegar uma arma e lutar, mas não eram as mesmascircunstâncias que Serrith. Nessa loucura, ela não podia mudar a maré.

Faça alguma coisa.Seus olhos voltaram para um ferido sangrando na praia. Se afogando nas ondas. E então ela

correu sobre as pedras e continuou correndo.Lara tinha sido a mais rápida de suas irmãs - construída para a velocidade, o mestre Erik

sempre dizia. Hoje ela correu como nunca antes.Suas coxas queimaram quando ela correu pela praia, os braços batendo, os olhos fixos em

seu alvo. Parando ao lado de uma jovem mulher que tinha duas flechas nas costas e uma na coxa,Lara se inclinou e a jogou por cima do ombro, depois correu de volta para as pedras.

Rodeando-os, Lara cuidadosamente depositou a soldada ferida no chão, em frente aoscurandeiros assustados. — Ajudem ela.

Então a Rainha estava de volta à praia correndo.A necessidade a levou a escolher aqueles com ferimentos aos quais eles poderiam sobreviver.

Pelo visto, a maioria dos que estavam mais distantes na praia estava longe de serem salvos, osolhos encarando fixamente o céu cinzento.

Então ela se aproximou da batalha.Os soldados capazes de lutar estavam fazendo isso em cima dos corpos dos mortos.

Amaridianos e Ithicanos, ambos enredados na confusão de membros, mãos mortas parecendoagarrá-los e fazendo-os tropeçar enquanto as ondas vermelhas puxavam e arrastavam para acarnificina.

Quase todo mundo no chão estava morto. Seja por seus ferimentos originais ou por seremesmagados e afogados, mas Lara ainda rondava a retaguarda da linha Ithicana, a água enchendosuas botas enquanto ela procurava.

— Volte — alguém gritou para ela, mas o ignorou, avistando um homem mais jovem queela, sufocando enquanto tentava sair da batalha, as ondas passando sobre sua cabeça, botasbatendo nas costas.

Lara mergulhou, pegando a mão dele e segurando-a com força para que a água não o puxassepara longe.

Alguém a chutou para o lado.Outro pisou na parte de trás de sua perna e ela gritou.Eles estavam pressionando-a, empurrando-a para a areia, mas o garoto estava olhando para

ela e ela para ele, e Lara se recusou a deixá-lo ir.Centímetro por centímetro, ela o arrastou de volta, depois uma mão fechou em seu cinto e

puxou ela e o soldado ferido pelo resto do caminho.— O que você está fazendo?A voz de Aren. O rosto dele escondido atrás da máscara.Por cima do ombro, ela viu um Amaridiano erguendo um bastão. Pegando uma pedra, ela

jogou com força, quebrando o rosto do soldado. — Lute — ela gritou para Aren, depois selevantou.

Segurando o garoto ferido sob as axilas, ela o arrastou pela praia e fora de perigo. Então elase jogou de volta na carnificina.

Os Ithicanos viram o que ela estava fazendo e lutaram para lhe dar aberturas. Chamavam onome dela quando alguém caía. Protegia suas costas enquanto ela arrastava os camaradas parafora da água porque não podiam se dar ao luxo de parar de lutar.

E o inimigo continuou vindo.Empurrando-os para mais longe na areia.Passo a passo, os Ithicanos recuaram e Lara uivou de fúria, porque todos aqueles que puxou

para a praia estavam agora em risco de serem pisoteados mais uma vez. Seu corpo gritava de dore exaustão, seus lados se contraíam enquanto seus pulmões lutavam para aspirar ar suficientepara alimentar seu coração trovejante.

Então um estalido familiar ecoou pela ilha, junto com o apito de algo grande voando pelo ar.Lascas de madeira e gritos se filtraram das águas mais profundas, e Lara levantou a cabeça e

viu um grande buraco na lateral do navio. Alguém havia consertado o destruidor de navios.

Outro estalido dividiu o ar, e desta vez o projétil atingiu um dos mastros. Estilhaçou, caindode lado, as cordas e velas caindo no convés.

Outro estalido, desta vez um buraco se abrindo no casco, a água derramando a cada onda.A arma não parou. Pedregulho após pedregulho foi jogado no navio, então Taryn mirou nos

botes, atingindo-os com precisão mortal.Os Amaridianos começaram a entrar em pânico, quebrando as linhas enquanto lutavam para

salvar suas próprias peles. Mas não houve recuo, e os Ithicanos não lhes mostraram piedade.— Por Ithicana! — alguém rugiu, e o cântico correu pela praia até abafar todos os outros

ruídos enquanto os soldados reuniam-se em torno de seu Rei, avançando.Portanto, não havia ninguém para ouvir quando Lara sussurrou — Por Maridrina — e voltou

ao caos.

2 3

AREN

AREN ENCONTROU LARA AGACHADA AO LADO DE UMA POÇA DE MARÉ LAVANDO SANGUE DAS

mãos e braços. Suas roupas estavam encharcadas de sangue e, quando ela ergueu a cabeça paraobservá-lo, ele notou marcas vermelhas em suas bochechas, de onde afastou os fios de cabeloque soltaram de sua trança grossa.

Seus soldados estavam falando sobre ela; e não, pela primeira vez, sobre como ela era umamaridriniana inútil, que não servia para nada além de cama. Hoje mudou isso. Vez após outra,ela correu para a praia para puxar um Ithicano ferido de volta para trás das filas, sem demonstrarrespeito por sua própria vida, pois os Amaridianos haviam lutado para avançar, a batalhairregular e desesperada.

E uma vez que a batalha foi vencida, ela tratou os feridos com velocidade e eficiência,enfaixando feridas e amarrando torniquetes, dando-lhes tempo até que os curandeiros pudessemalcançá-los. Salvando vidas, um soldado de cada vez, com o rosto tenso com determinação.

Hoje ela conquistara o respeito de Ithicana.E dele.— Você está bem? — Ele se agachou para mergulhar as próprias mãos na água. Ele havia

feito isso antes, mas sua pele ainda estava pegajosa e manchada.— Cansada. — Ela recostou-se, os olhos voltados para os cadáveres flutuando entre os

destroços do navio quebrado, a água ainda vermelha. — Quantos morreram?— Quarenta e três. Provavelmente outros dez não passem desta noite.Lara fechou os olhos com força e os abriu. — Muitos.— Teria sido mais se você não tivesse me convencido a trazê-la. Ou se você não tivesse

ignorado minhas ordens. — Ele não acrescentou que havia passado boa parte da batalha commedo de que a decisão a fizesse um cadáver na areia, uma espada Amaridiana nas costas.

— Parece que eu não consegui fazer nada em tudo isso — ela murmurou.— Os homens e mulheres cujas vidas você salvou apostariam em algo diferente, eu suspeito.— Vidas que salvei. — Ela balançou a cabeça. — Eu deveria voltar para ajudar.Aren pegou o pulso dela quando ela se levantou, os dedos envolvendo os ossos finos, que

pareciam delicados demais para ter conseguido o que ela tinha. — Nós precisamos ir.— Ir? — Pontos de raiva subiram em suas bochechas. — Não podemos deixá-los assim.Ele queria abandonar essa praia e seu povo ferido não mais do que ela, mas a defesa de seu

Reino era uma máquina finamente lubrificada com mil peças diferentes. Puxar uma fora dolugar, mesmo por uma questão de horas, põe em risco todo o trabalho e, agora, sua peça estavamuito fora do lugar. — Mudei números significativos da defesa de Midwatch e de suas ilhas

vizinhas. Precisamos voltar.— Não. — Ela se soltou das garras dele. — Menos de uma dúzia de soldados aqui estão

ilesos. Não podemos deixá-los indefesos. E se os Amaridianos atacarem de novo?Pelo canto do olho, Aren podia ver seu guarda parado perto dos barcos, Jor dando-lhe um

olhar aguçado. Várias das outras equipes do Midwatch estavam prontas na praia, esperando aordem dele para partir. — Não há navios Amaridianos no horizonte e reforços já estão acaminho. Eles estarão aqui dentro de uma hora.

— Eu não vou embora até que eles cheguem.Ela cruzou os braços, e ocorreu-lhe que talvez tivesse que arrastar a mulher que todos os

soldados naquela praia estavam elogiando como heroína para um barco, se ele quisesse partir. Oque não era exatamente o visual que ele queria apresentar a eles.

Respirando fundo, Aren puxou uma faca do cinto e se ajoelhou na areia, desenhando umalinha serpenteando representando a ponte. — A defesa da ponte é dividida em seções lideradaspelos Comandantes de Watch, cada uma com um subconjunto das forças armadas de Ithicana sobseu controle. A guarnição de Midwatch está aqui — ele fez um buraco na areia — e a guarniçãoKestark está aqui. Quatro navios Amaridianos estavam fazendo movimentos para atacar aqui. —Ele fez quatro buracos ao sul da Ilha Kestark.

— Os curandeiros poderiam usar minha ajuda — interrompeu Lara — Então, talvez vá diretoao ponto.

— Eu estou chegando ao ponto — ele resmungou, esperando que uma explicaçãocomplicada a convencesse a sair, em vez de provocar perguntas. — Kestark mudou suas tropaspara reforçar os locais com maior probabilidade de serem atacados, enquanto, ao mesmo tempo,os Amaridianos atacaram aqui na Ilha Aela. Kestark não podia arriscar recuar sua tropa, nem elespoderiam reorganizar as equipes que compunham a rede de defesa por aqui — desenhou um oval— então eles pediram assistência de Midwatch. Mas agora Midwatch perdeu a maior parte desuas tropas, portanto, se houver algum ataque aqui — ele desenhou outro oval — não seremoscapazes de ajudá-los em tempo suficiente.

Lara olhou para o desenho, piscando apenas uma vez em aparente confusão. Então elaapertou os dedos nas têmporas. — Pelo amor de Deus, Aren, nada disso justifica abandonar essessoldados. — Ela começou a se afastar, mas ele a puxou de volta.

— Ouça. Os quatro navios Amaridianos que deveriam atacar se retiraram - provavelmenteporque viram que não seria uma luta fácil - e se mudaram para o leste e desapareceram de vistados nossos observadores. Então agora haverá uma onda de sinais, com as equipes mudando umaposição para o norte e oeste, a fim de permitir que as equipes de Kestark mais próximas de nós semovam para reforçar. Como eu disse, eles estarão aqui dentro de uma hora.

— Bem. — Saindo do alcance, ela começou a subir a areia até onde os feridos estavamdispostos em fileiras.

— Mulher insuportável — ele murmurou, então um apito chamou sua atenção. Aren se viroue viu Jor gesticulando para um par de barcos Kestark voando sobre a água em uma rajadaviolenta de vento que cheirava a chuva. Ele voltou a apontá-los para Lara, mas ela já estava forado alcance da voz.

Rosnando algumas maldições, ele caminhou até a água. — Todo mundo vai. Quero você devolta à Midwatch antes que essa tempestade comece.

Seus soldados imediatamente se afastaram da praia, mas em vez de observá-los, Arenencontrou seus olhos atraídos para onde Lara caminhava entre os feridos, ocasionalmentecurvando-se para falar com um deles. Os ventos crescentes pegavam os fios soltos de seus

cabelos, a luz do sol diminuindo, fazendo-os brilhar como tentáculos de mel. Seus soldados seafastaram para ela, inclinando a cabeça para ela. Em respeito a ela

A imagem justa punha a dela andando pela estrada em Southwatch no braço do pai, de seda eos olhos arregalados: o retrato de uma Rainha que ele temia que Ithicana nunca aceitasse.Acabou que ele estava errado.

— E quando partiremos, Vossa Excelência? — Jor perguntou, chegando ao lado dele. —Quando sua pequena esposa disser que é hora de ir?

— Iremos quando a Rainha de Ithicana disser que é hora de ir.O homem mais velho riu e depois bateu no ombro dele.O primeiro dos barcos Kestark chegou à costa, e Aren reconheceu o comandante Aster

quando os olhos do homem brilharam ao avistar ele, apreensão os enchendo. — VossaExcelência. Não sabia viria por você mesmo.

— O benefício de estar na guarnição de Midwatch. Como eu deveria estar.O rosto de Aster perdeu mais de sua cor, e com razão. O fato dele estar chegando agora

significava que não estava na guarnição de Kestark, ou mesmo com a maior parte de suas forçasafastando o ataque previsto. E Aren tinha certeza de que sabia exatamente onde o outro homemestivera.

— Como você pode ver, comandante, as coisas quase não seguiram o caminho de Ithicanahoje. Aela é um ponto fraco, seu posto avançado era sub-tripulado e o destruidor de navios nãohavia sido recalibrado após a temporada de tempestades, deixando aqueles que estavam aquicomo alvos fáceis para um navio inteiro cheio de Amaridianos.

— Estamos atrasados nas inspeções, Vossa Excelência — disse Aster. — A temporadachegou cedo...

— O que não explica por que você super protegeu o sudeste e deixou sua extremidade norteexposta. Talvez você me esclareça?

— Havia quatro navios da frota. Precisávamos estar prontos para defender...— Defender uma série de ilhas que não seriam acessíveis se os Amaridianos atacassem com

vinte navios! — Aren rosnou. — Se você estivesse prestando atenção, saberia. O que eu imaginoé que você estava distraído quando deu a ordem.

— Eu não estava distraído, Vossa Excelência. Eu comando Kestark desde que você eracriança.

— E ainda... — Aren gesticulou para as filas e filas de rostos mortos encarando sem ver océu. Então ele se inclinou para frente. — As evacuações estão completas, o que significa que suaadorável esposa e filhos estão abrigados em segurança em Eranahl, deixando você com todo otempo do mundo para transar com sua amante na casa que sei que você construiu para ela a oestedaqui.

A mandíbula de Aster se apertou, mas não negou. Ele não podia, não com sua guarda pessoalouvindo de onde eles estavam ao lado de seus barcos. Então seus olhos passaram pelo ombro deAren. — O que ela está fazendo aqui?

Virando-se, Aren viu que Lara estava atrás dele, uma oficial sobrevivente - uma garota quetinha apenas dezoito anos - ao seu lado. Ele começou a defender a presença de Lara, mas a garotao venceu.

— Respeitosamente, comandante, muito mais de nós estaríamos mortos se nossa Rainha nãotivesse vindo.

Lara não disse nada, mas seus olhos azuis estavam frios e estripantes enquanto olhava Aster.Então seu olhar mudou para Aren e ela assentiu uma vez.

— Não há mais erros, comandante. — Aren pegou o braço dela e caminhou em direção aobarco onde sua guarda esperava. — E faça um favor a todos nós e mantenha seu pau em suascalças e seus olhos no inimigo pelo resto das Marés de Guerra.

— Meus olhos estão no inimigo. Ela está parada bem ali.Ânimos à flor da pele, Aren se virou e deu um murro no rosto do homem, nocauteando-o.

Então se virou para a garota-soldada. — Você acabou de ser promovida a comandante interina deKestark até que outro possa ser escolhido. Me avise se alguém lhe der algum problema.

Lara ajudou o guarda a empurrar o barco para a água, depois pulou para dentro, sentando-seno lugar de sempre, o máximo que podia estar no pequeno navio. Aren sentou-se ao lado dela,mas não havia espaço para conversa, todos forçados a remar com dificuldade para ultrapassar alinha de ruptura, o vento contra eles.

A tempestade chegava forte do norte, os raios dançavam no céu escuro, e a embarcação subiae descia sobre ondas que cresciam a cada minuto que passava. As costas de Lara estavamvoltadas para ele, mas Aren podia sentir o medo irradiando dela, as juntas brancas onde seguravaa beira do barco. Ela manteve a compostura até que uma rajada esquisita pegou a vela. Lia eGorrick lançando seu peso sobre as pernas foram as únicas coisas que os impediu de virar. Issoarrancou um grito da garganta dela. Lara se jogou desarmada na batalha, mas isso... Isso era oque a aterrorizava. E Aren se viu relutante a sujeitá-la a isso.

— Precisamos sair da água! — ele gritou para Jor, cuspindo um bocado de água do marquando uma onda tomou conta deles. Jor sinalizou para o barco carregando o resto da guarda,depois examinou o ambiente e apontou.

A vela baixou, eles remavam com força, rumando para um dos inúmeros pontos deaterrissagem escondidos por toda Ithicana.

A chuva caiu em um dilúvio, tornando quase impossível ver como eles serpenteavam entreduas torres de calcário e em uma pequena enseada com falésias de todos os lados. Do alto de umdos penhascos, duas pesadas vigas de madeira estendiam-se sobre a água, cordas com ganchospendurados em cada um deles. Lia se lançou, agarrando um dos ganchos e prendendo-o no anelmontado na popa do navio.

Aren passou o remo para uma Lara de rosto branco. — Se chegarmos muito perto dasparedes, empurre o barco para longe.

Ela assentiu, segurando o remo de madeira como uma arma. Atrás dele, Taryn esperou até obarco girar no ângulo certo, depois pulou, agarrando uma corda pendurada no penhasco, subindorapidamente até o topo.

— Aren, venha aqui e ajude. — Jor e Gorrick haviam removido o pino que segurava omastro no lugar e estavam lutando para tirá-lo de sua base. Aren tropeçou em um assento, entãoagarrou o mastro e acrescentou sua força ao esforço. O mastro saltou bem quando uma ondaviolenta levantou o barco, fazendo com que o mastro e Gorrick caíssem na água.

Aren caiu de costas, deixando apenas Jor de pé, o velho balançando a cabeça em desgosto. —Por que isso nunca fica mais fácil? — Ele se abaixou e prendeu a outra linha do barco, enquantoAren ajudava um Gorrick nadador a prender o mastro para o lado.

Uma eternidade exaustiva depois, eles finalmente levantaram o segundo barco para a praiacom o guincho, onde o amarraram, todos arrastando-se pela curva da rocha até onde oesconderijo esperava.

O interior do edifício de pedra estava misericordiosamente seco e livre de ventos fortes.Depois de designar dois dos homens para vigiar pela primeira vez, Aren bateu a porta de madeiracom mais força do que o necessário. Sem falhar, seus olhos foram imediatamente para Lara, que

estava no centro da sala segurando a sacola cheia de suprimentos.— Existem muitos desses lugares? — Ela se virou em um círculo.Não havia muito para ver. Beliches de madeira e corda cobriam duas das paredes. Caixas de

suprimentos estavam empilhadas contra a terceira parede, e a quarta era ocupada principalmentepela porta. Todos os guardas estavam tirando as botas e as túnicas para secar, depois voltando aatenção para as armas, que precisavam ser afiadas e lubrificadas.

— Sim. — Ele pegou sua própria túnica e a jogou em um beliche. — Mas, como você notou,eles são um pé no saco para serem usados no meio de uma tempestade.

— A tempestade afundará o resto da frota de Amarid? — ela perguntou, e o guarda riu,lembrando a Aren que todos estavam ouvindo.

— Não. Mas eles se mudam para águas abertas em vez de arriscar serem levados a um bancode areia ou contra qualquer pedra. Nos dará um pouco de descanso.

Uma das sobrancelhas dela se levantou. — Não é a pausa mais confortável.— Agora, agora — disse Jor. — Não seja tão rápida em desanimar do conforto de uma casa

segura. Particularmente um esconderijo de Midwatch. — Ele foi até uma das caixas, abrindo atampa e olhando para dentro. — Sua Graça tem um bom gosto, então ele garante que emqualquer lugar que ele possa ter que passar uma noite seja abastecido apenas com o melhor.

— Você está reclamando? — Aren sentou-se no beliche inferior e recostou-se na parede.Jor extraiu uma garrafa empoeirada. — Vinho Amaridiano fortificado. — Ele a segurou mais

perto da lamparina na mesa singular e leu o rótulo. — Não, Vossa Excelência, certamente nãoestou reclamando.

Estourando a rolha, Jor derramou uma dose nos copos de lata que Lia colocou, entregandoum a Lara. Ele levantou um. — Um brinde aos viticultores de Amarid, que fazem a melhorbebida do mundo conhecido, e aos seus compatriotas caídos, que apodreçam nas profundezas dosMares de Tempestade. — Então o velho soldado pigarreou. — E para os nossos caídos, que oGrande Além lhes dê céus claros e mares calmos e mulheres sem fim com seios perfeitos.

— Jor! — Lia o cutucou no braço. — Um bom número de nossos caídos eram mulheres.Tenho certeza de que pelo menos algumas delas gostavam de homens. Pelo menos, deixe-as estarcercados por...

— Paus perfeitos? — Nove pares de olhos surpresos se voltaram para Lara, que deu deombros.

— Onde a vida mortal falha, o Grande Além oferece. — entoou Jor, e Aren atirou a botanele.

Lia levantou as mãos. — Pessoas morreram. Mostre respeito.— Eu estou respeitando-os. Desrespeitar eles teria brindado seu sacrifício com esse lodo. —

Jor pegou uma garrafa de vinho maridriniano enevoado da caixa. Ele estremeceu, e ele lançouum olhar incrédulo, olhando o que parecia ser uma pedra no fundo da garrafa. — Não é ruim osuficiente por si só, eles precisam colocar pedaços de pedra nela? — Seus olhos foram para Lara.— É algum teste estranho da força dos estômagos Maridrinianos que eu não ouvi falar?

Todos sorriram, e Gorrick rugiu: — Por Ithicana! — Todos o repetiram, levantando os copos.Enquanto Aren engolia o vinho, o que era muito bom, ouviu Lara murmurar — Por Ithicana.

— e tomou um pequeno gole de sua taça.Enchendo os copos, Aren se levantou. — Por Taryn, que matou nosso inimigo. E para nossa

Rainha — ele puxou Lara para frente — que salvou nossos camaradas.— Por Taryn! — todos gritaram. — À Sua Majestade!O vinho desapareceu em poucos minutos, pois apesar do ar leve, hoje havia deixado sua

marca. Era assim que eles conseguiam - fingindo não se importar, mas Aren sabia que Jor dariatempo para cada um deles, ajudando-os a aceitar o que haviam testemunhado. E com o que elesfizeram. Ele era capitão da guarda por um motivo.

Lara estava abraçando seu corpo, tremendo apesar do vinho. O vento e a chuva estavam maisfrios do que Ithicana normalmente via, e suas roupas estavam ensopadas. Ele a observou olharpara as outras mulheres, que estavam despidas em calças e camisetas, e então a mão dela foi parao cinto.

O coração dele disparou, depois disparou quando ela o soltou, colocando-o de lado junto comas facas Maridrinianas que habitualmente usava. Então desatou os laços da túnica na garganta epuxou a roupa sobre a cabeça.

A casa segura ficou completamente silenciosa por um piscar de olhos, depois cheia debarulho alto de armas sendo limpas e conversas irracionais, todos olhando para qualquer lugar,menos para sua Rainha.

Aren parecia não fazer o mesmo. Enquanto as outras mulheres usavam tecidos grossos, asroupas de baixo de Lara eram a melhor seda de marfim, ensopada, tornando-a transparente. Ascurvas cheias de seus seios pressionaram contra o tecido, seus mamilos cor de rosa atingiram opico do frio. Não havia nada, Aren pensou, que o Grande Além pudesse oferecer que seria maisperfeito que ela.

Percebendo que ele estava olhando, Aren desviou o olhar. Pegando um cobertor fino dobradono final do beliche, ele o entregou a Lara, com cuidado para manter os olhos no rosto dela. —Aqui vai aquecer com todos os corpos - quero dizer, pessoas. Em breve. Logo estará maisquente.

Seu sorriso era tímido quando ela enrolou o cobertor em volta dos ombros, mas sua alegriacom o desconforto dele desapareceu quando viu Jor examinando uma de suas facas.

Ele tirou a peça de jóias da bainha e estava testando a borda. — Afiado. — Ele o usou paracortar a cera de uma roda de queijo Harendellian. — Eu pensei que estas deveriam sercerimoniais?

— Eu achei sensato torná-las um pouco úteis — respondeu Lara, uma expressãodeterminada.

— Quase — Jor equilibrou a arma, o punho coberto de gemas tornando-a pesada e densas,embora a própria lâmina parecesse bem feita. — Nós poderíamos vendê-las por uma fortuna nonorte e conseguir algo que você realmente possa usar.

Lara estava se mexendo e balançando como se não quisesse nada além de estender a mão epegar a faca de volta, então Aren fez isso por ela, limpando o queijo da lâmina com a lateral dacalça antes de devolvê-la a ela.

— Obrigada — ela murmurou. — Meu pai entregou-as para mim. Elas são a única coisa queele já me deu.

Aren queria perguntar por que isso importava. Por que ela se importava com alguma coisa aver com a criatura gananciosa e sádica que a gerou. Mas ele não fez. Não com todo mundoouvindo.

Jor pegou a garrafa de vinho maridriniano. — Tempos desesperados. Tempos desesperados.— Então ele abriu a rolha e derramou, algo pousando com um splash na xícara de lata. — Agora,o que temos aqui?

— O que é isso? — Lia perguntou.— Parece que o prêmio de um contrabandista se perdeu. — O velho soldado levantou algo

que brilhava em vermelho à luz da lamparina, depois jogou na direção de Aren. — Há um

comprador na Northwatch que ficará muito insatisfeito com sua compra de vinho.Aren levantou o grande rubi. Ele não era especialista em pedras preciosas, mas, a julgar pelo

tamanho e cor, valia uma pequena fortuna. Um contrabandista muito infeliz, de fato.Empurrando-o no bolso, ele disse: — Isso deve cobrir os impostos que o indivíduo estavatentando fugir.

Todos riram e depois procuraram os suprimentos, todos agredidos e sem fome depois de umdia de luta, remadas e quase morte, mais interessados em enfiar comida na garganta do que emconversas. Lara sentou-se ao lado de Aren no beliche, equilibrando sobre os joelhos uma porçãode carnes curadas, queijos e um copo de lata com água enquanto comia.

Suas mãos e dedos esbeltos tinham uma variedade de velhas cicatrizes, cortes e linhas, e umajunta um pouco maior, sugerindo que ela havia sido quebrada em um ponto. Não as mãos que seesperaria da princesa maridriniana, mas considerando que antes de questionar o tipo de vida queela estava vivendo no deserto para ganhar essas cicatrizes, agora ele estava tendo pensamentosmuito diferentes sobre essas mãos.

De como seria segurá-las.De como seria ser tocado por elas.De como seria...— Luzes apagadas! — Jor anunciou. — O vento me diz que essa tempestade vai quebrar da

noite para o dia e queremos voltar à água ao amanhecer.Todos os olhos se voltaram para os oito beliches, depois para as dez pessoas na sala.— Se dividam ou o menor graveto para o chão.Gorrick subiu ao topo de um dos beliches, depois puxou Lia com ele, e Aren estremeceu,

esperando que eles mantivessem as mãos para si pelo menos.— Vou ficar no chão — disse ele. — Mas irei tirar uma soneca na minha cama de penas

assim que chegarmos em casa amanhã.— Agradecemos seu sacrifício, Vossa Majestade. — Jor estendeu a mão e desligou a

lamparina, mergulhando a casa segura na escuridão.Aren estava deitado no chão de pedra, um braço cruzado sob a cabeça para ser um

travesseiro. Era frio e desconfortável, e apesar de sua exaustão, o sono não chegava enquanto eleouvia a respiração profunda das pessoas ao seu redor, mil pensamentos enchendo sua cabeça.

Quando algo frio roçou em seu peito, Aren quase pulou fora de sua pele antes de perceberque era Lara. Ela estava inclinando-se para fora do beliche ao lado dele, os olhos lambendo obrilho fraco da lamparina. Sem palavras, ela pegou a mão dele e a puxou para cima, puxando-opara o beliche.

Com a pulsação rugindo em seus ouvidos, Aren passou por cima dela, as costas apoiadas naparede fria, sem saber o que fazer com os braços e as mãos ou qualquer parte dele até que ela seenrolou contra ele, com a pele gelada.

Ela está com frio, ele disse a si mesmo, e você precisa manter as mãos para si mesmo.O que poderia ter sido a coisa mais difícil que ele já fez, com um dos seus joelhos entre os

dele, os braços dela dobrados contra o peito dele, a cabeça apoiada no ombro dele e a respiraçãoquente contra a garganta dele. Ele não queria nada mais do que rolar sobre ela, provar aqueleslábios e descartar aquele pedaço de seda provocante do peito, mas, em vez disso, puxou ocobertor sobre o ombro nu dela, depois apoiou a mão nas costas dela.

A sala estava úmida com a respiração pesada com o cheiro de suor e aço. Taryn estavaroncando como se sua vida dependesse disso, Gorrick tagarelava enquanto dormia, e alguém -provavelmente Jor - peidava em intervalos regulares. Era provavelmente a situação menos

desejável compartilhar uma cama com a esposa pela primeira vez. Mas, enquanto o cabelo delafazia cócegas no nariz dele, o braço dele adormecia sob a cabeça dela e um arrepio se formava noseu pescoço, ocorreu a Aren, quando ele se afastou, que não havia outro lugar que preferisseestar.

Horas depois, Aren acordou com uma batida rítmica. Franzindo a testa, ele virou a cabeça eencontrou os olhos de Lara abertos e brilhando na luz fraca. Puxando uma mão debaixo docobertor, ela apontou para cima e levantou a sobrancelha com um sorriso divertido.

Gorrick e Lia. Provavelmente se aquecendo após sua vez de vigiar.Ele estremeceu, sussurrando: — Desculpe. É a vida de um soldado. — Então ele correu

mentalmente a escala, percebendo que Jor o havia pulado e que Taryn se fora, o que significavaque estava quase amanhecendo.

— Quer ir lá fora? — Alívio o encheu quando Lara assentiu.Colocaram botas, roupas e armas em um silêncio próximo, Lara pegando comida de um dos

caixotes e seguindo-o até a noite. A tempestade tinha sido soprada, o céu era um tumulto deestrelas de prata, o único som era o bater das ondas contra os penhascos da ilha.

Taryn estava empoleirada em uma pedra nas sombras, mas ele a ouviu murmuraragradecimentos quando Lara se aproximou e lhe deu um pouco da comida.

— Aren, leve-a para o lado leste.— Por quê?Mesmo na escuridão, ele sentiu Taryn sorrir. — Confie em mim.— Tudo certo. — Ele pegou a mão de Lara. — Voltaremos ao nascer do sol.Aren não tinha estado nesta ilha em particular muitas vezes, então ele foi devagar. Ele

conseguiu encontrar o caminho para o mirante oriental pela memória, um pedacinho de rochaque pairava sobre o oceano. Um mar de luz azul estendia-se diante deles.

Lara deu um passo à frente, ainda segurando a mão dele. — Eu nunca vi algo tão bonito.Nem ele, mas Aren forçou os olhos do rosto dela para a água calma abaixo. — Chamamos de

Mar das Estrelas. Isso não acontece com frequência e sempre durante as marés da guerra, porisso não é muito apreciado.

Fios brilhantes de algas cobriam a água, os aglomerados formando brilhantes pontos azuis deluz no mar, fazendo-o sentir como se estivesse entre dois planos de luz das estrelas. Ondulavanas ondas suaves, lançando sombras nas rochas que pareciam dançar ao ritmo das ondas. Elesficaram assistindo por um longo tempo, nenhum deles falando, e ocorreu a Aren que ele deveriabeijá-la, mas em vez disso, disse: — O que mudou?

Porque tinha algo. Algo mudou, suavizando-a na direção dele, talvez para toda a Ithicana, eele não tinha certeza do que era. Pelo que sabia, a maioria de suas experiências desde que elachegou não tinha sido particularmente boa. Ela era filha de um homem que era mais inimigo deAren do que seu aliado, e ele não deveria confiar nela. Não confiava nela. Mas a cada dia quepassava com ela, se sentia querendo confiar nela. Com tudo.

Lara engoliu audivelmente, puxando a mão do aperto dele e cruzando as pernas no chão,esperando até que ele sentasse ao lado dela. A luz azul do mar iluminava seu rosto, fazendo-aparecer sobrenatural e intocável. — Quando eu era criança, disseram-me muitas vezes a quantiade receita que Ithicana gerava em um ano fora da ponte.

— Quanto? — Ele balançou a cabeça ao número quando ela respondeu. — É mais.— Você está se gabando?— Apenas sendo sincero.O canto da boca dela se curvou, e ela ficou quieta por um momento antes de continuar. —

Para mim, a quantia foi impressionante. E eu pensei... Disseram-me que Ithicana tocava emanipulava o mercado, arrancava viajantes com medo de tomarem os mares e cobrava pesadosimpostos e pedágios de comerciantes que desejavam transportar e comercializar seus própriosbens. Que você decidiu quem tinha o direito de comprar e vender em seus mercados e que tirariaesse privilégio se eles o cruzassem de alguma maneira. Que você controlou quase todo ocomércio entre dois continentes e onze Reinos diferentes.

— Preciso. — Ele não se deu ao trabalho de acrescentar que Ithicana pagou em sangue poresse direito, porque ela mesma tinha visto as evidências.

— O que não foi preciso... foi o porquê disso.— O que te disseram?— Ganância. — Seus olhos estavam sem piscar quando ela olhou para o oceano. — Quando

eu era jovem, acreditava que você devia viver em enormes palácios, preenchendo de todos osmaiores luxos que o mundo tinha para oferecer. Que você se sentava em um trono de ouro.

— Ah sim. Meu trono de ouro. Eu o mantenho em outra ilha e o visito quando precisoreafirmar meu senso de autoestima e direito.

— Não zombe de mim.— Eu não estou zombando. — Ele pegou a parte de cima da bota, onde o couro se partira da

exposição excessiva à água salgada. — Deve ter sido bastante decepcionante descobrir averdade.

Lara emitiu um som meio riso, meio soluço. — Midwatch é tão luxuosa quanto minha casano Deserto Vermelho, e meu tempo passado aqui foi relaxante em comparação. Fui criada deforma dura, Aren.

— Por que eles eram tão duros com você? — Eu pensei que sabia, mas agora... — Ela levantou o queixo dos joelhos, virando a cabeça

para olhá-lo. — Você me pergunta o que mudou? O que mudou é que agora eu sei que você usaesse dinheiro para alimentar e proteger sua população.

Havia uma certa inevitabilidade em aprender essa verdade. Talvez se ele a mantivessetrancada na casa de Midwatch, sem contato com ninguém além da equipe e de sua guarda, elepoderia ter escondido dela. Mas queria que seu casamento com Lara fosse um símbolo demudança em Ithicana, uma nova direção. E para que isso acontecesse, eles precisavam vê-la, esempre houve consequências para esse caminho, e a revelação dos segredos de Ithicana era umdeles.

E ele queria muito confiar nela.— A verdade é que Ithicana não é passível de sobreviver sem a ponte — disse ele. — Ou

melhor, é passível de sobrevivência, mas apenas se cada minuto de cada dia acordado fordedicado à sobrevivência. — Girando no chão para que estivessem se encarando, ele olhou nosolhos dela. O sol estava nascendo, a luz mudando de azul para dourado, e era como acordar deum sonho e voltar à realidade. Se Aren pudesse ter parado, ele teria. — Imagine uma vida emque você teve que combater essas tempestades e essas águas para alimentar sua família. Vestirseus filhos. Para protegê-los. Onde semanas podem passar quando você não pode pegar um barcona água. Onde uma série de dias pode passar, quando beira o suicídio, sair da sua casa. O quemais existe além da sobrevivência em um mundo como esse?

Aren não tinha percebido que tinha pegado suas mãos, mas ela as apertou com força então, eele fez uma pausa, seus polegares passando levemente sobre suas cicatrizes. — A ponte mudaisso. Isso me permite dar ao meu pessoal o que eles precisam, para que uma pequena parte deseus dias seja dedicada a mais do que apenas a sobrevivência, mesmo que seja apenas uma hora.

Para que meu povo tenha a chance de ler, aprender, fazer arte. Cantar, dançar ou rir.Ele parou, percebendo que nunca havia explicado isso a ninguém. Explicou como era

governar este lugar. A luta constante para dar uma vida digna ao seu povo. E não foi suficiente.Ele queria que eles tivessem mais.

— Você poderia alimentar cada um deles como Reis com esse tipo de dinheiro. — Lara nãoestava questionando sua palavra, mas o levando adiante, extraindo toda a verdade.

— Isso é verdade. Mas ter essas coisas - ter a ponte - tem um custo. Outros Reinos sabemque tipo de receita a ponte ganha, e isso os faz querer possuí-la. Os piratas acreditam que temosestoques de ouro escondidos nas ilhas, então eles nos atacam para encontrá-lo. Então nós temosque lutar. Meu exército permanente não é enorme, mas durante as Marés da Guerra, quase doisterços do meu povo largam seus negócios e pegam em armas para defender a ponte. Eu tenhoque comprar armas para eles. Eu tenho que pagar pelo serviço deles. E tenho que compensar afamília deles quando morrerem.

— Então, apesar de tudo, Ithicana está apenas sobrevivendo, afinal.Ele apertou mais as mãos dela. — Mas talvez um dia possa ser algo melhor.Nenhum dos dois falou, e quando uma brisa suave soprou fios de cabelo em seu rosto, Aren

estendeu a mão para afastá-los. Lara não se encolheu com o toque dele. Não desviou o olhar. —Você é linda. — Ele enroscou os dedos nos cabelos dela. — Eu penso assim desde o momentoem que te vi, mas acho que nunca disse isso.

Lara abaixou os olhos, rosa subindo para as bochechas, embora pudesse ter sido apenas obrilho do sol. Ela balançou a cabeça levemente.

— Eu deveria ter dito. — Ele abaixou a cabeça, com a intenção de beijá-la, mas, em vezdisso, um ruído agudo o fez pular.

Com a mão na arma, Aren se virou para ver Jor virando a esquina, o rosto cheio de diversão.— Eu odeio acabar com o seu piquenique, Majestade, mas o amanhecer está chegando eprecisamos seguir nosso caminho.

Como que para pontuar suas palavras, soaram buzinas sobre a água anunciando navios nohorizonte. — Isso muda as coisas para você? — ele perguntou a Lara, ajudando-a a se levantar.

Ela fechou os olhos, apertando o rosto por um momento como se sentisse dor, depois os abriue assentiu. — Isso muda tudo.

Esperança, e outra coisa, algo exclusivamente reservado para ela, inundou seu coração e,pegando Lara pela mão, Aren a levou de volta aos barcos correndo.

2 4

LARA

TUDO HAVIA MUDADO.E nada.Não era luxúria. Lara não era tão fraca ao ponto de abandonar uma vida inteira de

planejamento e preparação para o bem de um homem bonito e charmoso demais para o seupróprio bem. Se isso fosse tudo, ela teria saciado sua curiosidade e continuado com a consciênciatão limpa quanto qualquer espião poderia ter. Não, era sua admiração por Aren que estava setornando cada vez mais problemática, assim como sua tristeza pelo que aconteceria com Ithicanaquando ela terminasse.

Lara e suas irmãs foram ensinadas a desprezar Ithicana por um motivo. Seu objetivo erainfiltrar-se nas defesas de uma nação para que ela pudesse, na melhor das hipóteses, ser vencida.Na pior das hipóteses, ser destruída. Uma coisa fácil de imaginar quando o inimigo não era nadamais do que demônios mascarados usando sua força para manter seu povo oprimido.

