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RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A SINESTESIA E OS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM E USO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PRÁTICO. Sheila Regiane Franceschini 1 Maria Sylvia Padial Nantes 2 RESUMO: O presente trabalho busca demonstrar como o fenômeno “sinestesia” pode interferir ou favorecer o processo de aprendizagem nos indivíduos, por meio da realização de uma atividade de natureza multissensorial, observando-se os resultados dessa aplicação. Tais resultados colaboram para que possamos conceber a sinestesia como sendo um fenômeno neurocerebral com grande variedade de ocorrências, no qual ocorre uma espécie de ativação cruzada dos órgãos dos sentidos, promovendo o funcionamento simultâneo dos mesmos, diante dos variados estímulos. O estudo busca também compreender como este fenômeno no âmbito da psicopedagogia e nas relações com o uso da memória pode ser utilizado como abordagem ou recurso didático que favoreça o processo cognitivo, dentre outros aspectos positivos. PALAVRAS CHAVE: Processo de aprendizagem. Estímulo à Memória. Experiência multissensorial. ___________________________ INTRODUÇÃO “Vivemos de maneira cada vez mais sinestésica.” Ao assim afirmarmos, observou no cotidiano um estímulo constante para apreciarmos todas as coisas de maneira sinestésica. Ao assistirmos a um programa de televisão ou a um filme, ao consultarmos sites na internet, ao utilizarmos o próprio computador, dentre outras situações, fazemos de maneira sinestésica. Vemos, ouvimos, sentimos, cheiramos e até degustamos de maneira simultânea, sem nos dar conta de que assim procedemos. Ao buscar uma compreensão para o que seja esta sinestesia observa-se que ela se apresenta como uma experiência em que vários sentidos são solicitados e/ou estimulados simultaneamente. Considerando a sinestesia como sendo um fenômeno neurocerebral com grande variedade de tipos, no qual ocorre uma espécie de ativação cruzada dos órgãos dos 1 Graduada em Licenciatura Plena em Educação Artística pela Unifadra, Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas pela UnB e Mestre em Música pelo Programa de Pós Graduação do Instituto de Artes da UNESP. 2 Pedagoga, Mestre pela UFMS, orientadora deste trabalho.

RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A SINESTESIA E OS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM E USO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PRÁTICO

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RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A SINESTESIA E OS PROCESSOS DE

APRENDIZAGEM E USO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PRÁTICO.

Sheila Regiane Franceschini1

Maria Sylvia Padial Nantes2

RESUMO: O presente trabalho busca demonstrar como o fenômeno “sinestesia” pode interferir

ou favorecer o processo de aprendizagem nos indivíduos, por meio da realização de uma

atividade de natureza multissensorial, observando-se os resultados dessa aplicação. Tais

resultados colaboram para que possamos conceber a sinestesia como sendo um fenômeno

neurocerebral com grande variedade de ocorrências, no qual ocorre uma espécie de ativação

cruzada dos órgãos dos sentidos, promovendo o funcionamento simultâneo dos mesmos, diante

dos variados estímulos. O estudo busca também compreender como este fenômeno no âmbito

da psicopedagogia e nas relações com o uso da memória pode ser utilizado como abordagem ou

recurso didático que favoreça o processo cognitivo, dentre outros aspectos positivos.

PALAVRAS CHAVE: Processo de aprendizagem. Estímulo à Memória. Experiência

multissensorial.

___________________________

INTRODUÇÃO

“Vivemos de maneira cada vez mais sinestésica.” Ao assim afirmarmos,

observou no cotidiano um estímulo constante para apreciarmos todas as coisas de

maneira sinestésica. Ao assistirmos a um programa de televisão ou a um filme, ao

consultarmos sites na internet, ao utilizarmos o próprio computador, dentre outras

situações, fazemos de maneira sinestésica. Vemos, ouvimos, sentimos, cheiramos e até

degustamos de maneira simultânea, sem nos dar conta de que assim procedemos. Ao

buscar uma compreensão para o que seja esta sinestesia observa-se que ela se apresenta

como uma experiência em que vários sentidos são solicitados e/ou estimulados

simultaneamente.

