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Politica social

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Ação Pública e Problemas Sociais em Cidades Intermediárias

VOLUME 1. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMA�OS E CIDADA�IA

VOLUME 2. CO�SUMOS, LAZERES, MODOS E ESTILOS DE VIDA

VOLUME 3. DESE�VOLVIME�TOS E SUSTE�TABILIDADE

VOLUME 4. EDUCAÇÃO, SABERES E CULTURAS

VOLUME 5. GOVER�A�ÇA DE TERRITÓRIOS E DE CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

VOLUME 6. I�SEGURA�ÇA, VIOLÊ�CIA E CRIME

VOLUME 7. MERCADOS DE TRABALHO E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: MOBILIDADES E FLUXOS

VOLUME 8. MORFOLOGIA SOCIAL E DI�ÂMICAS DAS CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

VOLUME 9. MOVIME�TOS SOCIAIS E PARTICIPAÇÃO

VOLUME 10. POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

VOLUME 11. RELAÇÕES SOCIAIS DE GÉ�ERO E RAÇA

VOLUME 12. SAÚDE, SISTEMAS DE SAÚDE E CORPO

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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FICHA TÉCNICA

TÍTULO:

Ação Pública e Problemas Sociais em Cidades Intermediárias

AUTORES:

Vários

COORDENADORES:

Balsa, Casimiro

Rodrigues, Luciene

Cardoso, Antônio Dimas

Soulet, Marc-Henry

COMISSÃO DE LEITURA:

Albuquerque, Cristina

Balsa, Casimiro

Boneti, Lindomar

Cardoso, Antônio Dimas

Diogo, Fernando

França, Iara Soares de

José, São José

Macedo, Luiz António

Maia, Rosemere

Martins, Luci Helena

Nofre, Jordi

Olímpio, Marcos

Paula, Andréa Rocha de

Pires, Iva

Rodrigues, Luciene

Vaz, Domingos

APOIO À EDIÇÃO:

Vital, Clara

Sampaio, Leonor

ISBN: 978-989-20-4086-8

Lisboa, 2013

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�DICE

�DICE ........................................................................................................................................................ 4

�EOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO: o ensino superior brasileiro nos anos 90 ........................................ 5

Christine Veloso Barbosa Araújo

Maria Helena de Souza Ide

POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA �OS ESPAÇOS URBA�OS: da razão técnico-funcional à insurgência de processos e agentes sociais novos .................................................................. 18

Lindomar Wessler Boneti

O CRESCIME�TO DA POBREZA. Limites das fontes estatísticas em Portugal e resultados possíveis .. 34

Fernando Diogo

DA I�TER-RELAÇÃO CE�TRAL / LOCAL �A AÇÃO PÚBLICA. Serviços sociais e atendimento

integrado: modelos e perspetivas .............................................................................................................. 53

Cecília Dionísio

DESE�VOLVIME�TO ECO�ÔMICO, DESIGUALDADES E I�JUSTIÇAS SOCIOESPACIAIS EM CAMPOS DOS GOYTACAZES. O papel das políticas públicas urbanas. ................................................ 67

Teresa de Jesus Peixoto Faria

Raquel Callegario Zacchi

�atália Guimarães Mothé

DIFUSÃO I�TER�ACIO�AL E MODELAGEM DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA REDUÇÃO DA POBREZA: reflexões sobre políticas sociais brasileiras ........................................................................... 87

Samira Kauchakje

EM �OME DA ORDEM: política urbana e criminalização da pobreza na Cidade do Rio de Janeiro no limiar do século XXI ................................................................................................................................ 108

Rosemere Maia

MAPEAME�TO DE I�DICADORES HABITACIO�AIS SOCIAIS: uma contribuição para planejamento de políticas públicas ................................................................................................................................ 127

Deborah Marques Pereira

Anete Marília Pereira

Marcos Esdras Leite

Aline Crystiane Carvalho Mendes

AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCATIVAS E OS CURSOS PROFISSIO�AIS. Um caso de parceria entre uma Escola Secundária e uma Empresa do ramo da Indústria numa Cidade Intermediária .................. 147

Zulmira de J. C. da Silva Rodrigues

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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�EOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO:

o ensino superior brasileiro nos anos 90

Christine Veloso Barbosa Araújo

UNIMONTES

Universidade Estadual de Montes Claros

[email protected]

Maria Helena de Souza Ide UNIMONTES

Universidade Estadual de Montes Claros

[email protected]

Resumo

Este artigo analisa as transformações ocorridas no contexto da educação superior no Brasil nos anos 1990.

Sob o aval de organismos internacionais, interessados na reestruturação do capital produtivo nos países

periféricos, o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) implementou políticas neoliberais que levaram

à expansão desse nível de ensino no Brasil, em especial das Instituições de Ensino Superior (IES)

privadas. O texto apresenta uma análise e uma reflexão crítica sobre as transformações por que passaram

o ensino superior no país nesse período, e como essas mudanças impactaram a função social da

universidade1.

Palavras-chave: Organismos internacionais, Educação superior, Expansão do ensino superior

1Agradecemos o apoio da Fapemig.

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Introdução

A expansão da educação superior nos países da América Latina e mais

especificamente no Brasil, ocorrida na década de 90, contemplou a implementação de

políticas neoliberais aliadas aos interesses da burguesia financeira mundial. Esse

processo ocorreu por intervenção dos organismos internacionais como o Banco Mundial

(BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e até mesmo a Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que, interessados em garantir

a segurança do capitalismo, impuseram condicionalidades aos países periféricos em

troca de sua estabilidade econômica. Esses organismos defendiam o financiamento da

educação superior pelos setores privados, favorecendo o empresariamento da educação,

através da criação de empresas educacionais mais preocupadas em vender produtos

acadêmicos, que produzir conhecimento científico e tecnológico. No Brasil, o governo

de Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi marcado pelo célere crescimento do número

de instituições de ensino superior privadas. As alianças estabelecidas nesse período

permitiram a implementação de uma nova política educacional ajustada aos ideais da

agenda neoliberal. Assim, seu governo permitiu o crescimento de instituições voltadas

para, basicamente, atividades de ensino em detrimento das instituições vinculadas à

pesquisa, ciência e tecnologia. Nessa perspectiva, a educação sofreu transformações e

tensões até hoje não solucionadas. Este artigo apresenta de forma sucinta as principais

políticas e reformas estabelecidas pelos organismos internacionais para os países

periféricos nos anos 1990. A abordagem inclui a era FHC e as transformações ocorridas

no ensino superior no Brasil durante esse período, sugerindo uma análise crítica dos

fatos transcorridos.

Organismos Internacionais e as reformas educacionais nos países periféricos

Desde a década de 1940, quando foram criados, os organismos internacionais

comprometidos com o capital, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário

Internacional (FMI) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura (UNESCO), interferem nas políticas sociais, econômicas e culturais dos países

periféricos. Isso porque seus objetivos passam pela garantia da estabilidade e segurança

do sistema capitalista e a consequente necessidade de inserir esses países na dinâmica

da globalização do capital. A fim de assegurar uma situação econômica estável, os

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países periféricos recorrem à concessão de empréstimos e, endividados, se vêem

comprometidos com os organismos internacionais através de condicionalidades que se

concretizam por meio de interferências desses organismos, nas políticas

macroeconômicas e setoriais. Neste contexto, o controle das políticas educacionais

apresenta-se de forma destacada, visto que existe um consenso entre esses organismos

sobre o papel da educação como “mola propulsora do desenvolvimento/crescimento

econômico” (Lima, 2002: 44).

A partir dos anos 80, com o endividamento dos países periféricos junto ao Banco

Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), começam a ganhar contorno

diversas políticas voltadas de forma impositiva para a garantia da estabilidade

econômica e de ajuste estrutural aos países da América Latina, mais especificamente ao

Brasil. Esse processo deu início à Reforma do Estado e, inserida nesta, à Reforma

Educacional. (Lima, 2002)

No início da década de 1990, a Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Banco Mundial (BM), o Fundo das

Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), organizaram a “Conferência Mundial de Educação para

Todos” em Jomtien, na Tailândia. O Brasil foi apontado como um dos países com

problemas na universalização da educação básica e analfabetismo. De acordo com Katia

Regina de Souza Lima (2002), as diretrizes de Jomtien para o país constam no Plano

Decenal de Educação para Todos (1994-2003), que foi elaborado a partir da

Conferência Nacional de Educação para Todos em 1994 e, posteriormente, no

“Programa Educação para Todos” implementado no governo FHC.

Em 1992, o discurso sobre a qualidade na educação começou a ser apontado pela

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), através de um

documento que defendia a necessidade de adequar os países periféricos à realidade

mundial e às exigências do mercado de trabalho, abrindo, assim, espaço para parcerias

de financiamento e gestão das escolas, conferindo-lhes “autonomia” para isso.

Os documentos produzidos pelos organismos internacionais nessa época

sugeriam a educação como “alívio para a pobreza” e garantia de desenvolvimento, e

defendiam a formação e qualificação de recursos humanos como essencial para o

aumento da competitividade dos países da América Latina e do Caribe. No entanto, o

“alívio” e o desenvolvimento estavam atrelados a reformas políticas e flexibilização da

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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economia com abertura de mercado, entre outras ações, obviamente com subordinação

dos países periféricos.

No contexto da educação superior, o Banco Mundial (1995), através do

documento intitulado “La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la

esperiencia” aponta o que julga ser o cerne da crise nesse grau de ensino. O Banco

diagnostica a crise como assumindo proporções mais graves nos países em

desenvolvimento e preconiza algumas medidas a serem adotadas no âmbito das

reformas, dentre elas: maior diferenciação das instituições; diversificação das fontes de

financiamento das instituições estatais; redefinição do papel do Estado; questões

relativas à autonomia e à responsabilidade institucional.

De acordo com José Dias Sobrinho, naquele período, sob a orientação e até

mesmo sob imposição de organismos multilaterais como, por exemplo, o Fundo

Monetário Internacional (FMI)

[...] vários países da América Latina empreenderam reformas para adequar o Estado e a

sociedade a uma nova ordem, passando a economia a constituir-se o centro de todos os

valores. A educação superior teve de se adequar aos novos imperativos e submeter-se à

centralidade econômica. A imposição de reformas visando a ajustar a educação às novas

exigências da crescente onda de acumulação do capital produziu agudas tensões, ainda

não resolvidas. (Sobrinho, 2003:101)

Luiz Fernandes Dourado et al (2003:17) afirma que a reforma do sistema

educativo no Brasil resultou na ampliação da esfera privada em contraposição ao

alargamento dos direitos sociais. Ainda segundo o autor, várias mudanças se efetivaram

com relação ao papel social das instituições educativas, inclusive o financiamento das

mesmas e seu campo de atuação. Isso leva ao questionamento do papel da universidade

na sociedade contemporânea ao se colocar a serviço do capital, minando assim o seu

espaço privilegiado de produção do conhecimento.

A compreensão das tensões e transformações ocorridas na educação superior no

Brasil em função das políticas e mecanismos implementados pelos países latino-

americanos a partir da reforma educacional na década de 90, em consonância com os

organismos internacionais, passa, portanto, pela análise da reestruturação da educação

superior ocorrida no governo FHC.

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A Era FHC e as Políticas de Educação Superior

O governo de Fernando Collor de Melo foi o primeiro a adotar plenamente as

políticas neoliberais, inclusive com ações voltadas para a implementação, no seu

governo, das políticas preconizadas pelo Banco Mundial para a universidade. Porém, a

fragilidade de suas alianças e sua inaptidão para gerir os processos políticos levaram-no

ao impeachment (Leher, 2003). O governo de FHC, no entanto, criou fortes alianças

comprometidas com o Consenso de Washington, cujo objetivo se voltava para a defesa

dos interesses da burguesia financeira internacional, empenhada em implementar as

políticas de ajuste estrutural na América Latina. Os integrantes dessa coalizão

pertenciam ao Partido da Frente Liberal (PFL) e ao Partido da Social Democracia

Brasileira (PSDB). A gestão de FHC implementou uma política educacional bem

ajustada com a agenda neoliberal. A equipe do seu governo foi integrada por membros

do Núcleo de Pesquisa e Ensino Superior (NUPES/USP), por técnicos do Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (BM) com a finalidade

de implementar a nova política de educação brasileira que, de acordo com Roberto

Leher (2003: 86), seria adequada à “nova estrutura produtiva do país”.

Essa nova estrutura produtiva não previa elevação na formação cultural e

científica dos trabalhadores. Ao contrário, os investimentos em Ciência e Tecnologia

foram reduzidos, enquanto a importação de produtos intensivos em tecnologia elevou-

se. Cresceram setores como serviços e os baseados em recursos naturais, e diminuíram

setores como a indústria de informática e comunicação, numa clara evidência da

subordinação aos interesses da burguesia internacional financeira.

A reestruturação na educação superior no governo de FHC contemplou a

diversificação de cursos e de instituições de ensino superior, principalmente privadas,

levando-as a uma transformação com o objetivo de adaptá-las às demandas

mercantilistas, que incluía os serviços educacionais. Justificada pela bandeira da

“democratização”, a ideologia neoliberal favoreceu a expansão e criou um sistema de

competição ao permitir a flexibilização em detrimento da indissociabilidade ensino,

pesquisa e extensão. Novas modalidades de ensino superior foram criadas, como, por

exemplo, pós-médios e a Educação à Distância (EAD), promovendo a formação

profissional rápida, ou a conhecida “certificação em larga escala” como meio de

proporcionar igualdade de oportunidades.

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Centenas de novas instituições de ensino superior privadas foram criadas nas

mais diversas regiões do país, sem a necessidade de grandes investimentos. Cresceram

os cursos sequenciais, e, na segunda metade dos anos 90, o percentual de matrículas nas

instituições privadas do país chegou a 77%, contra 30% nas públicas. (Leher, 2003)

No que diz respeito às universidades públicas, estas sofreram cortes de verbas,

achatamento salarial dos docentes e redução de investimentos em pesquisa. Tudo sob a

custódia do BM. Segundo Leher, as verbas eram “insuficientes até mesmo para o

custeio de rubricas como energia, água, telefonia etc.” (Leher, 2003: 82). De acordo

com Dourado, as universidades públicas tiveram que se ajustar “a uma perspectiva

gerencialista, produtivista e mercantilizadora” (Dourado, 2003: 20). Nesse processo,

receberam autonomia para buscar parcerias com empresas privadas e captar recursos.

Ao abordar a questão da autonomia das universidades públicas, Marilena Chaui nos

apresenta a seguinte reflexão:

[...] autonomia possuía sentido sócio-político e era vista como a marca própria de uma

instituição social que possuía na sociedade seu princípio de ação e de regulação. Ao ser,

porém, transformada numa organização administrada, a universidade pública perde a

idéia e a prática da autonomia, pois esta, agora, se reduz à gestão de receitas e despesas,

de acordo com o contrato de gestão pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores

de desempenho, que determinam a renovação ou não renovação do contrato. A

autonomia significa, portanto, gerenciamento empresarial da instituição e prevê que,

para cumprir as metas e alcançar os indicadores impostos pelo contrato de gestão, a

universidade tem “autonomia” para “captar recursos” de outras fontes, fazendo

parcerias com empresas privadas. (Chaui, 1999: 216)

Lima lembra que os organismos internacionais defendem “o financiamento da

educação superior a partir da concepção de que o Estado e a sociedade civil devem se

responsabilizar, conjuntamente pela sua efetivação” (Lima, 2002: 50), numa tentativa de

inferir que flexibilizar e diversificar são formas de “democratizar” o acesso.

Ainda na “era” FHC, outra análise que se impõe é sobre o sistema de avaliação,

o qual, segundo J. Dias Sobrinho, “tem função central nas reformas do Estado, da

sociedade e da educação superior” (Dias Sobrinho, 2003: 98). Dourado empreende uma

crítica ao modelo de avaliação adotado, argumentando que da forma como foi

estruturado “deu maior importância aos produtos acadêmicos do que aos processos

históricos de desenvolvimento institucional ou às áreas de produção do trabalho

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acadêmico” (Dourado, 2003:24). Isso intensificou o processo de mercantilização, o

acirramento da concorrência, e instituiu uma lógica produtivista na qual a avaliação

passa a ser um instrumento de regulação e controle. Segundo Dias Sobrinho:

Se qualidade é representada pelos resultados objetivos, a avaliação é tomada por

controle desses produtos, associado à flexibilização de formas, tempos, contratos, fontes

de financiamento e outros itens relativos à noção de eficiência como noção

economicista. (Dias Sobrinho, 2003: 108)

Como exemplo dos instrumentos utilizados para avaliar e medir a qualidade do

ensino destacam-se o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Exame Nacional de

Curso (ENC), ou Provão, substituído desde 2004 pelo Exame Nacional de Desempenho

de Estudantes (ENADE).

Ainda sobre a avaliação, Dourado et al afirma que:

A avaliação é utilizada como instrumento de regulação e controle, ao mesmo

tempo em que garante a implementação efetiva da reforma da educação

superior, com a aquiescência da opinião pública, que passa a ser alimentada

com informações sobre a qualidade das instituições e dos cursos ofertados.

(Dourado et al., 2003: 25)

Assim, Dourado infere que é o “consumidor” dos produtos acadêmicos que

decide a qualidade da instituição, baseado nas informações dos instrumentos de

avaliação. Nesse contexto, sugere que o sistema de avaliação deve produzir informações

suficientes para a tomada de decisão na implementação de políticas educacionais, que

inclui a utilização de recursos financeiros públicos, e enfatiza a necessidade de se “criar

uma cultura de avaliação acadêmica que ajude as IES [...] a vincularem a produção

acadêmica ao bem-estar coletivo” (Dourado, 2003: 25), posto ser esta uma função social

da universidade.

As políticas de FHC marcaram seu governo como um período de expansão e de

reconfiguração da universidade brasileira, intensificadas, segundo Dourado “após a

aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394/96, tendo como eixos

articuladores a flexibilidade e a avaliação estandartizada” (Dourado, 2003: 27). É

inegável que a expansão há tempos é uma demanda da sociedade brasileira, no entanto,

seu aspecto deliberadamente privado trouxe transformações e tensões no campo

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universitário, além de apresentar uma feição excludente que se contrapõe à educação

como um direito social.

A Função Social da Universidade

As transformações por que passou o ensino superior no Brasil na década de 90

refletiram-se na função da universidade enquanto instituição social. Impactadas pela

agenda neoliberal, as universidades públicas tiveram que adaptar-se para atender às

demandas do capital como questão de sobrevivência. Ao analisar as alterações e tensões

ocorridas no interior das instituições de ensino superior, vale recorrer a Marilena Chaui

para retomar suas idéias sobre a verdadeira função da universidade.

Desde seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma

instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no

reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de

diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e

estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e

legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na

conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na

idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a

ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão.

(Chaui, 1999: 217)

Chaui apresenta uma reflexão sobre a condição a que se impôs a universidade

enquanto “organização social” em detrimento de sua origem como “instituição social”.

O capital, ao propor uma política de gestão da educação superior inserida no processo

de mundialização e reestruturação exige, implicitamente, das instâncias educativas a

adaptação a novos modelos que venham garantir o seu financiamento e seu campo de

atuação. Não por acaso, ao se transformar numa organização administrada, a

universidade pública perde sua autonomia e aceita a “flexibilização”, que vai da

mudança em seu regime de trabalho à adaptação de seus currículos às necessidades do

mercado onde está inserida, dependendo, inclusive, de parcerias com empresas privadas,

para conseguir fontes de financiamento.

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Ao buscar recursos externos para financiar sua pesquisa, a universidade se

distancia de sua formação crítica para servir aos interesses do mercado. Por vocação, a

universidade é:

[...] campo de reflexão, crítica, descoberta e invenção do conhecimento novo,

comprometido com a construção e consolidação de uma sociedade democrática [...] ao

abrir mão dessa identidade histórica, corre o risco de servir a propósitos de reprodução

do poder e das estruturas existentes e não à sua transformação. (Catani et al., 1999: 186)

Dourado também indaga sobre a vocação e o papel social da universidade,

especialmente a pública, e a define como universidade administrada, pois inserida no

processo de reestruturação capitalista, compete-lhe “contribuir significativamente com a

produção da mais-valia relativa, ou seja, ela deve formar profissionais e gerar

tecnologias e inovações que sejam colocadas a serviço do capital produtivo” (Dourado,

2003: 19). Nessa ótica, Dourado conclui que a universidade “vincula sua produção às

necessidades do mercado, das empresas e do mundo do trabalho” (Dourado, 2003:19).

Marilena Chaui distingue três etapas para a passagem da condição de instituição

à de organização. Ela afirma que, numa primeira etapa, a universidade dos anos 1970,

denominada como universidade funcional, privilegiou a formação rápida de mão-de-

obra para o mercado de trabalho conferindo à classe média o diploma universitário

através da mudança nos “currículos, programas e atividades”. Nos anos 1980, uma

segunda etapa ocorreu dando prosseguimento à etapa anterior, em meio ao crescimento

das escolas privadas e às parcerias com as empresas. Foi a chamada universidade de

resultados, em que as empresas asseguravam emprego e estágios remunerados aos

futuros profissionais. Já nos anos 1990, a terceira etapa é, segundo Chaui, a da

universidade operacional, voltada para si mesma:

Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para

ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de

eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos

objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao

conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em microorganizações que

ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho

intelectual. (Chaui, 1999: 220-221)

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Assim, frente às demandas do capital, as universidades tiveram que se adaptar à

concorrência que se estabeleceu, por consequência da expansão da educação superior.

Ao desvincular o ensino da pesquisa, as políticas neoliberais para a educação

permitiram o empresariamento da educação. Isso trouxe consequências como, por

exemplo, a desvalorização docente com contratos “flexíveis” de trabalho e achatamento

salarial. Muitos deixaram a dedicação exclusiva para buscar complementação dos seus

vencimentos através da prestação de serviços e consultorias. Chaui afirma que a

docência passou a ser “transmissão e adestramento”, ao ser pensada como:

habilitação rápida para graduados, que precisavam entrar rapidamente num mercado de

trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se, em pouco tempo,

jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e

treino para novos pesquisadores. (Chaui, 1999: 221)

Outra consequência foi o comprometimento da pesquisa com a ideia de

produtividade em detrimento da descoberta, da criação e da investigação crítica e

reflexiva. Ao se transformar em organização, a universidade vincula sua pesquisa à

relação custo-benefício. Muitos docentes sem perfil de pesquisador, por vezes, foram

contratados para produzirem estrategicamente resultados em prazo e custos bem

definidos, para atenderem às empresas parceiras. Essa condição mina a reflexão, a

historicidade dos fatos, e limita o pensamento criativo e a curiosidade pelo novo, enfim,

pela pesquisa descomprometida.

Embora as políticas neoliberais defendam a “democratização” do ensino através

de sua expansão, as formas de acesso revelam um caráter excludente e elitizado

considerando, por exemplo, o número de instituições que se instalaram em shoppings ou

em locais próximos a “grandes centros de compras” (Leher, 2003). A respeito dessa

temática, que altera a função social da universidade, Leher coloca que muitas famílias

se sacrificavam para manter seus filhos na faculdade:

Mas o limite do humano obriga um imenso contingente a se desfazer dos sonhos. Entre

a sobrevivência biológica e o prosseguimento dos estudos, a realidade é cruel: sem

moradia, abrigo, alimento, vestuário mínimo e transporte, o sonho não tem espaço. Por

isso, grosso modo, somente chegam ao final dos cursos pagos os segmentos de médios

para cima. (Leher, 2003: 85)

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Dourado et al entende que a expansão do ensino superior é necessária, assim

como são necessárias mudanças na educação superior. No entanto, o governo federal e o

Conselho Nacional de Educação (CNE) devem estabelecer:

[...] políticas e mecanismos de reestruturação desse nível de ensino, tendo por critério a

busca da qualidade social, como horizonte político-pedagógico para a efetiva expansão

e interiorização da educação superior pautada pela indissociabilidade entre ensino e

pesquisa e pelo compromisso social da universidade. (Dourado et al., 2003: 28)

Esse formato inspira o que deveria ser a verdadeira expansão da educação: uma

educação abrangente, inclusiva e comprometida com o verdadeiro desenvolvimento

social.

Considerações finais

As políticas de reestruturação do capital na década de 90 favoreceram, sem

dúvida, a expansão da educação superior através do crescimento do número de

instituições educacionais privadas no Brasil. Os mecanismos utilizados são passíveis de

críticas e considerações as mais diversas, no sentido de atentar para as questões sociais e

políticas que os envolvem. Faz-se necessário discutir políticas que promovam condições

para o acesso democrático à educação superior de qualidade. Ao se tratar de qualidade é

preciso avaliar o que de fato a define, quando os critérios para estabelecê-la foram, e

continuam, baseados em modelos quantificáveis, como relação entre números de

docentes, publicações, pesquisas concluídas e outros. Outra questão que se evidencia

nessa reflexão, refere-se à necessidade de se estabelecer critérios equânimes para os

investimentos destinados à pesquisa científica no país, descomprometida com os

interesses de empresas privadas ou multinacionais, do governo e dos organismos

internacionais, garantindo a indissociabilidade ensino e pesquisa. Por fim, e não menos

importante, é necessário estabelecer políticas que promovam a igualdade de

oportunidades para formação do conhecimento autêntico, num cenário onde as

qualificações e especializações estão diretamente relacionadas à demanda do mercado

de trabalho.

Ainda que para atender aos objetivos do capital, é inegável que a Reforma da

Educação proporcionou um crescimento da oferta de educação superior. Esse processo

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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é, portanto, bastante complexo e não se esgota nesta reflexão. A expansão continuou no

Governo Lula e suas políticas passaram pela proposta de ampliação de vagas e garantia

de acesso à educação superior a pelo menos 30% da população jovem, com

direcionamento de recursos públicos para financiar a educação. Vista aos olhos

capitalistas como um extraordinário mercado educacional, a expansão tende a ampliar-

se.

Para que se cumpra uma efetiva reconfiguração da educação superior não se

pode consentir o estabelecimento de políticas e mecanismos de múltiplos interesses,

sem a participação da sociedade. A universidade não tem que ser eficiente, produtiva ou

competitiva para atender às demandas do capital. Ela deve atender à sua função pública,

independente de quem a financia, formando cidadãos críticos e propositivos de uma

sociedade melhor e menos desigual. Primar pela produção científica descomprometida e

pela formação intelectual crítica e reflexiva é um desafio que ora se impõe à sociedade

civil em suas mais diversas instâncias representativas.

Bibliografia

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CHAUI, M. (1999). A Universidade em ruínas. In TRINDADE, H. (org) Universidade

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA �OS

ESPAÇOS URBA�OS:

da razão técnico-funcional à insurgência de processos e agentes sociais novos

Lindomar Wessler Boneti

Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR

[email protected]

Resumo

Trata-se de uma reflexão teórica sobre os fundamentos epistemológicos das políticas públicas de combate

à pobreza. Com o advento do Estado Moderno, no combate à pobreza utilizava-se como parâmetro a

epistemologia da razão moderna, acentuada na técnica e no saber profissional. Mas nos dias atuais, com o

advento de agentes e problemas sociais novos, esta estratégia não é mais eficaz, necessitando também se

considerar questões da identidade e do Ser Social. No que diz respeito ao método, estabelece-se um

diálogo entre a dimensão teórica e dados empíricos coletados em ambientes de extrema pobreza,

desconsidera-se o entendimento de associar políticas públicas a ações de governo, pressupondo que o

estudo das políticas públicas implica associá-las à teoria de Estado. Argumenta-se que o fundamento

epistemológico clássico das políticas públicas de combate à pobreza esteve historicamente assentado

sobre a razão técnico funcional com enfoque no indivíduo produtivo, quando o meio produtivo e Estado

apresentavam-se como agentes definidores. Mas, na contemporaneidade ao lado do Estado e do meio

produtivo apresentam-se ações e agentes insurgentes novos na definição de políticas públicas,

destituindo-se o absolutismo da técnica como parâmetro de verdade, enfocando problemáticas como o

resgate da identidade, da singularidade, da diferença e da igualdade social.

Palavras-chave: Políticas Públicas, Pobreza, Espaços Urbanos

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Introdução

Neste texto dedica-se a analisar as complexidades teóricas e conceituais

relacionados ao processo de elaboração e implementação das políticas públicas de

combate à pobreza, considerando os diferentes momentos históricos, em especial o da

contemporaneidade.

Na análise realizada neste texto, busca-se superar o entendimento que associa

políticas públicas a ações de governo centralizadas em avaliações de resultados e do

gerenciamento dos recursos públicos. Parte-se do pressuposto de que o estudo das

políticas públicas implica no entendimento da existência de uma complexidades

teóricas, metodológicas, políticas e ideológicas e que se faz necessário, antes de tudo,

associar políticas públicas à teoria de Estado e às dimensões políticas e de classes

sociais.

Do ponto de vista metodológico, analisa-se as implicações teóricas,

metodológicas e políticas do processo de elaboração e implementação das políticas

públicas de combate à pobreza numa dimensão temporal, histórica, diferenciando-se

dois principais períodos: as políticas públicas tendo como fundamento epistemológico a

Razão Moderna, especialmente a técnica como parâmetro de referência de verdade,

quando apresentavam-se como agentes definidores basicamente o meio produtivo e

Estado. Nesse período as políticas públicas de combate à pobreza tinham como foco

primeiro a implementação de ações de recuperação da vida produtiva/material; Na

contemporaneidade, quando destitui-se o absolutismo da verdade técnica como

parâmetro, apresentando-se ao lado do Estado e do meio produtivo novos agentes

definidores de políticas públicas, trazendo ao debate novas lutas sociais como é o caso

do resgate do sujeito, das identidades, da diferença e das desigualdades sociais.

Considerações epistemológicas sobre Políticas Públicas de combate à pobreza

A busca das raízes epistemológicas de políticas públicas implica, antes de tudo,

considerações de qual Estado se refere. Trata-se de explicitar o entendimento que se tem

sobre a relação entre o Estado, as classes sociais e a sociedade civil, pressupondo que é

nesta relação que se origina os agentes definidores das políticas públicas. Entende-se

que cada momento histórico produz, no contexto da inter-relação entre a produção

econômica, cultura e interesses dos grupos dominantes, ideologias a partir das quais

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verdades relativas tornam-se absolutas. Estas verdades absolutas, construídas

ideologicamente em cada momento histórico, produzem e referenciam as ações

institucionais e, em particular, a elaboração e a operacionalização das políticas públicas.

Isto significa dizer que além dos princípios analisados acima, que interferem na

elaboração e implementação das Políticas Públicas como verdades absolutas, é preciso

considerar também o tipo de organização social de cada formação histórica, ou seja, o

Estado hoje, no Capitalismo, e sua relação com as classes sociais. No estudo das

Políticas Públicas, não se pode deixar de se considerar a relação entre classe social e

Estado, no capitalismo. Assim, torna-se simplista o pensamento positivo de entender o

Estado como uma instituição regida pela lei, a serviço de todos os segmentos sociais.

Portanto, na análise que aqui se faz supera-se o pensamento que associa a formulação

das políticas públicas unicamente à determinação jurídica, fundamentada em lei, como

se o Estado fosse uma instituição neutra. Neste caso, as políticas públicas seriam

definidas tendo como parâmetro unicamente o bem comum e este bem comum seria

entendido como de interesse de todos os segmentos sociais. Mas também se torna

simplista entender o Estado como simples instituição de dominação a serviço da classe

dominante, como defende a tradição marxista. Este entendimento nega a possibilidade

do aparecimento de uma dinâmica conflitante, envolvendo uma correlação de forças

entre interesses de diferentes segmentos sociais ou classes. Não se pode pensar que as

políticas públicas são formuladas unicamente a partir dos interesses específicos de uma

classe, como se fosse o Estado uma instituição a serviço unicamente da classe

dominante. Esta posição também é reducionista pelo fato de não considerar o poder de

força política que têm os outros segmentos sociais não pertencentes à classe dominante.

Esta posição desconhece também a possibilidade de uma classe dominante se fracionar

e com isto romper com a tradicional existente entre o Estado e a classe economicamente

dominante. Desconhece ainda esta posição a atuação dos Movimentos Sociais, das

organizações da sociedade civil etc. Isto não significa dizer porém que a classe

economicamente dominante não tenha predileção em termos da elaboração e

implantação das políticas públicas, mas não se pode dizer que esta predileção se

constitua na única força. Considerando esta complexidade, adota-se, neste texto, o

entendimento, inspirando na leitura de Poulantzas (1990), que não é possível se

construir uma análise da complexidade que envolve a elaboração e a operacionalização

das políticas públicas sem se levar em consideração a existência da relação intrínseca

entre o Estado e as classes sociais, em particular entre o Estado e a classe dominante.

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Por outro lado, considera-se também que nos dias de hoje, no atual contexto da

sociedade, no âmbito da nova configuração social, econômica e política, introduz-se

elementos novos na estrutura social os quais ofuscam os limites e os interesses de

classes, pela própria feição nova do espaço da atuação econômica. Nas últimas décadas,

com o avanço das relações econômicas globalizadas, as manifestações de interesses de

classes e os seus limites, não são convenientemente visíveis. Normalmente tais

interesses são até mesmo camuflados pelos interesses específicos (expressos pelos

grupos econômicos, grandes corporações do setor produtivo ou por diferentes grupos

sociais) e pelas próprias problemáticas sociais (reforma agrária, aposentadoria, fome,

habitação urbana, violência, a questão feminina, a questão gay, etc.) envolvendo

diferentes grupos sociais, cujas manifestações podem representar interesse de classe,

mas este interesse não é necessariamente explicitado na dinâmica da luta do movimento.

Nos dois casos, do movimento social ou das corporações econômicas, a questão se

coloca numa dimensão global.

Mesmo assim entende-se que existe uma estreita afinidade entre os projetos do

Estado (as políticas públicas) com os interesses das elites econômicas. Mesmo que no

nível local (nacional e Estadual) exista uma correlação de força política na definição das

políticas públicas, e no caso as políticas e combate á pobreza, envolvendo os

movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil, mesmo que no nível

nacional um partido de esquerda assumir o governo, a definição das políticas públicas é

condicionada aos interesses das elites globais por força da determinação das amarras

econômicas próprias do modo de produção capitalista. Isto significa dizer que ao se

falar da relação entre o Estado e as classes sociais, entra-se obrigatoriamente na questão

dos agentes definidores das políticas públicas, os quais não são apenas nacionais.

Razão Moderna e os fundamentos epistemológicos clássicos das Políticas Públicas

de combate à pobreza

A palavra gênese não significa apenas origem, no sentido simples como parece,

mas trás uma conotação que vai além da origem, à raiz. Isto é, trata-se de analisar o

processo que dá origem à origem dos princípios e dos determinantes inerentes à

elaboração e implementação das políticas públicas. Isto é, pressupõe-se existir enfoques

referenciais que fundamentam o exercício da elaboração e operacionalização das

políticas públicas, como é o caso das concepções epistemológicas, das amarras

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ideológicas, das questões culturais, etc. Isto é, toda Política Pública é originada de uma

idéia e esta de um princípio, de uma pressuposição ou de uma vontade. Portanto, a

palavra princípio não carrega consigo apenas o significado literal do termo, mas algo

mais, o contexto dos fatores determinantes que dão origem a uma idéia de Política

Pública, como o caso da conjugação de interesses, as inserções ideológicas, as

concepções científicas, as correlações de forças sociais etc. Portanto, necessário se faz

distinguir o Ser das Políticas Públicas do ideal de Ser. Não se trata aqui de fazer uma

apologia a um certo ideal de Ser das políticas públicas, mas retratar simplesmente o seu

Ser. Considerando o momento histórico em que se vive, com grandes reflexos ainda do

racionalismo iluminista, analisa-se a seguir alguns princípios (os principais) que

oferecem às políticas públicas de combate à pobreza um sentido racionalista, capitalista

e, portanto, contemporâneo.

Os séculos XV, XVI e XVII testemunharam um expressivo movimento de

construção da base da ciência e do Estado moderno, o que se constituiu fundamento

clássico epistemológico das políticas públicas. Este movimento, apresentando a

construção da “razão” como meta, dedicou-se em torno de dois principais enfoques, o

método científico e a organização social (o Estado). “Razão” designava a busca de uma

sociedade nova, comparativamente à sociedade medieval, a busca de uma sociedade

racional com base na cientificidade e a busca da superação do teologismo como método

de explicação do real e da organização social. Assim, de um lado, Francis Bacon (1561)

e Descartes (1596) contribuíram com a construção das bases epistemológicas do que se

convencionou chamar de ciência moderna, enfocando prioritariamente o método

científico. Mas “razão”, como sinônimo de cientificidade, de verdade, estava presente

também na busca da superação do Estado medieval. Hobbes (1588), Locke (1632) e

Rousseau (1712), com perspectivas diferentes em relação ao “Contrato Social”

sedimentaram as bases epistemológicas da organização social, o Estado, na

modernidade.