Mas agora eles tinham rostos. E nomes. E famílias.Todos os quais eram atacados anualmente por Reinos e piratas. Talvez os Ithicanos fossem

cruéis e impiedosos, mas agora Lara descobriu que não podia culpá-los por isso. Eles fizeram oque precisavam para sobreviver e, com todas as informações que armazenava sobre eles, suaculpa aumentou, porque sabia que Ithicana não sobreviveria a ela. Embora esse conhecimento játenha lhe trazido satisfação, agora não passava de um fato inescapável que parecia destinado aatormentá-la a cada momento acordada com auto aversão.

Suas ações na Ilha Aela haviam conseguido o que ela temia ser impossível: conquistar aconfiança de Aren. E não apenas a confiança dele, mas a de todos os soldados que lutaram nabatalha. As expressões deles na presença dela haviam passado de desconfiadas para respeitosas,e como um, eles pararam de questionar seu direito de ir aonde ela quisesse. Um direito queabusou instantaneamente. Ninguém a questionou quando ela se afastou dos curandeiros e dosferidos após a batalha. Ninguém a deteve ou a seguiu quando caminhou até a base do píer daponte, onde havia encontrado a entrada quase invisível, que ela marcou com algumas pedrascuidadosamente colocadas que não significariam nada para os Ithicanos e muita coisa aossoldados Maridrinianos quando tomarem a ilha de Aela.

Dentro do píer, ela também escondera três cornetas que roubou dos cadáveres na praia,prontas para desviar os reforços Ithicanos ao usar quando der a hora. Uma estratégia que Arenpraticamente explicou para ela em suas tentativas de convencê-la a se afastar dos feridos e entrarem um barco. O que ele só fez porque acreditava que ela estava começando a amá-los da maneiraque ele amava.

Não vacile, ela silenciosamente cantou, olhos fixos no céu enquanto flutuava seu corpo aindadolorido na primavera quente. Não falhe.

Mordendo a cutícula do polegar, Lara ponderou o que havia aprendido. Ponderou se erasuficiente para Maridrina tomar Ithicana. O suficiente para conquistar o invencível e o suficientepara dar a Maridrina a ponte que seria sua salvação.

Era o suficiente.Tudo o que restava era levar os detalhes de seu plano de invasão para Serin e seu pai, para

que, então, fingisse sua morte e escapasse de Midwatch e Ithicana e, esperançosamente, dosinevitáveis assassinos de seu pai. Onde ela iria, não sabia. Para Harendell, talvez. Talvez umavez que a poeira baixasse, ela tentaria encontrar suas irmãs. Faça uma vida por si mesma. Pormais que tentasse, não conseguia imaginar como seria uma vida além de Ithicana. Uma vida semele.

Os olhos de Lara ardiam e, em uma onda de movimento, saiu do jardim, pegando a toalhapousada na rocha. Mais de uma semana se passou desde o ataque a Aela, e ela ainda não haviadado um passo adiante para colocar seu plano em ação. Ela disse a si mesma que era porque omúsculo que distendeu em seu ombro durante a batalha precisava de tempo para curar antes queela fosse forte o suficiente para fazê-la escapar. Mas seu coração disse que estava atrasando poroutros motivos. Razões que colocam toda a sua missão em risco.

Mas hoje era a noite.Aren enviou uma mensagem do quartel via Eli que haveria uma tempestade essa noite e que

ele planejava jantar com Lara. E se estivesse com ela, isso significava que Taryn, que aindainsistia em dormir do lado de fora de sua porta, faria uma pausa nos seus deveres de guarda-costas. Uma dose dupla de um narcótico sedativo no vinho de Aren depois do jantar, e então elapassaria a noite inteira no quarto dele para trabalhar sem medo de interrupções.

As nuvens já estavam rolando, o vento soprava, pois mesmo na estação calma, os Mares deTempestade ainda mostravam suas garras. Lara trabalhou metodicamente em sua aparência,secando os cabelos e depois usando um ferro quente para criar cachos que pendiam de suascostas. Ela escureceu os olhos com kohl e pó até esfumar e pintou seus lábios de um rosa pálido.Ela escolheu um vestido que não usara antes: roxo escuro, a seda escandalosamente transparente,revelando seu corpo por baixo sempre que passava diante de uma luz. Nas orelhas, ela usavadiamantes pretos e, no pulso, a pulseira inteligente que escondia os frascos de narcóticos.

Saindo para o corredor, ela caminhou até a sala de jantar, as sandálias parecendo estranhasdepois de tantas semanas usando botas pesadas. A sala estava iluminada com velas, as persianasdas grandes janelas abertas, apesar do risco que o vento representava para o vidro caro. E um Eliencharcado conversava com Taryn, quem Lara ficou surpresa ao encontrar ainda em casa.Ambos se viraram para olhá-la, expressões sombrias e o coração de Lara pulou. — Onde estáele?

— Eles foram patrulhar no final da manhã. — Taryn passou a mão pelos lados raspados dacabeça. — Ninguém viu ou ouviu falar deles desde então.

— Isso é normal? — Lara não conseguia controlar o tremor em sua voz.A outra mulher exalou um longo suspiro. — Não é anormal para Aren decidir que há algum

lugar em que ele precisa estar além de Midwatch. — Então seus olhos deram uma nova reparadaem Lara. — Mas acho que não é o caso hoje à noite.

— Então, onde ele está?— Pode ter sido problema com um dos barcos. Ou talvez eles tenham decidido esperar a

tempestade. Ou…

Cornetas soaram e Lara não precisava mais de Taryn para lhe dizer o que elas queriam dizer:invasores.

— Estou indo para o quartel. — Correndo para os quartos, Lara substituiu as sandálias porbotas e colocou uma capa sobre o vestido.

Lá fora, a chuva caía constantemente, mas o vento não era forte o suficiente para causar aosIthicanos qualquer problema na água. Taryn em seu braço, e o resto de seu guarda-costas ao ladoe atrás dela, Lara correu pelo caminho escuro em direção ao quartel.

Onde a tensão estava maior do que ela já vira antes.— Vou descobrir o que eles sabem. — Taryn deixou Lara com os outros dois guardas, que a

seguiram enquanto contornava a enseada, subindo os degraus de pedra esculpida até o topo dafalésia, onde podia ver o mar. Vários soldados se ajoelharam atrás das pedras que usavam para seesconder, com lunetas na mão.

— Alguma coisa? — Mas eles apenas balançaram a cabeça.E se ele não voltasse?Isso jogaria seu plano para a merda. Sem Aren para escrever uma carta para o pai, ela não

tinha como passar uma mensagem detalhada sobre Ahnna e seus decifradores de códigos emSouthwatch. Sua única opção seria fingir sua morte e escapar, e depois enviar as informações aopai de fora de Ithicana. Mas então ele e Serin saberiam que ela estava viva, e isso significavauma vida inteira de assassinos correndo atrás dela. No entanto, quando se agachou no chão paraobservar a escuridão do oceano, não foram soluções para seu dilema que encheram seuspensamentos.

Foi medo.Ela viu tantos Ithicanos morrerem em combate, de muitas maneiras diferentes. Executados ou

estripados. Esmagados ou estrangulados. Espancados ou afogados. Os cadáveres dançavamatravés de seus pensamentos, todos agora usando o rosto de Aren.

— Eles não enviaram nenhuma nota. — Taryn apareceu no cotovelo de Lara. — Mas issonão significa necessariamente outra coisa senão que não querem anunciar sua presença aoinimigo.

Ou estavam todos mortos, pensou Lara, apertando o peito dolorosamente.Taryn entregou-lhe um pacote dobrado de papéis. — Isso veio para você.Segurando o papel ao lado de um dos potes de algas, Lara analisou o conteúdo. Serin,

fingindo ser seu pai, discutiu sua decepção com seu segundo irmão mais velho, Keris, que estavaexigindo frequentar a universidade em Harendell, em vez de assumir o comando de forçasMaridrinianas como seu irmão mais velho. Ele deseja estudar filosofia! Como se houvesse tempopara contemplar o sentido da vida quando nossos inimigos continuarem mordendo nossosflancos!

Alguns soldados se mexeram, tirando sua atenção da carta, e levou alguns momentos paraque ela pudesse se reorientar. O código de Marylyn parecia uma ilusão. Os olhos de Laraarrastaram-se continuamente para o mar. Mas, eventualmente, sua mente retirou a mensagem deSerin do absurdo. Valcotta bloqueou nosso acesso à Southwatch. Fome em ascensão.

Uma onda de náusea passou por Lara e enfiou as páginas no bolso da capa. Com seusdestruidores de navios, Southwatch era capaz de expulsar Valcotta, mas ela podia entender arelutância deles em antagonizar a outra nação. Entendeu o que custaria a Valcotta se juntar aosescalões dos Reinos que invadiam Ithicana. Mas eram as pessoas que pagavam o preço.

Eles ficaram sentados na chuva por horas, mas nenhuma corneta soou. Nenhum barcoapareceu abaixo solicitando acesso à enseada. Nada se mexeu na escuridão.

Eventualmente, Taryn se aproximou dela. — Você deveria voltar para casa, Lara. Não hácomo dizer quando eles voltarão, e você congelará nessa chuva fria.

Ela deveria ir. Ela sabia que deveria ir. Mas a ideia de ter que esperar por um deles para lhetrazer notícias… — Eu não posso. — Sua língua estava grossa.

— Para o quartel, então? — Havia um apelo na voz da outra mulher.Relutantemente, Lara assentiu, mas a cada poucos passos pela trilha, lançava um olhar para

trás em direção ao mar, o rugido dele chamando, atraindo-a de volta.— Este é o beliche de Aren — disse Taryn, uma vez que estavam nos limites do edifício de

pedra. — Ele não vai se importar se você dormir aqui.Fechando a porta do quarto minúsculo, Lara colocou a lamparina na mesa de madeira áspera

ao lado da cama estreita e sentou-se, o colchão duro como uma rocha e o cobertor ásperocomparado aos lençóis macios da casa. Isso a lembrou da cama que ela dividiu com ele na casasegura. Como ela adormeceu em seus braços, ouvindo a batida de seu coração.

Ela tirou a capa e se encolheu de lado, a cabeça apoiada no travesseiro.Cheirava como ele.Fechando os olhos com força, Lara aproveitou todas as lições que seu Mestre de Meditação

já havia lhe ensinado, medindo a respiração e limpando a mente, mas o sono não veio, então sesentou, o cobertor enrolado nas pernas.

Não havia nada na sala para distraí-la. Sem livros ou quebra-cabeças. Nem mesmo umbaralho de cartas. Os esparsos aposentos de um soldado, não de um Rei. Ou pelo menos não dotipo de Rei que ela acreditava existir. Os aposentos de um líder que não se mantinha acima doseu povo. Que tomava suas dificuldades como dele. Porque elas eram dele.

Por favor, esteja vivo.A porta se abriu e Lara deu uma volta para encontrar Taryn em pé na porta. — Eles voltaram.Ela seguiu a outra mulher correndo até a enseada, o peito apertado de medo. Era um medo

para si mesma, sua mente gritava. Medo por sua missão. Medo pelo destino do seu povo.Mas seu coração lhe disse o contrário.A areia da praia mudou sob seus pés, e Lara apertou os olhos na escuridão. Uma voz fraca

chamou, então a corrente chacoalhou, abrindo a entrada da enseada.Mais salpicos, ondas batendo contra cascos e remos esculpindo a água. Mas, acima de tudo,

Lara percebeu gemidos de dor. O coração dela disparou.Por favor, esteja vivo.A enseada se transformou em uma onda de atividades, barcos cheios de homens e mulheres

ensanguentados entrando, aqueles na praia amarrando-os e ajudando os feridos a desembarcar.Os olhos dela saltaram sobre os rostos sombreados, procurando. Procurando.

— Você pode, pela fé, se apressar? — A voz de Jor. Lara atravessou o tráfego eficiente,tentando encontrar o soldado. Finalmente, ela viu ele e Lia agachados no fundo de um barco,uma figura caída entre eles.

— Aren? — Sua voz saiu como um coaxar, os pés abruptamente enraizados no local.A dupla se abaixou, e o alívio inundou suas veias quando Aren afastou suas mãos. — Saiam

de cima de mim. Eu posso muito bem sair sozinho.Ele ficou de pé e o barco balançou, Jor e Lia recuperando o equilíbrio facilmente, mas Aren

quase indo para o lado.— Chega de seu orgulho, garoto. — Jor latiu e, entre ele e Lia, eles arrastaram o Rei para a

terra.Lara não conseguia ver o que havia de errado com ele no escuro, as lamparinas projetando

sombras que pareciam manchas de sangue, só que se mexiam e se moviam. Então Aren se virou,e a lamparina atrás dele revelou o contorno de uma flecha embutida em seu braço.

— Saiam do meu caminho. — Ela empurrou dois soldados para o lado e correu em direção aAren.

— O que diabos você está fazendo aqui em baixo? — Aren empurrou Jor para longe, mesmoquando ele tropeçou. Lara se adiantou e pegou o peso dele, o cheiro quente de sangue enchendoseu nariz. — Eu posso andar sozinho. — ele murmurou.

— Claramente. — O corpo de Lara estremeceu com o esforço de segurá-lo de pé enquanto sedirigiam da praia inclinada em direção à linha das árvores, o caminho que levava ao quartel maliluminado com potes de algas.

Arrastando Aren para o quartel, ela o colocou em um banco. Jogando de lado a capaencharcada, puxou uma das facas e cortou a túnica dele, deixando cair a roupa arruinada no chão.Então ela se ajoelhou ao lado dele, seus olhos observando a lesão.

A ponta da flecha estava enterrada profundamente no músculo de seu braço, o eixo tendosido quebrado pela metade por alguém em algum momento, a madeira manchada de escuro comsangue.

— Malditos Amaridianos. — A voz de Jor parecia distante para Lara, cada parte dela focadana respiração de Aren contra seu pescoço, quente e irregular.

Erguendo o rosto, ela encontrou seu olhar enevoado pela dor. — Não podemos retirá-la -temos que empurrá-la completamente.

— Cada momento com você é uma delícia. — Uma leve faísca voltou aos olhos de Aren. —Desculpe, eu perdi o jantar.

— Você deveria ter vindo. — Ela lutou para manter a voz calma. — Cheirava muito bem.— Perder a comida não é a parte pela qual sinto muito. — Ele levantou o braço não

machucado, os dedos roçando o grande diamante ainda adornando sua orelha, enviando umtremor através dela.

— Se segure em mim — Ela empurrou a mão dele antes que sua compostura fosse totalmentequebrada. — A última coisa que precisamos é que você se contorça e agrave a lesão.

Aren soltou uma risada dolorida, mas segurou a cintura dela com a mão do braço não ferido,os dedos cravando nos músculos das costas dela.

— Isso vai doer — advertiu Jor, segurando com firmeza a flecha. Xingando, Aren baixou acabeça no ombro de Lara e o puxou contra ela, sabendo que não era forte o suficiente paramantê-lo firme se ele lutasse.

— Relaxe — disse Jor. — Você está sendo um bebê.Lara murmurou no ouvido de Aren — Respire — Os ombros dele tremiam quando inspirou e

expirou, e ela sabia que a atenção dele estava nela. Os dedos dele flexionavam, depoisdeslizaram da cintura para o quadril. — Respire — ela repetiu, os lábios roçando o lóbulo daorelha dele. — Respire. — Quando disse a palavra pela terceira vez, ela encontrou o olhar de Jor.

Ele empurrou.Aren gritou em seu ombro, empurrando-a com tanta força que Lara quase recuou, suas botas

derrapando contra o chão do quartel. O sangue espirrou em seu rosto, mas o segurou, recusando-se a soltá-lo.

— Consegui! — Jor disse, e um segundo depois, os joelhos de Lara dobraram e caiu paratrás, Aren pousando em cima dela. Por um batimento cardíaco, nenhum dos dois se mexeu, arespiração de Aren trabalhou em seu ouvido, seu corpo pressionado contra o dela. Ela o segurou,agarrou-se a ele, um desejo irracional de caçar e destruir aqueles que haviam feito isso

consumindo todos os outros pensamentos. Então Jor e Lia estavam puxando-o para longe dela.Lutando em pé, Lara limpou o sangue do rosto, o coração batendo forte quando Jor examinou

a lesão. — Você o ajudará. — disse ele, depois se afastou quando uma das alunas de Nanachegou.

Ao redor havia soldados ensanguentados. Alguns cerraram os dentes contra a dor. Algunsgritaram quando seus camaradas tentavam estancar ferimentos horríveis. Alguns deitavam-seimóveis.

Todos eles se machucaram em defesa de sua casa.Os olhos de Lara caíram em Taryn, lágrimas escorrendo pelo rosto da mulher enquanto

pressionava as mãos contra o estômago de um jovem, tentando segurar suas entranhas pordentro. — Não morra comigo. — Sua voz sussurrada de alguma forma cortou o barulho. — Nãose atreva a morrer.

Mas, enquanto Lara observava, o peito do jovem ficou imóvel.Quantos corações ainda haveriam quando o pai dela atacasse?Eles são seus inimigos, ela entoou. Seu inimigo. Seu inimigo. Mas as palavras eram

profundamente vazias em sua mente.Lara deu um passo para trás. Então dois. Três. Até que estava fora do quartel e em um

caminho vazio.— Lara!Ela virou. Aren estava a uma dúzia de passos atrás dela no caminho, o curativo no braço

caindo, como se tivesse empurrado a curandeira trabalhando nele antes que ela pudesse terminar.— Espere.Ela não conseguia. Ela não deveria. Não quando cada pedaço de determinação que possuía

estava desmoronando no chão. No entanto, seus pés permaneceram fixos na terra enquanto Arencaminhava lentamente em sua direção, o sangue escorrendo pelo braço e pingando das pontasdos dedos.

— Eu sinto muito. — Sua voz estava trêmula. — Sinto muito que tudo que viu desde queesteve aqui foi violência.

Tudo o que ela conhecia era violência. Não era nada para ela. E tudo.— Queria que fosse diferente. Eu gostaria que não fosse assim.Ele balançou, caindo de joelhos, e Lara não percebeu que também estava ajoelhada até a

lama encharcar seu vestido. Não percebeu que ela estendeu a mão para segurá-lo até a mão deseu braço não ferido agarrar seu quadril para se equilibrar. Uma dança onde ela liderou e ele aseguiu.

— Olhos assim como os de seu maldito pai. Foi o que pensei quando te vi pela primeira vez.Nós chamamos de azul de bastardos Maridrinianos.

Ele deve ter sentido ela estremecer, porque seu aperto no quadril dela aumentou, puxando-apara mais perto. Ela não brigou com ele.

— Mas eu estava errado. Eles são diferentes. Eles são… Mais profundo. Como a cor do marao redor de Eranahl.

Eranahl? Ela já tinha visto esse nome antes, escrito em uma das páginas da mesa dele…Ouviu quando ele repreendeu o comandante Aster na praia na ilha de Aela. Revelando que eraum deslize da parte dele, ela tinha certeza disso. Mas não conseguiu se importar quando a mãodele deslizou pelas costas dela. Levou toda a força de vontade que ela tinha para não deslizar osbraços ao redor do pescoço dele, para não beijar aqueles lábios perfeitos dele, sem se importarcom o sangue e o pus.

Lara retirou a mão do ombro dele, mas a pegou com a sua. Dobrando os dedos em um punho,ele beijou as juntas, os olhos queimando nos dela. — Não vá.

Tudo estava queimando.O coração de Lara batia freneticamente, sua respiração instável, sua pele tão sensível que a

pressão de suas roupas quase doía.Pare! O aviso gritou dentro de sua cabeça. Você está perdendo o controle. Ela sintonizou a

voz, afastou-a.O polegar de Aren roçou a parte interna de seu pulso, os nós dos dedos ainda pressionados

nos lábios dele, e isso enviou rios de sensação correndo sobre sua pele, o desejo de ter as mãosdele em outro lugar, deixando suas pernas fracas. Ela balançou e ele a puxou contra ele, os doisinstáveis.

— Você precisa voltar para os curandeiros — ela sussurrou. — Você precisa deixá-loscosturar isso antes de sangrar até a morte.

— Eu vou ficar bem. — Ele abaixou a cabeça no momento em que ela ergueu a dela,compartilhando o mesmo ar, a mesma respiração, a brusca subida e descida de seu peitodesmentindo suas palavras. Ele não estava bem.

O pensamento disso a encheu de terror. Terror que se transformou instantaneamente emraiva. Por que se importava com o que aconteceu com ele além do sucesso de sua missão? Porque ela se importava se ele vivia ou morria? Este foi o homem que deliberadamente tomoudecisões que causaram grandes danos ao povo de sua terra natal. Talvez tenha feito isso pelobem de seu próprio povo, mas isso não desculpou a completa falta de empatia e culpa que elesentia ao agir. Ele era seu inimigo, e ela precisava se livrar dele antes de cometer um erro.

Então seus lábios roçaram suavemente os dela, e isso a desfez completamente. Os dedos delase enredaram nos cabelos dele, e ela queria mais. Mais disso e mais dele. Porém, em vez de dar aela, ele se afastou. — Eu preciso que você me ajude a fazer isso parar. Estou cansado de lutarcontra o mundo, quando o que quero é lutar para tornar Ithicana parte dele.

E foi como se a realidade lhe desse um tapa na cara.Lara se afastou dele. — Isso nunca vai parar, Aren. — Sua voz era estéril. Morta. O que era

estranho, porque dentro de sua cabeça havia um caos de emoções. — Você tem o que todomundo quer, e eles nunca vão parar de tentar pegá-la. Isto é Ithicana, e é tudo o que será. Vivacom isso.

— Isso não é viver, Lara. — Tossiu, depois estremeceu, pressionando a mão contra a ferida.— E pretendo continuar lutando por um futuro melhor, mesmo que isso me mate.

A fúria irracional surgiu em suas veias com as palavras dele. — Então você também pode sedeitar e morrer! — Ela precisava ficar longe dessa situação porque a estava despedaçando.Levantando-se em uma onda de movimento, Lara virou-se e correu pelo caminho escuro,escorregando na lama e nas raízes, até a casa.

Ela esperou em seus quartos até que os corredores estivessem em silêncio, até que nãohouvesse chance de alguém a perturbar, depois rastejou pelos corredores escuros e trancou afechadura do quarto de Aren. Vitex sentou na cama, mas ele só se esgueirou do lado de fora,ignorando-a enquanto passava.

Fechando a porta atrás dela, Lara acendeu a lamparina e foi até a mesa de Aren. Ela extraiu opote de tinta invisível que Serin lhe dera, depois puxou a caixa de papelão com um pesadopergaminho oficial ao lado de sua mão esquerda, abrindo a tampa. Pegando a página de cima,virou-a para que a forma em relevo da ponte ficasse voltada para baixo, depois mergulhou umacaneta na tinta e começou a escrever em letras minúsculas, o líquido secando invisível enquanto

detalhava tudo o que havia aprendido sobre Ithicana e uma estratégia para conquistar e quebrar oReino da Ponte. Sua mão tremia quando chegou ao fundo, mas deixou o papel de lado para secare pegou outro, repetindo sua mensagem. Depois, outro e outro, até que todas as vinte e seispáginas da caixa contivessem palavras condenatórias idênticas.

Precisou de tudo dela para não rasgá-las em pedaços enquanto colocava tudo de volta e seretirava para seu próprio quarto. Exaustão pesando seus membros, ela enterrou o rosto nostravesseiros de sua cama, com lágrimas ensopando as penas. É o único jeito, disse a si mesma. Éa única maneira de salvar Maridrina.

Mesmo que isso significasse se condenar.

2 5

LARA

AS MARÉS DE GUERRA TERMINARAM COM UM TUFÃO QUE CHEGOU RÁPIDO E VIOLENTO, COM O MAR

tão agitado que nem os Ithicanos se aventuravam nele. Até a ponte estava quase vazia, disse Eli,a tempestade intensa demais para os navios mercantes enfrentarem a curta travessia para as ilhasde Northwatch e Southwatch. Como resultado, Midwatch sentiu-se profundamente isolada,separada inteiramente do mundo, e ficou pior pelo fato de Lara estar presa na casa sozinha comos criados.

Embora a luta tivesse terminado, Aren a estava evitando. Ele passava todos os dias com seussoldados e suas noites na cama estreita no quartel, nem uma vez subindo o caminho para a casade Midwatch.

Mesmo assim, ela verificava o número de páginas de carta no quarto dele todas as noites,mas todas até últimas páginas das palavras condenatórias permaneciam em Ithicana.

Assim como ela.Na manhã seguinte à tempestade, Lara decidiu que estava na hora. Vestindo suas roupas

Ithicanas, ela encheu os bolsos de jóias e alguns de seus melhores narcóticos, comeu o máximoque podia para encher do estômago, depois disse a Eli que iria sair para tomar um ar fresco.

Encarar os mares durante uma tempestade seria, literalmente, suicídio, então ela esperou porum céu claro antes de adotar seu plano de fingir sua morte, sabendo que a honra levaria Aren aenviar uma carta formal informando o pai de Lara sobre sua morte. Que Serin, sempre vigilante,verificaria a página e descobriria o que ela havia escrito. Então ela só podia esperar e rezar paraque, quando não aparecesse depois de um tempo em Vencia, seu pai e Serin acreditassem que elaestava morta de verdade. Então nenhum assassino a procuraria em Harendell, que era para ondeplanejava ir. Ela poderia viver sua vida sabendo que havia dado ao povo a chance de um futuromelhor.

À custa do futuro de todos os que vivem em Ithicana.Com as tempestades para vigiar a ilha, Taryn e o resto foram dispensados do serviço de

guarda e não havia ninguém para fugir enquanto ela seguia uma trilha até as falésias com vistapara o mar, cortando o lado norte até chegar ao local que escolheu há muito tempo.

Era um ponto alto, a água a dez metros abaixo, mas o que a atraía era a série de rochas planasque se projetavam nas ondas. Elas eram adequadas para ela descer sua pequena canoa comcordas e igualmente adequadas para encenar o que pareceria uma queda acidental e uma mortetrágica. De lá, pretendia pular de ilha em ilha, usando casas seguras como as encontrou,lentamente indo para Harendell durante os intervalos da tempestade.

Era um plano cheio de perigos, mas não era o medo que pesava em seu estômago enquanto

ela olhava para as rochas.— Não caia.Assustada, Lara perdeu o equilíbrio e Aren estendeu a mão e segurou seu braço, puxando-a

para longe da borda.Ele fez um barulho de exasperação, depois continuou puxando o braço dela. — Venha

comigo. Você tem deveres a cumprir.— Quais deveres?— Os deveres de uma Rainha.Ela afundou com os calcanhares, deixando rastros gêmeos na lama até que ele parou e deu a

ela um olhar de nojo. — Isso não é um dever, Lara. Supervisionar o retorno dos evacuados daMidwatch é. Então, ou você começa a andar ou eu vou arrastá-la para a água e jogá-la em umbarco.

— Eu andarei. — Ela ficou furiosa porque seu plano estava sendo interrompido, mas tambémfuriosa com a pequena semente de alívio que sentiu sabendo que provavelmente teria que esperaroutra tempestade passar antes de deixar Ithicana.

Instalada em seu lugar habitual no barco, ela esperou até que saíssem da enseada antes deperguntar: — Para onde estamos indo?

— Serrith. — Aren se curvou, de costas para ela.— Apenas um dia encantador na água — disse Jor atrás dela, enquanto levantava a vela.

Depois disso, ninguém disse mais nada.A enseada na ilha de Serrith era dominada por dois dos grandes navios de casco duplo que

ela vira durante a evacuação, mas eles já estavam vazios de civis e suprimentos, suas equipesprontas para partir. Partir para Eranahl, ela pensou, observando-os. Embora onde exatamente,permanecia um mistério para ela, apesar de todas as semanas de espionagem.

Sua pele formigou quando ela seguiu Aren pelo caminho através da fenda na rocha ondematou todos aqueles soldados. Eles continuaram até chegarem à vila. Era uma visão totalmentediferente da última vez que eles estiveram aqui. Em vez de sangue e corpos, crianças de olhosmortos e pais chorando, estava movimentada pela indústria. As mulheres abriram as janelas eportas fechadas de suas casas para arejá-las, e as crianças corriam soltas entre elas.

Houve uma enxurrada de saudações e votos de felicitações, apresentações orgulhosas denovos bebês para seus governantes e crianças seguindo o rastro deles, desesperados por ummomento de atenção. A tática de Aren era óbvia. Tentando tocar o coração dela colocando bebêsgordinhos nos braços da mulher ou dando doces para distribuir às crianças.

E foi eficaz. Ela queria cair no chão e chorar, porque o mundo deles seria despedaçado. Masera entre eles e os Maridrinianos. O povo faminto de Maridrina precisava da ponte, precisava dareceita, precisava dos bens que passavam por ela. Então sacrificaria essas pessoas por si mesma edepois rezaria para que a culpa e o sofrimento não a matassem.

Lara teria dado qualquer coisa para ter suas irmãs aqui para compartilhar o fardo, porque elasentenderiam. Elas eram as únicas pessoas que entenderiam. Mas ela estava sozinha, e cadaminuto que passava parecia estar mais perto do ponto de ruptura do que ela poderia suportar.

Somente quando voltaram para os barcos, ela sentiu que podia respirar novamente, sentadacom o rosto nas mãos enquanto navegavam de volta para Midwatch.

— Parece que os guardiões tiveram alguns visitantes — disse Jor, quebrando o silêncio.Lara levantou a cabeça, os olhos pousando em uma pequena ilha com praias brancas e suaves

que desapareciam em rochas e vegetação. Acima dela, pairava a ponte, com o comprimentoapoiado em um píer centrado na ilha. Não era que a própria ilha fosse única, apenas que parecia

extraordinariamente fácil de acessar em relação às outras que os construtores haviam usado comocais.

Porque eles não tiveram escolha, ela determinou, olhando a distância. A maior extensão deponte que vira estava a cem metros entre os cais, e contornar a ilha exigiria um trecho mais longodo que era possível. Seus olhos pousaram nas três formas humanas, no meio da praia, inchadas eapodrecendo ao sol. — O que é este lugar?

— Ilha das Cobras.Ela pensou nas inúmeras serpentes que tinha visto desde a chegada. — Um nome que

descreve a maior parte de Ithicana.— Essa em particular. — Aren fez sinal para que Jor abaixasse as velas, permitindo que o

barco flutuasse sobre o fundo raso em direção à praia. — Veja.Ela olhou, vendo movimentos instáveis sob a borda da rocha que pairava sobre a praia, mas

incapaz de descobrir detalhes.Aren levantou-se no barco ao lado dela, um peixe ainda em movimento que havia sido

capturado mais cedo em uma mão, esperando enquanto as ondas os levavam gentilmente até apraia. Quando estavam a uns trinta metros, Jor enfiou um remo na água, impedindo que o barcose afastasse. Aren jogou o peixe.

Ele aterrissou no meio da praia e Lara assistiu horrorizada quando dezenas e dezenas decobras dispararam para fora da saliência, voando em direção ao peixe com as mandíbulasabertas. Elas eram grandes, em média, com o comprimento maior do que a altura de Aren, ealgumas muito maiores que isso.

A corredora da frente passou a mandíbula em torno do peixe enquanto as outras seempoleiravam, lutando e estalando até que o peixe desaparecesse pelo esôfago, o pescoço dacobra esticado para conter seu prêmio.

— Bom Deus. — Lara pressionou a mão contra a boca.— Se uma delas enfia os dentes em você, você se vê paralisada em poucos minutos. Então é

uma questão de tempo até que uma das grandes apareça para terminar o trabalho. — Uma das grandes... — A ilha tornou-se impossivelmente mais aterrorizante quando Lara

procurou por sinais das referidas cobras. Ela avistou um caminho de pedra que levava à base dopíer. Estava cheio, mas comparado a todos os outros cais, parecia quase acolhedor. — Por favor,não me diga que você usa isso como uma rota para a ponte?

Aren balançou a cabeça. — Distração. Faz bem o seu trabalho, é tão convidativa.— Muito convidativa — acrescentou Jor. — Quantos de nós alimentaram aquelas serpentes

malditas?Lara olhou de soslaio para Aren.— É um jogo que nossos jovens jogam, embora seja proibido. Duas pessoas atraem as cobras

para longe do caminho, e o corredor deve chegar ao píer, subir e descer na ponte e depois cair denovo na água. Um teste de bravura.

— Mais como uma prova de idiotice — Jor retrucou.— Certamente uma boa maneira de se matar. — Lara mordeu o interior de suas bochechas,

debatendo a utilidade desse lugar em particular. Seria fácil ancorar navios e transportar homens,se algo pudesse ser feito sobre as cobras.

Lara estava tão envolvida em seus pensamentos que nem percebeu que Aren havia tirado acalça até que pulou pela beira do barco, parado na água até a cintura. — Segure isso para mim.— Ele entregou a ela seu arco. — Não deixe molhar.

— O que você pensa que está fazendo?

Ele estalou os nós dos dedos. — Faz muito tempo, mas tenho certeza de que ainda possofazer isso.

— Volte para o barco, Aren — disse Jor. — Você não é mais um garoto de catorze anos.— Não, eu não sou. O que deve ser apenas para minha vantagem. Lia e Taryn, vocês são a

isca. Façam um bom trabalho, a menos que queiram passar seus dias assistindo a bunda deAhnna.

— Vocês não irão fazer isso — ordenou Jor às duas mulheres. — Fiquem aqui.Aren girou na água, descansando as mãos no barco. — Preciso lembrá-lo quem é o Rei aqui,

Jor?Lara sentiu seu queixo cair. Nunca em Ithicana ela o viu usar sua autoridade. Dar ordens,

sim, mas isso foi diferente.Os dois homens se entreolharam, mas Jor levantou a mão livre em derrota. — Façam como

Sua Majestade ordena.Com rostos sombrios, as duas mulheres pegaram um par de peixes cada uma e depois

pularam na água. Elas já fizeram isso antes, pensou Lara. Elas já fizeram isso antes por ele.O coração de Lara estava batendo em batidas rápidas. — Entre no barco. Seu braço não está

curado.— Está curado o suficiente.— Isso é loucura, Aren! O que você está tentando provar?Aren não respondeu, andando até ficar a poucos metros da linha de água, depois ficou

totalmente parado enquanto as duas soldadas espirravam água ruidosamente em direções opostas,chamando a atenção das cobras. O chão sob o parapeito era uma massa contorcida de corpos, ascriaturas se afastando do caminho, observando as mulheres.

Isso é por causa do que você disse, uma voz em sua cabeça sussurrou. Você disse para ele sedeitar e morrer.

— Aren, volte para o barco. — Sua voz era irreconhecivelmente estridente. — Você nãoprecisa fazer isso.

Ele a ignorou.Diga a ele que você se importa. Diga a ele que a vida dele é importante para você. Diga o que

você precisa dizer para levá-lo de volta ao barco.Exceto que não podia. Não podia contar uma mentira assim para esfaqueá-lo pelas costas.Mas isso é mentira?— Aren, eu... — A garganta de Lara estrangulou o resto das palavras.Jor acenou com a cabeça para os guardas no barco, e aqueles que carregavam arcos

silenciosamente lançaram flechas, mas de alguma forma, Aren sentiu o que estavam fazendo. —Se algum de vocês disparar uma dessas flechas, está fora da minha guarda.

Eles abaixaram os arcos. — Você não pode estar falando sério — Lara rosnou. — Aren,volte para o barco, você…

— Agora!A seu comando, as mulheres jogaram o peixe na praia. Mais uma vez, cobras dispararam de

baixo da borda, dezenas de cobras após dezenas de cobras. Mais do que Lara poderia contar. Equando as primeiras estavam prestes a ganhar o prêmio, Aren começou a correr, os pésafundando na areia profunda. Ele só chegou na metade do caminho na praia quando as cobras oviram, várias delas erguendo-se para observar o intruso antes de se lançar em sua direção.

Ele foi rápido.Mas as cobras eram mais rápidas.

— Elas estão vindo! — Lara gritou, observando horrorizada as criaturas perversas voarempela areia. Aren estava no caminho, correndo em direção ao píer imponente, suor brilhando emseus ombros nus. Ele tinha trinta metros pela frente.

Ele não ia conseguir.As cobras estavam se jogando no ar, suas mandíbulas estalando apenas passos atrás dele. E

estavam se aproximando.— Corra!Lara ficou de pé, sem perceber como o barco balançava embaixo dela. Ele não poderia

morrer. Assim não.Jor também estava de pé. — Corra, seu merdinha!Apenas uns dez metros. Por favor, ela rezou. Por favor, por favor.Ela e Jor viram antes de Aren. Uma enorme besta em forma de cobra que rodeava a base do

píer, atraída pela comoção de suas irmãs menores. A fera viu Aren no mesmo instante em que elea viu, a cobra se erguendo no instante em que o Rei derrapou, preso entre a morte dos dois lados.

Sem pensar, Lara levantou o arco de Aren e pegou uma flecha da mão do guarda maispróximo. Prendendo a flecha enquanto girava, ela a deixou voar. A longa pena preta disparou noar, mal passando pelo ombro de Aren, pegando a grande assassina de homens com sua bocaaberta.

Aren reagiu instantaneamente, saltando sobre a cobra caída e pulando para se segurar naslascas da rocha gasta, empurrando os calcanhares fora do alcance das cobras que se lançavam notempo. Ele subiu até metade em questão de segundos, depois virou a cabeça para olhar o barco,provavelmente para ver quem havia desobedecido suas ordens.

Lara deixou o arco escorregar dos dedos, mas não importava. Ele tinha visto. Todos elesviram. E agora ela teria que lidar com as consequências.

Ninguém falou enquanto ele subia, e o coração de Lara não diminuiu por um momento,sabendo muito bem que uma queda daquela altura o mataria. A ferida em seu braço se abriu e osangue escorria quando ele subia, mas se isso o incomodava, não demonstrava. Chegando aotopo da ponte, Aren desceu o vão até voltar às águas profundas e, sem hesitar, mergulhou emsuas profundezas.

Lara prendeu a respiração, procurando no mar qualquer sinal dele. Mas não havia nada.Seu ombro estava sangrando.E se houvesse tubarões por perto?Jor estava se movendo atrás dela, tirando as botas, o barco à deriva. — Lia, Taryn! Venham

pra cá.Então Aren quebrou a superfície, arrastando-se para dentro do barco em um movimento

suave. A água brilhava em sua pele bronzeada, os músculos flexionando enquanto recuperava oequilíbrio, seus soldados meio que caindo para abrir caminho enquanto ele caminhava emdireção a ela. — O que diabos foi aquilo?

Lara se manteve firme, sem se importar que ele pairasse sobre ela. — Eu salvando sua bundainfantil, foi isso que aconteceu.

— Eu não precisava ser salvo.A tosse subsequente de Jor parecia muito com Bosta nenhuma. Aren olhou para Jor uma vez,

antes de voltar para Lara. — Você nunca disse que sabia usar um arco. Teria sido útil mencionarnos últimos meses.

— Você nunca perguntou. — Levantando-se na ponta dos pés, ela olhou para ele até ele darum passo para trás, o barco balançando enquanto se aproximava da costa. — E se você me

assustar alguma vez assim de novo, não ache que eu hesitaria em usar um em você.— E aqui estava eu pensando que você não se importava.— Eu não! Você pode voltar para a praia e dormir com uma daquelas cobras por toda a

diferença que isso faz para mim.— Então é assim? — E rápido como as serpentes da ilha, ele a pegou e a jogou na água.Lara caiu de bunda no banco de areia, a água até a cintura, mas as roupas estavam ensopadas.

