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Escola de Sociologia e Políticas Públicas
Perceção dos Impactos do Turismo na Ilha da Boa Vista,
Cabo Verde
Edgar Alexandre da Cunha Bernardo
Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de
Doutor em Sociologia
Orientador(a):Doutor José Luís Casanova, professor auxiliar, ISCTE-IUL
Coorientador(a):Doutor Eduardo Moraes Sarmento, professor associado, ULHT
Março, 2015
Escola de Sociologia e Políticas Públicas
Perceção dos Impactos do Turismo na Ilha da Boa Vista,
Cabo Verde
Edgar Alexandre da Cunha Bernardo
Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de
Doutor em Sociologia
Júri:Doutora Natália Maria Casqueira, professora auxiliar, FLUP
Doutora Maria da Graça Conceição Joaquim, professora adjunta, ESHTEDoutor João Manuel Vasconcelos, investigador auxiliar, ICS
Doutor Pedro Miguel Monteiro, professor auxiliar, ISCTE-IULDoutor José Luís Casanova, professor auxiliar, ISCTE-IUL
Doutor Eduardo Moraes Sarmento, professor associado, ULHT
Março, 2015
Agradecimentos
Foram tantas pessoas que tornaram este trabalho possível, por vezes com pequenos gestos,
algumas palavras de incentivo e apoio, ou sugestões e informações que se revelariam valiosas e
determinantes no meu percurso.
Agradeço ao Professor José Casanova, meu orientador, e ao Professor Eduardo Sarmento,
meu co-orientador pela ajuda, dedicação, apoio, correções, sugestões e incentivos que ao longo
destes anos de trabalho me deram.
Também à Professora Brígida Brito pela orientação na fase inicial desta investigação e por
me a apoiar na elaboração do primeiro projeto submetido à FCT. Com as mesmas palavras posso
igualmente agradecer ao Professor João Vasconcelos que fez despertar em mim o interesse em
avançar com o doutoramento, reacendeu a minha paixão por África, que tornou possível o meu
regresso com este trabalho.
Das inúmeras pessoas que me marcaram em Cabo Verde tenho de destacar e reconhecer a
amizade e o carinho da família Lima, o Edi e a Ana, e claro, o Gui. Das memórias que mais prezo
na Boa Vista, guardo as amizades do Gilson Fragala e sua família, do Emerson Carvalho e do
Nikson Morais. Também um carinho especial pela Naida e sua família que sempre me trataram
bem. Ainda tenho de mencionar o Ogino Almeida, Michel Ramos, Carlos Ramos, e Denise Risete.
Gente que contribuiu de forma vital na identificação de potenciais entrevistas, na recolha de obras
sobre a história da ilha e acelerou o meu processo de integração, e ainda contribuiu com dados
importantes. E ainda a Paula Gaspar pelo tempo e par de olhos extra na leitura do trabalho.
O meu apreço às ONG Turtle Foundation e Natura 2000, não só pelo acesso que me deram,
mas sobretudo pelo trabalho que realizam na Boa Vista, e pelo companheirismo e amizade de
Christian, da Eva, do Pedrine, entre outros que poderia mencionar.
Naturalmente que não me posso esquecer de toda a equipa do CIES que me ajudou e apoiou
desde o primeiro dia com dedicação e profissionalismo, e ao acolhimento institucional que
disponibilizou. Agradeço à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) por ter acreditado no meu
projeto, no seu valor e pertinência, e assim, permitido uma dedicação integral e exclusiva a esta
investigação sem preocupação de maior pelo equilíbrio financeiro e emocional da minha família
através do seu Programa de Doutoramento FCT.
As palavras finais são de dedicatória à minha família, em especial, Sílvia e Vasco. Que este
trabalho dê frutos que nos permitam seguir em frente serenos e estáveis. Amo-vos!
v
Resumo
Este trabalho debruça-se sobre o turismo, um tema que continua apartado do interesse e
dedicação que merece. Do debate em torno da definição dos seus principais conceitos, à
contextualização e resumo das principais contribuições teóricas, esta investigação cria uma
plataforma para a compreensão da importância e pertinência do estudo do turismo, na ótica da
Sociologia. Isto é particularmente relevante quando inúmeras comunidades, Estados e países se
apoiam nesta atividade com a esperança e confiança que poderá contribuir para um crescimento e
desenvolvimento económico e social. Uma esperança que olvida por vezes os impactos negativos
que consigo acarreta e que a par dos positivos, sondamos.
O foco do trabalho é a ilha da Boa Vista em Cabo Verde, contextualizada no âmbito nacional
e regional desde a sua independência em 1975. Apresentamos os indicadores referentes ao turismo e
a sua influência na agenda do arquipélago. Através da aplicação de entrevistas a residentes da ilha, e
de um inquérito aos turistas internacionais, a investigação centrou-se na recolha e análise de
perceções. Perceções dos residentes relativas à motivação dos turistas, aos impactos agregados ao
turismo, relativamente ao futuro e linhas prioritárias de correção. Já aos turistas, questionou-se o
que os trazia à ilha, como avaliavam a sua experiência e se considerariam regressar à Boa Vista.
Demonstra-se que as principais perceções motivacionais para os residentes são ambientais, à
semelhança dos resultados do inquérito aplicado aos turistas. Os impactos positivos são sobretudo
de cariz económico, os negativos, maioritariamente sociais.
O status quo é, para os residentes, um resultado direto das políticas nacionais e regionais de
turismo, tanto nos seus avanços como recuos, e molda respostas na comunidade local que vão da
resistência ao reforço. Resistência pela manifestação e protesto social, e por uma consolidação da
perceção do turismo como um processo nefasto para a ilha e sua comunidade, e particularmente
positivo para a comunidade emigrante, estrangeira, governo central e operadores. O que justifica a
preponderância de uma perceção particularmente incerta e negativa dos entrevistados relativamente
ao futuro da ilha.
Os resultados também servem para testar teorias de referência na análise ao fenómeno
turístico, confirmando-se as teorias da Troca Social, Community Attachment, e Growth Machine.
Palavras-Chave: Sociologia, Turismo, Perceções, Atitudes, Cabo Verdevi
Abstract
This paper focuses on tourism, a theme that remains departed from the interest and
dedication it deserves. Beginning debating around the definition of its main concepts, context and
summarizing the main theoretical contributions, this research creates a platform for understanding
the importance and relevance of the study of tourism, from a sociology point of view. This is
particularly relevant since many communities, states and countries rely on this activity with the
hope and confidence that it can contribute to economic growth and social development. A hope that
sometimes ignores the negative and positive impacts that tourism can entail. This issue is also
tackled in this thesis.
His focus is the island of Boa Vista in Cape Verde, contextualized in the national and
regional level since its independence in 1975. We present the indicators of tourism and its influence
in the archipelago's agenda. By applying interviews to the island's residents, and a survey to
international tourists, this investigation focuses on the collection and analysis of perceptions.
Perceptions of residents on the motivation of tourists, the aggregate impacts of tourism, the future
and priority lines towards correction of its consequences. Has for the tourists, we reveal what
brought them to the island, how they rated their experience and if they would consider returning to
Boa Vista.
It is shown that the main motivations to travel to the island for tourists are environmental
reasons. The same is perceived by the tourists. The positive impacts are mainly economic and
environmental, and the negative mostly social.
The status quo is, for residents, a direct result of national and regional tourism policies in
both their advances as setbacks, which as shaped the local community reactions, from resistance to
adaptation. Resistance through manifestation and social protest, and a consolidation of the tourism
perception as a noxious process for the island and its community, and particularly positive for the
emigrant community, foreigners, central government and operators. This justifies the preponderance
of a particularly uncertain and negative perception of the respondents regarding the future of the
island.
The results also test recurrent theories that analyze the tourist phenomenon, confirming the
Social Exchange, Community Attachment and Growth Machine theories.
Keywords: Sociology, Tourism, Perceptions, Attitudes, Cape Verde
vii
Índice de conteúdosAgradecimentos ….............................................................................................................................. vResumo .............................................................................................................................................. viAbstract ............................................................................................................................................ viiÍndice de Figuras …........................................................................................................................ ix
Índice de Quadros …......................................................................................................................… xLista de siglas e acrónimo …............................................................................................................. xiI – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos..............................................................9
1. O Turismo..................................................................................................................................102. O Turista....................................................................................................................................18
II – Abordagens ao Turismo - uma retrospetiva................................................................................231. A Abordagem Institucional e a Abordagem Técnica..................................................................242. A Abordagem Científica.............................................................................................................333. O Turista e a Autenticidade........................................................................................................42
3.1 'Alternativas' à Autenticidade de MacCannell....................................................................474. Atitude dos Residentes e Relação entre Hóspedes e Anfitriões.................................................53
4.1 Teorias Explicativas da Atitude dos Residentes..................................................................555. Consequências e Impactos do Turismo......................................................................................62
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado................................................................................691. A Modernidade e o Desenvolvimento........................................................................................712. Da Globalização à (Pós) Modernidade .....................................................................................773. Da Governação à Governança...................................................................................................814. O Turismo e a Globalização.......................................................................................................87
IV – Metodologia de Investigação......................................................................................................931. O Método Intensivo: a opção ideal?........................................................................................1002. Análise de Conteúdo................................................................................................................1083. Técnicas, Tratamento de Dados e Calendarização...................................................................1134. Sucessos e Constrangimentos na Aplicação............................................................................118
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura...................................................................................1211. Modelos de Desenvolvimento Caboverdiano (1975-2016).....................................................1252. Turismo em Cabo Verde – um Balanço Nacional....................................................................1303. Da Boa Vista descoberta a Cabo Verde Independente.............................................................1354. Dados do Turismo na Boa Vista...............................................................................................143
VI – Perceções das Motivações em Análise.....................................................................................1491. Por que motivo escolhem os turistas a Boa Vista para fazer férias? .......................................1502. Perceção e Tendências Sócio-demográficas............................................................................1693. Os Turistas e as suas Motivações.............................................................................................176
VII – Impactos Percecionados em Análise.......................................................................................1811. Impactos Positivos Percecionados...........................................................................................1812. Perceção dos Impactos Positivos por Variável Sócio-demográfica.........................................2033. Impactos Negativos Percecionados..........................................................................................2114. Perceção dos Impactos Negativos por Variável Sócio-demográfica........................................252
VIII – Futuro e suas Prioridades em Análise....................................................................................2611. A Boa Vista das Próximas Décadas - Perceção do Futuro.......................................................2622. Perceção do Futuro por Variável Sócio-demográfica..............................................................2683. Prioridades de Intervenção.......................................................................................................273
viii
4. Perceção das Prioridades por Variável Sócio-demográfica.....................................................290IX - Turismo na Boa Vista, uma Discussão......................................................................................297
1. Da Governança na Boa Vista...................................................................................................310Conclusão.........................................................................................................................................317Bibliografia.......................................................................................................................................327
Anexo A: Guião de Entrevista.....................................................................................................359Anexo B, C e D – CD-rom ….................................................................................................... 361
Índice de Figuras
Figura 5.1: Evolução do Número de Hóspedes e Dormidas (2000-2014) 130
Figura 5.2: Evolução do Número de Hóspedes por tipo de Alojamento (2002-2014) 132
Figura 5.3: Número de Turistas por Nacionalidade entre 2000-2004 134
Figura 5.4: Evolução Comparativa do Número de Estabelecimentos (1999-2013) 144
Figura 5.5: Evolução Comparativa do Número de Hóspedes (2000-2014) 145
Figura 5.6: Evolução Comparativa da Taxa de Ocupação (2000-2014) 146
Figura 6.1: Evolução do Número de Quartos na Boa Vista (2002-2013) 164
Figura 6.2: Perceção das Motivações dos Turistas por Género 170
Figura 6.3: Perceção das Motivações dos Turistas por Nacionalidade 171
Figura 6.4: Perceção das Motivações dos Turistas por Grupo de Residentes 172
Figura 6.5: Perceção das Motivações dos Turistas por Área de Residência 173
Figura 6.6: Perceção das Motivações dos Turistas por Escolaridade 172
Figura 6.7: Perceção das Motivações dos Turistas por Situação Profissional 173
Figura 6.8: Perceção das Motivações por Faixa Etária 176
Figura 6.9: Avaliação dos Turistas por Categoria 177
Figura 7.1: Evolução das Receitas do Turismo e Investimento Externo em Percentagem doPIB (2002-2013)
200
Figura 7.2: Impactos Positivos Percecionados por Faixa Etária 205
Figura 7.3: Impactos Positivos Percecionados por Género 206
Figura 7.4: Impactos Positivos Percecionados por Nacionalidade 208
Figura 7.5: Impactos Positivos Percecionados por Área de Residência 208
Figura 7.6: Impactos Positivos Percecionados por Escolaridade 212
Figura 7.7: Impactos Positivos Percecionados por Situação Profissional 213
Figura 7.8: Impactos Positivos Percecionados por Grupo de Residência 215
Figura 7.0: Impactos Negativos Percecionados por Faixa Etária 254
Figura 7.10: Impactos Negativos Percecionados por Género 255
ix
Figura 7.11: Impactos Negativos Percecionados por Nacionalidade 256
Figura 7.12: Impactos Negativos Percecionados por Área de Residência 257
Figura 7.13: Impactos Negativos Percecionados por Escolaridade 258
Figura 7.14: Impactos Negativos Percecionados por Situação Profissional 259
Figura 7.15: Impactos Negativos Percecionados por Grupo de Residentes 260
Figura 8.1: Perceção do Futuro por Faixa Etária 257
Figura 8.2: Perceção do Futuro por Género 268
Figura 8.3: Perceção do Futuro por Nacionalidade 268
Figura 8.4: Perceção do Futuro por Área de Residência 269
Figura 8.5: Perceção do Futuro por Escolaridade 269
Figura 8.6: Perceção do Futuro por Situação Profissional 270
Figura 8.7: Perceção do Futuro por Grupo de Residentes 270
Figura 8.8: Perceção das Prioridades por Faixa Etária 289
Figura 8.9: Perceção das Prioridades por Género 289
Figura 8.10: Perceção das Prioridades por Nacionalidade 290
Figura 8.11: Perceção das Prioridades por Área de Residência 290
Figura 8.12: Perceção das Prioridades por Escolaridade 291
Figura 8.13: Perceção das Prioridades Por Situação Profissional 292
Figura 8.14: Perceção das Prioridades por Grupo de Residentes 293
Índice de Quadros
Quadro 1.1: Relação entre tipo de turista, volume, capacidade de adaptação e respetivaexpectativa, adaptado de Smith (1977)
21
Quadro 6.1: Perceção das Motivações 149
Quadro 6.2: Avaliação Média por Categoria 178
Quadro 7.1: Impactos Positivos Percecionados 181
Quadro 7.2: Empresas com Contabilidade Organizada, Pessoas ao Serviço, Volume deNegócios
194
Quadro 7.3: Impactos Negativos Percecionados pelos Residentes 212
Quadro 8.1: Prioridades de Intervenção na Boa Vista 273
x
Lista de siglas e acrónimos
IIGM – II Guerra Mundial
CCIT – Câmara de Comércio Indústria e Turismo Portugal Cabo Verde
CNUED – Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e Desenvolvimento
EUA – Estados Unidos da América
INE-CV – Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde
IUOTO – International Union of Official Travel Organizations
MIRAB – Modelo Económico baseado em Migrações, Remessas, Ajuda e Burocracia
MpD – Movimento para Democracia
OP - Operadores
OMT/UNWTO – Organização Mundial do Turismo (Nações Unidas)
ONU – Organização das Nações Unidas
PAICV – Partido Africano da Independência de Cabo Verde
PEDTCV – Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Turismo em Cabo Verde
PIB – Produto Interno Bruto
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento de Cabo Verde
REB – Residentes Estrangeiros da Boa Vista
RNB – Residentes Naturais da Boa Vista
RNOI – Residentes Naturais de Outras Ilhas
SDTIBM – Sociedade para o Desenvolvimento Turístico das Ilhas da Boavista e Maio
SET – Social Exchange Theory
TGS – Teoria Geral de Sistemas
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
URSS – União Soviética
ZTE – Zonas Turísticas Especiais
xi
Introdução
Introdução
Turismo. Não se sabe ao certo quando o Homem deu início a esta prática, embora se
reconheça que já na Antiguidade as deslocações no tempo livre tinham um papel de destaque entre
as classes mais abastadas das principais civilizações ocidentais. Na Grécia Antiga, por exemplo, a
valorização da cultura e do desporto deram azo à criação do maior evento desportivo conhecido até
então, os Jogos Olímpicos. Cidadãos de toda a área dominada pelas cidades-estado gregas
convergiam para assistir ao evento.