Este movimento envolvendo as bases epistemológicas da ciência moderna e do

Estado moderno construiu uma característica importante muito presente em noções de

verdade, de cientificidade e mesmo na elaboração e operacionalização das políticas

públicas na modernidade: o da universalidade dos parâmetros de cientificidade e de

verdade. Em outras palavras, o movimento que busca a construção de uma sociedade

com base na “razão” científica, inicialmente pela construção de um método científico,

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estipula, na verdade, parâmetros universais de ciência e de verdade, nos quais

encontramos a origem da concepção etnocêntrica de sociedade.

Isto significa dizer que junto ao fundamento epistemológico da ciência moderna

e do Estado moderno a partir de parâmetros universais de verdade e da organização

social, criou-se parâmetros para se pensar e realizar um “modelo civilizatório” tendo

como base a razão científica, sendo que concepção etnocêntrica é o primeiro ingrediente

a se constituir como parâmetro para se medir o grau de racionalidade de uma

organização social. Hoje, existe uma tendência de alguns povos, sobretudo os

considerados desenvolvidos, adotarem o entendimento segundo o qual as suas

sociedades centralizam a verdade em termos de costumes culturais, desenvolvimento

social e econômico etc. Estas sociedades têm dificuldade de compreender como verdade

as diferenças em termos culturais e de organização política se não as suas. Segundo a

concepção etnocêntrica, portanto, existe uma verdade única e universal, entendida como

o centro, e é a partir dela que se institui as atribuições do certo e do errado. O

etnocentrismo tem origem justamente da razão científica, do entendimento que a ciência

é única e universal, que a verdade científica guarda requisitos universais que a

distingue como ciência. É deste pensamento que nascem as atribuições do centro e da

periferia, como atribuição de valor de verdade, que o centro retém mais e melhor

tecnologia, mais riqueza, e mais verdade. Com isto, nasce a tendência de se atribuir

modelos sociais, culturais e de desenvolvimento social. A partir desta concepção, as

necessidades dos grupos dominantes são absorvidas pelos setores pobres como seus,

assim como a superaração das carências da população pobre é feita utilizando-se das

estratégias dos grupos dominantes, criando-se até mesmo uma noção peculiar de

pobreza, utilizando-se parâmetros culturais e sociais das pessoas das classes

dominantes. Este pressuposto da universalidade da verdade e da existência de um

“modelo civilizatório” é algo muito presente na elaboração e implementação de

políticas públicas, especialmente as de combate à pobreza.

Outros elementos, advindos das ciências da natureza, também se constituem

bases epistemológicas das políticas públicas na modernidade. Com o avanço da ciência

do domínio da natureza, a partir do método experimental, a física parece ser o primeiro

ingrediente a se integrar no processo da formação das ciências humanas. A economia

política foi constituída na Inglaterra no decorrer da Revolução Industrial e da glória de

Newton, quando se tinha uma influência considerável da epistemologia positivista. A

partir de então, grandes teóricos das ciências do desenvolvimento econômico, como

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Adam Smith, Walras, Pareto e Saint-Simon desejavam ser o Newton da mecânica social

da produção e do consumo de riquezas (Grinevald, 1975: 40).

A construção das ideias das ciências humanas a partir das ciências da natureza

fez com que esta, as ciências humanas, fosse assumindo ingredientes típicos das

ciências naturais. O primeiro ingrediente que vem da física e que aparece claramente

nos fundamentos das políticas públicas de combate à pobreza de hoje diz respeito à

ideia que associa o progresso da humanidade à força e à energia. Em síntese, o

pensamento de Newton cruzou as fronteiras do mundo natural para o social. Assim, os

teóricos precursores da chamada “ciência do desenvolvimento humano”, como foi o

caso de Saint Simon, Augusto Comte etc. passaram a associar o “progresso humano” à

ideia do movimento, da força e da energia.

Este pressuposto teórico tem fortes influências sobre a própria noção clássica de

pobreza, como é o caso de associar esta condição às capacidades individuais, do Ser

pobre e não da do Estar pobre (Boneti, 2001 e 2005), de pobreza como sinônimo de

“atraso”, incapacidade de evolução. Esta interpretação deu origem não apenas à ideia

segundo a qual o desenvolvimento social está condicionado ao desenvolvimento

industrial, mas a que não existe singularidade no que se refere ao desenvolvimento

social, ele é único e universal.

Outro aspecto importante a ser considerado diz respeito à capacidade individual

e/ou coletiva (da comunidade) de reação à condição de pobreza. A partir desta

interpretação teórica o indivíduo ou mesmo uma comunidade por si só não se habilita a

reagir contra a condição de pobreza. Como o da indústria, a força que impulsiona o

desenvolvimento não nasce do mesmo corpo mas de uma força externa. É mesmo que

dizer que existe um centro no qual as ideias dito científicas se encontram e dele nascem

e impõem um padrão homogêneo a partir do qual devem se adaptar as singularidades.

Isto é mesmo que dizer que comunidades ou pessoas que utilizam modelos singulares de

produção da vida material e/ou social jamais podem se desenvolver socialmente a partir

das suas próprias experiências, mas dependem do impulso da força de ideias e de

tecnologias de comunidades externas. Esta é a razão pela qual o modelo clássico de

políticas públicas de combate à pobreza se caracteriza como antidiferencialista. Isto faz

com que nas ações de combate à pobreza se utilize pressupostos da existência de

comportamentos, condições sociais, culturais, etc. com mais verdade que outros, e que

os “outros” carecem de ajuda, que por si só não saem da estagnação. Isto é, adota-se o

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princípio que todo corpo imóvel precisa de um corpo em movimento para ser

impulsionado.

No âmbito deste processo de construção das ciências do domínio da natureza,

especialmente no século XVIII, a ideia do movimento, sem ser na perspectiva de se ver

o real como essencialmente contraditório, a partir do pensamento dialético, mas na

perspectiva da evolução, originado especialmente da física e da biologia, faz com que se

estipula como “normalidade” o comportamento individual e social associado ao

movimento linear e progressivo. O próprio Marquês de Condorcet (1794), no século

XVIII, no seu Esboço de um Quadro Histórico de Evolução do Espírito Humano, uma

das principais obras teóricas de referência utilizada por Augusto Comte, além de sugerir

o método das ciências naturais, como o caso da matemática, no estudo de problemas

sociais, elabora os princípios da evolução humana como leis naturais e evolutivas.

Assim, pode-se dizer que o grande avanço dos estudos no domínio da natureza

teve uma influência muito grande no estabelecimento de parâmetros de “normalidade”

do comportamento social e individual, o que se constituiu em importante parâmetro de

elaboração e implementação de políticas públicas, especialmente as de combate à

pobreza. Como exemplo, pode-se tomar a concepção darwinista (Charles Darwin),

criando o preceito que como na natureza os organismos vivos tendem a se adaptar às

dificuldades e criar estratégias para competir, na sociedade existe uma competição

natural entre os indivíduos, se constituindo em seleção natural, permanecendo os mais

aptos e os mais capazes e que no caso social estes devem se constituir em “modelos”

para os “menos capazes”. Isto leva ao preceito da meritocracia como instrumento de

seleção dos “mais capazes” no processo da ascensão social e o respeito às normas da

hierarquia social, preceito este muito presente nas políticas públicas, especialmente as

de combate à pobreza.

Mas, considerando-se a noção clássica de políticas públicas de combate à

pobreza, a ideia da técnica é um elemento que se apresenta preponderante. A técnica se

apresenta em dois aspectos: no que se refere à avaliação do Ser pobre, pelo julgamento

de não apropriação de conhecimentos técnicos e/ou de sua operacionalização, e como

meta de implementação de ações de combate à pobreza. Até o século XVIII o apelo à

construção de uma sociedade racional, com base na Razão, da ciência e da organização

do Estado, tinha como fim a busca de mudança referindo-se ao teologismo e a

organização social feudal. Mas muito especialmente no século XVIII o ingrediente

Técnica se fortalece, Ciência e Técnica como sinônimo de mudança e redenção humana.

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No século XIX porém, a perspectiva de mudança através da construção da

ciência moderna e da organização do Estado Moderno associada à Razão, com a

consolidação do Modo de Produção Capitalista e da burguesia como classe dominante,

o apelo à Razão é alterado da busca da mudança para a busca da ordem. Como bem

salienta Pierre Ansart (1970) o francês Saint-Simon, de quem Augusto Comte se tornou

secretário, propôs que a busca da mudança histórica na construção da Razão estaria

concluída e que o momento estaria para a busca da ordem como Razão e que esta seria

representada por: Ciência – Técnica – Indústria – Ordem. Em outras palavras, a

racionalidade estaria representada pela sociedade industrial, com base na ciência e na

técnica.

Esta formulação de Saint-Simon associa verdade (ciência) à utilidade, a técnica,

operacionalizada pela indústria. Assim, consolida-se o preceito de verdade (ciência)

representado pela Técnica. Ou melhor dizendo, ciência que é ciência, resulta em

Técnica, e Técnica que é Técnica resulta em Indústria.

Ainda no mesmo século, Augusto Comte se apropria da fórmula elaborada pelo

seu mestre acrescentando ingredientes novos no conceito de Razão: Ciência – Técnica –

Indústria – Ordem – Progresso (COMTE, 1954). Assim, neste contexto histórico, une-se

o Estado Moderno e o modo de produção capitalista, representado pela indústria, através

da Ciência Moderna e da Técnica.

Com tais fundamentos epistemológicos originados da unificação entre a

indústria moderna e o Estado Moderno, as políticas públicas de combate à pobreza, no

formato clássico, guardaram ingredientes muito típicos da razão moderna. Em primeiro

lugar, as Políticas Públicas sempre se apresentam imbuídas de uma racionalidade. Nos

dias atuais ainda se utiliza a tradição iluminista de associar uma decisão política a uma

verdade comprovadamente científica, como é o caso do processo da elaboração de uma

política pública. Isto significa dizer que uma decisão política deve ser tomada com base

em dados comprovadamente científicos ou técnicos da realidade na qual busca-se

intervir com uma política pública. Neste caso, os dados técnicos têm caráter

determinante mais que a vontade e o desejo da pessoa ou do grupo social envolvido.

Em segundo lugar, além do caráter etnocêntrico e da influência da

termodinâmica é preciso se considerar a ideia de universalidade e a infalibilidade da

ciência como fundamento das Políticas Públicas de combate à pobreza. O caráter de

cientificidade pressupõe universalidade. Isto é, as características do pensamento

científico não se alteram dependendo do contexto histórico e da realidade local. De

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igual forma não existe alteração da concepção de infalibilidade da ciência dependendo

do momento histórico e da realidade local. Assim, concepção de infalibilidade que se

tem em relação à técnica é outro aspecto que é desenvolvido e que passa a ter grande

presença nas políticas públicas. Pela sua associação com a ciência, nascida desta, a

técnica recebe um caráter de infalibilidade, da não possibilidade do erro. Ou seja, tudo o

que é científico, que tem origem na ciência, não se questiona. Esta concepção acarreta

implicações na elaboração e a implementação das políticas públicas em muitos aspectos.

Um destes aspectos, que se pode citar como exemplo, é o caso da adoção de modelos de

condições sociais, como é o caso da condição de pobreza, a partir de realidades ditas

desenvolvidas, o que, em geral, pode-se praticar equívocos. Outro aspecto muito

presente nos pressupostos das políticas públicas de combate à pobreza é o significado da

industrialização. Esta, enquanto representante da técnica, originada da ciência, se

constitui sinônimo de desenvolvimento social e de verdade, o que pode também se

constituir em equívoco.

Por último, necessário se faz considerar o caráter de utilidade do conhecimento

científico. A conjugação da ciência (e da técnica) ao desenvolvimento econômico

determina o aparecimento de outra característica do conhecimento científico, o da

utilidade, ou seja, o de se considerar conhecimento científico aquele que é útil. Este

pensamento também faz parte do processo histórico do desenvolvimento da ciência.

Portanto se conclui que as políticas públicas de combate à pobreza na essência

da Razão Moderna, apresentam-se com apenas dois agentes definidores, o meio

produtivo e o próprio Estado, interligados pelo argumento de verdade e cientificidade

através da técnica (Meio produtivo – Técnica – Estado). Assim, a técnica se apresenta

na essência da epistemologia moderna como a representação da verdade, da justiça e da

redenção humana.

A Crise da Razão Moderna, as Políticas Públicas e a insurgência de processos e

agentes sociais novos

A Razão Moderna tendo como base a técnica começa ser questionada justamente

com o advento de problemas sociais típicos da contemporaneidade como foi o caso das

duas guerras mundiais, a destruição em massa graças a técnica, a crise ambiental, o

abalo das identidades suprimidas pelo pressuposto da homogeneidade advindo com o

procedimento técnico, a indiferença com as singularidades.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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A crise da Razão Moderna se expressa através de uma dinâmica social

insurgente a qual extrapola o âmbito institucional dos movimentos sociais

transnacionais e debates acadêmicos para o mundo do Ser e da busca pela construção

das identidades individuais e coletivas.

No mundo acadêmico faz-se importante lembrar o debate originado desde o

início do Século XX o qual ficou conhecido como a Teoria Crítica, da Escola de

Frankfurt. Intelectuais como Max Horkhaimer, Theodor Adorno e Hebert Marcuse,

Jürgen Habermas, etc., construíram notoriedade ao questionarem o pressuposto

associando Razão à Técnica. Dentre muitas obras produzidas por este grupo de

intelectuais sobre a temática citada, indispensável citar Técnica e Ciência como

“ideologia” de Habermas (1970).

Mas a dinâmica social contemporânea, ala própria extrapola os muros da

institucionalização acadêmica onde o debate em torno da elaboração e da

implementação de uma política públicas é feito entre os “agentes do poder” (como diz

Lindblon 1981), quer seja nacional ou global, constituindo-se de um processo

contraditório entre disputa de interesses pela apropriação de recursos públicos,

viabilização do projeto do capitalismo global ou a luta pelo reconhecimento das

singularidades, diferenças e identidades.

Entende-se que os agentes do poder, os participantes da correlação de força, são

constituídos não necessariamente, ao menos num primeiro momento, por representação

de classe, mas sobretudo pela ordem do interesse específico, pela representação de

empresas ou pela representação de organizações populares, por exemplo.

Evidentemente que no cômputo geral as afinidades entre os interesses específicos

acabam caracterizando uma conjugação de forças afinadas aos interesses específicos de

classe social. Isso significa dizer que a relação direta e dicotômica entre diferentes

classes sociais ou entre o Estado e a sociedade civil, deve ser relativizada. A afinidade

de interesses específicos pode configurar um projeto de uma determinada classe social.

A luta de classe se configura numa dinâmica geral quando as especificidades se

congregam numa afinidade de classe.

O que existe de novo nos dias atuais fazendo que a presença dos movimentos

insurgentes assuma um novo caráter? O primeiro aspecto que fortalece a insurgência de

movimentos novos são as especificidades que constituem o caráter das relações

econômicas e sociais globais dos dias atuais. Enquanto uma sociedade globalizada,

vive-se um momento quando múltiplas dinâmicas sociais em andamento são marcadas

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por fortes tensões entre vetores que concorrem a homogeneizar as sociedades, e os que,

ao contrário, tendem a valorizar a diferenciação social, ou seja, acentuar as diversas

ordens de singularidades. Neste contexto, os movimentos insurgentes hoje se

apresentam como resultado de um processo de mundialização no contexto de suas

múltiplas formas e dentro de uma trama histórica complexa, derivados tanto do inédito

quanto do insurgente. Neste caso, os movimentos insurgentes hoje não se apresentam

unicamente de uma forma institucionalizada, como um movimento social organizado,

mas também através de vontades, desejos e lutas pela reconstrução de identidades

sociais.

Neste contexto, o fim da guerra fria, a globalização da economia, e

especialmente o aparecimento de movimentos insurgentes, leva-se a construir outro

entendimento de Estado e Nação. Os tradicionais limites nacionais estão seriamente

atingidos pela invasão da universalização das relações sociais e econômicas. Assim, os

ditames de uma economia global é um importante condicionante das políticas públicas

nacionais. Como bem lembra Manoel Castells (1999: 111), uma economia global é uma

economia com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real, em escala

planetária.

Assim, um importante agente definidor de políticas públicas, com fortes

influências sobre a noção clássica de pobreza e de ações do Estado sobre esta condição

é o Projeto do Capitalismo Globalizado. Este se constitui de um agente definidor de

políticas públicas nacionais, pois este projeto envolve uma correlação de forças de nível

internacional, na qual figuram interesses econômicos e políticos. O projeto do

capitalismo internacional se apresenta definido, discutido, avaliado e reavaliado

anualmente pelos países considerados industrializados, no sentido de garantir sucesso às

metas de expansão das relações econômicas globais. Este projeto em si se constitui de

um agente definidor de Políticas Públicas nos Estados nacionais cuja atuação se

materializa através de duas principais atuações que se apresentam interligadas: através

das relações econômicas e através das relações políticas. As questões econômicas

normalmente aparecem na dinâmica da correlação de forças do mercado global

impondo regras e procedimentos que favoreçam os países presentes neste mercado com

maior poder de barganha. Em relação à política, esta se configura no nível da

organização Estatal, exteriorizada através da esfera diplomática, mas amarrada aos

determinantes econômicos. Em outras palavras, existe uma ordem comandada por um

projeto mundial de produção econômica e organização política que se apresenta ao

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mundo como um vetor hegemônico buscando homogeneizar as relações econômicas,

tecnologias de produção, hábitos culturais e demais habilidades. Esta força política

exerce poder sobre o caráter das políticas públicas de combate à pobreza dos países

nacionais.

O projeto do capitalismo global se apresenta como agente definidor de políticas

públicas a partir do modelo clássico, utilizando-se do discurso racional e da capacidade

técnica como parâmetros na elaboração e implementação de políticas públicas de

combate à pobreza. Neste caso, o Estado e o meio produtivo se apresentam como

agentes definidores preponderantes.

Mas os movimentos insurgentes normalmente se apresentam como uma espécie

de contra-hegemonia (conforme a denominação de Boaventura de Souza Santos, 2001:

45-63), não mais a partir de uma luta direta e específica de classe, mas a partir de uma

problemática específica. Busca-se o resgate da individualidade, da diferença e da

singularidade, especialmente através dos movimentos insurgentes de caráter

transnacionais, podendo se constituir institucionalmente em Movimentos Sociais ou

simplesmente em ações insurgentes não institucionalizada mas de busca do resgate das

identidades sociais.

Assim considera-se que os movimentos insurgentes hoje se apresentam, em

geral, contra-hegemônico, porque, diferente dos do passado que buscavam o

atendimento de necessidades básicas como a sobrevivência física, a conquista da

propriedade da terra, ou a defesa de interesses de classe, tendem ressaltar o que é

singular, diferente, contrariando uma lógica hegemônica mundial, buscando alternativas

novas de produção, de relações com a propriedade, de uma nova ordem na relação entre

produção e meio ambiente, de busca de superação do convencionalismo da relação

afetiva e sexual, etc. Trata-se do resgate da individualidade, da singularidade, da

diferença, enfim, do sujeito.

Conclui-se, portanto que ao mesmo tempo em que o projeto do capitalismo

mundial se fortalece e torna agressivo em suas estratégias de expansão dos ganhos

econômicos, com abertura de novos mercados consumidores e de trabalho qualificado

(para quem a homogeneidade cultural e de habilidades técnica é de extrema valia),

fortalece-se a busca da singularidade, a valorização da diferença e da individualidade

com a redescoberta da socialização da produção e da vida em comunidade, de formas

alternativas de sobrevivência, de diferentes organizações da sociedade civil. Estas

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

Página 31 de 155

ações, tanto de um lado quanto do outro, direta ou indiretamente, devem ser

consideradas como agentes definidores das políticas públicas de combate à pobreza.

Entende-se que esta nova configuração, que a princípio se apresenta como sendo

das relações econômicas, mas que leva consigo a produção da cultura, os hábitos

culturais e a simbologia social, é determinante no aparecimento de um novo perfil sobre

a estrutura social. Neste novo perfil apresentam-se agentes outros participando da

elaboração e implementação das políticas públicas. A participação destes novos agentes

traz uma nova interpretação da organização de classes, das representações profissionais

e sindicais, do papel do Estado, do papel das ONGs e dos Movimentos Sociais e, com

isto, o aparecimento de um novo entendimento sobre a elaboração, gestão e caráter das

políticas públicas de combate à pobreza.

Estes outros agentes participantes desta correlação de forças, certamente não

com tanto poder de barganha como as representações das elites econômicas, têm peso

considerável na elaboração e implementação das políticas públicas de combate à

pobreza.

Conclusão: Como definir uma Política Pública de combate à pobreza e qual a

dinâmica da sua elaboração e operacionalização na contemporaneidade

Conclui-se portanto que apesar de que o fundamento epistemológico clássico

das políticas públicas de combate à pobreza se deu em torno da Razão Moderna, tendo a

técnica como parâmetro de referência de verdade, quando apresentavam-se como

agentes definidores basicamente o meio produtivo e Estado, na contemporaneidade

destitui-se o absolutismo da verdade técnica como parâmetro, apresentando-se ao lado

do Estado e do meio produtivo novos agentes definidores de políticas públicas, trazendo

ao debate novas lutas sociais como é o caso do resgate do sujeito e das identidades.

Cria-se assim a necessidade de rever o modelo clássico de adotar a razão técnica como

parâmetro de combate à pobreza e dar atenção ao resgate das identidades sociais.

Portanto, a partir da organização social, política e econômica das últimas

décadas, é possível entender como políticas públicas de combate à pobreza a ação que

nasce no próprio contexto social, mas que passa pela esfera estatal como uma decisão de

intervenção pública na realidade, quer seja para fazer investimentos ou uma mera

regulamentação administrativa. Entende-se por políticas públicas de combate à pobreza

o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelecem no âmbito das relações de

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e

demais organizações da sociedade civil. Tais relações determinam um conjunto de ações

atribuídas à instituição estatal, que provocam o direcionamento (e/ou o

redirecionamento) dos rumos de ações de intervenção administrativa do Estado na

realidade social e/ou de investimentos. Nesse caso, pode-se dizer que o Estado se

apresenta apenas como um agente repassador à sociedade civil das decisões saídas do

âmbito da correlação de força travada entre os diversos segmentos sociais, ganhando

força, na contemporaneidade, agentes e ações insurgentes de reconstrução da identidade

social.

Bibliografia

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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O CRESCIME�TO DA POBREZA.

Limites das fontes estatísticas em Portugal e resultados possíveis

Fernando Diogo

CES-UA

Universidade dos Açores

[email protected]

Resumo

A rapidez e a profundidade das transformações sociais por que está a passar a sociedade portuguesa

colocam desafios e agudizam tenções no desenvolvimento das políticas públicas, especialmente nas que

têm como objetivo a redução da pobreza ou a minimização dos seus efeitos. Coloca-se a questão da

fiabilidade dos instrumentos de informação estatística disponíveis para conceber e monitorizar essas

políticas, face à rapidez e profundidade do agravamento dos indicadores indiretos de pobreza e de

degradação da situação social em geral.

A partir da recente publicação dos dados do IDEF 2010/2011, explora-se as limitações das fontes

estatísticas para medir a pobreza em Portugal. Para realizar este trabalho, mobilizam-se dados estatísticos

do IDEF 2005/2006 e 2010/2011, do ICOR (2003-2010), assim como outras estatísticas.

As conclusões vão no sentido da manutenção do essencial das principais categorias sociais afetadas pela

pobreza, embora com um aumento do seu volume e da sua intensidade. Discute-se as condições para a

emergência, pela primeira vez em Portugal, de uma nova categoria social de indivíduos em situação de

pobreza, os novos pobres.

Palavras-chave: Pobreza, Medição, Evolução, Crise

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Introdução

A análise da pobreza em Portugal chegou a um impasse, provocado por dois

processos concomitantes, cujo efeito combinado é o de ocultação da evolução e

características da pobreza.

Referimo-nos, em primeiro lugar, às grandes transformações societais, com

amplas repercussões entre os mais despossuídos, que têm perpassado o país e, em

segundo, às evidentes debilidades estatísticas e concetuais dos principais indicadores

usados pelo estado português e pela UE para medir a pobreza. De ambos estes processos

daremos conta detalhada neste texto.

Desde as primeiras análises sobre o assunto, desenvolvidas a partir dos anos 80,

através dos estudos da Cáritas Portuguesa coordenados por Bruto da Costa e Manuela

Silva (1985, 1989), passando pelo recrudescimento do interesse pelo problema com a

introdução do Rendimento Social de Inserção em 1997, as estatísticas oficiais

disponíveis para lidar com a pobreza caracterizaram-se sempre pela sua escassez. De

destacar, a introdução, em 2003, do Inquérito às Condições de Vida e

Rendimento/Statistics on Income and Living Conditions (ICOR EU-SILC) que substitui

o Painel dos Agregados Domésticos Privados da União Europeia (Batista e Perista,

2010: 41), instrumento que, desde 1995, fornecia resultados sobre a pobreza (Capucha,

2005: 106).

Complementarmente, a análise da pobreza tem-se feito a partir dos dados do

Inquérito às Despesas das Famílias (IDEF) e seus antecessores (Inquérito aos

Orçamentos Familiares, IOF e Inquérito às Receitas e Despesas das Famílias, IRDF,

Capucha, 2005: 110 e Rodrigues, 2007: 122), tendo este inquérito a desvantagem de ser

quinquenal e a vantagem de ser estatisticamente significativo para as diferentes regiões

do país (NUTS II).

Este texto focaliza-se nestes instrumentos, nos seus resultados e na exploração

das suas limitações, em ordem a abrir a porta à sua utilização crítica e ao uso de outras

formas de aferir o problema da pobreza em Portugal, tendo em conta as transformações

societais (ou mudanças sociais) que referimos.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Constatação de partida: a taxa de pobreza em Portugal quase não mudou desde

2008

Se analisarmos as principais fontes estatísticas oficiais sobre a pobreza em

Portugal podemos realizar duas constatações, relativamente à sua evolução recente

(2005-2011): os dados do IDEF mostram-nos uma descida da taxa de pobreza e os do

ICOR uma descida, seguida de subida e de estagnação, verificando-se esta última

tendência nos anos mais recentes.

Gráfico 1. Taxa de risco de pobreza IDEF (2005/2006 e 2010/2011)

19

16

12

17

13

2119

16

15,3 14,6 14,216,1

11,3

17,9 16,1 14,8

-5

0

5

10

15

20

25

Norte Centro Lisboa Alentejo Algarve R.A.

Açores

R.A.

Madeira

Total

2005/2006 2010/2011 diferença

Fonte: IDEF 2005/2006 e 2010/2011

De forma aprofundada, podemos verificar através dos dados IDEF que de 2005

(ano de recolha dos dados da edição 2005/2006) para 2009 (ano de recolha dos dados da

edição 2010/2011) a pobreza desceu no país, de um valor de 16% para 14,8%. Esta é

uma descida que, de forma mais ou menos acentuada, se verifica em todas as regiões,

com a exceção de Lisboa e Vale do Tejo. De notar que, nesta última, a subida da taxa de

risco de pobreza de 12% para 14,2% não lhe retira o estatuto de uma das regiões com a

menor taxa do país, só superada, em 2010/2011, pelo Algarve.

Contudo, é precisamente a partir de 2009 que os efeitos mais agudos do

agravamento da crise financeira, económica e social se começam a sentir. Assim, para

termos informações sobre os efeitos desta crise no aumento da pobreza devemos

recorrer aos dados do ICOR.

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Gráfico 2. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003-

2011)

20,4

19,4

18,5

18,1

18,5

17,9 17,9 18,0 18,0

16,5

17

17,5

18

18,5

19

19,5

20

20,5

21

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Fonte: INE, dados do ICOR

Os dados do ICOR apresentam uma redução da pobreza no país, de um valor de

20,4% em 2003 para 18,0% em 2011. Mais detalhadamente, pode observar-se que, na

segunda metade do período em análise, se verifica um aumento significativo entre 2006

e 2007, e uma estabilização (ou estagnação) nos anos mais recentes, entre 2008 e 2011.

Pode alegar-se que as diferentes tendências que as duas fontes apresentam

respeitam ao facto de se reportarem a períodos temporais que não são totalmente

coincidentes. Nesse sentido, apresentamos abaixo os valores das duas taxas para os anos

em que coincidem, 2005 e 2009 (correspondendo aos anos em que os dados IDEF foram

recolhidos):

Quadro 1. Comparação taxas de risco de pobreza ICOR e IDEF, 2005 e 2009, Portugal

Fonte 2005 2009 Tendência ICOR 18,5% 17,9 Descida -0,6 IDEF 16% 14,8% Descida -1,2 Diferença entre as fontes 2,5% 3,1% - Fontes: ICOR 2005 e 2009 e IDEF 2005/2006 e 2010/2011

Quer dizer, os dados das duas fontes apresentam a mesma tendência de descida

entre os dois anos em análise. Contudo, ficamos em presença de um prolema adicional,

verifica-se uma taxa de risco de pobreza maior nos dados do ICOR do que nos do IDEF.

Consideramos que isso se deve ao facto da metodologia seguida na recolha de dados no

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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IDEF ser mais robusta, pois lida melhor com o rendimento não monetário, algo a que

corresponde sensivelmente um quinto, 20%, do total dos rendimentos das famílias no

IDEF (Rodrigues, 2010: 123) 2 . Estamos, portanto, no campo das diferenças nas

metodologias de recolha de dados entre estes dois inquéritos (mas não na fórmula de

cálculo da pobreza).

Voltando à questão da tendência da taxa de risco de pobreza. Se não possuímos

dados para o IDEF posteriores a 2009, os dados do ICOR mostram uma estabilizam da

taxa entre 2008 e 2011, como vimos. Contudo, poder-se-ia pensar (e colocar como

hipótese) que o aumento da taxa de risco de pobreza se acentuou em Portugal com o

agravamento da crise económica, algo que se deu em 2008. E poder-se-ia acrescentar

que a implementação de medidas políticas tendo em vista a redução do deficit, algo que

se intensificou a partir de 2009, tornaria esse crescimento mais intenso. Contudo,

manifestamente, não é isso que nos é dado pela taxa de risco de pobreza ICOR-

EUSILC.

A primeira questão que se coloca é: até que ponto os efeitos da crise no aumento

da pobreza não têm sido sobrevalorizados, por via da sua exacerbação através da luta

política e da necessidade jornalística de notícias com impacto? Por outras palavras, se o

aumento da pobreza parece estar presente nas agendas jornalísticas e política,

corresponderá esse efeito de agendamento ao aumento do número de pessoas em

situação de pobreza? Para percebermos a dissonância entre a inamovibilidade da taxa de

risco de pobreza oficial e a perceção pública de que a pobreza está a crescer, devemos

consultar indicadores que nos permitam perceber a questão para além dos termos que

produziram esta dissonância.

MAS, os indicadores indiretos de pobreza não param de se degradar

A tendência observada de manutenção da taxa de risco de pobreza contrasta

flagrantemente com alguns importantes indicadores indiretos de pobreza que podemos

observar. Desde logo, os indicadores de cariz subjetivo. Referimo-nos à perceção dos

responsáveis das instituições de combate à pobreza e à exclusão social. As declarações

públicas destes responsáveis têm sido, ao longo dos últimos anos, no sentido de reportar

2 O que está em causa no rendimento não monetário é, essencialmente, a autolocação, isto é, autoavaliação do valor hipotético de renda de casa pelos agregados proprietários ou usufrutuários de alojamento gratuito INE (2012: 43).

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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um aumento dos pedidos de ajuda, um esgotamento dos serviços e apoios que

disponibilizam e o crescimento da pobreza, mormente, afetando indivíduos que, em

muitos casos, pertenceriam, na sua avaliação subjetiva, às classes médias. Este tipo de

afirmações é comum a todas as declarações deste género, sejam produzidas por

responsáveis de instituições de âmbito mais geral, como a EAPN, a AMI ou a Cáritas

Portuguesa, sejam das instituições cujo âmbito geográfico é mais circunscrito, como os

centros sociais e paroquiais ou as associações locais.

Pode alegar-se que, apesar de tudo, esta perceção dos responsáveis das

instituições não é um bom indicador do aumento da pobreza, dado que não há nelas

qualquer preocupação ou fundamentação estatística, isto é, pode considerar-se que

declarações deste tipo não são representativas da situação social do país, não passando

de um efeito de agendamento dos media, ou de um efeito de pack jornalism (jornalismo

de rebanho). Portanto, pode-se alegar que, em si, esta fonte mais não faz do que fundar a

dissonância acima mencionada, entre as agendas políticas e jornalísticas e as fontes

estatísticas.

Um segundo indicador respeita ao grande conjunto de mudanças legislativas

que, desde 2008, se têm traduzido em cortes nas prestações sociais, precisamente

dirigidas aos indivíduos mais vulneráveis à situação de pobreza ou àqueles que estão em

situação de pobreza. Referimo-nos ao abono de família, subsídio de desemprego, baixas

médicas, complemento solidário para idosos (CSI) e rendimento social de inserção

(RSI), assim como às pensões.

Vejamos o exemplo do RSI. As grandes transformações legislativas que tem

vindo a sofrer ao longo do tempo foram sempre no sentido da redução do volume

financeiro transferido para os indivíduos e da redução do número de beneficiários (e,

logo, do volume financeiro global consignado). Como alterações mais significativas

assinale-se i) a passagem de RMG (Rendimento Mínimo Garantido) para RSI em 2004,

algo que levou a uma maior complexidade burocrática no requerimento e

processamento da prestação; ii) a mudança legislativa de Junho de 2010 (D.L. 70/2010),

tendo implicado a redução das prestações por via da eliminação dos apoios

complementares; iii) a mudança legislativa que teve lugar em 27 de Junho de 2012

(D.L. 133), onde se reduziu os montantes máximos a atribuir por família e se instituiu a

obrigatoriedade prévia do acordo de inserção, assim como o fim da renovação

automática, medidas que vêm complexificar a prestação e adiar o seu recebimento,

levando a menos beneficiários (e, logo, a menos custos). No mesmo sentido se pode

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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interpretar, ainda na mudança legislativa de 2012, a inclusão de todos os habitantes da

mesma casa no cálculo da prestação, algo que leva à redução do número de

beneficiários e do valor das prestações; e, finalmente, iv) a redução do valor das

prestações consignada no orçamento de 2013, via diminuição em 6% da percentagem do

Indexante de Apoios Sociais (419,22 euros), passando para 42,495% deste valor.

Contudo, pode alegar-se que boa parte destas prestações sociais, como o RSI,

são dirigidas a quem já está em situação de pobreza, pelo que o efeito que têm é o de

aumentar a intensidade da pobreza (agravando as condições de vida dos indivíduos

pobres, afastando-os, para baixo, do limiar de pobreza) mas não têm impacto no volume

de indivíduos em situação de pobreza e, logo, na respetiva taxa. Contudo, nem todos os

indivíduos abrangidos por estas prestações sociais são, à partida, pobres e a redução dos

seus montantes ou perca do direito a usufruir delas pode atirar os indivíduos para os

braços da pobreza em números suficientemente grandes para que isso se reflita nas

estatísticas. Note-se que estamos a falar de uma fonte de rendimento dos portugueses

que é responsável por 23,9% do total (INE, 2012), a segunda maior fonte, logo a seguir

aos rendimentos do trabalho. Mais, as transferências sociais (incluindo pensões), ainda

segundo o INE (2012b: 2-3), reduziram a pobreza em 17,2% em 2010, valor que mostra

a importância deste tipo de rendimento na redução da pobreza e o impacto potencial da

diminuição dos valores a atribuir por pessoa no seu aumento.

