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85 Terceiro Manifesto Camp 1 “Tudo que é profundo gosta da máscara.” Friederich Nietzsche "Somente as pessoas superfíciais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível." Oscar Wilde " Por vivermos numa sociedade onde tudo que se refere ao individual está tão presente, no gosto, no comportamento, na cultura, esquecemos, ou nos fazem esquecer, que o indivíduo é uma construção e não dado inerente ao humano. O próprio mito do Homem emergiu na Grécia clássica em oposição ao mito miceno-cretense e egeo-anatólio de Dioniso (SOUZA, E. de: 1973, 126). Portanto, criar uma cultura antropocêntrica e metafísica em meio ao teocentrismo 1 O título faz uma referência ao livro Second Manifeste Camp de Patrick Mauriès. Este ensaio teve partes publicadas em Gragoatá, 3, 2 o . semestre, 1997, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense; e em Lugar Comum, 9/10, set 1999/abril 2000, NEPCOM/Universidade Federal do Rio de Janeiro. 63

Terceiro Manifesto Camp

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Terceiro Manifesto Camp1

“Tudo que é profundo gosta damáscara.”

FriederichNietzsche

"Somente as pessoassuperfíciais não julgampelas aparências. O mistériodo mundo está no visível,não no invisível."

Oscar Wilde "

Por vivermos numa sociedade onde tudo que se refere ao

individual está tão presente, no gosto, no comportamento, na

cultura, esquecemos, ou nos fazem esquecer, que o indivíduo é

uma construção e não dado inerente ao humano.

O próprio mito do Homem emergiu na Grécia clássica em

oposição ao mito miceno-cretense e egeo-anatólio de Dioniso

(SOUZA, E. de: 1973, 126). Portanto, criar uma cultura

antropocêntrica e metafísica em meio ao teocentrismo

1 O título faz uma referência ao livro Second Manifeste Camp de PatrickMauriès. Este ensaio teve partes publicadas em Gragoatá, 3, 2o. semestre,1997, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense; e em LugarComum, 9/10, set 1999/abril 2000, NEPCOM/Universidade Federal do Rio deJaneiro.

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generalizado foi a grande revolução grega, o que implicou pela

primeira vez a separação entre natureza e cultura.

O individualismo, como um desdobramento histórico do mito

do Homem, é uma ideologia moderna, ou seja, um conjunto de

representações comuns, específicas da civilização moderna, em

formação a partir do Renascimento. O individualismo destaca o

indivíduo do mundo contrapondo-se a uma perspectiva holística.

Não é que o indivíduo enquanto sujeito empírico seja uma

característica nova da modernidade, mas sim enquanto ser moral,

autônomo e essencialmente não social (DUMONT, L.: 1985, 279-80),

o que obviamente causa tensões em sociedades, como as modernas,

construídas sobre esses novos valores. Por um lado, o indivíduo

tornou-se um sustentáculo da sociedade capitalista, da

burguesia, encarnado no apogeu do liberalismo pelo "self-made

man". O individualismo possibilitou, em último grau, até mesmo a

exploração e colonização de todo o mundo conhecido, abrindo

novos mercados consumidores à Europa e aos Estados Unidos. Mas,

por outro lado, o individualismo trazia em si sua própria crise,

já presente no artista moderno do século passado (dos ultra-

românticos e Baudelaire aos decadentistas e simbolistas), ao

moldar o comportamento de recusa do social, ou pelo menos, da

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sociedade burguesa, por parte das vanguardas. Essa sensação de

insatisfação frente ao social se alastrou por todo o século XX,

particularmente com a sociedade de massas, nos diferentes

estratos sociais. A subjetividade, que se pretendia liberta da

sociedade, fragmentou-se, de forma crescente, até o processo de

perda de uma identidade individual claramente definida.

O leque de análises sobre a subjetividade contemporânea é

bastante amplo e diversificado, mas tem como principal problema

a relação entre homem e mundo. A tese principal de Richard

Sennett em O Declínio do Homem Público (1988) é que à medida que o

espaço público foi psicologizado, ou seja, vivido em termos

pessoais, o espaço privado se viu crescentemente reduzido,

isolado e destituído de significado. No comprazer-se em

confissões caudais, o indivíduo perdeu, paradoxalmente, o senso

de sua diferença, pois esta só pode ser estabelecida em relação

a um outro. A perspectiva de Sennett não esconde sua visão de

vivência do espaço público nos limites inaugurados pelos ideais

democráticos do século XVIII, constatando na sociedade intimista

de hoje um acoplamento entre narcisismo e comunidade destrutiva,

segregadora, segregada e bairrista. Mesmo em um trabalho

posterior, que tenta lançar pontes sobre novas vivências do

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espaço público, Sennett enfatiza o isolamento do desenho urbano,

em detrimento das tentativas de superar as fronteiras reais

entre bairros e guetos, possibilidade que ele vislumbra na arte

(1991, 261). A não ser pela arte, o espaço público parece

trivializado pelo consumo e turismo, desprovido de uma

experiência humana (idem, XII/XIII).