— Idiota! — Ela ficou de pé, as ondas batendo nos joelhos.— Diz a mulher que não é nada além de um espinho na minha... — Ele interrompeu com um

grito quando Jor se inclinou no barco e o chutou na bunda.Aren caiu de mãos e joelhos com um splash, quase derrubando Lara. Recuperando o

equilíbrio mais rápido do que ela, Aren gritou: — Droga, Jor. Para que diabos foi isso?Mas o barco já estava partindo. — Voltaremos — gritou Jor. — Depois que vocês

resolverem essa briga conjugal. — Então o navio contornou o píer e eles sumiram de vista.Soltando uma série de maldições escaldantes, Aren bateu a mão contra a superfície da água.

Lara mal percebeu. Em vez disso, observou as cobras descendo a areia, parando na linha da água.Várias delas recuaram, balançando para frente e para trás enquanto observavam os dois. E atrásdela... oceano aberto. Mesmo se ela pudesse nadar, Lara sabia muito bem o que se escondianessas águas.

Estava presa.O sol batia em sua cabeça, e sua sobrancelha se arrepiou quando gotas de suor se formaram,

misturando-se à água do mar que encharcava seus cabelos.Seu pânico crescente deve ter sido escrito em todo o seu rosto, porque Aren disse: — As

cobras não vão sair daqui. Elas sabem nadar, mas não gostam. Jor vai voltar. Ele está apenassendo um idiota. Não há nada a temer.

— Fácil para você dizer. — Os dentes de Lara bateram juntos como se estivesse com frio,mas não estava. — Você pode nadar para longe, se quiser.

— É tentador.— Não estou surpresa. Dado o pouco que você valoriza a vida maridriana. — As palavras

haviam surgido, mas talvez fosse a hora delas. Talvez estivesse na hora de chamá-lo pela vilaniade Ithicana.

Aren olhou para ela, mandíbula aberta. — Talvez você possa me explicar exatamente o queeu fiz para obter um comentário como esse de você? Não fiz nada além de tratá-la com cortesia,e o mesmo vale para seus compatriotas.

— Nada? — Lara sabia que estava permitindo que seu temperamento a vencesse, mas a raivatinha um gosto melhor que o medo. — Você acha que deixar meu povo passar fome porque ébom para seus cofres não é nada?

Silêncio.— Você acha que Ithicana é responsável pelos problemas de Maridrina? — Sua voz era

incrédula. — Somos aliados, inferno!— Ah sim. Aliados. É por isso que todo mundo sabe que a maioria dos alimentos vendidos

no Southwatch vai para Valcotta.— Porque eles compram! — Ele levantou as mãos. — Southwatch é um mercado livre.

Quem oferece mais pelos produtos os recebe. Sem preconceito. Sem favoritismo. É assim quefunciona. Ithicana é neutra.

— Com que facilidade você lava as mãos de toda culpa. — Ela ficou furiosa por ele terpassado o dia tentando despertar sua simpatia pelo povo dele, depois fechou os olhos. — E como

você pode Reivindicar uma aliança em um suspiro e neutralidade no próximo?Aren xingou, balançando a cabeça. — Eu não posso. Eu não posso mais. — Ele pressionou

um polegar em sua têmpora. — Por que você acha que Amarid está fungando nosso pescoço? Éporque estão zangados com as concessões que demos a Maridrina e que daremos a Harendell seAhnna decidir se casar com seu príncipe.

— E que impacto suas chamadas concessões causaram? Maridrina está morrendo de fome,presa entre Ithicana e o Deserto Vermelho, e ainda estou para ver você mostrar o mínimo deempatia.

— Você não tem ideia do que está falando.— Não? Eu ouvi você no dia em que fui trazida aqui. Ouvi dizer que as concessões que você

deu ao meu pai não eram o que queria e que Maridrina passaria fome antes mesmo de ver obenefício desse tratado!

Ele olhou para ela, o rosto tenso com fúria. — Você está certa. Eu disse isso. Mas se você e oresto do seu povo querem culpar a fome de Maridrina, é melhor procurar o seu pai.

Lara abriu a boca para responder, mas nada saiu.— Você leu o tratado? — ele perguntou.— Claro que li. Se Maridrina mantivesse a paz com Ithicana por quinze anos, você se casaria

com uma princesa do Reino e ofereceria concessões significativas a tarifas e pedágios na ponteenquanto durar a paz entre nossos Reinos.

— Isso é o resumo de tudo. E quando chegou a hora de negociar essas concessões, meofereci para eliminar todos os custos associados a um bem importado singular, acreditando quepoderia forçar seu pai a escolher uma opção que cultivasse a paz. Gado. Trigo. Milho. Mas vocêsabe o que ele exigiu? Aço harendelliano.

O peito dela se apertou. — Você está mentindo. Tudo o que meu pai fez é para o bem donosso povo.

Aren riu, mas não havia humor nisso. — Tudo o que seu pai faz é para o bem de seus cofres.E por seu orgulho. — Ele balançou sua cabeça. — Nossos impostos sobre aço e armas sempreforam proibitivamente exorbitantes porque o tráfico de armas tem ramificações políticas quepreferimos evitar. Não importando se essas armas forem usadas, em algum momento, contra nós.

Ela não conseguia respirar.— Maridrina não possui minas de minério, o que significa que o aço para suas armas deve

ser adquirido em outro lugar. E porque seu pai não desistirá de sua guerra sem fim com Valcotta,ele foi forçado a importar suas armas por navio a um grande custo. Até agora.

O sol estava muito brilhante, tudo um borrão.— Vou continuar, pois parece que sua educação no deserto teve algumas lacunas. — Os

olhos castanhos de Aren brilharam com raiva. Eles eram a única coisa em que ela conseguia seconcentrar. — Guerra custa dinheiro, acredite, eu sei. Mas seu pai não tem a ponte, então pagapor ela com pesados impostos que prejudicam a economia de Maridrina. Portanto, mesmoquando seus comerciantes atracam no mercado aberto da Southwatch, eles não conseguem fazerlances bons o suficiente. E assim eles zarpam com o que ninguém mais vai comprar.

Carne infectada. Grão podre. Lara fechou os olhos. Se ele estava dizendo a verdade,significava que tudo o que estava alimentando seu desejo de capturar a ponte era falso. E tudo oque restava para justificar a queda de Ithicana era exatamente o que ela criticou contra toda a suavida: ganância.

— Não fui eu quem mentiu para você. Não que eu espere que você acredite em mim.Jor e os outros escolheram aquele momento para dar a volta, e a expressão no rosto de Aren

foi suficiente para afastar a diversão do homem mais velho. O barco se aproximou e Arenagarrou a borda, puxando-se para dentro. Depois que Lara fez o mesmo, Aren ordenou: — Subaa outra vela.

Jor estremeceu. — Está ansioso para chegar em casa?— Nós não estamos indo para casa.— Ah? Para onde?Aren olhou de relance para o céu escuro do leste, depois voltou-se. Mas não foi para Jor que

seus olhos foram.O estômago de Lara revirou quando Aren a encarou. Desafiou-a — Vamos fazer uma visita a

Maridrina.

2 6

LARA

QUE ELE ESTAVA DISPOSTO A ARRISCAR ENTRAR NO TERRITÓRIO INIMIGO, DISPOSTO LEVÁ-LA - QUE

conhecia tantos segredos de Ithicana - para aquele território, deveria ter convencido Lara de queas palavras de Aren eram verdadeiras. Que seu pai, Serin, e todos os seus mestres no complexoeram mentirosos.

Mas isso não aconteceu.Histórias da vilania de Ithicana haviam sido queimadas na alma de Lara. Sussurradas em seus

ouvidos a vida toda. Cantadas como um mantra através de horas, dias, anos de treinamentoexaustivo que quase a quebraram. Isso havia quebrado muitas de suas meias-irmãs, enviando-as,de um jeito ou de outro, para a morte.

Tome a ponte e você será a salvadora de Maridrina.Acreditar em Aren significaria mudar esse cântico para algo muito diferente. Pegue a ponte e

você será a destruidora de uma nação. Pegue a ponte e você provará ser o peão de seu pai. Poresse motivo, ela, como uma covarde, imediatamente argumentou contra a partida.

— Estamos no meio da temporada de tempestades. — Lara apontou para a escuridão noleste. — Que tipo de louco vai para o mar para provar um argumento?

— Esse tipo de louco. — Aren puxou a linha que Lia passou para ele com força. — Alémdisso, o céu está claro na direção que estamos seguindo. E se a tempestade nos pegar, há boatosde que somos marinheiros muito hábeis.

— Estamos em uma canoa! — Lara odiava o tom estridente em sua voz. — Não vejo comosua habilidade entra em jogo no meio de um tufão!

Aren riu, sentando-se em um dos bancos. — Dificilmente vamos navegar para a capital deMaridrina em uma embarcação Ithicana.

— Como então? — exigiu saber. — Pela Ponte?Jor bufou e deu a Aren um olhar significativo. — Melhor ignorar Southwatch, não é,

Majestade?Aren o ignorou, levantando os calcanhares e recostando-se contra uma mochila. — Você

verá em breve.Logo ela estava agarrada à beira da embarcação, que pulava através das ondas, tão alto que

ela tinha certeza de que uma forte rajada de vento iria virá-los, afogando-os em mar aberto.Lara lembrou-se de prestar atenção para onde estavam indo. É assim que eles se infiltram em

sua terra natal, como espionam. No entanto, à medida que a ponte e a névoa desapareciam àdistância e mais ilhas se erguiam à frente, tudo o que ela queria aprender era as profundezas deSerin e a decepção de seu pai.

Os Ithicanos largaram uma das velas, o barco saindo de sua aterrorizante angulação para seinstalar no mar, e Lara analisou onde Aren a havia levado. Colunas de rocha incrustadas de verdesaíam dos mares azuis tão claros que o fundo parecia apenas a um braço de distância. Ospássaros enchiam o ar em enormes bandos, alguns mergulhando na água apenas para emergircom um peixe preso no bico, que engoliram antes que um de seus companheiros pudesse roubá-lo. Algumas das ilhas maiores tinham praias brancas que chamavam convidativamente, e, emlugar algum, qualquer lugar, havia sinal das defesas que tornavam as águas ao redor da ponte deIthicana vermelhas de sangue inimigo.

Lara se ajoelhou para olhar para cima enquanto passavam entre duas torres de calcário. —Pessoas moram aqui?

Como se para responder à pergunta dela, quando eles contornaram outra ilha, vários barcosde pesca apareceram, homens e mulheres a bordo parando o que estavam fazendo para levantaras mãos em saudação, muitos deles chamando Aren pelo nome.

— Alguns moram aqui — ele respondeu lentamente, como se a admissão lhe custassealguma coisa. — Mas é perigoso. Se eles forem atacados, não podemos ajudá-los até que sejatarde demais para fazer alguma diferença.

— Eles são atacados com frequência?— Não desde que o tratado foi assinado, é por isso que mais pessoas instalaram suas famílias

aqui.— Eles partem durante as Marés de Guerra?Sua mandíbula contraiu. — Não.Lara se afastou dos barcos de pesca para olhá-lo, uma sensação doentia enchendo suas

entranhas. Quais eram as chances de Serin e seu pai não saberem que essas pessoas estavamaqui? E quais eram as chances de Aren não fazer tudo ao seu alcance para ajudá-los se fossematacados?

Mesmo que isso significasse enfraquecer as defesas da ponte.Eles serpenteavam pelas ilhas em silêncio antes de navegar sob um arco de pedra natural até

uma enseada escondida que ofuscava a de Midwatch, onde, para surpresa de Lara, vários grandesnavios estavam ancorados.

— São, em grande parte, embarcações navais que capturamos. Ajustamos várias para passarcomo navios mercantes. Essa é a minha. — Aren apontou para uma embarcação de tamanhomédio pintada de azul e dourado.

— Elas não são todas suas? — Lara respondeu amargamente, aceitando o braço de Jor parase equilibrar antes de agarrar a escada de corda pendurada na lateral do navio.

— Todos elas pertencem ao Rei Aren de Ithicana. Mas essa está sob o comando do capitãoJohn, comerciante de Harendell. Agora vamos lá. Essa tempestade nos perseguirá em Vencia sedemorarmos muito mais.

O porão, como se via, estava cheio do produto que Ithicana tentava ocultar de Maridrina: aço.— Não é possível manter várias cabeças de gado no barco. — disse Aren. — Além disso, o aço éa única mercadoria que vale o risco de atravessar a estação das tempestades. Ou pelo menos era.

Quando se retiraram para o convés e entraram nos aposentos do capitão, Lara quebrou umpedacinho da raiz que Nana lhe deu e depois a mastigou vigorosamente, na esperança de queacabasse com a náusea infligida por mais do que apenas enjoo do mar.

Abrindo um baú, Aren remexeu e tirou um conjunto de roupas e um chapéu pescador, que elejogou em sua direção. — Disfarces. Se você fingir ser menino, terá mais liberdade quandochegarmos à cidade.

Carrancuda, Lara pegou as roupas e esperou que ele virasse as costas antes de tirar suasroupas Ithicanas. Depois de pensar um pouco, ela enrolou um cachecol com força no peito,amarrando os seios o melhor que pôde, depois vestiu a camisa folgada e as volumosas calçasaparentemente presenteadas pelos marinheiros de Harendell. Ela torceu sua longa trança em umcoque no topo da cabeça, prendendo-o com força, depois puxou a chapéu para assegurar e sevirou.

Aren já estava vestido com seu traje de Harendell, um chapéu pescador semelhante nacabeça. Ele franziu a testa. — Você ainda parece uma mulher.

— Chocante. — Ela cruzou os braços.— Hmm. — Ele girou em círculo, depois caminhou para um canto e esfregou a mão no chão.

— Este navio não foi a lugar nenhum há mais de um ano e eu não acho que alguém estejalimpando. — Recuando ao redor do porão, ele a alcançou.

Lara recuou em alarme. — O que você está fazendo?— Terminando seu disfarce. — Segurando a parte de trás da cabeça dela, ele esfregou uma

mão que cheirava a sujeira e merda de rato em seu rosto, ignorando seus protestos. Recuando,Aren a olhou de cima a baixo. — Relaxe um pouco. E mantenha essa careta no seu rosto.Combina com a de um garoto de treze anos forçado a servir seu primo mais velho, ainda quecharmoso.

Lara levantou a mão em um gesto que era universalmente ofensivo.Aren riu, depois gritou pela porta. — Todas as mãos no convés. Partimos para Maridrina.Com eficiência treinada, os soldados que se tornaram marinheiros de Harendell estavam

preparando o navio, Jor conversando com uma dúzia de Ithicanos que ela não reconheceu, masque deviam estar na ilha.

— Qual é a história, capitão? — Jor chamou quando Aren e Lara entraram no convés.— Vimos uma pausa nas tempestades e arriscamos a travessia para obter um lucro rápido.

Última chance de ganhar um belo centavo, enquanto os preços do aço estão altos. Todos concordaram, e Lara percebeu que eles haviam feito isso antes. Que o homem mais

procurado de Ithicana dançou sob o nariz do pai sem ninguém, nem mesmo Serin, muito maissábio, perceber. Aren segurou o volante no leme, gritando ordens. A âncora foi levantada, asvelas caíram no lugar e o navio saiu da enseada.

— Você vai a Maridrina frequentemente?Aren balançou a cabeça. — Não mais. Antes da minha coroação, passei muito tempo em

outros Reinos, desenvolvendo minha educação em economia comercial.— É isso que você estava fazendo? — Jor disse enquanto passava. — E aqui eu pensei que

todos esses empreendimentos fora de Ithicana fossem dar a você uma oportunidade de jogar,perseguir saias e gastar dinheiro com bebidas baratas.

— Isso também. — Aren teve a decência de parecer envergonhado. — Independentementedisso, tudo terminou quando eu fui coroado, mas para Lara, vou abrir uma exceção.

Ela apoiou os cotovelos no parapeito. — Quanto tempo vai demorar para chegarmos lá?— Antes desta tempestade — ele sorriu — ou nunca.— Isso é desnecessário. — Ela estava mais preocupada com o que encontraria quando

chegassem do que se a levaria até lá viva.— Essa é minha decisão a fazer. Agora, por que você não encontra algo útil para fazer?Porque sabia que Aren não esperava que ela ouvisse, Lara fez exatamente isso. Armada com

um balde, um esfregão e uma escova suja, ela esfregou o convés antes de se mudar para osaposentos do capitão, onde furtou um pouco de ouro que encontrou na gaveta de uma mesa,

parando na limpeza apenas para jogar a água enegrecida e puxar uma nova. Pelo canto do olho,ela viu Aren abrir a boca cada vez que passava antes de fechá-la e encarar o mar à frente deles.

Sendo satisfatória por si só, porém mais do que isso, a limpeza lhe deu tempo ininterruptopara pensar. Na opinião de Lara, tinha três opções quando chegassem ao porto. A primeira seriaela fugir. Não havia dúvida de que poderia escapar de Aren e da guarda dele e, com as jóias quetinha no bolso, juntamente com o ouro que já havia roubado dos aposentos do capitão, seriacapaz de criar uma vida para a si mesma onde quisesse. Ela teria liberdade e, assumindo queAren acabaria escrevendo para o pai nas páginas marcadas, teria cumprido seu dever para com opovo.

A segunda foi que ela caminharia até o palácio de seu pai e usaria os códigos que Serin havialhe dado para obter admissão. Que contaria tudo o que sabia em troca de sua liberdade, comohavia sido prometido. Embora fosse um risco muito grande para ela, o pai cortaria a gargantadela um pouco depois que lhe desse o que ele precisava. E a terceira...

A terceira era que tudo o que Aren havia dito a ela era verdade. Que seu pai teve aoportunidade de melhorar a vida do povo maridriniano, mas optou por não fazer isso. Que seupai, não Ithicana, era o opressor de sua terra natal. No entanto, a mente de Lara hesitou, nãoquerendo aceitar essa explicação. Certamente não estando disposta a aceitá-la sem provas.

Segurando um balde de água suja em uma mão e a grade com a outra, ela se virou paraassistir Aren navegar no navio, com o coração palpitando, apesar do chapéu ridículo que eleusava.

E se a vida dela tivesse sido dedicada a uma mentira?Lara foi salva de pensar mais quando uma onda caiu sobre o convés, tornando seus esforços

desnecessários. Os mares estavam agitados e, erguendo o rosto para o céu, viu o relâmpagoestalar entre as nuvens, o vento puxando seu chapéu tolo. Aren estava contornando a borda datempestade, que estava quase sobre eles. Apertando os olhos, Lara viu a sombra do continente àfrente deles. Quais eram as chances de conseguirem?

Deixando cair o esfregão e o balde, ela cambaleou pelo convés que balançava e subiu osdegraus até onde Aren estava ao leme. — Você precisa virar para o oeste e seguir em frente destetufão, seu pirado — ela gritou com o vento, gesticulando para as nuvens negras.

— É apenas uma pequena tempestade — disse ele. — Eu vencerei. Mas você deve esperar.Agarrando-se à balaustrada com uma mão e seu chapéu com a outra, Lara observou como

Vencia e seu porto protegido cresciam no horizonte, quase invisíveis quando a chuva começou acair. Ao contrário do dia em que ela partira, o céu sobre a cidade de seu nascimento era preto eameaçador, às construções brancas caiadas erguendo-se do porto em um cinza opaco. Por cimade tudo, estava o Palácio Imperial, as paredes de um azul brilhante impecável, as cúpulas debronze. Era onde seu pai mantinha seu harém de esposas, uma das quais era sua mãe, se ela aindaestava viva.

Vagamente, ela ouviu Aren ordenar que sua tripulação largasse algumas velas, o navio quasedesacelerando enquanto corria em direção ao quebra-mar que protegia o porto. Um raio brilhoue, um batimento cardíaco depois, um trovão sacudiu o navio. Ondas após ondas inundaram oconvés, os Ithicanos segurando cordas firmemente para não serem levados ao mar.

Apenas Aren parecia imperturbável.Lutando contra a crescente náusea, Lara enfiou os dedos no parapeito. As ondas quebravam

contra o alto quebra-mar como um aríete incessante, espuma e gotículas voando a quinze metrosno ar. Cada vez que parecia uma explosão, o suor escorria por suas costas enquanto imaginava oque aconteceria com o navio se as ondas quebrassem a estrutura.

Com um grunhido de esforço, Aren girou o volante, seu olhar fixo no espaço aparentementeminúsculo pela qual eles passariam.

Uma onda subiu quase à altura do quebra-mar. — Isto é loucura. — Lara mal conseguiumanter o equilíbrio quando o navio girou e se endireitou, deslizando através da abertura comprecisão infalível. Uma grande lufada de ar expeliu de seus pulmões, a madeira do parapeitocavando na testa de Lara enquanto descansava contra ela, a chuva espirrando em sua testa.

— Eu disse que conseguiríamos — disse Aren, mas ela não respondeu, apenas observou oporto lotado, as águas suaves em relação às do mar aberto que haviam deixado para trás.

Durante a temporada de tempestades, ela sabia que a maioria dos navios mercantespermaneciam próximos à costa, capazes de correr para um porto se o céu escuro ameaçasse, demodo que as cabeças se viraram ao ver um navio harendelliano entrando. O conteúdo provávelde seu porão atraiu o capitão do porto o suficiente para colocá-los nas docas à frente da fila, parao óbvio desgosto daqueles capitães e tripulações.

— Faz muito tempo, seu corajoso bastardo — o homem gritou quando o navio bateu contra adoca, Jor e vários outros saltando sobre o corrimão para proteger o navio.

Aren esperou até que eles abaixassem a prancha antes de fazer sinal para Lara segui-lo, achuva ficando mais pesada a cada minuto. — Você diz corajoso, mas minha avó usa outrapalavra para me descrever.

O mestre do porto riu. — Ganancioso?Aren bateu a mão no peito e cambaleou para o lado. — Você me magoou!Eles riram como se fossem velhos amigos. Aren extraiu um punhado de moedas e as

entregou ao dono do porto, depois outra de ouro, que o homem enfiou no bolso enquanto seuassistente registrava os detalhes em um pedaço de papel.

— Você está bem levando em conta a hora que você chegou — disse o chefe do porto. — Ospreços do aço não se manterão por muito tempo com Ithicana enviando o metal amaldiçoado semimpostos ou pedágio. Está se acumulando em Southwatch. Não que os valcottanos estejam dandoao Rei Silas muitas chances de recuperar seu dinheiro. — Ele cuspiu na água.

Aren fez um barulho de simpatia. — Tenho ouvido.— A nova Rainha de Ithicana não nos fez nenhum favor. Todo o ouro que Silas retirou dos

nossos bolsos foi gasto em aço e, no entanto, não vimos nada em troca.— Mulheres bonitas têm uma maneira de custar dinheiro aos homens — respondeu Aren.Lara se irritou, e os olhos do mestre do porto deixaram Aren para pousar nela. — Não gosto

muito do jeito que você está olhando para mim, rapaz.Aren bateu no ombro de Lara com força suficiente para fazê-la cambalear. — Não ligue para

o meu primo. Ele está azedo porque passou a travessia inteira varrendo o convés em vez de ficardescansando, como costuma fazer.

— A família é a pior tripulação.— Não é só isso. Fiquei meio tentado a jogá-lo ao mar meia dúzia de vezes, mas fazer isso

significaria que nunca mais poderia voltar para casa.— Mais do que algumas senhoras em Vencia ficariam felizes em te animar, eu acho.— Não me tente.Um quarto plano, que envolvia enfiar uma faca nas entranhas de Aren, começou a se

desenvolver quando Lara seguiu os dois homens para fora das docas.A voz do mestre do porto chamou sua atenção de volta para a conversa. — Ouvi dizer que

Amarid passou a estação tranquila mostrando ao Reino da Ponte exatamente o que pensavam deIthicana roubando o negócio de fornecimento de armas harendellianas a Maridrina.

— Ithicana não está fornecendo armas.Lara detectou o raiva na voz de Aren, mas o chefe do porto não pareceu notar.— Mesmo assim. Enviá-las gratuitamente. Colocá-las em nossas mãos. Ou seria, se a

Valcotta não estivesse arriscando sua frota para nos impedir de chegar ao porto. — A amarguraem sua voz era palpável. — O Rei Silas deveria ter negociado por gado.

— Vacas não vencem guerras — respondeu Aren.— Nem soldados famintos. Ou aqueles mortos de peste. — O mestre do porto cuspiu no

chão. — O único bem que o casamento de nossa princesa fez para Maridrina foi encher os bolsosdos mendigos que o Rei pagou para sentar na rua e cantar pelo nome dela quando ela passou.

Aren e o homem se voltaram para os detalhes da descarga do navio. Não era nada além deum zumbido nos ouvidos de Lara quando o que ouviu afundou profundamente em sua alma. Oque Serin havia dito a ela em sua carta sobre a fome e a praga ainda era verdade... No entanto, seo que esse homem disse tinha alguma veracidade, ela estava muito enganada sobre quem era oculpado. O suor rolou em pequenas gotas pelas suas costas, fazendo a pele coçar.

Não poderia ser verdade. Aren havia contratado esse homem para dizer essas coisas. Era tudomentira destinada a enganá-la. Uma faixa de tensão envolvia o peito de Lara, cada respiraçãouma luta enquanto tentava conciliar uma vida inteira de aprendizado com o que estava vendo. Oque ela estava ouvindo.

Com o que ela fez.— Mande sua tripulação descarregá-lo logo de manhã. Essa tempestade vai tornar quase

impossível fazer isso agora.Lara piscou, concentrando-se em Aren enquanto apertava a mão do mestre do porto,

esperando até que o homem estivesse fora do alcance da voz antes de dizer: — Prova o suficientepara você?

Lara não respondeu, pressionando a mão na têmpora dolorida, odiando como tremia.— Estamos voltando para o navio agora? — A língua dela estava grossa na boca, a própria

voz distante.— Não.Havia algo em seu tom que a tirou de sua fuga. A água escorria pelos ângulos duros do rosto

de Aren, pequenas gotas se acumulando em seus cílios escuros. Seus olhos castanhos procuraramos dela por um momento, depois ele examinou o cais. — Precisamos esperar a tempestade emVencia. Melhor fazer isso com um pouco de conforto.

Seu pulso bateu em seu crânio como um tambor enquanto ela caminhava pelo mercado,seguindo os calcanhares de Aren, os Ithicanos casualmente andando ao seu redor. Corra. Apalavra repetia em sua cabeça, os pés se contorcendo nas botas, desesperados para afastá-la dessasituação. Ela não queria ouvir mais nada. Ela não queria encarar o fato de que talvez não fosseuma libertadora. Talvez não fosse uma salvadora. Nem mesmo uma mártir.

Queria fugir desses fragmentos da verdade dizendo que ela era algo completamente diferente.Aren subiu as ruas estreitas, edifícios de dois andares amontoados dos dois lados, janelas

fechadas contra a tempestade. Ele parou na frente de uma porta com uma placa que dizia TheSongbird em cima. Música, tilintar de copos e o murmúrio coletivo de vozes vazavam pela rua.Ele hesitou com uma mão na maçaneta, depois abriu a porta com um suspiro.

O cheiro de fumaça de madeira, comida cozinhada e cerveja derramada tomou conta de Lara,e entrou na sala comunal cheia de mesas baixas, a maioria delas Reivindicadas pelos clientes daclasse dos comerciantes. Jor e Aren estavam sentados em uma mesa no canto, os outros guardasespalhados pelo bar. Lutando para controlar as emoções turbulentas que atravessavam seu

coração, Lara sentou-se à direita de Aren, curvando-se na cadeira e esperando que a chuva nãotivesse lavado a sujeira que completava seu disfarce. Uma voz feminina chamou sua atenção.

— Bem, agora, veja quem resolveu aparecer.Uma jovem, talvez com vinte e poucos anos, se aproximou da mesa. Ela tinha cabelos

longos, um tom de loiro mais claro e dourado que o de Lara, e boa parte de seu decote generosofoi revelado pelo corpete decotado de seu vestido.

Aren pegou um dos pequenos copos de líquido âmbar que uma garçonete trouxe para a mesa.— Como você está, Marisol?

— Como eu estou? — A mulher - Marisol - colocou as mãos nos quadris. — Já faz mais deum ano que você mostrou seu rosto triste em Vencia, John, e você pergunta como eu estou?

— Faz tanto tempo?— Você sabe muito bem que faz.Aren levantou as mãos em um pedido de desculpas, dando à mulher um sorriso encantador

que Lara nunca tinha visto antes em seu rosto. Flertando. Familiar. A natureza do relacionamentodeles bateu em Lara, sua pele ficando quente.

— Circunstâncias além do meu controle. Mas é bom te ver.A mulher esticou o lábio inferior e deu-lhe um longo olhar. Então ela se sentou no joelho

dele e passou um braço em volta do pescoço dele. Os dedos de Lara tremeram em direção àsfacas escondidas em suas botas, a fúria borbulhando em suas veias. O que ele estava pensando,desfilando sua amante na frente dela? Isso era algum tipo de punição? Estava tentando provar umponto?

A mulher então cumprimentou Jor e acenou para uma das garçonetes para trazer outrarodada.

Jor esvaziou o copo, arrancando o próximo da garçonete antes mesmo que ela tivesse achance de colocá-lo no lugar. — É bom ver você, Marisol.

O olhar da mulher pousou em Lara. — Quem é o mal-humorado?— Meu primo. Ele está aprendendo o ofício.Marisol inclinou a cabeça bonita, olhando para Lara como se estivesse tentando reconhecer o

rosto. — Olhos assim, sua mãe deve ter se divertido com o próprio Rei Silas.Aren engasgou com a bebida. — Agora, isso não seria demais?— Você pode se divertir mais se sorrisse um pouco mais, garoto. Você pode aprender mais

com seu primo do que como navegar em um navio.Lara deu um sorriso cheio de dentes, mas a mulher apenas riu, voltando sua atenção para

Aren. — Por quanto tempo você estará aqui?— Só até amanhã, supondo que a tempestade pare.Sua mandíbula se contraiu em óbvia decepção. — Tão cedo.— Minha presença é necessária em casa.— Isso é o que você sempre diz. — Marisol exalou suavemente e depois balançou a cabeça.

— Você vai precisar de quartos para sua tripulação durante a noite, então? E seu primo?O estômago de Lara revirou. Mas não para ele. Certamente ele não pretendia...— Para eles. E um para mim também.Uma das sobrancelhas de Marisol se levantou, e Lara lutou contra o desejo de socá-la em seu

nariz bonito.Jor pigarreou. — Ele se casou, Marisol.A mulher levantou-se tão abruptamente que bateu na mesa, derramando líquido dos copos.Abaixando sua bebida, Aren lançou um olhar sombrio a Jor, mas o homem mais velho

apenas deu de ombros. — Não faz sentido continuar a conversa. Agora ela foi informada, paraque possamos continuar com os negócios.

Os olhos de Marisol brilharam e ela piscou rapidamente. — Parabéns. Tenho certeza que elaé encantadora.

— Ela tem um temperamento como um incêndio e uma língua afiada para combinar.O olhar de Marisol mudou para Lara, muitos entendimentos brilhando em seus olhos. Em vez

de encará-la como ela queria, Lara fixou sua atenção em uma rachadura na mesa. — Tenhocerteza que ela é muito bonita. — disse a outra mulher.

Aren ficou quieto por um momento. — Tão bonita quanto o céu limpo sobre os Mares deTempestade. E igualmente evasiva.

O estômago de Lara revirou quando suas palavras foram registradas, um elogio envolto emuma verdade sombria que ela não podia negar.

— Bem, isso explica por que você está apaixonado por ela, então — disse Marisolsuavemente. — Você sempre se encantou com os desafios.

Lara pegou um dos copos pequenos e bebeu o conteúdo, seus ouvidos zumbindo enquantoolhava para qualquer lugar, menos para Aren.

Jor tossiu alto, depois balançou os braços no ar. — Precisamos de uma rodada de bebidas poraqui.

— Talvez mais de uma. — Marisol estava sentada à mesa, dando um leve aceno de cabeçaaos músicos. Eles deixaram de lado os instrumentos de corda, recuperando tambores e pandeiros,enchendo a sala de ritmo. Moças vestidas com vestidos de cores vivas dançavam através dasmesas, as pulseiras de sinos ao redor dos pulsos e tornozelos tilintando enquanto suas vozesacompanhavam a música. Momentos depois, os clientes começaram a bater palmas, o barulhotornando difícil para Lara se ouvir seus pensamentos.

Marisol bateu palmas. — Não há evidências de que o Rei esteja montando sua frota em umesforço para combater o bloqueio valcottano. Nem qualquer sinal de que ele pretenda. Tenhoinformantes na costa, e nenhum estaleiro possui um comando da coroa.

Lara piscou. Essa mulher era uma espiã?— Os preços das importações dispararam às alturas. A comida é limitada ao que Maridrina

pode produzir por si mesma, o que é pouco, dado que todos os nossos agricultores se voltarampara os soldados, e a fome está aumentando nas cidades. Só deve piorar.

Aren aplaudiu no tempo da música. — Amarid não está aproveitando a trégua? Eu tinhapensado que eles clamariam pela oportunidade.

Marisol sacudiu a cabeça. — Os marinheiros da Amarid estão se lamuriando em todos osportos que a aliança entre Ithicana e Maridrina destruiu sua renda. — Os olhos dela se voltarampara Aren. — E agora que a aliança não está funcionando como planejado, eles parecem felizespor Maridrina pagar o preço.

— Rancor deles.Marisol tomou um gole de sua bebida e depois assentiu. — O apoio do povo maridriniano ao

conflito com Valcotta vinha diminuindo há anos, porque ninguém acreditava que havia algo aganhar com isso. Mas desde o casamento e a retaliação subsequente de Valcotta, o apoio pelaguerra total com Valcotta cresceu dez vezes. Homens e meninos estão se lançando contra osrecrutadores do exército, imaginando-se os salvadores do seu povo e... — Marisol parou,lançando um rápido olhar para Lara.

— E? — Aren perguntou.— E há um número crescente de vozes sugerindo que a aliança do Tratado de Quinze Anos

deve ser quebrada. Enquanto Maridrina morre de fome, Ithicana continua a lucrar com ocomércio com Valcotta. Que se o Reino da Ponte fosse um verdadeiro aliado, eles negariamporto aos nossos inimigos em Southwatch.

Erguendo um ombro, Marisol o deixou cair. — As concessões que Ithicana concedeu aMaridrina não beneficiam nem um pouco nosso povo. Mas, em vez de culpar o Rei Silas, elesculpam Ithicana pelas dificuldades. As pessoas estão ansiosas por uma briga.

Maridrina passará fome antes mesmo de ver o benefício deste tratado. As palavras de Arenecoaram no crânio de Lara. Como ele estava certo.

A música terminou, os dançarinos voltaram para os outros lugares, e os músicos escolheramuma música mais suave para a sua próxima peça. Marisol levantou-se. — Eu preciso voltar aotrabalho. Vou mandar comida e quartos arrumados para você e sua tripulação.

O pai dela, Serin... todos os seus mestres. Eles mentiram para Lara e suas irmãs. Isso por sisó não era uma grande revelação - ela percebera que a vilania de Ithicana havia sido exagerada eexplanada a fim de transformar as meninas em fundamentalistas com um objetivo claro: adestruição do opressor de Maridrina. Mas até esse exato momento, ela acreditava que, embora osmétodos de seu pai tivessem sido vis, sua motivação era pura. Para salvar o povo de Maridrina.Alimentá-los e protegê-los.

Exceto que Ithicana não era o opressor. O pai dela eraLara e suas irmãs não haviam sido isoladas no complexo do deserto por sua segurança. Elas

nem haviam sido mantidas lá para esconder de Ithicana os planos de seu pai, na verdade não.Tinha sido para manter Lara e suas irmãs longe da verdade. Porque se elas soubessem que suamissão não era motivada pela necessidade de corrigir um erro, mas pela inesgotável ganância deseu pai, quão dispostas algumas delas estariam em trair um marido? De destruir uma nação? Dever um povo massacrado? Promessas, ameaças e subornos foram motivadores insignificantes emcomparação com o fanatismo que havia sido queimado na alma dela e de suas irmãs.

Mas para Lara, esse fanatismo não queimava mais.

2 7

AREN

— POR QUE ESTAMOS AQUI? — JOR ACENOU PARA UMA DAS MENINAS TRAZER OUTRA RODADA DE

bebidas. — Para que estamos nos aventurando por mares selvagens e território inimigo?Empurrando sua comida no prato à sua frente, Aren não respondeu. Lara subiu as escadas

para o quarto deles há uma hora, quieta, com o rosto pálido. Ele disse a ela para ficar lá até queele voltasse, para sua própria segurança. Não esperava que ela ouvisse.

Ele sabia. Parado na água com ela ao lado na Ilha das Cobras ele soube. Todas as pequenaspeculiaridades de sua esposa maridriniana, as pequenas coisas que lhe pareceram estranhas seacumularam até que não havia como negar.

Lara era uma espiã.A droga da mulher por quem se apaixonou era uma espiã.Nos primeiros dias do casamento, ele acreditava que o aparente desdém de Lara por ele era

motivado pelo desconforto de ser forçada a um casamento que não queria. Uma vida que nãotinha escolhido. Mas o choque em seu rosto quando ele lhe disse que seu pai tinha tido a chancede alimentar seu povo faminto, mas havia comprado armas, indicava que ela havia mentido nogeral.

Aren contratou espiões demais para saber que os melhores desses acreditavam que o trabalhoque realizavam era para um bem maior. O Rei Rato teria dificuldade em encontrar um espião queacreditasse que Ithicana fosse a causa da situação de Maridrina, então criou uma: uma filhacriada em total isolamento para implantar um falso senso de justiça.

Exceto que agora ela sabia a verdade.— Aren? — A voz de Jor era despreocupada, mas Aren nunca ouviu o capitão de sua guarda

errar um pseudônimo, particularmente o do seu Rei. O homem mais velho estava preocupado. Ecom razão. Ithicana estava entre a cruz e a espada.

Antes que Aren tivesse chance de responder, um de sua tripulação entrou na taverna eassentiu uma vez. O coração de Aren afundou. — Você está prestes a descobrir.

Do lado de fora, o guarda informou: — Ela está subindo a avenida principal. Gorrick está aseguindo. — Ele entregou a Aren seu arco e aljava.

Aren pegou as armas sem falar nada e começou a subir a rua com Jor nos calcanhares.Vencia estava lotada como sempre, por isso demorou um pouco para encontrar o alto Ithicanoseguindo sua esposa. — Volte — ele murmurou para Gorrick, uma vez que tinha Lara na mira.— Nós assumimos a partir daqui.

O homem abriu a boca para discutir, depois viu a expressão no rosto de Aren e desapareceuna multidão.