Não obstante as controvérsias à volta da perceção dos dirigentes das Instituições

Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e dos efeitos dos cortes nas prestações

sociais no aumento da pobreza, existem outras fontes que vão no mesmo sentido e que

são inequivocamente representativas da situação portuguesa. Em primeiro lugar, o caso

do desemprego. O valor do 4º trimestre de 2012 foi de 16,9% (INE, 2013), o maior

valor desde que há registo em Portugal e muito longe do valor de 7,6% de 2008

(Pordata, 2013). Todavia, pode-se alegar que, nos últimos anos em Portugal, não tem

existido ligação entre aumento do desemprego e aumento da pobreza, pelo contrário,

como podemos ver no gráfico abaixo.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Gráfico 3. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003-

2011) comparada com a taxa de desemprego (2003-2012)

20,419,4

18,5 18,1 18,517,9 17,9 18,0 18,0

6,3 6,77,6 7,7 8,0 7,6

9,510,8

12,7

15,7

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

t. pobreza

t. desempego

Fontes: Fonte: INE, dados do ICOR e Pordata, dados do INE, inquérito ao emprego

A independência entre a taxa de desemprego e a taxa de risco de pobreza é muito

evidente. Contudo, este não deixa de ser um resultado estranho: se o rendimento dos

portugueses depende, em grande parte do trabalho com 54,5% do total dos rendimentos

das famílias a provirem desta fonte (sendo que isso é especialmente verdade para os que

se encontram no primeiro quintil de rendimento, os mais pobres, INE, 2012: 52 e 56),

não se percebe como é que o crescimento exponencial da taxa de desemprego, pelo

menos desde 2009, não tem qualquer efeito no crescimento da taxa de risco de pobreza,

tanto mais que é concomitante com a redução das prestações sociais, a outra grande

fonte de rendimento dos portugueses.

Uma segunda fonte de cariz objetivo que contradiz a tendência de estabilização

da taxa de risco da pobreza respeita aos dados do Produto Interno Bruto. O valor

relativo a 2012 representa uma quebra anual de 3,2% na estimativa rápida do INE

(2013b) e os dados referentes aos últimos anos mostram um processo de quase

estagnação ou de quebra do produto, como se vê no gráfico seguinte (o mesmo

acontecendo com o PIB per capita, cf. Pordata, 2013c):

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Gráfico 4. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003-

2011) comparada com a variação do PIB (2003-2012)

Fontes: Pordata, INE–BP - Contas Nacionais Anuais (Base 2006) e INE, ICOR

Acrescente-se que os dados referentes ao PIB per capita em paridades do poder

de compra para 2011 mostram uma redução de 2,9% do valor português face à média

comunitária (INE, 2012c), trata-se de mais um indicador de degradação da condição

económica dos portugueses, primeira condição para o aumento da pobreza. No mesmo

sentido, os dados do INE sobre os custos do trabalho (INE, 2013c) mostram que estes se

reduziram em 14,9%, no 4º trimestre de 2012, em relação ao mesmo período de 2011.

Sendo que no 3º trimestre, esta variação tinha sido de -14,2%, também face ao trimestre

homólogo de 2011. Ora, se os custos de trabalho se estão a reduzir, e em valores

significativos, isso quer dizer que os portugueses têm menos rendimentos do trabalho,

algo que, como vimos, representa mais de metade dos rendimentos totais das famílias

portuguesas. O mesmo se tinha já verificado em 2011, por relação com 2010, em que no

4º trimestre os custos com o trabalho tinham-se reduzido em 6,5%.

Mais ainda, um estudo recente da Comissão Europeia refere que, de entre os

países com maiores problemas orçamentais, foi Portugal quem aplicou mais medidas

com impacto nos mais vulneráveis à pobreza (CE, 2011: 18, 20, 23), levando a um

agravamento (estimado) da pobreza em 2009 e afetando proporcionalmente os mais

idosos e as crianças (e jovens). Os recentes aumentos de impostos associados ao

congelamento de salários (e até à sua redução) e ao aumento dos bens e serviços

essenciais vêm, também retirar rendimentos aos portugueses e, como tal, aumentar a

probabilidade de os indivíduos se tornarem pobres.

-0,91

1,56 0,78 1,452,37

-0,01

-2,91

1,94

-1,55-3,2

20,419,4

18,5 18,1 18,5 17,9 17,9 18,0 18,0

-5

0

5

10

15

20

25

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Taxa de crescimento do PIB a preços constantes t. pobreza

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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O conjunto de indicadores que acabámos de revisitar permite verificar que as

principais fontes de rendimento dos portugueses, as transferências sociais e os salários

estão em quebra, e com menos rendimento a probabilidade de pobreza aumenta,

especialmente no caso do desemprego (dado que este significa um corte radical nos

rendimentos, especialmente quando se acaba o subsídio de desemprego). A estes

indicadores devemos, ainda, juntar o grande aumento da carga fiscal que se verificou

em Portugal nos últimos anos, quer em sede de IVA, quer de IRS.

Como explicar esta contradição?

A questão que se coloca é, portanto, a de que não é crível que a pobreza não se

tenha agravado em Portugal nos últimos anos, mau grado a tendência de estagnação

exibida pela taxa de risco de pobreza ICOR-EUSILC. O que justifica o comportamento

desta taxa? Podem ser invocadas dois tipos de explicações, as que se desenvolvem no

quadro concetual que fundamenta a taxa em causa e as que assumem uma posição

crítica em relação a este quadro.

a) Explicações dentro do quadro concetual da definição da pobreza

I. Redução do limiar oficial da pobreza

Relativamente às explicações dentro do quadro concetual da definição da

pobreza, centremo-nos no período de 2008 a 2011, os anos em que a taxa estagna.

Podemos encontrar o início da atual crise financeira, económica e social europeia em

2008 (sendo que Portugal já estava em crise antes disso, a crise europeia veio agravar,

em muito, a nacional), contudo, o crescimento da taxa de desemprego e as medidas de

corte na despesa com forte impacto no agravamento das condições de vida dos

portugueses pertencentes às categorias sociais mais baixas não foram imediatamente

tomadas e os seus efeitos não foram imediatamente sentidos, vimos, no estudo da

Comissão Europeia (CE, 2011), que os primeiros impactos se verificaram em 2009, ano

em que também a taxa de desemprego mostra uma aceleração do seu agravamento.

A primeira explicação para a dissonância entre os indicadores indiretos e os

resultados da taxa ICOR tem a ver com as limitações da definição oficial de pobreza: de

2009 para 2010, o limiar da pobreza, por via da redução do PIB (e, portanto, do

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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rendimento dos indivíduos em cuja mediana se baseia o cálculo da linha de pobreza),

diminuiu, passando de 434 para 421 euros mensais (OD, 2012). É de esperar que o

mesmo se tenha verificado noutros anos deste período. Por outras palavras, a definição

oficial de pobreza é relativa ao rendimento mediano do país, se este baixa, como vem a

acontecer em Portugal, também baixa o limiar de pobreza contido na definição oficial

de pobreza. Desta forma, minimiza-se o número de pobres em função do

empobrecimento geral do país. Existem duas consequências a retirar deste raciocínio:

Em primeiro lugar, indivíduos com rendimentos ligeiramente abaixo do limiar

de 2009 deixam de ser pobres em 2010, sem que o seu rendimento mude, mudando

apenas o limiar de pobreza, para baixo, na escala dos rendimentos.

Em segundo, indivíduos que viram os seus rendimentos reduzidos em 2010 e

que, pelos critérios de 2009, entrariam em situação de pobreza, ficam acima desta linha

em 2010. Estes dois raciocínios podem ser aplicados a vários dos restantes anos do

período em que se verifica a estagnação da taxa 2008-2011.

II. Degradação das condições de vida das classes médias que, apesar de

tudo, não atira as pessoas das classes médias para baixo do limiar de

pobreza

Todavia, estas explicações para a manutenção da taxa de pobreza nos últimos

anos não parecem ser suficientes para justificar a estagnação face a um agravamento

significativo da situação social, como foi acima explicado, tanto mais que estamos

perante uma descida relativamente pequena do limiar de pobreza, no caso em apreço, 13

euros3.

Assim, coloca-se a hipótese de que parte da manutenção da taxa de pobreza é

explicado pelo facto do agravamento da situação social e económica atingir os

indivíduos das classes médias, levando ao seu empobrecimento e degradação, mas

conservando-os acima do limiar de pobreza. Aliás, a hipótese da vulnerabilidade e da

fragilização da classe média portuguesa foi recentemente colocada, também a propósito

da atual crise (Estanque, 2012: 101).

3 Sem esquecer que, para os indivíduos com rendimentos muitos baixos, uma quantia percebida como pequena para outras categorias sociais assume, para eles, um outro valor, quer subjetivamente, quer no contexto do seu rendimento. Nesse sentido, recorde-se que 13 euros representam 3% do limiar de pobreza em 2009 e uma taxa de variação negativa 2009-2010 de -2,9%.

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Não obstante, a força do aumento do desemprego (associada aos cortes nas

prestações sociais, à queda do PIB, a outros fatores como o aumento dos impostos e à

perceção dos dirigentes das IPSS), implica que a hipótese de fragilização das classes

médias conservando rendimentos que lhes permitam manterem-se à tona de água, não

nos parece suficiente para explicar a imobilidade da taxa de risco de pobreza.

b) Explicações críticas do quadro conceptual da definição oficial de pobreza

I. Crítica da definição oficial de pobreza

É, portanto, necessário outro tipo de explicações para justificar a estagnação da

taxa de risco de pobreza ICOR, a partir da crítica aos conceitos usados. A

problematização do conceito de pobreza (e de exclusão social), assim como a sua

medição têm sido alvo de um elevado número de reflexões4, contudo, as transformações

recentes do problema em Portugal, das quais pretendemos dar conta neste texto,

condicionam o alcance dessas discussões, dado que modificam substancialmente o

substrato empírico que as enquadra. Neste sentido, pretendemos, na sequência de outros

textos (Diogo, 2006), adicionar outras explicações ao debate. A primeira dessas

explicações tem a ver com a própria definição oficial de pobreza.

II. Crítica do próprio conceito de pobreza

A questão central respeita às limitações do conceito de pobreza presente no IDEF e

no ICOR. Qualquer que seja a definição escolhida recorta-se uma categoria social que é,

em larga medida, arbitrária e engloba um conjunto muito variado de pessoas (Glewwe e

Van der Gaag, 1989: 2, Pereira, 2010a: 5 e Townsend, 1993: 86). O número e as

características dos indivíduos em situação de pobreza variam consideravelmente em

função da definição escolhida, pelo que as políticas sociais de mitigação e combate

adotadas dependem, então, de fatores arbitrários, característica que não ajuda à sua boa

execução.

Na definição oficial de pobreza, proveniente da União Europeia, em particular do

Eurostat (que é a presente no IDEF e no ICOR), considera-se pobre quem tem um

4 Para uma revisão crítica dessas referências veja-se Capucha (2005: 65 e ss) e Pereira (2010b: 23 e ss).

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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rendimento abaixo de 60% da mediana do rendimento nacional por adulto equivalente.

De notar que para o Eurostat está em causa o limiar de risco de pobreza e não o limiar

de pobreza, embora, na prática, seja a mesma coisa. Esta definição é perfeitamente

arbitrária, não havendo um fundamento científico claro para a sua adoção (D’Agostino

& Duvert, 2008: 15). E, além disso, fornece apenas algumas informações sobre a

pobreza, de caracter mais descritivo (Capucha, 2005: 71), não dando conta da sua

multidimensionalidade e da sua relação com as desigualdades mais amplas que

estruturam as sociedades. Neste sentido, têm sido apresentadas propostas para a sua

substituição por conceitos com maior fundamentação teórica e social (vide, por

exemplo, Pereira, 2010a e 2010b). Elvira Pereira (2010a: 9) estabelece, aliás, o limiar da

pobreza em 75% do rendimento mediano por adulto equivalente (para Portugal), a partir

dos recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas, como alternativa à

definição adotada pelo Eurostat.

Acresce que será muito difícil, em qualquer circunstância, medir, dar conta e

expressar um problema social tão complexo como a pobreza num único número síntese.

É, em parte, tendo em conta esta dificuldade que nas estatísticas proporcionadas pelo

ICOR se juntou as ideias de privação material e de pessoas entre 0 e 50 anos vivendo

em agregados familiares com baixa intensidade de trabalho (cf. por exemplo, Eurostat,

2012).

III. Competição com os conceitos de senso comum

As consequências da fragilidade desta definição estão relacionadas com a ideia de

que a pobreza é muito mais do que uma categoria analítica. Com efeito, em primeiro

lugar, a simples substituição das noções de senso comum relativas à pobreza, através do

processo de rutura epistemológica, não produz os resultados esperados.

No caso vertente, as noções de senso comum são parte da realidade social e

contribuem para a sua construção, dada a forma como fundamentam as decisões e ações

do atores, quer numa perspetiva individual, quer enquadrados em instituições. As

categorizações do senso comum, pelo menos no que respeita às ciências sociais, são

parte importante da realidade social que se procura compreender (Ogien, 1983: 18 e ss e

Thomas, 1928, cit. Bühler-Niederberger, 2010a:156), pelo que não faz sentido produzir

um processo de rutura que as ignore. Quer dizer, se o senso comum não é o motor das

ciências sociais é boa parte da realidade que se pretende estudar, portanto, a rutura é

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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com uso do senso comum como instrumento de compreensão da realidade, mas ele

existe no trabalho das ciências sociais como objeto.

Isto significa que as medições de pobreza que não contam com a perceção dos

indivíduos estão, à partida, fragilizadas.

Em segundo lugar, a substituição de uma noção de senso comum por uma noção

construída no seio da ciência, sobretudo com fracas bases teóricas, implica que esta

definição “científica” alternativa vá concorrer com as definições do senso comum na

construção da realidade social.

No limite, as noções de cariz científico são apropriadas pelo senso comum e tornam-

se, elas próprias, parte da realidade que se pretende explicar (Capucha, 2005: 66 e

Diogo, 2006). Neste sentido, assumem relevo dois exemplos de grande interesse, por

um lado, a apropriação dos termos da psicanálise, pelos indivíduos, incorporando-os na

sua linguagem do dia-a-dia e nas suas representações sociais, algo que foi estudado por

Moscovici (1976 [1961]), por outro, o processo de produção e reprodução das classes

sociais nas sociedades ocidentais, dado que este processo contou com um amplo

contributo teórico da sociologia, apropriado pelos indivíduos e responsável por boa

parte da configuração concreta das classes sociais e pelo seu devir histórico (Accardo,

1991).

Portanto, pode-se colocar como hipótese que um dos efeitos desta definição oficial

de pobreza é o de contribuir poderosamente, através do mecanismo da categoria oficial

(Diogo, 2007), para rotular como pobres os indivíduos por ela abrangidos contribuindo

para a sua menorização social e esquecendo outros que, por algum motivo, não são

abrangidos mas que passam pelo mesmo tipo de dificuldades. Sobre esta última

possibilidade note-se que, como Eduardo Vitor Rodrigues tem afirmado nas suas

intervenções, os membros das classes médias que viram os seus rendimentos

diminuírem e o seu nível de compromissos manter-se (designadamente créditos vários)

ficam com um rendimento disponível que os pode colocar abaixo do limiar de pobreza,

nas dificuldades do dia-a-dia que sentem, embora, formalmente, estejam acima.

IV. Centramento nos pobres versus centramento nas desigualdades sociais

Finalmente, a opção metodológica pela análise das problemáticas sociológicas da

estratificação social e das desigualdades sociais a partir da ideia de pobreza encerra uma

opção política e limita cientificamente a análise. Este problema não está relacionado

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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especificamente com a definição de pobreza do Eurostat mas com todas as definições

que se possam encontrar deste conceito.

Em relação à limitação científica, a pobreza é uma questão que tende a ser abordada

na perspetiva dos indivíduos: da relação dos indivíduos com as instituições, dos

problemas dos indivíduos, dos efeitos da pobreza nos indivíduos, das características dos

indivíduos… enfim, implica o risco de se aceitar uma visão do mundo em que o

funcionamento da sociedade está focado nos indivíduos que estão abaixo de um certo

patamar num conjunto de escalas sociais relevantes (Paugam, 1991), com destaque para

a questão dos rendimentos e do consumo. Ora, os indivíduos que sofrem da situação de

pobreza são apenas uma parte dos processos societais que os levaram aí e para

compreender a pobreza (e poder atuar sobre ela) não basta cingir-nos aos indivíduos

nessa situação, sendo necessário trabalhar as questões das desigualdades sociais e das

formas extremas de estratificação social. Por outras palavras, uma teoria sobre a origem,

características e efeitos sociais da pobreza não é possível sem o seu enquadramento

numa teoria mais geral de compreensão e explicação da estratificação e das

desigualdades sociais. Centrar a pobreza nos pobres e esquecer ou minorar o papel da

sociedade é algo que é induzido pela própria ideia de pobreza. Só a consciência crítica

dessa limitação pode levar a abordagens que tenham em conta as dimensões societais

desta problemática e, dessa forma, construir um conhecimento sociológico pertinente

sobre a realidade social. A definição oficial de pobreza não contem qualquer reporte a

este enquadramento societal da pobreza, sendo, por isso, limitativa da sua caracterização

e explicação.

V. Opção política

O estudo da pobreza sem ter em conta as dimensões societais acaba, em

consequência, por ser uma opção política, dado que se encerra o problema nos

indivíduos em situação de pobreza não problematizando o papel na produção e

reprodução da pobreza destas dimensões societais, e dos indivíduos e instituições que

lhes dão corpo, desde logo as elites, as classes dominantes e as corporações (conceitos

que se intercetam mas que não se confundem).

Assim, corre-se o risco de poupar a sociedade a uma análise crítica do seu

funcionamento, construindo um objeto de investigação que, muito provavelmente, não

dará boa conta da realidade social. Não se trata de uma fatalidade, mas estamos perante

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uma inclinação a agir (mobilizando a expressão que Bourdieu criou com outros

propósitos) que se encontra corporizada na definição oficial de pobreza.

Conclusão: O lugar dos novos pobres

O que fazer, portanto com os dados atuais? Podemos confiar neles? A queda do

PIB e o crescimento exponencial do desemprego, concomitantemente com a quebra dos

rendimentos dos portugueses, seja com origem em transferências sociais, seja com

origem nos salários, assim como os aumentos dos impostos, a redução das

transferências sociais e a perceção dos responsáveis de instituições de apoio social, são

os grandes indicadores que nos permitem inferir a existência de grandes transformações

sociais em curso na sociedade portuguesa. Estas transformações vão, inequivocamente,

no sentido do empobrecimento geral e a taxa oficial de risco de pobreza não dá conta

disso. Neste sentido, a resposta à questão de se podemos confiar nos dados atuais é

negativa.

Infelizmente, estes números são os que temos sobre a pobreza em Portugal e o

que nos dizem é que esta continua a ser o que se pode designar como um problema

estrutural (Batista e Perista, 2010), afetando em maior proporção os mais velhos, os

mais novos, os agregados mais numerosos e os mais pequenos, os que estão menos

relacionados com o emprego e os menos escolarizados (Batista e Perista, 2010: 5 e ss,

Capucha, 2005: 113, Diogo, 2012, Rodrigues, 2007: 195 e ss). Esta estruturalidade da

pobreza portuguesa significa que ela é, em boa parte, intergeracional e afeta de forma

persistente no tempo os indivíduos pobres (pobreza tradicional).

O que estes valores não nos permitem perceber é se existem novos pobres. As

transformações societais que temos vindo a atravessar de forma acelerada nos últimos

anos, e os seus efeitos na estrutura de classes, ainda estão por estudar. Contudo, parece

inegável que a crise, nos seus vários componentes, está a levar à pobreza numerosos

indivíduos (e famílias), mesmo os que, pertencendo às classes médias, estavam mais ao

abrigo deste fenómeno.

Enfim, o diagnóstico sobre as debilidades dos dados que nos são fornecidos pela

definição e taxa oficiais de pobreza (IDEF e, sobretudo, ICOR) parece sólido mas as

explicações para as falhas encontradas nesta taxa precisam, claramente, de serem

aprofundadas com estudos mais detalhados sobre o problema, quer intensivos, quer

extensivos. Estes estudos permitiriam perceber mais claramente o que está mal com a

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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taxa de pobreza e, mais relevante, perceber como se caracteriza e como tem evoluído a

pobreza em Portugal. Quer dizer, sem estes estudos não podem ser produzidas políticas

eficientes e eficazes de mitigação dos efeitos da pobreza e de redução do número de

pobres. E sem estes estudos, todas as discussões teóricas sobre a definição da taxa de

pobreza são muito limitadas, porque não estão ancoradas numa realidade em mutação.

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DA I�TER-RELAÇÃO CE�TRAL / LOCAL �A AÇÃO PÚBLICA.

Serviços sociais e atendimento integrado: modelos e perspetivas

Cecília Dionísio

CesNova

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Universidade Nova de Lisboa

[email protected]

Resumo

Face a um contexto de mudança social com a tendencial complexificação dos problemas sociais, aliado

por sua vez ao imperativo de racionalização de recursos, as novas politicas públicas enfrentam desafios de

Governação que ultrapassam as teses de pluralismo assistencial, verificando-se uma re-definição das

dinâmicas e dos modelos de intervenção social que implicam responsabilidades partilhadas. Visando

contribuir para uma reflexão alargada sobre de que forma os agentes produtores de ação pública se

rearticulam, nomeadamente na dinamização de respostas inovadoras orientadas para realidades

contemporâneas, apresentamos uma síntese teórica ao nível da conceptualização das políticas públicas

com enfoque nas lógicas de ação dos atores e, a partir de uma sistematização exploratória de diferentes

práticas e modelos de atendimento e acompanhamento social integrado em Portugal, perspetivamos as

linhas gerais de análise dos dispositivos de planeamento, incorporação e aplicação de medidas de políticas

públicas na área da solidariedade e ação social com enfoque na colaboração ativa entre prestadores de

serviços públicos e não públicos.

Palavras-chave: Atendimento Social Integrado, Governação, Parcerias

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Esferas de Responsabilidade Pública – Os atores / produtores / agentes da ação

pública no domínio social

As atuais perspetivas de política social salientam que a responsabilidade pública

nela implicada, intrincada na sua finalidade e contexto de espaço público, não se caduca

mas antes se enriquece com a tendência englobadora de interação entre vários agentes,

incluindo de origem privada, na sua formulação e no seu planeamento, na sua execução,

na sua avaliação e, tendencialmente, no seu financiamento.

A pespetiva de Interação (Kay, 2006) salienta a política pública como processo

dinâmico, com participantes diversos no ‘jogo’ ao invés da existência de um único

decisor, sendo aqueles muitas das vezes não formais ou reconhecidos como tal, e, por

sua vez, respetivos entendimentos diversos quanto ao problema/situação em presença.

Se em 1956 um dos primeiros sistematizadores no campo da Política Social – Marshall

– descreve a política social como a política desenvolvida pelos governos direcionada

para o bem-estar dos cidadãos, atualmente a ênfase coloca-se ao nível dos resultados e

dos seus domínios de intervenção, salientando-se o cariz holístico que a mesma deve

expressar e reconhecendo-se a sua interpenetração nos contextos económicos globais e

dos sistemas políticos alargados, abrangendo uma ampla diversidade de agentes, sendo

necessário ter em conta os contextos nacionais e locais e as diversas modalidades da

intervenção do Estado, que implicam um número cada vez maior de dispositivos e de

agentes especializados (Balsa, 2006a)

Para Coutinho (2006), a Política Social é uma matriz da qual fazem parte

orientações políticas e económicas, assentes em sistemas sociais e cuja base social de

suporte refere organizações públicas (o sistema público-administrativo) e /ou privadas

(empresas privadas lucrativas e empresas não lucrativas e não privadas), integrando

objectivos e medidas de carácter social, económico, institucional e político que em cada

momento têm impacto sobre o consumo, o investimento, a segurança, a participação, a

liberdade e a dignidade dos povos. As interdependências com as políticas económicas e

fiscais são reconhecidas nas diferentes conceções de política social, sendo que implicam

um jogo de forças e diferentes performances entre a produção e o consumo

individualizado e a equidade.

Estas perspetivas salientam, precisamente, que a diversidade de campos de

intervenção torna não só necessária como premente a responsabilização de todos os

atores sociais, de diferentes setores e enquadramentos societais, no espaço público.

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Nesta senda, pode assim considerar-se que as políticas públicas são políticas que

abrangem todos os domínios da vida, interligadas com as funções do Estado.

Para Peter Townsend (1975) todas as sociedades têm políticas sociais, mesmo

que não estejam formuladas numa forma integrada, e têm serviços sociais, numa

concepção mais alargada, partindo da perceção das necessidades e dos problemas

sociais, numa lógica de destaque para a intervenção social associada a “problema”,

numa escala mais prática, tendência por sua vez assumida nos paradigmas da gestão

pública associada ao conceito de ‘problema público’.

Fernanda Rodrigues (1999) refere-se a uma orientação de análise da

política social com base numa perspectiva empírica, nomeadamente pelos problemas a

que se dirige, pelos grupos sociais-alvo, pelo tipo de bens e serviços proporcionados,

mas também pelos setores, tipo de administração e instituições em que se organiza,

pelas finalidades específicas que financia, pelos direitos e garantias que assegura.

Já Marshall também referia que a política social, concretizada através de

serviços ou rendimentos, incluía a segurança social, a assistência, entre outras áreas

como a habitação, educação, combate ao crime, saúde, etc., inovando neste âmbito a

questão da diversidade do seu campo de atuação societário.

Podemos então considerar que a amplitude do campo de intervenção da política

social pública torna necessária a responsabilização dos agentes sociais num todo e torna

pertinente a sua interação, numa lógica de acessibilidade cívica, de plasticidade na

adaptação à realidade contemporânea e de eficiência e eficácia estratégica num contexto

de limitação de recursos no bem-estar público, por um lado, e de uma sociedade em

rede, por outro.

O processo indutor de inovação social assente na parceria dos diferentes atores

tem assim um efeito contagiante nas práticas de intervenção e ação social pública em

serviços sociais tendencialmente integrados, tornando pertinente analisar em que

medida os mesmos se inserem nos modelos de Governação Pública estratégica.

�ovos paradigmas de Governação na intervenção multi-escala – a inovação pela

integração territorial multisetorial

Assente na premissa da multidimensionalidade dos problemas sociais, subsiste a

defesa das políticas sociais públicas tendencialmente globais e multisectoriais, por sua

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vez pressupondo uma intervenção holística traduzida em abordagens de integração e

partilha, nas quais a metodologia do Atendimento Social integrado se insere.

Com efeito, numa Sociedade em Rede, caraterizada por economias mistas na

proteção social/”mixed economies of social care”, por definição do Conselho da Europa,

a integração das políticas e práticas implicam parcerias de partilha de responsabilidades

por multi-agentes territorializadas mas igualmente de forma multinível/multiescala, a

um plano nacional e local.

Surgem aqui os desafios no âmbito da Nova Gestão Pública (New Public

Management) e da Governação, nomeadamente na articulação dos agentes produtores e

executores das políticas, de diferentes enquadramentos institucionais e de diferentes

níveis da Administração Pública, nomeadamente Central e Local. Estes desafios, por

sua vez, tendem a originar em termos de macroestrutura a proliferação de parcerias e

formas de prestação de serviços públicos baseadas em sistemas de rede que superam a

hierarquização de estruturas (Rocha, 2011), acompanhando uma tendencial alteração

estrutural das formas de poder as quais se baseiam mais em formas complexas,

horizontais e negociadas que em formas meramente verticais, hierárquicas e autoritárias

(Ramonet, 1998).

É neste âmbito que se pode associar em termos de Analise de Políticas Públicas

o Modelo de Governação assente no governo como �etwork (Mintzberg, 1995) e a

Teoria da Governação Multinível, referente ao plano Europeu, onde se inserem as redes

de Política (“Policy Networks “) enquanto estruturas híbridas integradas de governação

política com capacidade para misturar diferentes combinações de burocracia, mercado,

comunidade ou associação corporativa, resultando de lógicas interpretativas da

interação entre os setores públicos e privados (Falkner, 2000). Esta abordagem surge

com o objectivo de analisar as dinâmicas sectoriais que têm surgido em resposta à

dispersão de recursos e capacidades para a ação política entre atores públicos e

privados, contudo não está isenta de se constituir também como uma tentativa de

conciliação dos valores de serviço público tradicionais com os valores provenientes das

novas abordagens de organização e gestão das organizações públicas (Pitschas, 2007).

Em Portugal a reforma da Administração Pública e os novos métodos de gestão

estratégica e operacional que introduzem, entre outros itens, o benchmarking na

avaliação dos impatos das políticas e nele incluindo o desempenho dos recursos

humanos, têm vindo a contribuir para a adoção de linguagens comuns que por sua vez

podem vir a constituir-se como elementos fundamentais que concorrem para uma

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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verdadeira integração e transversalidade dos vários níveis de governação, os quais não

se podem impor aos agentes de sociedade civil mas que preconizam um esforço comum

para a superação da dispersão, de fragmentação e da sobreposição de serviços, de

respostas e de recursos. Estes são desafios que podem influenciar a mudança na própria

identidade das organizações e, nestas, dos seus colaboradores, tendo em conta os fins a

prosseguir e assim a própria produção do serviço e, concomitantemente, o resultado da

política.

Por sua vez, também os cidadãos têm um papel a desempenhar para que o

espaço público não seja esvaziado de verdadeiras questões publicas /public issues, na

senda de Bauman, assumindo-se a partilha de responsabilidades um requisito para a

autonomia, numa lógica de emancipação, das sociedades e para a autonomia individual

‘de facto’, precedida pelo exercício de cidadania: “There are no autonomous individuals

without an autonomous society, and the autonomy of society requires deliberate and

perpetually deliberated self-constitution, something that may be only a shared

accomplishment of its members.” (Bauman, 2000: 40).

Torna-se assim necessário equacionar vários níveis de análise no que concerne a

formulação e operacionalização de um serviço enquanto medida de política pública, que

possam abranger a natureza normativa, estatutária e técnica englobando nesta as

próprias identidades profissionais e o papel dos cidadãos. Daí aprofundarmos a pesquisa

nos seguintes: político-normativo; sócio-organizacional; técnico-interventivo e cívico-

participativo.5

Na verdade, a perspetiva de Integração de serviços (conforme preconizada pela

Integrated Care �etwork, 2004) pressupõe, mais que a convergência, a coincidência na

missão, na cultura, na gestão, nomeadamente de objetivos de estrutura decisória, nos

orçamentos e mesmo nas estruturas físicas e nos modelos de registos.

No plano Europeu, o conceito de serviços sociais integrados articula-se com o

conceito de Serviços Sociais de Interesse Geral na União Europeia (COM (2006) 1777),

nos quais inserem os serviços de apoio pessoal e de cuidados na área social/Proteção, de

Saúde e Emprego. Visam melhorar o acesso aos direitos, atenuar a exclusão dos grupos

mais vulneráveis e contribuir para o fortalecimento da coesão social.

5 Níveis de investigação operacionalizados em quatro eixos de análise: definição da política; produção do serviço; relação dos técnicos com o serviço; relação dos técnicos com o público.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Segundo Brian Munday (2007), a integração supera a noção de parceria, mesmo

que entendida enquanto trabalho conjunto e de rede, propondo quatro níveis

cumulativos de intervenção integrada:

Figura 1. �íveis de intervenção integrada

Fonte: Adaptado de Munday, 2007

A partir de uma análise comparativa sobre as práticas de serviços integrados na

Europa, Munday constata situações de integração num plano vertical e horizontal,

elencando-as ao nível dos territórios, ao nível dos decisores e das estruturas de

coordenação e ao nível dos profissionais (multidisciplinariedade –

interdisciplinariedade), podendo verificar-se em processos macro ou micro.

Também Antunes e Moreira, a partir de um levantamento com base em 24

estudos sobre experiências de serviços integrados (em especial de proteção social e

saúde) em 16 países, identificam vários níveis de integração:

Figura 2. �íveis de integração de Serviços

Integração de serviços ao nível ministerial ou de governo / administração pública

Integração setorial de serviços

Agencias multiserviços com estruturas físicas comuns

Parceria de serviços

Cooperação de serviços

Multidisciplinariedade dos profissionais

Cooperação reativa, ad-hoc, limitada

Separação /Fragmentação

Fonte: Adaptado de Antunes e Moreira, 2011

Coordenação

Integração

Cooperação

Colaboração

INT

EG

RA

ÇÃ

O

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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A metodologia de serviço do Atendimento Integrado, encarada enquanto

Intervenção de serviços de forma planeada e sustentada com base em redes formais,

implica um conjunto de abordagens e de métodos de coordenação com o objetivo de

melhorar os resultados produzidos face ao público e traduz um esforço de adaptação das

instituições à mudança social, valorizando as parcerias, a acessibilidade cívica e a

rentabilização de recursos.

Práticas e modelos de atendimento e acompanhamento social integrado em

Portugal

Compreender, num sentido extensivo, as lógicas de definição e de articulação

das diferentes orientações e estratégias das políticas sociais, pressupõe, como vimos, a

caracterização dos próprios mecanismos de comunicação, de apropriação técnica e de

consolidação das várias medidas de política, incluindo uma caraterização aprofundada

quanto à heterogeneidade organizacional e ao respetivo enquadramento dos

profissionais dos diferentes setores de intervenção, abrangendo a forma de

operacionalização e o circuito organizacional do percurso aplicativo dessas medidas por

parte dos diversos agentes com ação pública territorializada, nomeadamente organismos

do Poder Central, do Poder Local e da Sociedade Civil6.

Propomo-nos a desenvolver vários níveis analíticos tendo como base empírica os

serviços de atendimento de ação social local organizados de acordo com a metodologia

de “Atendimento Integrado”. As experiências em curso nalguns territórios de Portugal

consubstanciam-se em serviços de Atendimento de Ação Social tendencialmente

uniformes, desenvolvidos por técnicos de intervenção social com diferentes

enquadramentos organizacionais (Administração Pública Central – APC; Administração

Pública Local – APL e Organizações do Terceiro Setor – OTS), preconizam diferentes

modelos de intervenção e, por sua vez, corporizando instrumentos e modalidades

próprias de ação pública, nas formas e nos lugares das práticas e suscitando novos

desafios de governação das políticas públicas de transformação de paradigmas.

As práticas de Atendimento Integrado em Portugal tiveram o seu início a partir

de dinâmicas Europeias com enfoque territorial, nomeadamente no âmbito dos

Programas de Luta Contra a Pobreza. Em termos sistemáticos, a base geral do modelo

6 Análise desenvolvida na Tese de Doutoramento “Esferas de Responsabilidade Pública”, sob orientação do Professor Doutor Casimiro Marques Balsa, FCSH/UNL, presentemente em curso.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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foi implementada como resultado de uma experiência-piloto desenvolvida no âmbito do

Programa Comunitário (EQUAL), resultante de uma parceria alargada entre organismos

da Administração Pública Central, Local, Instituições de Solidariedade e um Centro de

Estudo (CESIS), naquela que foi considerada uma experiência-piloto formal cujos

resultados seriam passíveis de disseminação e que foi, inclusivamente, considerada

como ‘boa-prática’ de desenvolvimento social local na avaliação da implementação do

3.º Plano Nacional de Ação para a Inclusão Português.

Presentemente, estão a ser aplicadas em dinâmicas territoriais de base concelhia,

com diferentes modelos quer técnicos quer de coordenação.

Em termos globais, os seus princípios assentam numa abordagem holística que

supere a fragmentação das políticas, das respostas, das necessidades do indivíduo.

A metodologia preconiza, pois, um modelo sistémico de intervenção

plurisetorial (Ação Social/Proteção; Emprego; Saúde (Serviço Social de Saúde -

Centros de Saúde)); pluriorganizacional (Organizações da Administração Pública

Central, Local, Instituições de Solidariedade e Centro de Estudos/Academia);

multidisciplinar (Técnicos de Serviço Social / Psicólogos /Educadores, outros

profissionais); e, em termos operativos, a utilização de instrumentos de registo comuns,

construídos em parceria; a formalização através de Protocolo /Reconhecimento Público;

a intervenção através de um Gestor de Caso/’Case manager’ identificado por problema

dominante, com partilha de escalas e espaços de atendimento. Não obstante, as práticas

revelam diferentes formas e entendimentos de atuação integrada.

Assim, neste âmbito, tomamos como objeto de análise as experiências de serviço

social integrado em alguns territórios de Portugal.

A partir da sistematização de 18 experiências7, e com base em 10 dimensões de

análise 8 , foi possível delinear de forma exploratória diferentes modelos de

implementação de serviços de atendimento integrado em Portugal.