Durante o Império Romano sobre o mediterrâneo, alcançou-se paz, estabilidade, riqueza, e
um conjunto de infraestruturas que permitiram que os seus cidadãos pudessem desfrutar não só de
eventos culturais e desportivos por todo o seu território, como também que as famílias mais ricas
pudessem construir vilas de férias e até fazer passeios turísticos pelo rio Nilo afim de visitar os
monumentos faraónicos1 antigos.
Séculos mais tarde, durante a Idade Média, as viagens e peregrinações religiosas dominaram
os propósitos dos viajantes, tanto cristãos como muçulmanos: de Santiago de Compostela a Meca,
de Jerusalém a Roma, inúmeros destinos conquistaram a atenção do Homem medieval2. Para que tal
deslocação fosse possível, inúmeras condições foram garantidas: da melhoria das vias de
comunicação à construção de hospedarias e respetivos serviços, e a edificação de ordens religiosas
que visavam garantir a segurança dos viajantes. Ainda neste período, Marco Polo, viajou até ao
Oriente procurando a lendária Rota da Seda e expande o imaginário ocidental com outros lugares,
culturas e religiões.
A partir do século XV, catapultado pelas inovações e invenções tecnológicas, os viajantes
eram capazes de ir muito além do “velho mundo”. Todo um conjunto de novas culturas, terras e
sociedades tornam-se conhecidas e acessíveis a um maior número de pessoas. Com isto não
pretendemos dizer que as viagens na Europa são substituídas pelas aventuras marítimas aos novos
continentes, pois recorde-se que neste período em França foi criado o primeiro guia de estradas com
propósitos turísticos por Charles Estienne em 1552. Entre os séculos XVII e XVIII o Turismo
ganha contornos mais próximos dos atuais quando membros das famílias mais ricas, na sua maioria
jovens aristocratas, começam a viajar de Inglaterra até ao centro e sul da Europa, o chamado Gran
Tour3. Tais deslocações contribuíram para o desenvolvimento na construção de rodovias na Europa
1 Ver Friedlander (1965), D'Arms (1970), Casson (1974).2 Ver Parks (1954), Hunt (1984).3 Ver Bates (1911), Mead (1914).
1
Introdução
e promoveram o desenvolvimento de serviços adequados para esse propósito nas regiões por onde
passavam.
No século seguinte dá-se início à chamada Revolução Industrial que é caracterizada, por
exemplo, por avanços tecnológicos, melhoria das vias de comunicação, pela invenção do motor a
vapor (barco e comboio), e por uma burguesia emergente. Tais condições permitiram que Thomas
Cook constituísse com sucesso a primeira viagem organizada, tendo ainda formado a primeira
agência de viagens, a Thomas Cook & Son, e criado o conceito de “voucher” (cupom para
estabelecimentos hoteleiros). Entre os trajetos de maior sucesso turístico deste período refira-se o
Expresso do Oriente criado em França em 1883, e que chegaria a garantir condições luxuosas para
os seus clientes, viajando de Londres até Constantinopla. Anos mais tarde, é aberto um dos
expoentes máximos da oferta hoteleira até à Primeira Guerra Mundial, o Hotel Ritz de Paris, em
1898.
Entre as duas grandes guerras a invenção do automóvel e subsequente melhoria das vias de
comunicação terrestres conduziram o Turismo a uma dimensão mais móbil que nunca. Igualmente
nesta altura, popularizaram-se os casinos e parques de diversão, em particular nos Estados Unidos
da América (EUA). Após o fim da Segunda Guerra Mundial (IIGM), a rápida recuperação
económica e industrial da Europa Ocidental permitiu um crescimento na atividade turística que
superaria todas as expetativas. Com o desenvolvimento tecnológico, dos transportes, e todo um
conjunto de alterações sócio-económicas que melhoraram a vida dos habitantes destes espaços,
como por exemplo a implementação do Estado-Providência, e ainda com a independência de um
vasto conjunto de países no final do conflito, as portas abriram-se para que o turismo se tornasse
uma atividade apetecível, viável e confortável4.
Os dados atuais falam por si e os números são avassaladores. Se na década de 1980 os
turistas contabilizados não ultrapassavam os 270 milhões (arrivals/chegadas), em apenas vinte anos
mais do que triplicaram. Atualmente atingiu-se a cifra incrível de mil milhões de turistas e projeta-
se que no ano de 2030 se atinjam 1,9 mil milhões! As receitas provenientes do turismo internacional
estão calculadas pela Organização Mundial do Turismo (OMT ou UNWTO) em mais de mil
milhões de dólares, e são as economias mais desenvolvidas que continuam a ser responsáveis pelo
grosso do fluxo turístico mundial, sendo que a Europa se apresenta ainda como principal gerador de
turistas a nível mundial.
4 Para uma retrospetiva mais aprofundada da história e principais etapas do turismo e da viagem ver Fridgen, Joseph(1996), Dimensions of Tourism. East Lansing. MI: AHAM.
2
Introdução
Apesar deste desenvolvimento acentuado, a região menos visitada contínua a ser o Médio
Oriente, logo seguida de África, praticamente a par da Ásia e Pacífico. Tanto em África como no
Médio Oriente, o reduzido e tardio crescimento de turistas é justificável pelo clima de insegurança
política e social que estas regiões viviam, particularmente até à década de 1990. Nestas regiões só
durante a década de 2000 se constatou um crescimento acentuado tanto do número de turistas, como
na emissão de turistas.
No que se refere ao crescimento internacional médio de África, este apresenta dados anuais
de crescimento interessantes com uns constantes 6,7% entre 1980 e 2010, e atualmente 5.4%
(UNWTO, 2013) Apesar disso, com a tendência futura de desaceleração prevista pela OMT, o
turismo ao nível mundial tenderá a atingir um crescimento inferior na presente década. África
apresenta dados que rondarão os 5%, e na região específica em que se encontra Cabo Verde, isto é,
na região classificada de África sub-sariana uns 4,3%.
Compreendemos que o turismo, apesar de um galopante crescimento mundial caracterizado
pelo domínio de economias mais desenvolvidas sobre as emergentes, parece agora sofrer um refrear
da atividade, provavelmente fruto da situação económica destas mesmas economias. Em
contrabalanço, as economias emergentes, lideradas pelo continente Asiático e Oceânia, sugerem um
futuro promissor tanto na emissão de turistas como no crescimento da atividade ao nível
continental, aqui pelo motivo inverso do contexto das economias mais desenvolvidas, ou seja,
devido às economias em crescimento de países como China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan e
Austrália.
No caso africano, e apesar de um crescimento constante do número de turistas recebidos, da
dimensão massiva do continente e do potencial que apresenta, a atividade apenas conseguiu uma
magra percentagem dos lucros do mercado mundial do turismo em 2013, cerca de 3% de um bolo
de 873 mil milhões de euros! Na verdade, este continente é dominado turisticamente por Marrocos,
Tunísia, e a República da África do Sul, sendo que os restantes destinos são comparativamente
diminutos.
O crescimento da atividade no continente demonstra que investidores e governos estão
particularmente atentos aos seus benefícios tanto à escala macro (nacional) como micro (local). O
turismo representa aumento de consumo por parte de estrangeiros nos países recetores, o que
significa mais dinheiro em impostos a recolher, mas também uma melhoria da qualidade de vida,
maior distribuição de riqueza e criação de empregos.
No entanto, é reconhecido que o turismo é muito mais que uma atividade económica. O
3
Introdução
turismo força a uma interação vasta entre pessoas e exige uma variedade de serviços, infraestruturas
e investimentos que permitam gerar e aproveitar oportunidades. Assim, existe a necessidade de gerir
o crescimento e as mudanças do turismo de modo a garantir que o crescimento não afeta os
objetivos estabelecidos para o crescimento ao nível local e nacional.
Ademais, se olharmos para o caso específico do continente africano, existem duas questões-
chave neste ponto: por um lado o turismo e por outro os governos. No primeiro ponto, importa que
os investidores estejam não só atentos quanto às consequências das suas ações como também que
seja contemplada a sustentabilidade do próprio sector a longo prazo. Deve-se procurar desenvolver
os recursos humanos, nomeadamente capacitando e especializando os locais, potenciando a
confiança nos produtores e nos produtos locais, e permitindo um aumento da retenção de
dividendos local e nacionalmente (Dieke, 2000); finalmente, é necessário que as pequenas e médias
empresas locais de turismo sejam capazes de escapar a uma situação de precariedade, que reduz a
qualidade do serviço prestado, e consigam investir em estratégias bem-sucedidas de cativação de
clientes/turistas. Este será um dos maiores desafios do turismo em África.
No que se refere aos governos africanos, hoje a problemática reside sobretudo na sua
capacidade de re-orientar as políticas de acordo com os contributos e experiências que conseguem
recolher localmente, nas suas comunidades, e nos seus parceiros privados, bem como procurar
políticas que facilitem a permanência dos turistas e o surgimento de iniciativas empreendedoras. Por
fim, potenciar os benefícios que o turismo traz para outros sectores, áreas e grupos da sociedade
(Dieke, 2000).