No lugar de um indivíduo autônomo, conquistador, emerge um

eu mínimo, defensivo, narcísico. Segundo Cristopher Lasch

(1987), o narcisismo frutifica não só como uma atitude

existencial mas também cultural. Ao se fechar dentro de si,

ainda que por uma estratégia de sobrevivência, a subjetividade

se perde mais. A capacidade de ser outro, de compreender um

outro se rarefaz. Lasch tem o mérito de abordar uma problemática

vinculada a um mal-estar frente ao consumismo em sociedades de

massas, mas sua tendência apocalíptica é bastante unilateral.

No que Lasch e Sennett vêem um problema, o

(neo)individualismo, Lipovetsky (1988) vê uma solução. Valoriza

a moda, como uma espécie de sinal do efêmero erigido em sistema

permanente e fator de incentivo a valores democrático-liberais.

A lógica da moda, do efêmero implica a autonomia do sujeito num

culto do hedonismo, da pluralidade. É por essa perspectiva que

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deve ser encarada a sociedade, ou seja, através da mescla do

efêmero e da fantasia, da readaptação permanente, do tempo que

urge e do espaço que se aproxima midiaticamente. A moda não é só

questão de consumo mas de identidade. Ser não é ter mas parecer.

No entanto, quem melhor caracteriza as possibilidades de

superação do impasse narcisista e desenvolve novas perspectivas

de encenação do espaço público, de reencantamento do mundo para

além de uma esfera privada, íntima é Michel Maffesoli. Embora

haja uma tendência em sua obra de subestimar as questões

decorrentes do narcisismo e seu confronto com outras

subjetividades, de fato relevantes hoje em dia, sua defesa de um

neo-tribalismo (1987) abre novas possibilidades. Trata-se de uma

ordem, talvez até mais projetiva do que presente, em que a

tatibilidade, o sensível são valorizados em detrimento de

associações mais institucionalizadas. O sujeito contemporâneo

não segue o modelo do individualismo clássico, seguramente

inserido no contexto de redes sociais claramente delineadas, de

onde sua identidade também claramente definida emergiria. Também

diferente do Narciso entrincheirado na sua intimidade, os

primitivos dessa nova era cartografam em grupos e tribos a

paisagem das metrópoles em crise. E nesse perambular noturno à

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toa pelos bares, ruas, festas, cria-se um novo valorizar do

espaço público, distinto da tradição iluminista, centrado em

movimentos políticos organizados como partidos, sindicatos,

aproximando-se mais de uma tradição popular, espontaneísta,

celebratória. Introduzir a ficção na vida cotidiana é uma

manifestação de resistência que escapa à temática "ativista" da

liberação (MAFFESOLI, M.: l984, 69). O desafio desse novo

sujeito é articular suas máscaras em constante troca, seu eu

mutante, sem se deixar dissolver no puro movimento, na

velocidade, no mercado de imagens. O que também exige a

configuração de um “paradigma estético” para a compreensão da

criação e da composição de perceptos e afetos mutantes

(GUATTARI, F.: 1992, 116).

É importante lembrar que Maffesoli apontou em mais de um

momento a sociedade brasileira como verdadeiro laboratório

para esta sociabilidade. Alguns de seus muitos discípulos no

Brasil têm ampliado suas sugetões. Ainda seria o caso de

lembrar que a própria definição eurocêntrica de público e

privado tem sido reavaliada para outros países como o Brasil.

Não é meu propósito aprofundar esta discussão, no momento, mas

tenho consciência da generalidade de minhas afirmativas, nesta

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introdução que apenas deseja colocar o camp num horizonte

transnacioal a que ele de fato pertence.

*

Dentro desse novo paradigma é que o camp ganha mais

interesse, para o que é necessário redimensionar a problemática

da homossexualidade posta à deriva. O camp, nas suas origens,

não pode ser chamado de fundamentalmente gay, mas

especialmente nesse século tornou-se um elemento definidor,

sem ser totalizador, da identidade homossexual. Apesar disso,

o camp só emerge teoricamente no clássico ensaio de Susan

Sontag, “Notas sobre o Camp” (1964), simultaneamente a um

corte na história dos movimentos e representações

homossexuais, representado pelo influxo da Contracultura nos

anos 60, que procurou dar mais visibilidade e mesmo assimilar

comportamentos originários de tradições culturais mais

diversificadas e “menores” dentro da história ocidental,

momento decisivo para a disseminação do camp para longe dos

guetos homossexuais.