Considerando que a estabilização dos mesmos depende de um conjunto de

técnicas de aprofundamento de pesquisa que abrangem entrevistas semi-estruturadas a

decisores políticos, gestores e técnicos envolvidos, de entre outras em curso,

apresentamos as principais linhas diferenciadoras que vão sendo identificadas e que

7 Parcerias de Atendimento e Acompanhamento Social Integrado em Portugal entre 2005 e 2012. A análise teve por base a recolha de evidências documentais, complementada por observação direta. 8 Sendo estas: Tipologia territorial; Tipologia de agentes; Estrutura; Enquadramento comunitário; Serviço Prestado e Apoios; Suportes de Registo; Espaço físico; Formalização da parceria; Formalização de procedimentos; Imagem e Comunicação.

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permitem iniciar a construção, a validar, de cada um. Trata-se, assim, de primeiramente

identificar contrastes, induzidos num processo operatório de polarização (Gurvitch), que

se vão complexificando e intrincando e dos quais optamos por selecionar os seguintes:

Quadro 1. Modelos de Atendimento Integrado em Portugal – pólos diferenciados

Integração (-) Integração ( +)

Parceria não reconhecida Parceria formalizada

Iniciativa de organismos/instituições Iniciativa enquadrada em parcerias amplas (Conselho

Local de Ação Social, outras)

Unidade territorial limitada Várias unidades territoriais

Agentes semelhantes Diversos Agentes (APC; APL, OTS)

Estrutura decisória de nível técnico Estrutura decisória ao nível de Conselho de Parceiros

Sem planeamento Planeamento conjunto

Recursos Humanos: isolados e a tempo

parcial

Recursos Humanos: a tempo inteiro, em equipas

multidisciplinares

Serviço de Ação Social Serviços e Apoios de Ação Social e Rendimento Social

de Inserção Social, apoios pecuniários de vários

agentes e programas

Vários espaços de atendimento Partilha de espaços de atendimento

Sem manual de procedimentos e/ou

regulamento próprio

Com manual de procedimentos e/ou regulamento

próprio

Vários suportes de registo de informação Sistema de informação partilhado

Verifica-se que a metodologia inerente ao Atendimento Integrado, através de

parcerias de intervenção no âmbito do Atendimento e Acompanhamento Social (AAS),

tem vindo a ser implementada de acordo com dinâmicas diferenciadas mas

demonstrando no global a valorização, nomeadamente em grande parte por iniciativa

dos Municípios, ao trabalho em parceria com vista a uma resposta mais eficaz e

eficiente às solicitações da população em situação de vulnerabilidade social através do

AAS. Por outro lado, em alguns destes territórios, mesmo sendo consensuais as

vantagens do trabalho em parceria no AAS, alguns agentes revelam resistências em

realizar Atendimentos de acordo com procedimentos e suportes de registo comuns e/ou

ainda sem que sejam definidos os contributos em termos de recursos e apoios que cada

agente pode efetivamente disponibilizar, nomeadamente tendo em conta competências

definidas ou orçamentos afetos.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Relativamente ao produto da análise per si dos Serviços de Atendimento

Integrado, podemos concluir a tendencial existência de um esforço na articulação inter-

-setorial para um serviço integrado, mas com lacunas numa efetiva integração

multisetorial e multidisciplinar. Por outro lado, a tendência de uniformização de

procedimentos e critérios, importantes para uma global gestão de fluxos de informação

e principalmente de criação de fontes de dados intensivas e verdadeiramente indicativas

da realidade social, passíveis de contribuir para o aprofundamento dos diagnósticos e

para a formulação de novas políticas públicas, tem-se afigurado como elemento de

resistência. Todavia, esta poderá também incorrer de algum modo numa limitação em

termos de adaptação, inovação e proximidade face à realidade de intervenção,

constrangimentos estes que importa também identificar.

Subsistem, ainda, os velhos problemas de desfasamento entre serviços públicos,

respostas sociais, programas públicos/estatais, iniciativas comunitárias e respetivas

profissionalidades, travadas pelas competências e atribuições formais que se assumem e

nas responsabilidades e desafios de mudança que se pretendem ou não assumir,

complexidade esta que por sua vez emerge transversalmente na sistematização de

modelos e a qual deve ser tida em consideração.

Por fim, denote-se que esta análise servirá de base de enquadramento à questão

da interação dos atores, interessando-nos todavia mais o processo de implementação da

política que a avaliação dos seus resultados, pelo que os modelos servem de suporte a

uma compreensão que se pretende dinâmica e alargada e que neles não se esgotam.

�otas Conclusivas: O Atendimento Integrado enquanto objeto de análise dos

dispositivos de planeamento, incorporação e aplicação de medidas de políticas

públicas em parceria na área da solidariedade e ação social

Na análise de políticas públicas é reconhecido que sistemas sociais complexos

implicam a consideração da interação entre os atores e a questão da distribuição de

poderes, tratando-se de perspetivar aquelas enquanto reveladoras da essência da ação

pública (Knoepfel et al, 2006).

O enfoque na multiplicidade de atores que influenciam as políticas públicas é

destacado nas teorias procedimentais de implementação e agenda/agenda setting

(Howlett and Ramesh, 2003; Cefait, 2001), ou mesmo face ao modelo clássico de

política pública desenhado por Easton em 1965.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

Página 63 de 155

Os processos inerentes às políticas públicas serão, pois, resultado de um

conjunto de gramáticas de ação e interação, contextualizadas em práticas e expetativas,

com modalidades próprias de interpretação e legitimação, ancoradas em desafios e

incertezas mas por sua vez também influentes na mudança.

Policy is not about the promulgation of formal statements but the processes of

negotiation and influence; indeed, much policy work is only distantly connected to

authorized statements about goals: it is concerned with relating the activities of different

bodies to one another, with stabilizing practice and expectations across organizations,

and with responding to challenge, contest and uncertainty (Kay, 2006: 102).

Se a importância dos atores na análise das políticas públicas é refletida por um

largo espetro de abordagens, podendo ir desde uma dimensão normativa, de teoria de

escolha racional, a uma abordagem de caráter mais cognitivo que abrange as políticas

públicas com construção de uma relação com o mundo, produto de crenças coletivas dos

atores envolvidos (públicos e privados) face à forma como são colocados os problemas

públicos e são concebidas as respostas adaptadas a essa perceção dos problemas

(Bongrand e Laborier, 2005), impõe-se uma decisão metodológica compreensiva, que

não só construtivista ainda que incrustada na teoria e na prática.

Conforme referido, a análise dos circuitos de implementação, bem como das

profissionalidades, dos circuitos de produção, incorporação e apropriação técnica e da

aplicação e reprodução da política implica um plano de investigação exaustivo, com

recurso a várias técnicas e fontes de dados. Por sua vez, pressupõe a construção de um

modelo de análise extensivo e integrado, tal como o objeto de estudo, nomeadamente

um sistema de análise transacional que abranja os valores culturais, as crenças sociais,

as atitudes pessoais, os sistemas ecológicos, as instituições sociais e a tecnologia -

implicados na teoria, na ideologia e nos contextos das políticas, estratégias e práticas

das políticas (Hayden, 2006). Ainda, na senda de Dubois (1999) e da sua proposta de

utilização da política no guichet enquanto objeto de estudo da identidade e dos papéis

sociais, da regulação de tensões e da produção de consentimento de uso e transformação

das instituições, nomeadamente pelos profissionais e utilizadores do serviço no guichet,

importa sistematizar quadros de análise com trajetórias, posições sociais e lógicas de

dominação a partir de interpretações empíricas e teóricas a enquadrar nos processos de

interação social (Goffman) e da sociologia dos regimes de ação (Thévenot e Boltansky,

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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2006). Por sua vez, pode operacionalizar-se numa análise de ‘framing’/’analyse des

cadres, através da qual não se procuram propriamente representações mentais mas antes

procedimentos de organização, de experiência e de atividade indexadas sobre

gramáticas da vida pública e da ação coletiva (Cefait, 2001), mas também passível de

ser superada pela comunicação entre lógicas de ação distintas (Balsa, 2010).

Crê-se corroborar assim, ainda, a pertinência do objeto de análise numa reflexão

dinâmica de investigação-ação que possa contribuir para uma mudança de paradigma de

intervenção de social, em especial permitindo incidir na forma como os vários níveis se

articulam bem como aferir o impacto do papel das organizações e dos profissionais de

diferentes sectores, enquadramentos e níveis territoriais face aos diversos

posicionamentos dos públicos-alvo dos serviços.

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DESE�VOLVIME�TO ECO�ÔMICO, DESIGUALDADES E

I�JUSTIÇAS SOCIOESPACIAIS EM CAMPOS DOS

GOYTACAZES.

O papel das políticas públicas urbanas.

Teresa de Jesus Peixoto Faria

Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

[email protected]

Raquel Callegario Zacchi Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

[email protected]

Natália Guimarães Mothé

Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

[email protected]

Resumo

Campos dos Goytacazes, cidade média no norte do Estado do Rio de Janeiro, apresenta os mesmos

problemas sociais e urbanos das grandes metrópoles – segregação, fragmentação e desigualdades e

injustiças socioespaciais, cujo exemplo mais eloquente é a presença de favelas e de condomínios

residenciais fechados. Desde a perspectiva de instalação, no vizinho município de São João da Barra, do

Complexo Industrial e Portuário do Açu, trazendo uma nova promessa de desenvolvimento para a região,

a cidade vivencia um processo de expansão que se caracteriza pela ocupação de espaços periurbanos,

como a área da Estrada do Contorno. Desde os anos 1990, esta área vem recebendo a instalação de novos

empreendimentos públicos e privados, transformando seus usos e representações e reforçando o processo

de fragmentação espacial e social. Porém, a favela Margem da Linha permanece literalmente à margem

dos investimentos públicos e não usufrui dos benefícios aportados pelos empreendimentos privados.

Neste artigo, analisamos o desenvolvimento da cidade e a política urbana municipal, com relação ao

quadro descrito, observando as ações do poder público e sua vontade política, ou não, de dirimir ou de, ao

menos, reduzir as desigualdades e injustiças socioespaciais já existentes e as geradas por esses novos

investimentos.

Palavras-chave: Política Urbana, Complexo Portuário do Açu, Campos dos Goytacazes

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Introdução

O Município de Campos dos Goytacazes9 e região10 tiveram como principal

atividade econômica, desde o período colonial, a criação de gado e mais tarde a

monocultura da cana de açúcar e a transformação industrial desse produto (açúcar e

álcool). Atualmente, a economia da região está mais diversificada e além da indústria

sucro-alcooleira, existe a criação de gado, cultura do café, de frutas, pequenas

indústrias. Porém, a mais importante atividade é a produção de petróleo e gás, aportando

aos municípios que integram a ‘Bacia de Campos’ a qual produz mais de 80% do

petróleo do Brasil, altas rendas em royalties e participação especial. Os municípios de

Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Quissamã, Carapebús e Macaé,

concentram a maior parte destas rendas petrolíferas.

O perfil econômico da região está mudando, mais uma vez, com os grandes

investimentos que começaram a ser projetados e implantados, desde 2007, na região, os

(GPIs) Grandes Projetos de Investimento: i) plantio de eucaliptos da Aracruz celulose,

ii) produção de etanol, iii) o Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu, e iv)

complexo Barra do Furado (Cruz, 2009).

Esses grandes investimentos provocam intervenções, cujos impactos

econômicos, sociais, territoriais e ambientais, já começaram a se apresentar, porém a

amplitude e alcance de seus efeitos, sejam eles positivos ou negativos, são

incontroláveis e imprevisíveis.

Dos GPIs citados, vamos nos ater ao Complexo Logístico Industrial e Portuário

do Açu (CLIPA), ou Superporto do Açu ou apenas Porto do Açu, um empreendimento

logístico da empresa LLX Logística S.A., através de suas subsidiárias, LLX Porto do

Açu Ltda. (LLX Açu) e LLX Minas-Rio Logística Ltda. (LLX Minas Rio). Faz parte de

um projeto maior do grupo EBX, controlado pelo empresário Eike Batista.

Desde a perspectiva, anunciada em 2006, de sua instalação, no visinho

município de São João da Barra, o Porto do Açu transformou-se em uma promessa de

9 Situado no norte do Estado do Rio de Janeiro, possui, segundo os dados do Censo-IBGE de 2010, população total de 448.995 habitantes, sendo que 45.008 na zona rural e 418.725 habitantes na zona urbana. 10 Chamamos região de Campos dos Goytacazes, os atuais municípios vizinhos que, no período colonial, faziam parte da antiga Capitania de São Tomé, e que após um processo de desmembramento e de autonomia municipal, iniciado ainda no século XIX, hoje integram as regiões Norte e Noroeste fluminense, que até 1987, constituíam uma única região, a Região Norte Fluminense. Neste artigo tratamos particularmente dos Municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e Macaé situados na atual região Norte Fluminense que segundo Ribeiro (2010) possui em torno de 700.000 habitantes.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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desenvolvimento para a região, envolvendo grandes investimentos públicos e privados.

Ademais, as cidades estudadas recebem altas rendas petrolíferas (royalties e

participação especial), já que são grandes produtoras de petróleo, o qual, à época de sua

descoberta, igualmente representou e ainda representa um fator de desenvolvimento

para a região, cuja atividade sucroalcooleira estava em pleno declínio.

Neste artigo discutimos os primeiros impactos socioespaciais advindos das

intervenções e investimentos que vem sendo realizados na região, desde que esta passou

a receber altas receitas petrolíferas e o projeto para implantação do Complexo Portuário

do Açu. Também analisamos a política urbana da cidade de Campos dos Goytacazes,

observando as ações do poder público municipal, e sua vontade política, ou não, de

dirimir ou de, ao menos, reduzir as desigualdades e injustiças socioespaciais.

O estudo é o resultado de nossas observações e questionamentos a propósito da

expansão da cidade e dos processos socioespaciais que dela decorrem. Cujo exemplo

mais eloquente são as transformações recentes e rápidas que vem ocorrendo nas

adjacências da Estrada do Contorno (Avenida doutor Silvio Bastos Tavares). Esta área

situava-se em zona rural e “abandonada” por longo tempo, considerada periférica e

desvalorizada principalmente pela presença da favela Margem da Linha que ali se

encontra desde a década de 1960 (Póvoa, 2002; Pohlmann, 2008). Além disso, grande

parte da região é definida no Plano Diretor de 200811, como Zona de Expansão Urbana.

A pesquisa, que ainda está em curso, se desenvolve a partir da observação direta

no terreno de estudo, aplicação de questionários, entrevistas e também de pesquisa

histórico documental (planos e leis urbanísticas, os projetos das políticas públicas

urbanas e programas sócias), de leitura de trabalhos científicos, matérias de jornais, sites

na internet, referentes à problemática estudada.

Desde os anos 1990, essas áreas adjacentes à Estrada do Contorno vem

assistindo a instalação de novos empreendimentos públicos e privados que tem mudado

radicalmente seus usos, morfologia urbana e social, e representações. São

concessionárias de automóveis, hipermercado, hotel, shopping center, além de

condomínios residenciais fechados (verticais e horizontais) que reforçam o processo de

segregação e fragmentação espacial e social.

11 Plano Diretor democrático e participativo, conforme definido no estado da cidade...

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Paralelamente, observam-se medidas por parte do poder público através de

dotação de infraestrutura urbana e mudança de legislação, para atrair novos

investimentos.

Partimos do pressuposto que esses investimentos e intervenções foram

embalados pela promessa de desenvolvimento trazida primeiramente pela indústria

petrolífera e atualmente pela instalação do porto do Açu e que estão sendo alimentados

pelo mercado imobiliário com impulso e apoio do poder público.12

Porém, a favela Margem da Linha permanece literalmente à margem dos

investimentos públicos e não usufrui dos benefícios aportados pelos empreendimentos

privados. Essa iniquidade na distribuição dos recursos urbanos, onde só os grupos

privilegiados se beneficiam, reforçando as desigualdades socioespaciais pode ser

considerada como injusta.

Por outro lado, o governo municipal vem desenvolvendo ações passíveis de

resolver os problemas sociais e urbanos: os programas Morar Feliz (habitação popular)

e Bairro Legal (infraestrutura para bairros carentes).

Pensamos que a noção de justiça espacial pode ser um marco conceitual crítico

para pensar a cidade, e analisar a desigualdade entre os territórios, assim como o papel

Estado, seu discurso e ação, na redução ou amplificação das desigualdades

socioespaciais, contribuindo para a compreensão da problemática que motiva o presente

estudo.

Os estudos de Entrena (2003), Vale e Gerardi (2005), Souza (2007) e Spósito

(2010) embasaram as nossas reflexões e contribuíram para a nossa compreensão de

como se configura o processo de expansão urbana de Campos que como observamos,

ocorre sobre a zona rural adjacente à cidade.

As noções de empreendedorismo urbano (Harvey, 2005) e de cidade-mercadoria

(Vainer, 2009) serviram referência teórica orientando as nossas reflexões e respostas à

indagação se os investimentos tanto do poder público como da iniciativa privada são

motivados pela lógica da produtividade e da competitividade urbana.

Se seguirmos as reflexões de Vale e Gerardi (2005), podemos considerar que o

crescimento urbano de Campos dos Goytacazes se apresenta como difuso.

Considerando que o entorno da cidade é ainda ocupado por várias propriedades rurais,

12 A expansão urbana recente de Campos dos Goytacazes, a partir do processo de conversão de terras rurais em urbanas e mudanças de uso do solo promovida pelos proprietários fundiários com o apoio do Estado foi analisada por Zacchi (2012), através do estudo das terras da antiga Usina do Queimado e do PDUC de 1979.

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essa urbanização que se espraia avançando sobre as áreas que num passado recente

foram de uso agrícola, sem que haja vínculo dos novos habitantes com esse tipo de

atividade, pode tornar tênue a separação entre a cidade e o campo.

A faixa de transição entre cidade e campo, nas quais se misturam atividades

urbanas e agrícolas, que competem pelo uso do mesmo solo, é concebida pela maioria

dos autores que estudam os espaços periurbanos, como espaços plurifuncionais, que

estão submetidos a grandes e rápidas transformações, cujo dinamismo está, em grande

medida, marcado pela cidade (Estrena, 2003; Vale e Gerardi, 2005; Souza; 2007).

As terminologias para esses espaços de transição variam entre os pesquisadores.

Espaço periurbano é um termo mais utilizado pelos franceses e será a denominação

adotada neste trabalho. Todavia, existem outras denominações como: franja rural-

urbana ou “rurbana” (Freyre, 1968), sombra urbana, subúrbio, ex-urbano, região urbana

e semi-urbano (Vale e Gerardi, 2005). Periurbano será a designação adotada no presente

artigo.

Caldeira (2000) observa que concomitantemente à expansão e consolidação da

ocupação de áreas periféricas por populações pobres, a partir da década de 1980, ocorre

a intensificação de outros processos socioespaciais urbanos. De um lado, a consolidação

da ocupação do solo urbano das periferias pelos “enclaves fortificados”, os quais têm

como versão residencial os condomínios fechados e, de outro, a verticalização das áreas

centrais. Concluímos que essa é a atual configuração territorial predominante, nas mais

importantes cidades brasileiras cujos espaços se apresentam fragmentados, segregados e

marcados por profundas desigualdades socioespaciais.

Soja (2010) afirma que a diferenciação espacial gera uma discriminação

territorial, explicitando a oposição entre espaços privilegiados e espaços estigmatizados,

cujos efeitos, não podem ser explicados ou reduzidos apenas ao conceito de segregação.

A partir dessa constatação, Soja (2010) alerta que é crucial, tanto na teoria quanto na

prática, dar ênfase à espacialidade da justiça e das injustiças, não apenas na cidade, mas

em todas as escalas geográficas, da local a global. Para isso, propõe a adoção do termo

específico justiça espacial.

Justiça espacial se tornaria, então, um conceito e um princípio de ordenamento que

permite entender as situações reais (expressas no território) caracterizadas pela injustiça

social. O filósofo John Rawls apesar das críticas que sofreu é uma das principais

referências para os estudos teóricos sobre justiça social. Sobretudo no sentido de justiça

como equidade. Assim, concordamos com Gervais-Lambony, Dufaux e Musset (2010)

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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que propõem tratar o problema da justiça como conceito adaptado aos estudos que

analisam as desigualdades sociais no meio urbano.

Processo de urbanização de Campos: a construção do “centro” como o lugar

simbólica e materialmente privilegiado

O espaço urbano da cidade de Campos dos Goytacazes, embora se verifique a

existência do processo de fragmentação espacial, caracterizado pela presença nas áreas

periféricas de shopping centers, condomínios residenciais horizontais fechados, ainda é

fortemente marcado pelo modelo dual centro-periferia, onde as áreas centrais,

caracterizadas por um processo desenfreado de verticalização (concentração de

condomínios residenciais e comerciais verticais fechados), são dotadas de todos os

recursos e serviços urbanos, habitadas por uma classe privilegiada e qualificadas como

“nobres”.

Mesmo com a presença de condomínios horizontais de luxo, as áreas periféricas

são preponderantemente caracterizadas pela presença de favelas, loteamentos

irregulares, são carentes de recursos urbanos e habitadas, majoritariamente, pelas

classes pobres e, portanto estigmatizadas. Essa configuração é o resultado de uma

construção social e política ao longo da história. Desde a fundação da cidade, em fins do

século XVII, o seu núcleo original, ou seja, o lugar onde se localiza a Igreja Matriz, a

Casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho e a Praça Principal13 .

As sucessivas intervenções no espaço urbano, por parte do poder público,

sempre priorizando a área central e adjacências, construíram a sua posição e

representações de área privilegiada e hierarquizada com relação às outras áreas da

cidade (Faria, 1998).

A partir do século XIX, com a chegada do capitalismo urbano industrial e com a

implantação do projeto republicano de integração e de modernização do país, a partir de

reformas urbanas e sanitárias e de dotação de infraestrutura para operacionalizar o

funcionamento do complexo agro-exportador, Campos dos Goytacazes vai ser palco de

inúmeras intervenções urbanas. Assiste-se a instalação de meio de transporte

(companhias de navegação, canais de drenagem e navegação, estradas de ferro, em

1872, construção de pontes), instalação de luz elétrica (1883), de esgoto e água corrente

13 Como era chamada a atual Praça São Salvador até meados do século XIX.

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(1887), reformas do espaço urbano e renovação/modernização das construções

(demolições de prédios considerados “velhos” ou insalubres), alargamento e

pavimentação de ruas sugeridos no Plano de Brito “O saneamento de Campos”, (1902)

e realizadas, em parte, em 1916, na administração do médico Luiz Sobral, além das

inúmeras e sucessivas reformas na Praça São Salvador, chamada nos primórdios da

cidade de Praça Principal.

Paralelamente, inicia-se o processo de exclusão dos pobres das áreas centrais da

cidade, pois as práticas sanitaristas, ao caracterizar a população pobre e seu lugar de

moradia como responsáveis pela transmissão das doenças e pela insalubridade dos

centros urbanos, justificou-se a expulsão desta população perigosa das áreas centrais das

cidades. Estas deveriam, doravante, serem ocupadas pelas elites urbanas (políticos,

industriais, comerciantes, profissionais liberais e intelectuais) em ascensão. O único

caminho deixado para a população pobre foi o das periferias, sem infraestrutura.

O Plano Urbanístico concebido pela empresa Coimbra Bueno, em 1944, no

governo municipal de Salo Brand, que projetou e orientou a expansão da cidade,

consolidou a importância da área central e adjacências, e suas representações de área

privilegiada e hierarquizada definindo-a como o “centro histórico”.

Todas essas ações acabam por configurar e ratificar definitivamente essa área

central, ou seja o núcleo original, como o “centro da cidade”, ou seja, o espaço urbano

por excelência que concentra os serviços urbanos, os negócios, os equipamentos

culturais, gerando a criação das primeiras contradições no espaço urbano e a oposição

centro-periferia.

Nas primeiras décadas do século XX, as principais áreas privilegiadas eram o

centro e as ruas adjacentes, como rua do Ouvidor, rua Aquidaban, Alberto Torres, rua

Treze de Maio, rua Formosa, rua do Barão da Lagoa Dourada, Barão de Miracema. Nos

arrabaldes situavam-se as antigas chácaras – moradias privilegiadas, misto de habitação

rural e urbana.

Os primeiros bairros periféricos começam a surgir, após 1930, tais como Turfe

Clube, Saco e Matadouro, caracterizados por uma ocupação de classes pobres ou menos

abastadas. A área do antigo 6º Distrito de Guarús é um exemplo emblemático de área

periférica e estigmatizada. Separada da cidade pelo rio Paraíba do Sul, apesar da

primeira ponte buscando integrá-la à margem direita ter sido construída, em 1873, esta

só foi incluída no perímetro urbano em 1946.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Concomitantemente, as áreas contíguas ao centro vão se consolidando como

bairro das camadas mais alta renda, Alzira Vargas e seu entorno, Beneficência

Portuguesa e arredores e Alto do Liceu.

A partir da separação dos usos do solo urbano, também definida pelo Plano

Urbanístico de 1944, dotando algumas áreas da cidade com infra-estrutura e serviços,

aumenta ainda mais o processo de diferenciação dos espaços. As áreas beneficiadas

passam a ter mais valor, passando a serem ocupadas por indivíduos de mais alta renda.

O processo de expansão urbana em direção às áreas periféricas e periurbanas

Importa lembrar que a principal atividade econômica do Município de Campos

dos Goytacazes, fora, desde meados do século XVIII, a agroindústria canavieira. Essa

atividade teve seu auge entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX.

Porém na década de 1980 deu-se início a sua decadência. O município que contava com

mais de 20 usinas, hoje só possui duas em funcionamento, a Canabrava (2011)

produzindo etanol e a Coagro (Cooperativa de produtores de cana, criada em 2000).

Essa atividade econômica eminentemente agrícola configurou os espaços do

município da seguinte maneira: uma zona urbana, onde se instalaram a cidade (distrito

sede) as funções urbanas, circundada de uma zona rural dedicada, em sua maior parte, à

monocultura da cana de açúcar e instalação dos engenhos e usinas para a transformação

industrial desse produto.

Assim, sua expansão urbana ocorreu e ocorre sobre antigas chácaras localizadas

nos interstícios da zona urbana e a partir da ocupação de antigas propriedades rurais.

Essas áreas são expropriadas (por falta de pagamento de impostos, por exemplo) ou

liberadas e colocadas à disposição do mercado imobiliário aos poucos, segundo os

interesses dos proprietários fundiários (Zacchi, 2012).

Com a inserção de leis trabalhistas no campo (fim do regime de colonato) e

erradicação das plantações de café (municípios da região noroeste fluminense), houve

um grande movimento de migrantes destas áreas (principalmente em direção à Campos)

que passaram a ocupar as áreas periféricas ainda não urbanizadas ou de fato rejeitadas

para expansão da cidade por serem inundáveis (margens de rios, brejos e lagoas) ou por

se localizarem à beira de rodovias e ferrovias, constituindo as primeiras favelas e

loteamentos “ilegais” (Póvoa, 2002).

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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A partir da década de 1980, com o declínio do setor agrícola na região, terras de

cultivo de cana-de-açúcar tornam-se “ociosas” favorecendo a expansão urbana em

direção às antigas propriedades rurais localizadas mais próximas ao perímetro urbano

através do parcelamento do solo, na forma de loteamentos originando novos “bairros”14

ou de grandes empreendimentos imobiliários, entre eles os condomínios residenciais

horizontais fechados.

Desta forma, o sentido de periurbano adotado para analisar a estruturação da

expansão urbana de Campos dos Goytacazes sobre áreas rurais, refere-se a grandes

áreas não parceladas para fins urbanos, localizadas muito próximas à centralidade

urbana em termos de fluxos, equipamentos e serviços, com a presença de importantes

vias de acesso a elas. Estas áreas são classificadas, juridicamente, como rurais, ou seja,

nelas incide o tributo ITR (Imposto Territorial Rural), porém as mesmas têm servido

como espaço periurbano de “reserva” para o mercado fundiário e imobiliário local, na

qual tem se configurado um eixo valorizado de crescimento urbano de Campos (Zacchi,

2012).

Após 1960, a aceleração do processo de urbanização e industrialização, atraindo

para a cidade a população do campo, além de outros fatores econômicos e sociais que

precisam ser mais bem estudados, contribui com o surgimento das primeiras favelas.

Estas foram alternativas para a moradia para os indivíduos pobres. O descaso do poder

público com esse fenômeno fez crescer o número de ocupação irregular na cidade, às

margens das vias férreas e lagoas.

Por outro lado, este mesmo processo de urbanização favoreceu a expansão da

cidade em direção a novas áreas, antes menos privilegiadas, porém valorizadas pela

proximidade ao centro, pela dotação de infra-estrutura ou pela presença de algum

elemento de centralidade: Praça da Bandeira, Parque Tamandaré. Note-se que a cidade

dos ricos está bem delimitada/apartada pela Estrada de Ferro Leopoldina, Passeio

Público, e rua do Ouvidor e rio Paraíba do Sul. Tendo, na Lapa, seu bairro Operário.

Para além destes limites estão os bairros das camadas menos abastadas que vão se

consolidando na década de 1970. Além, disso, este é o período de maior investimento

na habitação nas áreas periféricas: Damas Hortis, Condomínio Guadalajara (“Pombal”),

Parque Nova Brasília.

14 É interessante notar que o processo ocorre através de loteamentos legais e ilegais, cujos nomes passam a ser identificados como bairros. Exemplo Parque Alphaville, Parque da Palmeiras, Jardim Flamboyant, Novo Joquei.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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A partir de 1980, assiste-se a consolidação do modelo de expansão urbana

orientada do centro em direção à periferia com tendência à fragmentação coadunando-se

com o modelo discutido por Caldeira (2000), o qual nós observamos ser ocorrente na

maioria das cidades brasileiras.

Porém, em Campos, este processo foi incentivado e abalizado pelo poder público

com a aprovação do PDUC (Plano de Desenvolvimento Físico-Territorial Urbano de

Campos)15, em 1979, na gestão do arquiteto e então prefeito de Campos, Raul David

Linhares Correa. O PDUC definiu, baseado no Plano de 1944, uma proposta de

racionalização da expansão urbana de Campos, normatizando e direcionando o

crescimento urbano de Campos dos Goytacazes (RJ).

O PDUC faz parte do Programa de Cidades de Porte Médio do Estado do Rio de

Janeiro, financiado pelo FNDU (Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano). Esses

programas se inserem no processo de “modernização tecnocrática” difundida pelos

diversos setores do regime militar, após o Golpe de 1964, baseada na elaboração de

planos urbanísticos e diretrizes técnicas para regular as condutas na ocupação do espaço

das cidades brasileiras.

Campos começa a passar, assim, por um processo de verticalização das áreas

centrais, mais valorizadas (Pirovani e Faria, 2011), e a construção de condomínios

horizontais em áreas periféricas (Carvalho, 2003; Zacchi 2012) próximas aos bairros

comumente habitados por camadas populares, dando um outro caráter à segregação

existente e iniciando a fragmentação socioespacial – com a proximidade espacial entre

ricos e pobres e aprofundamento, entretanto, a distância social (Carvalho, 2003).

Paralelamente, vemos que a lógica do mercado imobiliário e das intervenções

urbanas favorece a manutenção de grandes vazios urbanos a favor da especulação, como

galpões, glebas, áreas industriais desativadas nas áreas mais periféricas. Na área central,

estes vazios têm aumentado em consequência de um processo contínuo de demolição de

antigos casarios, afetando prédios de interesse histórico.

Após o ano 2000, esse processo de verticalização das áreas centrais e de

construção de condomínios horizontais fechados nas áreas periféricas se acentuou. Ao

mesmo tempo, o processo de favelização se intensifica demonstrado pelo aumento do

número de habitantes em favelas (Pessanha, 2004)

15 O PDUC se materializou em quatro principais anteprojetos de leis: Lei dos Perímetros Urbanos, Lei de Zoneamento e Uso do Solo, Lei de Parcelamento do Solo e o Código de Obras, além da própria Lei que institui o PDUC. Estas, ao serem aprovadas, conferem ao Executivo Municipal orientação técnica e respaldo legal ao exercício do poder de “polícia urbanística” (PDUC, 1979: 02).

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O Plano Diretor de 2008, Democrático e Participativo, cujo objetivo era de

construir uma cidade para todos, se por um lado definiu algumas áreas de interesse de

preservação ambiental, Cultural e Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), ampliou o

perímetro urbano, definindo áreas prioritárias de expansão urbana e flexibilizou as leis

de zoneamento e uso do solo, favorecendo determinadas áreas para receber altos

investimentos, em detrimento de outras. O que pode provocar o aprofundamento do

processo de segregação no modelo centro periferia e de fragmentação, ampliando as

desigualdades e injustiças socioespaciais.

A promessa de desenvolvimento e a ocupação das áreas adjacentes a estrada do

Contorno (Avenida Dr. Silvio Bastos Tavares)

A descoberta e exploração de petróleo na região – o ouro negro – trouxeram

promessa de desenvolvimento e emprego, atraindo um grande número de migrantes,

principalmente em Macaé, onde todo o parque industrial e administrativo foi instalado,

certamente pela sua condição histórica de ter sido o porto natural da região (a enseada

de Imbitiba). Macaé se transforma no novo “el dourado”, deixando Campos à margem

do processo de industrialização, porém se apresenta como importante fornecedora e de

mão de obra especializada e adquire posição fundamental por abrigar funções

comerciais e de serviços.

Em Macaé, o que se observa é que a maioria dos funcionários da Petrobras e das

outras empresas ligadas às atividades petrolíferas, vem de exterior e de outras regiões, já

que os serviços exigem, preferencialmente, mão de obra qualificada, não beneficiando

os macaenses ou aqueles que se instalaram na cidade atraídos pela promessa de

emprego e desenvolvimento Isso agrava a situação urbana e social: um processo

acelerado de urbanização acompanhado de degradação do meio ambiente e conflitos

sociais (Tougeiro e Faria 2011).

Com a construção do Porto do Açu, na cidade de São da Barra, anunciada em

2006, vemos repetir o mesmo discurso de desenvolvimento e processo ocorrido em

Macaé. A maioria dos funcionários do porto vem do exterior ou de outras regiões do

Brasil (mesmo para as atividades menos qualificadas). Ademais, as obras para a

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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instalação do porto tem provocado degradação do meio ambiente e sérios problemas e

conflitos socioespaciais que ainda não foram completamente estudados16.

Porém, desta vez, a cidade de Campos, por diversos fatores favoráveis, tem se

beneficiado mais diretamente: pela proximidade com São João da Barra, por ser, até o

momento, o único acesso para o referido porto, por possuir, ao contrário da pequena

cidade de São João da Barra, toda infraestrutura urbana e de serviços de educação

básica e superior, de cultura, lazer, de habitação, de comércio.

Com os altos valores de royalties e participação especial recebidos do petróleo17,

esperava-se uma melhor e justa distribuição dos recursos urbanos. Porém os estudos de

Terra (2007) demonstraram que os grupos favorecidos são os de alto status econômico e

as áreas beneficiadas pelos investimentos continuam sendo as áreas centrais, que

historicamente sempre foram o principal alvo das reformas urbanas realizadas em

Campos.

Por outro lado, com a instalação do porto do Açu, há um processo de expansão

em direção às áreas periféricas e periurbanas, ainda desprovidas de recursos urbanos,

portanto baratas e “propícias” à implantação de novos tipos de empreendimentos

imobiliários residenciais e comerciais.

Os empreendimentos residenciais são os condomínios horizontais fechados, que

após serem dotados de todos os serviços urbanos exclusivos pelo setor privado, além de

segurança, lazer, tornam-se caros apenas acessíveis às camadas de alta renda.

Os empreendimentos comerciais são os hiper-mercados, concessionárias de

grandes marcas de veículos, sobretudo importados, hotéis pertencentes a grandes redes

internacionais, shopping center, que também já são construídos com toda infraestrutura

de que necessitam. O acesso e infraestrura básica são garantidos pelos investimentos

públicos.

