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Terceiro Manifesto Camp1
“Tudo que é profundo gosta damáscara.”
FriederichNietzsche
"Somente as pessoassuperfíciais não julgampelas aparências. O mistériodo mundo está no visível,não no invisível."
Oscar Wilde "
Por vivermos numa sociedade onde tudo que se refere ao
individual está tão presente, no gosto, no comportamento, na
cultura, esquecemos, ou nos fazem esquecer, que o indivíduo é
uma construção e não dado inerente ao humano.
O próprio mito do Homem emergiu na Grécia clássica em
oposição ao mito miceno-cretense e egeo-anatólio de Dioniso
(SOUZA, E. de: 1973, 126). Portanto, criar uma cultura
antropocêntrica e metafísica em meio ao teocentrismo
1 O título faz uma referência ao livro Second Manifeste Camp de PatrickMauriès. Este ensaio teve partes publicadas em Gragoatá, 3, 2o. semestre,1997, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense; e em LugarComum, 9/10, set 1999/abril 2000, NEPCOM/Universidade Federal do Rio deJaneiro.
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generalizado foi a grande revolução grega, o que implicou pela
primeira vez a separação entre natureza e cultura.
O individualismo, como um desdobramento histórico do mito
do Homem, é uma ideologia moderna, ou seja, um conjunto de
representações comuns, específicas da civilização moderna, em
formação a partir do Renascimento. O individualismo destaca o
indivíduo do mundo contrapondo-se a uma perspectiva holística.
Não é que o indivíduo enquanto sujeito empírico seja uma
característica nova da modernidade, mas sim enquanto ser moral,
autônomo e essencialmente não social (DUMONT, L.: 1985, 279-80),
o que obviamente causa tensões em sociedades, como as modernas,
construídas sobre esses novos valores. Por um lado, o indivíduo
tornou-se um sustentáculo da sociedade capitalista, da
burguesia, encarnado no apogeu do liberalismo pelo "self-made
man". O individualismo possibilitou, em último grau, até mesmo a
exploração e colonização de todo o mundo conhecido, abrindo
novos mercados consumidores à Europa e aos Estados Unidos. Mas,
por outro lado, o individualismo trazia em si sua própria crise,
já presente no artista moderno do século passado (dos ultra-
românticos e Baudelaire aos decadentistas e simbolistas), ao
moldar o comportamento de recusa do social, ou pelo menos, da
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sociedade burguesa, por parte das vanguardas. Essa sensação de
insatisfação frente ao social se alastrou por todo o século XX,
particularmente com a sociedade de massas, nos diferentes
estratos sociais. A subjetividade, que se pretendia liberta da
sociedade, fragmentou-se, de forma crescente, até o processo de
perda de uma identidade individual claramente definida.
O leque de análises sobre a subjetividade contemporânea é
bastante amplo e diversificado, mas tem como principal problema
a relação entre homem e mundo. A tese principal de Richard
Sennett em O Declínio do Homem Público (1988) é que à medida que o
espaço público foi psicologizado, ou seja, vivido em termos
pessoais, o espaço privado se viu crescentemente reduzido,
isolado e destituído de significado. No comprazer-se em
confissões caudais, o indivíduo perdeu, paradoxalmente, o senso
de sua diferença, pois esta só pode ser estabelecida em relação
a um outro. A perspectiva de Sennett não esconde sua visão de
vivência do espaço público nos limites inaugurados pelos ideais
democráticos do século XVIII, constatando na sociedade intimista
de hoje um acoplamento entre narcisismo e comunidade destrutiva,
segregadora, segregada e bairrista. Mesmo em um trabalho
posterior, que tenta lançar pontes sobre novas vivências do
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espaço público, Sennett enfatiza o isolamento do desenho urbano,
em detrimento das tentativas de superar as fronteiras reais
entre bairros e guetos, possibilidade que ele vislumbra na arte
(1991, 261). A não ser pela arte, o espaço público parece
trivializado pelo consumo e turismo, desprovido de uma
experiência humana (idem, XII/XIII).
No lugar de um indivíduo autônomo, conquistador, emerge um
eu mínimo, defensivo, narcísico. Segundo Cristopher Lasch
(1987), o narcisismo frutifica não só como uma atitude
existencial mas também cultural. Ao se fechar dentro de si,
ainda que por uma estratégia de sobrevivência, a subjetividade
se perde mais. A capacidade de ser outro, de compreender um
outro se rarefaz. Lasch tem o mérito de abordar uma problemática
vinculada a um mal-estar frente ao consumismo em sociedades de
massas, mas sua tendência apocalíptica é bastante unilateral.
No que Lasch e Sennett vêem um problema, o
(neo)individualismo, Lipovetsky (1988) vê uma solução. Valoriza
a moda, como uma espécie de sinal do efêmero erigido em sistema
permanente e fator de incentivo a valores democrático-liberais.