O termo é de difícil tradução para o português, ainda que

muito presente na nossa cultura. Enquanto comportamento, o camp

pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos

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homossexuais, ou simplesmente à afetação. Já enquanto questão

estética, o camp estaria mais na esfera do brega assumido, sem

culpas, tão presente nos exageros de muitos dos ícones da MPB,

especialmente o culto a certas cantoras e seus fãs. Mas hoje em

dia, “a chave para definir o camp está em reconciliar sua

essencial marginalidade com sua evidente ubiqüidade, mantendo

sua diversidade, embora fazendo sentido disso tudo” (BOOTH,

M.: 1983, 11). O camp se caracteriza por uma predileção pelo

artificial e pelo exagero, por um tipo de esteticismo, uma forma

de ver o mundo como um fenômeno estético (SONTAG, S.:

l987,3l8/20). A estetização da vida cotidiana implica uma

revitalização lúdica da comunicação, da representacão, artifício

de sedução e liberação de uma identidade individual única. A

aparência do vestuário faz do próprio corpo algo indeterminado,

indefinido, fluido. A valorização da afetação, da aparência não

é a simples reedição de um dandismo esteticista e paródico na

sociedade de massas, mas um aspecto da formação de uma

sociabilidade sustentada por códigos específicos de uma ética do

estético em contraponto a uma moral universal (ver MAFFESOLI,

M.: l989, l). A vida só tem um sentido quando desejamos

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fortalecer no coração de outrem a imagem do que nos parece belo

(CARDOSO, L.: l963, 424).

Mais do que uma forma de recepção, “categoria de gosto

cultural” (ROSS, A.: 1993, 55) ou modo de comportamento

(BOOTH, M.: 1983, 179), o camp é uma categoria que estabelece

mediações, transita entre objetos culturais e o conjunto do

social, é mutável no decorrer do tempo e possui uma história e

uma concreção delimitáveis, constituindo um conjunto de

imagens e atitudes, que por ora podemos chamar não de uma

tendência artística, um estilo, mas de um imaginário que tem

um papel singular e relevante.

A relação entre camp e cultura pop foi íntima desde o

início. “O pop camp emerge como leitura dominante da práxis

homoerótica (queer)” diante do discurso dominante (MEYER, M.:

1994, 13). A partir dos anos 70, o camp passa a ser central na

arte pop2 e na música pop3 — do glam rock4 ao new romantics, da

disco5 a house (CURRID, B.: 1995, 165/196) —, bem como

2 Ver Juan Suarez (1996) e Jennifer Doyle et al. (1996).

3 Do ponto de vista do jornalismo musical, ver Jon Savage (1995), John Gill

(1995), Richard Smith, (1995) e Mark Simpson (1999).

4 Ver o filme “Velvet Goldmine” de Todd Haynes (1998).

5 Ver o romance Dancer from the Dance de Andrew Holleran.

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relevante para a determinação de uma narrativa de pós-

vanguarda, seja no cinema de Derek Jarman, Rainer Fassbinder e

Pedro Almodóvar, seja na literatura de Caio Fernando Abreu.

Esta capacidade de perceber o mundo como teatro não faz do

camp apenas uma percepção frivolamente desimportante e

alienante, um riso fácil e nervoso incapaz de lidar com as

diferenças, um gosto excludente e depreciativo, apenas uma

“forma de humor declinante, produto da opressão, segregação e

auto-ódio” (Edmund White apud BERGMAN, D.: 1993, 6),

perpetuador do estereótipo afeminado do homossexual, “negação

de especificidade de um desejo homoerótico”, na medida em que

é definido a partir de um modelo hetero (TYLER, C. A.: 1991,

35) e, ao mesmo tempo, misógino (idem, 41), num momento em que

as mulheres buscam romper sua imagem como associada

exclusivamente ao mundo das aparências, à passividade, à

submissão, à fragilidade e à afetividade. O camp “seria

decorrente da condição de oprimido do homossexual, que torna

possível que ele enxergue a natureza artificial de categorias

sociais e a arbitrariedade dos padrões de comportamento

(MACRAE, E.: 1990, 231), sem pretender a idealização que seria

considerar o camp, sobretudo na sua associação com

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travestimento, como basicamente transgressor (BUTLER, J.:

1993, 125 e 235), ao invés de valorizar sua situação

intervalar, corrosiva, para além da instabilização entre

masculino e feminino.

O camp “está vinculado a uma sensibilidade gay, não

necessariamente a pessoas gays” (BABUSCIO, J.: 1993, 20), “é

uma invasão e subversão de outras sensibilidades, trabalhando

via paródia, pastiche e exagero” (DOLLMORE, J.: 1991, 311), o

que afirma uma conexão entre heterossexuais e homossexuais,

fato extremamente relevante na medida em que os movimentos

homossexuais querem atuar no conjunto da esfera pública, sem

apagar suas especificidades e discutir a importância de suas

problemáticas fora de guetos. Para além de uma expressão

exclusivamente homossexual, o camp se coloca como “uma

estratégia situacional” (NEWTON, E.: 1979, 105), um

instrumental precioso para a intervenção dos homossexuais, dos

estudos gays e lésbicos na delimitação de subjetividades

contemporâneas. Na medida em que o camp se situa num espaço de

deriva entre categorias, vistas em outros contextos como

antitéticas — como, de um lado, teatralidade, ironia e

percepção do absurdo dos sentimentos extremos,e, de outro,

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85

autenticidade, intensidade e afirmação dos sentimentos

extremos —, o que ele enuncia é um desafio mesmo para a

constituição de novas afetividades, diante do declínio do amor

romântico heterossexual, das mudanças de papéis decorrentes

dos processos de modernização sócio-econômica que ocorreram

nos últimos dois séculos e do desenvolvimento do movimento

feminista, liberador de grilhões da família patriarcal mas que

parece marginalizar o sentimentalismo.