Considerando a sinestesia como sendo um fenômeno neurocerebral com grande

variedade de tipos, no qual ocorre uma espécie de ativação cruzada dos órgãos dos

1Graduada em Licenciatura Plena em Educação Artística pela Unifadra, Especialista em Arte, Educação e

Tecnologias Contemporâneas pela UnB e Mestre em Música pelo Programa de Pós Graduação do

Instituto de Artes da UNESP. 2 Pedagoga, Mestre pela UFMS, orientadora deste trabalho.

sentidos, promovendo o funcionamento simultâneo dos mesmos, diante dos variados

estímulos, procuramos compreender como este fenômeno ocorre e como pode facilitar

ou interferir nos processos de aprendizagem e na memória dos indivíduos acometidos

pela sinestesia ou não.

A sinestesia é considerada por muitos pesquisadores como um distúrbio cerebral

e, por meio de dados científicos, já foram identificados inúmeros tipos de ocorrências

sinestésicas. O fato é que, se muitos indivíduos se sentem prejudicados pelos efeitos da

sinestesia, há outros indivíduos que demonstram habilidades bastante impressionantes

no que se refere à capacidade de memorização e às habilidades com números, entre

outras. A sinestesia, neste sentido, parece estar diretamente relacionada com a memória,

demonstrando-se um facilitador do processo de aprendizagem.

E sendo assim, a hipótese de que a sinestesia possa ser uma forma de abordagem

ou metodologia útil para o processo de aprendizagem, confirma a necessidade do

aprofundamento no sentido de levantar dados relevantes que expliquem o

funcionamento cerebral frente à sinestesia, as relações existentes com a memória e a

capacidade de aprendizagem e seus efeitos na vida dos indivíduos.

Por meio de pesquisas existentes3, é possível afirmar que todos nós nascemos

propensos a vivenciar situações sinestésicas, visto que nos primeiros anos de vida os

diversos estímulos são captados pelo cérebro do bebê de forma simultânea o que nos

indica a ocorrência de ativações cerebrais múltiplas pela união dos sentidos. O que

ainda não é compreendido pela literatura científica é como essa característica se perde

ou se mantém na vida dos indivíduos, bem como, suas implicações em processos de

aprendizagem e aquisição de memória, nos casos permanentes.

1. SOBRE A SINESTESIA

Para melhor explicar a sinestesia, esta se caracteriza como uma experiência

multissensorial no qual um fenômeno perceptível por um determinado sentido se faz

perceptível por meio de outro sentido, também, havendo uma espécie de colaboração

entre os sentidos de maneira involuntária e simultaneamente, de forma aditiva e não

3 MAURER, Daphne. Neonatal Synaesthesia: Implications for the Processing of Speech and Faces.

In. Baron-Cohen, S. and Harrison, J (Eds.) Synaesthesia: Classic and Contemporary Readings; England:

Oxford Blackwell. 1997.

excludente. O termo tem origem grega e significa união de sensações (sin= união +

aesthesis = sensação).

Já numa abordagem neurofisiológica, segundo estudiosos como Simon Baron-

Cohen (1958) a sinestesia é considerada uma anomalia perceptual ou disfunção

neurológica4, uma vez que suas ocorrências podem trazer prejuízos aos indivíduos por

ela acometidos.

Para outros, é vista como uma habilidade cerebral na qual um sentido evoca a

função de outro, na percepção de algo e que estaria presente em todos desde o

nascimento, manifestando-se na fase adulta em apenas uma porção da população,

desconhecendo-se os fatores que implicam na perda desta faculdade.

Segundo a pesquisadora e psiquiatra Daphne Maurer (1966) as conexões

cerebrais no desenvolvimento cognitivo ocorridas nos primeiros três ou quatro meses de

vida do recém-nascido seriam manifestações sinestésicas, no que poderíamos concluir

que todos nascem sinestetas.

Para Vilayanur Ramachandran (1951), pesquisador e neurocientista indiano,

diretor do Centro do Cérebro e Cognição, da Universidade da Califórnia, explica que a

sinestesia ocorre pelo resultado da ativação cruzada nas várias regiões do cérebro, em

razão da proximidade dessas regiões, havendo o entrecruzamento das conexões

cerebrais, bem como das funções sensoriais.