16 Essas questões são sempre abordadas pelos jornais da cidade como por exemplo Folha da Manhã de (23/02/2013, p. 09), além de Blogs de jornalistas e pesquisadores reconhecidos. Os problemas ambientais foram detectados através de pesquisas do Laboratório de Ciências Ambientais da Universidade Estadual do Norte Fluminense e divulgadas também pela imprensa local (Folha da Manhã 23/02/2013, p. 09) 17 O jornal Folha da Manhã (14/02/2013, p. 09) informa que Campos recebeu R$ 188 milhões em participação especial da Agência Nacional do Petróleo (ANP), referente ao quarto semestre de 2012; informa também que em janeiro de 2013 recebeu R$ 53.978.175,38 de royalties, somando 242.700.269,20 de recursos do petróleo em 2013. Segundo informou o secretário de Governo, Suledil Bernardino de Freitas em entrevista em 13/03/2013, sobre a discussão a redistribuição dos royalties, Campos recebe, entre participação especial e royalties, uma média de R$ 100 milhões/mês. http://www.ururau.com.br/cidades28766_Secret%C3%A1rio-de-Governo-lista-perdas-de-Campos-sem-os-royalties consulta em 15/03/2013.

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Caracterização da Área de Estudo: áreas adjacentes à Estrada do Contorno

(Avenida Sílvio Bastos Tavares)

Até recentemente, a área adjacente à Estrada do Contorno (Avenida Sílvio

Bastos Tavares), antiga área rural, era caracterizada como espacialmente distante do

centro da cidade, periférica, tendo ausência de instalações urbanas básicas. A qual,

segundo as discussões aqui apresentadas, pode ser identificada como periurbana.

Na década de 1960, ocorreu a instalação de pessoas nas margens da linha

ferroviária da RFFSA Campos-Rio de Janeiro, devido à proximidade com os locais de

trabalho: a Usina do Queimado e Usina Cupim (Pohlmann, 2008) 18.

Atualmente, a área em tela vem recebendo a instalação de empreendimentos e

serviços voltados para diferentes grupos sociais nos quais não incluem a população da

favela Margem da Linha. Os novos empreendimentos recentemente construídos são

apontados por Mothé (2011): Terminal Rodoviário Shopping Estrada (1995),

Condomínio Vertical Recanto das Palmeiras (1995), Condomínio Horizontal Sonho

Dourado (2000), Concessionárias Honda (2005), Condomínio horizontal Nashville

(2007), Hipermercado Super Bom (2007), Condomínio horizontal Athenas Residence

Park (2008), Walmart (2008), Loja de venda ao atacado Atacadão Saara (2008), Makro

(2008); Condomínio Horizontal Fechado da Torre (2009), INTER TV Planície (2009), e

Fiat (2010), o empreendimento mobiliário Fit Vivai (Condomínio Residencial Vertical);

Boulevard Shopping Campos (2011)19.

Definida no atual Plano Diretor (2008) predominantemente como uma Zona de

Expansão Urbana, buscou-se delimitar a área a ser estudada, se baseando na linha

imaginária que demarca o Limite do Perímetro Urbano da Cidade de Campos dos

Goytacazes20, através da Lei nº. 7.973, de 10 de dezembro de 2007, que delimita os

Perímetros Urbanos da cidade.

18 Além dos dados de Pohlmann, durante as saídas de campo, vários moradores relataram o mesmo motivo que levou ao surgimento da Favela Margem da Linha. 19 Desde abril de 2010, o Jornal O Globo fazia menção ao novo empreendimento que seria instalado na cidade de Campos dos Goytacazes (Shopping Boulevard Campos - pertencente ao grupo Alliansce, uma das maiores redes de shoppings centers e empreendimentos do Brasil). Sua inauguração foi realizada no dia 26 de abril de 2011. 20 Esta delimitação se inicia no encontro do Canal Campos – Macaé com o Canal de Tócos. Segue uma linha reta até encontrar a BR-101 num ponto que dista 1600m Sudoeste do ponto de encontro desta Rodovia com o eixo da Avenida Sílvio Bastos Tavares (estrada do contorno). Segue uma linha reta até o encontro com a paralela do traçado alternativo projetado da BR 101. Deflexiona a direita, seguindo uma linha reta até o encontro com a paralela da Linha Férrea que acompanha no mesmo sentido a BR 101 e, deflexiona em sentido sudoeste em direção ao ponto inicial.

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É importante notar que inicialmente os empreendimentos construídos no local

abrangiam classes mais diversificadas, proporcionando a heterogeneidade dos espaços e

a possibilidade de troca de experiências. No entanto, nos últimos cinco anos, este

ambiente, que ainda era multifacetado, tem se transformado. Percebe-se que os novos

empreendimentos que estão sendo instalados no local, buscam um público mais

segmentado, com características homogêneas e que buscam o status social.

Os exemplos são os condomínios fechados horizontais (Sonho Dourado,

Condomínio Fechado da Torre, Nashville e Athenas Residence Park), em que a entrada

é restrita, tendo o visitante que se identificar na guarita e aguardar para a permissão de

entrada no local. Já no condomínio vertical Recanto das Palmeiras, não há impedimento

dos vigias ao acesso do visitante.

Exemplos concretos desta segmentação de mercado no local é a instalação de

dois empreendimentos ligados a grandes corporações do país que são: o Fit Vivai e o

Boulevard Shopping Campos. O primeiro foi incorporado pela construtora TENDA

S/A, em outubro de 200821 , e o segundo, pertencente ao grupo Aliansce Shopping

Center. Como é possível notar no site do shopping22, a área em que o empreendimento

está instalado é apresentada como de expansão urbana. Nota-se também, que será

integrado ao shopping o renomado hotel Tulip Inn. Esses dados comprovam ainda mais

a segmentação de mercado em que está sujeito o local.

Além do Tulip Inn, outro hotel também será instalado na área de estudo, o

Supreme. Este hotel/apart-hotel possui bandeira internacional, e será construído na

Estrada do Contorno, ao lado do condomínio vertical Recanto das Palmeiras. 23.

Como pode ser observado, os dois empreendimentos acima citados, representam

mais uma ação das grandes empresas em áreas que mostram potencial mercadológico.

Na área que era vista no passado como apenas periférica, agora se encontram instalados

os empreendimentos privados mais importantes neste momento para a cidade de

Campos dos Goytacazes.

Vale ressaltar, que a maioria desses empreendimentos se localiza nas

proximidades da favela Margem da Linha (alguns são praticamente vizinhos). No

entanto, não se nota nenhuma referência à presença da favela nas reportagens, ou

21 Dados retirados de propagandas impressas do empreendimento. 22 Página do site impressa em Anexos. 23 Reportagem no site Folha On Line do jornal Folha da Manhã, http://fmanha.com.br. Consulta 12/08/2011.

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alguma obra que venha favorecer a população já instalada no local, o que demonstra a

inexistência de interesse em integrar a população mais carente já instalada no local.

Além disso, a população da Margem da Linha não oferece “risco” aos moradores

e comerciantes recentemente instalados no local. Segundo moradores e comerciantes

estabelecidos na região, a população da favela em não oferece “ameaça alguma, até por

que o tráfico de drogas não é tão representativo no local”. Assim, para as pessoas que

vivem ou possuem serviços na área, a favela é “bem tranqüila, justamente por seus

moradores não circularem constantemente pelos empreendimentos”24.

A partir do que foi apresentado até o momento, é possível levantar a discussão

de estar surgindo sintomas de determinados fenômenos nesta área o “emuralhamento da

vida social” e, logo, o crescimento de “ilhas utópicas” conforme definidos por Paulo

César da Costa Gomes, em seu livro A Condição Urbana (2006). Essas “ilhas”

representam uma parte do universo urbano; o que é necessário e o que é de bom grado

aos olhos de seus moradores; mas a realidade externa, o contraste social, e a

problemática urbana, não se encontra presente nesses espaços exclusivos.

Enquanto isso, observamos a ausência na favela dos novos programas urbanos

implementados pela Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes: o programa

habitacional “Morar Feliz”25 e o programa de urbanização “Bairro Legal”26.

A população da Margem da Linha ainda não foi assistida por nenhum dos

referidos programas, ao passo que a vizinha localidade Tapera foi contemplada com dois

conjuntos habitacionais do Morar Feliz e o núcleo urbano Ururaí pelo “Bairro Legal”.

Esses programas não têm resolvido completamente os problemas sociais e

urbanos porém favorecem a urbanização difusa e fragmentada e aquecem o setores de

construção civil.

O Bairro Legal apresenta-se como um programa interessante, pois se propõe a

redistribuir e estender os recursos urbanos aos bairros periféricos e carentes dos serviços

24 Essas expressões foram usadas pelos próprios comerciantes durante as investigações realizadas nas saídas de campo. 25 Este programa foi lançado no final de 2010 pela prefeita Rosinha Garotinho e tem como principal objetivo garantir moradia digna para a população pobre e periférica da cidade de Campos dos Goytacazes, com promessa de serem construídas 10.000 casas populares. Segundo a Secretaria de Obras e Urbanismo, foram entregues 5.100 casas na primeira etapa. Reeleita para o quadriênio 2013-2016, a prefeita já anunciou a construção das casas restantes. 26 É um programa que tem por objetivo promover melhorias na infraestrutura e na acessibilidade. Os bairros recebem sistema de drenagem e coleta de esgoto sanitário (construção de nova base e sub-base de tratamento), nova iluminação, construção de passeios públicos e tratamento paisagístico. As obras visam conter os alagamentos das áreas e garantir saneamento básico e a retificação e pavimentação de todas as ruas do bairro.

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de infraestrutura: saneamento básico, iluminação e pavimentação das vias de circulação.

Porém existem problemas como lentidão e qualidade das obras que apresentam

problemas na pavimentação, vazamento de esgotos e de água, gerando conflitos da

população com o poder público.

O Morar Feliz provoca muitas vezes a remoção forçada dos habitantes de certos

assentamentos com a justificativa de estarem em área de rico. Além disso, os conjunto

habitacionais são localizados em áreas periféricas e periurbanas com infraestrutura

precária, longe de amenidades ambientais, dos serviços e principalmente do emprego,

não rompendo com a configuração dual centro-periferia e consolidando a segregação e

fragmentação socioespacial.

O Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu: AXU versus Açu

Essa situação privilegiada – altos valores de royalties27 e instalação do GPI

Complexo Logístico e Portuário do Açu, ou “Superporto do Açu” ou simplesmente

Porto do Açu, que é anunciado como “o maior empreendimento do interior do Estado

do Rio de Janeiro” – aportando promessa de desenvolvimento – aguçou o interesse da

municipalidade de Campos em auferir benefícios com a instalação do Superporto.

Durante as obras para sua instalação, haverá possibilidades de oferta de serviços de

engenharia e construção pesada, além de máquinas e equipamentos variados. Ainda

nesta fase de construção, o contingente de trabalhadores demandará instalação de

comércio e serviços no entorno do empreendimento e na cidade (Ribeiro, 2011b).

Evidentemente, a demanda por moradia também aumentará, incrementando a

construção civil, o mercado imobiliário e o setor hoteleiro.

Porém, o empreendimento se situa no visinho município de São João da Barra,

mais precisamente no 5º distrito, na localidade de Barra do Açu que deu nome ao

complexo logístico e industrial. O município de São João da Barra foi fundado, em

1676 quando o povoado foi elevado à categoria de vila. Mais tarde, em 1814, foi criado

o município de Macaé (antiga aldeia indígena). A cidade de São João da Barra foi criada

com o objetivo de ser o porto da região (navegação de cabotagem) e juntamente com

Campos, também criada, em1676, e com Macaé formavam uma importante tríade na

27 Campos recebeu no início de fevereiro de 2013 R$ 188 milhões em participação especial da Agência Nacional do Petróleo (ANP), referente ao quarto semestre de 2012. Macaé recebeu ontem da ANP, R$ 14.384.364,60 de Participação Especial; Quissamã, R$ 4.117.389,18; e São João da Barra, R$ 33.366.490,67. Estes municípios são também integrantes da Bacia de Campos.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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distribuição de produtos da região para o Rio de Janeiro de onde seguiam para o

exterior, evidentemente, controlados por Portugal (Faria: 1998: 158).

Atualmente o Município de São João da Barra possui 32.767 habitantes28 e se

prepara para receber o futuro prometido pelo Porto do Açu: aprovou Plano de Diretor

(Lei Municipal Nº. 50/2006) e atualmente discute sua atualização, realiza obras de

infraestrutura na cidade e nos distritos29. A vila Barra do Açu, ou apenas Açu, onde o

porto está sendo instalado, é um dos núcleos urbanos do 5º distrito, localizada no litoral,

vive da pesca e de veraneio. Foi construída uma via asfaltada de acesso ao porto, a partir

da BR 316. Porém o acesso à vila permanece sem pavimentação. A mesma não sofreu

nenhum grande investimento direto advindo do empreendimento. Mas por ser o núcleo

urbano mais próximo, poderá sofrer adensamento, pois ficará limitada em seus espaços,

na pequena faixa de terra que lhe sobrou para ocupar entre o mar e três lagoas, a do

Salgado, a do Açu e a Lagoa do Veiga.

O Distrito Industrial do Complexo tem área prevista de 90 km² “maior que a ilha

de Manhattan”, segundo apresentação no próprio site da LLX. O Projeto do porto prevê

também um corredor logístico, um novo núcleo urbano a “Cidade X”, na localidade de

Cajueiro.

Os inúmeros empreendimentos realizados tanto no Município de São João da

Barra como de Campos são motivados pelas rendas petrolíferas e pela instalação do

Complexo do Porto do Açu. Porém os problemas também são inúmeros, sobretudo para

São João da Barra.

As atividades recém chegadas e impostas à população do 5º Distrito de São João

da Barra apresentam um teor tecnológico e de inovação incompatível com as atividades

desenvolvidas localmente, o que pode ser um impedimento para a inserção e

participação da comunidade. Sem contar com o impacto sobre a história, a memória nas

práticas culturais e sociais locais e regionais.

Os problemas ambientais que, evidentemente, tem rebatimento na realidade

social e nas atividades econômicas de base, já começaram a se manifestar: salinização

da água na região do 5º Distrito e risco de desertificação.

Os conflitos sociais provocados principalmente pela remoção forçada dos

pequenos proprietários para instalação do distrito Industrial, violando tanto o art. 6º da

28 Dados do censo do IBGE de 2010. A população urbana é de 25.715 habitantes e a rural é de 7.052 habitantes. O município possui 455,04 km². 29 Folha da Manhã 17/02/2013, p.1 do caderno “Folha Região”.

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Constituição – que prevê o direito à moradia, que ora é negado pelos processos de

desapropriação em curso – como a Constituição do estado do Rio de Janeiro, com

destaque para o seu artigo 265. Por outro lado há um processo de construção e

participação dos movimentos sociais de resistência, frente aos problemas causados pela

implantação do Porto do Açu, congregando diversas entidades estudantis, profissionais,

religiosas e sindicatos ligados às lutas dos trabalhadores como também pesquisadores

das Instituições de Ensino Superior da região (Conceição e Quinto Jr., 2012).

A competitividade entre os municípios de Campos e São João da Barra se

manifesta nas formas de indução dos governos de investimentos privados decorrentes da

instalação do porto do Açu. A questão dos limites entre os dois municípios é um caso

sui generis: há um pedido da parte da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes

em análise no IBGE sobre estes limites. A Alerj (Assembléia Legislativa do Rio de

Janeiro) já tratou deste tema, mas sem os investimentos do Açu, a matéria vem sendo

adiada, mas, tudo leva a crer que o assunto possa voltar à baila de uma forma muito

mais forte num futuro não muito distante.

Considerações finais

Os grandes empreendimentos e investimentos como o Superporto do Açu

provocam efeitos múltiplos sobre a organização do território em diversas escalas. É

dessa forma que assistimos, por exemplo, a construção de novas vias de circulação, a

exemplo do corredor logístico mudando a configuração do espaço regional, e a

implantação dos empreendimentos imobiliários em Campos dos Goytacazes.

As formas de planificação do território impostas por esse processo de

desenvolvimento de novas atividades econômicas e industriais geralmente produzem

uma expansão e urbanização caracterizadas por fenômenos notadamente marcados por

desigualdades socioespaciais que podem ser consideradas como injustas.

A gestão do território diante do porte desta nova organização que está sendo

induzida pelo empreendimento do Açu é complexa e exige, principalmente uma ação

integrada, pois envolve vários municípios e o próprio Estado do Rio de Janeiro,

impondo assim uma governança que tenha o diálogo, a interlocução permanente e a

participação da sociedade, sobretudo das comunidades diretamente afetadas, como

instrumento planejamento e de (re)formulação de políticas públicas e sociais que visem

a abolição ou pelo menos a redução das injustiças socioespaciais.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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DIFUSÃO I�TER�ACIO�AL E MODELAGEM DE POLÍTICAS

PÚBLICAS PARA REDUÇÃO DA POBREZA:

reflexões sobre políticas sociais brasileiras30

Samira Kauchakje

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

[email protected]

Resumo

A relação entre as políticas públicas sociais para redução da pobreza e as prescrições de organizações

internacionais como ONU, FMI e Banco Mundial sobre o tema podem explicar as semelhanças de tais

políticas públicas em países que têm diversidades econômicas e culturais significativas. Quer dizer, a

formulação dessas políticas pode estar articulada a fatores do ambiente político e econômico doméstico,

mas, também, ao incentivo institucional e padrão cultural internacional, conforme discussão da literatura

sobre modelagem internacional e as Theories of Policy Diffusion. Este artigo objetiva apresentar

resultados da pesquisa em andamento que investiga políticas sociais para a redução da pobreza dos

governos Cardoso, Lula e Dilma sob a perspectiva destas correntes teóricas. A metodologia está na fase

exploratória e da organização quantitativa dos dados selecionados em sítios do Banco Mundial, do FMI e

da ONU. Na discussão relaciono os dados aos momentos marcantes do sistema de proteção social

brasileiro entre os anos 1995 a 2012. Os resultados sugerem que nos governo Cardoso, Lula e Dilma

predominou a denominada modelagem “positiva” (isomorfismo) tanto pela aderência das políticas

nacionais às diretivas internacionais sobre focalização na população de baixa renda, quanto pelo fato das

políticas brasileiras de transferência monetária serem recentemente consideradas modelo pela

comunidade política internacional. No segundo governo Lula e no governo Dilma há, por um lado, a

modelagem negativa (isto é, políticas que tendo como referência as noções difundidas são formatadas de

modo oposto) identificada na articulação entre políticas de crescimento econômico e o aumento ou a

manutenção dos valores dos gastos públicos sociais. Isto contraria recomendações das instituições

financeiras internacionais que prescrevem austeridade com redução da política pública social. Por outro

lado, permanece a modelagem positiva devido à centralidade que os governos vêm atribuindo às políticas

que priorizam pessoas de baixa renda combinando-as com uma fragilização de políticas universais, ao

invés do fortalecimento da articulação entre priorização e universalidade.

Palavras-chave: política pública social, pobreza, difusão de políticas.

30 Esta pesquisa é financiada pelo CNPq. Uma versão preliminar deste artigo foi publicada nos anais do VIII Congresso da ABCP- 2012.

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I. Introdução

As relações entre as políticas públicas sociais voltadas para a redução da pobreza

e as indicações sobre o tema divulgadas por organizações internacionais como ONU,

FMI e Banco Mundial, por exemplo, podem explicar as semelhanças de tais políticas

públicas que se espalham por países, mesmo entre aqueles que têm diversidades

econômicas e culturais. Poderia haver adesão de governantes e pessoal do Estado a um

padrão cultural e institucional difundido entre blocos de países e, também, pelo

incentivo de organizações internacionais como as Nações Unidas, Banco Mundial e

FMI, entre outras. Quer dizer, as modificações e na política social se devem a fatores do

ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo das instituições e

ao padrão cultural internacional, conforme discutido pela perspectiva teórica para

análise de políticas públicas denominada de modelagem internacional (Skocpol &

Amenta, 1986), assim como, pelas Theories of Policy Diffusion (Weyland, 2004; 2005).

A literatura recente sobre modelagem e também sobre transplante de políticas

públicas cita como referência a atuação recente de entidades internacionais como o FMI

e o Banco Mundial,

principalmente através do que ficou conhecido por Consenso de Washington. De acordo

com a orientação de tais entidades, países em busca de crescimento econômico e

(posteriormente) da redução das desigualdades deveriam reformar suas políticas

macroeconômicas e suas instituições segundo um modelo padrão usado em países

desenvolvidos (Pessali, 2010: 3).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representa uma inflexão no campo dos

direitos e políticas sociais, sendo que os governos Cardoso, Lula e Dilma formularam

expressivas políticas públicas para redução da pobreza como, por exemplo, Bolsa

Escola no caso do primeiro e Bolsa Família para os governos petistas31. Estas políticas

públicas se diferenciam das promovidas pelos governos Sarney, Collor e Itamar porque

para estes a política de redução da pobreza estava subordinada a políticas e reformas

econômicas, enquanto que nos governos escolhidos, a despeito das diferenças entre

Cardoso e os subsequentes, a redução da pobreza passa a ser uma política social de

caráter redistributivista e articulada com a política econômica. Dados de institutos

31 O Programa Bolsa Família é parte de políticas “guarda-chuva” abrangentes como Fome Zero e, também, Brasil sem Miséria.

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oficiais como IPEA32 e de artigos de Fagnani (2011) e Neri (2011) apontam o impacto

positivo destas políticas sobre a redução da desigualdade e, especialmente, da pobreza.

Estou de acordo com a concepção de impacto positivo ao se levar em consideração a

série histórica, particularmente entre os anos 1960 e 2000, que imprimiu a posição

brasileira entre os países mais desiguais do mundo e com um número grande de

população com baixa renda (aspectos que nos anos 2000 melhoraram, mas, não se

reverteu). Posição esta que não estava calcada no tamanho da economia brasileira, mas

sim, em fatores ligados ao predatório padrão de apropriação da riqueza social e de

usufruto privilegiado dos recursos e serviços públicos por parte da elite econômica

brasileira com a anuência do Estado pautado pela ausência ou frágil política social

redistributivista e pela política econômica e fiscal sem palpáveis critérios de justiça

social entendida como promotora de condições de acesso à população, de forma

universal, à riqueza cultural e material da sociedade.

Parto da observação que as políticas de redução da pobreza no Brasil tanto

absorveram quanto geraram concepções difundidas na comunidade internacional. Tal

incorporação de concepções sobre pobreza, cobertura e fontes de financiamento ocorre

seja por uma imposição vertical das Instituições Financeiras internacionais, seja devido

ao contágio horizontal entre países e especialistas governamentais (Weyland, 2004,

2005).

O objetivo deste artigo é apresentar resultados preliminares da pesquisa sobre

políticas públicas sociais para a redução da pobreza dos governos Cardoso, Lula e

Dilma, sob a perspectiva das Theories of Policy Diffusion e da modelagem

internacional, ou seja, apresentar a primeira rodada da revisão da bibliografia e da

exploração de dados quantitativos. A hipótese é que as correntes teóricas em foco

contribuem para compreender estas políticas públicas.

O texto está dividido em dois itens principais: o primeiro aborda a revisão da

bibliografia até o momento e o segundo apresenta o teste preliminar de conhecimento

dos documentos acessíveis nos sites das organizações internacionais selecionadas -

Nações Unidas, Banco Mundial e FMI e a discussão destes resultados.

32 Dados sobre o impacto positivo das políticas sociais podem ser encontrados no documento “A década inclusiva” disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicado0155.pdf

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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II – Políticas Públicas e Modelagem Institucional Internacional

O conjunto da política pública social nos séculos XIX e XX, juntamente com o

keynesianismo, foi responsável pela construção da ordem social que configura um

padrão intervencionista do Estado capitalista na proteção social. Estudos como de

Rezende (2008) e Draibe (2003) demonstram que as modificações neste padrão, após os

anos 1980 até início de 2000, significaram menos declínio e mais adaptação. Rezende

(2008: 36) ratifica que “os Estados continuam a exibir fortes padrões de intervenção nas

políticas sociais.” Inclusive para o caso do Brasil, os “gastos sociais representam grande

porção dos gastos governamentais, e [...] observa-se expressiva expansão das políticas

sociais”. Draibe (2003) afirmou serem raros os casos em que as mudanças provocaram

mudanças exteriores aos próprios modelos de Estado de Bem Estar Social aos quais se

referia Esping-Andersen (1991) – liberal, conservador e socialdemocrata – e que podem

ser agrupados em bismarckiano e beveridgeano, Hammoud (2008) concorda ao

constatar que em cada país modificações ocorreram de acordo com os constrangimentos

institucionais próprios a cada modelo historicamente vigente.

Estas constatações estão em sintonia com a linha analítica institucionalista –

como discutido em Perissinoto (2004); March, Olsen (2008) e Souza (2006) –, assim

como com o incrementalismo que salientam a noção de path dependency, isto é, a

importância da trajetória histórica e arranjos institucionais no âmbito da política pública

para a delimitação das possibilidades no presente e encaminhamentos futuros de

alteração a partir do contexto da chamada crise econômica e dos programas de

austeridades propostos nos anos recentes.

Para o caso brasileiro, o padrão institucional configurado como conservador-

meritocrático sofreu uma inflexão significativa. Neste modelo conservador há a

vinculação entre emprego e o acesso aos benefícios, sendo que a premissa é “que as

pessoas devem estar em condições de resolver suas próprias necessidades, com base em

seu trabalho (...). A política social intervém apenas parcialmente, completando e

corrigindo as ações alocativas do mercado...” (DRAIBE, 1993b: 7). As alterações no

padrão ocorreram sob dois direcionamentos em tensão: o da CF88 com princípios

redistributivista, universalista e de prestações sociais público-estatais (Draibe, 1993a,

Arretche, 2000) e o dos princípios liberais voltados para diminuir a carga de

financiamento e de provisão social do Estado, assim como, estabelecer critérios seja de

priorizações (seletividade), seja de focalização nos grupos empobrecidos ou em

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miserabilidade (Figueiredo, Limongi, 1995; Fagnani, 2005). Esta trajetória incide sobre

a atual formatação do sistema público da política social, incluindo as políticas e

programas de combate à pobreza dos anos 2000.

2.1 Correntes teóricas explicativas sobre política pública social

As correntes teóricas que explicam a emergência, desenvolvimento e mudanças

da política pública de corte social foram sumarizadas por Skocpol e Amenta (1986) e

Arretche (1995). Com base nestes textos pode-se organizar quatro matrizes teóricas,

com respectivas vertentes, como se segue:

A primeira é a corrente de caráter econômico que enfatiza o processo de

industrialização ou explica o advento de um sistema de política social como dependente

do desenvolvimento do capitalismo. A vertente estrutural-funcionalista destaca a

transição do agrarismo para o industrialismo – o crescimento econômico-industrial e

mudanças especialmente demográficas decorrentes – como causa primordial que explica

o desenvolvimento do welfare state. Entretanto, a forma de sua expansão e modificações

subsequentes, em cada sociedade particular, tem como um dos fatores a cultura política

referente à relação entre necessidades sociais construídas e modos públicos mais ou

menos amplos para seu atendimento. A vertente neomarxista teoriza sobre a política

social como uma variável dependente do desenvolvimento interior do capitalismo, isto

é, a transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista. A política

social seria funcional à necessidade de reprodução social, seja nos aspectos da

acumulação, legitimação e manutenção de estabilidade social, seja no da participação da

constituição da classe trabalhadora e de suas formas de consumo.

A segunda corrente explicativa é de caráter político-institucional e focaliza as

instituições democráticas ou a ampliação de direitos. O foco nos direitos aborda os

efeitos do acréscimo do componente social da cidadania às dimensões civil e política

sobre os padrões de desigualdade econômica. O foco nas instituições democráticas, leva

em conta que, por um lado, a distribuição de recursos e resultados é afetada pelos

governos e, por outro, a política social dos estados de bem-estar têm efeitos

redistributivos. Esta abordagem produz vertentes explicativas que irão: a) relacionar as

instituições e procedimentos formais da democracia (especialmente participação

eleitoral, eleições competitivas) ao crescimento de política social, em seus vários

setores; b) destacar o impacto do sistema partidário e a competição entre partidos

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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políticos; c) entender que as demandas e protestos populares influenciam a formulação

de políticas sociais; d) partilhar com os neomarxistas a visão de que a questão de classe

é o eixo fundamental de poder e da política nas democracias capitalistas

industrializadas, com rebatimento na formulação das políticas públicas entre elas a

social.

A terceira é de caráter institucional e histórico centrado no Estado. A política

pública social é moldada pela estrutura organizacional e capacidade dos estados e pelos

efeitos políticos de políticas já estabelecidas. Uma de suas subcorrentes não interpreta

os estados como meros mecanismos administrativos ou arenas instrumentalizadas por

grupos interessados na formatação das políticas, ao contrário, esta subcorrente considera

os estados como atores e estruturas. A atenção recai sobre a sequência histórica de

construção das estruturas institucionais dos estados, a qual afeta a formulação da

política social e, com isso, exerce impacto sobre os partidos políticos, a formação de

classe e a cultura política. Outra subcorrente analisa as consequências políticas das

políticas já instituídas, destacando que as causas que originam políticas públicas não são

necessariamente as mesmas causas de seu subsequente desenvolvimento, em parte,

porque as próprias políticas públicas afetam políticas. 33 Políticas públicas são produtos

históricos de ações e decisões passadas, sendo que as instituições, uma vez formadas,

adquirem um desenvolvimento e movimento praticamente autônomos.

A última corrente é a do contexto transnacional. O modo com que a economia, o

contexto geopolítico e a cultura internacional se desenvolveram contribuiu para moldar

políticas sociais nacionais tanto antes, durante como depois do século XX. Nesta

corrente, a análise esta agrupada entre teóricos que a) inserem a política social no

âmbito das estratégias de governo ligadas à economia mundial; b) relacionam a política

social com a geopolítica e entendem sua formulação como um dos recursos mobilizados

no ambiente de competição internacional e; c) observam que um padrão de políticas

sociais se espalhou em países com diferentes níveis de desenvolvimento, em especial

depois de 1920 e a partir das primeiras implantações na Europa e na Américas.

A pesquisa busca operacionalizar a última subcorrente denominada de

modelagem institucional internacional, para a qual as políticas sociais são explicadas 33 “As new research is designed, scholars should presume that the causes of policy origins are not necessarily the same as the causes of the subsequent development of policies, in part because policies themselves transform politics. Researchers should likewise be sensitive to precise time periods on national and world scales and attuned to processes unfolding over time. Analysts of states and social policies must, in short, become unequivocally historical in their orientation” (Skocpol & Amenta, 1986: 152).

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pela adesão de governantes e pessoal do Estado a um padrão cultural e de características

institucionais e, também, pelo incentivo de organizações intergovernamentais. As

modificações e adaptações na política pública social, portanto, estão relacionadas a

fatores do ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo das

instituições e ao padrão internacional.

Considero que este último ponto ainda não foi explorado suficientemente nos

estudos sobre política social. Por exemplo, Hammoud (2008) não aprofunda esta linha

analítica ao tratar dos determinantes domésticos das mudanças no modelo do welfare

state em estados europeus, mesmo ao levar em conta tanto as pressões da União

Europeia – UE – para a convergência de políticas, quanto às preferências dos atores

políticos nacionais. Mauriel (2009: 60) não adensa esta perspectiva teórica ao inserir as

reformas da proteção social no Brasil num concerto internacional favorável “ao

crescimento e reforço dos mecanismos de mercado”. O mesmo ocorre em Ugá (2004)

ao tratar da construção da categoria pobreza como parte e expressão de uma ordem

social, política e cultural internacional. Por isso, considero relevante explorar algumas

estratégias para estabelecer relações entre concepções da corrente da modelagem

internacional e a política relativa à pobreza no Brasil.

Para este artigo as estratégias metodológicas foram: buscar documentos sobre o

tema disponíveis nos sítios do Banco Mundial, do FMI e da ONU e; discutir os dados

quantitativos em relação aos momentos apontados pela literatura como marcantes para o

sistema de proteção social brasileiro no período de 1995 a 2012.

III – Pesquisa Documental: Primeiros Resultados

A busca de documentos nos sítios das organizações internacionais selecionadas34

utilizou as palavras-chave poor, poverty e social policy. Foram computados apenas os

textos sobre o Brasil, América ou aqueles de referência mundial, totalizando 598

documentos (tabela 1) 35

34 Estes resultados da busca em sítios das OIs restringem-se a um primeiro teste para observar seu potencial para a construção de dados. Posteriormente haverá o refinamento metodológico e a busca intencional de documentos aludidos como relevantes pela literatura e análise de conteúdo. 35 Busca nos sítios do Banco Mundial, ONU, FMI e UE realizada por Juliane Kelm, Daiana Ximendes, Adriele Cordeiro, Gabriele Cristine e Bernadette Borges, inscritas no PIBIC – PUCPR.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Tabela 1. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de

organizações internacionais

Ano O�U Banco Mundial FMI Total

nº % nº % nº % nº %

1995 9 1,69 2 7,14 1 2,63 13 2,01

1996 18 3,38 0 0,00 0 0,00 18 3,01

1997 13 2,44 0 0,00 0 0,00 13 2,17

1998 11 2,07 4 14,29 2 5,26 18 2,84

1999 11 2,07 6 21,43 0 0,00 17 2,84

2000 12 2,26 1 3,57 2 5,26 15 2,51

2001 23 4,32 4 14,29 9 23,68 36 6,02

2002 29 5,45 1 3,57 7 18,42 40 6,19

2003 19 3,57 3 10,71 2 5,26 24 4,01

2004 46 8,65 6 21,43 4 10,53 56 9,36

2005 54 10,15 0 0,00 3 7,89 60 9,53

2006 52 9,77 0 0,00 3 7,89 56 9,20

2007 39 7,33 0 0,00 1 2,63 42 6,69

2008 31 5,83 0 0,00 2 5,26 35 5,52

2009 31 5,83 0 0,00 1 2,63 33 5,35

2010 62 11,65 0 0,00 0 0,00 67 10,37

2011 60 11,28 0 0,00 1 2,63 61 10,20

2012 12 2,26 1 3,57 0 0,00 13 2,17

Total 538 100,00 36 100,00 43 100,00 637 100,00

A partir de 1988 a ONU produziu a grande maioria dos documentos encontrados

e nos anos 2000 a distância entre esta organização e as demais aumentou (tabela 1). De

forma geral, é expressivo o aumento do número dos documentos a partir do início do

novo século (tabela 2)36.

36 É preciso considerar que a busca foi em documentos digitalizados em sites, sendo que é possível, em parte, atribuir o aumento crescente do número de documento devido à difusão do uso de computadores e internet a partir da segunda metade dos anos 1900

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Tabela 2. Documentos sobre pobreza e política social, entre os períodos 1995 -2000 e 2001-2012,

encontrados nos sítios de organizações internacionais

Ano O�U Banco Mundial FMI Total

�º % �º % �º % �º %

1995 a 2000 74 13,91 13 46,43 5 13,16 92 15,38

2001 a 2012 458 86,09 15 53,57 33 86,84 506 84,62

Total 532 100,00 28 100,00 38 100,00 598 100,00

Cabe lembrar que nas últimas décadas do século XX, especialmente entre os

anos 1980 e 90, a perspectiva neoliberal orientou reformas de programas sociais em

países com governos de diferentes orientações ideológicas e com diversas trajetórias de

política social e de Estado de bem estar. A data da maioria dos documentos encontrados

coincide com o “revival” da onda neoliberalizante ou seu novo fôlego advindo da crise

no sistema financeiro dos anos 2000 e agravada a partir de 2006 nos EUA e em grande

parte da Europa. Porém, o padrão das Instituições Financeiras Internacionais (IFI) é

diferente da ONU, pois, enquanto para está o maior número de documentos sobre o

tema concentra-se entre 2006-2012, para as IFI a maioria significativa dos documentos

encontrados estão entre os anos 1995-2005, isto é no final da primeira onda neoliberal e

início da crise do sistema financeiro assumida por estas organizações como crise do

Estado em termos da sua capacidade de implementação de políticas do sistema de

proteção social de cada país (tabela 3).