Mesmo a crescente normalização do meio homossexual tende a

rechaçar o camp, como se pode ver pela substituição da bicha

louca (PERLONGHER, N.: 1997, 85/90) pela figura do macho gay

(LEVINE, M.: 1998), como mistura de ideal e auto-imagem. O que

nos anos 70 foi uma resposta criativa ao estereótipo gay de

almas femininas em corpos masculinos ou de pessoas incomuns,

longe do cotidiano (TYLER, C. A.: 1991, 36), hoje é sobretudo um

elemento da indústria do corpo perfeito, reafirmação impositiva

da imagem do “gay saudável” (SEDGWICK, E.: 1994, 156). A questão

seria então se deslocar de um discurso em torno da diferença,

entendida como uma alteridade radical, que possibilita tanto a

cultura do gueto quanto a da "tolerância mascarada por

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indiferença, cinismo e violência" (COSTA, J. 1992, 166), e

passar para um discurso do estranho, que há em nós e nos outros.

O camp redimensiona o espaço público através do ludismo das

massas, do gosto pela fantasia no cotidiano e da valorização da

beleza; nesse sentido, é um dos herdeiros de uma atitude

aristocrática na sociedade de massas. "O comportamento

aristocrático, diz-se, é aquele que mobiliza todas as atividades

secundárias da vida, situadas fora das particularidades sérias

de outras classes e injeta nessas atividades uma expressão de

dignidade, poder e alta categoria" (GOFFMAN, E.: 1989, 39),

ainda que não represente necessariamente o comportamento de uma

aristocracia como classe, mas de uma aristocracia estética. Esta

tradição tem origens medievais, mas seu apogeu se deu na corte

de Luís XIV, onde a etiqueta representava uma hierarquização e

ao mesmo tempo uma estetização do social (RIBEIRO, R.: 1983), e

sofreu um deslocamento a partir do século XIX, quando os valores

burgueses de uma ética do trabalho se firmaram em detrimento de

uma estética do ócio, o dinheiro ocupou o lugar de uma formação

(Bildung) e o modismo consumista, o lugar da elegância. Novos

valores que só se tornaram vitoriosos a partir da Primeira

Guerra Mundial ( MEYER, A.: 1987). Uma linhagem de estetas da

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vida, artistas ou não, foi delineada, dos poetas malditos

românticos aos dândis decadentistas e punks góticos. Moldou-se

uma ética estética que nutre a atualidade, seja na formação de

tribos de jovens ou no próprio camp, ambos decorrentes de uma

culturalização do político e de uma estetização do cotidiano.

*

O travesti, cindido entre o exagero da afetividade e a

festa das aparências, o brilho da noite e a solidão dos quartos,

o êxtase da música e a violência do cotidiano, a máscara e o

corpo marcado, a alegria e a melancolia, é por excelência o ser

de um mundo simulacral. "Por trás da maquiagem do travesti não

há nenhuma mulher ou homem verdadeiro. O verdadeiro/falso perde

o sentido, pois já não se pode falar em cópias, modelos ou

imitação em referência ao travesti (TERTO, V.: 1989, 53/4) que

sabe que a mulher a ser imitada é só uma aparência, produto da

imaginação masculina. No travesti não habita uma dualidade

homem/mulher, e sim “uma pulsão de simulação” que constitui seu

próprio fim (SARDUY, S.: 1981, 9). Mais do que copiá-la, tentar

buscar uma identidade ou essência, o travesti busca na mulher a

força de sua metamorfose (TERTO, V.: 1989, 59), mas que está

para além da mulher (SARDUY, S.: 1981, 16), “de onde sua

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intensidade de subversão — captar a superfície, a pele, o

envelope, sem passar pelo que é central e fundador, a Idéia”

(idem, 21). Sem querer simplesmente ecoar a voga dos estudos

gays e lésbicos nos Estados Unidos, para os quais o

travestimento se tornou num “emblema condensado para todo o

projeto de gênero e construtivismo sexual”, no ataque a

perspectivas essencialistas (SEDGWICK, E.: 1994, 226), o

travesti seria não só um grupo socialmente identificado, mas

também a metáfora máxima da tensão entre memória e olhar,

efêmero e identidade, conjugando duas atitudes existenciais:

uma, a nostalgia da unidade do eu representada pela solidão

narcísica ou um retorno a valores tradicionais, em geral, no

bojo do neo-conservadorismo moral; e outra, a adesão a teias

fugazes onde a subjetividade reencontra a dimensão do jogo

social. O travesti é o personagem alegórico6 de uma modernidade

inconclusa e em crise, a que mais "dramatiza, problematiza,

distende e comenta a própria noção de vivência de papel social"

(SILVA, H.: 1993, p. 13), figura da ambigüidade que tem várias

6 Nas páginas 74/75 de meu livro Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco, procurei

desenvolver esta noção.

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encarnações, dos xamãs7 aos ciborgues8, das amazonas aos eunucos,

das dames aos onnagata9, dos castratti10 às divas da ópera, do

cinema e da música; do andrógino11 original a deuses

hermafroditas, do anjo ao adolescente, dos homens ultra-

musculosos às drag queens e drag kings12.