A lógica da moda, do efêmero implica a autonomia do sujeito num
culto do hedonismo, da pluralidade. É por essa perspectiva que
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deve ser encarada a sociedade, ou seja, através da mescla do
efêmero e da fantasia, da readaptação permanente, do tempo que
urge e do espaço que se aproxima midiaticamente. A moda não é só
questão de consumo mas de identidade. Ser não é ter mas parecer.
No entanto, quem melhor caracteriza as possibilidades de
superação do impasse narcisista e desenvolve novas perspectivas
de encenação do espaço público, de reencantamento do mundo para
além de uma esfera privada, íntima é Michel Maffesoli. Embora
haja uma tendência em sua obra de subestimar as questões
decorrentes do narcisismo e seu confronto com outras
subjetividades, de fato relevantes hoje em dia, sua defesa de um
neo-tribalismo (1987) abre novas possibilidades. Trata-se de uma
ordem, talvez até mais projetiva do que presente, em que a
tatibilidade, o sensível são valorizados em detrimento de
associações mais institucionalizadas. O sujeito contemporâneo
não segue o modelo do individualismo clássico, seguramente
inserido no contexto de redes sociais claramente delineadas, de
onde sua identidade também claramente definida emergiria. Também
diferente do Narciso entrincheirado na sua intimidade, os
primitivos dessa nova era cartografam em grupos e tribos a
paisagem das metrópoles em crise. E nesse perambular noturno à
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toa pelos bares, ruas, festas, cria-se um novo valorizar do
espaço público, distinto da tradição iluminista, centrado em
movimentos políticos organizados como partidos, sindicatos,
aproximando-se mais de uma tradição popular, espontaneísta,
celebratória. Introduzir a ficção na vida cotidiana é uma
manifestação de resistência que escapa à temática "ativista" da
liberação (MAFFESOLI, M.: l984, 69). O desafio desse novo
sujeito é articular suas máscaras em constante troca, seu eu
mutante, sem se deixar dissolver no puro movimento, na
velocidade, no mercado de imagens. O que também exige a
configuração de um “paradigma estético” para a compreensão da
criação e da composição de perceptos e afetos mutantes
(GUATTARI, F.: 1992, 116).
É importante lembrar que Maffesoli apontou em mais de um
momento a sociedade brasileira como verdadeiro laboratório
para esta sociabilidade. Alguns de seus muitos discípulos no
Brasil têm ampliado suas sugetões. Ainda seria o caso de
lembrar que a própria definição eurocêntrica de público e
privado tem sido reavaliada para outros países como o Brasil.
Não é meu propósito aprofundar esta discussão, no momento, mas
tenho consciência da generalidade de minhas afirmativas, nesta
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introdução que apenas deseja colocar o camp num horizonte
transnacioal a que ele de fato pertence.
*
Dentro desse novo paradigma é que o camp ganha mais
interesse, para o que é necessário redimensionar a problemática
da homossexualidade posta à deriva. O camp, nas suas origens,
não pode ser chamado de fundamentalmente gay, mas
especialmente nesse século tornou-se um elemento definidor,
sem ser totalizador, da identidade homossexual. Apesar disso,
o camp só emerge teoricamente no clássico ensaio de Susan
Sontag, “Notas sobre o Camp” (1964), simultaneamente a um
corte na história dos movimentos e representações
homossexuais, representado pelo influxo da Contracultura nos
anos 60, que procurou dar mais visibilidade e mesmo assimilar
comportamentos originários de tradições culturais mais
diversificadas e “menores” dentro da história ocidental,
momento decisivo para a disseminação do camp para longe dos
guetos homossexuais.
O termo é de difícil tradução para o português, ainda que
muito presente na nossa cultura. Enquanto comportamento, o camp
pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos
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homossexuais, ou simplesmente à afetação. Já enquanto questão
estética, o camp estaria mais na esfera do brega assumido, sem
culpas, tão presente nos exageros de muitos dos ícones da MPB,
especialmente o culto a certas cantoras e seus fãs. Mas hoje em
dia, “a chave para definir o camp está em reconciliar sua
essencial marginalidade com sua evidente ubiqüidade, mantendo
sua diversidade, embora fazendo sentido disso tudo” (BOOTH,
M.: 1983, 11). O camp se caracteriza por uma predileção pelo
artificial e pelo exagero, por um tipo de esteticismo, uma forma
de ver o mundo como um fenômeno estético (SONTAG, S.:
l987,3l8/20). A estetização da vida cotidiana implica uma
revitalização lúdica da comunicação, da representacão, artifício
de sedução e liberação de uma identidade individual única. A
aparência do vestuário faz do próprio corpo algo indeterminado,
indefinido, fluido. A valorização da afetação, da aparência não
é a simples reedição de um dandismo esteticista e paródico na
sociedade de massas, mas um aspecto da formação de uma
sociabilidade sustentada por códigos específicos de uma ética do
estético em contraponto a uma moral universal (ver MAFFESOLI,
M.: l989, l). A vida só tem um sentido quando desejamos
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fortalecer no coração de outrem a imagem do que nos parece belo
(CARDOSO, L.: l963, 424).