O mercado turístico é entendido por muitos governos, em particular para os dos países em
vias de desenvolvimento, como a única saída para as precariedades e debilidades das suas
economias. A questão que se coloca é se essa aposta com fins económicos justifica os meios
aplicados e respetivos impactos(es) nas comunidades de destino. Ou seja, se a abertura quase
incondicional ao investimento externo é compensada por uma melhoria clara das condições de vida
dos habitantes e pela manutenção ou melhoria dos ecossistemas locais. Terá o movimento
messiânico pró-turismo dos governos encontrado neste a salvação (económica, social e ambiental)
que necessitavam e desejavam?
Nesta linha, a presente investigação pretende dar a conhecer um estudo de caso, a ilha da
Boa Vista em Cabo Verde, que desde meados da década de 1990 começou a abrir as suas portas ao
turismo internacional. Inicialmente de forma tímida e circunscrita a turistas ocasionais, e que
gradualmente se expandiu graças a uma aposta no turismo internacional massificado por parte dos
4
Introdução
vários governos até à data. A par da ilha do Sal, esta ilha divide as atenções de uma grande fatia dos
turistas estrangeiros que visitam o arquipélago, e com ela centenas de milhões de euros têm sido
injetados no destino, afetando a economia local e nacional, mas também a comunidade local e os
frágeis ecossistemas naturais.
Através da presença prolongada do investigador no terreno, da aplicação de entrevistas aos
residentes, este trabalho pretendeu dar voz à comunidade local e à sua perceção de como o turismo
tem influenciado a vida da comunidade boavistense, em particular desde a edificação dos grandes
empreendimentos turísticos em meados da década de 2000. Uma investigação que pretende
identificar os impactos do turismo na ilha, as motivações associadas ao desenvolvimento do
turismo, as perceções que os residentes têm face aos turistas e ao futuro, e as respostas que os
residentes encontram para melhorar ou contrariar os impactos percecionados.
Foram entrevistados residentes nativos da ilha da Boa Vista, funcionários públicos,
estrangeiros e operadores turísticos, contribuindo com uma observação transversal da comunidade,
saltando os alçapões de uma visão unidirecional e política ou etnicamente condicionada.;
Identificados e destacados fenómenos de resistência e de reforço face ao turismo massificado.
Fenómenos de resistência ao turismo internacional, do protesto à passividade, fenómenos de reforço
em que se potenciam capacidades e características locais em função da rentabilidade e visibilidade
do mesmo; e, inquiridos turistas internacionais quanto à sua motivação e avaliação geral da sua
experiência, de forma a poder comparar com as expetativas e perceções dos residentes
entrevistados. Esta contribuição permitiu uma leitura transversal a todos os intervenientes da Boa
Vista enquanto destino.
A experiência no terreno e os dados recolhidos cederam informações pertinentes que
reforçaram a importância da pesquisa qualitativa na recolha de informações sobre destinos turísticos
e suas comunidades, tantas vezes limitada a uma pesquisa puramente baseada na aplicação de
inquéritos por parte de investigadores e de entidades governamentais ou instituições interessadas. O
contacto com a comunidade e seus residentes revelou-se vital na recolha de dados que, de outra
forma, permaneceriam ignorados.
Entre impactos, discursos e reações ao turismo internacional, esta investigação pretendeu
ainda discutir as formas de gestão e planeamento sustentável de destinos turísticos e a importância
das comunidades locais nesse mesmo processo. Um processo que revela a modernização de Cabo
Verde pela aposta, quase incondicional, num turismo massificado assente no mercado Europeu.
Tal discussão culmina na contribuição com várias sugestões. Contribuições que visam um
5
Introdução
turismo sustentável, tendencialmente equitativo, tendo como plataforma uma governança traçada de
e para a comunidade local, sem comprometer os interesses nacionais.
Mas não nos adiantemos sem primeiro explicar o que é afinal o turismo, ou mesmo sem
questionar qual a diferença entre turismo, lazer, recreação e entretenimento. O que é um turista?
Somos todos turistas? O que tem de particularmente interessante e revelador o turismo? Qual é a
pertinência deste tema? Esta é a função do primeiro capítulo, apresentar as definições-chave em
torno dos conceitos de turismo e turista, assim como contribuir como uma definição operativa dos
mesmos conceitos que seja capaz de reunir as melhores contribuições e posicionamentos que a
literatura oferece.
No segundo capítulo descreve-se as principais posturas face ao turismo, desde os
posicionamentos mais técnicos e institucionais, aos académicos ou teóricos. Nestes cabem os
principais autores e suas contribuições, com particular destaque para o debate em torno da
autenticidade, a relação e atitude de residentes face ao turismo e aos turistas, e os impactos do
turismo.
O terceiro capítulo explana a metodologia e técnicas selecionadas para a investigação,
justificando a escolha pelo método intensivo, assim como esclarece os objetivos e as hipóteses
propostos. Por fim, analisam-se e fundamentam-se os sucessos e insucessos da metodologia
selecionada.
A procura por um turismo massificado é por vezes uma resposta à necessidade de acelerar o
processo de modernização de um país ou região. Esse processo está assente em ideais como
desenvolvimento, sustentabilidade e governança, conceitos a que se dedicou o quarto capítulo, em
que ainda se debatem as implicações do turismo num mundo globalizado.
O caso específico de Cabo Verde e da sua caminhada para um modelo de desenvolvimento
assente num turismo massificado habita no quinto capítulo. Nele reside uma contextualização
histórico-social do arquipélago, da Boa Vista, e são apresentados dados atualizados sobre o turismo
na ilha.
O sexto capítulo dá início à análise dos dados recolhidos nas entrevistas e expõe as
motivações que os residentes encontram na escolha da sua ilha como destino de férias. Estas são
ainda cruzadas com as variáveis sócio-demográficas selecionadas e comparam-se os seus resultados
com os do inquérito aplicado aos turistas.
Nesta linha, o sétimo capítulo ocupa-se dos impactos positivos e negativos percecionados,
respetivo cruzamento com as variáveis sócio-demográficas, e indica alguns trabalhos e autores com
6
Introdução
quem se partilharam resultados idênticos ou semelhantes.
O oitavo capítulo remete para a perceção que os residentes têm quanto ao futuro da Boa
Vista, qual a justificação da mesma e potenciais respostas a essa condição. Desmistificando a noção
de que as comunidades locais não dispõem do conhecimento para identificar os problemas e as
potenciais soluções para os problemas de que são vítimas.
A discussão generalizada dos resultados até aqui apresentados encontra-se no nono capítulo.
Neste comparam-se os resultados obtidos nesta investigação com os de investigações de referência.
Adicionalmente, apresentam-se casos de resistência e reforço face ao turismo e respetivas
implicações e consequências. O capítulo final deste trabalho, resume e sublinha os feitos e
contribuições desta investigação e introduz dez sugestões que podem contribuir para o futuro
procurado pela comunidade e governo central.
7
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
Antes de definir o que é Turismo vamos abordar o que não é, apesar de por vezes
confundido como tal. Falamos de lazer, recreação e entretenimento, alguns dos conceitos usados na
órbita do nosso tema central. Conceitos que se referem a práticas que realizamos durante o “tempo
que dispomos” na nossa vida, especificamente, durante o tempo livre. Requixa (1980) propôs a
divisão do tempo do homem moderno em vários momentos. Para o autor, o tempo livre é referente
ao período de tempo que não pode ser nem de trabalho, nem de atenção a necessidades biológicas.
Por sua vez, o tempo livre pode ainda ser dividido em tempo morto (por exemplo, quando
escutamos música deitados no sofá, ou quando ficamos sentados na varanda a contemplar a vista), e
tempo comprometido (isto é, período despendido em obrigações familiares ou domésticas).
Marcelino (1996) contribui introduzindo um outro tempo, o de desocupado, referente à condição de
desempregado (improdutividade). E finalmente, temos o tempo de lazer.
As ideias de tempo livre ou mesmo de lazer são reconstruídas com o surgimento da
sociedade pós-revolução industrial (Magalhães, 1991; Lohmann e Netto, 2012). Com a capacidade
de produzir e consumir em massa reside a necessidade de criar produtos e serviços que possam ser
consumidos também nesse tempo livre (Baudrillard, 1995). Momento que atenua desigualdades e
procura melhorar a qualidade de vida dos indivíduos, mas que também produz novos tipos de
desigualdades.
O direito ao turismo (e à viagem) permitiu que os cidadãos se tornassem móveis para além
das suas fronteiras, acedendo a diversos bens, serviços e produtos culturais de outras sociedades,
aquilo a que Fortuna e Ferreira (1996) chamariam de uma conceção cosmopolita de cidadania, ideia
próxima da de cosmopolitismo estético de Lash e Urry (1994), ou seja, “(...) uma concepção
eminentemente mercantil e consumista do sujeito” (Fortuna e Ferreira, 1996:4).
O tempo livre, como o de trabalho, está “contado”, e é em si uma mercadoria - assim, há que
tirar proveito (Bruhns, 1997). O tempo livre pode ser entendido como tempo social. Um período de
atividades e práticas sociais com regras e normas próprias que permitem modificar estruturas
sociais, instituindo novas relações sociais e novos valores. O tempo livre, com a gradual diminuição
do tempo de trabalho (sobretudo nos países mais desenvolvidos), tem ganho cada vez mais
9
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
“espaço”, e, com ele, o tempo que os indivíduos dedicam ao lazer tem aumentado.
Então como definimos lazer? Para Dumazedier (1973:34) “o lazer é um conjunto de
ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, (…) após livrar-se ou
desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais”. Implica descansar, desenvolver-
se ou divertir-se, e corresponde ao período dedicado a ocupações que respeitam uma ou mais dessas
funções.
Mas a divisão do tempo não fica por aqui. Dentro do tempo de lazer existe ainda o tempo de
recreação, tempo de turismo e outros, por exemplo, entretenimento (Requixa, 1980). A diferença
entre recreação (ou recreio) e entretenimento é ténue. Ambas são realizadas de livre vontade no
tempo livre, e significam restabelecimento e recuperação das obrigações quotidianas; a diferença
reside apenas no facto de que entretenimento exige uma audiência e é uma atividade paga
(Lohmann e Netto, 2012:83).
1. O Turismo
Se o tempo de turismo é diferente de tempo de entretenimento ou de recreação, como
podemos definir turismo? A definição de Turismo, como de resto este ponto tentará demonstrar, é
caracterizada desde logo por profunda dispersão e disformidade; as várias definições de turismo
parecem encaixar noutros tantos propósitos específicos (Malta, 2011). Mesmo entre os académicos,
o turismo é abordado assumindo definições que apenas potenciam as perspetivas individuais dos
mesmos (Lickorish e Jenkins, 1997).
Todavia, procuramos, para além de comprovar essa dispersão, identificar uma definição que
seja operacionalizável, ou seja, útil e pertinente para esta investigação. Caso contrário cairíamos
numa armadilha que “(...) clearly inhibits both coherent investigation of the phenomenon and the
generalization of findings” (Crompton, 1990:2).
Leiper (1990) considera que a origem etimológica de turismo provém do grego, significando
'ferramenta que faz um círculo' ou 'movimento circular', sendo uma expressão usada ainda no
francês e adaptada pelos nómadas normandos para expressar uma volta às muralhas do castelo para
ver a paisagem.
De acordo com Boyer (2000) a palavra ganhou os contornos modernos com as viagens que
os ingleses realizavam pelo continente europeu, sobretudo a partir do século XVII. Viagem
10
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
denominada de 'Gran Tour', de onde terá emanado tourists para classificar os seus participantes, e
tourism para definir a atividade.
A primeira tentativa de definição foi apresentada pelo economista austríaco Herman Von
Schullard em 1910 como sendo a “(...) soma das operações, especialmente as de natureza
econômica, diretamente relacionadas com a entrada, a permanência e o deslocamento de
estrangeiros para dentro e para fora de um país, cidade ou região” (citado por Ignarra, 1999:24).
Tal definição, como as demais contemporâneas sobre este fenómeno, contemplam apenas os aspetos
económicos e comerciais do mesmo, aliás esta tentativa de definição demonstra que apesar do
Turismo ser considerado sobretudo no desenvolvimento pós-IIGM, já existia antes alguma atenção
quanto ao fenómeno. Como de resto os primeiros dados sobre o turismo de massas na Suíça, que
datam de 1848, o confirmam (Lohamann e Netto, 2012).
De facto, desde o final do século XIX o tema começou a ser visto sob as vertentes
económica e social. Mas apenas com a obra de Hunziker e Krapf (1942) passou a ser reconhecido
como um fenómeno socioeconómico a ser estudado de forma multidisciplinar. O desconhecimento
destes e outros autores levou à falsa “inovação” de conceitos apresentados, ou se quisermos, a
alguma redundância dos novos contributos (Lohmann e Netto, 2012:59).
Chegado o fim do conflito mundial e subsequente prosperidade económica, aumento
populacional, urbanização e industrialização, aumento dos direitos dos trabalhadores, surgimento e
acesso a novos avanços tecnológicos, o Turismo emerge verdadeiramente como um atividade para
as massas5. Um tipo de serviço à disposição dos homens e da sociedade industrial moderna, pois
passa a integrar a vida de todas as nações e a contribuir de maneira significante para o
desenvolvimento das atividades económicas (Lage e Milone, 2001).