A compreensão da sinestesia pode facilitar o entendimento sobre o

funcionamento e a plasticidade cerebral, bem como aspectos importantes da cognição,

percepção, capacidade de atenção e memória, entre outros. De acordo com o

pesquisador Noam Sagiv;

No contexto da Ciência cognitiva, a compreensão da sinestesia envolve não só

dados sobre o fenômeno, mas também sobre o que ele nos diz sobre a cognição

normal. Deve ficar claro que sinestesia abrange muitos aspectos importantes da

cognição humana: percepção e atenção, consciência, memória e aprendizagem,

linguagem e pensamento e, finalmente, o desenvolvimento. (SAGIV apud

ROBERTSON & SAGIV, 2005, p. 5 – tradução nossa).5

4 Ver Robertson, Lynn & Sagiv Noam. Synesthesia. Perspectives from Cognitive Neuroscience. In

Synesthesia in Perspective. Noam Sagiv. p. 6. 5 In the context of cognitive science, understanding synesthesia involves not only documenting the

phenomenon but also asking what it tells us about normal cognition. It should be clear by now that

Alguns tipos de sinestesias são mais frequentes, normalmente os que combinam

dois órgãos dos sentidos, já os casos mais raros são aqueles que apresentam formas

múltiplas de sinestesia. Dados revelam que 1 em cada 500 indivíduos visualizam

grafemas e notas musicais coloridas; 1 em cada 3000 indivíduos apresenta a sinestesia

de cores associadas a sons musicais e/ou sensações de paladar e, 1 em cada 25.000

indivíduos apresentam outras formas.6 As pesquisas também mostram uma maior

ocorrência entre as mulheres pois a sinestesia está ligada à dominância do cromossomo

X.7

Dentre as características mais comuns da sinestesia estão o caráter genético e,

em geral, a manifestação em vários membros de uma mesma família, o fato de ser uma

ocorrência automática e involuntária que não pode ser aprendida e que, normalmente, é

durável e permanente, ligada à memória e às emoções. E ainda, seria projetada e sentida

no entorno corporal.

Estudos mostram que os sinestetas podem apresentar uma memória prodigiosa.

O pesquisador e neuropsicólogo russo, Aleksander Luria (1902-1977) dedicou-se a

estudar a memória e revelou dados interessantes sobre as altas capacidades de memória

em caso de sinestesia. Porém, outros estudos mostram, em alguns casos, dificuldades no

raciocínio matemático e na orientação espacial.

A sinestesia também pode ser congênita ou adquirida, em casos de patologias e

acidentes cerebrais. Observa-se, ainda, que por efeito do uso de drogas e outras

substâncias alucinógenas também se pode vivenciar o fenômeno. (BASBAUM, 2002, p.

32)

A pesquisadora e neurologista Julia Simner, da University of Edinburgh,

acredita que a sinestesia pode ser adquirida, pois segundo suas pesquisas com crianças,

em alguns casos específicos de sinestesia existem evidências que estes evoluem ao

longo do tempo de acordo com a exposição ambiental, não obstante suas raízes

genéticas prováveis. Ou seja, pode-se observar o desenvolvimento do fenômeno

sinestésico ao longo da trajetória do indivíduo.8

synesthesia touches many major aspects of human cognition: perception and attention, consciousness,

memory and learning, language and thought, and, finally, development. 6 Ver Robertson, Lynn & Sagiv Noam. Synesthesia. Perspectives from Cognitive Neuroscience. In Some

Demographic and Socio-cultural aspects of Synesthesia. Sean Day. 2005, p. 12. 7 Disponível em < http://home.comcast.net/~sean.day/html/definition.htm > Acesso em 10 abr 2010. 8Ver Simner, Julia. Early detection of markers for synaesthesia in childhood populations. In: Brain. A

Journal of Neurology. Edinburgh: Oxford Jornals. 2009.