Mais do que uma forma de recepção, “categoria de gosto
cultural” (ROSS, A.: 1993, 55) ou modo de comportamento
(BOOTH, M.: 1983, 179), o camp é uma categoria que estabelece
mediações, transita entre objetos culturais e o conjunto do
social, é mutável no decorrer do tempo e possui uma história e
uma concreção delimitáveis, constituindo um conjunto de
imagens e atitudes, que por ora podemos chamar não de uma
tendência artística, um estilo, mas de um imaginário que tem
um papel singular e relevante.
A relação entre camp e cultura pop foi íntima desde o
início. “O pop camp emerge como leitura dominante da práxis
homoerótica (queer)” diante do discurso dominante (MEYER, M.:
1994, 13). A partir dos anos 70, o camp passa a ser central na
arte pop2 e na música pop3 — do glam rock4 ao new romantics, da
disco5 a house (CURRID, B.: 1995, 165/196) —, bem como
2 Ver Juan Suarez (1996) e Jennifer Doyle et al. (1996).
3 Do ponto de vista do jornalismo musical, ver Jon Savage (1995), John Gill
(1995), Richard Smith, (1995) e Mark Simpson (1999).
4 Ver o filme “Velvet Goldmine” de Todd Haynes (1998).
5 Ver o romance Dancer from the Dance de Andrew Holleran.
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relevante para a determinação de uma narrativa de pós-
vanguarda, seja no cinema de Derek Jarman, Rainer Fassbinder e
Pedro Almodóvar, seja na literatura de Caio Fernando Abreu.
Esta capacidade de perceber o mundo como teatro não faz do
camp apenas uma percepção frivolamente desimportante e
alienante, um riso fácil e nervoso incapaz de lidar com as
diferenças, um gosto excludente e depreciativo, apenas uma
“forma de humor declinante, produto da opressão, segregação e
auto-ódio” (Edmund White apud BERGMAN, D.: 1993, 6),
perpetuador do estereótipo afeminado do homossexual, “negação
de especificidade de um desejo homoerótico”, na medida em que
é definido a partir de um modelo hetero (TYLER, C. A.: 1991,
35) e, ao mesmo tempo, misógino (idem, 41), num momento em que
as mulheres buscam romper sua imagem como associada
exclusivamente ao mundo das aparências, à passividade, à
submissão, à fragilidade e à afetividade. O camp “seria
decorrente da condição de oprimido do homossexual, que torna
possível que ele enxergue a natureza artificial de categorias
sociais e a arbitrariedade dos padrões de comportamento
(MACRAE, E.: 1990, 231), sem pretender a idealização que seria
considerar o camp, sobretudo na sua associação com
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travestimento, como basicamente transgressor (BUTLER, J.:
1993, 125 e 235), ao invés de valorizar sua situação
intervalar, corrosiva, para além da instabilização entre
masculino e feminino.
O camp “está vinculado a uma sensibilidade gay, não
necessariamente a pessoas gays” (BABUSCIO, J.: 1993, 20), “é
uma invasão e subversão de outras sensibilidades, trabalhando
via paródia, pastiche e exagero” (DOLLMORE, J.: 1991, 311), o
que afirma uma conexão entre heterossexuais e homossexuais,
fato extremamente relevante na medida em que os movimentos
homossexuais querem atuar no conjunto da esfera pública, sem
apagar suas especificidades e discutir a importância de suas
problemáticas fora de guetos. Para além de uma expressão
exclusivamente homossexual, o camp se coloca como “uma
estratégia situacional” (NEWTON, E.: 1979, 105), um
instrumental precioso para a intervenção dos homossexuais, dos
estudos gays e lésbicos na delimitação de subjetividades
contemporâneas. Na medida em que o camp se situa num espaço de
deriva entre categorias, vistas em outros contextos como
antitéticas — como, de um lado, teatralidade, ironia e
percepção do absurdo dos sentimentos extremos,e, de outro,
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autenticidade, intensidade e afirmação dos sentimentos
extremos —, o que ele enuncia é um desafio mesmo para a
constituição de novas afetividades, diante do declínio do amor
romântico heterossexual, das mudanças de papéis decorrentes
dos processos de modernização sócio-econômica que ocorreram
nos últimos dois séculos e do desenvolvimento do movimento
feminista, liberador de grilhões da família patriarcal mas que
parece marginalizar o sentimentalismo.
Mesmo a crescente normalização do meio homossexual tende a
rechaçar o camp, como se pode ver pela substituição da bicha
louca (PERLONGHER, N.: 1997, 85/90) pela figura do macho gay
(LEVINE, M.: 1998), como mistura de ideal e auto-imagem. O que
nos anos 70 foi uma resposta criativa ao estereótipo gay de
almas femininas em corpos masculinos ou de pessoas incomuns,
longe do cotidiano (TYLER, C. A.: 1991, 36), hoje é sobretudo um
elemento da indústria do corpo perfeito, reafirmação impositiva
da imagem do “gay saudável” (SEDGWICK, E.: 1994, 156). A questão
seria então se deslocar de um discurso em torno da diferença,
entendida como uma alteridade radical, que possibilita tanto a
cultura do gueto quanto a da "tolerância mascarada por
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indiferença, cinismo e violência" (COSTA, J. 1992, 166), e
passar para um discurso do estranho, que há em nós e nos outros.