A assimilação simplificadora das drag queens no centro da

indústria de entretenimento, seja no cinema ou na televisão,

sobretudo no que se refere ao humor cáustico e à fantasia de

ambigüidade sexual (BUSCH, C.: 1995), mesmo que seja também

7 Ver Cardin (1984).

8 Muito já se foi dito a partir do Manifesto Ciborg de Donna Haraway e, para

além, em torno das relações entre corpo e tecnologia, o pós-humano e o

inumano, dentro e fora do Brasil.

9 Para a relação entre travestimento e arte, ver Garber (1993), Baker (1994)

e Cortés (1997).

10 Ver o romance Porporino de Dominique Fernandez.

11 Para a relação androginia e arte, ver Roberto Echavarren (1997) e Garber

(1997).

12 Apesar da intensa produção acadêmica sobre travestimento, as drag queens

tiveram um êxito comercial que não foi acompanhado pelos drag kings ou

lésbicas masculinizadas, como no belo misto de depoimento e ficção de

Leslie Feinberg, Stone Butch Blues. Seria importante também lembrar que tem

emergido uma forte produção de caráter político em torno ao transgênero,

nome mais amplo do que travesti, como em Feinberg (1996) novamente e

Namaste (1996), mas também transitando para a arte como em Chris Straayer

(1996) e no filme “Gêneronautas” de Monika Treut.

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uma forma de se falar em transexualidade, ao invés de

homossexualidade (TYLER, C. A.: 1991, 36), é um exemplo óbvio

de circulação do camp para além das comunidades gays, em que

pese a dificuldade que o travesti tem na vida real, longe dos

palcos luminosos. Mesmo o riso do qual é vítima pode ser “a

mais pura forma de opressão praticada contra o homossexual” em

vez de uma forma de aceitação de diferenças, “privando-o de um

poder mínimo, mesmo o de ameaçar. O riso sujeita-o a uma má

tradução suprema. Sua existência é trágica; em todo lugar é

percebida como engraçada” (LONG, S.: 1993, 78/9). A exclusão

dos travestis, como de outras práticas menos aceitas social e

midiaticamente (o sado-masoquismo e a pedofilia, por exemplo),

desenvolve-se no seio mesmo de organizações homossexuais,

vitimadas por um crescente bom mocismo e “assimilacionismo de

gay e lésbica de classe média” (MEYER, M.: 1994, 2),

desejosas de se integrarem a qualquer custo no status quo,

enfatizando mais uma inclusão legalista e respeitosa do que a

procura de uma sociedade multicultural.

O camp aparece como uma estratégia corrosiva da ordem, no

momento em que políticas utópicas e transgressoras parecem ter

se esvaziado de qualquer apelo, e para os que não querem

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85

simplesmente aderir à nova velha ordem global do consumismo,

em que a diferença é oferecida a todo momento, em cada

esquina, em cada propaganda.

De qualquer modo, o foco deste ensaio não está tanto no

travesti como símbolo de ambigüidade sexual, da desconstrutução

da dualidade masculino/feminino, próximo às discussões

feministas sobre o feminino como máscara (masquerade), nem

também no travesti como encarnação das ambigüidades e tensões

existentes nas identidades marcadas pela “mímica do sujeito

colonial” (DOLLMORE, J.: 1991, 312), pelos hibridismos pós-

coloniais ou pela deriva de sujeitos desterritorializados. Sem

excluir essas possibilidades ou despolitizar a discussão, o que

me interessa mais é pereceber o travestimento como valorização

do artifício enquanto categoria central, em estética (ver

ROSSET, C.: 1989 e SCARPETTA, G.: 1988) e na composição de uma

identidade performativa do sujeito contemporâneo13. O

travestimento nos atravessa, não nos fala apenas de um outro

distante, mesmo quando nosso vizinho.

*

13 Ver Goffman (1986), Butler (1990, 1993), Parker e Sedgwick (1995).

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Nessa perspectiva, gostaria de apresentar a categoria do

artifício. O artifício possui um vasto campo semântico, da

teatralidade barroca à simulação midiática, da tradição do

travestimento nas artes cênicas aos desafios da

performatividade do sujeito contemporâneo. Para estabelecer a

genealogia de uma estética do artifício contemporânea, anti-

naturalista e anti-autêntica, seria necessário revisitar não

só o Barroco, a partir da metáfora do teatro do mundo (LOPES,

D.: 1999, 92/4) e estilos próximos, como o Maneirismo, o

Rococó, o Preciosismo e, por extensão, o Neo-Barroco, como

também, o esteticismo decadentista (MUCCI, L.: 1990), o art

nouveau e o dandismo14 na música pop.

Mas antes de falar sobre uma estética do artifício na

contemporaneidade, é importante desenvolver o principal termo

que atualiza o artifício: o simulacro15. Quando se fala em

simulacro, enfatiza-se a indistinção entre realidade e

imaginário como um traço alienante da atualidade, sendo14 Para além dos ensaios de Baudelaire, das reavaliações de Oscar Wilde

( SINFIELD, A.: 1994) e João do Rio, seria interessante rever o dandismo

sob a perspectiva de gênero (CARELICK, R.: 1998), atualizando-o dentro do

universo pop (BOLLON, P.: 1993).