Lara andava a passos largos no centro da rua, ainda disfarçada, o que significava que bêbadose arruaceiros a deixavam em paz. No entanto, enquanto a seguiam, ele se perguntou como odisfarce podia enganar. Toda vez que ela virava a cabeça para considerar algo que lheinteressava, a luz das tochas emoldurava as linhas delicadas do rosto, os lábios carnudos, a longaestrutura do pescoço, a curva arredondada de bunda. O leve balanço em seu passo. Nenhumgrumete harendelliano que conhecera andava assim.

Ela era tão bonita que doía, e, mesmo sabendo que usou isso contra ele, não diminuía o quãofortemente ele era atraído por ela.

Ele silenciosamente implorou: Por favor, deixe-me estar errado sobre o que você pretendefazer.

Mas não havia como negar o caminho que Lara seguia, para cima pelas ladeiras na direçãodo palácio de seu pai, aquele testemunho azul e bronze de sua arrogância e ganância.

Jor xingou quando também percebeu para onde Lara estava indo. — Precisamos detê-la.Aren contornou uma dupla bêbada e migrou para as sombras mais próximas dos edifícios. —

Ainda não.Quanto mais eles subiam, menos pessoas enchiam a rua, mas Lara não olhou uma vez para

trás. Como se não tivesse a ocorrido a ela que ele poderia vê-la.— O que você está fazendo, Aren? — Jor sibilou.— Eu preciso ver se ela vai me trair se tiver a chance.Mas o que ele esperava era que a verdade a tivesse transformado. Que, agora acordada para a

decepção de seu pai, daria as costas para qualquer propósito que fora definido. Se ela era o tipode mulher que ele acreditava, não, rezava, que fosse.

Ela continuou andando em direção ao portão, os guardas em sua volta com um interesseentediado, era um jovem solitário que não lhes interessava. Aren parou nas sombras, onde osguardas não o viam, puxando uma única flecha da aljava. O arco era dele, mas a madeira pareciaestranha e desconhecida sob os dedos suados.

Jor pegou sua arma. — Deixe-me fazer isso por você.Aren deu um passo para o lado, segurando a flecha enquanto balançava a cabeça. — Não. Eu

a trouxe para Ithicana. Ela é minha responsabilidade. — Lara não estava diminuindo avelocidade e os guardas no portão se animaram quando se aproximou.

Um dos guardas a chamou. — O que você está fazendo, garoto? — Lara não respondeu.Mais uma vez, Jor tentou pegar a arma. — Você está um pouco apaixonado pela garota.

Você não precisa disso em sua consciência.— Sim, eu preciso.Ela parou a uns doze passos dos pesados portões de ferro.— Declare seu propósito ou vá embora. — o guarda gritou.Aren lentamente puxou o arco, apontando a flecha no centro de suas costas delgadas. Nesse

intervalo, ela perfuraria diretamente seu coração. Ela estaria morta antes que pudesse condenarele, e Ithicana, mais do que já condenara.

O coração de Aren estava selvagem e frenético em seu peito, o suor quente se misturandocom a chuva escorrendo por suas costas. Quando ele piscou, a viu cair. Viu o sangue deladerramar em uma poça ao seu redor. Viu aqueles olhos malditamente lindos dela perderem acentelha. Então piscou novamente e ela ficou imóvel na escuridão. Ela deu um passo hesitante àfrente. O braço dele tremeu.

Mais um passo.A corda do arco afundou em seus dedos quando ele lentamente começou a endireitá-los,

sabendo que, apesar de não ter escolha, nunca se perdoaria por matá-la.O corpo dela tremeu e o coração dele pulou. Então relâmpagos brilharam e Lara girou,

correndo para longe dos portões. Jor empurrou Aren mais fundo nas sombras enquanto elapassava, voltando para a cidade. Ele deu um passo para a seguir antes que tudo o que tinhacomido no jantar subisse em sua garganta. Apoiando a mão na parede do edifício, Aren vomitousuas entranhas na rua.

— Siga-a — conseguiu dizer. — Certifique-se de que ela volte a salvo.Somente quando Jor desapareceu na rua, Aren apoiou a cabeça na pedra úmida e viscosa.

Meio segundo. Essa tinha sido a diferença entre ela correndo pela noite e deitada morta na rua.Meio segundo.

O cheiro de vômito encheu seu nariz, mas não foi isso que fez seus olhos arderem. Eleesfregou-os furiosamente, odiando o Rei de Maridrina até as profundezas de sua alma. A aliançaentre Maridrina e Ithicana zombava da palavra, por isso Aren sentia que não tinha um maiorinimigo que Silas Veliant.

— Você — alguém gritou. — Nada de vadiagem. Saia daqui!Lançando um olhar para trás para o palácio onde o pai de Lara dormia, Aren se misturou com

a noite.

2 8

LARA

— UÍSQUE — LARA MURMUROU PARA O BARMAN, APOIANDO-SE EM UM BANQUINHO NO THE

Songbird, a água pingando de suas roupas para a poça no chão embaixo dela.O barman olhou para ela com diversão. — Você pode pagar, garoto?— Não — ela retrucou. — Eu pretendo beber e depois sair correndo pela porta dos fundos.A diversão em seus olhos sumiu e ele se inclinou sobre o bar. — Escute aqui, seu pequeno...— Querido, você pode trazer mais vinho da adega? — Marisol apareceu do nada. — Eu vou

lidar com isso.Dando de ombros, o barman caminhou em direção a uma porta aberta atrás do bar. Depois

que ele se foi, Marisol puxou uma garrafa de debaixo do bar e derramou uma dose generosa emum copo, que empurrou na frente de Lara. — Não sei como eles fazem as coisas em Harendell,mas não tenho o hábito de embebedar crianças em meu estabelecimento.

Lara lançou um olhar frio para ela, esvaziou o copo e o empurrou de volta na frente da outramulher. Então ela enfiou a mão no bolso e pegou uma moeda harendelliana de ouro e a jogou nabarra. — Faça uma exceção.

Uma sobrancelha se levantou. — Você é encantadora, não é, Vossa Majestade.— Você concede títulos a todos os seus clientes?— Somente para mulheres com olhos azuis característicos de Veliant que viajam na

companhia de espiões Ithicanos.Parecia fazer pouco sentido tentar dissuadi-la. — Ou enche o copo e converse ao mesmo

tempo, ou cala a boca. Não estou de bom humor. — Não havia disposição para nada além desilenciar as perguntas que giravam loucamente em seus pensamentos, enquanto tentava chegar aum acordo com um mundo que parecia virado de cabeça para baixo. E certamente não estavacom disposição para conversar com a ex-amante de Aren.

Marisol serviu e depois colocou a garrafa ao lado do copo. — Eu vi você quando passou porVencia a caminho de Ithicana. — Ela apoiou os cotovelos na madeira polida. — A cortina foipuxada para trás na carruagem e tive um vislumbre. Você parecia estar indo para a guerra, nãopara se casar.

Lara estava indo para a guerra. Ou assim pensou na época.— O Rei ordenou ruas limpas. Ninguém foi autorizado a sair de suas casas até você embarcar

no navio. Para sua proteção, eles disseram.Não tinha nada a ver com a proteção dela. Foi o último detalhe para garantir que Lara

embarcasse no navio convencida de que Maridrina estava da pior forma possível e que Ithicanaera a culpada. Um último pedaço de decepção.

— Então eles carregaram você no navio e você se foi. Foi para Ithicana e para, sem o meuconhecimento na época, roubar meu amante favorito.

Lara deu um sorriso doce. — Dado que você não o via há mais de um ano, não tenho certezade que você tinha direito naquele momento. Ou alguma vez.

— Você é uma puta, não é? Lara pegou o copo que Marisol estava limpando de suas mãos, encheu-o, esperou a outra

mulher levantá-lo e depois bateu o dela contra ele. — Um brinde a isso.Engolindo o líquido em um gole, Marisol colocou o copo de lado. — Esperávamos que as

coisas mudassem. Que seu pai aliviasse seus impostos imundos ou pelo menos usasse o dinheiropara algo melhor do que para sua guerra incessante com Valcotta.

— Mas nada mudou.Marisol sacudiu a cabeça. — Que nada, só piorou.— Me pergunto por que eu me incomodei em ir. — Exceto que Lara sabia exatamente por

que tinha ido para Ithicana. Para salvar suas irmãs. Para salvar seu Reino. Para salvar a si mesma.Nesse exato momento, ela meio que se perguntou se tinha amaldiçoado todos eles.

— Não era uma escolha sua, suponho. — Os olhos de Marisol flutuavam sobre o ombro deLara, observando as idas e vindas da sala comunal. — O que eu sei é que você se casou com omelhor homem que já tive o privilégio de conhecer, então, talvez, em vez de afogar suas mágoas,considere um uso melhor do seu tempo. — Ela inclinou a cabeça. — De qualquer maneira,espero que você aproveite a sua noite, Vossa Majestade.

— Boa noite — Lara murmurou, enchendo o copo novamente. Ela sabia que Aren era umbom homem. Seus instintos, nos quais deveria ter confiado, estavam gritando com ela por maistempo do que gostaria de admitir, mas ela os ignorou em favor do que havia sido dito. Ela foienganada. Manipulada. Usada.

Ela foi ao palácio matar seu pai.Seu plano era usar os códigos que recebera para obter acesso, esperar que eles a levassem ao

seu pai - e matá-lo. Com as próprias mãos, se ela precisasse. Não era como se não tivesse sidotreinada para fazer isso. Eles a matariam depois, mas sua morte valeria a pena. Valeria omomento em que o pai dela perceberia que ela, sua arma preciosa, havia se voltado contra ele.

Mas, enquanto Lara estava de pé ali na chuva com os soldados do pai a observandodesinteressadamente, a voz do mestre Erik encheu seus ouvidos: não deixe seu temperamentotirar o melhor de você, pequena barata. Pois, quando faz isso, você corre o risco de seusinimigos te derrotarem.

Uma coisa seria o custo a ela de sua perda de controle. Mas enquanto ela estava ali, com apele arrepiada com algum sexto sentido alertando-a para o perigo, Lara percebeu que seriaIthicana - e Aren - quem pagaria o preço. As folhas de papel nos quartos de Aren em Midwatchainda continham todos os segredos da ponte. Se pelo menos um deles chegasse às mãos deSerin... isso seria um dano que nunca poderia ser desfeito. Ela precisava garantir que fossemdestruídas. Uma vez feito isso, ela poderia se vingar com a consciência limpa.

Ela voltou, pretendendo deixar um bilhete para Aren explicando tudo e instruindo-o adestruir os papéis, mas a visão do rosto de Aren quando lesse continuou girando em seuspensamentos. Ele, que era leal desde de seu âmago, levaria o ato de deslealdade ao lado pessoal.Ele iria odiar ela. Lara engoliu o conteúdo do copo em grandes goles, desejando que o álcoolfuncionasse mais rápido. Desejando que entorpecesse seu coração traidor.

Enchendo o copo de novo e de novo, ela ruminou até que a garrafa estivesse vazia, o uísquefazendo nada para entorpecer a dor maçante em seu peito. Ela teria pedido outro e continuaria

bebendo, mas não havia mais ninguém para servi-la, todas as garrafas e copos guardados danoite, a sala quieta e silenciosa.

Levantando-se, Lara virou-se para encontrar a sala comunal vazia de clientes e funcionários,cadeiras empurradas para mesas, pisos varridos e porta trancada. Desprovida de vida. ExcetoAren, que estava sentado à mesa atrás dela.

Ela o encarou com a vista turva, sentindo o coração como se tivesse sido rasgado em milpedaços e depois queimado.

— Esperando que eu vá para a cama para que possa encontrar Marisol? — As palavras foramarrastadas. Ácidas. Mas ela quase desejou que ele fizesse isso sem motivo para, então, dar-lheuma razão válida para odiá-lo. Um motivo válido para sair e nunca olhar para trás.

O canto da boca dele se levantou — Quem você acha que veio me encontrar para lidar commeu priminho da boca suja?

Lara fez uma careta. — Ela sabe que eu não sou seu primo. Ela sabe exatamente quem eu soue, por conseguinte, quem é você.

— Marisol é astuta.— Você não está preocupado? Aren sacudiu a cabeça e depois se levantou. Suas roupas estavam úmidas, mas a água da

chuva que tinha se molhado já estava secando a muito tempo. Há quanto tempo ele está sentadolá?

— Ela está espionando para Ithicana há quase uma década - desde que seu pai se enforcou edepois cravou a própria cabeça nos portões de Vencia. Ela é leal.

Palavras cheias de ciúme dançavam na língua de Lara, mas as engoliu. — Ela é linda. Egentil.

— Sim. — Seu olhar era intenso. — Mas ela não é você.Seu corpo cambaleou, a sala girando. Aren fechou a distância entre eles em dois passos, as

mãos pegando nas laterais dela. Firmando-a. Lara fechou os olhos para tentar impedir o mundode girar mas a sala rotativa foi substituída pela memória do corpo musculoso e duro do homem,de sua pele bronzeada sob os dedos dela. O calor floresceu baixo em sua barriga.

Você não pode, ela disse a si mesma. Você é uma mentirosa e uma traidora. Você não é amulher que ele acredita que você é e nunca poderá ser. Você nunca poderá ser você mesma. Nãosem o risco dele descobrir a verdade. Se ela não conseguia encontrar a coragem de dizer averdade, então precisava voltar a Ithicana para destruir todas as evidências de sua traição edesaparecer. Fingir sua própria morte. Retornar a Maridrina para vingança.

E nunca mais ver Aren novamente.Seus olhos ardiam, sua respiração ameaçava soltar um soluço e traí-la.— Você está bem?Ela cerrou os dentes. — Eu não me sinto bem.— Não é surpreendente, dada a quantidade que você bebeu. Você tem um gosto refinado, a

propósito. Essa não é uma garrafa barata.— Paguei eu mesma. — Ela disse as palavras lentamente, na tentativa de torná-las mais

claras.— Você quer dizer com as moedas que roubou do meu navio.— Se você é estúpido o suficiente para deixá-las por aí, merece perdê-las.— Eu sinto muito. Eu não percebi isso através de todas as insinuações.— Babaca.Ele riu. — Você pode andar?

— Sim. — Desembaraçando-se do aperto dele, ela cambaleou em direção à escada, quando,de repente, o último degrau estava subindo em direção a ela. Porém, antes que o rosto de Larapudesse bater contra a madeira, Aren a agarrou, puxando-a nos braços. — Não vamos tentar odestino.

— Só preciso de água.— Você precisa de um travesseiro. Talvez tenha sorte e a tempestade demore o suficiente

para que você descanse. Mas duvido.Lara fez um som de raiva contra o peito dele, mas era mais para ela mesma. Na facilidade

com que se enrolou contra ele. Como seria atraente mais algumas noites com ele, apesar de saberque isso estava apenas atrasando o inevitável.

— O uísque ajudou?— Não.— Isso também nunca me ajudou muito.Uma lágrima vazou em sua bochecha, e ela virou o rosto no peito dele para escondê-la. —

Sinto muito por ter sido tão terrível. Você merece alguém melhor que eu.Aren exalou, mas não disse nada. O movimento metódico dele subindo as escadas a embalou,

a consciência desaparecendo lentamente. Ela não lutou, porque, mesmo contra todas asadversidades, confiava nele implicitamente. Ainda assim, estava ciente o suficiente para ouvi-lo,sua voz rouca quando ele disse: — Desde o momento em que vi você em Southwatch, não havianinguém além de você. Mesmo que eu seja um maldito idiota por isso, nunca haverá ninguémalém de você.

Você é um tolo, ela pensou quando a escuridão a levou.E isso fazia os dois serem.

2 9

AREN

ELE NUNCA FOI CAPAZ DE DORMIR DEPOIS DO AMANHECER EM UM DIA COM CÉUS LIMPOS.Como seu corpo adormecido sabia que os ventos haviam morrido e a chuva cessara, era um

mistério. Um sexto sentido de uma vida em Ithicana que o alertava quando os Mares deTempestade baixavam a guarda e que estava na hora de levantar a dele. Então, quando seus olhosse abriram com o brilho mais fraco no horizonte, Aren se levantou de onde havia dormido nochão, se vestindo silenciosamente para não incomodar Lara, que ainda estava roncandolevemente em seu travesseiro, depois desceu as escadas procurando algo para comer.

Era como se um fardo tivesse saído de seus ombros. Vir a Vencia sempre foi um risco, mashavia sido mil vezes mais com Lara a reboque. No entanto, valeu a pena. Valeu a pena fazê-ladescobrir a verdade da situação em Maridrina com seus próprios olhos e ouvidos. Fazer com queela entendesse que seu pai, não Ithicana, era o opressor de sua terra natal. Ter Lara finalmentevendo com seus próprios olhos, não mais nublados por qualquer besteira que sua mente tivessesido preenchida ao longo dos anos.

Essas coisas valiam o risco de que ela se voltasse contra ele e derramasse todos os segredosamaldiçoados que aprendeu. Valeu aqueles momentos torturantes em que Aren acreditava queteria que detê-la.

Valeu o momento em que Aren teve certeza de que sua lealdade, se não inteiramente voltadapara Ithicana, pelo menos tinha abandonado o seu inimigo.

O fato de ela ter feito essa escolha ficou claro desde o momento em que a viu sentada no bar,bebendo uísque como se sua vida dependesse disso. Aren conhecia bem a esposa para saberquando estava chateada. Como uma chama silenciosa e fervente que fazia com que qualquerpessoa sã lhe abrisse espaço, estes percebendo ou não. Ontem à noite, ela ficou furiosa. Mas,pela primeira vez, não foi com ele. Não, quando ela se virou e o viu, sua raiva foi vencida poroutra emoção completamente. Uma que ele estava desesperado para ver nos olhos dela por maistempo do que queria admitir.

Na sala comunal, Jor estava sentado com Gorrick, mas Aren apenas assentiu para eles esentou-se sozinho no canto, contente em assistir as idas e vindas enquanto tomava o café queMarisol lhe trouxera, sua amiga e ex-amante ocupada demais com o movimento da sala parafazer mais do que apertar o ombro ao passar por ele.

A sala estava meio cheia de comerciantes viajantes. Alguns com o claro olhar daqueles quedesejavam lucrar assim que o mercado abrisse. Outros tinham os olhos embaçados e os rostosverdes daqueles que haviam passado uma noite em Vencia e só estavam acordados porquetemiam a ira de seus senhores.

Aren tinha muito mais em comum com o último grupo. Desde os quinze anos, ele tem saídode Ithicana. Aparentemente, para espionar. Para aprender os caminhos dos pseudo-aliados einimigos claros de seu Reino, mas não havia como negar que também usava as viagens para seafastar dos incessantes fardos que acompanhavam seu título. Vencia sempre foi o seu lugarfavorito, e ele passou uma dúzia, ou talvez mais, de tufões bebendo, jogando e rindo em uma salacomum ou outra, mais frequentemente com uma garota local para aquecer sua cama, ninguémacreditando que ele fosse algo diferente de um filho de um comerciante de sucesso.

Enquanto o Reino de Maridrina era um espinho nas costas de Ithicana, o povo maridrinianoera amigo de Aren por muito tempo, o que criou um certo conflito. Ele não deveria gostar deles,mas gostava. Gostava de como discutiam e argumentavam sobre cada coisa maldita; como eleseram impetuosos e corajosos, mesmo os mais covardes deles propensos a brigar com os punhospara defender a honra de um amigo; como eles cantavam, riam e viviam, cada um deles comgrandes ambições por algo mais.

Vencia em si era um lugar bonito, uma colina de construções brancas com telhados azuis quesempre pareciam brilhar quando se aproximava a partir do mar, suas ruas cheias de pessoasvindas de todas as nações, norte e sul. Uma metrópole que prosperou apesar do seu Rei, quegovernava com mão de ferro e que usava impostos para nada além de saquear seu próprio povo.

Não, se Maridrina encontrasse por si mesma um novo governante e Aren não fosse o Rei deseu próprio Reino, ele ficaria feliz em viver em Vencia. Às vezes, ele se perguntava se isso erauma parte do que seu conselho temia sobre abrir as fronteiras de Ithicana e permitir que seuscidadãos saíssem: que veriam como a vida era fácil em outros Reinos e nunca mais voltariam.Que Ithicana não seria conquistada, mas, sim, desapareceria lentamente da existência.

Só que ele não achava que seria assim. Havia algo sobre a emoção selvagem de viver emIthicana que falava com as almas daqueles que nasceram para isso, e nem as pessoas, nem oReino jamais se deixariam ir de bom grado.

Os pensamentos de Aren foram interrompidos por uma sombra passando sobre sua mesa.— Bom dia, Vossa Excelência — disse uma voz nasal. — Espero que você me perdoe por

interromper seu café da manhã.O garfo de Aren parou a meio caminho da boca e foi preciso muito esforço para engolir a

boca cheia de ovos. Ele levantou a cabeça. — Fui chamado de muitas coisas nesta sala, masnunca disso.

Magpie deu um pequeno sorriso e sentou-se em frente a Aren. — Eu aprecio o jogo tantoquanto qualquer um, Vossa Excelência, mas talvez possamos renunciar à pretensão de que você énada mais nada menos do que o Rei de Ithicana. — O sorriso dele cresceu. — Por conveniência.

Aren pousou o garfo e recostou-se na cadeira. Pelo canto do olho, ele viu Jor e Gorricklevantarem a cabeça, o rosto de Serin profundamente familiar para eles. Mas eles só viram omestre de espionagem de Maridrina de longe, porque nunca, nunca, seu disfarce foicomprometido.

Todos os espiões Ithicanos sabiam que, ao entrar no território inimigo, se fossem pegos,cairiam sobre sua própria espada antes de abrir mão dos segredos de seu Reino e Aren não tinhadúvida de que todos com ele fariam exatamente isso. Exceto, talvez, a mulher no andar de cima.

— Foi a cicatriz na sua mão que o denunciou. — Serin apontou o queixo em direção à mãoesquerda de Aren, que repousava sobre a mesa, a cicatriz branca curva de uma velha luta de facasclaramente visível. — Junto com a máscara, você sempre usava luvas quando se encontrava compessoas de fora. Mas não no seu casamento, o qual, é claro, eu estava presente. Foi umacerimônia tão dramática.

Gorrick ficou de pé, bocejando, depois caminhou até o bar como se quisesse falar comMarisol. Sua amiga sorriu e riu enquanto lustrava o copo que estava segurando, mas umbatimento cardíaco depois, ela desapareceu da sala. Para encontrar Taryn, que protegeria Lara.

Se isso ainda era mesmo uma possibilidade.Deus, ele era um tolo por baixar a guarda. Por acreditar que tudo terminou na noite passada

quando Lara não entrou no palácio. Talvez isso tivesse sido apenas um truque e, mesmo agora,sua esposa maridriniana estava contando tudo o que havia aprendido para os lacaios de seu pai.

— Não é comum de vocês, Ithicanos, cometerem um erro. — Serin levantou a mão parachamar a atenção de uma criada. — É claro que suspeitávamos que você visitasse nossas praiasde tempos em tempos, mas até agora nunca havia anunciado tão descaradamente sua chegada.

A sobrancelha de Aren se levantou.— Foi o aço, como você pode ver. Foi marcado em Northwatch para transporte através da

ponte há mais de um ano, e, no entanto, a carga de alguma maneira chegou a Vencia ontem,descarregada apenas nesta manhã. E através de um navio que afirma ter vindo de Harendell, nãode uma balsa de Southwatch.

Porra. Ahnna ia matá-lo se conseguisse sobreviver a isso.— Eu diria que foi um erro amador, mas essa não é sua primeira visita a Vencia, é, Vossa

Excelência? — Serin aceitou um café de uma das garotas de Marisol. — Você parece confortáveldemais para ser sua primeira vez.

Aren pegou sua xícara, olhando o mestre dos espiões. — Eu sempre gostei de Vencia. Muitasmulheres atraentes.

Serin deu uma fungada divertida. — Eu pensaria que aqueles dias ficariam para trás agoraque você é um homem casado.

— Talvez eles tivessem ficado se não tivesse me enviado uma megera.O café na xícara de Serin estremeceu, e o homenzinho pousou-a rapidamente para esconder a

reação. Aparentemente, Lara não havia seguido os métodos de sedução de acordo com o planodo mestre de espionagem. O que provavelmente era uma coisa boa, porque Aren suspeitava queele e Serin tinham gostos bastante diferentes quando se tratava de mulheres.

— Nós poderíamos enviar outra para você... talvez uma com maneiras mais delicadas egentis. — Os olhos de Serin foram para Marisol. — Vejo que você gosta de loiras. Eu possopensar apenas em uma princesa para você. Ela foi minha primeira escolha, mas o destinoconspirou contra mim. Contra nós dois, parece.

A curiosidade de Aren sobre o motivo de Lara ter sido escolhida despertou mais uma vezantes de ser afastada pela preocupação por sua amiga. Marisol estava ligada a ele; issosignificava que ela estava em perigo. — Tentador. Infelizmente, essas práticas são desaprovadaspelo meu povo. Vou ter que me contentar com o que você me enviou.

— Falando em Lara, como ela está? Já faz algum tempo desde que recebemos notícias dela, eseu pai está muito... preocupado.

A mente de Aren calculou. Se o aço havia sido descarregado e processado até essa manhã,era possível que eles estivessem sob o escrutínio de Magpie por uma questão de horas, todo otempo que Lara havia passado desmaiada em uma cama no andar de cima. Por outro lado, issopoderia ser um truque para distrair Aren enquanto os Maridrinianos protegiam sua princesa. —Ela está bem o suficiente.

— O pai dela gostaria de alguma prova disso.— Quando eu voltar para casa, irei sugerir que coloque a caneta no papel. Mas devo adverti-

lo, Lara não é a mais... obediente das esposas. É mais provável que me diga para enfiar a caneta e

o papel na minha bunda.A testa de Serin enrugou. — Talvez lembrá-la da longa preocupação de seu pai por seu bem-

estar.Aren apoiou os cotovelos na mesa. — Pare com isso, Magpie. Nós dois sabemos que seu

mestre não se importa com a filha dele. Ele conseguiu o que queria, que era o livre comércio deaço e armas. Então, o que mais você procura?

Agitando a mão como se quisesse dissipar a tensão, Serin deu-lhe um sorriso de desculpas.— As aparências devem ser mantidas, você deve entender. Francamente, você pode cortar agarganta da putinha e meu mestre não se importaria; o que ele se importa é o seu compromissocom a aliança entre nossos Reinos.

— Ele tem seu aço, conforme nosso acordo. O que mais ele sente que merece?Um aceno condescendente. — É verdade que você manteve ao pé da letra do acordo, como

nós. Estou me referindo mais... ao espírito do acordo. O tratado era para uma aliança de paz entreIthicana e Maridrina, e ainda assim você continua hospedando e comercializando com o nossomaior inimigo em seu mercado em Southwatch, permitindo que eles comprem os bens queMaridrina precisa desesperadamente. Meu mestre pede que você reconsidere essa prática.

— Você quer que eu corte laços com Valcotta? — Cortar laços com o Reino que forneciaperto de um terço da receita da ponte todos os anos? Valcotta não era um aliado, mas tambémnão eram inimigos jurados de Ithicana como Maridrina fora no passado. No entanto, se Arenfizesse o que Serin estava pedindo... — Não tenho interesse em entrar em guerra contra Valcotta.

— Meu mestre também não está pedindo que entre. — Serin deslizou um cilindro de prataem relevo sobre a mesa, o envernizado selo maridriniano em azul. — Ele simplesmente pede quevocê pare de fornecer a eles a guerra deles contra nós.

— Eles vão retaliar, e a guerra estará à minha porta, eu pedindo ou não.— Possivelmente. — Serin tomou um gole de café. — Mas se Valcotta atacar suas terras,

tenha certeza de que Maridrina retaliará dez vezes mais contra eles. Não levamos gentilmenteaqueles que mexem com nossos amigos e aliados.

Palavras de apoio, mas Aren ouviu a ameaça embaixo deles. Faça como meu mestre diz ouenfrente as consequências.

— Pense nisso, Vossa Excelência. — Serin levantou-se. — Meu mestre aguarda sua respostapor escrito, detalhando seu compromisso com a nossa amizade. — O pequeno sorriso voltou. —Que tenha uma viagem segura de volta para sua terra natal e, por favor, dê meus cumprimentos aLara.

Sem outra palavra, o mestre espião de Maridrina saiu da sala comunal, a porta se fechandocom força. Pegando o tubo de mensagem, Aren rapidamente analisou o conteúdo antes de enfiá-lo na bolsa com seus pés, depois encontrou os olhos de Jor do outro lado da sala.

Hora de ir.

3 0

LARA

LARA ACORDOU LOGO ANTES DO AMANHECER, UM COBERTOR A COBRIA DOS PÉS AO QUEIXO, TINHA

um copo de água sobre a mesa de cabeceira e a sua cabeça latejava com a pior dor de cabeça desua vida.

Gemendo, ela se virou para enterrar o rosto no travesseiro. Os eventos da noite anteriorestavam nebulosos, mas se lembrou deles o suficiente para que suas bochechas ardessem ao selembrar de Aren a pegando antes que pudesse cair de cara no chão. O jeito que se enrolou emseus braços enquanto ele a carregava pelas escadas. As coisas que ela disse. As coisas que eletinha dito.

Sentada com a coluna ereta, Lara olhou para suas roupas de menino, as quais ela dormiravestida, para as botas no chão ao lado de sua cama, a única peça de seu vestuário que Aren haviatirado dela depois que ela desmaiou.

As facas dela.Olhando em volta freneticamente, Lara jogou os travesseiros no chão, seu coração se

acalmou e um leve sorriso subiu aos lábios quando viu as lâminas descansando ali.Aparentemente, Aren havia notado mais de seus hábitos do que ela tinha imaginado.

Pegando o copo d'água, ela abriu as janelas fechadas e olhou para fora: o céu estava limpocom apenas uma leve brisa agitando a roupa pendurada no varal do outro lado da rua. Elespoderiam ir para casa hoje.

Casa. Balançando a cabeça bruscamente com esse deslize, Lara bebeu a água em poucosgrandes goles e calçou as botas. A sala estava claramente desprovida de sujeira, então ela usouum pouco de fuligem da lamparina para completar seu disfarce antes de enfiar seus poucospertences na bolsa e sair para o corredor.

Para encontrar-se cara a cara com metade da guarda de Aren.— O que está acontecendo? — ela perguntou a Taryn, que parecia estranha no vestido

simples que usava como disfarce.— O tempo vai piorar. Hora de ir.Ela estava mentindo. Havia muito poucas coisas que botavam medo nos olhos dos Ithicanos

e a promessa de uma tempestade certamente não era uma delas.O andar de baixo já estava ocupado com o grupo de comerciantes que acordaram cedo e já

estavam começando o desjejum, porém seus olhos encontraram imediatamente Aren sentado nobar. Atrás dele, estava Marisol, que, pela primeira vez, não estava polindo um copo, mas com ofoco totalmente no homem à sua frente. A mandíbula de Lara se apertou, mas seu ciúme sumiuao lembrar das palavras de Aren. Nunca haverá ninguém além de você.

Exceto que, com todas as mentiras que ela tinha contado, com todas as maneiras que omanipulou, como ela poderia ficar com ele?

Enquanto Lara estava congelada na entrada da sala comunal, Aren se virou e a viu. O queparecia com alívio se espalhou pelo rosto dele. Com uma última palavra para Marisol, ele jogouum punhado de moedas no bar. Algo estava muito errado.

Ele atravessou a sala. — Finalmente decidiu se mostrar primo? Mal vai ter tempo para viajarpara Southwatch com você se embelezando.

Ela olhou para ele porque outros clientes estavam assistindo, mas, uma vez que estava aoalcance do braço, ele murmurou: — Fomos descobertos. Nós precisamos ir.

Jor e o resto dos Ithicanos estavam do lado de fora encostados na parede com falsaindiferença. Apesar do vestuário, ninguém com pelo menos um neurônio acreditaria que eleseram marinheiros. Eles estavam muito alertas e nenhum deles parecia com ressaca. Exceto ela.

— Não quero perder a maré — anunciou Aren, e imediatamente estavam em movimento.No porto, eles percorreram a multidão em uma corrida contida até o cais e para dentro da

doca onde o navio estava atracado. Os Ithicanos que ficaram no navio já estavam correndo peloconvés, preparando-se para zarpar. Prontos para fugir. O foco de Lara aumentou, e ela examinouas docas e a multidão em busca de qualquer sinal de perseguição. Aren disse que sua coberturahavia sido comprometida, mas havia níveis nessa afirmação. Se os Maridrinianos descobriramque eram de Ithicana, isso era uma coisa. Se Maridrinianos descobriram a identidade de Aren -ou pior, a de Lara - eles estavam com sérios problemas.

— Você é louco, John. — A barriga do mestre do porto balançou quando esse se apressouem direção a eles. — Há uma tempestade se formando.

Aren parou na base da prancha, usando uma mão para empurrar Lara para cima. — Não énada mais do que uma tempestade. Isso manterá os valcottanos longe dos meus calcanhares.

— Insanidade — o homem resmungou. — Vou manter uma vaga aberta para você.— Voltaremos antes do almoço. Você pode me comprar uma bebida ou duas no meu retorno.— Mais provável que eu esteja brindando em sua memória.A risada de Aren parou abruptamente. Com os grilhões erguendo-se, Lara desviou-se da

inspeção da escuridão que crescia ao leste e encontrou Serin parado uma dúzia de passos atrás domestre do porto, com os braços cruzados nas costas. Observando.

O navio balançou sobre uma onda e Lara cambaleou, os ombros colidindo com o peito deAren, o braço dele envolvendo-a reflexivamente para recuperar o equilíbrio, segurando-a contraele.

Os olhos de Serin se arregalaram.— Vá — ela sussurrou, vendo o entendimento nascer no rosto do mestre espião. A percepção

de que sua presença em Maridrina significava que ela sabia a verdade. Que a estratégia de quinzeanos em desenvolvimento se esgotou muito cedo. A percepção de que, se Lara fosse levada vivadesse porto haveria chance de seu pai conseguir a ponte. — Vamos! — ela gritou.

— Levantar as velas! — Aren rugiu.Os Ithicanos entraram em ação e, num piscar de olhos, o navio estava se afastando da doca, a

prancha de desembarque pousando na água com um esguicho. Aren arrastou Lara com eleenquanto corria para o leme, gritando ordens mesmo quando enxames de soldados desciam sobreeles.

— Mais rápido! — A distância entre o navio e o cais estava aumentando, mas não rápido osuficiente. — Aren, eu não posso deixar que me levem viva. — Lara puxou uma das facas dabota. — Eles vão me fazer falar.

Ele avistou a faca dela, percebendo suas intenções. — Guarde isso, Lara! Eu não vou deixareles te levarem.

— Mas...Ele arrancou a lâmina ornada de jóias de suas mãos e a jogou, a arma rodando até aterrissar

na doca – que estava cheia de soldados correndo, os da frente já se preparando para saltar.— Vamos lá, vento! — Aren gritou. — Não deixe que essa seja a única vez que você se

recusa a soprar.Como se atendesse ao chamado de seu mestre, o vento uivou do leste, as velas estalando. O

navio balançou quando três dos soldados saltaram, os braços agitando enquanto caíam na águaem vez de no convés.

O navio colidiu com outra embarcação com um ruído alto, a outra tripulação gritando exingando enquanto se arrastava ao longo dele, atingindo outro navio, depois outro, enquantoAren usava a força do vento para forçar o caminho.

Os soldados corriam em todas as direções, pulando em navios na tentativa de alcançar seualvo, mas eles eram lentos demais. Mesmo à distância, as embarcações estavam repletas demarinheiros se preparando para a perseguição.

— Você consegue fugir deles? — Lara exigiu saber.Aren assentiu, seus olhos fixos na fuga deles através do porto lotado.Sinos tocavam freneticamente na cidade.— Merda! — Aren gritou. — Precisamos passar o quebra-mar antes que eles levantem a

corrente.O olhar de Lara correu através da água para as torres gêmeas que margeavam a abertura entre

o quebra-mar até a pesada corrente de aço que estava rangendo ao ser levantada.— Toda velocidade!O convés estava um caos enquanto os Ithicanos puxavam cordas, a lona branca se abrindo

para o céu. O navio saltou através das ondas em direção à abertura, mas a corrente estavasubindo com a mesma rapidez. Mesmo que eles conseguissem atravessar, isso rasgaria o leme ese tornariam presas fáceis para a frota maridriniana.

— Não podemos passar pela abertura com todas as velas — gritou Jor. — Nós seremosjogados nas pedras.

— Levante-as — ordenou Aren. — Todas elas.Lara agarrou-se ao corrimão, os cabelos chicoteando atrás deles com a velocidade do seu

progresso. No entanto, as expressões nos rostos da tripulação diziam que não era suficiente. Queeles estavam indo em direção a um desastre que os teria ou afogados ou capturados, o queequivaleria à mesma coisa.

E não havia nada que ela pudesse fazer para salvá-los. Mesmo se pulasse no mar, o navioficaria preso. Serin e seu pai nunca os deixariam sair livres.

Batendo os punhos no parapeito, Lara rosnou em uma fúria sem palavras, desesperoesculpindo seu interior vazio. Apesar de tudo, seu pai ia vencer.

A mão de Aren pegou a dela. — O vento - ele sopra ao redor da colina e através da aberturano quebra-mar. Se programarmos isso da maneira correta, pode funcionar.

— O que pode funcionar? — A corrente estava perigosamente próxima.— Você vai ver. — Ele lançou um sorriso sombrio para ela. — Segure o corrimão e, pelo

amor de Deus, não solte! — Então ele largou a mão dela e soltou o leme.Enquanto ele fazia isso, uma enorme rajada de vento os atingiu. O cordame gemeu, cordas,

madeira e lona esticando, à beira de estalos, e o navio estava prestes a tombar. Mais e mais e

Lara berrou, agarrando-se ao que podia, certa de que o navio iria virar.O navio estremeceu, um alto som de raspagem enchendo os ouvidos de Lara enquanto a

corrente se arrastava pelo lado do porto. O barulho era horrível, a madeira lascava e estalava, avelocidade diminuindo quando o vento diminuiu, o navio se endireitando lentamente.

— Vamos lá! — Aren gritou enquanto Lara encarava os soldados que controlavam as torresdo quebra-mar, os olhos arregalados de espanto.

Então eles passaram.Recuperando o equilíbrio, Lara tropeçou para o lado do navio para olhar para trás. Flechas

chovendo por seu rastro, disparadas mais por desespero do que por qualquer chance de atingir oalvo. Nem, ela pensou, eles arriscariam as catapultas montadas nas colinas. Seu pai queria quefossem capturados, não mortos. Os navios Maridrinianos estavam amontoados atrás da correnteagora totalmente elevada, os capitães gritando com os que estavam nas torres.

— Levará algum tempo para que a corrente troque de lado. Eles podem nos perseguir atéSouthwatch. — Os olhos de Aren se voltaram para as nuvens negras pairando sobre o oceanoescuro, prometendo mares selvagens. — A corrida começou.

3 1

LARA

OS NAVIOS DA FROTA DESISTIRAM DA PERSEGUIÇÃO A MEIO CAMINHO DE SOUTHWATCH, SE ERA

por medo da tempestade que se formava no leste ou pela dúzia de destruidores de navios na ilhafortificada, era impossível dizer.