O camp redimensiona o espaço público através do ludismo das
massas, do gosto pela fantasia no cotidiano e da valorização da
beleza; nesse sentido, é um dos herdeiros de uma atitude
aristocrática na sociedade de massas. "O comportamento
aristocrático, diz-se, é aquele que mobiliza todas as atividades
secundárias da vida, situadas fora das particularidades sérias
de outras classes e injeta nessas atividades uma expressão de
dignidade, poder e alta categoria" (GOFFMAN, E.: 1989, 39),
ainda que não represente necessariamente o comportamento de uma
aristocracia como classe, mas de uma aristocracia estética. Esta
tradição tem origens medievais, mas seu apogeu se deu na corte
de Luís XIV, onde a etiqueta representava uma hierarquização e
ao mesmo tempo uma estetização do social (RIBEIRO, R.: 1983), e
sofreu um deslocamento a partir do século XIX, quando os valores
burgueses de uma ética do trabalho se firmaram em detrimento de
uma estética do ócio, o dinheiro ocupou o lugar de uma formação
(Bildung) e o modismo consumista, o lugar da elegância. Novos
valores que só se tornaram vitoriosos a partir da Primeira
Guerra Mundial ( MEYER, A.: 1987). Uma linhagem de estetas da
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vida, artistas ou não, foi delineada, dos poetas malditos
românticos aos dândis decadentistas e punks góticos. Moldou-se
uma ética estética que nutre a atualidade, seja na formação de
tribos de jovens ou no próprio camp, ambos decorrentes de uma
culturalização do político e de uma estetização do cotidiano.
*
O travesti, cindido entre o exagero da afetividade e a
festa das aparências, o brilho da noite e a solidão dos quartos,
o êxtase da música e a violência do cotidiano, a máscara e o
corpo marcado, a alegria e a melancolia, é por excelência o ser
de um mundo simulacral. "Por trás da maquiagem do travesti não
há nenhuma mulher ou homem verdadeiro. O verdadeiro/falso perde
o sentido, pois já não se pode falar em cópias, modelos ou
imitação em referência ao travesti (TERTO, V.: 1989, 53/4) que
sabe que a mulher a ser imitada é só uma aparência, produto da
imaginação masculina. No travesti não habita uma dualidade
homem/mulher, e sim “uma pulsão de simulação” que constitui seu
próprio fim (SARDUY, S.: 1981, 9). Mais do que copiá-la, tentar
buscar uma identidade ou essência, o travesti busca na mulher a
força de sua metamorfose (TERTO, V.: 1989, 59), mas que está
para além da mulher (SARDUY, S.: 1981, 16), “de onde sua
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intensidade de subversão — captar a superfície, a pele, o
envelope, sem passar pelo que é central e fundador, a Idéia”
(idem, 21). Sem querer simplesmente ecoar a voga dos estudos
gays e lésbicos nos Estados Unidos, para os quais o
travestimento se tornou num “emblema condensado para todo o
projeto de gênero e construtivismo sexual”, no ataque a
perspectivas essencialistas (SEDGWICK, E.: 1994, 226), o
travesti seria não só um grupo socialmente identificado, mas
também a metáfora máxima da tensão entre memória e olhar,
efêmero e identidade, conjugando duas atitudes existenciais:
uma, a nostalgia da unidade do eu representada pela solidão
narcísica ou um retorno a valores tradicionais, em geral, no
bojo do neo-conservadorismo moral; e outra, a adesão a teias
fugazes onde a subjetividade reencontra a dimensão do jogo
social. O travesti é o personagem alegórico6 de uma modernidade
inconclusa e em crise, a que mais "dramatiza, problematiza,
distende e comenta a própria noção de vivência de papel social"
(SILVA, H.: 1993, p. 13), figura da ambigüidade que tem várias
6 Nas páginas 74/75 de meu livro Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco, procurei
desenvolver esta noção.
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encarnações, dos xamãs7 aos ciborgues8, das amazonas aos eunucos,
das dames aos onnagata9, dos castratti10 às divas da ópera, do
cinema e da música; do andrógino11 original a deuses
hermafroditas, do anjo ao adolescente, dos homens ultra-
musculosos às drag queens e drag kings12.
A assimilação simplificadora das drag queens no centro da
indústria de entretenimento, seja no cinema ou na televisão,
sobretudo no que se refere ao humor cáustico e à fantasia de
ambigüidade sexual (BUSCH, C.: 1995), mesmo que seja também
7 Ver Cardin (1984).
8 Muito já se foi dito a partir do Manifesto Ciborg de Donna Haraway e, para
além, em torno das relações entre corpo e tecnologia, o pós-humano e o
inumano, dentro e fora do Brasil.