Tabela 3. Documentos sobre pobreza e política social, entre os anos 1995-2005 e 2006-2012,

encontrados nos sítios de organizações internacionais

Ano O�U Banco Mundial FMI Total

nº % nº % nº % nº %

1995-2005 245 46,05 27 96,43 30 78,95 302 50,50

2006-2012 287 53,95 1 3,57 8 21,05 296 49,50

Total 532 100,00 28 100,00 38 100,00 598 100,00

Organizações internacionais têm sido difusores de valores e orientações no

sentido da reformatação da oferta pública de bens e serviços sociais com a substituição

de “políticas keynesianas do pós-guerra por políticas restritivas de gastos” (Souza,

2007: 65). A influência e o impacto do sistema internacional sobre as políticas sociais

nacionais se efetivam “mediante processos de difusão e aprendizagem institucional” e,

também, “mediante impulsos, incentivos ou vetos”. Não raro, trata-se de uma

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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“articulação assimétrica da agenda internacional e políticas públicas nacionais” (Draibe,

2007: 36). Em atenção a estas determinações alguns países, entre eles o Brasil,

condicionaram a implementação de políticas públicas ao “cumprimento do ajuste fiscal

e do equilíbrio orçamentário entre receita e despesa, restringindo, de certa forma, a

intervenção do Estado na economia”, priorizando a focalização (Souza, 2007: 65) e

concebendo arranjos legais para parcerias com as organizações da sociedade civil37

(Bresser-Pereira, 2004). As principais justificativas para orientações de austeridade e

“redução do Estado” são a excessiva centralização e burocratização do Estado (e sua

incompetência na gestão social ou incapacidade de atender as novas demandas

socioeconômicas) e a crise financeiro-fiscal. Porém, outra interpretação pode ser dada

ao desequilíbrio entre receitas e despesas. Isto é, o que se designa como crise ou

falência do Estado providência “é, antes de tudo, o problema do grau de socialização

tolerável de certo número de bens e serviços.” Uma das razões desta deslegitimação do

Estado de bem estar por parte de grupos e organismos internacionais é, de ordem

cultural, ou seja, “a crise é de um modelo de desenvolvimento e crise de um sistema

dado de relações sociais” (Draibe & Henrique, 1988: 67).

Todavia, até início dos anos 2000, estudos demonstraram que as políticas

empreendidas neste sentido conseguiram enfatizar a priorização e focalização em

grupos sociais mais empobrecidos, reduzir universalidade, alterar normas

previdenciárias (Brooks, 2004) e reduzir o gasto social, mas, no geral, não lograram

desmantelar o padrão público protetivo previamente existente, ou seja, o modelo de

Estado de Bem Estar Social anteriormente firmado em cada país. No caso do Brasil, o

gasto social significou menos declínio e mais adaptação às áreas e grupos sociais

focalizados (Rezende, 2008; Draibe, 2003). Segundo Hammoud (2008: 30), dados da

União Europeia demonstraram que na primeira década dos anos 2000, embora tenham

ocorrido mudanças, as grandes tendências permaneceram as mesmas: “os países

nórdicos continuam com o Welfare State mais amplo e mais universal, os países do

continente com um Welfare State mediano, e a Inglaterra com os benefícios sociais mais

módicos e mais ligados ao mercado...”.

37

Organizações com os nomes genéricos de organizações não governamentais – ONGs – e organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs . Nestes arranjos estão incluídas as empresas com ações de responsabilidade social.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Uma vez que o contexto atual é diferente daquele presente na emergência dos

sistemas de política pública social 38, a compreensão desta solidez pode ser auxiliada por

noções como autonomia e path dependency39, ou seja, políticas públicas são produtos

históricos de ações e decisões passadas, sendo que as instituições, uma vez formadas,

adquirem um desenvolvimento e movimento praticamente autônomos40 (March, Olsen,

2008; Nascimento, 2009). Os condicionantes institucionais e históricos são observados

em certa rigidez e permanências nos sistemas de política social, mesmo após as últimas

três ou quatro décadas do movimento e das práticas neoliberais para alterar a direção

dos gastos sociais e minar o princípio da universalidade calcada na condição de

cidadania e não no do carecimento 41.

No final da primeira década do século XXI, entretanto, a crise econômica e

fiscal trouxe a oportunidade para que organizações internacionais recuperassem a

concepção de Estado mínimo e passassem a incentivar o aprofundamento e aceleração

de alterações no sistema público de proteção social que tendem a comprometer os

arranjos institucionais de Estado de bem estar que, no século XX, definiram a alargaram

direitos e a cidadania por meio de políticas públicas sociais (Lavalle, 2003). São

incentivos seletivos para implementação de políticas focalizadas em grupos sociais e

necessidades específicas dissociadas ou substitutivas de políticas universais pautadas na

generalidade da cidadania, quer dizer, sem a articulação ou a “mescla virtuosa entre

programas universais e programas focalizados” (Draibe, 2002: 8) que podem vir a

38 Na atualidade a economia funda-se em uma etapa tecnológica com diminuição ou desaparecimento de postos de trabalho e desemprego de longa duração, acarretando, por um lado, a redução da capacidade do conjunto dos trabalhadores para a contribuição no sistema público de oferta de bens e serviços sociais – contribuindo para a chamada crise fiscal do Estado. Além disso, a composição geopolítica internacional não gira mais em torno do confronto entre bloco capitalista e bloco socialista. Portanto, fatores que participaram das condições de emergência do sistema público de políticas sociais não estão mais presentes, conforme discutido por Castel (2001); Draibe (1989, 2002); Rosanvallon (1995); Arretche (2000) e Laville (2008). 39 “Path dependence não significa apenas que a história e o passado contam, mas sim que [...] quando um país (ou uma região) adota um determinado caminho, os custos de mudá-lo são muito altos. [...] Portanto, eventos anteriores influenciam os resultados e a trajetória de certas decisões, mas não levam necessariamente a movimentos na mesma direção que prevalecia no passado. O conceito de path dependence é importante exatamente porque pode haver uma reação ao path anterior, levando-o a outra direção” (Souza, 2003: 138). 40 Outras vertentes de análise relacionam a resiliência do Estado de bem estar a fatores societários e econômicos (tomando a política pública social como variável dependente), tais como as explicações que destacam a “necessidade” dos sistemas públicos de proteção social diante da crise econômica do período que gera o aprofundamento da questão social em países do capitalismo central e; a força de movimentos sociais contrários à desestruturação do provimento social público e de direitos trabalhistas (Anderson, 1995). 41 Os dados apresentados por Avelino, Brown e Hunter (2007: 235) para a América Latina, no período de 1980-1999, mostram reestruturação dos programas na área social, sendo que “os gastos sociais têm sido redirecionados”, havendo aumento nos gastos com educação e “o crescimento de programas mais focalizados”.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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conjugar a vantagem de garantias universais e a destinação adicional de recursos e

serviços para grupos específicos, tendo em vista a e diminuição da desigualdade social.

Ao contrário, no entendimento de organizações financeiras internacionais a focalização

representa um teto para os gastos sociais dos países do sul e, também, uma “moeda de

troca para a [...] reforma dos regimes de welfare state europeus – medida de austeridade

para fazer frente à crise fiscal” dos anos 2000 (Fagnani, 2011: 12).

No Brasil este foi o período da formatação e consolidação do atual sistema da

política pública social com base na Constituição Federal de 1988 – CF1988 e nas leis

regulamentadoras. Esta norma jurídica determinou a formatação de políticas sociais

orientadas pela solidariedade estatista, ou seja, estabelecimento dos direitos sociais entre

os fundamentais; a provisão pública e universal no âmbito da política pública social; e

formas de transferência monetária, entre outros pontos.

Conforme Fagnani (2011: 12), o processo de formatação do atual sistema

brasileiro da política pública social pode ser de ser dividido em três momentos. No

primeiro, que abrange o final do regime ditatorial e o processo constituinte, o país

caminhou “na contramão do mundo” e seguiu “a rota inversa do neoliberalismo.” Os

movimentos sociais e políticos incitaram a introdução de artigos sobre direitos e

políticas sociais na CF1988- com princípios de universalidade e competência do Estado

como já aludido. O caso brasileiro, portanto, traz uma peculiaridade: a CF1988

“institucionaliza a agenda de universalização e igualdade de acesso na década em que se

fortalecem, no cenário internacional, as estratégias de desmantelamento do Estado de

Bem-Estar Social.” (Franceze & Abrucio, 2009: 12).

No segundo momento, entre 1990 e 2005, é um período caracterizado pela

priorização de público-alvo de menor renda e, também, pela regulamentação da política

social brasileira. Este processo revela as pressões para diminuir o alcance das garantias

constitucionais mediante lei complementar e para a realocação dos gastos sociais42 e os

movimentos e políticas contrários a isto.

A tramitação de leis e emendas após a Constituição demandou “intensas

negociações dentro da coalizão governamental e com a oposição” (Melo, 2005: 860).

Nestas arenas estavam presentes grupos cujos valores políticos eram compatíveis com

os artigos da CF1988 e grupos cujos valores eram incompatíveis. Grosso modo, os

42 A partir dos anos 1980 e durante os anos 1990 Avelino, Brown e Hunter (2007: 235) observam no Brasil e outros países latino-americanos “mudanças em alocações de recursos para o setor social geradas pela integração econômica e a democratização”, sendo que o crescimento de programas sociais focalizados é um exemplo de como “os gastos sociais têm sido redirecionados consideravelmente”.

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primeiros viam na Constituição a materialização “das esperanças progressistas que

habitavam as mentes das lideranças e dos militantes políticos situados à esquerda do

espectro ideológico durante esse período” (Perissinotto, 2010: 13); e os segundos

tinham afinidade com o tradicional padrão conservador das políticas sociais ou

alinhavam-se com a perspectiva neoliberal empenhando-se em reformas neste sentido.

Nas negociações e embates travados, algumas das estratégias destes grupos

foram o adiamento da legislação complementar e interpretações restritivas ou de

aprofundamento dos artigos por ocasião da aprovação de leis para sua regulamentação

e, também, as emendas constitucionais 43.

Entre 1992 e janeiro de 2004 foram apresentadas 50 emendas à Constituição. 26

destas emendas tratam de questões institucionais, 22 de federalismo, 22 de controle

fiscal, 11 de política social/direitos sociais e, 11 de economia. Tais áreas organizadas

pelo autor não são excludentes, pois, uma emenda pode abranger mais de uma matéria.

Emendas constitucionais sobre políticas e direitos sociais compõem 22% do total, mas,

esta porcentagem aumenta se considerarmos dois dados: “42% das emendas

constitucionais aprovadas refere-se diretamente a aspectos do federalismo brasileiro” e

do “total de emendas pertinentes ao federalismo, mais da metade (53%) relaciona-se a

políticas e direitos sociais” (Melo, 2005: 860 - 862).

O número proporcionalmente grande das emendas em torno da política social

reflete tanto a sua constitucionalização quanto o programa de reforma na área que foi

empreendido, especialmente, nos anos 1990 e início de 2000. Quer dizer, uma vez que o

texto constitucional abrange questões da política específica, grande parte da reforma e

“iniciativas na política social e redução da pobreza” foi viabilizada via emendas

constitucionais44 (Melo, 2005: 867). Mas, apesar de emendas e regulamentações nem

43 Para as leis regulamentadoras destaco os seguintes exemplos: o artigo 203 (V) da CF88 - que trata da garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso sem meios de garantir o próprio sustento, nem tê-lo provido por sua família - foi regulamentado no artigo 20 da lei 8.742/1993. Para a elaboração da lei houve debate sobre se a falta de condições de garantir o sustento seria interpretada com base na renda familiar de um salário mínimo ou não. Venceu a interpretação mais restritiva que considera a renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo; o artigo 3º da CF88 – que trata da erradicação da pobreza – é referência para a lei nº 10.835/2004 instituindo a renda básica de cidadania que se constitui no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. O artigo 3º é, também, referência para a lei nº 10.836/2004 (Bolsa Família) que prevê transferência monetária para famílias que se encontrem em situação de extrema pobreza. A implementação de política governamental, até hoje, restringiu-se a esta segunda lei e a lei 10.835/2004 não foi, até hoje, regulamentada. 44 Um exemplo é a Emenda nº 31/2000 que criou o Fundo de Combate à pobreza aprovado depois de negociação sobre a origem dos recursos que o manteria. A Comissão estabelecida para este fim e o governo concordaram com a alternativa de aumentar a alíquota do imposto sobre as transações financeiras

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sempre alinhadas com o “tom” geral da CF1988, as grandes linhas constitucionais para

a política social promoveram um padrão legal de inspiração social – democrata.

O terceiro momento da formatação do atual sistema da política pública social

seria a partir de 2006 no qual, segundo Fagnani (2011: 13) as políticas sociais estão

articuladas a uma “estratégia macroeconômica, direcionada para o crescimento

econômico com distribuição de renda”.

Esta periodização permite estabelecer relações entre o número de documentos

das organizações internacionais e os momentos de formatação e consolidação do

sistema brasileiro da política pública social atual (SBPPS), momentos estes mais ou

menos coincidentes com períodos de governos (tabelas 4 e 5).

Tabela 4. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de

organizações internacionais, em relação aos governos e ao sistema brasileiro de política pública

social.

Anos Momentos do SBPPS Governos Doc. internacionais

nº %

1995-2005 2º momento (seletividade -menor renda -

e regulamentação da política social) FHC; Lula 302 50,50

2006-2012 3º momento (articulação entre

pol.combate à pobreza e pol. econômica) Lula, Dilma 296 49,50

Total 598 100,00

No 2º momento do SBPPS, especialmente nos governos Cardoso e início do

Lula, a política social está sendo regulamentada. Nestes anos são formuladas e

visibilizadas políticas com foco na pobreza e de transferência monetária no Brasil e

encontra-se metade (50,50%) dos documentos das organizações internacionais sobre o

tema. No 3º momento os documentos correspondem à praticamente metade dos

selecionados (apesar do conjunto de anos do período 2006-2012 ser menor que o 1995-

2005) (tabela 4).

(Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF). A Emenda Constitucional nº 29 “estipulou valores mínimos para os investimentos na área de saúde nos três níveis de governo”. A Emenda Constitucional nº 14, instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério - FUNDEF.” (MELO, 2005, p. 859, 866). O “produto final desse consenso foi o jogo constitucional em torno da vinculação de recursos para as áreas sociais da saúde e da redução da pobreza [...] O Congresso aceitou a instituição de novos impostos ou alíquotas para os impostos existentes em troca de mais recursos fiscais, inclusive para os setores sociais que passaram a absorver uma parcela cada vez mais expressiva do orçamento” (Melo, 2005: 867).

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Na literatura há um debate sobre a existência de semelhanças ou diferenças, e

em que medida, entre os governos FHC e Lula. Boito Jr. (2007) argumenta que

programas sociais focalizados na população de baixa renda dos governos FHC e Lula,

têm em comum ao fato de negligenciarem políticas sociais universais, o que, nos dois

períodos, incidiu sobre a capacidade e qualidade de atendimento dos serviços

previdenciários, de saúde e educação, por exemplo. Situação que impulsiona parte da

classe média baixa e as classes com rendimento superiores a buscarem tais bens no

mercado, fortalecendo, assim, os setores de prestação e venda de serviços.

Diniz (2007) entende que as diferenças entre os governos FHC e Lula estão

justamente no aspecto da fração do setor empresarial favorecida pelas políticas

governamentais. No período FHC, a Reforma do Estado rompeu com o corporativismo

aos moldes do período do nacional-desenvolvimentista e afrouxou a intervenção do

Estado nas áreas das políticas econômica e social, o que esteve alinhado a medidas de

favorecimento do setor empresarial ligado ao capital financeiro internacional. No

primeiro período do governo Lula, embora sejam mantidas a política macroeconômica e

a hegemonia do capital financeiro, há a implementação de políticas econômicas que

contemplam objetivos de desenvolvimento e o setor do empresariado vinculado ao

capital produtivo nacional.

Boito Jr. (2005: 54) considera, também, que nos dois governos a priorização de

políticas compensatórias por meio de programas de transferência monetária está

alinhada com o “discurso ideológico neoliberal que estigmatiza os direitos sociais como

privilégios.” Fagnani (2005: 551) situa especialmente no governo FHC este alinhamento

entre as políticas e programas sociais brasileiros e as diretrizes neoliberais de

instituições como FMI e BIRD45. No que tange ao governo FHC, Draibe (2003: 11)

diverge desta concepção. Para a autora, os programas de enfrentamento a pobreza

tinham potencial para “reduzir as chances da reprodução da desigualdade sob o manto

de programas universais”, pois, a alocação prioritária de recursos destinados a grupos

selecionados estaria vinculada e não substituiria políticas universais.

Neri (2007, 2011) e dados oficiais (IPEA (2012), como mencionado

anteriormente, constatam que políticas com critérios de seletividade e transferência

monetária, implementadas desde os governos FHC até os de Lula e Dilma, tiveram um

impacto positivo no sentido de redução da desigualdade de renda e diminuição da

45 FMI – Fundo Monetário Internacional, BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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pobreza. Entendo que é neste ponto que reside o aspecto de continuidade das políticas

pública de combate a pobreza dos governos FHC, Lula e Dilma, a despeito das posições

partidário-ideológicas destes governantes que têm rebatimentos e imprimem diferenças

de prioridades, opções orçamentárias e na formulação da política pública social em

geral.

Tabela 5. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de

organizações internacionais em relação aos momentos do sistema brasileiro de política pública

social e governos brasileiros

Anos Governos Momentos do SBPPS Doc. internacionais

nº %

1995-2002 FHC 2º momento (seletividade -menor renda e

legislação sobre política social) 165 27,59

2003-2010 Lula

2º momento seletividade -menor renda e

legislação da política social)

3º momento (articulação entre pol. redução da

pobreza e pol. econômica)

359 60,03

2011-2012 Dilma 3º momento (idem) 74 12,37

Total 598 100,00

Chama a atenção a possível relação nos anos dos governos Lula e Dilma dos

seguintes dados: concentração de mais de 70,0% dos documentos coletados das

instituições internacionais; agravamento da crise econômica mundial e o

recrudescimento das medidas e recomendações das IFI no sentido da austeridade

econômica com encolhimento do sistema universalista de proteção social e priorização

da destinação dos gastos e serviços sociais para os grupos empobrecidos; políticas

sociais brasileiras para redução da pobreza são consideradas modelos pelos organismos

internacionais e; são principalmente nestes anos que os dados sobre o impacto positivo

destas políticas implementadas no Brasil desde o início dos anos 2000 são divulgados

interna e internacionalmente (IPEA, 2012; Neri, 2007; Neri, 2011) (tabela 5).

Os dados do período 1995-2012 e a literatura sugerem ter havido uma adesão

dos governantes brasileiros e formuladores de políticas aos valores e arranjos

institucionais difundidos internacionalmente, assim como, que as políticas públicas

brasileiras participaram como condutoras da difusão e modelagem internacional de

políticas públicas para redução da pobreza.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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IV - Conclusão

A questão que norteou a discussão é se e de que modo as teorias da modelagem

e da difusão internacional de políticas poderiam contribuir para a compreensão das

políticas públicas sociais para redução da pobreza no Brasil a partir de 1995. Algumas

conclusões parciais podem indicar a resposta, como se segue.

A articulação entre as políticas públicas sociais brasileiras de combate à pobreza

e miséria, o aprendizado e difusão cultural e os incentivos institucionais internacionais

demonstram tanto uma modelagem “positiva” (isomorfismo) como, também, uma

modelagem “negativa” (baseada nas concepções difundidas, mas, numa direção

oposta). No governo Cardoso e primeiro governo Lula haveria maior grau de

incorporação e contágio de prescrições internacionais em comparação com o segundo

governo Lula e Dilma, nos quais as políticas brasileiras de transferência monetária são

difundidas e consideradas modelos exitosos a serem aprendidos.

A modelagem negativa é observada na elaboração da Constituição Federal que,

inversamente ao ambiente neoliberal internacional, consolidou a competência estatal e a

combinação da universalidade e seletividade da cobertura. O isomorfismo é identificado

nos governos Cardoso, Lula e Dilma tanto no sentido da aderência destes às diretivas

internacionais sobre priorização da população de baixa renda como, também, das

políticas brasileiras de transferência monetária serem consideradas modelo pela

comunidade política internacional. Nos últimos dois períodos de governos há

modelagem negativa, observada na articulação entre políticas de crescimento

econômico e gastos públicos sociais (contrariando recomendações de organismos

financeiros internacionais sobre austeridade com redução da política social) e, também,

modelagem positiva devido à centralidade da priorização de grupos sociais e risco de

redução da perspectiva universalista.

Portanto, há indícios na literatura especializada e nos dados explorados da

relação entre cultura e instituições no contexto transnacional e a política social brasileira

relativa à pobreza. Isto é, a hipótese que as correntes teóricas da modelagem e da

difusão internacional contribuem para compreender esta política pública pode vir a ser

confirmada no decorrer do desenvolvimento da pesquisa.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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EM �OME DA ORDEM:

política urbana e criminalização da pobreza na Cidade do Rio de Janeiro no limiar

do século XXI

Rosemere Maia

Universidade Federal do Rio de Janeiro / CNPq

[email protected]

Resumo

Constatamos, desde o início dos anos 90, que uma nova concepção de cidade e de planejamento urbano

vem se impondo, a cada de dia e de forma mais decisiva, em vários lugares do planeta. O Rio de Janeiro

talvez seja exemplar para o entendimento desta nova dinâmica, num contexto em que as cidades passaram

a se constituir em locais privilegiados de articulação de interesses econômicos, tecnológicos e políticos,

orientadas por uma visão estratégica em relação ao planejamento urbano. Neste sentido, são qualificadas

enquanto mercadorias a partir dos insumos que detêm e que são valorizados pelo capital especulativo

transnacional. Gestores e empreendedores vêm construindo e difundindo uma marca em torno da Cidade

do Rio de Janeiro que remete às suas belezas naturais, à cultura, ao lazer, aos esportes, aos grandes

eventos internacionais, sendo priorizadas como áreas de investimento em termos de políticas públicas

aquelas detentoras de maior visibilidade e capazes de atrair investidores nacionais e internacionais, bem

como um público “qualificado”, principalmente os turistas. Durante anos, a imagem do Rio de Janeiro foi

maculada pelo crescimento da pobreza e pelo avanço da criminalidade e, em nome do restabelecimento

da ordem e da segurança, vem se fortalecendo no contexto carioca o poder punitivo como modo de

administração dos efeitos das políticas neoliberais sobre os segmentos populares, onde usuários de crack,

população em situação de rua, ambulantes, “flanelinhas” tornam-se alvos preferenciais das investidas da

“política de tolerância zero” que grassa, com vários matizes, na Cidade e que tende a qualificar tais

segmentos como “classes perigosas”.

Palavras-chave: Cidade, Política Urbana, Pobreza

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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A título de introdução: Anos 90 – uma guinada no planejamento urbano

Vimos constatando, desde o início dos anos 90, que uma nova concepção de

cidade e de planejamento urbano impõe-se, a cada de dia e de forma mais decisiva, em

vários lugares do planeta. No que se refere à realidade brasileira, o Rio de Janeiro talvez

seja exemplar para o entendimento desta nova dinâmica, num contexto onde as cidades

passaram a se constituir em locais privilegiados de articulação de interesses econômicos

e tecnológicos, orientadas por uma visão estratégica em relação ao planejamento

urbano. Segundo Carvalho (2006, p. 6), evidencia-se, desde então, a conformação de

uma “nova geografia e uma arquitetura produtiva que tece redes e nós e qualifica e

desqualifica espaços em função de fluxos mundializados”, produzindo impactos “sobre

a morfologia territorial e social e sobre a organização e funcionamento dessas cidades,

sobre a qualidade de vida urbana, as desigualdades e as mobilizações políticas e

sociais”.

O que se persegue, nesse sentido, é a inserção de cada cidade no que se

convencionou chamar de mercado mundial de cidades e, para tanto, coloca-se como

fundamental o investimento em atividades vinculadas ao terciário avançado, assim

como a descoberta e/ou reforço de elementos que expressem a vocação de cada uma

delas, a sua marca, seu “diferencial” em relação às demais. (Maia, 2006: 63) A cidade,

nesse sentido, é qualificada enquanto mercadoria a partir dos insumos que detêm e que

são valorizados pelo capital transnacional, a exemplo do sugerido por Borja & Forn

(apud Vainer, 2002: 79). Tais insumos seriam, segundo os mesmos autores, todo um

conjunto de infraestruturas e serviços capazes de atrair “investidores, visitantes e

usuários solventes à cidade e que facilitem suas ‘exportações’ (de bens e serviços, de

seus profissionais, etc.) (Borja & Forn, apud Vainer, 2002: 80).

Gestores e empreendedores têm construído/reforçado e difundido uma marca em

torno da Cidade do Rio de Janeiro que remete às suas belezas naturais, à cultura, ao

lazer, aos esportes, aos grandes eventos internacionais – de caráter esportivo, ecológico

ou cultural. Para tanto, propõem, em parceria, políticas urbanas pautadas em

intervenções excludentes, segregacionistas, claramente comprometidas com as

demandas do capital, sem qualquer compromisso com aquelas colocadas legitimamente

pelos citadinos. Tanto é assim que as áreas priorizadas pelos referidos projetos são

aquelas detentoras de maior visibilidade e as que agregam equipamentos voltados para o

turismo, para a cultura e o lazer, sendo capazes de atrair investidores nacionais e

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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internacionais, bem como um público “qualificado”, principalmente os turistas. Diante

de intervenções como estas, a paisagem da Cidade demonstra, claramente, sua

adequação aos interesses dos grupos dominantes, conforme sugerido por Zukin46:

A paisagem é claramente uma ordem imposta ao ambiente – construído ou natural.

Portanto, ela é sempre socialmente construída: é edificada em torno das instituições

sociais dominantes (a igreja, o latifúndio, a fábrica, a franquia corporativa) e ordenada

pelo poder dessas instituições. […] Desse modo, a paisagem dá forma material a uma

assimetria entre o poder econômico e o cultural. Essa assimetria de poder modela o

sentido dual da paisagem (2000: 84).

Por outro lado, as iniciativas de renovação urbana que marcam a

contemporaneidade trazem subjacente o discurso de “recuperação da história”, do

patrimônio, pautando-se em elementos de ordem simbólica, e não material

exclusivamente. Investe-se, assim, em espaços capazes de se constituírem em centros

culturais e/ou de restabelecerem a vida a locais que, ao longo dos anos, passaram por

processos de deterioração/obsolescência, induzindo a um movimento de “volta à

cidade”, no sentido de requalificação/retorno à sua área central, em parte como

decorrência do reencontro glamouroso entre cultura (urbana ou não) e capital” (Arantes,

2002: 5).

O investimento na “imagem” das cidades também tem sido privilegiado pelos

governos locais, conferindo-lhes não só um caráter de mercadoria, mas, igualmente,

atribuindo um cunho empresarial às ações e programas que nelas desenvolvem. Com

isto, tiram partido da positividade da imagem construída, relacionando-a às suas

próprias ações e traduzindo-a em elementos como “respeitabilidade, qualidade,

prestígio, confiabilidade, inovação” (Harvey, 2001: 260). Assim, ainda segundo o

mesmo autor, a “competição no mercado da construção de imagens passa a ser um

aspecto vital da concorrência entre as empresas (...), [servindo] para estabelecer uma

identidade no mercado” (2001: 260).

46 Zukin, entretanto, considera possível a emergência de construções sociais que, ao contrário de denominadas paisagens, seriam tratadas como VERNACULARES, chanceladas pelos “sem poder”. (Zukin, 2000: 84). Reportando-se aos contra-usos passíveis de emergirem em espaços vernaculares, afirma Leite: as ‘táticas’, quando associadas à dimensão espacial do lugar, que as torna vernaculares, se constituem em um contra-uso capaz não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado como de possibilitar que o espaço que resulta das ‘estratégias’ se cinda, para dar origem a diferentes lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra-usos realizam (2004: 215, grifos do autor).

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Diante disso, a marca estabelece-se como o diferencial de uma cidade, sendo

constituída a partir daquilo que ela apresenta como sua vocação – o turismo, os

negócios, a cultura. Definem-se algumas especializações entre as cidades, ao mesmo

tempo em que são tecidas relações de complementaridade e, paradoxalmente, de

competição (Maia & Icasuriaga, 2012: 06) Em última instância, o que se pretende é

torná-las funcionais ao atual estágio do capitalismo, onde - da mesma maneira que se

evidencia na produção – também o planejamento urbano é marcado pela flexibilidade,

pela orientação pelo/para o mercado. Para Vainer,

O neourbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação

da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da

norma. Mas a flexibilidade não é senão um dos elementos do novo modelo. A

transposição de conceitos e métodos do planejamento estratégico empresarial, nascido

na Harvard Business School, conduziu rapidamente a que as cidades fossem, elas

também, pensadas como empresas, em competição umas com as outras. […] E, já que a

cidade é uma empresa, como tal deve ser conduzida. Por conseguinte, há de ser

entregue, sem hesitação e sem mediações, a quem entende de negócios: os empresários

capitalistas. As parcerias público-privadas são a nova senha também nas cidades (2011:

13).

O embrião dessa perspectiva “empresarial” e “mercadológica” se apresenta, no

início da década de 90, na cidade catalã de Barcelona (que foi eleita, em 86, para sediar

os Jogos Olímpicos de 1992). Segundo Sanchez, as publicações e documentos que

condensam as principais diretrizes do modelo de planejamento urbano levado a termo

naquela cidade apontam para “um grande comprometimento das agências de

cooperação e instituições multilaterais [como o FMI, a OMC, o Banco Mundial e a

ONU] com a difusão dos chamados “modelos” e seu ideário” (Sanchez, 2001: 32).

A velocidade de propagação do referido modelo de cidade, sobretudo em função

do protagonismo das agências multilaterais de cooperação, associado à influência dos

experts catalães, “permite-nos o entendimento das conexões entre o chamado

“pensamento global” e a ideologia neoliberal”. (Sanchez, 2001: 32). As cidades, ao

assumirem a qualidade de mercadorias, são tornadas fruto de uma estratégia global de

produção do espaço.

Sob essa nova concepção de planejamento, as intervenções urbanas e os

instrumentos elaborados para tal sustentam-se em propostas de “revitalização”,

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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“preservação”, “refuncionalização”, “competitividade”, “marketing urbano” – discursos

e práticas que camuflam e revelam tanto representações, quanto disputas materiais e

simbólicas para sua efetivação, demonstrando pouca atenção/preocupação em relação

aos desejos e demandas legítimos da maioria dos citadinos. Os projetos que se

apresentam – sobretudo aqueles voltados para as artes e a cultura, os esportes e o lazer –,

além de “mega”, possuem um fabuloso apelo simbólico e convocam a população a um

tipo de participação que poderíamos chamar de contemplativa ou, segundo Sanchez, a

um “patriotismo de cidade” (Sanchez, 2001).

Os meios midiáticos47, através da forma espetacular com que tratam o cotidiano

e o processo de produção/renovação do espaço urbano, assumem um papel fundamental

e estratégico no estímulo a essa forma de “participação”, sendo constantes as

campanhas que, de maneira clara ou subliminar, incitam a população a uma adesão às

políticas e aos projetos em curso na cidade, bem como difundem formas e usos

adequados de determinados equipamentos urbanos. Para Sanchez, a “política de

comunicação social, além de instrumento para a renovação urbana, visa a construir

uma ordem urbana sob a qual as formas de viver a cidade que não se adaptem à

cidade-pátria são interpretadas como “ingovernabilidade”, desordem.” (2001: 45).

Nesse novo momento das cidades, os projetos apresentados à população são, em

geral, justificados a partir do legado que deixarão para as cidades: “Em troca do

negócio, nos diz, vamos cuidar do meio ambiente, dos transportes, da questão social.

[…] O legado, já sabemos de antemão: a socialização dos custos e a privatização dos

benefícios. E cidades ainda mais desiguais e injustas” (Vainer, 2011: 14). Em resumo:

dívidas, desperdício de dinheiro público, dentre outros.

A legitimidade das propostas decorre, sobretudo, do recurso ao saber técnico

produzido por “experts”, que são recrutados nas mais distintas áreas de saber:

Publicitários, consultores em marketing, produtores culturais, conselheiros em

comunicação e pesquisadores de mercado são os agentes exemplares que emergem

47 Quando falamos de mídia, referimo-nos às empresas de comunicação de ampla difusão e alcance no território nacional e que reproduzem a ideologia hegemônica. Segundo Canclini, Uma descoberta que se confirma em diversas pesquisas dos últimos anos é que a imprensa, o rádio e a televisão contribuem para reproduzir, mais do que para alterar, a ordem social. Seus discursos têm uma função de mimese, de cumplicidade com as estruturas sócio-econômicas e com os lugares comuns da cultura política. Mesmo quando registram manifestações de protesto e testemunham a desigualdade, editam as vozes dissidentes ou excluídas de maneira a preservar o status quo. (2002: 50)

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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como figuras centrais associadas à gestão empresarial das cidades. Têm como missão

dar forma mercadológica aos projetos políticos das coalizões com interesses localizados

(Sanchez, 2001: 40).

Bem sabemos que a justificativa de determinadas políticas ou intervenções

urbanas a partir do acionamento de um saber técnico-científico não é novo na história da

Cidade. Já na virada do século XIX para o século XX e, principalmente, sob o governo

de Pereira Passos, entre 1902 e 1906 – quando o que se propagava era a necessária

adesão da Cidade a um projeto de modernidade (que podemos traduzir como sua

assunção definitiva de um caráter capitalista) – a associação entre política e saber

técnico-científico já era bastante comum. Segundo Rodrigues, naquele momento

ganham importância os laudos científicos e três instituições funcionam como respaldo

do progresso e avaliadoras do término das reformas: o Clube de Engenharia – que

movimenta a “elite técnica” e se assenta nas figuras de Paulo de Frontin e Francisco

Bicalho, além do apoio de Lauro Muller – institui as leis de desapropriação; a Saúde

Pública, por intermédio de Oswaldo Cruz, que define os critérios de civilidade e atua

como instrumento de controle da vida social, estabelecendo os padrões mínimos de

higiene e saneamento para a cidade e sua população; e a polícia, que cria as condições

de defesa dos padrões burgueses de educação e garante a renovação. Com uma nova

estrutura, amplia suas funções e ganha condições de cobrar as posturas municipais e

cuidar do despejo das áreas desapropriadas (2009: 111).

A intolerância frente à desordem – o receituário da “tolerância zero” se espalha…

Na contemporaneidade, práticas similares tornam-se cada vez mais frequentes,

sobretudo aquelas que, em nome do restabelecimento da ordem e da segurança,

contribuem para o fortalecimento do poder punitivo como modo de administração dos

efeitos das políticas neoliberais sobre os segmentos pobres das sociedades. Wacquant

(2001), embora desenvolva sua análise a partir da observação de sociedades ditas

avançadas, alega que, hoje, a maioria das intervenções urbanas não pode prescindir da

lei e da ordem. Neste sentido, a desregulação social seria compensada pela expansão do

Estado Penal, que pauta sua intervenção em intervenções sustentadas, prioritariamente,

na repressão à criminalidade e no combate à violência, sobretudo nos grandes centros

urbanos onde efeitos das políticas econômica e social em curso se apresentam de forma

mais evidente.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Da mesma maneira que o neoliberalismo teve seus ideólogos e o modelo de

planejamento estratégico das cidades foi gestado intelectualmente e difundido por

alguns de seus mentores, a dita “política de tolerância zero” – cuja experiência pioneira

foi levada a cabo por Rudolph Giuliani, prefeito de Nova Iorque entre 1994 e 2001 –

pautou-se em ideias de William Bratton, ex-chefe da polícia Nova Iorquina, além de

Charles Murray, James Q. Wilson e George Kelling. Segundo Wacquant (2001), foram

eles importantes autores de textos que traziam elementos que dariam suporte à referida

política. Em linhas gerais, o que preconizavam é que o mal deveria ser cortado pela raiz

e, neste sentido, mesmo os pequenos delitos, as incivilidades, tudo aquilo que

perturbasse a ordem pública e os direitos do “bom cidadão” precisaria ser reprimido. O

que sustentava tal pressuposto era a tão propalada “teoria da vidraça quebrada”,

formulada por James Wilson em 1982, segundo a qual “lutando passo a passo contra os

pequenos distúrbios cotidianos é que se faz recuar as grandes patologias criminais”

(Wacquant, 2001: 25).

Fato é que grande parte das ações repressivas que foram empreendidas em Nova

Iorque sob tal justificativa passaram a recair sobre a miséria. Ou seja, verificou-se,

progressivamente, a criminalização da pobreza com a montagem de um aparato

repressor policial a partir da liberação de “um cheque em branco para perseguir

agressivamente a pequena delinquência e reprimir os mendigos e os sem-teto nos

bairros deserdados” (Wacquant, 2001: 25); isto sem falar em outras medidas não

menos polêmicas e coercitivas, como a paulatina “mutação do welfare em workfare e a

instituição do trabalho assalariado forçado para as pessoas ‘dependentes’ das ajudas

do Estado” (Wacquant, 2001: 43), disseminando-se, assim, a ideia de que na “excessiva

generosidade” das políticas sociais estaria a origem da violência.