15 Como divertida introdução ao tema, consultar Eco (1987) ou ainda o

delicado diário de viagens de Baudrillard (1986), com ressonâncias no

trabalho de Nelson Brissac Peixoto (1989).

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constantes as críticas à utilização desse conceito por

Baudrillard, como as de Linda Hutcheon: na sua perspectiva, a

realidade é inacessível a não ser via discurso (HUTCHEON, L.:

1989, 189) provisório, historicizado e não é lugar de origem

(idem, 193). A questão estaria não na negação do referente,

mas na sua problematização: “de quem é a realidade que está

sendo apresentada?” (idem, 232). Ao que Baudrillard poderia

responder que afirmar a realidade já é uma estratégia de poder

(1991a, 32).

Embora seja tentador identificar o simulacro como

categoria totalizante na obra de Baudrillard, ele se constitui

fundamentalmente numa via para procurar responder aos

problemas específicos de nossa época derivados do influxo dos

meios de comunicação de massa na vida cotidiana, “resultado de

uma transformação cultural, associada à condição pós-moderna”

(HUYSSEN, A.: 1997, 76/7). Em contraposição à perspectiva das

massas enquanto buraco-negro, fim do político, do econômico,

do social, do histórico, enfim, do sentido, que fatalmente se

destruirá, tão popularizado no seu manifesto niilista À Sombra

das Maiorias Silenciosas, Baudrillard desenvolveu, nos anos 80, uma

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maior positividade do simulacro, não como se ele fosse algo

provisório, mas como algo constituivo da contemporaneidade.

A questão do simulacro está longe de se distinguir

exclusivamente pelas citações estéticas do passado, por

pastiches. As conseqüências do simulacro como eixo de uma

época, e não só como uma característica estética, implicam no

declínio de parâmetros como real/irreal. Trata-se de uma

crítica à noção de representação16. Longe de um simples modismo

entre intelectuais, o simulacro é uma mudança na forma de ver

o mundo17. Como nas sociedades primitivas, o irreal e o real16 Ainda que, do ponto de vista filosófico, o tema seja complexo, a

compreensão de simulacro de Baudrillard dialoga com toda uma produção

artística contemporânea, em que a centralidade da imagem reproduzida

tecnicamente embaralha os limites entre o real e a ficção, como em

Simulacros de Sérgio Sant’Anna, Teatro de Bernardo Carvalho, “A Última

Tempestade” de Peter Greenaway, “Até o Fim do Mundo” de Wim Wenders, “O

Fundo do Coração” de Francis Coppola, “O Show de Truman” de Peter Weir e

“Matrix” dos irmãos Warchawsky e em Cenários em Ruínas de Nelson Brissac

Peixoto.

17 Deleuze (1998) lhe dá um sentido forte, ao colocar o simulacro na base de

sua crítica ao platonismo, à metafísica e a consequente desvalorização da

aparência e da imagem enquanto tal (226/7). O simulacro passa a ser

entendido não como cópia, mas algo que põe em questão as próprias noções de

cópia e modelo (261), não um ícone infinitamente degradado, mas uma imagem

sem semelhança (363). Seria mesmo possível falar de uma alegria do

simulacro em Deleuze. Para uma outra visão, em que a simulação seria

sobretudo uma “técnica de representação” e “uma modelização”, consultar

Luis Cláudio Martino (1997, 324 e 332).

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voltam a se fundir. Predomínio do mito sobre a história? Não é

que não haja distinção entre vida cotidiana e um filme na TV,

mas as imagens midiáticas permeiam de tal forma o mundo que se

tornam referências tão ou mais básicas de informação do que o

cotidiano, a ponto de nossa visão do cotidiano ser filtrada

pelo cinema, pela televisão e por outros meios de comunicação

de massa. O simulacro não é nossa perdição, é nosso

continente.

O mundo do simulacro é feito de imagens fugazes,

superficiais projetadas numa tela, seja um aparelho de TV ou

um janela de um meio de transporte. Nosso próprio olhar

tornou-se uma tela para nossa sensibilidade. Diante da

velocidade não nos detemos diante de nada, nem de ninguém. Ao

menos é o esperado. Contemplação e rapidez parecem

antitéticas. A realidade se torna um jogo de imagens em

substituição frenética.

Simular não é dissimular. “Dissimular é fingir não ter o

que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem”

(BAUDRILLARD, J.: 1997, 23). Simular implica na permanência do

jogo, da encenação, sem fim de peça, sem bastidor, a não ser

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com a morte. Um caminho é representar o melhor possível. Algo

se vislumbra além da perda dos sentidos: a sedução.

Mais que procurar as origens do simulacro para extirpá-lo,

aceito seus desafios. Na medida em que a simulação corrói a

referência e por conseguinte a lógica da representação (idem:

1991b, 16), o sentido se torna fachada, espetáculo, ruína.