9 Para a relação entre travestimento e arte, ver Garber (1993), Baker (1994)
e Cortés (1997).
10 Ver o romance Porporino de Dominique Fernandez.
11 Para a relação androginia e arte, ver Roberto Echavarren (1997) e Garber
(1997).
12 Apesar da intensa produção acadêmica sobre travestimento, as drag queens
tiveram um êxito comercial que não foi acompanhado pelos drag kings ou
lésbicas masculinizadas, como no belo misto de depoimento e ficção de
Leslie Feinberg, Stone Butch Blues. Seria importante também lembrar que tem
emergido uma forte produção de caráter político em torno ao transgênero,
nome mais amplo do que travesti, como em Feinberg (1996) novamente e
Namaste (1996), mas também transitando para a arte como em Chris Straayer
(1996) e no filme “Gêneronautas” de Monika Treut.
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uma forma de se falar em transexualidade, ao invés de
homossexualidade (TYLER, C. A.: 1991, 36), é um exemplo óbvio
de circulação do camp para além das comunidades gays, em que
pese a dificuldade que o travesti tem na vida real, longe dos
palcos luminosos. Mesmo o riso do qual é vítima pode ser “a
mais pura forma de opressão praticada contra o homossexual” em
vez de uma forma de aceitação de diferenças, “privando-o de um
poder mínimo, mesmo o de ameaçar. O riso sujeita-o a uma má
tradução suprema. Sua existência é trágica; em todo lugar é
percebida como engraçada” (LONG, S.: 1993, 78/9). A exclusão
dos travestis, como de outras práticas menos aceitas social e
midiaticamente (o sado-masoquismo e a pedofilia, por exemplo),
desenvolve-se no seio mesmo de organizações homossexuais,
vitimadas por um crescente bom mocismo e “assimilacionismo de
gay e lésbica de classe média” (MEYER, M.: 1994, 2),
desejosas de se integrarem a qualquer custo no status quo,
enfatizando mais uma inclusão legalista e respeitosa do que a
procura de uma sociedade multicultural.
O camp aparece como uma estratégia corrosiva da ordem, no
momento em que políticas utópicas e transgressoras parecem ter
se esvaziado de qualquer apelo, e para os que não querem
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simplesmente aderir à nova velha ordem global do consumismo,
em que a diferença é oferecida a todo momento, em cada
esquina, em cada propaganda.
De qualquer modo, o foco deste ensaio não está tanto no
travesti como símbolo de ambigüidade sexual, da desconstrutução
da dualidade masculino/feminino, próximo às discussões
feministas sobre o feminino como máscara (masquerade), nem
também no travesti como encarnação das ambigüidades e tensões
existentes nas identidades marcadas pela “mímica do sujeito
colonial” (DOLLMORE, J.: 1991, 312), pelos hibridismos pós-
coloniais ou pela deriva de sujeitos desterritorializados. Sem
excluir essas possibilidades ou despolitizar a discussão, o que
me interessa mais é pereceber o travestimento como valorização
do artifício enquanto categoria central, em estética (ver
ROSSET, C.: 1989 e SCARPETTA, G.: 1988) e na composição de uma
identidade performativa do sujeito contemporâneo13. O
travestimento nos atravessa, não nos fala apenas de um outro
distante, mesmo quando nosso vizinho.
*
13 Ver Goffman (1986), Butler (1990, 1993), Parker e Sedgwick (1995).
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Nessa perspectiva, gostaria de apresentar a categoria do
artifício. O artifício possui um vasto campo semântico, da
teatralidade barroca à simulação midiática, da tradição do
travestimento nas artes cênicas aos desafios da
performatividade do sujeito contemporâneo. Para estabelecer a
genealogia de uma estética do artifício contemporânea, anti-
naturalista e anti-autêntica, seria necessário revisitar não
só o Barroco, a partir da metáfora do teatro do mundo (LOPES,
D.: 1999, 92/4) e estilos próximos, como o Maneirismo, o
Rococó, o Preciosismo e, por extensão, o Neo-Barroco, como
também, o esteticismo decadentista (MUCCI, L.: 1990), o art
nouveau e o dandismo14 na música pop.
Mas antes de falar sobre uma estética do artifício na
contemporaneidade, é importante desenvolver o principal termo
que atualiza o artifício: o simulacro15. Quando se fala em
simulacro, enfatiza-se a indistinção entre realidade e
imaginário como um traço alienante da atualidade, sendo14 Para além dos ensaios de Baudelaire, das reavaliações de Oscar Wilde
( SINFIELD, A.: 1994) e João do Rio, seria interessante rever o dandismo
sob a perspectiva de gênero (CARELICK, R.: 1998), atualizando-o dentro do
universo pop (BOLLON, P.: 1993).