Não se trata, portanto, de acreditar na sinestesia como sendo um sexto sentido,

uma manifestação mística ou de caráter espiritual, mas sim de entendê-la como uma

condição determinada neurologicamente, seja por caráter genético, patológico ou

indutivo.

Diante destas características, é importante esclarecer que o termo pode assumir

outros significados ou conduzir a outras abordagens. Por exemplo, o pesquisador Sérgio

Basbaum (1964-), demonstra que as abordagens mais comuns a respeito do termo são:

a) as de caráter neurológico que considera a sinestesia constitutiva ou patológica e as

discussões perceptivas das associações de modalidades sensórias; b) as do ponto de

vista artístico e todas as tentativas, desde o Renascimento até o momento presente,

visando à combinação dos diversos sentidos na apreciação das obras de arte; c) as dos

próprios depoimentos de sinestesta sejam natos ou pelo uso de substâncias psicoativas;

d) a sinestesia como figura de linguagem.9

Neste sentido, estudiosos vem classificando o fenômeno em duas categorias

distintas: a sinestesia e pseudo-sinestesia. O primeiro grupo incluiria os casos de

sinestesia constitutiva, de caráter neurológico e/ou caráter patológico e ainda as

adquiridas por uso de substâncias psicoativas, enquanto o segundo grupo compreenderia

as metáforas, num abordagem artística na qual os trabalhos de arte apresentem signos

relativos a diversas modalidades sensórias, objetivando experiências multissensoriais.

O pesquisador Sean Day (1963-) é sinesteta e também estuda o fenômeno

mantendo uma lista de sinestetas no mundo todo, catalogando as diversas

combinações.10 Ele classifica a sinestesia em dois tipos: a synesthesia proper (também

chamada adequada) na qual os estímulos para uma entrada sensorial desencadeiam

sensações em um ou mais modos sensoriais; e a synesthesia cognitive ou category, que

envolve sistemas de categorias cognitivas ligados à cultura como a aprendizagem das

letras, números ou nomes.11

No século XIX a sinestesia tornou-se um foco das investigações científicas, pelo

estudo das relações entre os órgãos dos sentidos e a percepção, especialmente nas

associações entre sons e cores, tomando maiores proporções também no campo da

9 Em BASBAUM, Sergio R. Sinestesia, arte e tecnologia: fundamentos da cromossonia. São Paulo.

Annablume/FAPESP. 2002, p. 25-26 10 Disponível em <http://home.comcast.net/~sean.day/html/types.htm> Acesso em 10 abr 2010. 11 Disponível em < http://home.comcast.net/~sean.day/html/definition.htm > Acesso em 10 abr 2010.

Fenomenologia, da Neuropsicologia e da Ciência Cognitiva e passando a merecer mais

atenção na última década.

Do ponto de vista filosófico e baseando-se na fenomenologia de Merleau-Ponty

(1908-1961), as sensações e a percepção são postulados fundamentais pelos quais

compreendemos a existência e a comunhão entre os indivíduos e o mundo, no processo

de construção do conhecimento e da consciência das coisas.

Merleau-Ponty nos diz: “Eu poderia entender por sensação, primeiramente, a

maneira pela qual sou afetado e a experiência de um estado em mim mesmo.” (1999, p.

24). A percepção se apropria da sensação, daquilo que é sentido e sendo assim o ato de

sentir seria um momento inicial do conhecer. Ainda de acordo com o filósofo, “o visível

é o que se apreende com os olhos, o sensível é o que aprende pelos sentidos” (1999, p.

30), e ao considerarmos o sensível, verifica-se que os órgãos dos sentidos e suas

funções são vistos como uma modalidade de ligação entre o indivíduo e o mundo, na

qual um sentido solicita o outro. Eis a sinestesia acessível a todos.

É por isso que as experiências de cada indivíduo enquanto ser e sua relação com

o mundo são valorizadas. Nestes termos, a experiência multissensorial seria inerente a

todo indivíduo, sendo justificada pelo fenômeno da sinestesia, tanto na abordagem

neurológica, quanto no sentido filosófico que justifica a abordagem artística, seja qual

for a acepção que o termo sinestesia assuma.