Foi a partir da década de 1950 que se intensificou a necessidade de definir Turismo e a
atividade turística, sobretudo por motivos técnicos e estatísticos. Falamos em atividade mas é
também comum denominá-lo de formas tão distintas como indústria (“sem chaminés”), sector
económico, ciência, ou fenómeno social.
Turismo é muitas vezes classificado como indústria, sobretudo em contextos económicos ou
comerciais. Entre os autores que assim o classificam temos Beni (2001) ou Leiper (1979). No
5 Para outros autores esta catalogação está errada pois apenas 5 a 10% da população mundial consegue viajarturisticamente (Ouriques, 2008).
11
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
entanto, não existe qualquer fábrica com uma linha de montagem de turismo onde este seja
embalado e distribuído, apesar de inúmeros produtos existirem e serem escoados para o mercado.
Concordamos com Crompton quando este esclarece que
There is no tourism industry per se. There is a hotel industry, a restaurant industry, an airline industry, andtogether with dimensions of other such as automobile, shipping and advertising industries, they areinvolved in meeting the needs and desires of various types of travelers. (Crompton, 1990:3)
Se o turismo fosse uma indústria, teríamos de o resumir à transformação, “montagem de
pacotes turísticos”, distribuição, e consumo direto, por parte dos turistas. No entanto, os produtos
consumidos por turistas são também consumidos por não-turistas. Os pacotes turísticos são
preparados e apresentados por empresas especializadas que vendem esse serviço que é então
procurado pelos turistas. Portanto, o turismo enquadra-se no sector Terciário (Serviços) e não no
sector Secundário (Indústria). O próprio Leiper (1990) viria a corrigir a sua posição afirmando que
foram as tentativas de definição de turismo no início do século XX por parte da Economia que
influenciaram a perceção e noção generalizada de que o turismo era uma indústria.
Uma ideia falaciosa e um caso que havia de se repetir na ideia de que o turismo era um
sector de marketing, ou ainda, um sector económico ou um mercado. Se um sector económico é
delimitado pelos bens ou serviços que produz, no turismo coexiste uma grande variedade de
produções, determinada apenas pela procura e indiferenciada em termos de oferta (Sarmento,
2008:99). Por outras palavras, o turismo viola a definição e as características bem delimitadas do
que representa um sector económico, dada a sua natureza penetrante, transversal e tantas vezes
indiferenciável6.
Estes são exemplos de como se pode confundir o todo pelas suas partes, isto é, o turismo não
é uma indústria, um mercado, um setor económico ou parte integrante de marketing, mas sem
dúvida depende de várias indústrias, muitas transações constituem um mercado, uma parte ocupa o
setor económico e o marketing é um setor essencial para o seu funcionamento.
Apesar da sua juventude e de alguma superficialidade no seu estudo, o turismo é também
entendido por alguns autores como uma ciência, ou pelo menos com potencial para tal (Jovicic
1988; Comic, 1989; Rogozinski, 1985; Leiper, 2000). O pressuposto é de que a criação de uma
'turismologia' poderia pôr termo à dispersão teórica e metodológica dedicada ao tema. Todavia
6 Ver Chadwick, Robin (1994) Concepts, definitions, and measures used in travel and tourism research, Chapter 7 inRichie, B. & Goeldner, C. (1994) Travel and Tourism Hospitality Research. John Wiley & Sons.
12
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
partilhamos a posição de que o turismo não tem aprofundamento técnico-científico que justifique tal
classificação (Dann, Nash e Pearce, 1988; Jafari, 1990; Pearce e Butler, 1993; Ignarra 1999).
Ademais, a produção científica dedicada ao tema é muito pequena e sem grande
representatividade ao nível internacional e isso deve-se ao carácter eminentemente económico do
grosso dos trabalhos desenvolvidos (Barreto, 2004). A operacionalização do Turismo está nas mãos
de técnicos especializados e não da investigação científica e da academia.
Moesch (2002) acusa os estudiosos de não delimitarem uma epistemologia comum,
deixando os seus trabalhos caírem apenas numa análise pragmática, como reforça Nechar (2011),
assente em legitimidades construídas localmente sem recorrer à crítica.
Outros autores como Burns (1999) afirmam que o descrédito provém também do enfoque
dominante dos trabalhos desenvolvidos por antropólogos e sociólogos sobre este tema, que
parecerem delimitados por fronteiras de classe e de cultura:
É útil perguntar se não existirá uma espécie de sobranceria no que escrevem a respeito do turismo 'demassas', e da sua construção social ou suposição de que esse turismo está de alguma forma errado e nemsequer é apreciado pelos consumidores. Esta conjuntura não parece basear-se em pesquisa empírica: sãoopiniões que surgem do facto de se trabalhar e viver num ambiente essencialmente branco de classemédia. (Burns, 1999:33-34)
Uma teoria científica exige elaboração de várias hipóteses que são testadas de forma a
construir ideias que se instituam como pedras basilares desse saber. Boullón (2002) não acredita que
esse momento chegou. Para Fuster (1970), Witt, Brooke e Butler (1991), ou Echtner e Jamal (1997)
não existe tal ciência, mas é necessária uma abordagem científica ao turismo, trabalhando em
articulação com outras ciências, uma abordagem interdisciplinar. As técnicas gerais do turismo
escapam a algumas áreas do conhecimento pelo que qualquer estudo sobre o fenómeno corre o risco
de encontrar múltiplas explicações paralelas que proveem de áreas específicas.
Para que seja considerada uma ciência, o Turismo necessita ainda de uma linguagem própria
universalmente aceite (Boullón, 2002). Por este motivo conclui-se que não será uma ciência mas
sim uma atividade humana abordada por várias disciplinas científicas:
Se partirmos da ideia de que a ciência é uma forma de explicar, compreender ou interpretar a realidade ede que o turismo é uma atividade ou uma prática que implica movimento de pessoas em situaçõesdefinidas com utilização de determinados equipamentos e serviços, está claro que turismo não é ciência,nem fazer turismo ou trabalhar na área de turismo é fazer ciência. (Barreto e Santos, 2005:360)
Não sendo então uma ciência, nem uma indústria ou sector económico, o Turismo é ainda
por vezes entendido como um fenómeno específico. Acreditamos que tal definição não é13
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
necessariamente incorreta mas peca por ser vaga. Boullón (2002) considerava o Turismo um
fenómeno especificamente sócio-económico. Centeno (1992), também considerava possível
formular uma teoria científica do turismo desde uma perspetiva fenomenológica. Este fenómeno
exige que o elemento humano esteja no cerne dos trabalhos desenvolvidos pelos investigadores.
Para estes autores são as interações que transformam factos turísticos em fenómenos.
Nesta linha, entendemos o Turismo como um fenómeno que deriva de uma atividade. Uma
atividade predominantemente económica, pois a reconhecemos como escassa, que procura
satisfazer o consumidor, e que está “articulada com negócios, turistas, sociedades, ambiente, entre
vários aspetos, tendo como finalidades essenciais a esfera social, económica, territorial e
patrimonial” (Sarmento, 2008:100). O Turismo deve ser abordado na totalidade, considerando tanto
as dimensões económica, política, cultural, etc., e optamos por classificar turismo como atividade.
Uma atividade que vários autores depois de IIGM procuraram definir e que colocaram em
destaque quatro premissas elementares na sua definição: as suas relações e fenómenos não
explícitos, a deslocação para fora da residência habitual, o facto de não poder ser uma atividade
remunerada, e a inclusão de turismo doméstico e recetor (Cunha, 2010).
Todavia, com a cada vez maior produção teórica dedicada ao tema, sobretudo na década de
1970, com as contribuições da antropologia e sociologia, emergiram definições com destaque que
procuravam diferenciar conceptualmente o Turismo de atividades próximas, como a proposta de
Kaspar (1981) é exemplo: “(...) o conjunto das relações e fenómenos resultantes da viagem e da
estada de pessoas para as quais o lugar da estada não é nem a residência principal e durável nem o
lugar usual de trabalho.” (citado por Cunha, 2010:11).
Na mesma linha, Cuervo havia publicado no México em 1967 uma teoria que sugeria o
turismo como algo que deveria ser entendido como um meio de comunicação humana: “(...) o
turismo é um conjunto bem definido de relações, serviços e instalações que se geram em virtude de
certos deslocamentos humanos.” (Cuervo, 1967:29). Uma comunicação assente, para Wahab
(1977), no movimento de pessoas, e portanto ideal para o estudo comportamental do ser humano.
Mathieson e Wall (1982) introduzem na sua definição de turismo também as condições que
são criadas para satisfazer as necessidades dos turistas, contribuindo com um dado novo, o da oferta
e da procura turística. Também Smith (1988) e Ryan (1991) sugerem uma definição assente na
batuta do negócio ('business') de forma a diferenciar o turismo de outras atividades. Aqui podemos
14
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
notar a influência da economia no estudo do turismo e que emerge como posição dominante na
década de 1980: “(...) in order to conceptualise tourism adequately academics need to go beyond the
economic and appreciate the relationships of tourism, leisure and recreation with other social
practice (...).” (Pernecky, 2010:3). A preponderância do pendor economicista persistiria em outros
autores posteriores:
O turismo, na sociedade moderna, pode ser definido como um conjunto de diversas atividadeseconômicas incluindo transportes, hospedagens, agenciamento de viagens e práticas de lazer, além deoutras ações metodológicas que produzem riquezas e geram empregos para muitas regiões e países. (Lagee Milone, 1998:30)
Tal postura acaba por inquinar os estudos desenvolvidos sobre o tema já que “(...) muitas
vezes o turismo é visto apenas em seu aspecto técnico, estatístico, mecânico, sem levar em
consideração os fatores subjetivos dos viajantes, das pessoas, que devem ser o ponto fundamental
do fenômeno e irradiador de novas expressões humanas socioculturais” (Lohmann e Netto,
2012:93). Esta clara tendência de abordar de forma segmentada o fenómeno turístico demonstra que
a relação entre o turismo e o sistema de produção continua a determinar o conhecimento que dele
obtemos. O turismo desenvolveu-se com o capitalismo e dele depende para continuar a fazer-se
(Moesch, 2002).
Já Leiper (1990)7 inferiria de forma simplificada que o turismo é apenas um “(...) conjunto
de ideias, de teorias e ideologias, de ser turista, sendo o comportamento de pessoas dentro das
regras do turismo (…)” (citado por Coelho, 2007:11). O turismo é sugerido apenas na perspetiva de
uma construção social generalizada, tendo como base o comportamento, as regras e as pretensões, e
ignorando a importância das relações. Um erro que mina a sua posição e que, como acontecia com
as posições mais economicistas, ignora as relações e subvaloriza o fenómeno em si.
Tribe (1997) considera que o Turismo é mais complexo que uma construção social ou um
comportamento: é a “(...) soma dos fenómenos e relações resultantes da interacção nas regiões
emissoras e receptoras, dos turistas, fornecedores de negócios, governos, comunidades e ambientes”
(Tribe, 1997:641). A sua contribuição resume-se à consideração de várias dimensões vitais,
nomeadamente relacionadas com os turistas, com os negócios, com a comunidade anfitriã, e com o
seu ambiente, e tanto com os governos anfitriões como com os países emissores de turistas. É
incluído o critério de “espaço” - regiões que recebem e emitem.
7 Leiper (1979) assume inicialmente uma postura face ao turismo do tipo económico-institucional que vê o turismocomo uma indústria.
15
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
A consideração dos governos e regiões emissoras e recetoras é vital e escapa a alguns
autores contemporâneos como Andrade (1997), para quem o Turismo é “(...) o complexo de
atividades e serviços relacionados aos deslocamentos, transportes, alojamentos, alimentação,
circulação de produtos típicos, atividades relacionadas aos movimentos culturais, visitas, lazer e
entretenimento” (citado por Malta, 2010:26).
O Turismo enquanto prática social está balizado por várias premissas. Desde logo é uma
prática excecional ou não quotidiana, que exige uma deslocação ou viagem num movimento de
retorno e que procura ser 'extra-ordinária'. Dado que parte dos envolvidos, os recetores, se
encontram em trabalho (ou pelo menos não se enquadram numa situação de lazer), a interação entre
estes e os turistas tende a permitir o contacto com diferentes culturas e diferentes ocupações. Algo
que à partida deve ser considerado também quando falamos em turismo.
O Turismo é mobilizador não só dessa tal rede de atores sociais, que vão do turista ao
promotor e profissional de turismo, passando pelos autóctones, 'indiferentes', ou não, à sua
passagem. Enquanto processo, é-lhe inerente uma articulação de serviços e pessoas que são
preparados desde antes da sua chegada até ao dia em que partem; é assim constituído por vários
segmentos individualmente vitais para o seu sucesso.