15 Como divertida introdução ao tema, consultar Eco (1987) ou ainda o
delicado diário de viagens de Baudrillard (1986), com ressonâncias no
trabalho de Nelson Brissac Peixoto (1989).
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constantes as críticas à utilização desse conceito por
Baudrillard, como as de Linda Hutcheon: na sua perspectiva, a
realidade é inacessível a não ser via discurso (HUTCHEON, L.:
1989, 189) provisório, historicizado e não é lugar de origem
(idem, 193). A questão estaria não na negação do referente,
mas na sua problematização: “de quem é a realidade que está
sendo apresentada?” (idem, 232). Ao que Baudrillard poderia
responder que afirmar a realidade já é uma estratégia de poder
(1991a, 32).
Embora seja tentador identificar o simulacro como
categoria totalizante na obra de Baudrillard, ele se constitui
fundamentalmente numa via para procurar responder aos
problemas específicos de nossa época derivados do influxo dos
meios de comunicação de massa na vida cotidiana, “resultado de
uma transformação cultural, associada à condição pós-moderna”
(HUYSSEN, A.: 1997, 76/7). Em contraposição à perspectiva das
massas enquanto buraco-negro, fim do político, do econômico,
do social, do histórico, enfim, do sentido, que fatalmente se
destruirá, tão popularizado no seu manifesto niilista À Sombra
das Maiorias Silenciosas, Baudrillard desenvolveu, nos anos 80, uma
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maior positividade do simulacro, não como se ele fosse algo
provisório, mas como algo constituivo da contemporaneidade.
A questão do simulacro está longe de se distinguir
exclusivamente pelas citações estéticas do passado, por
pastiches. As conseqüências do simulacro como eixo de uma
época, e não só como uma característica estética, implicam no
declínio de parâmetros como real/irreal. Trata-se de uma
crítica à noção de representação16. Longe de um simples modismo
entre intelectuais, o simulacro é uma mudança na forma de ver
o mundo17. Como nas sociedades primitivas, o irreal e o real16 Ainda que, do ponto de vista filosófico, o tema seja complexo, a
compreensão de simulacro de Baudrillard dialoga com toda uma produção
artística contemporânea, em que a centralidade da imagem reproduzida
tecnicamente embaralha os limites entre o real e a ficção, como em
Simulacros de Sérgio Sant’Anna, Teatro de Bernardo Carvalho, “A Última
Tempestade” de Peter Greenaway, “Até o Fim do Mundo” de Wim Wenders, “O
Fundo do Coração” de Francis Coppola, “O Show de Truman” de Peter Weir e
“Matrix” dos irmãos Warchawsky e em Cenários em Ruínas de Nelson Brissac
Peixoto.
17 Deleuze (1998) lhe dá um sentido forte, ao colocar o simulacro na base de
sua crítica ao platonismo, à metafísica e a consequente desvalorização da
aparência e da imagem enquanto tal (226/7). O simulacro passa a ser
entendido não como cópia, mas algo que põe em questão as próprias noções de
cópia e modelo (261), não um ícone infinitamente degradado, mas uma imagem
sem semelhança (363). Seria mesmo possível falar de uma alegria do
simulacro em Deleuze. Para uma outra visão, em que a simulação seria
sobretudo uma “técnica de representação” e “uma modelização”, consultar
Luis Cláudio Martino (1997, 324 e 332).
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voltam a se fundir. Predomínio do mito sobre a história? Não é
que não haja distinção entre vida cotidiana e um filme na TV,
mas as imagens midiáticas permeiam de tal forma o mundo que se
tornam referências tão ou mais básicas de informação do que o
cotidiano, a ponto de nossa visão do cotidiano ser filtrada
pelo cinema, pela televisão e por outros meios de comunicação
de massa. O simulacro não é nossa perdição, é nosso
continente.
O mundo do simulacro é feito de imagens fugazes,
superficiais projetadas numa tela, seja um aparelho de TV ou
um janela de um meio de transporte. Nosso próprio olhar
tornou-se uma tela para nossa sensibilidade. Diante da
velocidade não nos detemos diante de nada, nem de ninguém. Ao
menos é o esperado. Contemplação e rapidez parecem
antitéticas. A realidade se torna um jogo de imagens em
substituição frenética.
Simular não é dissimular. “Dissimular é fingir não ter o
que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem”
(BAUDRILLARD, J.: 1997, 23). Simular implica na permanência do
jogo, da encenação, sem fim de peça, sem bastidor, a não ser
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com a morte. Um caminho é representar o melhor possível. Algo
se vislumbra além da perda dos sentidos: a sedução.
Mais que procurar as origens do simulacro para extirpá-lo,
aceito seus desafios. Na medida em que a simulação corrói a
referência e por conseguinte a lógica da representação (idem:
1991b, 16), o sentido se torna fachada, espetáculo, ruína.
Depois da atitude de fascínio frente ao esvaziamento de
sentido, presente na valorização da publicidade, de formas
desérticas e indiferentes, como proceder em meio às aparências
se não seduzir e se deixar seduzir (idem, 229)?