Ancorar o navio no cais de Southwatch não era tarefa fácil. Todo o corpo de Lara doía com atensão enquanto Aren afastava o navio contra a pedra. Ela, Aren e o resto da tripulaçãodesembarcaram rapidamente, encontrando um homem Ithicano mais velho na guarita montadaonde o cais encontrava a ilha.

— Nós não percebemos que você estava em Vencia, Vossa Excelência. — O homem curvou-se com mais formalidade do que qualquer um em Midwatch já mostrou. Seu olhar passou por seuRei para pousar em Lara, seus olhos se arregalando ao inclinar a cabeça para ela.

— Viagem não planejada. Onde está a comandante?A voz de Aren estava nítida e inabalável, mas sua mão esquerda se apertava e abria em um

movimento repetitivo que o traía. Ele não estava ansioso para se explicar à irmã, isso era certo.— Fora da ilha, Vossa Excelência. Ela saiu essa manhã para lidar com um conflito na Ilha

Carin, e espero que ela tenha que enfrentar essa tempestade por lá.A mão de Aren relaxou. — Diga a ela que sinto muito por não a ter visto, porém não

podemos ficar. Tire tudo que for importante do navio e o afunde.— Como você quiser, Vossa Excelência. — Curvando-se mais uma vez, o homem continuou

descendo em direção ao navio, gritando ordens enquanto ia.Lara lançou um olhar para trás para o navio danificado. — Por que afundar? Você não pode

apenas... repintar?— Não há tempo para devolvê-lo ao porto seguro antes que essa tempestade comece. O mar

o destruirá e o afundará de qualquer maneira se o deixarmos aqui, o que poderia causarproblemas para outros navios que tentarão chegar ao porto. Ahnna cortará minhas bolas se tiverque limpar esse tipo de bagunça.

— Tenho a impressão de que ela estará com a faca às mãos de qualquer maneira quandodescobrir onde você esteve.

Ele riu, sua mão caindo contra as costas dela para guiá-la pelo caminho. — Então que umpouco de sorte esteja ao nosso lado por sentirmos a falta dela.

— Ela vai deixar pra lá?— Sem chance, mas espero que não tenha vontade de nos seguir até Midwatch para expressar

sua opinião sobre o assunto.— Essa sua coragem é inspiradora.

— Todos nós temos nossos medos. Agora vamos entrar antes que a chuva caia.

Eles não permaneceram no mercado de Southwatch, o que teria sido uma decepção para Lara senão estivesse queimando com a urgência de voltar para Midwatch. O mercado era uma série degrandes armazéns de pedra, além de um prédio menor, o qual Taryn disse que era onde todo ocomércio era ministrado. Ela ansiava por ver o que havia dentro desses edifícios, que tipo demercadoria vinha de Harendell, Amarid e mais além, e o que era despachado de sua própria terranatal. Assim como ela agora ansiava para conversar com os Ithicanos que moravam etrabalhavam aqui em Southwatch. Para entendê-los de uma maneira que, já que não eranecessário, ela não se permitiu antes.

Porque agora eles eram tão seu povo quanto os Maridrinianos que deixou para trás. Na linhadessa percepção, veio uma profunda e incessante vergonha de que ela, que era sua Rainha equem eles acreditavam ser sua defensora, quase os tivesse colocado na pira funerária. Homens,mulheres e crianças. Famílias e amigos. A maioria dos inocentes dedicados a nada mais do queviver suas vidas - essas pessoas, tanto quanto Aren, seriam as pessoas que ela teria traído se suaspalavras tivessem alcançado Serin e seu pai.

Com esse conhecimento queimando em seu coração, ela ficou feliz quando Aren e seusguardas a levaram para a grande entrada negra da ponte.

A Ponte. Como ela odiava essa coisa amaldiçoada que era a fonte de todo o desespero em suavida. A cada passo que dava por sua extensão fedorenta, ela desejava que isso não existisse.Desejava ter sido enviada para Ithicana sem nenhuma obrigação além de ser esposa. Desejavaque não fosse uma perversa mentirosa traidora de si mesma. Mas os desejos eram para tolos. Oque talvez fosse adequado, porque seu eu-tola perdia toda a compreensão lógica sempre que suamanga roçava a de Aren, toda vez que o olhar dele caía sobre ela, toda vez que ela se lembravada sensação das mãos dele em seu corpo e quanto as desejava lá novamente.

Não havia dia ou noite na ponte. Apenas uma escuridão sem fim com cheiro de mofo. Atempestade produzia um som lamuriante dentro do túnel, às vezes pouco mais que um sussurro,outras vezes um rugido ensurdecedor que forçava o grupo a enfiar algodão nos ouvidos. Eracomo uma fera viva e, no final do primeiro dia de caminhada, Lara estava meio convencida deque foi engolida viva.

Ela não podia ficar em Ithicana, mesmo que quisesse. E ela queria. Mais do que tudo. Porém,todo o seu relacionamento com Aren foi construído com uma mentira e, se ela lhe dissesse averdade, quais eram as chances dele a perdoar? Ele amava demais o seu povo para permitir quealguém como ela permanecesse como sua Rainha. Nem manter isso em segredo era uma opção.Seu pai a faria pagar por sua traição. Não haveria um feliz para sempre. Não para ela.

Relutantemente, um plano se formou na mente de Lara. Sua primeira obrigação seria destruiros papéis com sua invasão planejada. Então, esperaria uma noite com céus limpos e correria parasua canoa escondida com suprimentos. Tudo o que restaria seria navegar em direção à vingança.Porque ela pretendia fazer com que o pai pagasse pelo que havia feito com Maridrina. O que elepretendia fazer com Ithicana. E o que fez com ela. Entender as variáveis a distraiu. Afastou oaperto no peito de toda vez que ela percebia que nunca mais veria Aren.

De tempos em tempos, encontravam grupos transportando mercadorias. Burros cansadospuxavam carrinhos cheios de aço, tecidos e grãos para o sul. Homens com carrinhos de mãotransportavam caixas de vidraçaria valcottana para o norte. E uma vez, depois de seguirem uma

corrente de cerveja derramada por vários quilômetros, passaram por uma carroça cheia de barrisem direção ao norte. Jor, de brincadeira, colocou a cabeça sob o cano vazado até Aren chutarseus pés, e então informar ao homem que dirigia a carroça para parar de fazer bagunça em suaponte.

Às vezes havia comerciantes nas caravanas, mas sempre eram acompanhados por guardasIthicanos mascarados. Antes de passar por qualquer um deles, seu próprio grupo vestia máscarasparecidas, e Lara imaginou o que os comerciantes pensariam se soubessem que passaram pelosos governantes de Ithicana na escuridão.

Acamparam na ponte duas noites seguidas, comendo rações frias que pegaram emSouthwatch com apenas água para beber. Os guardas tomavam turnos rotativos de vigia, todosdormindo apenas com a mochila como travesseiro e a capa como cobertor. A privacidade erainexistente e, no terceiro dia de caminhada, Lara estava quase enlouquecida por poder sair dolocal.

— Lar doce lar — disse Jor, e o resto do grupo parou, observando silenciosamente enquantoo capitão descansava as duas mãos contra pontos de pressão na parede da ponte. O som de umclique suave encheu o ar, e um bloco de pedra do tamanho de uma porta abriu para dentro emdobradiças silenciosas, revelando uma pequena câmara com uma abertura no chão.

Jor entrou e olhou para baixo. — A maré ainda está alta demais. Teremos que esperar umpouco.

— Levarei Lara para cima. — afirmou Aren abruptamente. — O resto de vocês esperam aquiem baixo.

Ninguém disse nada, Taryn e Jor silenciosamente abrindo a escotilha no teto. Aren levantouLara e depois se arrastou para fora. Deixando a escotilha aberta, ele caminhou vários passos pelocomprimento da ponte. Lara o seguiu, parando ao lado de um dos grossos anéis de aço embutidosna rocha que os Ithicanos usavam para a tirolesa.

A tempestade não se estendera, terminando no segundo dia na ponte, embora outra estivessese formando no horizonte. Por enquanto, o céu ao redor de Midwatch estava limpo e ensolarado,a água abaixo em um tranquilo azul. O ar fresco e o espaço aberto aliviaram instantaneamente acortina opressiva que a ponte tinha descido.

— Nós precisamos conversar, Lara.Seu coração disparou, suas veias inundando de ansiedade.— Eu sei que você é uma espiã do seu pai.Seu estômago ficou vazio. — Eu era espiã do meu pai. Já não sou mais.— Vou precisar de mais provas do que apenas a sua palavra.— A prova é que estou aqui. Com você.Silêncio.Quando os nervos de Lara estavam em frangalhos, perguntou: — Você não vai dizer nada?Aren se virou para encarar Midwatch, a tensão irradiando dele. — Suponho que uma

pergunta seja óbvia: você passou alguma informação para ele que eu deveria saber?— Eu não disse nada a ele. — Porque não tinha. Nem uma única coisa. Não com todos

aqueles malditos pedaços de papel ainda na mesa dele, esperando que ela os destruísse.Ele exalou um longo suspiro. — Suponho que seja alguma coisa.Alguma coisa.A necessidade para ele saber o motivo por trás de suas ações queimou no peito de Lara. —

Serin e meus outros professores, mentiram para mim. Durante toda a minha vida, eles mentiramsobre a natureza de Ithicana, sobre o relacionamento entre seu Reino e o meu. Eles o pintaram

como um opressor sombrio que usava seu poder sobre o comércio para suprimir meu povo. Paracontrolá-los. Para morrer de fome. Tudo por uma questão de lucro. Eles me disseram que vocêmatou comerciantes e marinheiros por nenhuma outra razão além chegar muito perto de suascostas. Não apenas mortos, mas mutilados e torturados por esporte. Que você era um demônio.

Aren não disse nada, então ela continuou. — Eles me fizeram acreditar que isso salvaria meupovo. Que isso era justo. Agora entendo que é por isso que me mantiveram trancada nocomplexo - para que eu nunca descobrisse a verdade. E eles acreditavam que você me manteriaigualmente resguardada, para que eu não tivesse chance de aprender a verdade até que fossetarde demais.

— E qual é a verdade?Qual era a verdade? Lara não tinha ilusões de que era uma boa pessoa do mesmo jeito que

alguém como Marisol. Ela havia matado guerreiros valcottanos trazidos para seu complexo pornenhuma outra razão além da necessidade de escolher entre sua vida ou a deles. Aprenderainúmeras maneiras de torturar, mutilar e matar. Ela não reagiu enquanto criados que cuidavamdela e de suas irmãs desde que eram crianças eram assassinados a sangue frio. Tinha assistidoenquanto o homem que tinha sido como um pai cortou sua própria garganta pela culpaequivocada. Ela tinha mentido e enganado e manipulado, e quase condenou uma nação inteira.Boa ela não era.

No entanto, ela também não acreditava que era má. Ela tinha se condenado a esse destinopara salvar a vida de suas irmãs, a quem amava acima de tudo. E uma vez aqui, seguiu com suamissão na crença de que estava salvando seu povo. Motivações nobres, talvez, no entanto ela nãoestava inteiramente certa de que a absolviam da culpa. Sabendo o que aconteceria com Ithicana,ainda havia escrito instruções sobre como destruí-la. Ela fez essa escolha. Tudo o que podia fazeragora era tentar reparar. — A verdade é... a verdade é que eu sou a vilã. — Mas ela não fariamais esse papel.

Mais silêncio.— O que você vai fazer comigo? — ela perguntou.— Eu não sei, Lara. — Com suas palavras, a tensão entre eles aumentou. — Eu... suspeitava

há algum tempo, mas ouvindo você dizer isso... Eu não sei.Um medo frenético vibrou em seu peito. Um medo de que ela o tivesse perdido. Que ele a

odiava. Que ele nunca a perdoaria.— Eu não dei nada a ele, Aren. — Ela queria desesperadamente salvar o que restava entre

eles. — Eu não fiz nada.— Não fez nada? — Ele se virou para encará-la. — Como você pode declarar isso? Como

você pode dizer que não fez nada quando, desde o momento em que nos casamos, planejava meesfaquear pelas costas? Tudo o que você disse, tudo o que fez, tudo entre nós foi uma mentiramaldita. Uma maneira de me manipular para confiar em você, para que pudesse aprender ossegredos de Ithicana e depois usá-los contra nós. Enquanto eu, como um maldito idiota, estavatentando conquistar você.

Era a verdade, mas não era o todo. Porque durante esse tempo, ela começou a se preocuparcom ele e seu Reino, a entender sua situação, e ainda assim escolheu destruí-los. Tinha escritotodos os detalhes que aprendeu nessas páginas, uma estratégia para invadir a terra natal de Arene roubar a ponte que seu povo precisava desesperadamente. Foi apenas pura sorte que umadessas páginas não tivesse chegado às mãos de seu pai.

— Você se importou? — Ele demandou.— Sim. Mais do que você sabe. Mais do que posso explicar. — Ela empurrou o cabelo que

tinha soprado em seu rosto, tentando encontrar palavras para fazê-lo entender. — Mas não acheique houvesse outro jeito. Eu acreditava que a única chance que meu povo tinha era que ganhassea ponte para eles. Toda a minha vida foi dedicada a dar-lhes um futuro melhor, não importando ocusto para mim. Certamente você, de todas as pessoas, pode entender isso?

— Não é o mesmo. — Sua voz estava fria. — O futuro melhor que você imaginou foiconstruído nas costas de cadáveres Ithicanos.

Lara fechou os olhos. — Então por que você não me matou depois que soube? Por que vocême trouxe para Vencia, se você suspeitava? Por que você arriscou tanto?

Aren roçou a bota contra a ponte, olhando para Midwatch. — Eu percebi que você tinha sidoenganada. E se a verdade nos desse uma chance, era um risco que eu estava disposto a correr. —Ele soltou um suspiro irregular. — Eu te segui naquela noite quando você caminhou até osportões do palácio. Eu apontei uma flecha nas suas costas e eu... Eu quase te matei. Se vocêdesse mais um passo, eu mataria. — Suas mãos tremiam, o oscilar do movimento prendendo suaatenção como um vício. — Mas então você se virou e voltou. De volta para mim.

— Eu não poderia fazer isso. — Lara fechou as mãos sobre as dele, precisando impedi-las detremer. — E eu não vou. Nunca. Nem que ele me encontre e me mate por traí-lo.

Aren ficou muito quieto. — Ele te ameaçou?Ela engoliu em seco. — Ele me disse no navio para Ithicana que se eu falhasse ou se eu o

traísse, ele me caçaria.— Se ele pensa...Um barulho de briga o interrompeu, fazendo os dois pularem. Segundos depois, com um

xingamento murmurado, Ahnna saiu da escotilha, o rosto como uma nuvem de tempestade.Aren parou na frente de Lara, caminhando em direção a Ahnna, enquanto sua irmã fechava a

distância com passos rápidos.— O que diabos você estava pensando? — Ahnna estalou. — Indo para Maridrina por si

mesmo? Você perdeu a maldita cabeça?— Já fui dezenas de vezes antes. E daí?— Como um Rei você não foi. Você tem uma responsabilidade para com o nosso povo.

Além disso, você quase foi pego. O que diabos teria acontecido se você tivesse sido?— Então você teria sua chance na coroa.— Você acha que é isso que eu quero? — Os olhos dela passaram pelo irmão, aterrissando

em Lara. — E aí está a pior parte. Já era ruim o suficiente você ter ido, mas levou a filha denosso inimigo, a mulher que, se todos os rumores forem verdadeiros, você está contando todos ossegredos de Ithicana, de volta à sua terra natal?

— Levei minha esposa para sua terra natal por razões que não são da sua conta.O rosto de Ahnna assumiu uma palidez horripilante, mas ela cerrou os punhos e, por um

piscar de olhos, Lara pensou que iria bater no irmão. Bater em seu Rei. Mas tudo o que disse foi:— Não há razão boa o suficiente. Ela sabe o suficiente para permitir que Maridrinia nos tenha napalma da mão, e você praticamente a entregou ao Rei. Ela poderia ter corrido direto para osbraços de Magpie

— Ela não correu.— Mas e se tivesse corrido? Este não era o plano. Você deveria...— Eu deveria o quê? — Aren pulou para frente, pairando sobre sua irmã. — Mantê-la

trancada aqui para sempre? Ela é minha maldita esposa, não minha prisioneira.— Esposa? Apenas no nome, pelo que ouvi. E não pense que todo mundo não percebe que

você está arriscando todo o seu Reino apenas para ficar entre as pernas dela.

Ninguém falou. Nem Aren ou Ahnna. Nem os soldados que haviam chegado ao topo e agoraestavam olhando para qualquer lugar, menos para seus líderes. E nem Lara, cujo coração pareciaprestes a explodir em seu peito. Porque os medos de Ahnna eram válidos. No entanto, Aren aestava defendendo. Apesar de saber que ela viera para Ithicana com más intenções, ele defendiao direito dela a uma vida. O direito dela a uma casa. O direito dela à liberdade. E ela não mereciaisso. Não o merecia.

Antes que Lara pudesse pensar nas consequências do que pretendia dizer, ela se adiantou,suas botas deslizando na superfície lisa da ponte. — Ahnna...

— Fique fora disso. — Sem olhar, a outra mulher balançou um braço para bloquear ocaminho de Lara.

O golpe atingiu Lara no peito e tropeçou para trás, os pés procurando o chão.Ela estava caindo.— Lara! — Aren a alcançou, mas era tarde demais.Ela gritou, os braços agitando quando o ar passou por ela, mas não havia nada para agarrar.

Nada que parasse o inevitável.Ela bateu contra a água, o impacto expulsando o ar de dentro dela em uma confusão de

bolhas, enquanto mergulhava cada vez mais para baixo.O pânico correu através dela, selvagem e sem controle, e logo depois veio a necessidade

desesperada de respirar. Ela chutou, agitando os braços, lutando em direção à superfície queparecia impossivelmente distante.

Você não vai morrer.Você não vai morrer.Você não vai... O pensamento desapareceu e a luz da superfície começou a escurecer quando

afundou nas profundezas.Até que algo a agarrou pela cintura.Lara lutou, procurando cegamente sua faca até que seu rosto ultrapassou a superfície e Aren

estava gritando em seu ouvido: — Respire, Lara!Ela sugou um bocado desesperado de ar. E outro. Uma onda rolou sobre sua cabeça, e o

medo a encheu de novo.Puxando e agarrando, ela tentou subir. Tentou ficar acima da água.Então o rosto de Aren estava na frente dela. — Pare de lutar comigo. Eu peguei você, mas

você precisa ficar quieta.Foi um pedido impossível. Ela estava se afogando. Estava morrendo.— Eu preciso que você confie em mim! — A voz dele estava desesperada e, de alguma

forma, cortou seu medo. Trouxe de volta para si mesma. Ela parou de lutar com ele.— Boa. Agora me segure e não se mexa.Agarrando seus ombros, Lara forçou as pernas trêmulas a ficarem imóveis. Eles não estavam

bem embaixo da ponte, talvez a vinte metros do píer mais próximo: o estreito sem acesso àponte. E a costa...

— Podemos fazer isso? — perguntou, cuspindo um bocado de água enquanto outra onda aatingiu no rosto.

— Não.— O que nós fazemos? — Ela virou, olhando para a ponte. Ela podia ouvir os soldados

gritando, ver Jor pendurado do lado de uma corda, o dedo apontando para a água.— Pare de se mexer, Lara!Ela congelou. Porque naquele momento, viu o que Jor estava apontando. O que tinha a

atenção de Aren - e seu medo.Barbatanas cinzas cortavam a água.Circulando-os.Aproximando-se.— Temos que aguentar até que eles possam chegar até nós em um barco.Seus olhos saltaram para o píer distante, a abertura ainda escondida pela maré. Depois, para a

enseada onde dois barcos já estavam vindo. Não havia como eles chegarem a tempo.Como se para pontuar seu pensamento, um dos tubarões disparou na direção deles antes de se

desviar no último segundo.— Merda — Aren rosnou.As criaturas estavam nadando mais perto, e Lara chorou quando algo bateu em seu pé.Os soldados acima começaram a disparar flechas, os raios cortando a água ao redor deles, o

sangue brotando quando atingiram algo. Então, como um só, as barbatanas desapareceram.— Aren! — O grito de Ahnna ecoou de cima e, um segundo depois, uma barbatana enorme

cortou as ondas na direção deles.— Me deixe aqui — Lara tomou a decisão porque sabia que ele não iria. — Sem você, eu

vou me afogar. Mas se você me deixar, terá uma chance.— Não.— Não seja tolo. Nós dois não temos que morrer.— Quieta.Os olhos de Aren estavam fixos no tubarão em círculo. — Eu te conheço, velhota — ele

murmurou antes de olhar para cima. — Você sofrerá antes da morte vir de baixo.— Me deixe aqui!— Não.Lara se afastou dele, tentou nadar, mas Aren a arrastou de volta, nadando com força.

Puxando-a com ele.O tubarão disparou em direção a eles. Tão rápido. Rápido demais para desviar. Infinitamente

rápido demais para fugir nadando. O medo, primitivo e básico, tomou conta dela, e Lara gritou.— Agora!Uma flecha de aço presa a um cabo cortou o ar por cima, explodindo no lado do tubarão, mas

a criatura continuou vindo, como se o instinto de caçar importasse mais do que a ferida que haviasido aberta

Lara gritou de novo, engasgando com a água, observando-o se aproximar deles, a bocaabrindo para revelar fileiras e mais fileiras de dentes afiados.

O cabo preso ao alvo puxou.Em um movimento violento, o tubarão foi arrancado da água, seu corpo enorme se debatendo

no ar antes de bater contra o mar, lutando contra o cabo que o prendia à ponte.A água passou fortemente sobre a cabeça de Lara, e o rabo do tubarão bateu contra ela com a

força de um aríete, arrancando-a das mãos de Aren.Ela se debateu sem saber para que lado ficava o ar. Não sabendo onde estava o tubarão. Onde

Aren estava. Bolhas passaram em turbilhão por seu rosto, obscurecendo sua visão enquantochutava e lutava. Então as mãos se fecharam em seu pulso, puxando-a para a superfície.

— Nade! — Não era a voz de Aren, mas as dos soldados acima, a voz de Ahnna mais alta doque todas. — Todo o sangue está atraindo-os! Nade, sua infeliz!

Ele a arrastou pela água, as ondas cada vez mais fortes. E acima, o céu ficou mais escuro.Um raio brilhou a distância.

Aren parou de nadar.Ele estancou na água, sua respiração irregular com o esforço de segurar os dois.Lara viu o que ele estava olhando.O píer mais próximo, cheio de pontas de metal, o oceano batendo contra elas com a

ferocidade da tempestade que se aproximava.— Você precisa... agarrar... um dos espigões — ele ofegou. — Não se solte.E, sem esperar que ela respondesse, ele a arrastou em direção ao píer.As ondas os puxaram em um momento que não tinha mais volta, lançando ela e Aren na

pedra e no aço.Haveria uma chance. Apenas uma chance.Lara respirou fundo, marcando o espigão que alcançaria. O aço que seria sua salvação ou sua

condenação.Aren virou no último minuto, pegando o maior impacto. Lara se atrapalhou às cegas, sabendo

que tinha apenas um segundo.Sua mão se fechou no espigão enquanto sentia que Aren a soltava.Agarrar-se tomou toda sua força quando a água arrastou suas pernas, seus braços tremendo

com o esforço. Por um momento, seu corpo ficou fora da água, depois as ondas bateram nelanovamente. Ela se agarrou ao metal, conseguindo passar as pernas por cima e ao redor,respirando enquanto a água recuava novamente.

— Aren! — Ela procurou na água por ele, o terror enchendo seu coração.— Aqui!Ele estava pendurado no espigão que estava atado na rocha. Mas ele não aguentaria mais por

muito tempo.A água os atingiu novamente, e, acima do barulho, Lara ouviu o nome dela. Olhando para

cima, viu Ahnna pendurada em uma corda acima, outra corda na mão. Ela balançou na direçãode Lara. — Segure!

A corda pesada passou e Lara se esticava para alcançar, quase perdendo o controle enquantofazia. De novo e de novo a corda passou por ela, mas não conseguiu alcançá-la.

E Aren estava ficando sem tempo.Então, quando a corda passou mais uma vez, Lara se lançou, sabendo que, se não pegasse,

cairia na água e que Aren estava longe demais para ajudá-la. Porém ele tentaria de qualquermaneira.

Seu equilíbrio vacilou, seus dedos alcançando, agarrando e segurando a corda.As pernas de Lara escorregaram e estava balançando. Silenciosamente agradecendo a Erik

por todas as flexões que a forçou a fazer durante o treinamento, ela se levantou, prendendo o laçosob as axilas.

Balançando com força, ela pegou o espigão e se arrastou mão após mão em direção a Aren,mal mantendo o controle enquanto a água subia contra ela, afogando-a a cada passo.

— Agarre-se a mim — ela gritou mesmo quando uma onda a libertou de seu poleiro.Ela balançou e bateu contra Aren. Instinto a fez envolver as pernas em volta da sua cintura,

seus braços protestando enquanto o peso dele a arrastava. Então ele estava estendendo a mão esegurando a corda.

O mar bateu contra eles mais uma vez, empurrando os dois contra a rocha, e Lara engasgou esoluçou, sabendo que não aguentaria mais. Sabendo que mais uma onda a soltaria.

E essa estava chegando, espuma voando em sua direção. Pouco antes da onda alcançá-los, acorda tremeu e estavam subindo. Cada vez mais rápido. Eles giraram e rodopiavam, Aren se

erguendo de modo que as pernas dela, ainda enroladas ao seu redor, aliviassem a pressão dosbraços dela.

— Não se solte. — O sangue escorria por um corte em sua têmpora. — Você não vai sesoltar.

Eles colidiram contra a lateral da ponte, e Lara choramingou quando foi arrastada ao longoda rocha, mas a dor deu lugar a alívio quando mãos agarraram sua roupa, puxando-a para cima,deitando-a na superfície sólida da ponte. Ofegando, ela rolou de lado, vomitando uma quantidadesem fim de água do mar até que só tinha força para descansar a testa na pedra molhada.

— Lara. — Os braços a puxaram para cima, e ela se virou apenas para desabar no peito deAren, agarrando-se ao pescoço dele. Ele estava tremendo, mas a sensação dele contra ela eramais confortável do que a terra parada sob seus pés.

Ninguém falou. Ela sabia que havia homens e mulheres ao seu redor, mas era como seestivesse sozinha com ele, a chuva da tempestade batendo contra sua bochecha.

— Aren? — A voz de Ahnna quebrou o silêncio, o distante som do trovão ecoando seunome. — Eu não quis fazer... Isso foi...

Lara o sentiu endurecer, sentiu a raiva mesmo quando dizia, com a voz fria: — Volte paraSouthwatch, comandante. E se eu vir seu rosto antes da Maré da Guerra, tenha certeza de quenão hesitarei em cumprir o contrato de Ithicana com Harendell.

Lara virou-se a tempo de ver Ahnna estremecer como se tivesse levado um tapa. — Sim,Vossa Majestade. — Sem outra palavra, ela se afastou, seus soldados seguindo em seuscalcanhares.

Levantando-se com as pernas trêmulas, Aren puxou Lara com ele. — Precisamos voltar paraMidwatch. A tempestade está chegando.

Mas quando seu coração bateu dentro do peito, Lara soube que ele estava errado.A tempestade já tinha chegado.

3 2

AREN

TIRANDO AS BOTAS QUE HAVIA PEGADO EMPRESTADO NO QUARTEL, AREN LENTAMENTE TIROU A

roupa encharcada e rasgada, deixando-a em uma pilha no chão enquanto passava pelo quartoescuro até o guarda-roupa para pegar calças secas. As persianas batiam contra as janelas quandoo vento atacava, a chuva tamborilava furiosamente contra o telhado, tudo abafado por rajadas detrovão que sacudiram a casa até seu núcleo. O ar estava cheio do cheiro forte e fresco de ozônio,misturando-se com o sempre presente perfume de terra úmida e vegetação que ele associava àsua casa.

Boom. O chão sob seus pés reverberou, a pressão mudando enquanto o tufão descia comforça total. Era uma besta em forma de tempestade - do tipo que deu o nome aos Mares deTempestade. Com ventos tão selvagens e ferozes que pareciam quase conscientes, essatempestade deixaria faixas de destruição em seu rastro, e qualquer pessoa ou qualquer coisapresa na água seria varrida da face da terra. Ithicana fora construída para suportar o pior que omar e o céu podiam desencadear, e de fato era apenas durante essas tempestades que Arenrealmente respirava fundo, certo de que seu Reino estava a salvo de seus inimigos.

Mas não essa noite.Expirando, ele descansou a mão contra a coluna de sua cama, procurando algum senso de

equilíbrio, mas era uma causa perdida. Como tantas outras coisas.Lara não disse uma palavra desde que eles foram puxados do mar. Ele não podia culpá-la.

Ela quase se afogou. Quase foi comida viva. Quase bateu contra a rocha. Ela não tinha surtadocompletamente, o que deveria ter sido um pequeno milagre, exceto que teria preferido isso aosilêncio sem emoção.

O rosto empalideceu de tal forma que seus lábios estavam cinzentos, Lara seguiu entorpecidaonde era levada, os braços flácidos em suas mãos enquanto era examinada por ferimentos.Nenhum sinal de seu humor seco ou da língua venenosa que ele tanto amava quanto odiava.Apenas... Nada.

Fechando os olhos, Aren descansou a testa contra o pilar da cama, porque a outra opção erarasgá-la e esmagá-la contra a parede. A fúria, desenfreada e ardente, correu por suas veias. PorAhnna. Pela ponte. Por si mesmo.

Um som mais animal que humano subiu em sua garganta e, em uma onda de movimento, eletorceu e bateu com o punho contra a parede. A dor floresceu em seus dedos, e se agachou,querendo explodir, querendo correr. Sabendo que nada disso seria bom.

Boom. A casa estremeceu e seus pensamentos foram para a carta do Rei rato, enfiada em suabolsa, onde quer que fosse. O ultimato era claro: aliado de Maridrina contra Valcotta ou

enfrentando guerras e bloqueios como os que Maridrina impuseram quinze anos antes,melhorados apenas com a assinatura do tratado.

Foram os tempos mais sombrios. Maridrina tinha impedido que alguém desembarcasse emSouthwatch por dois anos, fechando completamente o comércio. Nada foi transportado pelaponte e as receitas de Ithicana secaram completamente. Sem elas, não havia como alimentar seupovo. Para mantê-los com provisões. Para mantê-los vivos. Não com tempestades violentas quelevam pescadores dos mares mais vezes do que tinham lucro. A fome varreu Ithicana. Pragatambém. E a ideia de voltar a isso...

A alternativa era se juntar a um homem que estava conspirando contra ele da pior maneirapossível. Para entrar em uma guerra da qual não queria participar. Era profundamente tentadoraliar-se formalmente a Valcotta por despeito. Os cofres de Ithicana eram fortes o suficiente paracomprar o que o Reino precisava por um ano ou mais, sem receita adicional da ponte. Entre osdestruidores de navios de Southwatch e a força das frotas de Valcotta, o exército de Silas nãoteriam chance.

No entanto, tal ação colocaria todo o sofrimento no povo de Maridrina. O povo de Lara.Condená-los à fome faria dele o vilão que Magpie havia pintado. Aren se tornaria o homem

que Lara havia sido criada para odiar. Porém, ceder ao pedido do pai dela significaria arriscarIthicana para quando Valcotta viesse em busca de vingança. Não havia solução.

A voz de seu pai dançou pela cabeça de Aren, palavras gritadas para sua mãe. Ithicana nãofaz alianças. Somos neutros - temos que ser, ou a guerra virá para nós. Mas, assim como suamãe, Aren agora acreditava que o tempo da neutralidade havia chegado ao fim. Exceto que haviauma diferença entre desejar uma aliança e permitir que seus termos fossem ditados por outrohomem.

Aren vacilou, então em dois passos, ele estava em sua mesa. Abrindo o compartimentoescondido, Aren extraiu a carta para Silas que começara a alguns meses atrás. Encarando asaudação educada e os honoríficos apropriados, ele empurrou a página de lado, pegando umnovo papel.

Silas,

Ithicana não cessará o comércio com Valcotta. Se você deseja acabar com a agressão naval, sugiro que desistade seus ataques à fronteira norte de Valcotta. Somente com a paz entre as duas nações Maridrina tem a chancede voltar à saúde e prosperidade. Quanto à sua insinuação de que Ithicana não manteve o espírito do acordoentre nossas nações, consideramos necessário ressaltar sua hipocrisia ao fazer tal afirmação. No melhor dasintenções para nossos povos, perdoaremos seus planos e permitiremos que Maridrina continue a negociar nomercado Southwatch nos termos feitos no acordo. Entretanto, que seja dito, se você tentar matar sua espiã,Ithicana tomará como um ato de agressão contra sua Rainha e a aliança entre nossos Reinos seráirrevogavelmente desfeita.

Escolha sabiamente.

Aren

Ele olhou para a carta, sabendo que nunca poderia contar a Lara o que havia escrito. A vidadela tinha sido dedicada a mitigar a situação do seu povo, e ela não o perdoaria por ameaçaressas mesmas pessoas para protegê-la. No entanto, não havia outra maneira de garantir que Silas

não a machucasse. Deus o ajude se ele for forçado a seguir adiante.Levantando-se, Aren saiu pelo corredor, caminhando até encontrar Eli.— Leve isso para o quartel quando a tempestade diminuir. Diga a Jor que deve ser enviada

imediatamente ao Rei de Maridrina.Voltando para seus aposentos, Aren abriu a porta do pátio. E saiu para a tempestade.

3 3

LARA

LARA CAIU DE JOELHOS COM UM BAQUE, A FACA AGARRADA EM UMA MÃO. ESCURIDÃO A

envolvia. Um trovão ecoou pela sala, seguido por dois relâmpagos que iluminaram levemente ocontorno de uma janela. O piso de madeira embaixo dela era liso e polido, e o ar estava densocom a umidade e o cheiro de terra da selva.

Lágrimas quentes escorriam por seu rosto e ela limpava-as das bochechas. No momento emque voltou para Midwatch, ela pretendia encontrar o caminho para o quarto de Aren para destruira prova condenável de sua traição antes que pudesse piorar mais ainda. Fazer isso sem que elesoubesse, porque nunca poderia deixá-lo ler essas palavras.

Uma coisa era ele saber que tinha mentido para ele. Manipulado ele. Enganado ele. Outrocoisa era ler a prova disso. Ele ver que cada momento o qual acreditava que uma conexão estavacrescendo entre os dois tinha sido uma estratégia para obter as informações que ela precisava.Que, depois de tudo o que tinham passado, ela ainda havia escolhido destruí-lo naquela noitefatídica em que a beijara na lama.

Era imperdoável a quantidade de mágoa que o faria ler... Ela não podia deixar isso acontecer.Não quando apenas destruir as páginas eliminaria todas as evidências. Seu plano era drogarlevemente Aren no jantar, depois entrar furtivamente em seu quarto e acender uma pequenafogueira em sua mesa, que poderia ser facilmente atribuída a uma vela deixada muito perto deum pedaço de papel. Ela poderia então alegar ter cheirado a fumaça, com seus gritos e batidas naporta sendo o suficiente para acordá-lo e alertar a equipe. Entre as chamas e a água que seriamnecessárias para apagá-las, todos os artigos de papelaria com sua mensagem invisível seriamarruinados além do uso. Era um plano perigoso e prejudicial, mas ela preferia queimar a casa deMidwatch às cinzas do que arriscar Aren questionar por que todos os artigos de papelaria deledesapareceram misteriosamente.

Porém, enquanto Lara esperava a hora do jantar, a exaustão tomou conta e adormeceu noslençóis limpos e macios da cama. Agora os aromas do jantar passavam por baixo da porta e elanão estava nem um pouco preparada.

— Você pode consertar isso — murmurou, ficando de pé. Vestindo um de seus vestidos deseda Maridrinianos e passando uma escova pelos cabelos, a mente de Lara a mil enquantoenfiava um frasco de narcótico em sua pulseira. No corredor, ela correu em direção à sala dejantar fechada, certa de que encontraria Aren lá. Ele não era daqueles que negligenciavam oestômago.

Mas lá havia apenas Eli, que a encarava — Nós pensávamos que você gostaria de jantar noseu quarto, minha senhora — disse ele. — Deseja comer aqui em vez disso?

— Obrigada, mas não estou com fome. Você sabe onde ele está? — Havia apenas um elenesta casa.

— No quarto dele, minha senhora. Ele não quis jantar.A lógica e seu treinamento sussurravam que deveria esperar por mais uma noite. Outra

oportunidade. Melhor fazer isso do que correr o risco de ser pega. No entanto, Lara se viucorrendo pelo corredor ao quarto de Aren, com os pés descalços silenciosos no chão frio.

Ela bateu na porta e esperou. Sem resposta.Ela tentou a maçaneta e, pela primeira vez, a encontrou destrancada. — Aren?Aren não estava à vista. Essa era a sua chance. Ela poderia fingir que encontrou o fogo já

queimando.Fechando a porta, Lara correu para a mesa pesada, imediatamente espiando a caixa de

papelaria aberta. E o começo de uma carta escrita para seu pai.Com o coração na garganta, Lara olhou para as poucas linhas de tinta seca endereçadas ao

seu pai. Como Aren podia suportar ser tão educado com o inimigo estava além de suacompreensão. Embora talvez não teve estômago para tal e, por isso, a carta não tinha sidoterminada.

Um ronronar chamou sua atenção e ela olhou para baixo quando o gato de Aren começou aenrolar seu corpo enorme entre suas pernas, quase a derrubando. Uma ideia, melhor e muitomenos prejudicial que um incêndio saltou em sua cabeça. — Desculpe por isso, Vitex. Maspreciso da sua ajuda.

Ela montou o plano, colocando a caixa de lado no chão, depois respingando a carta com tinta,deixando o frasco virado no resto das páginas para que ficassem encharcadas e inutilizáveis. Masnão antes de contar o maço. Vinte e cinco páginas em branco, mais a carta inacabada, vinte eseis.

Atraindo Vitex, ela coçou as orelhas dele, segurando gentilmente uma de suas patas eusando-a para fazer impressões de tinta. Percebendo o que ela estava fazendo, o gato sibilou e seafastou, deixando um rastro através da sala enquanto ele passava.

Todos os músculos de seu corpo se contraíram e, com um suspiro irregular, Lara caiu dejoelhos, encarando o que havia sido o clímax de todos os seus esforços. De todo o seutreinamento. Da sua vida. Lembrando como se sentiu da última vez que segurou aquelas páginas,acreditando que as palavras condenadoras que escrevera salvariam seu povo. Quão errada elaestava.

No entanto, mesmo com o apagamento delas, o peso que carregava em seus ombros desdeque descobrira a decepcionante verdade sobre o pai continuou. O que ela tinha feito... Erahorrível. O pior tipo de traição. Mas foi motivada por mentiras que encheram seus ouvidos porquase sua vida inteira. Entretanto, atacar o seu pai agora seria um ato movido pela verdade. Oque ela estava fazendo agora era por escolha própria.

E, mesmo sabendo que Lara havia pintado um alvo em suas costas e que os assassinos de seupai nunca parariam de caçá-la, pela primeira vez em sua vida se sentiu livre.