Goeldner et al (2002) colocam novamente em evidência as relações e a interação que a
atividade provoca, sublinhando toda uma dimensão social por muitos autores, como vimos, relegada
ou ignorada. Considera-se o turismo como “(...) a soma de fenômenos e relações originadas da
interacção de turistas, empresas, governos locais e comunidades anfitriãs, no processo de atrair e
receber turistas e outros viajantes” (Goeldner et al, 2002:23). O Turismo vai mais além do mercado,
dos espaços, das relações e interações e, assim, “(...) pode ser visto como reflexo de práticas sociais
e que envolve também representações sociais” (Lohmann e Netto, 2012:92).
Numa tentativa de simplificar a definição de turismo, Leiper (1990:10) considera que
“Tourism is a set of ideas, the theories or ideologies, for being a tourist, and it is the behavior of
people in touristic roles when the ideas are put into practice”. Uma postura assente na perspetiva
comportamental e que relega totalmente a componente económica do mesmo o que, na nossa
opinião, a torna desde logo incapaz de a definir adequadamente.
A dispersão de definições parece comprovar a existência de inúmeros modelos analíticos
incapazes de captar a complexidade do tema e produzir novos conhecimentos, arrastando o domínio
16
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
das posturas dominantes no discurso técnico-científico do turismo, em particular os discursos
opostos pró e contra o turismo.
Por exemplo, Cunha (2010) identificou um conjunto de elementos que considerava
obrigatórios na definição de Turismo, atribuindo particular destaque à centralidade do consumidor e
à importância dos recursos, bem como à importância da interpenetração entre a procura e a oferta
para a compreensão do turismo. O autor sugere a seguinte definição de Turismo: “(...) conjunto das
atividades lícitas desenvolvidas por visitantes em razão das suas deslocações, as atrações e os meios
que as originam, as facilidades criadas para satisfazer as suas necessidades e os fenómenos e
relações resultantes de umas e outras” (Cunha, 2010:19).
Ainda assim, esta definição retém fissuras em vários pontos. Desde logo algumas atividades
ilícitas estão “envolvidas” no turismo, como o turismo sexual. E a busca de uma necessidade não
satisfeita não explica o turismo; o turismo vai além da comum necessidade. Podemos dizer mesmo
que há uma busca por serviços e/ou condições particulares que procuram ser satisfeitas, sejam estas
definidas como “desejos” ou outro conceito semelhante. Finalmente, a continuidade da relevância
dada à ideia de deslocação para consumo mostra que o turismo teima em ser balizado por conceitos
economicistas deixando para segundo plano as questões sociais.
Consideramos que o foco da definição de Turismo deve residir no seu objeto, o individuo, o
turista; nas suas atividades, interações e relações com o espaço recetor e com o espaço emissor. Os
governos, as agências e os operadores do espaço recetor são chamados de mediadores. A estes
podemos adicionar outros turistas e visitantes, organizações não-governamentais e outras
instituições, mas também aspetos físicos e paisagísticos, pois também a geografia pode condicionar
e interferir nessas relações e interações. Um último aspeto que levamos em conta são os resultados
que derivam de todo este processo, por vezes definidos como consequências, impactos e/ou
impactes, e que são parte integrante do mesmo tanto no espaço recetor como no espaço emissor.
O problema principal neste debate é encontrar uma definição que seja aceite
transversalmente por várias jurisdições políticas e científicas, sendo capaz de lidar com a maioria
dos casos e não apenas os mais insólitos (Smith, 1995).
Desta forma definimos Turismo como o: conjunto de atividades, interações e relações
temporárias entre turistas, residentes e mediadores (públicos e privados), estabelecidas em resposta
às necessidades e desejos dos turistas e seus resultados no espaço recetor e no espaço emissor.
17
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
Sobretudo para fins estatísticos e burocráticos, de acordo com Cunha (2009), o Turismo
pode ainda ser classificado consoante os denominadores selecionados como: a origem dos
visitantes, as repercussões na balança de pagamentos, a duração da permanência, o grau de
liberdade administrativa, e a organização da viagem e tipo de turismo. Sobre este último
denominador consideramos que apesar dos múltiplos tipos de turismo publicitados e sugeridos,
sobretudo pelos operadores e agências de turismo, tais designações procuram sobretudo uma
vantagem comercial destacando certas características ou imagens associadas, e não podem ser
consideradas como tal. Os tipos de turismo apresentados são uma referência a uma designação geral
e ampla onde muitas vezes tais designações erróneas se enquadram.
Deste modo, e de forma sucinta, apresentamos os seguintes tipos de turismo: turismo de
recreio (turismo balnear, belezas naturais ou grandes centros urbanos), turismo de repouso
(recuperação física e mental), turismo cultural (centros culturais e património), turismo étnico
(contacto com grupos humanos tidos como exóticos para os turistas), turismo de natureza
(ambiental ou ecológico), turismo de negócios (congressos, exposições, e centros urbanos ou
industriais), turismo desportivo (manifestações desportivas), ou até cenários de inter-relação entre
os anteriores.
2. O Turista
A primeira definição de turista a ser reconhecida oficialmente foi concretizada em 1937 no
âmbito da Sociedade das Nações (SDN), onde turista se aplicava a todas as pessoas que viajavam
para um país diferente daquele de sua residência durante pelo menos vinte e quatro horas. Ora
viajante não é o mesmo que turista. Viajante é uma classificação extensa que incluí o turista e outras
classificações específicas. Viajante “(...) designa toda a pessoa que viaja entre dois ou mais locais,
qualquer que seja o modo ou o meio da sua deslocação” (Cunha, 2009:17). Os viajantes podem ser
divididos em dois grandes grupos: por um lado aqueles que são incluídos nas estatísticas do
turismo, chamados de visitantes, e os que não são. Entre estes últimos temos, por exemplo,
passageiros em trânsito, refugiados, diplomatas, estudantes, etc. Já os do primeiro grupo podemos
subdividir entre turistas e excursionistas, que por sua vez podem ainda ser subdivididos em outras
classificações mais específicas.
Estas distinções merecem a nossa atenção. Apesar de já anos mais cedo a International
18
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
Union of Official Travel Organizations (IUOTO) ter sugerido a criação de categorias como
excursionista e viajantes em trânsito, foi apenas em 1953 que a Comissão de Estatísticas da ONU
criou o termo de visitante, cuja grande novidade seria a delimitação de um ano como o tempo
máximo de permanência num país fora da sua residência habitual. Logo no ano seguinte, a
Convenção das Nações Unidas altera a definição de turista com uma nova delimitação do tempo
máximo de doze para seis meses, e introduz o motivo de viagem como determinante.
Na Conferência das Nações Unidas em Roma, no ano de 1963, é novamente assumido o
termo de visitante, sendo que desta feita engloba também os anteriores de turista e excursionista.
Este termo deixa cair a baliza temporal e é simplificado, sendo considerado visitante todo aquele
que não se desloca para o estrangeiro por motivos profissionais.
Já em 1971, e por motivos estatísticos, a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e
o Desenvolvimento (CNUCED) exige nova reformulação, retornando a baliza temporal e
reintroduzidos os termos de excursionista ou visitante do dia, referindo-se estes às pessoas que
permanecem menos de vinte e quatro horas noutro país.
A constante dança nas definições não ficaria por aqui, pois em 1983 a OMT, que substituiria
a IUOTO, passaria a incluir na definição de turista os visitantes domésticos, denominando-os
visitantes nacionais. Finalmente, é a Comissão de Estatística da ONU que, dez anos mais tarde,
estabelece uma definição institucional oficial, e ainda utilizada, para os termos: visitante, turista, e
visitante do dia.
O visitante é aquele que se desloca para um local não habitual por um período de menos de
doze meses e por motivos que não englobem uma atividade remunerada. O turista é por seu turno
um visitante que durante pelo menos uma noite usufrui de um alojamento coletivo ou privado no
local visitado. E por fim, o visitante do dia é aquele que não chega a pernoitar no local visitado (tal
como o excursionista).
Esta tentativa de definição pode ser criticada desde vários prismas. Desde logo porque a
ideia de ambiente habitual é arbitrária e “(...) introduz falta de rigor na determinação dos fluxos
turísticos, na sua avaliação e na investigação dos efeitos económicos e sociais que provocam”
(Cunha, 2010:7). Do mesmo modo, a questão da passagem de uma noite é problemática pois põe de
lado todos os visitantes que optam por pernoitar em casas que não sejam de alojamento turístico, ou
mesmo, que optam por não pernoitar. Igualmente, nem todo o indivíduo que usufrui de um
19
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
alojamento turístico pode ser classificado como turista ou visitante.
Estas definições pecam pela desconsideração de outras dimensões que não apenas as
referidas, tais como a duração, localização, motivo da visita, etc. O turismo é um fenómeno que vai
além destas dimensões; ele envolve interações entre indivíduos, o uso de recursos, contextos
económicos, ambientais e sociais diversos e complexos, pelo que são variadíssimos os focos de
análise da atividade turística que atravessam a Sociologia, Antropologia, Psicologia, Economia,
Geografia Humana, etc.
Com isto queremos dizer que o turismo e o turista devem ser compreendidos para além de
uma visão puramente técnico-institucional e claramente influenciada pela economia, como as que
apresentámos até agora. Deve considerar uma visão heurística, capaz de satisfazer os investigadores
que procuram escapar à visão técnica e procurar uma abordagem científica e académica que
explique não apenas para onde vai e o que consome o turista, mas sim, por exemplo, porque vai e
porque consome. Falamos portanto de comportamento.
Vejamos a sugestão de Leiper (1990) que define o turista como
(…) a person travelling away from their normal residential region for a temporary period, staying away atleast one night but not permanently, to the extent that the behavior involves a search for leisureexperiences from interaction with features or environmental characteristics of the place(s) they choose tovisit. (1990:10)
Nesta definição vemos considerados os atributos que para o autor são essenciais para uma
definição do tipo comportamental, como a deslocação, a duração, o espaço-tempo da atividade, a
relação entre o turista e alguma parte característica do local de visita. No entanto, outras propostas
devem ser consideradas.
Cohen (1974), por exemplo, focou a sua definição na ideia de expectativa de prazer: “A
voluntary temporary traveller, travelling in the experience of pleasure from the novelty and changed
experience on a relatively long and non-recurrent round-trip” (Cohen, 1974:533). Para este autor o
turista procura uma experiência que lhe traga novidade, sendo essa novidade o que mais atrai o
turista. Serve para reforçar que a deslocação do turista é em busca da satisfação dos seus desejos,
sejam eles a procura pela novidade, pela fantasia ou pela semelhança.
Neste exercício Cohen procurou ainda diferenciar os tipos de turistas existentes, escapando à
definição generalizada de turista. Para tal, isola as dimensões características do fenómeno turístico e
constrói uma 'árvore concetual' capaz de identificar e diferenciar cumulativamente tipos de turistas
20
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
marginais.
Este não foi o único autor a produzir tais diferenciações. Por exemplo, para Smith (1977), os
turistas podem ser agrupados em categorias ideal-tipo gradativas: explorador, elite, excêntrico,
incomum, massa incipiente, massa, e charter. Consideramos parte do nosso objeto de estudo o tipo
de turista charter, que procura um serviço pré-organizado com acomodações estandardizadas de
acordo com os padrões ocidentais, e um local com bom clima e temperatura, num ambiente familiar
a um preço acessível.
Abaixo deixamos o quadro adaptado de Smith (1977) para análise, onde se podem ver os
tipos de turista relacionados com o seu volume relativo, as suas expectativas e capacidade de
adaptação ao destino:
Sendo o nosso foco central de análise o turista que Smith classifica de charter, a nossa
proposta de definição de turista enquadra-se nas definições abrangentes ou generalizadas de turista.
Desse modo, passamos a considerar a seguinte definição: turista é um(a) visitante que se desloca e
pernoita temporariamente num espaço/lugar procurando satisfazer necessidades e desejos,
relacionando-se e interagindo com residentes e elementos mediadores das atividades que pratica
com esse intuito.
Das suas origens mais longínquas na história à gradualmente acrescida complexidade
burocrática e estatística, o turismo continua a ter uma papel preponderante nas sociedades
contemporâneas, aliás, um papel cada vez mais preponderante.
O percurso histórico-concetual de turismo e turista que apresentámos neste capítulo, assim
como as definições originais apresentadas, sublinham a importância do debate dos conceitos-chave21
Tipo de Turista Volume Capacidade de Adaptação ExpectativaExplorador Muito Limitado Total Destino intocadoElite Muito Escasso Total Partilhar destino de forma pré-organizadaExcêntrico Pouco Frequente Elevada Fugir aos circuitos e a multidõesIncomum Exporádico Aceitável Visitar sem explorar ou ir a lugares remotosMassa Incipiente Fluxo Constante Reduzida Comodidade e autenticidade em pequenos gruposMassa Fluxo Continuo Mínima Comodidades idêntica ao lugar de origemCharter Fluxo Continuo Mínima Comodidades idêntica ao lugar de origem
Quadro 1.1: Relação entre tipo de turista, volume, capacidade de adaptação e respetivaexpectativa, adaptado de Smith (1977)
I – O Turismo e o Turista – Operacionalização de Conceitos
desta investigação, assim como de vários outros conceitos conexos e dependentes, muitas vezes
confundidos e sobrepostos a estes, no estudo do homem social.