A sedução não deixa de ser uma nova forma de atuar na
contemporaneidade, na ordem do simulacro, em oposição a uma
ordem da produção do real (idem: 1984, 32 e 69). A completa
generalização — tudo é político, sexual, estético, ou seja,
nada é político, sexual, estético etc (idem: 1990, 15) —
conduz por sua vez a uma indiferenciação, a um êxtase do
consumismo, reverso de um trânsito permanente de valores (um e
outro) e do neutro (nem um nem outro) que procria, na esfera
dos simulacros.
“Seduzir é morrer como realidade e produzir-se
[barrocamente] como engano” (idem, 1991b, 79). Seduzir implica
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radicalizar os códigos em trânsito, a incerteza. É preciso
articular valores evanescentes, difusos. Ser mais evanescente
que o evanescimento; simular, hiperrealizar ao invés de evocar
uma revolta critíca, negativa, catastrófica, da crise.
Artifício do corpo em paixão, do signo sedutor, ambivalência
dos gestos, elipse na linguagem, máscara no rosto e tirada que
altera o sentido (idem: 1990, 60). Esse novo espaço de
encenação tensiona um tempo mítico, do presente midiático, com
uma multiplicidade de tempos históricos passados e presentes.
A identidade pode levar à prisão de uma universalidade
homogênea e autoritária. A diferença exacerbada leva aos
isolacionissmos, autoritarismos das minorias, bairrismos. A
indiferença se dá quando os limites entre eu e outro, longe e
perto, passado e presente se dissolvem. A sedução está para
além da indiferença, está no estranho (idem, 1990, 159), no
meio entre o igual e o diferente, ao mesmo tempo, dentro e
fora de nós. Sedução, estratégia de um sujeito
desreferencializado e descentrado num mundo de aparências
indefinidamente reversível. A sedução, na ênfase da aparência,
cria novos rituais, novas formas de valorização do espaço
público e de sua relação com o privado, se é que ainda podemos
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usar estes termos, valoriza um mistério derivado da atração
pelo supérfluo, pelo vazio (idem, 85).
A sedução é um jogo múltiplo contra a pobreza do sexo
banal, heterossexual ou homossexual. A sedução é transexual
por transitar da diferença sexual para a indiferenciação dos
pólos, do sexo-rei para o artifício no corpo, nos sentimentos
(idem, 27). A sedução cria uma ética da aparência, uma ética
estética, em que reside a possibilidade do desejo de estar
junto.
Uma estética do artifício contemporânea poderia soar
demasiado datada nos anos 80, quando o paradigma da arte como
simulacro teve seu grande momento, marcadamente em função das
idéias de Jean Baudrillard18, em contraposição a uma
politização da subjetividade, ao retorno do real na sua
banalidade quanto na sua materialidade, como um paradigma da
arte dos anos 90. Mas se o fascínio pela realidade for mais do
que uma edição de estéticas naturalistas, que ainda buscariam
documentar um mundo transparente, a problemática do artifício
ainda continua atual, para além das orgias metatetxtuais e dos
18 Quanto a suas reflexões sobre arte, sobre o transestético, seria
interessante consultar A Arte da Desaparição.
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cansaços pós-utópicos, como um movimento central na arte
contemporânea.
Portanto, pensar uma estética do artifício implica retomar
a abertura propiciada por Clément Rosset e Guy Scarpetta,
desenvolvê-la como uma afirmação mais positiva e profícua da
espetacularização do real, em que o artifício não só não
aparece como dissimulação, mentira, mas descontrói a dualidade
entre natureza e cultura, nem como algo a ser sistematicamente
atacado e destruído. Uma estética do artifício, marcada por
uma ludicidade constante de sentidos e imagens, afetividades e
corpos, pela diversão que rima com reflexão (DYER, R.: 1992)19
e pelo espetáculo que não rima necessariamente com
totalitarismo, remete decisivamente a uma tradição barroca do
mundo como grande e permanente teatro, antídoto à
negatividade com que críticos contemporâneos como Jean
Baudrillard, ao menos na parte mais conhecida de sua obra e de
forma ambivalente, e Guy Debord, mais panfletário e
19 Para uma visão histórica da ascensão da diversão na sociedade norte-
americana, sem grandes reflexões teóricas, ver Gabler (1999)
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contestador20, destinam à espetacularização do mundo, ao
simulacro.
O artifício é uma categoria conceitual, sócio-histórica,
estética, articuladora de diferentes produtos culturais e
mediadora entre estes e a vida material, que deve ser pensada
não tanto como uma simples oposição à realidade, mas como um
dissolvente da dualidade real versus irreal. Ao contrário de
categorias abstratas, transcendentais, definidas a priori, o
artifício é uma categoria material, constituída pelas
experiências individuais e coletivas, que será colocada, no
momento, com especial ênfase no horizonte da experiências gays
contemporâneas. Para tanto, pretendo enfatizar as
ambivalências do camp, para além da identificação de uma
homotextualidade, tão marcada pelas discussões da década de
70, como um ponto de partida, ou mesmo de uma estética bicha
reificada, para explorar as relações entre imagens,
narrativas, afetividades e sexualidades homoeróticas.