Depois da atitude de fascínio frente ao esvaziamento de

sentido, presente na valorização da publicidade, de formas

desérticas e indiferentes, como proceder em meio às aparências

se não seduzir e se deixar seduzir (idem, 229)?

A sedução não deixa de ser uma nova forma de atuar na

contemporaneidade, na ordem do simulacro, em oposição a uma

ordem da produção do real (idem: 1984, 32 e 69). A completa

generalização — tudo é político, sexual, estético, ou seja,

nada é político, sexual, estético etc (idem: 1990, 15) —

conduz por sua vez a uma indiferenciação, a um êxtase do

consumismo, reverso de um trânsito permanente de valores (um e

outro) e do neutro (nem um nem outro) que procria, na esfera

dos simulacros.

“Seduzir é morrer como realidade e produzir-se

[barrocamente] como engano” (idem, 1991b, 79). Seduzir implica

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85

radicalizar os códigos em trânsito, a incerteza. É preciso

articular valores evanescentes, difusos. Ser mais evanescente

que o evanescimento; simular, hiperrealizar ao invés de evocar

uma revolta critíca, negativa, catastrófica, da crise.

Artifício do corpo em paixão, do signo sedutor, ambivalência

dos gestos, elipse na linguagem, máscara no rosto e tirada que

altera o sentido (idem: 1990, 60). Esse novo espaço de

encenação tensiona um tempo mítico, do presente midiático, com

uma multiplicidade de tempos históricos passados e presentes.

A identidade pode levar à prisão de uma universalidade

homogênea e autoritária. A diferença exacerbada leva aos

isolacionissmos, autoritarismos das minorias, bairrismos. A

indiferença se dá quando os limites entre eu e outro, longe e

perto, passado e presente se dissolvem. A sedução está para

além da indiferença, está no estranho (idem, 1990, 159), no

meio entre o igual e o diferente, ao mesmo tempo, dentro e

fora de nós. Sedução, estratégia de um sujeito

desreferencializado e descentrado num mundo de aparências

indefinidamente reversível. A sedução, na ênfase da aparência,

cria novos rituais, novas formas de valorização do espaço

público e de sua relação com o privado, se é que ainda podemos

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usar estes termos, valoriza um mistério derivado da atração

pelo supérfluo, pelo vazio (idem, 85).

A sedução é um jogo múltiplo contra a pobreza do sexo

banal, heterossexual ou homossexual. A sedução é transexual

por transitar da diferença sexual para a indiferenciação dos

pólos, do sexo-rei para o artifício no corpo, nos sentimentos

(idem, 27). A sedução cria uma ética da aparência, uma ética

estética, em que reside a possibilidade do desejo de estar

junto.

Uma estética do artifício contemporânea poderia soar

demasiado datada nos anos 80, quando o paradigma da arte como

simulacro teve seu grande momento, marcadamente em função das

idéias de Jean Baudrillard18, em contraposição a uma

politização da subjetividade, ao retorno do real na sua

banalidade quanto na sua materialidade, como um paradigma da

arte dos anos 90. Mas se o fascínio pela realidade for mais do

que uma edição de estéticas naturalistas, que ainda buscariam

documentar um mundo transparente, a problemática do artifício

ainda continua atual, para além das orgias metatetxtuais e dos

18 Quanto a suas reflexões sobre arte, sobre o transestético, seria

interessante consultar A Arte da Desaparição.

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cansaços pós-utópicos, como um movimento central na arte

contemporânea.

Portanto, pensar uma estética do artifício implica retomar

a abertura propiciada por Clément Rosset e Guy Scarpetta,

desenvolvê-la como uma afirmação mais positiva e profícua da

espetacularização do real, em que o artifício não só não

aparece como dissimulação, mentira, mas descontrói a dualidade

entre natureza e cultura, nem como algo a ser sistematicamente

atacado e destruído. Uma estética do artifício, marcada por

uma ludicidade constante de sentidos e imagens, afetividades e

corpos, pela diversão que rima com reflexão (DYER, R.: 1992)19

e pelo espetáculo que não rima necessariamente com

totalitarismo, remete decisivamente a uma tradição barroca do

mundo como grande e permanente teatro, antídoto à

negatividade com que críticos contemporâneos como Jean

Baudrillard, ao menos na parte mais conhecida de sua obra e de

forma ambivalente, e Guy Debord, mais panfletário e

19 Para uma visão histórica da ascensão da diversão na sociedade norte-

americana, sem grandes reflexões teóricas, ver Gabler (1999)

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contestador20, destinam à espetacularização do mundo, ao

simulacro.

O artifício é uma categoria conceitual, sócio-histórica,

estética, articuladora de diferentes produtos culturais e

mediadora entre estes e a vida material, que deve ser pensada

não tanto como uma simples oposição à realidade, mas como um

dissolvente da dualidade real versus irreal. Ao contrário de

categorias abstratas, transcendentais, definidas a priori, o

artifício é uma categoria material, constituída pelas

experiências individuais e coletivas, que será colocada, no

momento, com especial ênfase no horizonte da experiências gays

contemporâneas. Para tanto, pretendo enfatizar as

ambivalências do camp, para além da identificação de uma

homotextualidade, tão marcada pelas discussões da década de

70, como um ponto de partida, ou mesmo de uma estética bicha

reificada, para explorar as relações entre imagens,

narrativas, afetividades e sexualidades homoeróticas.