Terminada esta introdução à diversidade de concetualizações sobre o turismo, passemos
agora à revisão da abordagem científica, recordando as principais contribuições que as ciências
socias, em particular a Sociologia, têm doado a este tema, passando primeiro pelas condicionantes e
contribuições mais comuns de outras disciplinas e setores interessados.
22
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
II – Abordagens ao Turismo - uma retrospetivaQuantos olhares intrigados, trocistas e perplexos tenho afrontado sempre que falo do tema dos meustrabalhos universitários! (…) trabalho sobre os comportamentos turísticos, (…) para os compreender apartir do interior (Amirou, 2007:11).
A investigação em turismo pode privilegiar várias perspetivas. Um investigador pode
preferir estudar o turismo desde uma perspetiva psicológica e tentar entender o comportamento do
turista, o que o atrai e por que atrai, e simultaneamente entender como os operadores recolhem esta
informação e a trabalham para criar ou manipular espaços e/ou ambientes.
Já segundo a perspetiva da geografia (humana), o investigador pode procurar uma definição
mais adequada das características ideais para o estabelecimento de um destino turístico, assim como
fornecer as ferramentas para uma previsão do volume de turistas ou das despesas em causa em tal
potencial estabelecimento. É dizer, procurar uma melhor compreensão do espaço, da resposta ao
espaço da parte do turista, ou da resposta à alteração do espaço da parte do residente.
Um economista pode centrar a atenção no turismo enquanto recurso, capaz de produzir
riqueza de forma direta e indireta, tanto no setor público como no privado. Para tal, é necessário um
investimento em conhecimento empírico e teórico devidamente fundamentado de modo a retirar o
máximo proveito da atividade minimizando os seus impactos negativos.
Um antropólogo estará sempre mais atento às questões que envolvem contacto cultural e
mudança social. Nomeadamente, as forças que geram turistas e o turismo, as transações entre
culturas ou subculturas que são parte integrante de todo o turismo, e as consequências para as
culturas e indivíduos a elas pertencentes (Nash e Smith, 1991:22).
Por fim, um investigador formado em sociologia pode prender o seu interesse nos
comportamentos sociais, nas experiências sociais e nas interações entre os turistas, os residentes, e
as instituições envolvidas na atividade turística. Tal conhecimento pode contribuir, por exemplo,
para melhor compreender a estrutura social e o seu funcionamento em sociedades diferentes.
A multiplicidade de perspetivas que se ocupam do turismo será o ponto central deste
capítulo. O turismo é um campo com muitos desafios e oportunidades, e um dos seus principais
problemas, segundo Smith (1995), é a inexistência de informação credível capaz de responder aos
seus desafios e problemáticas. Esta introdução serve para demonstrar que o tema, apesar de
inúmeras abordagens diferentes, é estudado por várias disciplinas científicas. Tal interesse é
23
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
evidente nos crescentes artigos e publicações dedicadas ao mesmo.
Se no capítulo anterior introduzimos o debate concetual de turismo e de turista, agora
apresentaremos as principais abordagens à atividade turística, que optámos por dividir em três
categorias: a institucional, referente ao posicionamento interpretativo do turismo desde o prisma das
instituições públicas nacionais e internacionais; a técnica, cujo propósito é de criar ferramentas
práticas de avaliação e intervenção na atividade a fim de corrigir os seus impactos negativos e
potenciar os positivos; e, finalmente, a abordagem científica, dedicada ao debate teórico que habita
as ciências sociais, com destaque para a Sociologia e a Antropologia.
1. A Abordagem Institucional e a Abordagem Técnica
Comecemos então pela abordagem institucional. Estejamos a falar em Estado ou qualquer
outra estrutura administrativa pública à escala regional, nacional ou supranacional, é imperativo
desenvolver competências que permitam gerir e planificar com sucesso uma dada área governativa.
O turismo não é exceção. A capacidade de definir e medir indicadores é determinante para o
desenvolvimento de ferramentas estatísticas que permitam aos governos planificar e aplicar
estratégias de forma a corrigir, alterar ou melhorar a sua capacidade interventiva.
Dada a magnitude e diversidade na atividade turística, existem várias formas de acompanhar
estatisticamente a sua evolução e efeitos; todavia, por mais díspares que sejam os mecanismos ou
técnicas de estatística, o objetivo principal tende a abarcar questões-chave como: elementos
determinantes na procura, os movimentos das pessoas, o património e recursos turísticos,
equipamentos disponíveis, relação entre turismo e ambiente, o impacto económico e social do
turismo, e os efeitos que promovem alterações sociais (tradição e cultura).
Com estes dados os Governos podem melhor regular e regulamentar o turismo, mas também
dele retirar melhores rendimentos dado que são grandes beneficiadores do mesmo, agindo como
autênticos operadores turísticos com interesse económico, sobretudo pelos seus efeitos na balança
de pagamentos e divisas.
Dentro, ainda, desta categoria institucional podemos agregar o setor privado, também ele
interessado nos dados estatísticos e no desenvolvimento dos seus próprios planos económicos
estratégicos. Os operadores turísticos e empresas com atividades relacionadas com o turismo
encontram nessas estatísticas informações importantes para a definição das suas ações empresariais,
24
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
realização de atividades de marketing, avaliação de desempenho e tendências dos movimentos
turísticos. E, claro, outros privados que procuram investir, seja de forma avultada ou não, em
atividades relacionadas direta ou indiretamente com o turismo, necessitam das informações
estatísticas de forma a tomar decisões mais adequadas.
No relatório anual de 1997, a OMT definiu ser essencial determinar três esferas de
avaliação: as relações entre o turismo e o ambiente em geral; os efeitos dos fatores do meio sobre o
turismo; e os efeitos da atividade turística sobre o ambiente. Esferas que seriam avaliadas tendo por
base indicadores como intensidade de utilização, capacidade de carga e satisfação do consumidor.
Desta forma, a avaliação é elaborada com base em indicadores quantitativos, por exemplo a
intensidade de utilização é medida através do cálculo direto entre o número de visitantes de um
local a dividir pela sua superfície. Igualmente, o impacto social é determinado pela relação direta
entre o número de turistas no período alto do turismo e o número de residentes.
Os métodos estatísticos são técnicas a que tanto governos, operadores e privados recorrem,
apesar das suas informações nem sempre serem as mais indicadas visto que a fiabilidade e
comparabilidade nem sempre são adequadas, e mesmo porque nem sempre as estatísticas
conseguem dar-nos todas as informações que necessitamos. Como exemplo, não podemos esquecer
que as atividades turísticas não são diferenciadas de forma clara de outras atividades, e nem todos
os países têm equipamentos que possam ser comparáveis, tornando difícil considerar certos
indivíduos como turistas ou viajantes. Igualmente, bens e serviços turísticos podem ser consumidos
tanto por turistas como por residentes. O mesmo ocorre em termos concetuais: nem todos os países
se baseiam nas definições determinadas pela ONU ou OMT.
Isto significa que “(...) na prática, a maior parte das estatísticas de turismo baseiam-se
fundamentalmente na identificação de quem realiza as transacções de bens e serviços turísticos, ou
seja, os visitantes e os fornecedores directos” (Cunha, 2009:53). Ou seja, a estatística continua a ser
o grande informante apesar de revelar dados referentes a apenas duas categorias: a oferta e a
procura. Ainda assim, a estatística institucional serve como principal bússola das avaliações das
atividades turísticas num dado espaço.
Apesar da riqueza dos dados que a abordagem institucional providencia, podemos ainda
recolher importantíssimos contributos da abordagem técnica que procura complementar a anterior
formulando modelos interpretativos e de avaliação do desenvolvimento turístico. Tais modelos
25
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
procuram determinar o desenvolvimento do turismo num dado lugar tendo como referência os
próprios impactos da atividade nas comunidades recetoras. Nomeadamente, impactos económicos,
ambientais e sociais. Estes modelos são produzidos não só por técnicos da área turística, mas
também por economistas, antropólogos e sociólogos.
O primeiro modelo de referência desde género é elaborado por Bjorklund e Philbrick (1972),
assente numa matriz que se baseia na medição das atitudes e do comportamento de
grupos/indivíduos face ao turismo. Um modelo simplista que serve de ponto de partida para o de
Doxey (1976). Este cria um modelo a que denomina de “Irridex” e que é composto por quatro
atitudes anímicas consecutivas: 1) Euforia, marcada por uma perceção e atitude positiva; 2) Apatia,
marcada por uma atitude indiferente; 3) Irritação, correspondendo a fricções e hostilidade para com
os turistas; e 4) Antagonismo, caracterizado por atitudes de desprezo e crítica aos turistas e ao
turismo. No entanto, também este modelo foi alvo de críticas pois, por exemplo, no início do
desenvolvimento do turismo nem sempre se verifica a “euforia”, pondo em causa todo o modelo.
Um outro modelo para evolução dos destinos, desde uma perspetiva do turismo e os seus
impactos, é o da autora Valene Smith (1977). Ela infere que existem diferentes impactos pois
existem diferentes turistas. Assim, cria um modelo que considera o volume, o tipo de turistas e o
grau da sua adaptação às normas locais. A autora é no entanto criticada por não considerar que a
interação dos residentes com um elevado número de turistas pode causar tensões e promover um
certo antagonismo entre os visitantes e os visitados.
Um trabalho pioneiro ainda hoje com destaque é o de Richard Butler (1980), que apresentou
o conceito de “Ciclo de Vida de um Destino Turístico”, passando este pelas seguintes fases: 1)
exploração; 2) envolvimento; 3) desenvolvimento; 4) consolidação; e 5) estagnação (sendo esta
depois seguida ou por declínio ou por rejuvenescimento):
Quando Butler (1980) sugeriu que um destino turístico, à semelhança de um produto, passa por fasesevolutivas, identificando e caracterizando seis fases (exploração, envolvimento, desenvolvimento,consolidação, estagnação e declínio ou rejuvenescimento), fê-lo consciente da importância da definiçãodessas fases enquanto ferramenta mental de apoio à tomada de decisão para o futuro e da compreensão dopassado, de modo a se evitarem erros já ocorridos. (Coelho, 2007:1)
É da sua proposta que emerge o conceito de 'capacidade de carga' que se refere à capacidade
de um destino turístico, nomeadamente desde a perceção dos residentes, de suportar os impactos
negativos da atividade turística8. De acordo com Murphy (1985), este conceito é uma afirmação
8 Também D'Amore (1983) sublinha que esta capacidade é definida apenas pela perceção dos residentes e não através 26
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
filosófica de que todos os destinos têm uma quantidade de recursos limitada, bem como, permite
determinar os impactos sociais dos desenvolvimentos turísticos. Isto é, a capacidade de carga é uma
ferramenta vital para uma melhor política de turismo (Murphy, 1985:135).
Para Weaver (2000), a noção adequada seria antes de 'limite de aceitação de carga'9, pois
será menos maleável, subjetivo e complexo que o anterior. Para Saveriades (2000) a capacidade de
carga não é fixa; ela sofre mutações com o tempo, com o crescimento do turismo, ou outros fatores,
pelo que pode ser manipulado pela gestão, assegurando um desenvolvimento sustentável a longo
prazo. Resta referir que este conceito tende a gravitar em torno das dimensões físicas, económicas,
sociais, culturais, e ambientais.
Do modelo de Butler têm emergido outros semelhantes, o que leva Getz a afirmar que “o
número limitado de estudos de caso disponíveis na literatura certamente não provou a validade dos
estágios do ciclo de vida teorizados, e os problemas da sua utilidade para o planeamento já foram
destacados”10 (Getz, 1992:754).
Getz defende que os investigadores deveriam estar mais preocupados em acompanhar
indicadores relacionados com o produto, mercado e seus impactos, que indiquem o estado da
“indústria” e seus problemas, do que procurar encaixar os casos em modelos.
Para Johnson e Snepenger (2002), alguns dos problemas da aplicação do modelo do Ciclo de
Vida reside na sua aplicação concetual setorial e não longitudinal, como havia sido pensada. Isto
dever-se-ia à escassez de recursos disponíveis aos investigadores ou mesmo à necessidade de
produção de artigos rapidamente. Ainda assim, consideram que este modelo é o mais indicado para
uma gestão mais flexível e adequada aos mercados sempre em mudança.