2. SOBRE A MEMÓRIA

Para compreendermos o que vem a ser memória consideramos uma função

cognitiva na qual o indivíduo é capaz de reter ou armazenar informações, experiências

já vividas, enquanto lembranças ou imagem. Segundo A. R. Luria, teórico da

psicologia,

(...) entendemos por memória o registro, a conservação e a reprodução dos

vestígios da experiência anterior, registro esse que dá ao homem a

possibilidade de acumular informação e operar com os vestígios da experiência

anterior após o desaparecimento dos fenômenos que provocaram tais vestígios.

(LURIA, 1991, 39)

Por meio dos vários tipos de memória, considerando a capacidade de percepção

do indivíduo, a gama de experiências e vivências absorvidas ao longo da vida, a

memória motora e conceitual, o indivíduo vai construindo o conhecimento que lhe é

necessário para responder às necessidades e desafios cotidianos.

Luria nos diz que “os fenômenos da memória podem pertencer igualmente ao

campo das emoções e ao campo das percepções, ao reforço dos processos motores e da

experiência intelectual.” (1991, 39). Sendo assim, a memória possibilita ao indivíduo

que continue a estabelecer processos cognitivos na recepção de novas estruturas e

conceitos, por acessar conhecimentos pré-existentes.

O assunto mereceu a atenção de grandes pesquisadores como Lev Semenovitch

Vygotsky (1896-1934), considerado pioneiro em matéria de pesquisas com crianças,

especialmente as que tratam do desenvolvimento intelectual.

Pode-se compreender esse processo especificando aspectos da formação da

linguagem. Para chegar à integração de fonemas, optemas e grafemas, produtos

finais da integração sensorial subjacente à linguagem o ser humano necessita

integrar múltiplas informações táteis, sinestésicas, como tocar, manipular, levar

à boca, dentre outras. Integra também informações vestibulares, como a

gravidade e a motricidade, além de informações proprioceptivas, que

compreendem os músculos e as articulações. Essas integrações encontram-se

na gênese da construção de um modo próprio de comunicação não-verbal e

verbal de cada indivíduo. Integra ainda relações e interações, diálogo,

sincronicidade e vínculos implícitos em todas as práticas relacionadas com

segurança, conforto tônico e tátil, como competências motoras. (Vygostky

apud Freitas, 2006, p.93)

Outras pesquisas avançaram no sentido de observar a memória como dependente de

reações químicas, bioquímicas ou de modificações na plasticidade cerebral, o que afetaria a

conservação, retenção ou perda de informações.

Nesse sentido, estudos mostram que as experiências vividas são fatores que estimulam a

plasticidade cerebral produzindo mudanças estruturais e funcionais no cérebro e tais mudanças

estariam correlacionadas com alterações funcionais dos neurônios do comportamento do

indivíduo. 12 Conforme no diz a pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Carla Dalmaz:

Esse repertório de mudanças demonstra que a atividade neural resultante da

interação do organismo com o meio externo pode modificar a estrutura do

12 Ver DALMAZ, Carla and ALEXANDRE NETTO, Carlos. A memória. Cienc. Cult. [online]. 2004,

vol.56, n.1, pp. 30-31. ISSN 0009-6725.

sistema nervoso em qualquer período da vida, mesmo após a maturidade.

Assim, aprendizado e plasticidade são interdependentes e se pode concluir que

a experiência, ao modificar o comportamento, está modificando algumas

sinapses no sistema nervoso, ou vice-versa. Em decorrência, postula-se que as

mudanças plásticas possam ser os loci responsáveis pelo armazenamento da

memória. (DALMAZ, 2004, 30)

Os aspectos emocionais também interferem nos processos de armazenamento e

organização da memória, prejudicando ou facilitando o acesso à informação, conforme

a situação. De forma que situações de forte emoção, estresse, quadros de desequilíbrios

emocionais, dentre outros, podem afetar o funcionamento da memória, da mesma forma

que situações positivas podem favorecer este mesmo funcionamento.