Todas as práticas adotadas em termos de segurança em Nova Iorque visavam o

atendimento a um objetivo principal:

refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da

perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações

ferroviárias, ônibus e metrô, etc.). Usam, para isso três meios: aumento em 10 vezes dos

efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades

operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um

sistema de radar informatizado com arquivo central sinalético e cartográfico consultável

em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição

contínua e a intervenção quase instantânea das forças de ordem, desembocando em uma

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a

mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças a ‘outros comportamentos

anti-sociais associados aos sem-teto’ (Wacquant, 2001: 26).

Para Bratton, chefe da polícia nova-iorquina de então, os inimigos a serem

combatidos eram, prioritariamente, aqueles que abordavam os motoristas nos sinais de

trânsito, os “pequenos passadores de drogas”, os vagabundos, os pichadores. Em suma,

todos os que não sabiam se comportar em público. Daí a necessidade de se restabelecer

à maioria dos citadinos a tão desejada “qualidade de vida” – traduzida na política de

“tolerância zero”. Assim, o uso de aparatos repressivos por parte do Estado coloca-se

como fundamental para fazer frente ao aumento da insegurança social, demonstrando

que uma “mudança em curso da assistência social para o tratamento penal da

marginalidade urbana” (Wacquant, 2011: 4).

As práticas levadas a termo em Nova Iorque sob o nome de Política de

Tolerância Zero – ou “Política de Qualidade de Vida” – acabaram por se globalizar,

alcançando rapidamente alguns países europeus e chegando também à América Latina.

No caso brasileiro, foi em Brasília, no governo de Joaquim Roriz, em 1999, que pela

primeira vez se falou em “tolerância zero”, num momento em que a cidade estava sendo

acometida por mais uma “onda” de crimes violentos. Entretanto, é no Rio de Janeiro

que, desde 2009 – já sob a gestão do Prefeito Eduardo Paes e em função,

principalmente, dos grandes eventos que a Cidade tem sediado e de outros que estão por

vir –, que os discursos da segurança e da ordem pública assumem centralidade. O

referido ano, inclusive, foi marcado pela vinda de Rudolph Giuliani à Cidade e pelos

elogios que fez às forças de segurança, durante encontro que teve com autoridades

representantes do Governo do Estado e da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Tal qual ocorrido em Nova Iorque, o que constatamos, desde então – o que

também não é inédito em nossa história -, é a realização, pela burguesia e por seus

representantes políticos, da “contenção da pobreza por meio da criminalização dos

pobres”, conforme nos diria Menegat (2008: 155). Segundo este mesmo autor,

Ao reduzir os conflitos a um problema penal, despolitizando-os, o Estado, como comitê

de organização do domínio do grande capital, seleciona os agentes sociais conforme a

sua irrelevância na reprodução das relações sociais, o que invariavelmente recai sobre as

opressões étnicas (negros, árabes, índios), o local de moradia (pobres da periferia) ou as

formas de atuação (movimentos sociais) (Menegat, 2008: 164).

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Rio de Janeiro: Cidade Maravilha, da DESORDEM e do caos – a adoção de

medidas repressivas para enfrentamento do caos urbano

Pobres, negros, favelados têm sido, neste sentido, os alvos preferenciais das

investidas dessa “política de tolerância zero” que grassa, com vários matizes, na Cidade

do Rio de Janeiro. Para tanto, governos estadual e municipal (e, quando “convocado”

também o federal), cada vez mais articulados, submetem as políticas sociais

(sobremaneira a de assistência social e a de habitação) à política de segurança pública.

Sendo esta última de competência estadual, não é a toa que, no âmbito municipal, ela

terá uma “versão adaptada” – qual seja, de “ordem pública” – organizada a partir da

SEOP, Secretaria Especial da Ordem Pública, não por acaso criada em 2009, já na

gestão do atual prefeito da Cidade. Tal Secretaria apresenta-se como “um órgão

regulador e fiscalizador da atividade econômica, das posturas municipais e

regulamentador do uso do espaço público”, tendo com missão “ordenar os espaços

públicos do Rio de Janeiro fazendo valer as legislações municipais e o Código de

Postura da cidade”48. Os resultados que busca, a partir das suas ações, são bastante

parecidos com aqueles postulados por Giuliani, durante sua gestão na prefeitura de

Nova Iorque:

� Avançar no restabelecimento da Ordem Pública em caráter permanente e

duradouro

� Contribuir para melhora da conservação dos espaços públicos

� Garantir o uso do espaço público de forma segura

� Pôr um fim à desordem urbana, combater os pequenos delitos nos principais

corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da qualidade de vida em

nossa cidade49.

Fica patente, a partir da leitura dos resultados perseguidos e das intervenções

realizadas, que enquanto a Medicina Social, com suas práticas higienistas, dava

sustentação às intervenções urbanas e aos recortes estabelecidos em termos de

prioridades às políticas públicas /sociais na virada do século XIX para o XX, em nome

da modernidade vislumbrada para a Cidade, na contemporaneidade é ele – o discurso da

48 http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=94564 . Consultado em 10/09/2012) 49 Tais resultados também se encontram expressos no site da SEOP: http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=94564 Acesso em 10/09/2012.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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lei e da ordem - quem traça os caminhos, inclusive em termos de política urbana, para a

Cidade do Rio de Janeiro do Século XXI.

Na gestão anterior – do Prefeito César Maia -, algumas das ações já haviam sido

esboçadas. Com sua visão mais “engenheira”, Maia esteve à frente da Prefeitura da

Cidade em meados dos anos 90 e voltou no início dos anos 2000 para cumprir mais dois

mandatos, onde realizou intervenções urbanas centradas em obras voltadas para o

embelezamento, principalmente da Zona Sul, a mais elitizada do Rio, além de “dedicar-

se” ao programa Favela-Bairro, provendo algumas favelas de equipamentos urbanísticos

“básicos”, como ruas e acesso aos morros. A “ordem urbana” também esteve dentre as

suas iniciativas: medidas de segurança, ordenação do comércio ambulante, com a

criação de “camelódromos”, definição de locais próprios para estacionamento, retirada

de população de rua, dentre outras.

O ano de 2009, contudo, foi um marco para a Cidade e Paes inaugurou um

momento singular em se tratando de Política Urbana e, mais que isso: de

“articulação/submissão” de outras políticas públicas/sociais a ela. Esse foi o ano em que

a Cidade do Rio de Janeiro – eleita Cidade Olímpica – deu passos mais largos em

direção à consolidação da reforma urbana em curso, fazendo com que os tão aguardados

investimentos públicos e privados começassem a se efetivar e dando “patriótica”

legitimidade às políticas urbanas em desenvolvimento (Maia & Icasuriaga, 2012: 9).

Desde então, a Cidade foi agraciada com alguns títulos como de “Melhor

Destino Gay do Mundo”, de “Patrimônio Cultural da Humanidade” – na categoria

“Paisagem Cultural”-, títulos estes que só ajudam a ratificar a imagem que já vem sendo

lapidada pelo prefeito no sentido de atrair um público consumidor cada vez mais

qualificado e diversificado para a Cidade. Além disso, também sediou uma série de

eventos de porte, sendo o último deles a Rio +20 - a Conferência das Nações Unidas

sobre Desenvolvimento Sustentável.

Entretanto, apesar de todos os “louros” recebidos pela Cidade na última década,

sua imagem ainda não conseguiu se desvencilhar totalmente da violência que, desde os

anos de 1980, com a escalada do tráfico de drogas, tanto a maculou. Não é a toa que

este primeiro mandato de Paes – que será sucedido por um segundo, já definido pelos

eleitores no processo eleitoral ocorrido em outubro de 2012 – tem sido marcado pelo

discurso da lei e da ordem. Ainda que não seja de sua competência o enfrentamento do

tráfico e das milícias (outro modalidade de criminalidade que se espraia pela cidade),

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Paes tem concentrado grande parte de seus “esforços” na tentativa de “organização do

espaço público” a partir da adoção de medidas repressivas, de cunho policialesco.

Embora seus alvos preferenciais sejam, como já mencionado anteriormente, as

“classes perigosas” – a população em situação de rua50, os ambulantes, os “flanelinhas”,

os usuários de crack (já vulgarmente qualificados de “cracudos”), algumas ações têm

sido dirigidas a outros segmentos: os motoristas que estacionam seus carros em locais

proibidos; os “mijões” (aqueles que urinam em locais públicos, ainda que a cidade não

disponha de banheiros químicos suficientes, sobretudo durante grandes eventos, como

carnaval ou outros grandes espetáculos). De alguma forma, é como se a ordem

precisasse se impor a todos. A única diferença é que, para os mais pobres, o ônus é

muito maior, já que pode significar cerceamento de direitos.

O “choque de ordem” – marca de seu governo, tem provocado uma série de

situações polêmicas, como a que se refere ao recolhimento dos usuários de drogas

ilícitas (inclusive crianças e adolescentes) e a seu encaminhamento para abrigos. Em

2011, por exemplo, muitas organizações da sociedade civil e entidades profissionais

(incluindo o CRESS – Conselho Regional de Serviço Social) manifestaram-se

totalmente contrários à medida adotada pela SMAS nesse sentido, sobretudo pelo fato

de que ela privilegia a repressão em detrimento da prevenção, negligenciando princípios

que, em se tratando de aplicação de medidas de proteção a crianças e adolescentes,

encontram-se tão claramente expressos no ECA: seu reconhecimento enquanto cidadãos

de direitos; a necessidade de proteção integral e prioritária dos direitos de que são

titulares; o respeito à intimidade e ao seu interesse superior; intervenção mínima das

autoridades e instituições; prevalência da família na promoção de seus direitos e na sua

proteção, dentre outros.

Em torno da internação compulsória de adultos dependentes de crack – projeto

que vem sendo defendido pelo prefeito Eduardo Paes e encampado pelo ministro da

Saúde, Alexandre Padilha – ainda não há consenso, tampouco amparo legal. Segundo

Promotores do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o recolhimento de

50 A atenção à População em Situação de Rua encontra-se prevista como uma das modalidades de atenção da Proteção Social Especial, compreendendo um conjunto de serviços/programas contemplados pelo SUAS. O Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua visa prover condições de acolhida na rede de serviços da Política de Assistência Social e de inserção nas demais políticas, realizando ações de reinserção familiar e/ou comunitária e contribuindo para a construção de novos projetos de vida, respeitando as escolhas dos usuários [...] e para restaurar e preservar a integridade e a autonomia da população em situação de rua” (Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, p. 30).

http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/cras/documentos/Tipificacao%20Nacional%20de%20Servicos%20Socioassistenciais.pdf Acesso em 18/08/2012

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

Página 119 de 155

maiores de idade usuários de drogas, feito pela prefeitura do Rio, é inconstitucional,

conforme descrito abaixo:

Para o MP, as medidas de remoção compulsória de adultos atualmente não têm

fundamento legal, e o município reconheceu isso quando assinou um termo de

ajustamento de conduta (TAC), em maio de 2012. Os promotores ressaltam que só é

possível privar de liberdade alguém que seja apanhado em flagrante delito ou se há

laudos técnicos que comprovem a necessidade de internação. O MP também contesta as

averiguações criminais pelas quais o morador de rua passa, o que representa um

constrangimento.

O acolhimento e a internação compulsória de menores de idade, instituída por decreto

pela prefeitura do Rio, foi um processo mais simples. Afinal, o município tem o dever

constitucional de zelar pela infância. E, no caso de menores usuários de crack, é

facilmente comprovada a situação de risco para alguém desassistido, sem responsáveis

identificados ou com graves problemas de saúde. Com os adultos, apesar de o crack

também representar uma ameaça, qualquer ação de restrição de liberdade por parte do

poder público pode ser confundida com desrespeito a uma liberdade individual (Ritto,

2012).

O crack – ou qualquer outra droga ilícita – funciona assim como um pretexto

para legitimar a atuação repressiva do governo municipal através das suas diferentes

secretarias (no caso, SEOP, SMAS), sendo auxiliados, inclusive, por outros órgãos

municipais – inclusive a Companhia de Limpeza Urbana – (que, durante as operações,

responsabiliza-se por coletar os pertences dos usuários recolhidos) – uma verdadeira

“operação de guerra” visando remover toda a sujeira da cidade – ou melhor, das áreas

de maior visibilidade. Para tanto, tais operações costumam contar com o apoio da mídia,

que não se cansa de propagandear os efeitos nocivos do crack – o que seria muito bom,

se fosse só isso – mas que, para além, associa-o quase que diretamente aos segmentos

que maculam a imagem que se pretende atribuir à Cidade, ao mesmo tempo em que

arregimenta “simpatizantes” das medidas higienistas atualizadas na história do Rio de

Janeiro. Assim, legitima-se uma intervenção que encara o problema do crack “como

algo da área da segurança pública, e não da assistência social”, conforme sugerido por

Rogério Pacheco Alves, da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da

Cidadania (Ritto, 2012).

O “Choque de Ordem” também tem sido contundente em relação aos

ambulantes. Na Zona Sul e no Centro da Cidade, principalmente, há ações que ocorrem

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Página 120 de 155

diariamente, em vários momentos do dia. O fato de se exercer tamanha repressão sobre

o comércio ambulante nos leva a concluir que, na atual gestão, não existe qualquer tipo

de preocupação com políticas de geração de emprego e renda numa fase do capitalismo

em que se torna cada vez mais nítido que a questão do desemprego se apresenta com um

caráter estrutural, afligindo, inclusive, os países desenvolvidos. Referindo-se aos novos

modos de ser da informalidade – e caracterizando uma primeira modalidade tradicional,

que remeteria a uma categoria que envolveria os ambulantes, afirma Antunes:

Nesse universo encontramos "os menos 'instáveis', que possuem um mínimo de

conhecimento profissional e os meios de trabalho e, na grande maioria dos casos,

desenvolvem suas atividades no setor de prestação de serviços", de que são exemplos as

costureiras, pedreiros, jardineiros, vendedor ambulante de artigos de consumo mais

imediato, como alimentos, vestuário, calçados e bens de consumo pessoal, camelôs,

empregado doméstico, sapateiros e oficinas de reparos. […] Esses trabalhadores mais

"instáveis" podem inclusive ser subempregados pelos trabalhadores informais mais

"estáveis (2011: 408).

A criminalização dos trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho

não é capaz de, por si, “incentivá-los” ao reingresso à formalidade – até porque isto não

depende de vontade individual. Além disso, significa desconsiderar o paradoxo presente

na própria situação vivida por muitos trabalhadores informais, sobretudo os ambulantes,

conforme nos demonstra Tissi,

O processo e as condições de trabalho no comércio ambulante atestam que inclusão e

exclusão não são pólos antagônicos. Os ambulantes fazem parte de um processo

produtivo e, mais do que isso, de um processo social que se desdobra em múltiplas

relações e dimensões sociais. A inserção no trabalho promove a integração econômica,

permitindo renda e possibilitando a subsistência própria e da família, o acesso ao

consumo e a recursos materiais. À integração econômica imbrincam-se ganhos no plano

simbólico, como são os valores éticos e morais associados à inserção no trabalho e aos

seus resultados materiais […] Neste sentido, os vendedores ambulantes inserem-se

numa extensa trama de trocas sociais de diversos tipos e qualidades, o que não permite

qualificá-lo somente como espaço de exclusão. É buscando integrar-se

economicamente, buscando meios de sobrevivência e reproduzindo-se como

trabalhadores que acessaram o comércio ambulante; constituem-se na identidade de

trabalhadores e provedores da família, o que lhes confere a dignidade e o respeito na

rede de relações pessoais, incluindo familiares, amigos, vizinhos. Ainda que dentro de

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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limites estreitos, a inserção no comércio ambulante é possibilidade de autonomia, de

decisão e gestão das próprias vidas (2000: 78-79).

Quanto às “políticas” empreendidas pelo Estado em relação aos segmentos

sociais aqui referidos, constatamos um enorme retrocesso frente a tudo o que se

conquistou, desde 1988, no que se refere aos direitos sociais. No que tange à assistência

social, o fato dela ter sido reconhecida como direito e afirmada no conjunto das políticas

públicas, a partir da constituição de 1988 e, especialmente, após a promulgação da Lei

Orgânica da Assistência Social, em 1993, deixa claro que ainda permanece um abismo

enorme entre o marco legal e a possibilidade de sua efetivação. Conforme avalia

Yasbek,

na árdua e lenta trajetória rumo à sua efetivação como política de direitos, permanece na

Assistência Social brasileira uma imensa fratura entre o anúncio do direito e sua efetiva

possibilidade de reverter o caráter cumulativo dos riscos e possibilidades que permeiam

a vida de seus usuários (2004: 26).

As questões que vimos problematizando até então têm nos despertado a

atenção para os visíveis impactos das ações intervenções aqui descritas sobre três

bairros contíguos, situados na Cidade do Rio de Janeiro – quais sejam, Lapa, Glória e

Catete:

A Lapa é um bairro da área central da cidade do Rio de Janeiro, cuja condição

oficial de bairro foi estabelecida em 17de maio de 2012, pela Lei Municipal 5.407. Até

então, a Lapa era parte do Centro. É um bairro conhecido como berço da boemia carioca

e, durante anos, sua imagem esteve associada à prostituição, à malandragem. Grande

parte de sua arquitetura, edificada na época do Brasil Colonial, é importante referência

para a área. Seus arcos, que serviram como aquedutos e, até bem pouco tempo, foram

utilizados para o tráfego de bondes que se dirigiam ao morro de Santa Teresa, é o

símbolo mais conhecido do bairro, ainda que outras edificações, como o Circo Voador e

a Fundição Progresso, também sejam importantes referências arquitetônicas e culturais

da área.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Página 122 de 155

A partir da década de 90, principalmente, com o movimento de valorização do

Centro, a área passou por um processo de “revitalização”51 e vem se tornando um

importante espaço cultural da Cidade, apesar de poucos investimentos por parte do

Poder Público em termos infraestruturais. Nos últimos anos, tem havido um crescimento

da população fixa do bairro (novos moradores) além de uma procura cada vez maior por

parte de turistas, que, em busca das diversas expressões musicais/culturais lá presentes

transformam-no numa “Lapa de todas as tribos”. O chamado “Choque do Ordem” lá

sempre se faz presente, seja na abordagem a motoristas que estacionam irregularmente,

seja na “formalização” das atividades informais, através da padronização de barracas,

seja na perseguição aos vendedores ambulantes, seja no recolhimento compulsório de

“crianças e adolescentes” usuários de drogas.

Glória e Catete, por sua vez, são bairros que já tiveram seus dias de glamour,

pois lá residiu, por décadas, a burguesia carioca. O Catete, inclusive, abriga o prédio

que foi, por décadas, residência oficial da Presidência da República, antes da

transferência da Capital para Brasília, e onde ocorreu o suicídio de Getúlio Vargas. Com

casarões imponentes, com hotéis onde se hospedaram visitantes ilustres, tais bairros

amargaram anos de decadência e, hoje, são marcados por uma heterogeneidade de

classes, por favelas recentemente pacificadas, por população em situação de rua, por

ambulantes em suas calçadas, por usuários de drogas nas esquinas e por uma tentativa

ferrenha da Prefeitura, em nome da imagem de Cidade perseguida, de ordenar o espaço

urbano.

Além disso, constata-se um crescente interesse por parte da iniciativa privada –

cujo pontapé inicial foi dado pelo empresário Eike Batista, com a aquisição da

concessão da Marina e da compra do Hotel Glória -, de investir na localidade, o que tem

feito disparar o preço dos imóveis (um aumento de cerca de 200%, segundo estimativas

do Sindicato de Habitação do Rio - SECOVI-Rio), expulsando, direta ou indiretamente,

antigos moradores da localidade. O grupo comandado pelo referido empresário (o EBX)

investe, ainda, no projeto de “Corredor Cultural da Glória, que pretende transformar o

morro da Igreja de Nossa Senhora da Glória numa espécie de Montmartre Carioca”

(Schmidt, 2012, p. 2), que abrigará artistas, floristas e músicos, dando um ar francês ao 51 É importante que se esclareça que a Lapa nunca foi um bairro “sem vida”, o que justificaria, em termos “conceituais”, revitalizá-la. Entretanto, o sentido de revitalização urbana refere-se à apropriação cultural e econômica de espaços e imagens das cidades com o objetivo de atribuir novos usos e sentidos a um lugar, detendo, não raras vezes, um caráter segregador e higienizador. Em geral, as “políticas de revitalização urbana” induzem à reapropriação desses espaços por outros sujeitos, em geral mais “qualificados” - leia-se turistas e investidores.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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bairro. Durante os Jogos Olímpicos de 2016, as competições de vela ocorrerão na Baía

de Guanabara – mais especificamente na Praia do Flamengo/Enseada de Botafogo -,

enquanto as de atletismo, ciclismo, marcha e maratona terão lugar no Aterro do

Flamengo, daí a necessidade de se investir nos bairros em foco para prepará-los para

receberem seu público.

�otas inconclusas, pois espetáculo urbano continua…

Diante do que foi discutido, o que se constata é que o discurso recorrente e

legitimador da política que marca o contexto carioca sustenta-se em

“operações”/intervenções encaminhadas de maneira que a “sujeira” (tudo aquilo

considerado capaz de macular a imagem de cidade perseguida) vai sendo empurrada

para debaixo do tapete. Muitas destas ações são legitimadas pelo potencial que detêm de

atração de investimentos voltados ao terciário avançado, bem como pela possibilidade

de restabelecerem “vida” a locais que, ao longo dos anos, passaram por processos de

deterioração/obsolescência.

A “cultura”, em certa medida, transforma-se em instrumento de seleção

urbanística e de "gentrificação” de espaços urbanos reconvertidos – na verdade, um

instrumento de exclusão e habilitação de determinadas áreas da cidade –, razão pela

qual se investe num alto padrão de vigilância que, para além da função da segurança,

volta-se claramente para a seleção social de usuários ou consumidores (Icasuriaga,

2005: 68). Assim, as reformas urbanas promovem segregação e hierarquização dos

espaços, aprofundando a especulação imobiliária que expulsa antigos moradores – os

mais pobres, obviamente - de determinados bairros. Fica claro, destarte, que o que se

busca é o enobrecimento de áreas de grande interesse para o capital. Não é nada casual

o fato de se constatar um acelerado investimento nestes locais, diante da proximidade

dos megaeventos esportivos que estão por vir. Além disso, ordem, controle e vigilância

dos espaços públicos passam a ser, assim, o mote das ações que evidenciam que o que

se vislumbra é o combate aos pobres, e não à pobreza. Enfim, megaprojetos, cuja

“maravilha” é duvidosa, aprofundam as contradições que teimam em marcar o “cenário”

da Cidade Maravilhosa.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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MAPEAME�TO DE I�DICADORES HABITACIO�AIS SOCIAIS:

uma contribuição para planejamento de políticas públicas

Deborah Marques Pereira

Universidade Estadual de Montes Claros

[email protected]

Anete Marília Pereira

Universidade Estadual de Montes Claros

[email protected]

Marcos Esdras Leite

Universidade Estadual de Montes Claros

[email protected]

Aline Crystiane Carvalho Mendes

Universidade Estadual de Montes Claros

[email protected]

Resumo

As cidades são espaços em constante discussão científica devido a sua dinamicidade e

multifuncionalidade. Dentre as abordagens, destacam as que discorrem sobre as desigualdades sócio-

espaciais. Cabe ao Poder Público o processo de elaboração de estratégias de apropriação dos espaços,

primando por dirimir as disparidades sócio-espaciais e buscando garantir o bem-estar de toda a

população. O presente trabalho busca demonstrar a utilização de Indicadores Sociais combinado com as

Geotecnologias para subsidiar o planejamento urbano de políticas públicas. A perspectiva de análise se

concentrou na análise dos aspectos habitacionais por entender que são determinantes na visualização da

segregação sócio-espacial. Fez-se um vasto levantamento bibliográfico e foram utilizados Indicadores

Sociais de habitação disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o Sistema de

Informação Geográfica para espacialização dos dados. Como âmbito da pesquisa teve-se a cidade média

de Montes Claros. Observou-se que esta possui expressiva desigualdade sócio-espacial, com a parcela da

população com maior poder aquisitivo localizada na parte centro-oeste.

Palavras-chave: Desigualdade, Habitação, Montes Claros

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Introdução

As urbes são objetos de constante discussão no meio científico, dada a sua

dinâmica e multifuncionalidade. Como locus social, as cidades se configuram de acordo

com a capacidade de apropriação do espaço, logo, quem possui mais recurso econômico

aloca em locais mais estruturados em detrimento dos menos favorecidos.

Portanto, toda sociedade apresenta alguma forma de segregação entre seus

membros de maneira a permitir a identificação de grupos com as mesmas

características. Entretanto, estas formas de divisão não devem ser baseadas em

caracteres voltados para a exploração e dominação desumana de um grupo sobre o

outro.

Diante desse cenário, a habitação se demonstra como forte aspecto que permite a

identificação e divisão sócio-espacial52 dos grupos. Assim, o presente estudo objetiva

analisar a segregação sócio-espacial a partir das feições da habitação com uso dos

Indicadores Sociais combinado com as Geotecnologias. Para elucidar essa análise e

sistematizar o aspecto teórico com o real tomou-se como referência a cidade de Montes

Claros/MG.

O caminho percorrido foi iniciado com uma revisão bibliográfica de

juristas, urbanistas, geógrafos e sociólogos, que discorrem sobre a temática em

comento. Posteriormente, foi construído um Sistema de Indicadores Sociais de

habitação composto por seis variáveis, disponibilizadas pelo Censo 2010 do Instituto

Brasileiro Geografia e Estatística – IBGE, a saber: a) domicílios particulares

improvisados; b) domicílios particulares permanentes tipo casa; c) domicílios

particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios particulares

permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04

moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores. Estas variáveis

possibilitaram a visualização de características habitacionais da cidade.

52 Muito se tem discutido sobre a grafia correta para “sócio-espacial” e “socioespacial”. Nas palavras de Souza (2009, p. 25) “Existe a possibilidade de dupla grafia − o que constitui, aliás, algo conceitualmente conveniente e relevante. “Socioespacial”, sem hífen, se refere somente ao espaço social (por exemplo, tomando-o do ponto de vista do resultado de sua produção em determinado momento histórico, real ou potencial, como em um plano de remodelação urbanística); de sua parte, “sócio-espacial”, com hífen, diz respeito às relações sociais e ao espaço, simultaneamente (abrangendo, diretamente, a dinâmica da produção do próprio espaço, no contexto da sociedade concreta como totalidade)”. Assim no presente artigo expressão “sócio-espacial” foi considerada mais apropriada, pois quando se faz alusão à segregação sócio-espacial se tem como correspondência simultânea às relações sociais e o espaço social, que são distintos e interdependentes.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Posteriormente, em ambiente de Sistema de Informação Geográfica (SIG) foi

constituído o banco de dados dos Indicadores Sociais a serem mapeados. Pelo IBGE,

também foram selecionadas representações vetoriais de 361 setores censitários da área

urbana de Montes Claros e em seguida foi realizada a junção das variáveis em formato

de tabela nas representações geográficas em formato shapefile. A organização das

variáveis em ambiente SIG teve como referencia os códigos dos setores utilizando a

ferramenta join.

Nesse contexto, conforme Jannuzzi (2009) e Vieira (2005) foram destacados em

mapas de graduação em cores os melhores indicadores, intermediários melhor,

intermediários pior e os piores indicadores presentes na área urbana de Montes Claros.

Todo o procedimento operacional foi realizado no software ArcGis 10, com licença

disponibilizada pelo Laboratório de Geoprocessamento da Universidade Estadual de

Montes Claros – UNIMONTES.

Para ratificar os resultados obtidos foram visitados os locais díspares e

fotografadas as habitações. Esta etapa foi importante para comprovar a veracidade da

espacialização53 dos Indicadores Sociais de habitação com o aspecto visível na cidade

de Montes Claros.

Logo, o presente estudo demonstra uma nova forma de vislumbrar a

desigualdade sócio-espacial em Montes Claros através da espacialização de Indicadores

Sociais de Habitação. Esta metodologia já se mostrou eficaz em outros estudos como:

Genovez (2002) realizando a análise espacial intraurbana no estudo da dinâmica de

exclusão/inclusão social em São José dos Campos (SP); Nunes (2007) com o estudo da

produção do espaço urbano e exclusão social em Marília (SP); Vieira (2005) avaliando

o uso dos indicadores sociais de desigualdade intraurbana; entre outros.

Da cidade à segregação

Antes de discorremos sobre a cidade e a segregação faz-se mister discorrer sobre

a definição da cidade. Contudo, compreender o que é a cidade é, sobretudo complexo,

pois o seu significado pode ser obtido por distintas formas.

Sobre as várias visões das cidades ressaltam os ensinos de Rolnik (1995: 12)

quando relata que o espaço urbano deixa "de se restringir a um conjunto denso e

53 O autor Souza (2006) esclarece que espacializar refere-se a um tipo de organização espacial e de processo de produção e apropriação do espaço por uma determinada sociedade.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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definido de edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da

cidade sobre o campo". A preponderância da cidade não é mais descrita pela limitação

de um espaço estático, mas sim pela dinamicidade e mutabilidade de suas formas e

significâncias. Assim, a cidade pode apresentar características diversas e Rolnik (1995)

ressalta que dentre as várias formas da cidade, ela pode ser observada como ímã, escrita,

política e mercado.

A cidade descrita como ímã reflete a ideia de um local de atração e concentração

de pessoas, Rolnik (1995) discorre que antes da cidade ser um local de trabalho e

moradia ela é um ímã. Por outro lado, a cidade como escrita demonstra a necessidade de

memorizar, medir e gerir o trabalho coletivo. A cidade política ou “civitas” implica na

busca pela manutenção da vivência coletiva, assim, “da necessidade de organização da

vida pública na cidade, emerge um poder urbano, autoridade político-administrativa

encarregada de sua gestão” (Rolnik, 1995: 19).

Além das características supracitadas, tem-se a cidade como mercado,

demonstrada pela aglomeração num determinado espaço de uma expressiva população

que cria o mercado. O que se tem como evidência na cidade mercado é a divisão do

trabalho entre cidade e campo e a especialização do trabalho no interior da cidade

(Rolnik, 1995).

Na atualidade observa-se a supremacia da cidade do capital, esta nova

conjuntura faz com que haja a intensificação da mercantilização do espaço urbano.

Diante disto, a organização da cidade marcada pela divisão da sociedade em classes

sociais e a instauração de um novo tipo de poder interfere diretamente na condução da

vida dos cidadãos (Rolnik, 1995).

O autor Castells (1983) propõe estudar a cidade como um “espaço de consumo

coletivo” no qual se desenvolvem as relações capitalistas de produção. A partir desta

consideração se estaria diante de uma visão mais ampla da cidade.

Desta feita, considerar a cidade como um “espaço de consumo coletivo” é

reconhecer que o ambiente urbano é determinado pelas forças produtivas e pelas

relações de produção. Logo, a terra urbana é vista como uma mercadoria, e como ensina

Marx (1988: 165) “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual

pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” e esta é a

“célula germinativa do modo de produção capitalista”. Logo, a mercadoria é uma

unidade indissolúvel de valor de uso e de valor de troca que se entende a todas as

relações sociais numa sociedade capitalista.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Salientam-se também as reflexões de Carlos (2004) sobre os apontamentos

marxistas que diz que o capital é um elemento de produção espacial. Com isto, a cidade

passa é produzida em função do sistema capitalista. Logo, o espaço urbano denota as

contradições da sociedade, em que os seres humanos se diferem pelo que possuem e por

sua condição de proprietários de bens (Carlos, 2004).

A constituição da cidade é dotada por caracteres de dominação e organização da

produção, nos dizeres de Singer (1980: 8) “a cidade é, via de regra, a sede do poder e,

portanto da classe dominante”. Logo, a cidade é um modo de organização espacial que

permite à classe dominante maximizar a transformação do excedente. Neste cenário

destacam-se as relações sociais presentes nas cidades, o que vai de encontro com Carlos

(2004: 15) que diz “a cidade pode ser entendida, dialeticamente, enquanto produto,

condição e meio para a reprodução das relações sociais, enquanto produtoras da vida

humana, no sentido amplo da reprodução da sociedade. Aqui a cidade se reafirma

enquanto espaço social”.

A cidade deve ser compreendida como fruto das relações sociais e isso denota

uma complexidade cada vez mais latente. Diante disso, devem-se considerar as

condutas sócio-espaciais dos sujeitos que produzem as cidades. O autor Carlos (2004:

18) certifica que:

A vida cotidiana [...] se definiria como uma totalidade apreendida em seus momentos

(trabalho, lazer e vida privada) e, nesse sentido guardaria relações profundas com todas

as atividades do humano – em seus conflitos, em suas diferenças. [...]. Nesta direção, o

sentido da cidade é aquele conferido pelo uso, isto é, os modos de apropriação do ser

humano para a produção de sua vida (e no que isto implica).

Salienta-se que os modos de apropriação e produção não são igualitários no

contexto capitalista da cidade. Os economicamente favorecidos possuem mais acesso,

apropriação e domínio ao espaço urbano 54 em detrimento dos menos favorecidos.

Corrêa (1995) descreve com propriedade quem são os produtores do espaço urbano: a)

proprietários fundiários e dos meios de produção; b) promotores imobiliários; c) Estado

e d) grupos sociais excluídos.

54 No presente trabalho considerou-se cidade como sinônimo de espaço urbano, pois conforme Corrêa (1995, p. 5) “o geógrafo considera a cidade, de um lado, como um ou vários núcleos localizados em um região ou país; [...] de outro, a cidade é considerada como espaço urbano, sendo analisada a partir de mapas de grande escala. Estas duas abordagens não são mutuamente excludentes. Nem do âmbito exclusivo dos geógrafos, apesar das diferenças de abordagem em relação aos demais estudiosos”.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Desse modo, os sujeitos produtores da cidade são responsáveis pela

fragmentação contida no mesmo espaço. Como assevera Corrêa (1995: 62) a

fragmentação “verifica-se basicamente devido ao diferencial da capacidade de cada

grupo social tem de pagar pela residência que ocupa, a qual apresenta características

diferentes no que se refere ao tipo e à localização”.

Contudo, a segregação não se refere somente à dimensão residencial, pois ela é

muito mais ampla, sendo percebida como a fragmentação não só dos espaços urbanos,

mas como a fragmentação e a restrição dos diferentes usos que podem fazer da cidade.

Nas palavras de Corrêa (1995: 65-66):

A segregação residencial pode ser vista como um meio de reprodução social, e neste

sentido o social age como um elemento condicionador sobre a sociedade. Neste sentido,

enquanto o lugar de trabalho, fábrica e escritórios, constitui-se no local de reprodução,

as residências e os bairros, definidos como unidades territoriais e sociais, constituem-se

no local de reprodução. Assim, a segregação residencial significa não apenas um meio

de privilégio para a classe dominante, mas também um meio de controle e de

reprodução social para o futuro.

Desse modo, observa-se que a segregação residencial não se limita a casa e/ou

moradia, ela estende ao aspecto sócio-espacial, político-administrativo e econômico,

fazendo com que as relações estabeleçam um elo "no plano do morar e de tudo que essa

expressão significa enquanto realização da vida humana." (Carlos, 2004: 47).

Nesse ambiente urbano, complexo e fragmentado a segregação se demonstra

como um “processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se

concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros” (Villaça,

2001: 142). Avançando no conceito, Castells (1983: 203) afirma que se entende por

segregação a “tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade

social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade

compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia”.

Souza aponta dois aspectos que permeiam a segregação, o primeiro refere-se à

segregação atrelada as disparidades estruturais na distribuição da riqueza socialmente

gerada e do poder. Já no segundo “a segregação deriva de desigualdades e, ao mesmo

tempo, retroalimenta desigualdades, ao condicionar a perpetuação de preconceitos e a

existência de intolerância e conflitos” (Souza, 2008: 84).

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Diante desses aspectos tem-se a segregação imposta e a auto segregação. A

primeira forma refere-se a grupos sociais que possuem oportunidades restritas e nulas de

onde morar, já a segunda traduz a faculdade da classe dominante de escolher onde e

quando segregar (Corrêa, 1995). Logo, quando o grupo dominante decide onde será

estabelecida a sua residência, acaba por determinar também a do outro grupo,

repercutindo diretamente na formação do espaço urbano e de seus serviços.