Andriotis (2003)11 infere que o modelo, ao contrário do que apregoava Butler, não deve ser
considerado para todas as situações:
Numerous other studies have suggested that Butler’s life cycle model applies to various destinations, suchas Lancaster County (Hovinen, 1981), Laurentians, Quebec (Lundgren, 1982), the Grand Isle resort ofLouisiana (Meyer- Arendt, 1985), Malta (Oglethorpe, 1984), Vancouver Island (Nelson and Wall, 1986)and Minorca (Williams, 1993). Other researchers found Butler’s model incapable of explaining thetourism evolution of some resorts and proposed modifications or alternative models that better fitted thedevelopment process of particular resorts. Among these studies Haywood (1986) proposed a variety of
de outros indicadores externos.9 Este será a capacidade de absorver o desenvolvimento turístico antes que os seus impactos negativos se façam sentir
na comunidade local, ou nível de desenvolvimento turístico após o qual o fluxo turístico decline devido ao fim daatração e satisfação do destino.
10 Tradução livre do investigador.11 Autor que, por exemplo, também aplicaria este modelo ao caso da ilha de Creta (Andriotis, 2003).
27
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
possible tourist-area cycles of evolution that may occur as opposed to Butler’s model. (Andriotis, 2003:5)
Também Cooper (2002) recorda que a questão do ciclo de vida de um destino turístico é um
tema muitas vezes tido como de gestão contínua; todavia cada uma das suas fases compreende
planeamento, gestão e estratégia própria. Este tipo de planeamento estratégico exige a consideração
de diversas variáveis de forma a conseguir os seus objetivos de sustentabilidade.
O planeamento estratégico é, por sua vez, caracterizado pela adoção de uma perspetiva a
longo prazo, o desenvolvimento de um plano holístico e integrado para a utilização dos recursos
disponíveis, uma decisão formalizada do processo de aplicação, e o uso e criação de recursos com
vista aos objetivos futuros (Cooper, 2002:2).
Apesar de todos os aspetos considerados, uma estratégia a longo prazo aplicada ao turismo
enfrenta obstáculos. Desde logo, os destinos são alvo de constante mudança (nomeadamente nos
seus sistemas de valores e nos seus intervenientes-chave); e a fragmentação e hegemonia dos
pequenos negócios, na sua maioria sazonais, põem em causa os planos a longo prazo, visto que
estes negócios são conduzidos numa mentalidade mais imediata.
Finalmente, podemos apontar ainda outros dois obstáculos: primeiro, o sucesso aparente
pode dar ilusão de que a médio e longo prazo não existirão complicações e logo não haja
necessidade de planear a longo prazo; igualmente, nas fases de declínio, a falta de perspetiva de
reacendimento futuro pode condicionar o investimento pensado a longo prazo. Em segundo lugar,
num olhar a curto prazo, a atividade do turismo tende a ignorar ou relegar os benefícios e perdas da
atividade entre o presente e o futuro (Cooper, 2002).
Na tentativa de colmatar tais falhas surge o modelo 'Destination Visioning', de Ritchie
(1993), com forte base comunitária no planeamento estratégico. Este é pensado em cinco etapas, da
auditoria do destino, passando pela definição do posicionamento, realização de Workshops, até ao
desenvolvimento e implementação do planeamento estratégico.
Porém, este modelo de base comunitária parece ter dificuldade em conseguir uma
representação transversal de toda a comunidade, e em obter consenso em temas controversos. Tal
como, muitas vezes, esquece a importância do setor económico no seu modelo, ou encontra
inúmeras dificuldades em implementar a estratégia planeada: “ainda assim, 'destination visioning'
está a tornar-se a nova ferramenta para o planeamento estratégico sustentável de destinos turísticos,
à medida que o turismo acompanha o imperativo envolvimento da comunidade e abraça a
28
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
necessidade de gerir a mudança”12 (Cooper, 2002:5).
Ap (1992) apresenta o seu próprio modelo alicerçado na teoria 'Social Exchange Theory'
(SET) que tem sido aplicada nas investigações e avaliações que procuram determinar os níveis de
perceção que os residentes têm face ao turismo e seus impactos, mas também para determinar o
porquê desses níveis. Sobre esta teoria falaremos em maior pormenor no ponto seguinte. Resta
referir que Ap e Crompton (1993) identificam diferentes estratégias de comportamento da
população face ao turista13. Estas são divididas nas seguintes etapas: 1) aceitação; 2) tolerância; 3)
ajuste; e 4) retirada14.
Yutyunyong e Scott (2009) consideram este modelo demasiado economicista e daí
produzirem também eles um novo modelo assente, desta feita, nos princípios teóricos da 'Social
Representation Theory'15, um modelo amplamente aplicado (Gursoy e Rutherford, 2004; Gursoy et
al, 2002; Jurowski e Gursoy, 2004; Nunkoo e Ramkissoon, 2009; Vargas-Sanchez et al., 2009;
Wang e Pfister 2008).
Para Faulkner e Tideswell (1997) a teoria existente é fragmentada e existe a necessidade de
ser integrada num quadro geral capaz de guiar empiricamente as investigações na direção de um
desenvolvimento de conhecimento cumulativo. A teoria entretanto desenvolvida não foi
empiricamente testada de forma sistemática (Faulkner e Tideswell, 1997:5)16. Estes autores
propõem a construção de um quadro teórico e concetual capaz de examinar adequadamente os
impactos dos turistas nas comunidades através da construção de uma síntese teórica das diferentes
perspetivas, balizada em duas dimensões principais: a intrínseca e a extrínseca.
A primeira dimensão considera as contribuições do modelo “Destination Life Cycle” de
Butler (1980) e do modelo “Irridex” de Doxey (1975), agregando outros efeitos como: as fases de
12 Tradução livre do investigador.13 Como exemplo deste modelo temos o trabalho desenvolvido por Tatoglu et al (2000), um estudo dos impactos do
turismo convencional massificado numa cidade turca, determinam que os residentes viam positivamente os impactoseconómicos, sociais e culturais do turismo, e em simultâneo viam como negativos os impactos ambientais, a atitudeda comunidade, as multidões e a congestão na comunidade que derivavam da presença dos turistas.
14 Já Alfonso (1999) sugere que ao longo do tempo emergem apenas três momentos distintos de: satisfação,neutralidade e insatisfação (Gúzman e Fernando, 2003: 15-16).
15 Um outro excelente exemplo da aplicação prática deste modelo é o trabalho desenvolvido por Vounatsou et al (2005)na ilha grega de Mykonos, onde se procurou determinar os impactos sociais do turismo, mais concretamente asperceções dos residentes face ao turismo (ali com o turismo convencional massificado e turismo homossexual emparticular destaque).
16 Faulkner e Tideswell (1997) aplicaram uma plataforma de avaliação dos impactos do turismo numa comunidadeaustraliana, Gold Coast, aplicando um quadro de análise de dupla dimensão (intrínseca e extrínseca) baseada nascontribuições do modelo de Butler (1980), Doxey (1975) e Ap (1992).
29
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
desenvolvimento turístico, o rácio turista/residente, tipos de turista e sazonalidade do turismo. A
dimensão extrínseca recolhe as contribuições da adaptação da “Social Exchange Theory” em Ap
(1990), agregando também os efeitos de envolvimento, características sócio-económicas,
proximidade dos residentes e período de residência. É na análise e no cruzamento das diferentes
dimensões, considerando as variáveis definidas como efeitos, que os autores esperam conseguir
transformar este quadro teórico num quadro empírico aplicável.
De acordo com as conclusões destes autores na aplicação deste modelo num estudo de caso
na Austrália, existem três proposições a considerar. Primeiro, o desenvolvimento turístico
sustentável, seja onde for, depende de um planeamento e monitorização constantes, sensível aos
impactos sociais e comunitários do turismo e capaz de executar estratégias que potenciam os
aspetos positivos e minimizem os negativos. Segundo, as reações dos residentes face aos turistas
deve ser acompanhada sistematicamente. E, finalmente, é necessária a construção de um quadro
analítico capaz de produzir uma monitorização comparativa com outros destinos (Faulkner e
Tideswell, 1997:25).
Uma proposta que também merece ser referida é a de Breakey (2005) que sugere um novo
modelo de análise da mudança do destino turístico inspirada em outros modelos como Destination
Life Cycle, Caos Theory, Evolution Theory e Punctuated Equilibrium. Este modelo é denominado
por “Multi-Trajectory Model of Tourism Destination Change”, e defende que a qualquer momento
num destino turístico pode ocorrer uma de quatro mudanças: equilíbrio (quando o nível de
crescimento se mantém), mudança evolutiva crescente (ainda num estado de equilíbrio); punctura
crescente (já num estado de caos), ou ainda, dois estados de degeneração agravada (dependendo da
situação). Uma postura interessante mas com insuficientes exemplos de aplicação para merecer uma
avaliação.
Antes de tratarmos a abordagem científica, resta ainda fazer referência a outro tipo de
modelo que aborda o turismo e que é aplicado por vários autores, tanto na academia como no corpo
técnico que se dedica a esta atividade. Falamos da Teoria Geral dos Sistemas, aplicada enquanto
modelo analítico ao turismo. Como vimos, o turismo pode ser, e tem sido, abordado de várias
formas, pelas várias ciências e atividades envolvidas. Para Beni (2000), um sistema17 representa um
17 Aqui entenda-se sistema enquanto a totalidade de frações interconectadas e articuladas de forma una e organizadapara atingir um mesmo objetivo ou objetivos.
30
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
todo composto por partes que procuram atingir um mesmo objetivo, tendo como base comum certos
princípios e procedimentos logicamente ordenados e coesos, sendo concetualmente próximo da
visão holística, e, ao ser aplicado ao turismo, deve ter em conta cinco elementos: os objetivos
(organização, planeamento, padronização de conceitos e definições de investigação com vista a
instrumentalizar análises e ampliar a pesquisa), ambiente (determinante para o funcionamento),
recursos (meios utilizados para executar as tarefas), componentes (subsistemas existentes), e a
administração (criação de planos que envolvam os elementos anteriores).
Esta mesma perspetiva é reiterada por Licínio Cunha (2009), para quem as análises ao
turismo continuam a ter como ponto de partida perspetivas seletivas e parciais, ignorando as
relações que esta atividade estabelece entre as pessoas, ambiente e outras partes do social e
económico. Conhecer o turismo, para este autor, implica então uma visão global e integrada de
todas as suas componentes e relações desde uma visão sistémica. Para que este sistema, composto
por vários subsistemas, funcione de forma a atingir os fins desejados, cada uma das suas partes tem
de funcionar também de forma harmoniosa com as outras18.
Ainda para este autor, o sistema funcional do turismo deve ser considerado com um quadro
dúplice, de um lado a procura e de outro a oferta, sendo composto ainda pelas seguintes
características: ser um sistema humano, espacial e temporal; sistema aberto que recebe influências
exteriores e em próxima conexão com elas; sistema caracterizado por conflitos e cooperações
internas-externas; sistema composto por vários subsistemas; sistema com perda de controlo e de
coordenação em vários dos seus componentes (Cunha, 2009:117).
Também para Gunn (1994) e Burns (1999), o Turismo deve ser abordado enquanto um
sistema, ou conjunto de subsistemas que trabalha no sentido de atingir um objetivo comum, e desde
uma perspetiva multidisciplinar, que considere tanto a sua operacionalidade como a conjugação
entre as várias partes. Farrel e Twining-Ward (2004) apresentam um trabalho que procurou
reafirmar a importância de efetuar uma abordagem à sustentabilidade e ao turismo enquanto
Sistema. Para estes autores, ao contrário do que se afirmava na década de 1970, o turismo enquanto
sistema é tudo menos estático e previsível19:
18 Se abordarmos apenas uma parte deste sistema resulta que apenas parte dos aspetos determinantes vão também serabordados, assim (para o autor), não há alternativa à necessidade de fazer do turismo objeto de uma análisesistémica, “(...) que se define como sendo o estatuto complexo que constitui o turismo e das inter-relações doselementos que o compõem (…).” (Cunha, 2009:113).
19 Para estes autores isto é particularmente evidente nos 'sistemas de adaptação complexa de turismo' (complex31
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
It is argued here that researchers need to venture outside the 'core system', to explore the otherconnections and interactions that extend as far as tourism significantly affects the ways of life, theeconomic well-being of the system, and the people involved, either directly or indirectly. Thiscomprehensive tourism system encompasses multiple system levels from the core, to the global or Earthsystem, all interrelated, open and hierarchical. (Farrel e Twining-Ward, 2004:278-279)
A estrutura e dinâmica dos ecossistemas deve ser entendida não como um sistema complexo
de equilíbrio, mas antes como um complexo composto por períodos de desordem e perturbação que
derivam, por exemplo, dos ciclos de vida dos sistemas económicos20.
Aliada, então, à sustentabilidade, a gestão do turismo exige desde logo reconhecer a
falibilidade da ideia de que um sistema ecológico é estável e previsível, e exige também reconhecer
a sua complexidade e a necessidade de adaptar a gestão à circunstância. É aqui que emerge a ideia
de 'adaptive management', um conceito que os autores Twining-Ward e Butler (2002) trabalharam
na ilha de Samoa (Havai) e do qual deriva o esquema representado em Farrel e Twining-Ward
(2004:285).