Se considerarmos a sinestesia enquanto experiência multissensorial, podemos

acolher a ideia de que os estímulos sensoriais ao promover alterações de ordem

emocional e bioquímica, desencadeiam alterações na plasticidade cerebral o que ativam

grandemente o funcionamento da memória e possibilitam a decodificação e codificação

de novas informações, na construção do conhecimento e na capacidade de aprender.

Como já mencionado, Luria, em suas pesquisas sobre memória e sinestesia,

verificou que o indivíduo, diante dos mais diversos estímulos, apresentava níveis de

memória impressionantes. Geralmente a sinestesia implica em altos níveis de memória

nos indivíduos por ela acometidos. Isso vem a ser possível, pois o sinesteta realiza

associações de suas informações com sensações, o que lhe possibilitaria um rápido

acesso a elas por meio da repetição das sensações. 13

3. SOBRE A APRENDIZAGEM

Numa perspectiva humanista, aprendizagem seria a própria capacidade de

aprender, na seleção de conhecimentos que o próprio indivíduo requer como condição

para a resolução de seus problemas.

Se já afirmamos que a aprendizagem está ligada à plasticidade cerebral e que

esta afeta os processos de memória, podemos dizer que aprendizagem e memória

também são interligadas.

13 Ver LURIA, A.R. The mind of a mnemonist. A Little Book about a Vast Memory. New York: Basic

Books, inc. publishers. 1968.

Além disso, ressaltamos que a questão da estrutura cognitiva do indivíduo

também implica no desenvolvimento da aprendizagem e, para que ela ocorra de maneira

adequada, é necessário que esta estrutura cognitiva esteja devidamente organizada pelo

cérebro, nos diversos âmbitos.

Filogeneticamente, a integração sensorial está na base da evolução da

motricidade e do cérebro dos vertebrados. A expansão das áreas sensoriais e

associativas expressa a questão e no ser humano, explica porque o mesmo é

único na comunicação não verbal e verbal, e único em seu índice de

encefalização (Luria apud Freitas, 2006, p. 92)

E ainda,

Ontogeneticamente, a integração sensorial da espécie humana inicia-se no

útero materno, como pré-requisito do desenvolvimento e da aprendizagem.

Prolonga-se extra-uterinamente através das aquisições que transitam entre os

gestos, a visão e as palavras. (Luria apud Freitas, 2006, p.92)

Nessa visão, um importante conceito de aprendizagem é o conceito de

aprendizagem significativa que faz bastante sentido neste estudo uma vez que no

processo de aprendizagem é o próprio indivíduo que julga e escolhe aquilo que lhe

servirá para a vida.

A aprendizagem significativa seria a compreensão dos significados atrelada às

experiências e vivências pessoais do aluno e desafiando-o a compreender novas

situações, estabelecendo diferentes relações entre fatos, objetos e acontecimentos, na

solução de problemas e fazendo com que ele possa atuar na sociedade de acordo com o

que foi assimilado, adaptando suas atitudes em diferentes contextos.

De acordo com a pesquisadora e professora Elcie Masini:

O que seria, então aprendizagem significativa? Segundo a teoria ausubeliana14,

é o processo pelo qual uma nova informação se relaciona com um aspecto

relevante de conhecimento do indivíduo e é por ele elaborado. Essa relação

ocorre de uma forma não-arbitrária e substantiva, numa área de conhecimento.

Aprendizagem significativa pressupõe, portanto:

a) que o aluno manifeste uma disposição para a aprendizagem significativa,

isto é, uma disposição para relacionar, de forma não-arbitrária e

14 A Teoria da Aprendizagem Significativa de Ausubel considera que o principal fator para uma

aprendizagem é a estrutura cognitiva.

substantiva, o novo material com conceitos e representações existentes em

sua estrutura cognitiva;

b) que o material apreendido seja potencialmente significativo – tenha um

significado lógico e seja passível de ser incorporado à sua estrutura de

conhecimentos, por meio de uma relação não-artibrária e substantiva.

(1993, 26)

Sendo assim, também podemos sugerir que uma abordagem sinestésica em

educação, já que afeta a plasticidade cerebral pela estimulação sensorial, também ativa a

memória e processo de aprender, e acessa informações de caráter significativo, podendo

se tornar, nestes termos, um método de ensino ou recurso didático.