O artifício não remete à mentira em oposição à visão

rousseauísta de uma verdade interior mas a uma subjetividade que

ao preferir máscara, uma ludicidade permanente, reafirma seu

20 Como na síntese conhecida: “O espetáculo é o capital em tal grau de

acumulação que se torna imagem” (DEBORD, G.: 1997 , 25).

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vínculo com uma “filosofia de transformação e incongruidade”

(NEWTON, E.: 1979, 105). Enquanto as drag queens simplesmente

expressam a incongruidade, o camp realmente usa-o para realizar

uma síntese maior (idem). O camp “está situado no ponto de

emergência do artificial no real, da cultura na natureza, ou

melhor, quando e onde o real se desagrega em artifício, a

natureza em cultura. O camp restaura vitalidade ao artifício, e

vice-versa, deriva o artificial do real, alimentando-o de volta

ou como se o real fosse real” (DOLLMORE, J.: 1991, 312).

*

Diferente do Brasil, onde o termo com exceção de

referências esporádicas e pouco desenvolvidas, estudo do camp

enquanto categoria analítica teve um certo crescimento de

interesse no meio universitário norte-americano, especialmente

dentro dos estudos gays e lésbicos, na medida em que “torna o

gênero uma questão estética” (DOLLMORE, J.: 1991, 311), bem

como na sua radicalização teórica e política, dentro dos

chamados estudos queer, já introduzidos no primeiro ensaio. Nos

anos 90, a publicação de três coletâneas de ensaios (BERGMAN,

D.: 1993, MEYER, M.: 1994 e CLETO, F.: 1999) e vários artigos

sobre o camp colocam como problema central as relações entre

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85

arte e política, seu uso por diversos atores sociais, seja ao

criarem novos fatos políticos e intervenções midiáticas, seja

por diálogos estabelecidos com o kitsch e o trash. No quadro

de uma sociedade de massas, o camp embaralha, desqualifica a

distinção entre cultura alta e cultura baixa, pela seriedade

da sua postura estetizante e afetiva, mesmo na derrisão. O

camp não considera a alta cultura como padrão do que seria o

bom gosto, como no caso do kitsch, cuja pretensão em imitá-la

decorre de um desejo de ascensão dos estratos médios (ROSS,

A.: 1993, 63). O camp também não se confunde com o prazer

trash extraído do mau gosto e seu culto, marcado pelo

sarcasmo, sintetizado no lema: quanto pior, melhor. O camp

traz algo recalcado na arte e crítica modernas: a afetividade,

mesmo a identificação com a obra e com seu autor.

O que há de estranho nos trejeitos, no gosto pela disco,

pelas canções francesas ou por melodramas é menos o ridículo do

exagero e mais nosso fascínio pelo sentimentalismo que

insistimos em revelar de outra forma, encobrindo-o pela ironia e

pelo cinismo, considerando-o um escapismo idealizante. O que é

difícil de ser enunciado na contemporaneidade, revela-se no

camp, sob a capa do humor ferino: o medo de ser afetivo oculta o

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medo de ser feminino, e, por extensão, o medo de ser gay,

especialmente em contextos tão decisivamente machistas como o

brasileiro, ou ainda, de forma mais ampla, o temor que seja

preferível ser sentimental do que não ter ou demonstrar nenhum

sentimento. E não estaria aí toda nossa pouca capacidade de

devanear, sonhar, ser singular, enfim, em tempos de redundância

informacional? Onde a delicadeza? O grande escândalo, já disse

Caetano Veloso em uma canção, é a solidão.

Normalmente um embaraço para a cultura gay pós-Stonewall, o

camp se tornou político, não só por sua marginalidade inicial,

como código específico para pessoas isoladas, excluídas ou

solitárias (LONG, S.: 1993, 89/90), forma de sobrevivência, “num

mundo dominado pelo gosto e interesses daqueles a quem se serve”

(ROSS, A.: 1993, 62), um “heroísmo de pessoas não chamadas a

serem heróis” (CORE, P.: 1984,15), até passar a ser utilizado em

passeatas e manifestações de militantes gays (MEYER, M.: 1994,

1), mas pela centralidade do afetivo. Apesar do riso, o camp é

“sentimento terno”, as pessoas que o apreciam realmente se

identificam com ele (SONTAG, S.: 1987, 336).

Hoje, o camp expressa não o desejo de afirmação do

estereótipo envelhecido da bicha louca, mas o desejo de

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85

empreendermos todos, das mais diversas sexualidades e

sensualidades, uma nova educação sentimental, não pela busca da

autenticidade de sentimentos cultivados pelos românticos, mas

pela via da teatralidade, quando, apesar da solidão, para além

da dor maior da exclusão, da raiva e do ressentimento, possa

ainda se falar em alegria, em felicidade. Faça uma pose. Eu

faço. Agora.

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