O artifício não remete à mentira em oposição à visão
rousseauísta de uma verdade interior mas a uma subjetividade que
ao preferir máscara, uma ludicidade permanente, reafirma seu
20 Como na síntese conhecida: “O espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem” (DEBORD, G.: 1997 , 25).
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vínculo com uma “filosofia de transformação e incongruidade”
(NEWTON, E.: 1979, 105). Enquanto as drag queens simplesmente
expressam a incongruidade, o camp realmente usa-o para realizar
uma síntese maior (idem). O camp “está situado no ponto de
emergência do artificial no real, da cultura na natureza, ou
melhor, quando e onde o real se desagrega em artifício, a
natureza em cultura. O camp restaura vitalidade ao artifício, e
vice-versa, deriva o artificial do real, alimentando-o de volta
ou como se o real fosse real” (DOLLMORE, J.: 1991, 312).
*
Diferente do Brasil, onde o termo com exceção de
referências esporádicas e pouco desenvolvidas, estudo do camp
enquanto categoria analítica teve um certo crescimento de
interesse no meio universitário norte-americano, especialmente
dentro dos estudos gays e lésbicos, na medida em que “torna o
gênero uma questão estética” (DOLLMORE, J.: 1991, 311), bem
como na sua radicalização teórica e política, dentro dos
chamados estudos queer, já introduzidos no primeiro ensaio. Nos
anos 90, a publicação de três coletâneas de ensaios (BERGMAN,
D.: 1993, MEYER, M.: 1994 e CLETO, F.: 1999) e vários artigos
sobre o camp colocam como problema central as relações entre
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arte e política, seu uso por diversos atores sociais, seja ao
criarem novos fatos políticos e intervenções midiáticas, seja
por diálogos estabelecidos com o kitsch e o trash. No quadro
de uma sociedade de massas, o camp embaralha, desqualifica a
distinção entre cultura alta e cultura baixa, pela seriedade
da sua postura estetizante e afetiva, mesmo na derrisão. O
camp não considera a alta cultura como padrão do que seria o
bom gosto, como no caso do kitsch, cuja pretensão em imitá-la
decorre de um desejo de ascensão dos estratos médios (ROSS,
A.: 1993, 63). O camp também não se confunde com o prazer
trash extraído do mau gosto e seu culto, marcado pelo
sarcasmo, sintetizado no lema: quanto pior, melhor. O camp
traz algo recalcado na arte e crítica modernas: a afetividade,
mesmo a identificação com a obra e com seu autor.
O que há de estranho nos trejeitos, no gosto pela disco,
pelas canções francesas ou por melodramas é menos o ridículo do
exagero e mais nosso fascínio pelo sentimentalismo que
insistimos em revelar de outra forma, encobrindo-o pela ironia e
pelo cinismo, considerando-o um escapismo idealizante. O que é
difícil de ser enunciado na contemporaneidade, revela-se no
camp, sob a capa do humor ferino: o medo de ser afetivo oculta o
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medo de ser feminino, e, por extensão, o medo de ser gay,
especialmente em contextos tão decisivamente machistas como o
brasileiro, ou ainda, de forma mais ampla, o temor que seja
preferível ser sentimental do que não ter ou demonstrar nenhum
sentimento. E não estaria aí toda nossa pouca capacidade de
devanear, sonhar, ser singular, enfim, em tempos de redundância
informacional? Onde a delicadeza? O grande escândalo, já disse
Caetano Veloso em uma canção, é a solidão.
Normalmente um embaraço para a cultura gay pós-Stonewall, o
camp se tornou político, não só por sua marginalidade inicial,
como código específico para pessoas isoladas, excluídas ou
solitárias (LONG, S.: 1993, 89/90), forma de sobrevivência, “num
mundo dominado pelo gosto e interesses daqueles a quem se serve”
(ROSS, A.: 1993, 62), um “heroísmo de pessoas não chamadas a
serem heróis” (CORE, P.: 1984,15), até passar a ser utilizado em
passeatas e manifestações de militantes gays (MEYER, M.: 1994,
1), mas pela centralidade do afetivo. Apesar do riso, o camp é
“sentimento terno”, as pessoas que o apreciam realmente se
identificam com ele (SONTAG, S.: 1987, 336).
Hoje, o camp expressa não o desejo de afirmação do
estereótipo envelhecido da bicha louca, mas o desejo de
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empreendermos todos, das mais diversas sexualidades e
sensualidades, uma nova educação sentimental, não pela busca da
autenticidade de sentimentos cultivados pelos românticos, mas
pela via da teatralidade, quando, apesar da solidão, para além
da dor maior da exclusão, da raiva e do ressentimento, possa
ainda se falar em alegria, em felicidade. Faça uma pose. Eu
faço. Agora.
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