4. SOBRE A ATIVIDADE E SEUS RESULTADOS

No sentido de compreender tais postulados, foi aplicada uma atividade para 20

(vinte) indivíduos adultos selecionados por adesão entre homens e mulheres resultando

numa experiência de escuta musical denominada “A História da Música compreendida

por meio de experiências multissensoriais”. Tal atividade foi realizada em sala

espelhada e nela os alunos foram submetidos à estimulação simultânea, por meio de

diversos elementos da natureza, focos de luz, instrumentos musicais variados, cheiros,

além de uma sequencia musical que compreendia extratos da produção musical de

diversos períodos históricos, em ordem cronológica, desde os registros de música

primitiva ou tribal, passando pela música étnica e dos movimentos musicais e

compositores de grande relevância histórica.

A ideia foi observar o quanto à estimulação seria capaz de promover

experiências multissensoriais e o quanto poderia influenciar na capacidade de

compreensão do material auditivo, pois o objetivo da atividade era verificar se os alunos

conseguiriam realizar qualquer ligação entre os estímulos e o percurso histórico-

musical.

Outra importante observação era verificar o próprio processo de aprendizagem já

que os participantes seriam constantemente levados a evocar a memória, por meio de

situações já conhecidas e como responderiam aos estímulos, durante toda atividade.

A leitura dos dados obtidos nos conduz ao entendimento de como os indivíduos

aprendem ou apreendem conhecimento de forma mais global, solicitando a atividade de

todos os órgãos dos sentidos.

Ao final da experiência, os participantes responderam a um questionário no qual

indicavam qual estímulo sensorial lhes pareciam mais intenso, quais sensações foram

despertadas na experiência, se a ideia de uma abordagem sinestésica era clara, qual

período histórico agradou mais e se tais estímulos ajudaram na compreensão da música

na história e da história da música.

Dentre os participantes, em relação os elementos dispostos no ambiente 50% dos

participantes se sentiram atraídos pelo foco de luz, 25% pela água e 25% por outros

elementos presentes. As respostas revelaram uma associação destes elementos às

sensações descritas como “aconchego”, “paz”, “calma”, “frieza”, “energia”, ou, ainda, à

ideia de “pureza” ou “verdade”. Aspectos emocionais podem nos ajudar a compreender

tais respostas.

Os participantes também indicaram a audição como sendo o sentido mais

solicitado, em 90%. Os outros 10% informaram outros órgãos dos sentidos como sendo

mais utilizados. Para 80% dos participantes ocorreu o uso simultâneo de dois ou mais

sentidos, para 10% não houve a ocorrência e 10% não respondeu. Neste caso embora

grande parte do grupo tenha confirmado a experiência multissensorial ou sinestésica, o

fato de indicarem a audição como órgão mais solicitado nos mostra que não há clareza

sobre o que é experiência multissensorial ou sinestesia. Porém, em algum momento da

atividade esta experiência ocorreu, como se pode verificar.

Observamos ainda que a atividade ajudou os participantes a se reportarem a

lugares que identificam os períodos históricos correspondentes. Isso nos mostra que o

acesso à memória é constante em 80% dos participantes, apenas 20% não fez menção. O

nível de clareza das respostas, neste caso, levou em consideração o repertório musical e

imagético de cada participante.

Quanto mais conhecedores dos fatos e períodos históricos, mais integrados à

atividade permaneceram os participantes. Naqueles em que o conhecimento era menor,

menos conclusiva foi à resposta. Isso evidenciou que as vivências e experiências

anteriores, realizadas pelos indivíduos, intensificaram novas vivências e geram

significados. Neste sentido o uso da memória foi fundamental para se alcançar tais

resultados.

Assim sendo, de acordo com os dados obtidos, podemos inferir que uma

abordagem sinestésica em educação pode colaborar para o processo de aprendizagem,

mediante a estimulação sensorial. Especialmente quando fazemos uso da música, dança

ou outras atividades artísticas, verificamos benefícios diretos aos indivíduos.