Levada por um estranho sexto sentido, ela entrou na antecâmara e abriu a porta do pátio, ovento a golpeando com a força de um gigante. Ao sair, se viu em um inferno de vento e chuva.

O ar soava como um grito enquanto circulava o pátio carregando folhas, galhos e chuva quemordiam seus braços nus e batiam em suas bochechas. A tempestade era ensurdecedora com suafúria, numerosos raios descendo pelo céu, trovões machucando seus tímpanos.

No meio dela estava Aren.Sem camisa e com os pés descalços, olhando para o céu, aparentemente indiferente à

tempestade que o rodeava. Ou do perigo em que ele estava.Um galho foi arrancado de uma árvores e atravessou o jardim, explodindo na lateral da casa.

— Aren! — Mas a tempestade abafou sua voz.Era impossível se manter em pé enquanto ela lutava para abrir caminho, derrubada várias

vezes por rajadas de vento que ameaçavam levantá-la no ar. Seu cabelo chicoteava em umfrenesi selvagem, cegando-a, mas nem por um batimento cardíaco considerou voltar. Selevantando nas pedras escorregadias, ela se lançou.

Os ventos morreram quando suas mãos se fecharam nos braços de Aren, como se o mundodesse um suspiro e relaxasse, os destroços caindo suavemente no chão e a chuva passandogentilmente contra sua pele.

— Lara?Soltando um suspiro irregular, ela levantou o rosto e encontrou Aren olhando para ela, sua

expressão confusa, como se não pudesse entender como ela estava diante dele.— Acabou? — ela perguntou, achando difícil respirar. E ainda mais difícil de pensar. — A

tempestade?— Não. Estamos no olho agora.O olho da tempestade. O peito dela se apertou. — O que você está fazendo aqui fora?Os músculos duros de seus antebraços flexionavam sob o aperto dela. — Eu precisava disso.Instintivamente, ela entendeu o que ele quis dizer. A maioria das pessoas buscava consolo do

perigo, mas para ele, o perigo era o consolo. A onda de adrenalina clareava a sua mente,arrancava a incerteza que atormentava todas as decisões que tomava como Rei. O medo de errar.As consequências disso. Na tempestade, ele conhecia seu caminho.

Ela entendeu, porque se sentia da mesma maneira. — Você poderia ter morrido hoje. Aofazer o que você fez.

— Você teria morrido se eu não tivesse feito isso.As mãos dele se fecharam em volta dos braços dela e, embora suas palmas estivessem

febrilmente quentes, Lara estremeceu. — Você poderia estar melhor se eu tivesse.Seu aperto aumentou. — Você honestamente acredita que poderia me perdoar se eu ficasse

parado e visse você se afogar?— Mas o que eu fiz...— Está no passado. Está para trás agora.Sua pulsação era um rugido surdo em seus ouvidos quando as palavras dele foram

assimiladas. Aren a perdoou. Em que parte do coração ele conseguiu isso, ela não entendia, masestava lá. O que ela queria mais do que tudo porém não tinha esperanças para desejar.

— Você quer deixar Ithicana? Porque, se é isso que você precisa para ser feliz, eu a colocareiem qualquer praia que desejar com tudo o que você precisar para criar uma vida própria.

Lara tinha planejado fugir. Os assassinos de seu pai logo a seguiriam e não acreditava quehouvesse algo a ganhar com a estadia. Um relacionamento entre os dois nunca teria chances -Aren inevitavelmente descobriria a verdade e nunca a perdoaria por isso.

Mas Aren sabia a verdade. E, apesar de tudo, ele a tinha perdoado. Agora… agora opensamento de dar as costas a este lugar, de dar as costas para ele, era o pior futuro que elapoderia imaginar.

— Você não pode me deixar sair de Ithicana. — Sua garganta estava apertada, e as palavrassaíram estranhas e ofegantes — Eu sei demais. Você estaria arriscando demais.

Seus olhos queimaram nos dela e nunca em sua vida ela se sentiu como se alguém tivesse avisto tão perfeitamente. — Eu posso deixar você ir, porque eu confio em você.

Ela não conseguia respirar.— Eu não quero ir. — As palavras eram uma verdade escavada nas profundezas de seu

coração. Ela não queria deixar Ithicana. Ela não queria deixá-lo. Ela queria ficar, lutar, suar esangrar por ele e por seu Reino cruel, selvagem e bonito.

A tempestade os cercou, observando, mas deixando-os intocados para o momento.As mãos de Aren se afrouxaram em seus braços e, por um terrível batimento cardíaco, ela

pensou que a deixaria ir. Que ele queria que ela fosse.Em vez disso, seus dedos traçaram a parte de trás de seus braços, o leve toque deixando rios

de sensação por seu rastro. Toques gentis para cima e para baixo, como se estivesse acalmandoalguma coisa selvagem que poderia morder.

Ou testando as águas.As mãos dele roçaram os lados dos seios dela e Lara exalou um suspiro suave quando os

polegares prenderam nas tiras do vestido, aliviando-os enquanto se curvava, os lábios roçandoum ombro nu. Depois o outro.

Um gemido escapou dela quando Aren afastou seus cabelos úmidos, expondo o pescoço ebeijando a clavícula, a garganta, a linha da mandíbula. Apenas o aperto dele no vestido delaimpediu que caísse e a deixasse nua diante dele.

Lara queria tocá-lo.Queria sentir sua pele macia esticada sobre os músculos duros, mas ela estava com medo,

porque sabia que isso seria sua ruína. Não haveria como voltar atrás.Os lábios de Aren fizeram uma pausa e ela prendeu a respiração, esperando que eles

descessem por conta própria, enquanto se perguntava se, caso ela se permitisse afundar nessapoça quente de desejo, voltaria à superfície novamente. Se iria querer.

Mas ele apenas descansou a testa na dela. — Eu preciso que você diga que quer isso, Lara.Que você está permitindo isso porque você escolheu, não porque isso foi imposto a você.

Seu peito ardia com uma emoção tão intensa que doía através dela. Ela se afastou para que seencarassem — Eu quero isso. — E porque não somou nada, acrescentou: — Eu quero você.

A tempestade voltou vingando quando os lábios deles se tocaram, mas Lara mal sentiu osventos quando Aren a levantou contra ele, as mãos segurando seus quadris enquanto ela envolviaas pernas em volta de sua cintura, os braços deslizando ao redor do pescoço dele. Sua bocaestava quente, sua língua escorregou contra a dela, a chuva encharcando sua pele enquanto acarregava através da tempestade e para o abrigo da casa.

Lá dentro, seus pés deslizaram sobre o azulejo molhado e bateram contra a parede,derrubando o que restava das prateleiras no chão. Ele se apoiou com as mãos em ambos os ladosdela, a respiração quente contra sua garganta enquanto Lara se apertava contra ele. Seuscalcanhares afundaram nas costas dele quando o puxou para mais perto, sem querer nada entreeles, mesmo quando o atrito do cinto contra ela trouxe um gemido de seus lábios.

As costas dela arquearam até que apenas a cabeça tocou a parede atrás, o vestido com a saiajá enrolada na cintura, foi puxado para baixo para expor a parte superior de seus seios. Ela sentiua respiração de Aren prender.

— Deus, você é linda — ele rosnou. — Incontrolável, com a língua venenosa e a mulhermais incrível em que já pus os olhos.

Suas palavras fizeram suas coxas ficarem escorregadias e ela ofegou. — Porta. Feche amaldita porta.

— Sim, Vossa Majestade. — Ele deslizou a língua na boca dela, provando-a, antes depermitir que deslizasse para o chão, a dureza dele pressionando contra seu estômago antes de

virar a chave na porta e silenciar a tempestade.Com o ferrolho travado, Aren andou em sua direção, seus olhos castanhos predadores,

sempre como caçador. Lara deu um passo para trás no quarto, desafiando-o a segui-la Atraindo-oporque ela não era e nunca seria a presa de ninguém. Suas panturrilhas atingiram a madeiramaciça de sua cama e ela o encarou, parando-o.

O uivo do vento estava abafado e, por cima dele, ela podia ouvi-lo respirar. Cada inspiração eexpiração aumentavam sua necessidade enquanto seus olhos percorriam o corpo dele, marcandoa maneira como os músculos de sua mandíbula se tensionavam enquanto a observava com ummesmo foco.

Alcançando cegamente a lamparina, Lara aumentou a chama e depois a colocou de lado, seusolhos nunca deixando os dele. Segurando o corpete encharcado do vestido, o decote grudado nosmamilos eriçados, ela lentamente retirou a seda do corpo, descartando a roupa no chão. Então sedeitou de costas para a cama, descansando o peso nos cotovelos. Com deliberada lentidão, Larapermitiu que seus joelhos se abrissem.

Ela observou o controle dele se perder, viu como ele se manteve firme por causa da força deseu olhar, o desejo aparente contra as calças encharcadas de chuva que era tudo o que usava. —Tire-as — ela ordenou, a risada baixa fazendo sua pele formigar com a necessidade de ter àsmãos dele mais uma vezes em si.

Ele soltou o cinto, enfiou os polegares sobre ela e as empurrou, o peso da faca ajudando aarrastar as calças para o chão, onde as chutou para o lado. Desta vez, foi a vez de Lara recuperaro fôlego enquanto observava o comprimento duro dele, porque quando o vira nu antes, não eraassim. Suas coxas tremiam com a necessidade de tê-lo, e ela assentiu uma vez.

Em três passos, ele cruzou o quarto, mas, em vez de prendê-la na cama, como ela pensaraque faria, ele caiu de joelhos diante dela. Ithicana - e seu Rei - não se curvaram a nada e aninguém. Mas ele se curvou para ela.

Aren beijou a parte interna do joelho esquerdo. Então o joelho direito, se demorando em umacicatriz antiga que subia até metade da parte interna da coxa. Suas mãos, ásperas com os calosconquistados na defesa de seu Reino, seguraram suas pernas. E, com ela tremendo sob seuaperto, ele abaixou o rosto e deslizou a língua dentro dela.

Seus quadris se contraíram, mas ele a segurou contra a cama, lambendo e chupando o ápicede suas coxas até que um gemido saiu de seus lábios. Ela caiu contra o lençol, as mãos oalcançando, puxando-o, mas ele apenas levantou a cabeça tempo suficiente para lhe dar umsorriso feroz antes de deslizar os dedos no lugar que sua língua havia acabado de estar.

As costas de Lara se arquearam e ela agarrou a beira da cama, o seu mundo se inclinandoenquanto ele acariciava seu interior, a boca dele a consumindo novamente, a pressão crescendoprofundamente em seu núcleo. Um relâmpago brilhou quando seus dentes a arranharam e omundo se despedaçou, sua visão se fragmentando quando ondas de prazer a inundaram até queela ficou ofegante e tremendo.

Aren não se moveu por um longo momento, então com uma ternura que partiu seu coração,ele beijou seu estômago antes de descansar sua bochecha contra ela, seus dedos emaranhados emseus cabelos.

Mas ela não terminou com ele. Nem ele com ela.Ele a escalou com a graça de uma pantera na caçada. Segurando suas mãos, ele colocou os

braços dela sobre a cabeça, os nós dos dedos cravando no colchão. Por um batimento cardíaco,ela resistiu, lutando contra a força muito superior do homem. E então seu corpo cedeu. Não paraele, mas para si mesma. Para o que queria. Sua vida havia sido gasta como um peão sem

vontades nas maquinações de seu pai, mas não mais. Toda vitória ou erro, todo toque ou uso deviolência… Tudo isso seria ações dela agora. Ela os possuiria. Ela quem comandava.

Erguendo a cabeça, ela o beijou e o sentiu estremecer enquanto prendia as pernas em volta dacintura dele, puxando-o para baixo para que seus corpos se pressionassem. O beijo seaprofundou, todas as línguas e dentes, as respirações pesadas mais sentidas do que ouvidas sobreo estrondo do trovão.

A ponta dele roçou contra ela, e Lara gemeu em sua boca, seu corpo sabendo o que queria,desesperado por ele preenchê-la. Ela apertou os quadris contra ele, ofegando quando seu pênisprovocou dentro dela antes de se afastar.

— Nem tudo será em seus termos, amor — ele rosnou em seu ouvido. — Eu não vou serapressado.

— Você é um demônio, afinal — ela sussurrou, mas sua capacidade de falar desapareceuquando ele soltou seus pulsos e seu rosto desceu para seu peito, sugando e provocando seumamilo com a boca, a mão entre suas pernas. As próprias mãos dela deslizaram para os ombrosdele, dedos passando pelas curvas duras de seus músculos, traçando as linhas de cicatrizesantigas e novas, depois descendo pela espinha, saboreando a maneira como tremia sob o toquedela.

Mas não foi suficiente. Ela mordeu o pescoço dele, querendo que ele se aproximasse,querendo que seus corpos e almas se fundissem e nunca mais se separassem.

— Aren. Por favor.Ele recuou, levando-a com ele. De joelhos, a segurou contra ele, olhos fixos nos dela

enquanto a abaixava lentamente. Com a cabeça caindo para trás, Lara gritou na tempestade,agarrando seus ombros quando afundou nela e depois parou.

— Olhe para mim.Ela olhou, pressionando a bochecha contra a mão dele quando alcançou a lateral da cabeça

dela. — Eu te amo — disse ele, seus lábios roçando nos dela. — E eu vou te amar, não importa oque o futuro traga. Não importa o quanto eu precise lutar. Eu vou sempre amar você.

As palavras a desfizeram, quebraram-na totalmente, depois a forjaram em algo novo. Algomais forte. Algo melhor. Ela o beijou, por muito tempo, forte e profundamente, seus corposbalançando juntos.

Baixando suas costas até os lençóis, ele retirou completamente e depois empurrou de voltacom uma lentidão torturante. Então de novo. E de novo. A cada golpe forte, seus corpos ficavamescorregadios de suor. Ela agarrou a mão dele, a outra mão enrolando pelos cabelos, descendopelas costas, precisando possuir cada centímetro dele enquanto seu próprio corpo se apertava,queimando, queimando em direção à liberação.

Ela lutaria por ele.Ela sangraria por ele.Ela morreria por ele.Porque ele era seu Rei e, mesmo que isso significasse assassinos caçando-a pelo resto de seus

dias, ela seria muito bem a Rainha de Ithicana.A libertação tomou conta dela, violenta como a tempestade que castigava seu Reino, e ela

sentiu o prazer de seu corpo puxar Aren para o limite. Ele se enterrou ao máximo, uivando onome dela quando o quarto estremeceu sob o ataque da tempestade, depois desmoronou, arespiração irregular em seu ouvido.

Eles mal se moveram pelo que pareceram horas. Lara se enrolou no calor de seus braços, suamente flutuando enquanto ele acariciava suas costas nuas, enquanto a cobria com um lençol

quando o suor em seus corpos começou a esfriar. Foi somente quando a respiração dele virou umsuave ritmado de sono que ela levantou a cabeça.

Tirando os cabelos da testa, ela o beijou gentilmente. E porque ela precisava dizer isso masnão estava pronta para ele ouvir, ela sussurrou: — Eu te amo.

Com a cabeça apoiada no peito dele e o batimento cardíaco no ouvido dela, ela finalmentepermitiu que o sono a levasse.

3 4

LARA

O TUFÃO DUROU QUATRO DIAS, A MAIORIA DOS QUAIS LARA E AREN PASSARAM NA CAMA. MUITO

pouco desse tempo passaram dormindo.Momentos do lado de fora do quarto eram gastos jogando cartas e jogos de tabuleiro

Ithicanos peculiares, para os quais Aren era um terrível trapaceiro. Horas dela lendo em voz altaenquanto a cabeça dele descansava no seu colo, os olhos distantes enquanto ouvia, os dedosentrelaçados nos dela. Ele contou histórias de sua infância em Ithicana, que pareciam envolverprincipalmente evitar seus tutores para correr pela floresta até que Jor o perseguisse. Ele contousobre a primeira vez que ele, Taryn e Lia apostaram suas vidas na Ilha das Cobras, revezando-seenquanto seus amigos assistiam de barco na água.

— E Ahnna?Aren bufou. — Ela não é estúpida o suficiente para tais acrobacias.Havia algo na voz dele que levou Lara a colocar o copo de suco na mesa com um tinido alto.

— Você precisa se desculpar com sua irmã pelo que disse. Foi desnecessário.Aren se virou, empurrando um livro de volta na prateleira e tomando toda sua própria bebida.

— Ela quase matou você.— Foi um acidente. E para você que não estava prestando atenção, ela também foi quem

salvou nossos traseiros.— Anotado.— Aren.Ele encheu sua bebida. — Eu já disse coisas piores e ela para mim. Ela vai superar isso.Lara mordeu o interior de suas bochechas, entendendo que não era relutância em se

desculpar, mas sim o conhecimento de que deveria justificar suas ações relacionadas a ela. — Háuma diferença substancial entre palavras cruéis trocadas entre irmãos e ameaças proferidas porum Rei à comandante de seus exércitos.

Ele deu um suspiro minucioso. — Ok, ok. Vou me desculpar quando a ver novamente — Que será quando?— Deus, mas você é persistente.Lara deu-lhe o seu sorriso mais doce.— Na reunião do conselho antes do início das Marés de Guerras, quando discutiremos nossa

estratégia. Ahnna representa Southwatch, então ela tem que estar lá.Sua boca se abriu para perguntar onde precisamente a reunião seria realizada, mas depois a

fechou novamente. Nos últimos dias, Lara teve o cuidado de não investigar detalhes nos quaisum espião pudesse estar interessado, cautelosa em dar a Aren qualquer motivo para duvidar de

sua lealdade. Parte dela se perguntava se isso iria mudar, ou se o passado dela sempre manchariao relacionamento deles.

— Por que você nunca fala sobre suas irmãs?As irmãs dela. Lara fechou os olhos, lutando contra a inesperada ardência de lágrimas. Fora

um esforço consciente da parte dela pensar nelas o mínimo possível. Em parte, era para evitar ador no peito que vinha com a lembrança, a sensação de perda que vinha toda vez que elapercebia que provavelmente nunca mais as veria. A outra parte era o medo de que, se asmantivesse muito na mente, poderia revelar acidentalmente que ainda estavam vivas, e essainformação poderia voltar para o pai. E, pelo bem delas, ela não podia confiar em Aren paracontar a verdade, pois, se ele quisesse um motivo para provocá-la, poderia fazer a partir disso. —Elas estão mortas.

O copo escorregou de sua mão para bater contra o chão. — Você não está falando sério?Lara caiu de joelhos para pegar os quebrados. — Todo mundo que sabia da trama de meu pai

foi morto, com exceção de Serin.— Todos elas? Você tem certeza?— Eu as deixei de bruços na mesa de jantar, cercadas por chamas. — Lembrou-se da

sensação dos cabelos loiros dourados de Marylyn sob os dedos, quando tirou a cabeça da irmã datigela de sopa. Do jeito que ela, seu pai e todo o grupo deles haviam fugido do complexo, suasirmãs abandonadas à sorte e à própria inteligência. Um pouco de vidro espetou seu dedo e elasibilou, sugando o sangue da ferida antes de retornar à tarefa.

As mãos de Aren se fecharam sobre as dela. — Deixe, amor. Alguém mais vai limpar isso.— Eu não quero que Eli faça isso. — Ela pegou outro fragmento de vidro. — Ele tenta fazer

tudo muito rápido e com certeza se cortará.— Então eu farei isso eu mesmo. Os cacos de vidro caíram de suas mãos, e ela observou como os pedaços de líquido âmbar

neles capturavam a luz. Ainda havia tanta coisa que ela não tinha contado a ele.— Minha infância foi feia. Eles tentaram nos transformar em monstros. Talvez eles tenham

tido sucesso.O único som era a chuva lá fora.— Naquele dia do ataque à ilha Serrith... Havia uma dúzia de Amaridianos mortos no

caminho que levava da enseada.— Eu os matei, se é isso que você está perguntando.— Todos eles?— Sim. Você estava em menor número e sua morte não... Não fazia parte do meu plano.Ele exalou um longo suspiro, depois repetiu: — Não fazia parte do seu plano.Embora Aren soubesse a verdade e a perdoasse por isso, parte de Lara ainda temia que ele

mudasse de ideia. Que esses últimos dias não passavam de um truque: uma maneira de mostrar aela o que poderia ter sido se tivesse chegado a esse casamento sem traição em seu coração.

Ele puxou Lara para seus pés. — Ninguém pode saber. Sobre nada disso. Muitos do meupovo eram contra essa união, para começar. Se eles soubessem que você era uma espiã - e umaassassina treinada - enviada para se infiltrar em nossas defesas, eles nunca a perdoariam. Elesexigiriam sua execução, e se eu não concordasse...

Lara sentiu o sangue sumir de seu rosto. Não por causa da ameaça à vida dela, mas por causada ameaça à dele. — É melhor para você se eu for? Nós podemos fingir minha morte e todos osproblemas por eu estar aqui presente serão resolvidos.

Aren não respondeu, e quando ela finalmente encontrou coragem para levantar a cabeça, foi

para encontrá-lo olhando para longe, os olhos sem foco. Então ele balançou a cabeçabruscamente. — Fiz uma promessa a você e pretendo mantê-la.

O peito de Lara se apertou. — Meu pai mandará assassinos atrás de mim. Qualquer pessoaperto de mim estará em perigo.

— Não se eles não souberem onde você está.— Eles sabem que estou em Midwatch, Aren. E aqui não é tão impenetrável quanto você

pensa. Meu pai não vai esquecer minha traição tão facilmente.— Estou ciente das limitações de Midwatch, e é por isso que não vamos ficar aqui. — Ele a

puxou para seus braços. — E o seu pai vai deixá-la em paz se ele acreditar que o custo devingança é mais do que deseja pagar.

A vingança valia qualquer preço para seu pai. — Deixe-me voltar para Maridrina. Deixe-mematá-lo e acabar com isso.

— Eu não usarei você para matar meus inimigos.— Ele é meu inimigo também. E o inimigo do povo maridriniano.— Eu não discordo. — A mão de Aren subiu e desceu por sua espinha. — Mas assassinar seu

pai fará exatamente o oposto do que estamos trabalhando. Mesmo que Serin não possa provarque foi Ithicana, ele jogará a culpa em nossos pés, e não vai demorar muito até que o povomaridriniano esqueça Silas, o tirano, e comece a exigir vingança por Silas, o mártir. Seu irmãomais velho é igual a seu pai e eu não pretendo entregar a ele um exército de sangue Ithicano.

— Se eles atacassem — continuou ele — provavelmente poderíamos convencer Valcotta a sealiar conosco e esmagá-los, mas aí seria o seu povo que sofreria. E, no final, estaríamos de voltaao mesmo lugar que há quinze anos atrás, nossos povos se odiando.

— Portanto, não fazemos nada, então? — Tudo o que ele disse era verdade, mas Lara nãoconseguiu esconder a amargura de sua voz.

— Nós assistimos. Nos preparamos. Mas... — Ele encolheu os ombros. — Qualquer açãoque possamos tomar neste momento causaria mais mal do que bem.

— Com Valcotta atacando comerciantes Maridrinianos tentando aportar em Southwatch,minha terra natal continuará passando fome.

— Tudo resolveria se seu pai desistisse da guerra com Valcotta. Deixe os agricultoresvoltarem aos seus campos e os comerciantes aos seus negócios.

Mas ele não iria. Lara sabia disso com certeza, porque seu pai nunca admitiria a derrota.— A temporada das tempestades ajudará a manter os valcottanos em seus portos. O porto de

Vencia é o mais próximo de Southwatch, e seu pessoal aproveitará os curtos intervalos dastempestades. Por mais impossível que seja acreditar, a estação das tempestades é melhor para osseus compatriotas do que a calmaria. Alimentos vão chegar nos costas maridrinas.

Aren não mentiria para ela - Lara acreditava nisso. Ela confiava nele. Mesmo que a matassepor não fazer nada.

Ele ficou quieto por um longo tempo e depois disse: — Mas há dois lados nisso, Lara.Poucos Ithicanos já deixaram nossas costas. Muito poucos deles já conheceram um maridriniano.O resultado é que acreditam que seu pai é a soma do seu povo. Preciso que você me ajude amudar isso. Preciso que os faça ver que os Maridrinianos não são nossos inimigos. Para fazê-losquerer mais do que apenas uma aliança no papel e palavras entre Reis, mas uma aliança entrenosso povo. Porque é a única maneira de encontrarmos a paz.

— Não vejo como isso pode acontecer enquanto ele viver.— Ele não viverá para sempre.Lara exalou um longo suspiro. — Mas meu irmão, como você disse, é exatamente como ele.

Ele tirará vantagem da utopia que você imagina.— Eu não imagino uma utopia, Lara. Apenas algo melhor. — Ele beijou seu ombro, seus

lábios quentes. — Já era hora de pararmos de permitir que nossos inimigos ditem nossas vidas ecomeçarmos a viver para aqueles que amamos. E para nós mesmos.

— Um sonho.— Então faça ser realidade. — Alcançando os bolsos das calças, ele extraiu uma pequena

bolsa de seda. — Eu tenho algo para você.A cabeça de Lara virou, seus olhos se arregalaram quando ele retirou uma delicada corrente

de ouro com esmeraldas e diamantes negros brilhando na luz. — Você mencionou umapredileção pelo verde.

Cuidadosamente, ele passou os cabelos para o lado e prendeu o colar em volta do pescoço. —Era da minha mãe. Meu pai mandou fazer isso anos atrás e ela quase nunca tirou. Os criados aencontraram em seus quartos depois… — Ele parou, balançando a cabeça para clarear a emoção.— Ela sempre disse que era para ser usada.

Lara arrastou um dedo pelo ouro e pelas jóias, depois o afastou, com a mão em punho. — Eunão posso ficar. Ahnna é quem deveria ficar.

— Ahnna odeia jóias. E, além disso, você é Rainha de Ithicana. Você é quem deveria usá-la.Pegando em suas mãos, Aren a virou na direção do grande espelho na parede e pressionou os

dedos contra o grande diamante negro descansando no centro de sua clavícula, a pulsaçãoritmada logo embaixo. — Northwatch. — Então ele desceu a mão pelo colar, nomeando as ilhasmaiores enquanto fazia.

— Serrith. — Ele parou ali, beijando o ombro dela, roçando os dentes no pescoço dela,sentindo o corpo dela recuar e depois pressionar contra ele, a cabeça caindo contra o ombro dele.— Midwatch. — Os dedos deles percorreram a curva do seio direito, parando em uma grandeesmeralda. Ele fez um ruído considerado, depois continuou o mapa de jóias, parando emSouthwatch, a esmeralda aninhada em seu decote.

— É seu — ele murmurou em seu ouvido. — Ithicana. Tudo o que tenho é seu. Paraproteger. Para melhorar.

— Eu vou — ela sussurrou. — Eu prometo. — Virando, Lara apoiou a testa no peito dele,concentrando-se na sensação de suas mãos. No som do seu coração.

Então ele ficou quieto. — Escute.— Eu não ouço nada.— Exatamente. A tempestade passou. O que significa que terá terminado ao sul daqui, de

modo que os barqueiros de Vencia já estarão na água em direção a Southwatch.Era tão estranho ter que confiar nos Mares de Tempestade, que ela temia mais do que

qualquer outra coisa, para proteger seus dois povos. Lentamente, a tensão desapareceu dela. —Como é seguro sair, eu me pego desejando um banho adequado.

— Seu desejo é meu comando, Vossa Majestade — ele rosnou em seu ouvido, jogando-a porcima do ombro e indo para a porta. No corredor encontraram Eli, que carregava um saco de peleno ombro.

— Estou correndo para o quartel, Vossas Graças. Alguma mensagem que você desejatransmitir?

Aren hesitou. — Sim. Diga a Jor que quero vê-lo. Depois do almoço. — Ele deu um tapinhasignificativo na bunda de Lara, rindo quando ela lhe deu uma joelhada no peito. — Mas, porenquanto, eu preciso de um banho.

Várias horas depois, eles estavam terminando uma refeição de peixe grelhado e molho cítricoquando a porta da casa se abriu.

Sem se importar com as botas salpicadas de lama, Jor entrou na sala de jantar e sentou-se emfrente a eles. — Majestades. — Seus olhos brilhantes iam e viam entre Lara e Aren enquanto eletirava um bolo da bandeja. — Que bom ver vocês dois finalmente se dando bem.

As bochechas de Lara esquentaram e ela tomou um gole do suco de frutas, esperando que ocopo escondesse seu constrangimento.

— E tudo o que foi necessário para ganhar sua afeição foi o pobre garoto pulando em águasinfestadas de tubarões para salvar seu traseiro. — Ele suspirou dramaticamente. — Não tenhocerteza se estou disposto a tais atos de heroísmo. Suponho que vou ter que deixar de lado osonho de tomar você quando Aren for morto por uma de suas acrobacias estúpidas.

— Cai fora, Jor.Lara apenas sorriu. — Felizmente para você, eu tenho uma quedinha por homens idosos.— Idosos? — Pedaços de bolo voaram da boca do guarda. — Quero que você saiba, pequena

senhorita, que eu sou... — Chega, chega. — Aren encheu o copo na frente de Jor. — Não é por isso que você está

aqui.— Sim, me diga por que eu tive que arrastar minha bunda idosa até a colina para visitar os

dois pombinhos.Lara virou-se na cadeira para olhar Aren, curiosa.— Como estão os céus? — ele perguntou.— Coloque a cabeça para fora da porta e veja por si mesmo.— Jor.— Limpo. — O guarda mastigou lentamente outro bolo, a testa franzida com suspeita. — Por

quê?A mão de Aren se fechou sobre a de Lara, o polegar traçando um círculo contra a palma da

mão. — Diga a todos para arrumar suas coisas e preparar os barcos. Acho que é hora devoltarmos para casa.

3 5

LARA

LAR.Para Lara, Midwatch era lar, com sua serenidade silenciosa. Mas não havia como confundir a

excitação nos rostos dos guardas, que amarravam suas mochilas e montes de provisão em um triode barcos, quase tropeçando um no outro na pressa. Onde quer que estivessem indo era lar paraeles, e a agitação da atividade apenas reforçava a curiosidade de Lara. Não havia grandescivilizações em Ithicana, nada maior que uma vila de pescadores, e a maridriniana nela lutavapara acreditar que o Rei do Reino da Ponte poderia chamar um desses de lar.

— Para onde estamos indo? — ela perguntou a Aren pela centésima vez.Ele apenas deu um sorriso divertido e jogou sua bolsa de pertences na canoa. — Você vai

ver.Mal teve permissão para levar qualquer coisa, apenas um conjunto de suas roupas Ithicanas,

uma seleção de roupas de baixo e, a pedido de Aren, um de seus vestidos de seda Maridrinianos,apesar de que utilidade teria em uma vila de pescadores, ela não sabia.

Mordiscando um pedaço fresco de raiz para ajudar a manter o estômago calmo, Lara seacomodou no barco, ficando fora do caminho enquanto eles saíam da enseada. Embora o céuestivesse relativamente calmo, o mar estava cheio de galhos e detritos, e, através da névoa queassolava Midwatch, Lara notou que a selva havia sido severamente danificada pela tempestade,árvores derrubadas e plantas sem flores e folhas.

Os barcos passaram por baixo da ponte, a ilha desaparecendo de vista, e Lara olhou parafrente quando a vela foi levantada, os ventos fortes fazendo-os atravessar pelas ondas. Elesviraram para o oeste, para longe da ponte serpenteante, passando por inúmeras massas de terraminúsculas, todas as quais parecendo desabitadas, embora ela soubesse que em Ithicana asaparências enganassem.

Eles navegaram por uma hora quando, ao redor de uma ilha menor, os olhos de Lara caíramsobre uma verdadeira montanha subindo do oceano. Não é uma montanha, ela silenciosamentese corrigiu. Um vulcão. A própria ilha tinha várias vezes o tamanho de Midwatch, as encostas dovulcão, que chegavam ao céu, densas com selvas verdejantes. As águas azuis batiam contra asparedes do penhasco com quinze metros de altura, sem sinais de praia ou enseada. Impenetrávele, se a fumaça subindo do pico fosse alguma indicação, um lugar perigoso para se habitar.

No entanto, enquanto passavam pelo monólito, Jor abaixou a vela, diminuindo a velocidade,mesmo quando Lia se levantou, a mão equilibrada no ombro de Taryn enquanto examinava oambiente. — Não há velas no horizonte — declarou ela, e Aren assentiu. — Levante a bandeira,então.

A bandeira verde brilhante cortada por uma linha curva preta foi desenrolada e erguida para otopo do mastro, o vento batendo nela com um entusiasmo que se refletia nos rostos de todos osIthicanos. Eles se aproximaram da ilha e, protegendo os olhos com a mão contra o brilho daágua, Lara viu uma abertura escura nas paredes do penhasco.

A entrada para a caverna do mar cresceu enquanto os barcos se aproximavam, quase semespaço suficiente para os mastros enquanto se afastavam para dentro, a escuridão escondendo oque quer que estivesse lá dentro.

O coração de Lara trovejou em seu peito, percebendo que ela estava testemunhando algo queninguém de fora já tinha visto. Um lugar que era totalmente do domínio de Ithicana. Um segredomaior, talvez, do que mesmo os de sua preciosa ponte.

Um chocalhar ensurdecedor fez Lara pular. A mão de Aren descansou contra suas costas parafirmá-la enquanto os olhos de todos se ajustavam à penumbra. Piscando, ela observou comadmiração quando um portão de aço coberto de algas e cracas se ergueu em um estreito espaçona rocha do teto e os três barcos foram gentilmente levados a um túnel que se curvava à direita.Segurando as laterais do barco, Lara prendeu a respiração enquanto Taryn e Lia os levaram paradentro, o túnel se abrindo para uma enorme caverna. A luz do sol filtrava através de pequenasaberturas no teto para dançar pela água calma, e o chão da caverna parecia estar ao alcance deum braço, embora Lara suspeitasse que era muito mais profundo.

Atracados às paredes, havia dezenas de barcos, incluindo os grandes que viu evacuar a vilana Ilha Serrith. Crianças meio vestidas nadavam entre eles, seus gritos animados audíveis quandoo barulho das grades descendo atrás deles parou. Houve gritos de reconhecimento quando ascrianças avistaram Aren e seus guardas, e muitos deles caíram como um cardume de peixes aoredor dos barcos. Jor riu, fingindo bater neles com um remo enquanto se dirigiam para o outroextremo da caverna, onde degraus esculpidos na rocha escura levavam para cima.

Com as vozes das crianças enchendo seus ouvidos, Lara permitiu que Aren a ajudasse a sairdo barco, com as pernas instáveis embaixo dela. Que lugar era esse?

Com a mão suada apoiada no braço de Aren, Lara subiu as escadas em direção à aberturailuminada pelo sol com o coração batendo forte no peito. Juntos, eles saíram, e uma rajada devento salgado atingiu os cabelos de Lara, arrancando-os da trança. O brilho ardeu em seus olhos,e ela piscou, meio para limpar as lágrimas e meio por que não podia acreditar no que estavavendo.

Era uma cidade.Cobrindo as encostas íngremes da cratera do vulcão, ruas, casas e jardins da cidade se

entrelaçavam perfeitamente com a vegetação natural, tudo isso refletido em um lago esmeraldaque se acumulava na bacia. Soltando o braço de Aren, Lara girou em um círculo, lutando paraabsorver a magnitude deste lugar que não deveria, não poderia, existir.

Homens e mulheres vestidos com túnicas e calças cuidavam dos seus negócios e inúmerascrianças corriam, provavelmente aproveitando o descanso devido ao mau tempo. Havia centenasde pessoas e ela não tinha dúvida de que muitas mais poderia ser encontradas dentro dasestruturas que foram construídas na encosta, feitas com o mesmo material sólido da ponte.Árvores e trepadeiras envolviam as casas, as raízes cravadas profundamente na terra, os cinzas everdes serpenteados por inúmeras flores de todas as cores do arco-íris. Sinos de metal pendiamdos galhos das árvores e, com cada sopro de vento, sua música delicada enchia o ar.

Parecendo cada centímetro de si como um Rei que analisava seu Reino, Aren disse: — Bem-vinda a Eranahl.

3 6

AREN

FOI A PIOR TEMPORADA DE TEMPESTADES QUE AREN JÁ HAVIA VISTO.Tufão atrás de outro atacava Ithicana, mar, vento e chuva atingindo a fortaleza que era

Eranahl, mantendo-a ainda mais isolada do que o normal. A cidade foi forçada a procurar seuspróprios suprimentos e seria uma corrida louca reabastecer os estoques antes que as Marés daGuerra chegassem e a população da cidade triplicasse, com a vinda dos que moravam nas ilhaspróximas à ponte para se refugiar dos inevitáveis invasores. Esses trazendo suprimentos comeles, mas, com meses de apenas dias claros limitados para pescar e se reunir, eles tinham quecorrer contra o tempo.

O que significava que a ponte tinha que os abastecer.No entanto, tinha sido dolorosamente fácil não pensar nos perigos iminentes dos meses

seguintes desde que ele trouxera Lara para casa em Eranahl. Fácil de sentar em volta da mesacom os amigos, bebendo e comendo, rindo e contando histórias na escuridão da noite. Fácil de seperder em um livro sem esperar que cornetas soem com alertas de invasores. Fácil de dormir nofinal da manhã, os braços em volta da forma esbelta da esposa. Acordar e reverenciar as curvasde seu corpo, o gosto de sua boca, a sensação de suas mãos nas costas dele, nos cabelos, em seupênis.

Houve dias em que pareciam que Lara esteve presente em toda sua vida, pois ela tinhaemergido completamente em todos os aspectos de seu ser. Em todos os aspectos de Eranahl. Eletemia que ela sofreria para se integrar ao seu povo e eles com ela. Mas, dentro de um mês, elatinha aprendido o nome de cada cidadão e como cada um deles se integrava, e Arenfrequentemente a encontrava trabalhando com as pessoas, ajudando-as quando estavam doentes eferidas. A maior parte do tempo de Lara era gasta com os jovens de Ithicana, em parte porquemantinham menos preconceitos contra os Maridrinianos do que seus pais e avós e, em parte, elepensou, porque isso lhe dava um senso de propósito. Ela começou uma escola, pois, embora seupai imbecil a tivesse tratado mal, ele não havia economizado em sua educação, e os esforços paracompartilhar esse conhecimento conquistaram mais corações do que seus heróis na ilha de Aela.

Lara tomou seus amigos como dela, enfrentando Jor cara-a-cara sobre quem conseguia contaras piores piadas, bebendo, comendo e rindo enquanto mergulhava em suas vidas, sua mão na deAren enquanto esperavam acabar tempestade após tempestade. Ela nunca revelou mais do quedetalhes superficiais sobre sua própria vida, mas se alguém percebeu, não comentou. E o próprioAren parou de cavar, parou de perguntar quem infligiu suas cicatrizes por dentro e por fora,contente que, se ela quisesse lhe contar, faria.