Em suma, definir a cidade não é tarefa fácil, porém deve-se admitir que ela

possui diversos conceitos e distintas formas de análises que irão depender da dimensão

do estudo de cada trabalho. Nos dizeres de Braz (2006: 285) “a cidade não é apenas um

aglomerado de construções ou de sistemas viários, ela deve ser vista em seu sentido

humano e desenvolvidas para atender à coletividade das pessoas que nela vivem”.

Logo, a presente pesquisa não possui como objetivo a definição acabada da cidade, mas

sim suscitar que a cidade possui múltiplos olhares e que nele está presente a

desigualdades de apropriação e de usos do espaço. No próximo tópico deste artigo serão

discutidas as principais nuances do planejamento urbano no Brasil.

Considerações sobre o planejamento urbano no Brasil

A origem do pensamento urbanístico no contexto brasileiro é recente e conforme

os apontamentos apresentados por Villaça (1999) as atividades urbanísticas datam

pouco mais de um século.

Destarte, Villaça (1999) adverte que a reconstituição histórica do planejamento

urbano no Brasil se apresenta como um tema difícil face à sua formação, pois o discurso

e a prática se misturam de forma complexa dificultando sua separação. Outra

dificuldade apresentada pelo autor é a exposição de várias formas possíveis de

planejamento urbano, como o zoneamento, planos setoriais, planos diretores, projeto de

cidades novas e outras.

Assim, muitas vezes o plano se confunde com o projeto, porém quando se trata

de pratica e discurso do Estado sobre o espaço urbano estar-se diante de plano, pois: a)

há a abrangência de todo o espaço urbano e desse espaço com vários elementos

constitutivos no tocante aos objetivos; b) continuidade de execução, necessidade de

revisões e atualizações; c) Intervenção da ação sobre grande parte da população; e d)

tomada de decisões políticas com maior participação municipal (Villaça, 1999). Diante

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as características que englobam os planos, Villaça (1999) apresenta cinco tipos de

planejamento lato sensu, descritos pela figura 01:

Figura01 – O Planejamento urbano lato sensu

Fonte: Villaça, 1999 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Assim, para Villaça (1999) o Planejamento lato sensu engloba o planejamento

stricto sensu (plano diretor), o Zoneamento, o planejamento para novas cidades, o

urbanismo sanitarista e os projetos (planos de infraestrutura).

No Brasil, Villaça (1999) relata que o planejamento pode ser dividido em três

períodos distintos: 1875 a 1930; 1930 a 1990; e de 1990 em diante. No quadro 01 estão

expostos os períodos e os principais eventos descritos por Villaça (1999):

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Quadro 01 – Evolução do planejamento urbano no Brasil

Período Características

De 1875 a 1930: Plano de

Melhoramentos e

Embelezamento

� Influência francesa; � Enfatiza a beleza monumental e higienista; � 1875 - 1º plano de conjunto do Rio de Janeiro - 1º Relatório da

Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro; � 1875 a 1906 – ascensão dos planos de melhoramentos e

embelezamento; � 1906 a 1930 – declínio dos planos de melhoramentos e

embelezamento; � Plano de Pereira Passos – ápice desse período; � Planos elaborados por funcionários municipais; � Fim do período - Plano Agache no Rio e o Plano de Avenidas de

Prestes Maia em São Paulo.

De 1930 a 1990: Ideologia do planejamento enquanto técnica de base cientifica

� De 1930 a 1940 – Planos de remodelações dos centros do Rio, de São Paulo, de Porto Alegre ou do Recife;

� Em 1950 – necessidade de integração entre os vários objetivos e ações dos planos urbanos. Surge o plano diretor;

� De 1960 a 1970 – desenvolve o planejamento urbano ou planejamento local integrado;

� Em 1970 – os planos passam da complexidade, do rebuscamento técnico e da sofisticação intelectual para o plano simplório. Fortalecimento dos movimentos populares – nova etapa na consciência popular urbana;

� Década de 80 – retomada das demandas populares iniciadas no 1º Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963);

� No final da década de 80 o termo plano diretor é ressuscitado pela Constituição Federal.

A partir de 1990: reação ao período anterior

� As cidades brasileiras novamente elaboram novos planos diretores; � O conteúdo dos planos abarcam preceitos da reforma urbana e

dispositivos dos princípios de justiça social no âmbito urbano; � Fim de um período na história do planejamento urbano que marca o

início do processo de politização, fruto do avanço da consciência e organização populares;

� Recusa ao diagnóstico técnico como mecanismo de revelar os problemas políticos;

� Destacam os aspectos de competência municipal, particularmente os atinentes à produção imobiliária – ou do espaço urbano.

Fonte: Villaça, 1999 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Na atualidade, há esforços dos gestores municipais para organizar o espaço

urbano. Assim, eles têm procurado adotar várias condutas para melhor planejar as

urbes. Dentre as ações, os recursos geotecnológicos se manifestam como ferramenta de

auxílio para o planejamento urbano. No próximo tópico será discutido sobre a

importância das Geotecnologias no estudo do ambiente urbano.

As geotecnologias e o espaço urbano

Nas últimas décadas os estudos foram se aprimorando e sofisticando no afã de

responder os novos questionamentos científicos. Deste modo, as Geotecnologias têm

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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ganhado lugar de destaque, proporcionando maior dinâmica às análises geográficas. O

autor Fitiz (2008) relata que a tecnologia espacial teve sua base teórica no pragmatismo

da chamada Geografia Quantitativa, ou Geografia Teorética, tendo como cenário a II

Guerra Mundial.

Os autores Leite e Rosa (2002: 185) definem as Geotecnologias como: A técnica

que engloba o Geoprocessamento (GIS – Sistema de Informação Geográfica,

Cartografia Digital, processamento digital de imagem), além do Sensoriamento

Remoto, do Sistema de Posicionamento Global-GPS, da Aerofotogrametria, da

Geodésica e da Topografia Clássica, dentre outros.

Assim, as Geotecnologias têm auxiliado variados ramos da ciência e tecnologia

a dinamizar as análises do espaço geográfico. A capacidade em obter, cruzar e

armazenar dados georreferenciado tem proporcionado à produção de diversas

informações que auxiliam as tomadas de decisões.

Assim, as Geotecnologias não estão limitadas somente ao contexto geográfico,

pelo contrário a interdisciplinaridade maximiza os seus efeitos. O uso mais evidente

para os estudos urbanos é a o recurso Geotecnológico conhecido como SIG, pois

contribui para a tomada de decisão do poder público municipal. Leite (2011: 69) explica

que:

Através do processamento e cruzamento de dados, as informações podem, também, ser

espacializadas, contribuindo eficientemente para o planejamento das ações do poder

público na cidade. Além das vantagens técnicas, alguns softwares de SIG apresentam

linguagem fácil e prática, tornando o processo de aprendizagem de operação dessa

tecnologia mais rápido”.

Logo, as Geotecnologias podem contribuir expressivamente para o planejamento

urbano, orientando as condutas a serem adotadas pelo poder gestor municipal. Seguindo

ainda o raciocínio de Leite (2011: 70):

“Estudar e planejar o espaço urbano requer bastante conhecimento em várias áreas, o

que dificulta o sucesso dessa atividade; além dessa complexidade que envolve o espaço

urbano, a visualização das diferenças socioeconômicas encontradas torna o

planejamento falho. Sendo assim, conhecer a configuração espacial de uma cidade é

requisito fundamental para o sucesso do planejamento”.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Compreender o espaço urbano e suas complexidades requer uma análise

interdisciplinar, em que a configuração espacial é fundamental. Contudo, os usos das

Geotecnologias só tendem a contribuir para a análise das urbes, auxiliando no

planejamento urbano e nas tomadas de decisões para amenizar as desigualdades sócio-

espaciais.

Indicadores sociais e espacialização

O uso de Indicadores Sociais no meio científico é recente, porém vem ganhando

abrangência e credibilidade no meio científico e nas condutas dos planejadores públicos.

Para a Jannuzzi (2009: 15) na pesquisa acadêmica, o Indicador Social é “uma medida

em geral quantitativa dotada de significado social substantivo, usado para substituir,

quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (para

pesquisa acadêmica) ou programático (para formulação de políticas)”. Assim, os

Indicadores Sociais podem contribuir significativamente para os estudos de cunho

teórico e ainda subsidiar atividades de planejamento público.

Além disso, Jannuzzi (2009: 16) assevera que os Indicadores Sociais

representam o elo entre “modelos explicativos da Teoria Social e a evidência empírica

dos fenômenos sociais observados. Em uma perspectiva programática, o Indicador

Social é um instrumento operacional pra monitoramento da realidade social, para fins de

formulação e reformulação de políticas públicas”.

Diante do exposto, observa-se que uso dos Indicadores Sociais tem ganhado

cada vez mais espaço nas discussões dos pesquisadores, cientistas sociais e gestores

públicos. Porém, Jannuzzi (2009: 11) assevera que “uma cifra estatística isolada é como

poste com luz queimada: Pode servir como apoio, mas sozinha não ilumina nada”.

Logo, os Indicadores devem ser analisados dentro de um contexto específico, com

dimensões e objetivos previamente traçados. Na presente pesquisa os Indicadores

Sociais de Habitação combinados com espacialização permitem vislumbrar as

desigualdades sócio-espaciais.

O espaço urbano de Montes Claros

O município de Montes Claros está localizado entre as coordenadas geográficas

16º 04' 57" e 17º 08' 41" de Latitude sul e Longitudes 43º 41’ 56" e 44º 13’ 1" oeste de

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Greenwich. Possui uma população de 361.915 habitantes (IBGE/2010), com grau de

urbanização de aproximadamente 95% e é a única cidade do norte de Minas Gerais que

apresenta mais de 100.000 habitantes. A área territorial é de 3.568,941 Km² e sua

densidade demográfica é de 101,41 hab/Km² (IBGE, 2010). A figura 02 apresenta a

localização da cidade de Montes Claros no norte de Minas Gerais.

Os municípios limítrofes a Montes Claros são: São João da Ponte ao norte;

Capitão Enéias sentido nordeste; Francisco Sá ao Leste; Juramento e Glaucilândia na

direção sudeste; São João da Lagoa e Coração de Jesus ao oeste; e Mirabela e Patis para

Noroeste.

Figura 02 – Localização da cidade de Montes Claros no norte de Minas Gerais.

Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Desde 1970, Montes Claros é um município de população predominantemente

urbana, característica que vem sendo ratificada nas últimas décadas, com o aumento do

seu grau de urbanização. O gráfico 01 apresenta o crescimento da população urbana de

Montes Claros conforme dados do IBGE nos anos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e

2010.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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Gráfico 01 – Evolução populacional de Montes Claros (1960, 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010)

Fonte: IBGE, 2010 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Analisando o contexto mineiro, Montes Claros é a sexta cidade mais populosa de Minas

Gerais, possuindo população inferior da capital mineira Belo Horizonte, Uberlândia,

Contagem, Juiz de Fora e Betim, conforme evidencia o gráfico 02 (IBGE, 2010). Essa

cidade se destaca no contexto regional, como principal pólo, e sua área de influência

ultrapassam os limites da mesorregião Norte de Minas Gerais (Pereira, 2007).

Gráfico 02 – Municípios mais populosos de Minas Gerais (2010)

Fonte: IBGE, 2010 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Diante do exposto, observa-se que recentes estudos científicos apontam Montes

Claros como uma cidade média55, não só por possuir mais que 100.00 habitantes, mas

também por sua importância e destaque regional. Os autores França (2007; 2012), Leite

(2006; 2012), Pereira (2007), apresentam nos seus estudos a importância de Montes

Claros no contexto local e regional e a sua sistematização como cidade média.

Deve-se salientar que nas cidades médias há a intensificação dos processos

sociais, econômicos e políticos, pois as dinâmicas ocorridas nestas cidades são mais

aceleradas e latentes. Além disto, ressalta-se que Montes Claros possui uma forte

atração de migrantes, pois é uma característica comum das cidades médias brasileiras,

como destaca Maricato (2001) esse tipo de cidades apresenta desde a década de 1990

um crescimento demográfico acima da média nacional.

Indicadores sociais de habitação de Montes Claros

Os dados habitacionais são de extrema importância para a análise da segregação

sócio-espacial, porém, classificá-los como adequados ou não é uma tarefa difícil e

requer articulação de variados atributos. Como o objetivo desta pesquisa é apresentar as

disparidades habitacionais visíveis no contexto urbano de Montes Claros a partir do

Censo de 2010, foram selecionadas seis variáveis que contribuíssem para qualificar a

cidade em áreas de melhores indicadores habitacionais, intermediários melhor,

intermediários pior e piores indicadores habitacionais.

As variáveis habitacionais utilizadas foram: a) domicílios particulares

improvisados 56 ; b) domicílios particulares permanentes tipo casa 57 ; c) domicílios

particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios particulares

permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04

moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores.

55 No contexto atual o estudo das cidades médias encontra-se sistematizado e em constante evolução no cenário científico. Dentre os vários estudos já realizados sobre as cidades médias destacam os publicados por Spósito (2002) para Presidente Prudente; Whitacker (2003) e Vieira (2005) para São José do Rio Preto; Soares (1995) e Bessa (2007) para Uberlândia; entre outros. 56 O domicílio particular permanente é a unidade não residencial ou com dependências não destinadas exclusivamente à moradia, mas que na data de referência estava ocupado por morador. Exemplos: prédios em construção, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, grutas etc. que estavam servindo de moradia na data de referência foram considerados domicílios particulares improvisados (IBGE, 2010). 57 O domicílio particular permanente tipo casa trata-se de uma edificação com acesso direto a um logradouro (arruamento, vila, avenida, caminho etc.), legalizado ou não, independentemente do material usado em sua construção, estado de conservação ou número de pavimentos (IBGE, 2010).

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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A análise espacial desses Indicadores possibilita a identificação das diferentes

classes sociais no espaço urbano da cidade de Montes Claros e as principais

características dos locais de moradia. Diante disto observa-se que na cidade de Montes

Claros os domicílios particulares improvisados estão espraiados pela cidade, tendo

como pior qualificação a parte norte e nordeste abarcando principalmente a área do

Jaraguá e Cidade Industrial e na parte sul pelo loteamento do Santo Amaro.

Os domicílios particulares permanentes tipo casa apresentam os piores

indicadores na parte leste abrangendo as áreas do Jaraguá, Jardim Primavera, JK,

Planalto e outras. Ao sul abarca o loteamento da Alterosa, Conjunto José Corrêa

Machado, Maracanã, Sion e arredores. Os melhores indicadores se encontram na área

do Ibituruna, Jardim Parque Morada do Sol, Morada do Parque, Jardim São Luís e

adjacências.

A presença de domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário é

mais visível na parte norte de Montes Claros, abarcando a área do Castelo Branco, Nova

América e São Lucas, também ao sul em Santo Amaro, Alterosa e arredores. Em

contrapartida, os melhores indicadores encontram na parte central, centro-oeste e leste

da cidade.

Na cidade de Montes Claros há poucas localidades que apresentam domicílios

particulares permanentes com 04 banheiros ou mais. Assim, elas estão concentradas na

área centro-oeste nos espaços do Ibituruna, Jardim Parque Morada do Sol, Morada do

Parque, Jardim São Luís, Melo e entorno.

Os domicílios particulares com até 04 moradores se agrupam na parte centro-

oeste da cidade e nas áreas centrais, já na parte leste e sul grande parte dos domicílios

possuem mais de 04 moradores.

Através da análise dessas variáveis é possível individualizar os domicílios que

apresentam alto padrão. Assim, a parte centro-oeste de Montes Claros se destaca como a

área que possui um maior padrão habitacional, apresentando domicílios permanentes

com 04 banheiros ou mais, sem a presença de domicílios tipo casa e domicílios

improvisados e geralmente com até 04 moradores. A figura 03 apresenta a

espacialmente das considerações apresentadas.

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ina 142

de 155

Visando comprovar os dados obtidos pelo Censo do IBGE de 2010 com a parte

visível da cidade foi organizado um trabalho de campo, tendo como foco retratar os

indicadores sociais de habitação mais díspares na cidade de Montes Claros. As figuras

04 e 05 retratam localidades com indicadores considerados piores na área de estudo,

confirmando os resultados encontrados. Assim, ficou evidente a falta de infraestrutura

de moradia e o precário acesso.

Figura 04 – São Geraldo, sul de Montes Claros Figura 05 – Clarice Ataíde, norte de Montes Claros

Autor: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Em contrapartida, as localidades que apresentam bons indicadores se

concentram na parte centro-oeste da cidade. As figuras 06 e 07 demonstram os locais

com melhores atributos de habitação.

Figura 06 – São Luís, centro-oeste de Montes

Claros

Figura 07 – Ibituruna, oeste de Montes Claros

Autor: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Pela análise das figuras 04, 05, 06 e 07 observam-se as disparidades

habitacionais existentes entre os locais com piores e melhores indicadores, ratificando a

espacialização apresentada. Nos estudos de Leite (2011) ele relata que a partir da década

de 1980 houve incentivo municipal para a ocupação da área centro-oeste da cidade pelas

camadas de alta renda, principalmente com a criação do loteamento do Ibituruna na

parte oeste. O Ibituruna apresenta belezas naturais diversas como a Serra do Ibituruna e

a reserva ecológica do Sapucaia que valorizam a área. Movida pelos incentivos

municipais, belezas naturais e valorização imobiliária, a população de alta renda se

concentrou na parte oeste e arredores, fazendo da região centro-oeste a mais estimada da

cidade.

Não obstante, o baixo custo do solo urbano de áreas distantes ao centro-oeste

acolheu a população de menor renda, sobretudo na área leste e norte de Montes Claros.

A atuação municipal foi conivente com o distanciamento dos menos favorecidos,

contribuindo com a doação de lotes e a manutenção das áreas nobres.

Diante do exposto, pode-se concluir que a cidade de Montes Claros apresenta

fortes disparidades habitacionais, oscilando desde a presença de domicílios particulares

improvisados e sem banheiros ou sanitários até domicílios com infraestrutura dotada de

mais de 04 banheiros e com até 04 moradores. Deste modo, a parte centro-oeste da

cidade apresentou melhores indicadores e intermediários melhor nas seis variáveis

pesquisadas, enquanto as demais áreas, especialmente a leste a norte, expuseram

indicadores piores e intermediários pior.

Palavras finais

Consoante ao exposto observa-se que no decorrer dos anos as cidades têm se

tornado cada vez mais complexa e desigual, necessitando condutas veementes do poder

público que abarquem no planejamento ações de repelem as desigualdades sócio-

espaciais e priorizem o bem-estar da população. Não obstante, a análise dos Indicadores

Sociais e as Geotecnologias são ferramentas que podem contribuir para o planejamento

urbano de forma eficaz.

No presente trabalho foi analisado abordado os Indicadores Sociais de Habitação

na cidade de Montes Claros, para tanto foram selecionadas 06 variáveis: a) domicílios

particulares improvisados; b) domicílios particulares permanentes tipo casa; c)

domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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particulares permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até

04 moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores.

As análises dos Indicadores de habitação somadas à espacialização permitiram a

identificação de áreas com melhores, intermediários melhor, intermediários pior e pior

atributos habitacionais.

Assim, restou evidente que Montes Claros possui expressiva desigualdade sócio-

espacial, com a parcela da população com maior poder aquisitivo localizada na parte

centro-oeste. Em contrapartida, a população com poucos recursos encontra-se espraiada

pela cidade, destacando as áreas mais distantes da área central.

O uso de Sistema de Indicadores Sociais de habitação conjugados com as

geotecnologias possibilitam a melhor compreensão da realidade das cidades,

contribuindo veementemente para o planejamento de políticas públicas. Logo, o

Mapeamento dos indicadores habitacionais sociais torna-se uma veemente contribuição

para planejamento de políticas públicas. Contudo, compreender os aspectos sociais e

espaciais da área urbana é um grande desafio, requerendo, cada vez mais, estudos

aprofundados e sistematizados.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCATIVAS E OS CURSOS

PROFISSIO�AIS.

Um caso de parceria entre uma Escola Secundária e uma Empresa do ramo da

Indústria numa Cidade Intermediária

Zulmira de J. C. da Silva Rodrigues

F.C.T. - U.N.L. (Uied)

[email protected]

Resumo

O presente artigo expressa algumas reflexões sobre o estabelecimento e funcionamento de parcerias entre

Escolas e Empresas e do modo como se articula a formação entre ambas. Em simultâneo, discutimos o

papel das Políticas Públicas Educativas no âmbito dos Cursos Profissionais de nível secundário. O estado

da arte que temos vindo a desenvolver, bem como o estudo empírico, permitiu-nos selecionar um caso de

interesse científico. O modelo de parceria que apresentamos emergiu do nosso estudo exploratório e tem

como núcleo central uma turma de um Curso Profissional, numa Escola Pública, que trabalha em

parceria, no âmbito da formação, com uma Empresa Privada, do setor da indústria da aeronáutica. Os

procedimentos que seguimos ao longo da presente investigação centraram-se nos objetivos e questões do

estudo, numa perspetiva de responder à nossa problemática, articulando o estudo empírico com o nosso

quadro teórico. Os instrumentos utilizados na recolha de dados foram as entrevistas semiestruturadas,

tendo as mesmas sido administradas aos atores do estudo num total de nove. Para além das entrevistas

recorremos à consulta de legislação que regulamenta os Cursos Profissionais e a outros documentos

fornecidos pelos Responsáveis da Escola. A estratégia de análise utilizada será a análise de conteúdo,

através de uma abordagem qualitativa, para que possamos ter uma visão holística do fenómeno em

estudo.

Palavras-chave: Parcerias, Formação (qualificação), Cursos Profissionais

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Introdução

O presente artigo foi elaborado com base em contributos teóricos e em alguns

dados empíricos que constam da tese de doutoramento da autora, ainda em

desenvolvimento. Este facto, conduz-nos a uma atitude de precaução no sentido de

evitar conclusões superficiais e menos elaboradas.

O interesse em trazer para o debate público, no momento presente, temas como a

formação (qualificação), as parcerias e os cursos profissionais, surge-nos como uma

oportunidade de enriquecimento e de complementaridade de conhecimentos que

poderão vir a tornar-se uma mais-valia no nosso desenvolvimento pessoal, social e

profissional, face ao estatuto de investigadores que usufruimos. Para além disso,

deparamo-nos com a oportunidade de transmitir alguma visibilidade à nossa

investigação, contribuindo para aquilo que Coutinho (2009) apelida de consistência do

estudo.

Âmbito do artigo

O presente artigo decorre no prosseguimento do Colóquio da Ação Pública e

Problemas Sociais em Cidades Intermediárias que teve lugar de 23 a 25 de Janeiro de

2013 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O artigo é fruto de um estudo mais abrangente, como já referimos na introdução,

que se desenvolve no âmbito das Ciências da Educação – Educação e Formação de

Adultos, tendo como suporte a Aprendizagem ao Longo da Vida58 (ALV), encarada pela

União Europeia como uma prioridade política, por considerar que é a partir dela que se

determinam estratégias, meios e modelos de monitorização 59 . Também a Unesco

adverte para uma das suas grandes intenções, no âmbito da educação do novo milénio, –

a universalização das condições de aprendizagem ao longo da vida inserindo-se nos

desejos e valores de uma sociedade democrática, em suma, de uma sociedade mais justa

e inclusiva. No que diz respeito a declarações internacionais, bem como a estudos

realizados no campo do desenvolvimento social, os mesmos direcionam-se no sentido

preconizado pelos propósitos da Unesco e da União Europeia, dando ainda especial

58 Doravante, em vez de Aprendizagem ao Longo da Vida, utilizaremos ALV, por uma questão de economia. 59 Comissão Europeia (1995). Livro Branco sobre a educação e a formação.

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relevo ao poder que os sujeitos devem usufruir de autonomia para se questionarem

sobre o modo de como desenvolverem um aperfeiçoamento permanente e de

envolvimento do outro, contribuindo positivamente para a esfera da vida em sociedade.

Em prosseguimento da referida linha de políticas, e, porque somos defensores da

ALV, do seu alargamento a todos os cidadãos e respeito pelas decisões e opções quanto

ao contributo para uma melhor vida em sociedade, surge o nosso artigo em jeito de mera

reflexão.

Objetivos do artigo e levantamento de algumas questões

Como realçamos na introdução, o objetivo principal do presente artigo prende-

se com o interesse em colocar à discussão temas que, para além se serem da atualidade e

de interesse público, face à ação pública que desenvolvem, também nos permite uma

refleção mais aprofundada sobre o estudo em que nos encontramos envolvidos no

âmbito da investigação. Para além disso, também esperamos encontrar algumas

sugestões por parte dos pares que incluem o nosso grupo de trabalho, que poderão

constituir um valioso contributo para a investigação.

De salientar o facto de a participação em eventos desta natureza se revelarem de

interesse e motivação, uma vez que, para além de podermos alargar o nosso debate

teórico, temos igualmente a oportunidade de o melhorar, no que concerne aos contornos

dos conteúdos da pesquisa.

A acrescentar aos objetivos apontados, é nossa intenção saber se as parcerias, no

âmbito da formação, podem, ou não, ser um processo de combate ao insucesso, ao

abandono precoce escolar, à redução de desigualdades sociais e à criação de soluções de

emprego que satisfaçam as empresas e os Formandos.

As preocupações aqui esboçadas serviram de mote para a construção do nosso

objeto de estudo e desenvolvimento da problemática. Deste modo, e, como guia do

presente artigo arquitetamos a seguinte questão de partida:

– Quais as vantagens, ou não, que as parcerias, no âmbito da formação, entre a

Escola e as Empresas veiculam…

1. Para a Escola?

2. Para a Empresa?

3. Para os Formandos?

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Uma vez que nos encontramos numa fase de análise de informação preliminar60,

as referidas questões serão abordadas apenas com base no quadro teórico que fomos

construindo ao longo da nossa pesquisa.

Descrição sumária do tipo de investigação

O presente artigo aborda apenas uma parte da investigação que estamos a

desenvolver, como já referimos. Trata-se de um estudo de caso entre a escola ESCVF61

e a Empresa REMA62, que trabalham em parceria, no âmbito da formação. O facto de o

estudo abordar a referida parceria prende-se com uma nova forma de agir e de

organização da sociedade portuguesa, ou seja, de uma aproximação dos universos de

educação (formação) e de emprego. A referida aproximação insere-se na linha das

políticas públicas de educação que apontam para novos processos de reconfiguração da

sociedade.

O século XXI conduziu a uma série de alterações e de mudanças nos cidadãos,

nas comunidades (escolares, locais, nacionais, europeias e internacionais) e na

sociedade em geral. Tal tendo originado uma abertura ao mundo, talvez a maior dos

últimos tempos. Contudo, esta abertura de horizontes esboça um quadro, que aos olhos

de alguns observadores, sejam eles académicos, cientistas, educadores, formadores, ou

outros atores sociais, parece apresentar as suas controvérsias e refletir-se na educação,

nas empresas, na formação e na qualificação dos respetivos atores. Este facto, associado

às exigências dos tempos atuais, parece exigir novas formas de desenvolvimento social,

de organização de trabalho nas instituições, nos próprios atores e à “reorganização

produtiva” Castillo, J. (1998: 25).

Os novos desafios vinculados às economias locais, fruto do novo enquadramento

económico, resultante da crise iniciada nos anos setenta, denominada de crise do

modelo fordista, fizeram com que as sociedades modernas se vissem obrigadas a

discutir as bases dos modelos de desenvolvimento, a fim de encontrar soluções para

enfrentar os novos problemas. De entre os vários problemas do século, o problema do

desemprego, é digno de alguma reflexão e discussão, não só pelo efeito que cria nos

60 Como informamos no início, trata-se de um estudo ainda em desenvolvimento e em fase de análise de informação, pelo que, as informações aqui transmitidas são baseadas no quadro teórico que fomos construindo. 61 Nome que atribuímos à Escola para manter o seu anonimato. 62 Nome que atribuímos à Empresa para manter o seu anonimato.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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próprios indivíduos, mas também, pelo facto de ao desemprego estarem ligadas

temáticas como – emprego precário e, consequentemente, o de exclusão social e de

pobreza. O facto de se ter, ou não, emprego, ou de preservação do mesmo, surgem, na

atualidade, como opções a ter em conta pelos próprios indivíduos.

O panorama de incertezas e de obscuridades que ressalta do quadro aqui

esboçado em poucas linhas, justificam que se indague sobre o papel da Escola e se

reflita sobre o modo de colmatar problemas que afetam os indivíduos e as instituições.

Na nossa perspetiva, a Escola poderá decidir em muitas situações, falta saber como e de

que modo o deverá fazer. Daí o questionarmos:

Serão as parcerias, de facto, a estratégia encontrada pela escola e empresas que melhor

se ajusta à resolução dos problemas do desemprego, de desigualdades sociais, de

insucesso escolar?

Esta e outras questões ficam em aberto …

Delimitação teórica: Definição de conceitos chave

O estado da arte centrou-se nos conceitos chave do presente artigo – Parcerias,

Formação (qualificação) e Cursos Profissionais bem como nos autores defensores da

ALV, o que nos permite uma melhor compreensão do objeto em estudo.

A pesquisa de estudos sobre parcerias teve eco em autores como Estivil et al.,

(1994), Carrilho (1998), Rodrigues e Stoer (1998), entre outros, os quais nos revelam

experiências de parcerias em contexto de trabalho, que apresentam indicadores positivos

em relação à diminuição de desemprego, de abandono escolar e de exclusão.

Carrilho (2008) interpreta o conceito de parceria “como o processo através do

qual dois ou mais atores se relacionam na base de pressupostos-chave que têm tradução

na dinâmica subjacente a determinado projeto”. O conceito de parceria de Carrrilho é

semelhante ao descrito por Estivil et al., (1994), bem como ao de outros autores.

A formação (qualificação), a que nos referimos no presente artigo, versa a

formação em contexto de trabalho e é dirigida aos jovens (Formandos), que estão

implicados no processo de parceria entre a escola e a empresa e que se movimentam

nestes dois espaços. Os referidos Formandos encontram-se a frequentar um curso

profissional, onde combinam as vertentes escolar e profissional. A conclusão do curso

permite-lhes a obtenção de uma dupla certificação – escolar e profissional, podendo

optar, findo o curso, pelo prosseguimento de estudos, quer na Faculdade, quer num

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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curso tecnológico. A opção de seguirem apenas a vertente profissional é pessoal,

permitindo-lhes um ingresso mais rápido no mercado de trabalho.

Hoje assiste-se a um grande investimento na qualificação, facto que não terá a

ver com um simples modismo, mas sim com uma das exigências do mercado de

trabalho. O mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e rigoroso, proporciona a

disputa entre as empresas e os profissionais que se querem afirmar e ocupar o mercado.

Kovács (1998) argumenta este facto com o elevado número de recursos humanos e à

grande competitividade existente entre eles na procura de emprego e na obtenção de

formação.

A falta de trabalhadores qualificados, parece ser um problema transversal a

outros países e refletir-se em áreas diferentes, como seja a área de Serviços, da Indústria

da Construção, do Turismo, entre outras.

Desde Países da União Europeia, incluindo Portugal, aos Estados Unidos da

América, Canadá e Países da América Latina, a falta de qualificação básica ou

qualificada, por parte dos trabalhadores profissionais, parece estar nas preocupações das

Políticas Públicas nacionais, europeias e internacionais e de algumas instituições, como

a UNESCO e a ONU. A título de exemplo, numa mera leitura transversal efetuada num

dos momentos em que procedíamos à revisão da literatura, sobre o que se passa noutros

países, no âmbito da qualificação, fomos confrontados com informação sobre o caso do

Brasil, país no qual, a falta de qualificação básica ou qualificada, por parte dos

trabalhadores profissionais, é bastante notória. Esta informação surgiu de estudos já

efetuados na área das empresas ligadas à construção civil 63 . Tal facto, segundo o

referido levantamento, teve origem na grande rotatividade dos trabalhadores, na má

qualidade de educação básica e no facto das empresas revelarem alguma apreensão de

que a formação poderá facultar a perda dos seus trabalhadores. Com o intuito de

colmatar os referidos problemas, e, para melhorar a qualificação profissional, muitas

empresas (64% das 385, já referidas), optam por planos de formação adequados à

própria empresa e por reforçar os laços entre a empresa e o trabalhador, através de

benefícios e incentivos salariais.

O estudo acima referido faz saber que, também há outros países da zona euro,

incluindo Portugal, em que a falta de qualificação de trabalhadores profissionais tem

63 O levantamento efetuado em 385 empresas do ramo da construção civil, pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) indica uma grande carência de trabalhadores profissionais com qualificação básica que respondam às categorias de pedreiros e serventes e de trabalhadores qualificados.

AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I�TERMEDIÁRIAS

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efeitos negativos no aumento da produtividade e na qualidade dos mesmos, no

cumprimento de prazos de entrega, seja de empreendimentos, como no caso apontado,

seja na área de outros bens e produtos, e, ou serviços. Contudo, não será apenas o fator

ligado à qualificação (formação) o único responsável pelo desemprego, mas também o

fator trabalho, que, na ótica de alguns sociólogos atuais, consideram que o conceito de

trabalho está ultrapassado, como é o caso de Marcuse. Se é bem verdade que o trabalho

foi considerado o principal fator de organização da sociedade, hoje assiste-se a outros

fatores de organização, como a família, o racismo, o corpo, entre outros.

Síntese conclusiva

A concluir este artigo, gostaríamos de deixar alguns pontos em aberto, fruto de

alguma reflexão.

Será que uma maior procura de qualificação por parte dos formandos contribuiu

para reduzir o desemprego? Será que o investimento que se fez sentir na educação nos

últimos anos, por parte das instituições – escola, autarquias, empresas, entre outros,

contribuiu para uma redução substancial do insucesso e do abandono escolar? E o que

se fez para reduzir as desigualdades sociais? Não será que o caminho é sempre o mesmo

e as ações políticas se vão repetindo? E a aposta nas parcerias, será para continuar? O

que se pode melhorar?

O olhar crítico que aqui espelhamos é na tentativa de que as questões que

deixámos em aberto possam contribuir para que se reflita sobre o momento presente e

para que desigualdades sociais não se multipliquem.

Contudo, resta-nos um ar de confiança em relação à educação e ao futuro de

jovens e adultos.

A aprendizagem ao longo da vida e a procura de uma qualificação baseada em

competências, sejam elas adquiridas através do percurso individual, profissional, ou

adquiridas num processo de ligação escola e trabalho poderá ser uma ferramenta

essencial e estimulante para os indivíduos.

O programa preconizado pela Iniciativa Novas Oportunidades contribuiu para

que decrescesse o número de indivíduos com a escolaridade mínima e,

consequentemente, com um nível escasso de formação (qualificação), primeiro, através

do Reconhecimento, Validação de Competências Chave (RVCC), como é o caso de

Adultos até aqui pouco escolarizados, depois, e, mais recentemente, através do ensino

POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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dual (profissional) e destinado aos mais Jovens, que procuram uma dupla certificação e

uma maior ligação ao trabalho, através de cursos profissionalizantes.

Na nossa perspetiva, esta estratégia gerada de consensos entre Políticas Públicas

nacionais, europeias e internacionais, tem, em nosso entender, uma face positiva nos

atores sociais, na escola e nos centros de formação, ou onde o acesso à formação seja

facultado. Contudo, falta a outra face, pelo que, ainda há muito para fazer, apesar de se

verificarem algumas melhorias no âmbito da formação (qualificação). Programas como

o PISA e a divulgação de dados estatísticos referentes a rankings nacionais e europeus,

apontam para a ainda existência em Portugal de abandono escolar, desigualdades

sociais, exclusão social e, para um grande aumento de desemprego, aliás, o flagelo do

século. Há que ter isso em conta.

Da nossa parte, confiamos que os desafios aplicados às economias locais,

possibilitem o estudo de formas de crescimento e se insista em arranjar soluções para os

problemas atuais. Como já foi referido, um dos problemas emergentes prende-se com a

propagação e generalização do desemprego, com incidência do aumento dos índices de

pobreza e de exclusão social. Na nossa perspetiva, com base em dados teóricos, as

parcerias constituídas por entidades públicas e privadas, como é o caso que

apresentamos, poderão trazer uma nova dinâmica de intervenção, contendo respostas

inovadoras, muitas delas experimentadas por diferentes atores sociais.

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