Segundo a pesquisadora e professora Tânia Mara Grassi,

A música e a dança fazem parte da nossa vida e podem ser usadas como

recursos pedagógicos no dia-a-dia de uma oficina psicopedagógica.

Sensibilidade por parte do organizador de uma oficina é fundamental para se

atinjam os objetivos.

Ao ouvir uma música, o sujeito poderá relaxar, alegrar-se, entristecer-se,

motivar-se, abrir-se, expressar-se, sentir. Um trabalho em oficinas que utilize a

música possibilita o desenvolvimento de funções psicomotoras e mentais

superiores: desenvolve a concentração, diminui a timidez, aumenta a auto-

estima, desperta a emoção, facilita a aprendizagem, estimula o pensamento, a

imaginação e a criatividade.” (139-140)

E se tais benefícios, enquanto sensações afetam a plasticidade cerebral por meio

de acessos à memória, observamos a construção do conhecimento de maneira

significativa.

Essa aprendizagem baseada num desenvolvimento intrínseco, ou seja, de dentro

para fora, no contato com as manifestações culturais, na interação entre os indivíduos é

defendida por Vygotsky. Para ele, a aprendizagem depende das relações humanas e está

ligada à maturação do organismo e ao contato com o mundo e seus estímulos. De

acordo com a pesquisadora Martha Kohl de Oliveira,

A cultura torna-se parte da natureza humana num processo histórico que, ao

longo do desenvolvimento da espécie e do indivíduo, molda o funcionamento

psicológico homem. (1992, 24)

E ainda,

As concepções de Vygotsky sobre o funcionamento do cérebro humano

fundamentam-se em sua ideia de que as funções psicológicas superiores são

construídas ao longo da história social do homem. Na sua relação com o

mundo, mediada pelos instrumentos e símbolos desenvolvidos culturalmente, o

ser humano cria as formas de ação que o distinguem de outros animais. Sendo

assim, a compreensão do desenvolvimento psicológico não pode ser buscada

em propriedades naturais do sistema nervoso. Vygotsky rejeitou, portanto, a

ideia de funções mentais fixas e imutáveis, trabalhando com a noção do

cérebro como um sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e

modos de funcionamento são moldados ao longo da história da espécie e do

desenvolvimento individual. (1992, 24)

É possível dizer, portanto, que existe uma relação entre o desenvolvimento e a

aprendizagem observando-se a estrutura cognitiva, os sistemas funcionais cerebrais, a

interação social na construção significativa do conhecimento, justificando o uso de

abordagens sinestésicas como recursos didáticos que impliquem na melhoria do

processo de aprendizagem e nesse sentido a tentativa em estreitar relações e o diálogo

entre as abordagens sinestésicas e a psicopedagogia é interessante e relevante para o

contexto da educação e da escola.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados confirmam a hipótese que somos constantemente e

simultaneamente estimulados em nossa percepção, solicitando o uso dos órgãos dos

sentidos, porém sem a consciência ou clareza de que isso ocorre diuturnamente.

A abordagem sinestésica, de acordo com os conceitos apresentados, neste

sentido, apresenta-se como uma possibilidade na aquisição de conhecimentos ao longo

da vida, ao longo da história e de forma contínua, gerando nos indivíduos uma espécie

de banco de informações visuais, sonoras, olfativas, táteis e ordem emocional.

Os processos sinestésicos e a memória cooperam-se mutuamente favorecendo o

processo de aprendizagem.

No campo da psicopedagogia tais informações podem colaborar com novas

formas de compreensão dos processos de aprendizagem e a geração de novas

metodologias em ensino, utilizando, no caso desta pesquisa, a música enquanto

linguagem artística como eixo norteador para uma formação mais global do indivíduo.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASBAUM, Sergio R. Sinestesia, arte e tecnologia: fundamentos da cromossonia.

São Paulo. Annablume/FAPESP. 2002.

BOSSEUR, Jean-Yves. Musique et arts plastiques: interactions au XXe siécle. Paris:

Minerve. 1998.

CAZNOK, Yara B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Ed. UNESP. 2003.

CYTOWIC, Richard. Synesthesia: a Union of the Senses. Massachusetts: Institute of

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