Com muito capricho e insistência, as crianças Ithicanas convenceram Lara a entrar no porto

da caverna, ensinando-a a flutuar e a remar, mas ela saia num piscar de olhos se um peixe atocasse e se recusava em se colocar embaixo d'água As poucas vezes em que alguém foi corajoso- ou tolo - o suficiente para afundá-la foram as únicas vezes em que Aren a viu perder apaciência com as crianças, gritando que ia matar alguém. Então ela saia enfurecida e seminua,pingando de volta para o palácio, onde se recusava a falar com qualquer pessoa, inclusive comele, pelo resto do dia, apenas para voltar à água com eles durante uma pausa da tempestadeseguinte.

Vir a Eranahl tinha mudado sua esposa. Não a tinha amolecido, não exatamente, pois elaainda tinha o temperamento mais perverso de que já tinha conhecido, mas, para Aren, pareciaque estar aqui havia a tirado de sua concha. Fora da fortaleza que ela construiu para se proteger.Ela estava mais feliz. Mais brilhante. Contente.

Exceto que toda temporada de tempestade chegava ao fim, e essa não seria diferente.Soltando um suspiro, Aren olhou para o céu, a chuva tamborilando suavemente contra sua

pele. Havia apenas a brisa mais fraca, a tempestade mal merecia esse nome, e ele suspeitava queseria apenas uma questão de dias até Nana ter previsões sobre a temporada. E, por isso, seuconselho de guerra se reuniu.

Durante a última hora, os Comandantes da Guarda estavam chegando de barco: homens emulheres endurecidos pelas batalhas as quais viram o pior que seus inimigos tinham a oferecer e,em troca, tinha se tornado piores. Cada um dos nove, incluindo ele em Midwatch, eraresponsável pela defesa de certa parte da ponte e das ilhas que a rodeavam, e todos chegaramprontos para discutir o que a temporada traria. Exceto uma.

Ahnna estava atrasada.Entrando no abrigo do porto da caverna de Eranahl, Aren sentou-se nos degraus para esperar,

irritado com a ansiedade que crescia em sua barriga. Essa seria a primeira vez que veria sua irmãgêmea desde a queda de Lara da ponte. A primeira vez que se falariam desde que ele ameaçoumandá-la para Harendell. Ahnna tinha sido inflexivelmente contra Lara ser qualquer coisa alémde uma gloriosa prisioneira mantida em Midwatch, e ele não pôde deixar de imaginar como elareagiria ao fato de Lara estar no coração de Ithicana.

Os portões começaram a subir lentamente, assustando Aren em seus pensamentos. Um dosbarcos da Guarda do Sul flutuou pela curva, e ele olhou para a penumbra, tentando encontrar suairmã gêmea. Ahnna estava sentada na popa, timão na mão, expressão ilegível.

O barco bateu contra os degraus de pedra, um dos soldados pulando e atracando enquanto osoutros descarregavam suprimentos. Ahnna jogou o saco por cima do ombro, chamando atripulação para aproveitar suas poucas horas de liberdade antes de subir os degraus dois em dois.

— Vossa Majestade — disse ela, e seu coração afundou. — Peço desculpas por estaratrasada. Com o estado das relações entre os Reinos do sul, Southwatch exige minha atençãototal.

— Tudo bem. — Ele tentou se conciliar com a placa entre eles que nunca poderia serremovida. — Temos tempo.

Os olhos de Ahnna se voltaram para o céu, então balançou a cabeça. — Não tenho certeza deque temos.

O palácio se silenciou quando ele e Ahnna entraram, todos que não eram necessários haviamdesocupado o local e aqueles que eram necessários estavam ocupados com suas tarefas. Isso

produziu um estranho tipo de som, como se a ausência de pessoas mudasse o prédio, fazendoecoar passos e vozes.

Não que os dois se sentissem inclinados a falar.Virando pelo corredor, Aren viu Lara sentada em um banco acolchoado do lado de fora das

câmaras do conselho, ombros retos, olhos fixos nas portas sólidas. Ela usava um vestido de sedaazul e verde, os cabelos trançados em uma coroa que revelava a longa coluna do pescoço.Sandálias de salto alto, o couro incrustado com lápis-lazúli, estavam amarradas aos pés dela, edali podia ver as bochechas e os ossos da testa brilhando com poeira dourada.

— Vejo que ela não desistiu de seus gostos caros — murmurou Ahnna.Lara não tinha, mas Aren a satisfez, porém não pelas razões que sua irmã havia pensado.

Lara teria deixado de lado os luxos, teria se misturado ao povo dele a ponto de esquecer que elanão havia nascido entre eles, mas os dois entendiam a importância das pessoas se lembrarem queera maridriniana. Que eles começassem a amar como maridriniana, o que eles já começaram.

Lara se levantou quando eles se aproximaram e, quando se virou para encará-los, Aren ouviuo suave suspiro da respiração de Ahnna. Ela estava olhando as jóias em volta do pescoço deLara, o colar de esmeraldas e diamantes pretos que tinham sido de sua mãe. — Como você pôde?— Suas palavras saíram como um assobio entre os dentes. — De todas as coisas que vocêpoderia ter dado a ela, por que isso?

— Porque Lara é a Rainha. E porque eu a amo.Mil respostas passaram pelos olhos de sua irmã, mas ela não disse nenhuma delas. Apenas

curvou-se para Lara. — Estou feliz em vê-la bem, Vossa Excelência. — Então ela tirou a chaveque marcava-a como comandante da guarda, destrancou a câmara do conselho e entrou.

— Eu disse que seria um erro não falar com ela antes. — Lara apoiou as mãos nos quadris,sacudindo lentamente sua cabeça perfeita. — Você a estapeia na cara com tudo o que ela nãoquer ver e depois espera que cerre os dentes e aguente.

Diminuindo a distância entre eles, Aren puxou Lara contra ele, os braços dela deslizando aoredor do pescoço dele. — Por que você está sempre certa? — perguntou, fechando os olhos ebeijando sua garganta.

— Eu não estou. É só que você, geralmente, está errado.Ele riu, sentindo um pouco de sua tensão dissipar apenas para retornar quando ela disse: — É

muito cedo, Aren. Deixe-me ir buscar Jor.— Não. Você é Rainha de Ithicana e isso faz de você a minha segunda em comando. É assim

que sempre foi e eu levando Jor comigo enviaria uma mensagem aos comandantes de Watch e aopovo de que não a vejo como capaz. Que eu não confio em você. Arruinaria tudo o querealizamos desde que você veio para Eranahl.

— Até onde eles sabem, eu sou incapaz.— Eu sei que é o contrário. — Mas ele era o único que sabia; O passado de Lara, seu

treinamento, como era mortal, um segredo que Aren mantinha de todos. E continuaria mantendopara proteger sua esposa e a paz tênue que o casamento simbolizava. — Além disso, há maispara administrar num Reino do que o conhecimento bélico.

— Essa é a reunião do conselho das Marés da Guerra — disse ela entre os dentes, os olhos semovendo pelo corredor para garantir que estivessem sozinhos. — A única coisa que importa é oconhecimento bélico. Deixe-me chamar Jor.

Aren balançou a cabeça. — Você é a única que conhece todos os riscos. — Ele descansou atesta na dela. — Eu preciso de você ao meu lado.

E antes que ela pudesse discutir mais, ele abriu a porta e puxou Lara para dentro da sala de

guerra de Ithicana.

3 7

LARA

AREN SOLTOU SEU BRAÇO NO MOMENTO EM QUE ENTRARAM, A INTIMIDADE QUE CONDENSOU O AR

entre eles momentos atrás se foi. E foi substituído por algo completamente diferente.Aqui, eles não eram marido e mulher. Nem Rei e Rainha de Ithicana. Nesta sala, Aren era

comandante de Midwatch e ela era sua segunda no comando, e Lara imitava instintivamente seusombros retos e a expressão dura, seguindo em seus calcanhares até a elevada réplica deMidwatch, a ilha que fazia parte de um enorme mapa de Ithicana. O único mapa completo deIthicana existente.

Ninguém era permitido nesta sala, a não ser os comandantes de Watch e seus segundos nocomando. Nem mesmo os funcionários foram aceitos para limpar, o grupo que cuidava dosserviços com eficiência típica da Ithicana. O fato dela, uma maridriniana, estar nesta sala erainédito, fato esse que ficou claro quando todas as cabeças se viraram para ela, os olhosarregalados de choque.

— Onde está Jor? — A voz de Ahnna cortou o silêncio de onde estava ao lado da réplica deSouthwatch, com a mão repousando possessivamente na grande ilha.

— No andar de baixo. — A voz de Aren saiu curta e grossa, embora Lara suspeitasse que otom tivesse mais a ver com nervos do que com irritação. Ele sabia que a presença dela seriaquestionada.

— Comandante, talvez possamos discutir se a presença de Sua Majestade é apropriada —disse Mara. O que não era surpreendente. A mulher não escondia seu desgosto por Lara, malfalando com ela quando estava em Eranahl.

Aren voltou seus olhos frios para a comandante de Northwatch. — Nós escolhemos nossossegundos. Nossas escolhas não são questionadas. — Ele apontou o queixo em direção a Aster, aquem Mara tomou como segundo no comando depois da demissão dele do comando de Kestark.— A menos que você queira mudar esse protocolo?

Mara levantou as mãos em defesa. — Eu apenas pensei que você gostaria de ter alguém comexperiência como seu segundo, Comandante. Emra — ela apontou para o jovem comandante deKestark — escolheu alguém mais velho para compensar sua juventude.

Emra escolheu sua mãe - uma guerreira endurecida pela batalha de quem Lara gostavaimensamente - como segunda no comando, e a mulher em questão revirou os olhos para o céuenquanto sua filha respondia: — Escolhi alguém em quem eu pudesse confiar.

Um pequeno farol de solidariedade, mas o alívio que Lara sentiu com as palavras da jovemfoi lavado quando Ahnna disse: — Desde quando você não confia em Jor?

Aren se moveu ao lado de Lara, suas pernas roçando nas saias dela. Ela sabia que não ter o

apoio de sua irmã doía. Pelo que ela soube de Taryn, Jor e o resto dos guardas, os gêmeos eramunidos, lutando nas costas um do outro até Ahnna se mudar para Southwatch. Ela teve o votodecisivo de apoio nesta câmara do conselho para o casamento de Aren com Lara, mas, a julgarpela expressão da princesa, se arrependeu profundamente dessa decisão.

— Lara é minha esposa. Ela é a Rainha. Eu confio nela, e ela é minha segunda no comando.— Lara prendeu a respiração quando o olhar de Aren percorreu a sala. — Qualquer um que tenhaum problema com isso pode dar o fora agora.

Mara bufou, mas todo mundo segurou a língua. — Vamos começar, então? Eu quero estar naágua antes do anoitecer.

Foi um longo processo de Mara detalhando os desenvolvimentos ocorridos durante atemporada de tempestades. O que os espiões de Northwatch descobriram sobre as intenções deHarendell e Amarid. Onde seus exércitos e frotas estavam localizados. O número de navios queforam construídos ou destruídos. Lara ouviu atentamente; não passou despercebido por ela quetodos os governantes do mundo matariam para ter um espião no lugar dela.

— Amarid está substituindo os navios que eles perderam no ano passado — disse Mara. —Mas nós observamos seu progresso e nenhum estará pronto no início das Marés de Guerra, entãonós talvez teremos um pouco de descanso

— Todos eles? — Aren perguntou. — Com que fundos? Amarid está quase falida.Uma falência que Lara sabia ter sido cimentada por Ithicana por pegar a renda que Amarid

geralmente recebia pelo transporte de aço através dos Mares de Tempestade. De todos os Reinos,norte e sul, seu casamento com Aren custou mais a Amarid.

— Direto dos cofres, é o mais próximo que podemos dizer. — respondeu Aster. — Não estáno crédito. Ninguém mais empresta a eles. — O homem mais velho levantou uma página namão. — Há um boato de que os navios foram financiados com pedras preciosas, mas isso pareceimprovável.

Pedras preciosas. A palavra surgiu na mente de Lara, importante de alguma forma, emboraela não conseguisse pensar no porquê. — Que tipo de pedras preciosas?

Cada par de olhos na sala viraram para ela antes de ir para Aren. Sua mandíbula se contraiucom óbvia irritação. — Responda à pergunta.

— Rubis — disse Aster. — Mas Amarid não tem minas, então provavelmente não passa deum boato.

Os dedos de Lara foram para a faca presa à cintura, arrastando-se pelas pedras vermelhasembutidas no punho.

— Não estou interessado em boatos — disse Aren. — Estou interessado em fatos. Descubracomo Amarid está pagando pelos navios. Se eles estão trabalhando com alguém, eu quero saberquem é. E quais são suas intenções. — Ele acenou com a mão para Mara continuar, mas a mentede Lara ficou com os navios. Com a ideia de que poderia haver alguém fora de Amaridinteressado em financiar novos ataques contra a Ithicana.

—... um aumento acentuado na importação de certos produtos Maridrinianos por Amarid. —As palavras de Mara roubaram a atenção de Lara.

— Que tipo de mercadoria?A expressão de Mara era de irritação — Vinho barato, principalmente.— Por que, dado que Amarid faz os melhores vinhos e é conhecida mundialmente por suas

destilarias, eles importariam vinho maridriniano?— Claramente, alguns Amaridianos têm gosto pelo que é uma porcaria suja — Mara

retrucou. — Agora seguindo em frente.

— Comandante, tome cuidado. — A voz de Aren estava fria.A mulher mais velha apenas levantou as mãos exasperada. — Presumo que os Maridrinianos

estejam vendendo o que podem para comprar o que precisam - só os notei por serem incomuns epode ser um mercado que possamos explorar no futuro.

— Não foi uma remessa grande — Ahnna interrompeu. — Nossos pedágios teriamconsumido metade do lucro, eram coisas tão baratas. Eu peguei uma caixa e a incluí com ossuprimentos para Midwatch.

A pulsação de Lara estava rugindo em seus ouvidos agora, a memória da garrafa de vinhomaridriniano no estoque da Casa Segura dançando diante de seus olhos, junto com o rubi docontrabandista que haviam encontrado nele. Um rubi que agora estava em sua caixa de jóias emMidwatch. Que a melhor maneira de contrabandear pedras preciosas do que em vinhos baratosque os Ithicanos dificilmente tocariam, que eles nem notariam se Ahnna não tivesse feito umabrincadeira? Se Aren havia feito a conexão, Lara não podia dizer - ele estava guardando suasreações muito fechadas.

— Posso continuar? — Mara exigiu e, ao aceno de Aren, ela deu um rápido resumo dasdefesas de Northwatch, depois passou a reunião para o próximo comandante.

As ilhas ao norte e ao sul de Midwatch sofreram a maioria dos ataques durante as Marés daGuerra passada, e grande parte da conversa se voltou para especulações sobre se este ano seria omesmo. Lara escutou com um ouvido, mas sua mente não abandonou a noção de que alguém emMaridrina estava financiando a frota Amaridiana.

A conversa avançou progressivamente para o sul, a reunião parando apenas quando alguémprecisava se aliviar e retomar imediatamente após o retorno do indivíduo. Não havia tempo. Larapodia sentir: o zumbido galopante de adrenalina que geralmente precedia uma tempestade, masdesta vez sussurrava guerra. Aren tomou sua vez para falar de Midwatch, mal se referindo àsnotas que Lara passou para ele.

— A própria Ilha de Midwatch foi atacada apenas uma vez. Na meia estação, e obviamentepor um capitão inexperiente, enquanto navegavam diretamente pelo caminho de nossosdestruidores de navios. Era como se eles estivessem pedindo para afundar. Mesmo assim,tivemos pouco descanso, as outras ilhas sob nossa vigilância foram atacadas repetidamente.

Eles se voltaram para os detalhes, mas Lara mal ouviu a conversa, com a pele fria como gelo.A parte principal do plano de seu pai foi fazer Lara testemunhar as táticas militares de Ithicanapor dentro, seu treinamento permitindo que ela entendesse essas táticas e como poderiam serexploradas. Nas Marés de Guerra, ela acreditava que todas as oportunidades que tinha paraassistir os Ithicanos em ação tinham sido sorte, mas e se não tivesse sido? E se tivesse sido depropósito? E se tivesse sido ordenado pelo indivíduo que financiava a reconstrução dessesnavios?

E se esse indivíduo fosse o pai dela?— O ataque Amaridiano a Serrith foi a única ocasião em que sofremos perdas

significativas...Serrith. Sem perceber, a lembrança do ataque surgiu em sua mente. Do modo como os

marinheiros Amaridianos a reconheceram, mas em vez de atacar, recuaram até ficar claro que eraa sua vida ou a deles. O que não fazia sentido, já que Lara e o tratado que representava eram acausa de toda a aflição de Amarid.

— Sua vez, Emra — disse Aren. — Como foi em Kestark?O papel nas mãos da jovem tremia enquanto falava, mas sua voz era clara e firme ao resumir

o estado do seu comando, que sofreu pesadas perdas durante as Marés de Guerra. Chegando ao

final de suas anotações, ela fez uma pausa antes de dizer: — Um navio mercante Amaridianopassou por Kestark dois dias atrás.

— Mantenha-se nos detalhes importantes, garota — disse Aster, e Lara reprimiu o desejo dejogar o copo de sua mão na cabeça dele. — Não temos tempo para discutir todos os naviosmercantes soprados para nossas águas durante uma travessia na estação das tempestades.

Os olhos de Emra brilharam com irritação, mas ela fechou a boca em respeito habitual aohomem mais velho.

Qualquer coisa a ver com Amarid era importante agora, e Lara abriu a boca para pedir aEmra que elaborasse, mas Aren a venceu. — Por que você menciona isso?

— Eu estava na ilha de Aela, inspecionando o posto avançado, Comandante. Percebemos aembarcação ancorada no lado leste do vento, a tripulação chamando atenção ao fazer algunsreparos.

— E?— E eu notei que estava muito ao norte. O que, dado que ela vinha do norte, parecia

estranho. Então, abordamos ela para ver o que era aquilo.— Você abordou um navio Amaridiano?— Abordamos pacificamente. O porão estava vazio e, quando perguntei sobre os negócios

deles, o capitão me disse que estavam transportando uma nobre rica.— É uma história muito emocionante — disse Aster secamente, mas Aren acenou para

silenciá-lo, o que era oportuno, pois Lara estava pensando em maneiras de envenenar a bebida dohomem para fazê-lo calar a boca. — Você viu a mulher?

— Sim, Comandante. Uma mulher muito bonita com cabelos dourados. Tinha umaempregada com ela, além de alguns militares para escoltá-la.

— Você falou com eles?Emra balançou a cabeça. — Não. Mas notei que o vestido dela era do mesmo estilo que Sua

Majestade às vezes usa.— Ela era maridriniana?Emra encolheu os ombros, as bochechas ficando vermelhas. — Não tenho experiência

suficiente para dizer. Sua Majestade é a única maridriniana que eu já conheci.— Talvez você devesse ter consultado sua mãe, Comandante — interrompeu Mara. — Ela,

afinal, lutou na guerra contra Maridrina e, portanto, está bem ciente de como eles se parecem efalam. De qualquer forma, pouco importa. Maridrinianos que não podem arcar com as passagensda ponte muitas vezes arriscam a viagem nos navios Amaridianos. Eles são baratos.

— E eu não teria pensado muito mais sobre isso, comandante — respondeu Emra — excetoque passamos pelo território de Midwatch a caminho de Eranahl e vimos o mesmo navio. E umabanheira mercante dessas não chegaria a Maridrina e voltaria a Midwatch em menos de dois dias.

A pele de Lara se arrepiou como se estivesse sendo observada, apesar de não haver janelas nasala. Seu pai não usava mulheres em batalha ou como espiãs, a única exceção sendo Lara e suasirmãs. E ela pagou pela liberdade de suas irmãs em sangue.

— Alguém mais notou o mesmo? — Aren perguntou.Cabeças balançaram, mas o comandante da guarnição ao norte de Midwatch disse: — Nossos

sentinelas avistaram um navio mercante Amaridiano indo para o sul e leste, passando pelas ilhasde Serrith e Gamire, mas parecia estar navegando à frente de uma tempestade que se formava aoeste.

— Existe algo que devemos saber? — Mara perguntou.O algo era que o pai de Lara estava caçando por ela. Lara sabia disso e, a julgar pela tensão

que sentiu irradiando de Aren, ele também suspeitava. Mas nenhum deles poderia dizer isso semlevantar a questão do porquê Silas estava tão interessado em rastrear sua filha rebelde.

Aren balançou a cabeça. — Continue.Foi a vez de Ahnna falar sobre Southwatch.A princesa esfregou o queixo e depois tocou a réplica da ilha que guardava tão ferozmente.

— Todas as defesas de Southwatch estão em boas condições. Os danos que foram causadosdurante a temporada de tempestades conseguimos reparar durante os intervalos entre elas. —Contando com a página em sua mão, Ahnna detalhou o número de soldados parados, oesconderijo de armas, os suprimentos de comida e água.

— Todos vocês sabem — ela abaixou os papéis — que Valcotta foi capaz de manter umbloqueio parcial ao acesso de Maridrina a Southwatch, apesar do pedágio que tinha em sua frota.Esperávamos que iria prejudicar nossos lucros, mas a Imperatriz valcottana é muito experientepara nos dar um motivo para reclamar. Tínhamos navios mercantes valcottanos alinhados a dezmetros de distância em cada pausa entre tempestades, e eles compravam tudo, muitas vezes como preço usual. Quando os navios Maridrinianos tiveram a chance de chegar ao porto, havia poucopara comprar. Embora, para seu crédito, o Rei Silas estivesse priorizando comida, não seuprecioso aço e armas.

— Ainda está tudo em Southwatch? — Aren perguntou.— Temos um armazém inteiro cheio de armas — respondeu Ahnna. — Tudo estará

enferrujado quando ele chegar a vê-las com o ritmo em que as coisas estão indo. E, no entanto,eles continuam chegando.

— Seus compradores pegam todo o aço e armamento que os harendellianos oferecem emNorthwatch — disse Mara. — E os compradores valcottanos sabem disso.

Ahnna assentiu. — Mas ele não ousa usar seus recursos para recuperá-lo. Não com seu povotumultuando nas ruas. Eles estão morrendo de fome. E estão desesperados. E eles culpamIthicana por tudo isso.

O coração de Lara pareceu parar quando um súbito entendimento tomou conta dela. Ela tinhasido uma tola, imaginando que poderia ter acabado. Tinha acreditado, com esperança ilusória,que, sem a ajuda de sua espionagem, seu pai não teria como se infiltrar nas defesas de Ithicana.

Seu pai esperou quinze anos, investiu uma fortuna e a vida de vinte de suas filhas em suaaposta pela ponte. Ele mentiu, manipulou e assassinou para manter tudo em segredo. Não haviachance dele esquecê-la.

Não importando quanto custaria a Maridrina.Ela precisava falar com Aren sozinha. Precisava avisá-lo de que Ithicana estava em um

perigo maior do que já estiveram. Precisava fazer isso antes do término desta reunião, para queos indivíduos que protegiam as costas de Ithicana voltassem suas guarnições preparados paralutar.

Mas ela não podia pedir para falar com ele em particular sem que todos questionassem o queela e Aren estavam escondendo do conselho.

Pegando a pilha de notas de Aren, Lara se abanou vigorosamente, o suficiente para que osolhos se voltassem para ela. Então pegou seu copo de água, propositadamente jogando-o nochão, o copo quebrando.

Aren interrompeu sua discussão com Mara, virando-se para olhá-la.— Desculpe — ela murmurou.Os olhos dele se estreitaram quando Lara balançou em seus pés. — Está muito quente aqui.— Você está bem?

— Acho que preciso me sentar — disse ela, depois caiu para o lado nos braços dele.

3 8

AREN

— É MELHOR QUE ISSO SEJA IMPORTANTE — DISSE AREN ENTRE DENTES ENQUANTO A CARREGAVA

pelo corredor. — Porque eu não acredito merda nenhuma que você desmaiou.— Nos leve a algum lugar onde possamos conversar — foi a resposta sussurrada dela,

confirmando sua suposição.Abrindo a porta dos quartos, Aren acenou para os criados de olhos arregalados que corriam

atrás dele. — Muito tempo em pé. — Então ele deu uma cotovelada na porta, Lara deslizandoagilmente de seus braços no momento em que a trava clicou.

— Temos apenas alguns minutos — ela disse — então ouça com atenção. Meu pai formouuma aliança com Amarid.

Silêncio.— Ithicana tem espiões em ambos os Reinos, Lara, e nenhum deles relatou sequer uma

sugestão de aliança entre Maridrina e Amarid. Muito pelo contrário, na verdade.— Sim, sem dúvida é nisso que meu pai deseja que você acredite.Aren ouviu silenciosamente enquanto Lara explicava as conexões entre os ataques

concentrados na área de Midwatch, o vinho maridriniano e o rubi contrabandeado, e os naviossendo financiados em Amarid com as mesmas pedras preciosas. Um fluxo de pequenos detalhese coincidências que ele poderia ter deixado passar como nada, exceto pelo fato de saber por queLara havia sido enviada para Ithicana. Saber que Silas era seu inimigo.

— E há navios à espreita em torno de Midwatch. A nobre... — Ela parou, hesitando. — Anobre é apenas uma desculpa para os soldados estarem a bordo. Você sabe que eles estão meprocurando.

Foi lá que Aren interrompeu. — É claro que ele está procurando por você, Lara, porque semvocê, suas conspirações, sua aliança com Amarid - tudo - terminará em nada.

— Mas...Aren agarrou seus ombros. — Sem você, ele não tem nada.Lara não o traiu, Aren acreditava nisso. Confiava nela com seu coração, com a ponte, com

seu povo. No entanto, o brilho frenético nos olhos dela formava uma semente de dúvida em seupeito. — Você tem certeza de que não deu a ele nenhuma pista em suas cartas?

Lara encontrou seu olhar sem piscar. — Tenho certeza. Assim como tenho certeza de que eleestá criando uma situação em que não precisa mais de mim para conseguir a ponte. Ele fará issoà força.

Expirando profundamente, Aren disse: — Lara, ele já tentou isso antes. Tentou e falhou esofreu perdas catastróficas. Os Maridrinianos se lembram de como era enfrentar nossos

destruidores de navios. Ver seus camaradas se afogarem nas ondas, esmigalharem-se em rochas eserem despedaçados por tubarões. Silas pode contratar todos os navios Amaridianos que elequiser - não será uma luta que seu povo apoiará.

— Por que você acha que ele está os deixando passar fome?Seu sangue gelou abruptamente. — Para tentar nos fazer romper o comércio com Valcotta.Lara balançou a cabeça lentamente. — Essa é a última coisa que ele quer. Meu pai não quer

Ithicana como aliada; ele quer você como seu inimigo. — Seus olhos brilhavam com lágrimasnão derramadas. — E ele fez isso. Meu pai transformou você no vilão de Maridrina e logo elesvirão em busca de seu sangue.

Mesmo enquanto as palavras saíam da garganta de Lara, Aren sabia que eram verdadeiras.Que, apesar de tudo o que havia feito, tudo o que sonhou para o futuro de Ithicana, a guerraestaria à sua porta. Virando-se para longe de Lara, ele agarrou a coluna da cama que dividia comela, a madeira gemendo sob seus punhos.

— Você pode defender Ithicana contra as duas nações? — A voz de Lara era suave.Lentamente, ele assentiu. — Este ano sim. Mas é esperado que nossas perdas sejam

catastróficas. Ambos os Reinos têm muito mais soldados para lançar contra nós do que Ithicanatem a perder.

E quais eram as opções dele? A maneira mais segura de parar Silas seria unir forças comValcotta, mas isso seria desastroso para Maridrina. O povo de Lara morreria aos milhares,cortados por lâminas ou morrendo de fome. Vidas inocentes perdidas - tudo por causa daganância de um homem. Entretanto, fazer o contrário provavelmente significaria o fim deIthicana, a menos que Harendell intervisse, em que as ações passadas diziam o contrário.

— Não há solução — disse ele.Silêncio.— Pare de negociar com Valcotta. — As palavras de Lara saíram tão baixas que ele mal as

ouviu. — Tente minar o apoio a essa guerra com Maridrina. Faça de Ithicana a heroína.— Se eu romper as relações comerciais com Valcotta e usar meus recursos para quebrar seu

bloqueio a Maridrina, isso dizimará nossos lucros. Ithicana precisa da renda que Valcotta obtémem Southwatch para sobreviver. Não importa que eles que nos retaliarão. Você quer que euarrisque isso por especulações? Por coincidências?

— Sim.Silêncio.— Aren, você me trouxe aqui porque acreditava que seu povo precisava conhecer Maridrina,

para que houvesse paz entre nosso povo. Para que eles vissem Maridrina como um aliado, nãocomo o inimigo antigo. — Sua voz estava embargada. — Vai nos dois sentidos. Maridrinatambém precisa ver Ithicana como uma aliada. Como um amigo.

Os ombros de Aren se curvaram. — Mesmo que eu concorde com você, Lara, nunca levareio conselho a concordar. Eles acreditam que compramos a paz com Maridrina - que demos a seupai o que ele queria, então ele não tem motivos para nos atacar. Eles não arriscariam a receitavalcottana com base na suposição de que seu pai pode querer mais.

— Então talvez seja a hora de você contar a verdade sobre mim. Talvez isso seja suficientepara provar a gravidade da nossa situação.

Aren sentiu o sangue escorrer de seu rosto. — Eu não posso.— Aren...— Eu não posso, Lara. A reputação de Ithicana por crueldade não é totalmente imerecida. Se

eles descobrirem que você era uma espiã... — Sua boca estava seca como areia. — Não seria

uma execução misericordiosa.— Que assim seja.— Não. — Ele cruzou o espaço entre eles em três passos, puxando-a em seus braços, seus

lábios pressionando contra seus cabelos. — Não. Eu me recuso a entregá-la para ser executada.Eu vou muito bem deixá-los me alimentar ao mar antes que eu concorde com isso. Eu te amodemais.

E porque Aren sabia que ela era corajosa o suficiente para se sacrificar, quer ele quisesse ounão, acrescentou: — Se eles descobrissem a verdade sobre você, a última coisa que fariam seriaajudar o seu povo. Eles vão me forçar a me aliar formalmente com Valcotta, e o queaconteceria... Não tenho certeza se Maridrina sobreviverá.

Seus ombros começaram a tremer e depois soluços rasgaram sua garganta. — É impossível.Impossível salvar os dois. Sempre foi.

— Talvez não. — Aren a empurrou em direção à cama. — Eu preciso que você fique aqui emantenha sua atuação.

Lara passou a mão na bochecha. — O que você vai fazer?Parando com a mão na porta, Aren se virou para olhar para sua esposa. — Seu pai enviou

você para Ithicana com um propósito. Ele falhou. Mas também te trouxe aqui por uma razão,Lara. E acho que é hora de ver se minha jogada funcionou.

Ela não parou Aren quando ele saiu, seus longos passos devorando os corredores do palácioenquanto formava as palavras certas. Um discurso que ele usou inúmeras vezes, mas agora sevoltou para um propósito diferente. Chegando às câmaras do conselho, Aren pegou sua chave,abriu a porta e entrou.

A conversa parou bruscamente, depois Ahnna disse: — Nana enviou uma mensagem. Atemporada de tempestades acabou. As Marés de Guerra começaram.

Havia um recolhimento e mudança na sala, todos os comandantes e segundos presentes agoradesejosos de voltar a vigiar. Para se preparar para afastar seus inimigos, quem quer que sejam.Para terminar com essa reunião.

Mas Aren não terminou com eles.— Há mais um assunto que precisamos discutir — disse ele, o tom de sua voz fazendo com

que todas as cabeças se virassem. — Ou melhor, terminar de discutir. E esse é assunto é asituação do povo maridriniano.

— O que tem a dizer? — Aster disse, trocando uma risada com Mara. — Eles já fizeram suasescolhas.

— Assim como nós.O sorriso desapareceu do rosto de Aster.— Dezesseis anos atrás, Ithicana assinou um tratado de paz com Maridrina e Harendell. Um

tratado que ambos os Reinos mantiveram, nenhum deles atacando nossas fronteiras no períodointermediário. Nossos termos com Maridrina foram cumpridos. Eles me forneceram minhaadorável esposa e diminuímos os custos para usar a ponte.

— Suponho que você esteja indo direto ao ponto, Vossa Excelência — disse Mara.— Os termos foram cumpridos — Aren interrompeu — mas a questão da natureza do acordo

entre nossas duas nações permanece sem resposta. É, como a comandante Mara descreveu comtanta eloquência, um contrato comercial, onde Ithicana pagou a Maridrina pela paz? Ou é umaaliança em que nossos dois Reinos usam os termos do tratado para promover um relacionamentoalém da troca de serviços, produtos e moedas?

Ninguém falou.

— O povo de Maridrina está morrendo de fome. Pouca terra é fértil para a produção e, da quepode ser usada, mais da metade está em desuso por falta de mão de obra. Os ricos ainda sãocapazes de importar, mas e o resto? Com fome. Desesperados. Enquanto nós, seus chamadosaliados, negociamos com seus inimigos, enchendo os bolsos valcottanos com bens que Maridrinaprecisa desesperadamente, já que os valcottanos pagam mais. Sentados à toa enquanto os naviosvalcottanos negam a Maridrina o aço pelo qual eles pagaram. Não é à toa que eles chamam essetratado de farsa.

— O que está acontecendo em Maridrina é trabalho de Silas — disse Ahnna. — Não é nosso.— Isso é o que Silas está fazendo. Mas somos melhores em sentar e assistir enquanto

crianças inocentes vão para o túmulo quando temos o poder de salvá-las? Silas não é maisreflexo do seu Reino do que eu sou reflexo do meu, e nenhum de nós é imortal. Há um grandecenário.

— O que você está sugerindo, Aren? — Perguntou Ahnna com a voz apática.— Estou sugerindo que Ithicana exija que Valcotta abandone seu bloqueio. E caso eles

recusem, que lhes seja negado aportar em Southwatch. Que nos mostremos como aliados deMaridrina.

A sala explodiu em uma enxurrada de vozes, Aster é a mais alta de todas. — Isso soa comoas palavras de sua esposa, Vossa Excelência.

— Soa mesmo? — Aren se igualou ao homem com um olhar. — Há quanto tempo estouinsistindo para formarmos sindicatos com outros Reinos para que nosso povo tenhaoportunidades além da guerra? Para nós transformarmos Ithicana em algo mais do que apenasum exército que guarda violentamente sua ponte? Quanto tempo minha mãe insistiu antes demim? Estas não são as palavras de Lara.

Embora, de certa forma, elas fossem, porque, antes, ele só se importava em proteger seupróprio Reino. Sobre como Ithicana poderia se beneficiar com uma aliança. Agora Aren viu osdois lados, e acreditava que era um homem melhor por isso.

— Mas, para ter uma aliança que permita ao nosso povo essas oportunidades, não podemossimplesmente pegar. Temos que dar algo em troca. A situação de Maridrina? É umaoportunidade de mostrar a importância de Ithicana. Nossa importância.

— Isso é uma proclamação, então? — Aster cuspiu. — Arriscarmos nossos próprios filhos enão termos voz sobre isso?

Se Aren pudesse ordenar, ele teria, por nenhuma outra razão além de assumir a culpa caso ascoisas dessem errado. Mas não era assim que Ithicana funcionava — Nós votamos.

Lentos acenos e então a mãe de Emra disse: — Tudo bem então. Mãos para cima para quemestiver a favor.

A dela subiu imediatamente, assim como a de Emra e quatro dos outros comandantes maisjovens. Incluindo o voto de Aren, que fez sete, e precisava de nove. Essa foi uma das razõespelas quais não pediu para Lara voltar aqui com ele. Números ímpares garantiriam que a votaçãonão fosse interrompida. E tê-la ausente significava que ninguém poderia responsabilizá-la.

Vários da velha guarda, incluindo Aster, recuaram, balançando a cabeça. Mas Aren quasecaiu para trás quando Mara levantou a mão. Ao ver seu choque, o comandante da Northwatchdisse: — Só porque eu questiono você não significa que não acredito em você, garoto.

A única que faltava votar era sua irmã.Ahnna passou um dedo por Southwatch, a testa franzida. — Se fizermos isso, isso significará

a destruição de nosso relacionamento com Valcotta. Significa guerra para Ithicana.Aren olhou para a réplica de seu Reino. — Ithicana sempre esteve em guerra, o que temos a

mostrar?— Estamos vivos. Nós temos a ponte.— Você não acha que é hora de lutarmos por algo mais?Ahnna não respondeu, e o suor escorria pelas costas de Aren enquanto esperava a irmã

gêmea dar seu voto. Esperou para ver se deixaria de lado a desconfiança à Lara e à Maridrina. Seela arriscaria, esse salto de fé. Se lutaria ao lado dele, como sempre.

Ahnna deu à ilha um último carinho e depois assentiu uma vez. — Eu jurei há muito tempolutar ao seu lado, não importando as probabilidades. Agora não é diferente. Conte comSouthwatch.

3 9

LARA

OITO SEMANAS DEPOIS, LARA BATEU SUA CANECA CONTRA A DE JOR SOBRE A FOGUEIRA,gritando de rir quando um tronco estourou, borrifando faíscas em suas mãos.

Pela primeira vez na história, os meses de trégua das tempestades não significaram guerrapara Ithicana, embora parecesse que toda a nação prendera a respiração até que a estaçãoterminasse.

Depois do aviso de Aren para suspender o bloqueio ou arriscar perder o direito de negociarno mercado de Southwatch - o qual a Imperatriz valcottana havia ignorado - Ithicana dirigiu osnavios da frota valcottana para espreitar as costas de Southwatch, permitindo acesso total àsembarcações Maridrinianas. Aren começou a carregar os navios de Ithicana cheios de alimentose suprimentos, que foram entregues em Vencia e distribuídos aos pobres. Aren havia usadorepetidamente os cofres e os recursos de Ithicana para abastecer a cidade, até o povomaridriniano cantar seu nome nas ruas.

Seja porque ele havia perdido o apoio de seu povo para a guerra ou porque Lara não havialhe dado as informações de que precisava, o pai dela não levantou a mão contra Ithicana. NemAmarid, que parecia ainda estar lambendo suas feridas. E agora que as tempestades estavamchegando, os dois Reinos haviam perdido a chance por mais um ano. Ou talvez para sempre, se aforça do relacionamento entre o povo Ithicano e maridriniano fosse alguma indicação.

Não que não houvesse consequências. A imperatriz respondeu com uma carta dizendo a Arenque ele merecia tudo o que recebia por dormir com cobras, transformando toda sua armada emtransporte mercante, na tentativa de diminuir ainda mais as receitas da ponte, que já foramreduzidas pela metade por perder comércio com a nação do sul. Os cofres foram drenados. Mas,na mente de Lara, os civis Maridrinianos e Ithicanos estavam vivos. Eles estavam a salvo. Nadamais importava.

Ela cumprira seu dever como princesa e Rainha.— Seu irmão deve estar passando por Midwatch agora — disse Jor, entregando-lhe outra

caneca cheia de cerveja. — A maré está baixa. Poderíamos dar um passeio pela ponte e fazeruma visita a ele. Ter uma pequena reunião de família.

Lara revirou os olhos. — Vou passar. — Seu irmão Keris finalmente havia convencido seupai a dar permissão para frequentar a universidade em Harendell para estudar filosofia, e eleestava viajando pela ponte com toda sua comitiva de cortesãos e serventes para começar seuprimeiro semestre. Um dos mensageiros havia chegado à frente deles, e ele disse que pareciamum bando de pássaros, todos enfeitados com seda e jóias.

— Vamos — Aren murmurou em seu ouvido. — Estou ansioso por uma noite com você em

uma cama de verdade.— Você vai adormecer no segundo em que sua cabeça tocar no travesseiro. — Ela saboreava

o crescente calor do desejo entre as pernas, enquanto os dedos dele traçavam as veias de seusbraços. Ela ficou com ele no quartel durante todo o período das Marés de Guerra, mas a macaestreita do soldado não foi propícia ao romance. Embora eles tivessem se contentado.

— Eu aceito essa aposta. Vamos.Ele a levou pela chuva suave, o pior da tempestade já havia passado. Um dos soldados de

Aren estava do lado de fora e ele olhou para ela com surpresa. — Pensei que você já tivesse idoaté a casa.

— Ainda não. Jor continuava enchendo minha caneca. Eu acho que não vão ter mais cervejano momento em que seu turno terminar.

— Pensava que já tinha visto você, isso é tudo. — O grande guarda franziu a testa, depoisdeu de ombros. — Eles estão sinalizando para uma chegada de suprimentos no píer, entãoprovavelmente teremos bebidas chegando.

— Mandarei enviar para casa — Aren assegurou ao homem, puxando o braço de Lara.— Obrigada, Vossa Excelência. — Mas Aren já a estava arrastando pelo caminho, a corrente

da enseada se levantando atrás deles. A lama estremeceu sob as botas enquanto subiam a trilhaaté a casa que mal haviam visitado nas oito semanas anteriores, nenhum dos dois conseguindorelaxar o suficiente para se afastar do quartel.

— Um banho, primeiro — disse Lara, pensando sonhadora nas fontes quentes e fumegantes.— Você cheira a soldado.

— Você não está tão diferente, Majestade. — Aren a abraçou, a luz da lamparina dançandoloucamente de onde pendia na mão dela. Ela girou em seu aperto, envolvendo as pernas em voltade sua cintura. Um gemido suave escapou dos lábios dela quando se pressionou contra ele, comas mãos dele segurando sua bunda.

Lara o beijou com força, deslizando a língua em sua boca, depois riu quando ele escorregou,a lamparina caindo de suas mãos e escurecendo. — Não se atreva a me deixar cair.

— Então pare de me distrair — ele rosnou. — Ou serei forçado a arrastá-la para a lama.Ela deslizou para o chão e pegou a mão dele, levando-o a em uma corrida perigosa pela

encosta até avistar o gato de Aren, Vitex, sentado no degrau da frente, com o rabo tremendo deraiva.

— O que você está fazendo aqui fora? — Aren alcançou o gato que sibilou e saltou paralonge, mancando um pouco quando ele disparou para as árvores.

Lara observou-o partir. — Ele está machucado.— A fêmea que ele está perseguindo provavelmente arrancou algum pedaço dele. Ele

provavelmente mereceu. — Pegando-a pela cintura, Aren a levantou pelas escadas e abriu a portada casa.

Estava escuro.— Parece que Eli esqueceu de ligar uma lamparina. — A pele de Lara formigou quando

encarou a escuridão. Aren mandou avisar a casa que as Marés de Guerra haviam terminado,instruindo Eli a escolher uma garrafa de vinho cara do porão para a mãe e a tia. Mas o garotoIthicano nunca negligenciou seus deveres.

— Talvez ele tenha bebido o vinho — Aren murmurou, traçando beijos em sua garganta, asmãos encontrando seus seios. — Vai fazer bem a ele.

— Ele tem quatorze anos. — A casa estava silenciosa. O que não era exatamente incomum,mas havia algo sobre a natureza do silêncio que passava por Lara de um jeito estranho. Como se

ninguém respirasse.— Exatamente. Você sabe o tipo de coisa que estava fazendo aos catorze anos?Lara se afastou, ouvindo. — Eu deveria checá-lo.Um suspiro ofendido saiu da garganta de Aren. — Lara, relaxe. As tempestades estão aqui e

elas cumprirão seus deveres. — Puxando-a em seus braços, ele a beijou. Lentamente.Profundamente. Afastando todos os pensamentos da cabeça dela, enquanto a empurrava pelocorredor escuro para o quarto deles, onde, felizmente, havia uma lamparina queimando. A chamaamarela que empurrava a escuridão diminuiu a agitação em Lara, que afastou a cabeça quando osdentes do marido roçaram seu pescoço, sentindo a leve brisa da janela aberta.

— Tomamos banho depois — ele rosnou.— Não. Você fede. Saia e eu estarei lá em um momento.Resmungando, ele tirou a túnica e as braçadeiras, jogando as duas no chão, indo em direção à

antecâmara e para além da porta do pátio.Tirando a capa com capuz, Lara pendurou a roupa úmida em um gancho para secar e estava

desabotoando a parte superior da túnica quando seu coração disparou, seus olhos caindo em umacarta com um selo familiar. Ao lado, uma faca gêmea à da sua cintura estava em uma pequenapilha de areia vermelha, seus rubis brilhando na luz. A faca que Aren havia jogado nas docas deVencia. O medo encheu seu estômago enquanto caminhava até a mesa, pegando o papel pesadocom os dedos dormentes e quebrando a cera.

Querida Lara,

Mesmo em Vencia, ouvimos falar da afeição entre o Rei Ithicano e sua nova Rainha, e nos enche o coraçãosaber que você, por mais improvável que seja, encontrou amor em seu novo lar. Aceite nossos mais sincerosvotos de felicidades para o seu futuro, por mais curto que possa ser o esse.

Pai

— Aren — A voz dela tremia. — Por que essa carta não foi entregue no quartel? Quem atrouxe?

Sem resposta.Um movimento confuso de briga.Uma maldição abafada.Girando, ela pegou a faca na cintura. Então congelou. Aren estava de joelhos no outro lado

da sala. Uma figura encapuzada, vestida com roupas idênticas às de Lara, segurava uma lâminabrilhante na garganta. E, embaixo da cama ao lado deles, a mão de um jovem se projetava, dedoscobertos de sangue seco. Eli...

— Olá, irmãzinha — disse uma voz familiar e a mulher estendeu a mão e puxou o capuz.

4 0

LARA

— MARYLYN. — O NOME SAIU COMO UM GRASNIDO DA GARGANTA DE LARA, SEU PEITO CHEIO DE

emoção ao ver sua irmã novamente, mesmo sabendo o que a presença da outra mulhersignificava. Estava bonita e com cabelos loiros dourados.

Marylyn era a mulher nobre do navio que Emra havia abordado.— Lara. Aren começou a lutar, tirando Lara de seu transe. — Não se mexa — Lara o avisou. — A

lâmina dela está envenenada.— Você conhece meus truques.— Deixe ele ir.— Nós duas sabemos que não é muito provável que isso aconteça, pequena barata.O antigo apelido queimou em seus ouvidos enquanto seus olhos procuravam uma maneira de

desarmar Marylyn sem matar Aren. Mas não havia.— Quem é essa mulher? — Aren exigiu saber.— Lara é minha irmãzinha. Minha mentirosa, ladra e putinha irmã.As palavras eram como um tapa na cara. — Marylyn, eu vim aqui para poupar você.— Mentirosa. — A voz de Marylyn era puro veneno. — Você roubou o que era meu por

direito, depois me deixou apodrecer no deserto. Você tem alguma ideia de quanto tempo leveipara chegar em Vencia e explicar ao Pai o que você fez?

— Eu fiz isso para proteger você!— Lara, a mártir. — O lábio de Marylyn se repuxou em um sorriso de escárnio. — Somente

eu vi suas verdadeiras intenções, sua puta mentirosa.Lara olhou para ela, perplexa. A carta que havia deixado no bolso de Sarhina explicava tudo.

A intenção do pai de matar o resto delas. Que Lara falsificando suas mortes e depois tomando olugar de Marylyn como Rainha de Ithicana era a única maneira de salvar todas as vidas, exceto,talvez, a dela mesma. Ela lhes deu liberdade. — Ele ia matar nossas irmãs. Era a única maneira.Por que você não entende?

— Eu entendo perfeitamente. — Marylyn moveu a lâmina pressionada contra a garganta deAren, inclinando a ponta para cima. — Você acha que eu não sabia que o pai pretendia matar oresto de vocês? — Ela riu. — Você acha que me importei?

Esta não era a irmã dela. Não poderia ser. Marylyn sempre fora a mais doce. A mais gentil.Àquela que precisava ser protegida.

A melhor atriz.— Você disse que suas irmãs estavam mortas. — A voz de Aren a puxou de volta para o

momento.— O que agora, ela tem mantido segredos? — Marylyn acariciou sua bochecha com a mão

livre, rindo quando ele recuou. — Permita-me apresentá-lo a realidade, Majestade. Ninguémforçou Lara a vir a Ithicana para espionar, ela escolheu. Exceto que "escolher" nem sequer é umapalavra forte o suficiente. Lara conspirou contra todos nós a fim de garantir que ela seria Rainhade Ithicana, para que ela tivesse a glória de jogar seu povo às lâminas Maridrinianas.

— Isso não é verdade — Lara sussurrou.— Essa é a mulher com quem você se casou, Majestade. Uma mentirosa como nenhuma já

conhecida. Pior que isso, ela é uma assassina. Eu a vi matar. Mutilar. Torturar. Tudo a sanguefrio. Tudo um treinamento para o que ela pretendia fazer com o seu povo.

Essa parte era verdade. Uma dolorosa e deplorável verdade — Todas nós fizemos isso,Marylyn. Nenhuma de nós teve escolha.

A irmã mais velha revirou os olhos. — Sempre houve uma escolha. — Os olhos dela sevoltaram para Aren. — O que você acha que ele teria feito na mesma posição? Você acha que eleteria matado um homem inocente só para se salvar?

Não.— Barata egoísta, sempre se colocando em primeiro lugar. Embora eu possa entender porque

você decidiu ficar por perto depois de enfiar a faca nas costas dele. — Ela arrastou um dedo pelopeito nu de Aren. — Que prêmio ele é. Não nos disseram isso durante nossas aulas no complexo.Eu poderia testar algumas de suas habilidades antes de cortar sua garganta.

A fúria ardeu no peito de Lara e ela soltou a faca do cabo de jóias, embora o pensamento demachucar sua irmã a deixasse doente. — Não toque nele.

Marylyn apertou os lábios. — Por quê? Porque ele é seu? Primeiro que ele é meu por direito.Segundo é que, mesmo se eu pretendesse deixá-lo vivo, o que não quero, você realmente achaque ele vai querer algo com você agora que entende que tipo de mulher você é? Depois dedescobrir o que você fez?

— Eu não fiz nada.Pegando do bolso, Marylyn extraiu um grosso pedaço de pergaminho com bordas douradas.Não.— Reconhece isso, Vossa Majestade? — Marylyn segurou-o na frente do rosto de Aren. —

Você escreveu no último outono em resposta ao pedido de meu pai a manter-se fiel ao espíritodo Tratado dos Quinze Anos. Não é a resposta mais caridosa, embora eu suponho que vocêterminou ajudando no final. — Todo o corpo da irmã tremia de tanto rir.

Não é possível.Ela havia destruído todas as páginas.— Existe um tipo de tinta que fica invisível até ser pulverizada com outro agente. Nesse

ponto, torna-se bastante visível. Se você olhar nos aposentos de Lara, tenho certeza de queencontrará um pote, um pouco gasto.

Marylyn virou a carta, e Lara não pôde fazer nada enquanto Aren lia linha após linha de sualetra elegante expondo todos os segredos de Ithicana, uma estratégia para se infiltrar na ponteescrita detalhadamente.

Ela entregou Ithicana de joelhos.— Lara? — Os olhos de Aren queimaram nos dela e a angústia neles era como ter seu

coração arrancado de seu peito.— Eu não fiz... — Ela fez. — Eu escrevi isso antes. Antes de saber a verdade. — Antes que

ele arriscasse sua vida para salvar a dela. Antes de levá-la para sua cama. Antes que confiasse

nela por tudo. — Eu pensei que tinha destruído todas as cópias. Isto é... Isto é um erro. Eu teamo.

Ela nunca havia dito isso antes. Nunca disse a ele que o amava. Por que ela nunca disse issoantes?

— Você me ama. — Sua voz era apática. — Ou você estava apenas fingindo?— Como isso é trágico. — O relógio badalou pontuando as palavras de Marylyn. — Embora

eu suspeite que esteja prestes a piorar, já que o grupo de cortesãos de Keris cruzou seu caminhocom um carregamento de armas de Harendell.

Uma corneta soou. Um pedido de ajuda. Depois, outra e outra, até que as notas nada maiseram do que uma mistura de ruídos.

— Esses cortesãos saíram dos cais nas ilhas de Aela e de Gamire e atacaram seus postos daguarda pela retaguarda, desativando os destruidores de navios para que os navios Amaridianoscarregados com centenas de nossos soldados pudessem desembarcar sem serem atingidos.Mesmo agora, muitos deles estão migrando para Northwatch e Southwatch para atacá-los portrás. E temos homens usando as próprias cornetas sinalizadoras de Ithicana para garantir queninguém venha em seu auxílio. Isso é apenas o começo, é claro. As instruções de Lara erambastante detalhadas. Especialmente em como podemos tomar Midwatch.

O pânico brilhou nos olhos de Aren, e ela sabia o que estava pensando: todos os seussoldados - todos os seus amigos - estavam sentados no quartel, com a guarda baixa.

Marylyn continuou a tagarelar, mas a mente de Lara disparou. Se eles pudessem descer parao quartel, talvez pudessem fechar a corrente a tempo. E depois enviar um sinal para Southwatchavisando-os. Mas isso era impossível, a menos que ela desarmasse Marylyn.

— Não faça isso. Não seja mais o peão de nosso pai.O rosto da irmã ficou sombrio. — Eu não sou o peão de ninguém.— Você não é? Você faz o que ele pediu e para quê? Tudo o que nos disseram quando

crianças era uma mentira destinada a alimentar um ódio irracional a Ithicana. Para transformar-nos em fanáticas que não parariam por nada para atacar o inimigo. Mas nosso pai era o vilão. Eleé o opressor de quem Maridrina precisa se livrar. Nós fomos enganadas, Marylyn. Por que vocênão vê isso?

— Não, Lara. Você foi enganada. — Marylyn balançou a cabeça com piedade, a parte de trásda perna batendo na cama. — Eu sempre vi claramente. Você perguntou, o que eu tenho aganhar? Levando suas cabeças de volta a Vencia papai prometeu me encher de riquezas. Se eucaçar nossas outras irmãs rebeldes, ele me fará herdeira. Serei Rainha de Maridrina e mestre daponte. — Ela sorriu. — E não mais Ithicana.

A raiva consumiu Lara como um animal sensível, rondando através dos músculos e tendões,fazendo os dedos flexionarem na faca à mão. Mestre Erik sempre a alertou que a raiva a deixariadesleixada. Faria com que ela cometesse erros. Mas ele mentiu. A raiva deu-lhe foco. E foi essefoco que captou a leve mudança nos lençóis da cama atrás de Marylyn. Isso permitiu que ouvisseo leve assobio sobre a batida rápida de seu coração. Aren, nascido e criado neste Reinoselvagem, também o ouviu.

— Você está se iludindo. — Lara observou a forma se movendo. — Papai sabe que você éum "cachorro louco". E, uma vez que você tenha feito o trabalho sujo por ele, a deixará de lado.Ou eu poderia fazer isso por ele.

Ela jogou a faca.A lâmina cortou o ar, não tocando em Marylyn, mas afundando profundamente na cama, os

lençóis agora uma enxurrada de movimento.

— Perdeu sua manha. — Sua irmã gargalhou quando Aren se inclinou empurrando seu pesocontra ela. Eles tombaram contra a cama e a cobra ferida atacou. Marylyn gritando quando aspresas afundaram em seu ombro. Girando, ela soltou Aren e enfiou sua lâmina na cobra,prendendo seu corpo no colchão.

Lara já havia cruzado o quarto. Então bateu em Marylyn, levando as duas a rolarem no chão.Elas se agarraram, punhos e pés empurrando com a intenção de ferir. Mutilar. Matar. Golpe apósgolpe, ambas igualmente bem treinadas. No entanto, quando se tratava dessa coisa, a violência,Lara sempre foi melhor.

Segurando a cabeça de Marylyn em um gancho, Lara sussurrou: — Você não é a Rainha denada — em seguida, apertou os braços quebrando o pescoço da irmã.

A luz saiu dos olhos da outra mulher e o tempo pareceu parar.Como isso aconteceu? Parecia uma vida atrás que ela tinha tomado a decisão de se sacrificar

para salvar suas irmãs. Ser campeã de Maridrina. Para destruir o Reino da Ponte. Tudo mudoudesde então. Suas crenças. Sua lealdade. Seus sonhos. No entanto, agora uma de suas irmãsestava morta por suas mãos e Ithicana estava à beira de cair sob o jugo de Maridrina.

Apesar de tudo, seu pai ainda havia vencido.— O que você fez?O horror na voz de Aren fez seus dentes se apertarem. — Eu não pretendia que isso

acontecesse.Ele tinha um facão na mão, mas seu braço tremia quando apontou para ela. — Quem é você?

O que você é?— Você sabe quem eu sou.Sua respiração estava irregular. Com os olhos nunca a deixando, ele entendeu o braço para

recuperar o pedaço de papel que era a condenação de Ithicana, relendo as linhas, os pensamentosqueimando em seu rosto. Eles não podiam lutar contra isso.

Houve uma confusão lá fora. Com o som de homens gritando.— Eu não vou deixar você para trás para me condenar ainda mais — Aren sibilou.Lara não lutou quando ele amarrou seus pulsos com o laço de uma das cortinas. Ou quando

puxou uma fronha sobre sua cabeça e a arrastou para fora da sala, mesmo quando soldadosentraram na casa. Vozes Ithicanas, a princípio. Depois Maridrinianas. Então, caos.

Gritos cortaram o ar, lâminas contra lâminas, e ela foi empurrada de um lado para o outro.Cornetas ainda soavam, enchendo o ar com pedidos de ajuda que nunca chegariam. O ar da noiteencheu seu nariz, e ela estava caindo, joelhos batendo dolorosamente contra os degraus. Braçospuxando-a para cima e então eles estavam correndo.

Ramos chicoteando seu rosto, raízes tropeçando topando em seus pés, o chão escorregadio delama.

Vozes sibiladas. — Por aqui, por aqui.Gritos de perseguição.— Para baixo, para baixo. Você a amordaçou?O rosto dela estava pressionado contra o chão, terra molhada passando pela fronha. Uma

pedra cavou em suas costelas. Outra pressionou bruscamente contra seu joelho. Tudo pareciadistante, como se estivesse acontecendo com ela em um sonho. Ou com outra pessoa.

Eles continuaram a noite toda, a chuva forte ajudando-os a evitar o que pareciam inúmerossoldados Maridrinianos caçando-os por Midwatch, embora logicamente soubesse que nãopoderiam ser tantos. A essa altura, a elite de seu pai já teria descoberto o corpo de Marylyn - e aausência dela e de Aren - e não havia dúvida de que encontrá-los tinha quase a mesma prioridade

que tomar a ponte.Somente quando o amanhecer chegou, filtrado em cinza pelas nuvens e o tecido cobrindo seu

rosto estava encharcado, eles encontraram abrigo. Havia vozes familiares no grupo. Jor e Lia.Outros da guarda de honra. Seus ouvidos se voltaram para os de Aren, mas nem uma vez oescutou entre os sussurros.

Ainda assim, ela tinha certeza de que ele estava lá. Sentiu sua presença. Sentiu a culpa, araiva e a derrota irradiando dele em ondas quando aceitou a queda de seu Reino. Sabia,instintivamente, quando ele mandou todos embora para que estivesse sozinho com ela.

Lara esperou por um longo tempo para ele falar, se preparou para a culpa e acusações. Arenpermaneceu calado.

Quando não aguentou mais, Lara se levantou, erguendo os pulsos amarrados para puxar afronha da cabeça, piscando na penumbra.

Aren estava sentado em uma pedra a alguns passos de distância, cotovelos apoiados nosjoelhos, cabeça baixa. Ele ainda estava sem camisa, e a chuva caía em torrentes pelas costasmusculosas, lavando manchas de sangue e lama. Um arco e aljava repousavam sob o abrigo deuma saliência. Um facão estava preso à cintura. Em sua mão, ele segurava a faca dela - a quejogou na cobra - e ele a virava repetidamente como se fosse algum artefato que nunca tinha vistoantes.

— Alguém saiu? — Sua voz raspou como uma lixa sobre madeira áspera. — Para avisarSouthwatch?

— Não. — Suas mãos pararam, a ponta afiada da lâmina brilhando com a chuva. — Taryntentou. Os Maridrinianos usaram nossos próprios destruidores de navios com proficiênciachocante. Ela está morta.

Dor aguda penetrou no estômago de Lara, sua boca ficou com um gosto azedo. Taryn estavamorta. A mulher que nem queria ser soldada estava morta, e foi por sua culpa. — Eu sintomuito.

Ele levantou a cabeça e Lara recuou com a fúria de seus olhos. — Por quê? Você conseguiutudo o que queria.

— Eu não queria isso. — Exceto que ela tinha, em um momento. Queria destruir Ithicana.Esse desejo os levou a esse ponto, não importando o quanto se arrependesse.

— Chega de suas mentiras. — Ele estava de pé em um movimento suave, caminhando emdireção a ela, faca na mão. — Ainda não tenho um relatório completo, mas sei que a ponte caiupor seu pai, usando um plano para se infiltrar em nossas defesas, melhor do que eu poderiaimaginar. Seu plano. — Quando ele levantou a voz, ela não pôde deixar de vacilar, sabendo queainda estavam sendo caçados.

— Eu pensei que tinha destruído todas as evidências. Não sei como me escapou...— Cale-se! — Ele levantou a lâmina. — Meu povo está morto e morrendo por sua causa. —

A faca escorregou de seus dedos. — Por minha causa.Puxando o maldito pedaço de papel do bolso, ele o segurou no rosto dela. Não o lado em que

ela havia escrito, mas o que ele havia escrito, a letra fluida e clara. Palavras que convenceram opai a reconsiderar sua guerra com Valcotta e a colocar seu povo à frente de seu orgulho. Seupeito ficou vazio enquanto ela lia o final.

Entretanto, que seja dito, se você tentar matar sua espiã, Ithicana tomará como um ato deagressão contra sua Rainha e a aliança entre nossos Reinos será irrevogavelmente desfeita.

Aren caiu de joelhos na frente dela, segurando as laterais de seu rosto, os dedos emaranhadosem nos cabelos. Lágrimas brilhavam em seus olhos. — Eu te amei. Eu confiei em você. Comigo

mesmo. Com o meu Reino.Amou. Pretérito. Porque ela nunca mereceu o amor dele e agora o perdeu para sempre.— E você estava apenas me usando. Apenas fingindo. Foi tudo um ato. Um plano.— Não! — Ela arrancou a palavra de seus lábios. — No começo sim. Mas depois... Aren, eu

amo você. Por favor, acredite nisso, pelo menos.— Eu costumava me perguntar por que você nunca disse isso. Agora eu sei. — Seu aperto no

rosto aumentou, então ele afastou as mãos. — Você diz isso agora apenas porque está tentandosalvar sua própria pele.

— Isso não é verdade!Explicações brigaram entre si para sair qual de sua boca primeiro. Maneiras de fazê-lo

entender. Maneiras de fazê-lo acreditar nela. Todas elas morreram nos lábios quando pescou afaca da lama.

— Eu deveria te matar.Seu coração palpitava no peito como um pássaro enjaulado.— Mas, apesar de tudo, tudo, o que você fez, não tenho coragem de enfiar essa lâmina em

seu sombrio coração maridriniano.A lâmina passou entre seus pulsos, cortando a corda em um puxão limpo. Ele pressionou o

punho da faca na palma da mão dela.— Vá. Corra. Não tenho dúvida de que você conseguirá sair desta ilha. — Sua mandíbula se

apertou. — É da sua natureza sobreviver.Lara olhou para ele, com os pulmões paralisados. Ele não a estava deixando ir, estava...

banindo-a. — Por favor, não faça isso. Eu posso lutar Posso te ajudar. Eu posso...Aren empurrou seus ombros com força o suficiente para fazê-la tropeçar para trás. — Vá! —

Então ele se abaixou e pegou seu arco, armando-o com uma das flechas pretas.Firmando-se em pé, ela abriu os lábios, desesperada para não perder a chance de desfazer o

dano que havia causado. A chance de lutar contra o pai. De libertar Ithicana.De conquistar Aren de volta.— Vá! — Ele gritou a palavra para ela, mirando a flecha na testa dela, enquanto lágrimas

caíam pelas bochechas. — Eu nunca mais quero ver seu rosto. Eu nunca mais quero ouvir seunome. Se houvesse uma maneira de tirar você da minha vida, eu faria. Mas até encontrar forçaspara colocá-la em uma cova, isso é tudo o que tenho. Agora corra!

Seus dedos tremeram na corda do arco. Ele faria. E isso o mataria.Lara se virou na lama, correndo pela encosta, os braços balançando vigorosamente. Suas

botas escorregaram e deslizaram quando pulou sobre as árvores caídas e bateu nas samambaias.E parou. Apoiando a mão em uma árvore, ela se virou. A tempo de ver a flecha dele raspando

seu rosto, batendo na árvore ao lado dela.Ela apertou uma mão trêmula contra a linha cortada em sua bochecha, uma gota de sangue

correndo entre os dedos. Com os olhos fixos nela, Aren puxou outra flecha de sua aljava,encaixou-a e mirou a ponta afiada. Os lábios dele se moveram. Corra.

Ela correu, nunca olhando para trás de novo.

4 1

LARA

— OUTRA.O barman levantou uma sobrancelha sobre a caneca que estava polindo com um pano sujo,

mas não fez nenhum comentário enquanto enchia o copo com o vinagre que a taberna chamavade vinho. Não que isso importasse; não era como se ela pretendesse saboreá-lo.

Virando o conteúdo em três goles, Lara empurrou o copo de volta através do bar — Encha.— Meninas bonitas como você poderiam se meter em encrenca por beber do jeito que você

bebe, senhorita.— Uma garota bonita como eu cortará a garganta de qualquer um que lhe causar problemas.

— Ela deu um sorriso que mostrava todos os dentes — Então, que tal você não tentar o destino eapenas entregar a garrafa. — Ela jogou algumas moedas estampadas com o rosto do ReiHarendell na direção do homem. — Aqui. Nos salva de ter que trocar mais palavras essa noite.

Mais sábio do que parecia, o barman apenas deu de ombros, pegou as moedas e entregou-lheuma garrafa cheia de vinagre. Mas, mesmo bêbada, considerou as palavras dele. O rosto dela erafamiliar aqui. Era hora de encontrar um novo poço para se afogar todas as noites.

O que era uma pena. Cheirava a cerveja e vômito derramados, mas ela gostava desse lugar.Bebendo diretamente da garrafa, ela olhou obscuramente a sala, mesas cheias de marinheiros

de Harendell vestidos com calças largas e aqueles estúpidos chapéus pescadores que nuncadeixavam de lembrá-la de Aren. Um trio de músicos tocava no canto. Garçonetes levavambandejas de carne assada fumegante e grossas sopas para os clientes, o cheiro deixando-a comágua na boca. Acenando, então, para uma das mulheres com uma tigela de sopa passando nafrente dela momentos depois.

— Aqui está você, Lara.Merda. Estava na hora de partir. Há quanto tempo estava nesta cidade? Dois meses? Três?

Na névoa do álcool, ela perdeu a noção dos dias, parecendo que foi a uma vida inteira e eraapenas ontem quando arrastou o barco surrado para uma praia de Harendell, faminta e as roupasainda vermelhas com o sangue de soldados Maridrianos que matou para fugir de Midwatch.

O cheiro de sopa fez cócegas em seu nariz, mas seu estômago azedou, então ela empurrou atigela para longe, bebendo, no lugar, a garrafa.

O mais inteligente seria se mudar para o interior, para o norte e para longe de todos aquelesque conheciam e se importavam com Lara, A Rainha Traidora de Ithicana. Os agentes de seu paia procurariam - talvez outra de suas irmãs, pelo que sabia - e uma náufraga bêbada como ela eraum alvo fácil.

Mas ela continuou encontrando desculpas para não ir. O clima. A facilidade de roubar

moedas. O conforto dessa pocilga de taberna. Só que ela sabia que a razão de sua estadia era aquiporque as notícias de Ithicana estavam nos lábios de todos. Noite após noite, se sentava no bar,ouvindo os marinheiros conversando sobre essa batalha e aquilo, esperando e rezando para que amaré mudasse. Que, em vez de resmungar sobre o crescente domínio de Maridrina, ela ouviriaque Aren estava de volta ao poder. Que Ithicana tomou posse da ponte novamente.

Esperanças desperdiçadas.A cada dia que passava, as notícias pioravam. Ninguém em Harendell ficou particularmente

satisfeito com o fato de Maridrina agora controlar a ponte - os velhos já lamentavam os bons evelhos tempos de eficiência e neutralidade Ithicana - e houve muita conversa sobre aprobabilidade do Rei harendelliano intervir. Exceto que, mesmo assim, Lara sabia que não seriaaté depois da temporada de tempestades, daqui a seis meses. E a essa altura... a essa altura, seriatarde demais.

—... batalha com os Ithicanos... o Rei... prisioneiro.Os ouvidos de Lara se atiçaram, inquietos afastando a névoa do vinho. Virando-se para a

mesa atrás dela, que estava cheia de um grupo de homens corpulentos com bigodes igualmentegrossos, ela perguntou: — O que você disse sobre o Rei da Ithicana?

Um dos homens sorriu lascivamente para ela. — Por que você não vem aqui e eu vou lhecontar tudo o que há para saber sobre o pobre tolo? — Ele bateu em um joelho, coberto demanchas de graxa.

Pegando a garrafa, Lara se aproximou da mesa e a colocou entre as canecas. — Aqui estou.Agora, o que você estava dizendo?

O homem deu um tapinha no joelho. Ela balançou a cabeça. — Estou bem em pé, senhor.— Eu ficaria melhor com essa sua bela bunda no meu colo. — A mão dele girou em um arco

largo, estalando contra o traseiro dela, onde permaneceu, seus dedos carnudos cavando suacarne.

Lara esticou o braço para trás, segurando com firmeza o pulso dele. O idiota teve a coragemde sorrir. Puxando com força, ela girou, batendo a palma da mão contra a mesa e, um batimentocardíaco depois, cravando sua adaga nela.

O homem gritou e tentou se afastar, mas a lâmina da faca estava presa na madeira embaixode sua mão.

Um dos outros a alcançou, mas caiu para trás, com o nariz quebrado.Outro mirou o punho em seu rosto, mas ela se esquivou facilmente, a ponta da bota pegando-

o na virilha.— Agora. — Ela descansou uma mão na faca e deu uma torção suave. — O que você estava

dizendo sobre o Rei de Ithicana?— Que ele foi capturado em uma briga com os Maridrinianos. — O homem estava chorando,

se contorcendo em seu assento. — Ele está preso em Vencia.— Você está certo?— Pergunte a qualquer um! As notícias chegaram de Northwatch. Agora, por favor!Lara o olhou pensativa, nada em seu rosto revelando o terror crescente em suas entranhas.

Soltando a faca, ela se inclinou. — Se você der tapa em outra bunda eu pessoalmente vou teencontrar e cortar essa mão fora.

Girando nos calcanhares, ela acenou com a cabeça para o barman e saiu pela porta, malsentindo a chuva que caía em seu rosto.

Aren havia sido capturado.Aren era um prisioneiro.

Aren era refém de seu pai.O vento puxava e torcia seus cabelos. O último pensamento repetiu-se infinitamente em sua

mente quando Lara caminhou em direção à pensão, as pessoas pulando fora de seu caminhoquando passou. Havia apenas uma razão para o pai manter Aren vivo: usá-lo como isca.

Subindo os degraus dois de cada vez, ela destrancou a porta do quarto, batendo-a atrás dela.Bebendo água diretamente de uma jarra, tirou o simples vestido azul que usava e vestiu suasroupas Ithicanas, embalando rapidamente seus poucos pertences em um saco. Então, com umpedaço de carvão na mão, ela se sentou à mesa.

O colar estava quente por descansar em sua pele, as esmeraldas e diamantes brilhando à luzdas velas. Ela não tinha o direito de usá-lo, mas o pensamento de o colar ser roubado, de serusado por qualquer outra pessoa era insuportável, então nunca o tirava.

Ela fez isso agora.Colocando o colar no papel, Lara traçou as jóias com o carvão, a névoa do vinho diminuindo

lentamente enquanto trabalhava. Quando o desenho terminou, ela devolveu o colar à garganta elevantou um mapa completo de Ithicana, com o olhar fixo no grande círculo a oeste do resto.

Isso é loucura, a parte lógica de sua mente gritou. Você mal sabe nadar, é uma marinheira demerda e está no meio da temporada de tempestades. Mas seu coração, que era frio e ardentedesde que fugiu de Aren, em Midwatch, agora queimava com uma ferocidade que não serianegada.

Colocando o mapa no bolso, ela apertou as armas e saiu para a tempestade.

Lara levou três semanas para chegar lá, e quase morreu uma dúzia de vezes ou mais durante ajornada. Tempestades violentas a perseguiram até dentro de pequenas ilhas, ela gritando com ovento enquanto arrastava seu pequeno barco por cima da tempestade. Ela lutou contra cobras quepensavam se esconder sob a cobertura de seu barco; rajadas de vento esquisitas que rasgavamsua vela simples; e ondas que a afogavam, roubando todos os seus suprimentos.

Mas foi chamada de barata por um motivo, e aqui estava ela.O céu estava cristalino, o que provavelmente significava que o pior tipo de tempestade estava

iminente, e o sol quase a cegou nos reflexos das ondas. O barco dela, a vela abaixada, balançavaum pouco além da sombra do enorme vulcão, o único som sendo as ondas que batiam contra ospenhascos.

Lara ficou de pé, com os joelhos tremendo enquanto segurava o mastro para se equilibrar.Havia um brilho da luz do sol batendo em vidro nas profundezas das encostas da selva, masmesmo sem ele, sabia que estavam assistindo-a.

— Abra — ela gritou.Em resposta, um estalo alto dividiu o ar. Lara xingou, observando uma pedra voar pelo ar em

sua direção. Ela atingiu a água a alguns passos de distância, encharcando-a, as ondas quasevirando seu barco.

Voltando seus pés para onde estava encolhida no fundo, ela enfiou os dedos no mastro,lutando para dominar seu medo da água sua volta.

— Ouça-me, Ahnna! — Os outros Ithicanos teriam batido nela de início. Somente a princesase preocupou em aterrorizar primeiro. — Se você não gostar do que tenho a dizer, pode me jogarde volta no mar.

Nada se mexeu. Não havia outro som além do rugido do oceano.

Então, um chocalhar partiu o ar, o som característico dos portões para Eranahl se abrindo.Pegando o remo, Lara manobrou para entrar.

Rostos familiares cheios de uma fúria congelante a encontraram quando o barco bateu contraos degraus. Ela não lutou quando Jor a puxou pelos cabelos, as escadas de pedra arranhando suascanelas enquanto a arrastava, rosnando: — Eu cortaria seu coração aqui e agora, se não fossepelo fato de Ahnna merecer a honra. — Ele puxou um capuz sobre a cabeça dela, obscurecendosua visão.

Eles a levaram ao palácio, os sons e cheiros dolorosamente familiares e, enquanto contava ospassos e as curvas, Lara sabia que estava sendo levada para a sala do conselho. Alguém,provavelmente Jor, chutou a parte de trás de seus joelhos quando eles entraram, e ela caiu,palmas batendo no chão.

— Você tem muita coragem de voltar, vou lhe dar isso.O capuz foi arrancado da cabeça dela. Se levantando, Lara encontrou o olhar de Ahnna, seu

estômago apertando ao encarar a cicatriz cruel que agora corria do meio da testa da mulher até abochecha. O fato dela não ter perdido os olhos era um milagre. Ao seu redor havia meia dúzia desoldados, todos com marcas de terem escapado por pouco de Southwatch com vida. E atrásdeles, pendurado na parede, havia um grande mapa de Maridrina.

— Me dê uma boa razão para eu não cortar sua garganta, sua vadia traidora.Lara forçou um sorriso em seu rosto. — Não é muito criativo.Uma bota a encontrou nas costelas, virando-a. Pressionando a mão contra seu lado, Lara

lançou um olhar sombrio para Nana, a dona da bota, antes de voltar sua atenção para a mulher nopoder. — Você não vai cortar minha garganta porque meu pai tem Aren como prisioneiro.

A mandíbula de Ahnna se apertou. — Um fato que não ajuda para o seu lado.— Precisamos recuperá-lo.— Nós? — A voz da princesa era incrédula. — Seu pai tem Aren dentro de seu palácio em

Vencia, que tenho certeza de que é uma verdadeira fortaleza guardada pela elite do exércitomaridriniano. Meus melhores não foram capazes de entrar. Cada um deles morreu tentando. Dequalquer forma, me divirta com o porquê de que você será de qualquer ajuda. Você vai seduziraté entrar, vadia?

Lara a encarou, o silêncio pairando na sala sufocante.Por quinze anos, ela foi treinada em como se infiltrar em um Reino impenetrável.Como descobrir pontos fracos e explorá-los.Como destruir seus inimigos.Como ser impiedosa.Ela nasceu para isso.No entanto, Lara não disse nada porque as palavras não convenceram essas pessoas que

acreditavam - com razão - que ela era uma mentirosa.Inspire. Expire.Ela se moveu.Estes eram guerreiros endurecidos pela batalha, mas o elemento de surpresa era dela. E ela

era o que era. Sem segurar nada, ela girou, punhos e pés um borrão enquanto desarmou ossoldados ao seu redor, derrubando-os. Afastando-os.

Ahnna lançou-se com um grito, mas Lara passou um pé em volta de suas pernas e rolou comela, escalando a princesa alta para um estrangulamento, a faca da outra mulher na mão livre.

O silêncio encheu a sala, os guerreiros se recuperando e a olhando com um novo e saudávelrespeito, enquanto pensavam em como poderiam desarmá-la.

Lara lançou os olhos pela sala, encontrando cada olhar individualmente antes de soltar agarganta de Ahnna. A outra mulher se afastou, ofegando, olhos cheios de choque. Lara levantou-se.

— Você precisa de mim, porque eu conheço nosso inimigo. Fui criada por eles para ser suamaior arma, e você viu em primeira mão o que posso fazer. O que eles nunca consideraram é quea maior arma deles poderia ser lançada contra si próprios. — E Lara não era a única arma queeles criaram: havia dez outras jovens mulheres por aí que lhe tinham uma dívida vitalícia, que elapretendia cobrar.

— Você precisa de mim porque eu sou a Rainha de Ithicana. — Girando, ela atirou a faca damão, observando-a cravar no mapa, marcando Vencia - e Aren - com perfeita precisão. — Echegou a hora de meu pai ficar de joelhos.

Obrigada por lerem! A história da Lara e do Aren continua em THE TRAITOR QUEEN.