A teoria geral dos sistemas traz consigo vantagens, como uma visão do todo considerando as
suas partes e analisando-as separadamente se necessário. É ainda capaz de separar o turismo de
outros sistemas, permitindo um estudo interdisciplinar do turismo. Todavia, também tem as suas
limitações. A separação do turismo de outros sistemas acarreta uma visão fragmentada do objeto de
estudo, desconectando o turismo de outros sistemas maiores como o social.
Resta questionar se uma abordagem assente nesta teoria, ao demonstrar o fenómeno em
múltiplos sistemas mais pequenos, não cairá no erro de perder as interações que ocorrem entre esses
mesmos processos. Isto para além de que o turismo é uma atividade que, como vimos, atravessa
várias dimensões (sociais, económicas, ambientais, etc.) sendo extremamente difícil circunscrever e
englobar todas as suas facetas num sistema fechado para análise.
O próprio Leiper (1990), um dos defensores desta postura, alertou para os perigos de se
confundir os sistemas do turismo com o turismo enquanto sistema, um todo concreto e isolável,
algo que de todo não pode ser considerado. Para o autor, o turismo deve ser compreendido apenas
como um conjunto de sistemas que considera cinco elementos essenciais: o fator humano (o turista),
a região geradora de turistas, a rota de trânsito dos turistas, a região de destino, e a 'indústria de
adaptive tourism systems – CATS).20 “(...) systems are also now thought to cycle through different dynamic states, in a non-constant, episodic manner
with extended varying periods of stability followed by periods of turbulence.” (Farrel e Twining-Ward, 2004:281).32
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
turismo e viagens' (governos, agências, e operadores).
Entenda-se, então, que a abordagem técnica procura antes de mais trabalhar ou mesmo
reformular o corpo teórico dedicado ao turismo de modo a atingir objetivos previamente
determinados. Usualmente, falamos de metas de sustentabilidade económica, social e ambiental, o
que exige procurar aplicações provenientes de várias disciplinas adequadas ao turismo, caso
contrário, se a sustentabilidade não for o objetivo, não há necessidade de mudança (Farrel e
Twining-Ward, 2004:88).
2. A Abordagem Científica
To see other people, other places, other cultures and other political systems is a prime motivational fortefor travel. (Hudman, 1980:36 citado por Nash e Smith, 1991:127)
O Turismo é considerado o maior movimento pacífico de bens, serviços e pessoas alguma
vez visto pela humanidade (Greenwood, 1989:171). Tal capacidade poderá sugerir que o Turismo
tem sido um dos alvos principais do olhar dos cientistas sociais. Todavia, só nas últimas décadas é
que o tema tem ganho destaque: “(...) nenhuma área do conhecimento vem ganhando tanto destaque
quanto o turismo, seja pela sua dimensão económica, seja pela problemática social que ele enseja.”
(Magalhães, 2008:96). A questão a colocar é, então, por que motivo o Turismo foi e ainda é um
tema relegado?
Para Burns (2004), o tema tem sido evitado pelos cientistas sociais21 essencialmente por três
motivos: o turismo continua a ser visto como objeto menor que não merece a atenção da academia
(Nash, 1996; Burns, 2004); a proximidade existente entre a experiência e o relato do turista ou
viajante e a de um etnólogo pode despir a legitimidade do segundo; e finalmente, só com Cohen
(1972) é que o Turismo deixou de ser compreendido como um tema associado à economia e passou
a ser visto como conexo com as comunidades locais, seus traços e características. Poderíamos
adicionar ainda um outro fator, a perceção errónea de que turismo é uma mera atividade de lazer,
ócio e hedonismo. Tais conceitos podem muitas vezes parecer indissociáveis para quem não toma o
Turismo como objeto de estudo ou como um tema de interesse.
Alguns autores sugerem que o principal problema no tema do turismo são as próprias
21 O autor refere-se em particular ao caso da Antropologia, mas parece-nos uma crítica pertinente e adequada àSociologia.
33
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
investigações que carecem de seriedade e método, em particular na crítica moderna aos turistas
(MacCannell, 1976). Toda a ciência exige imparcialidade e um olhar crítico, mas, por vezes,
perspetivas inquinadas minam resultados, afastando novos investigadores e seus potenciais
contributos. Assim, “(...) para reflectirmos sobre o turismo devemos, antes de mais, libertá-lo da sua
carga ideológica, moral e comercial, a fim de o tomar simplesmente como um objecto de
conhecimento” (Amirou, 2007:25).
Das várias metodologias e teorias de suporte que alicerçaram as abordagens ao fenómeno
social do Turismo, formou-se um quadro claro de análises-tipo, ou pelo menos de tendências
analíticas. Entre estas obrigatoriamente temos de destacar a abordagem positivista, usualmente
representada pelos organismos internacionais, inclusivamente, a OMT. Este organismo considera o
turismo como alavanca indispensável para a prosperidade de países, na sua maioria, em vias de
desenvolvimento, onde os fins justificam os meios.
Uma outra linha comum, a marxista, insiste na visão de que o turismo é uma extensão do
imperialismo e colonialismo e, portanto, um ato explorador. Uma perspetiva puramente crítica que,
tal como a positivista, peca pela sua parcialidade e por não apresentar alternativas viáveis e
exequíveis.
É dizer, o modo como o tema tem vindo a ser abordado tem condicionado a sua produção
científica, ora apresentado como a solução para todos os problemas de uma sociedade ou
comunidades, ora como um bode expiatório de inúmeras desigualdades económicas e sociais, até
mesmo um violador da cultura e suas tradições. As ideias de turismo como libertador ou como
neocolonialista, e até centradas em evidências de mudanças sociais e culturais, esquecem que o
turismo é o estudo do homem longe do seu local de residência, da indústria que satisfaz as suas
necessidades, e dos impactos de ambo sobre os ambientes físicos, económico e sócio-cultural da
área recetora (Jafari citado por Cunha, 2010:13).
Entenda-se que das várias abordagens existentes as mais comuns têm uma perspetiva
economicista. De acordo com o Modelo de Criação e Desenvolvimento do Conhecimento em
Turismo de Tribe (1997), o conhecimento em Turismo poderia ser dividido em duas metades:
(Campo de Turismo 1) referente à vertente comercial do turismo onde podem ser incluídas agências
de viagens ou outras empresas de turismo, e (Campo de Turismo 2) referente aos aspetos não
comerciais do turismo e onde estaria incluída a academia.
34
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Na mesma linha, Barreto e Santos (2005) consideram que o Turismo possui um caráter
híbrido, o que implica uma carência quanto a um consenso na sua concetualização, e que advém de
este ser simultaneamente objeto de estudo científico das ciências sociais mas também pertencer à
área de ação do marketing22 e do negócio. Daí Ateljevic et al (2007) inferirem que existem apenas
duas formas de abordar o turismo, ora desde uma perspetiva empresarial (tourism management), ora
científica (tourism studies). De forma semelhante, Magalhães (2008) encontra uma perspetiva que
considera o turismo como um meio instrumentalizado ou técnico para a profissionalização com
propósitos de mercado, e uma outra, que defende a ideia de uma ciência do turismo assente numa
totalidade histórica.
Este caráter dúplice tem instrumentalizado o turismo e a investigação turística, tornando boa
parte da sua produção inconsistente e limitada. A construção de conhecimento em torno do turismo
tem estado sobretudo assente num discurso bipartido, o que significa que a pesquisa turística
produzida apresenta orientações epistemológicas díspares. Há que romper com tal postura de forma
total:
Romper com a tradição não significa coisificar um novo discurso, mas sim compreender que adificuldade que se põe num novo conhecimento – ciência e saber – é superar os limites que, distantes delhe serem inerentes, somente constituem um estado provisório de desenvolvimento. (Nechar e Netto,2011:398)
Como referimos inicialmente, a pesquisa do turismo começa a mostrar avanços nos enfoques
teórico-metodológicos, apesar de ainda coexistir uma carga assumidamente positivista e empirista
na sua orientação (Nechar e Netto, 2011). Podemos questionar por que motivo o tema tem ganho
esse relevo e interesse por parte de diferentes ciências, da sociologia e antropologia, à geografia e
economia.
O turismo é caracterizado por uma complexidade que envolve uma variedade de aspetos da
sociedade e da cultura. É um tema de interesse para as ciências sociais, desde logo porque é um
fenómeno social “total”, desde a perspetiva de Marcel Mauss (1974). À partida, diferentes ciências
implicam diferentes abordagens teórico-metodológicas que podem estar condenadas a considerar o
tema de forma distinta, fracassando na construção de um corpo teórico comum que permita avanços
no estudo do Turismo.
O grosso do debate científico coloca em confronto uma perspetiva de apoio ao turismo
22 Ritchie e Goeldner (1989) afirmaram mesmo que o marketing é a disciplina mais ativa e importante dentro docampo do turismo.
35
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
(massificado) com outra de resistência/combate. Um confronto que essencialmente opõe a
perspetiva institucional à técnica; uma e outra encontram na abordagem científica um apoio, pois
também a abordagem científica reúne várias posições contraditórias em relação ao turismo, ora
entendido como benéfico ora como predatório. Assim, antes ainda do debate teórico aprofundado
sobre este tema, iremos apresentar alguns autores e contribuições-chave que permitiram avanços
teóricos e metodológicos sobre o tema.
A nossa viagem começa em 1960 na Alemanha, com a primeira obra sociológica sobre o
turismo: 'Sociologia do Turismo', de Knebel23. Este autor apontou consequências tanto negativas
quanto positivas nas sociedades visitadas, destacando sobretudo um balanço positivo da atividade;
no entanto, não fez qualquer menção aos impactos criados nas comunidades e seus residentes.
Quase vinte anos mais tarde, tanto Boissevain (1979) como De Kadt (1979) falavam nos
impactos que as ideologias e atitudes externas provocavam nas comunidades locais, em particular
nas mais isoladas - mudanças de atitude, valores, ou comportamento que podem resultar da mera
observação dos turistas (De Kadt, 1979): o denominado 'efeito demonstrativo'.
Outra obra pioneira nessa abordagem foi ‘Arab Boys and Jewish Girl Tourists’ de Erik
Cohen (1971). Para o autor, os turistas não exercem apenas uma influência ativa nos locais como
também procuram nas suas viagens algo mais. Uma experiência que o autor não define totalmente.
Os turistas eram ainda tidos como um grupo globalmente homogéneo com duas
características indiscutíveis: de origem ocidental e de classe média. Mas nesse mesmo ano
MacCannell (1973) demonstra que tal não é verdade e aponta que a experiência procurada pelos
turistas é a busca por algo autêntico. Autenticidade essa que entendem existir nos seus destinos de
turismo, em países de 'terceiro mundo'.
A primeira grande obra em contra corrente ao apoio do turismo como atividade ideal para
salvar as economias dos países em desenvolvimento, foi 'The Golden Hordes' de Turner e Ash
(1975). Nesta, os autores fazem duras críticas ao turismo massificado comparando-o a uma ação
predatória onde turistas podiam ser equiparados às devastadoras hordas bárbaras.
Poucos anos depois, a obra de Smith (1977) 'Hosts and Guests', descreveu a existência de
turistas em todos os espaços e lugares, bem como a existência de vários tipos diferentes de turistas,
23 Inspirada pelo trabalho de Von Wiese (1930) Fremdenverkehr als zwischenmenschliche Beziehung. Archiv fürFremdenverkehr 1.
36
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
eles próprios com objetivos diferentes. Estas conclusões levaram a Sociologia a questionar quem
eram estes turistas.
Erik Cohen, em 1979, procurando outras respostas, estabelece uma série de tipologias
turísticas que deixaria cair a ideia de um turista genérico e vago, diferenciando assim os turistas em
quatro grupos de acordo com o seu comportamento e motivação. É também um dos primeiros
autores a lamentar a reduzida interação entre hóspedes e anfitriões, afirmando mesmo que os
primeiros preferem uma experiência cultural encenada e superficial ao contacto direto e autêntico
com os anfitriões. O turismo, para Cohen, fica aquém do seu potencial.
O foco crítico sobre o turismo nas obras subsequentes tem ainda maior destaque. Os turistas
são tidos como o inimigo, uma força neocolonial com propósitos clandestinos e por vezes
inconscientes de reforçar o domínio dos ricos sobre os pobres (Nash, 1989), levando
invariavelmente à criação de uma monocultura (Samy, 1975; Turner e Ash, 1975), qual ricochete da
modernidade.
Dez anos depois, Graburn (1989) infere que entre os turistas que buscam o 'exótico e
autêntico' encontram-se turistas originários de espaços também eles classificados de exóticos pelo
Ocidente, sendo estes também de classe média e/ou alta. Este contributo faria mudar a perceção do
turista. Agora este procurava também uma oportunidade de livremente escolher o que fazer com o
seu tempo, pois reconhece-se que este poderia, em simultâneo, optar por procurar a autenticidade
local, bem como apenas banhar-se numa praia, ou simplesmente permanecer todo o dia num quarto
de hotel: “the tourists are not just looking for an authenticity missing at home, but they are looking
for a whole range of moral and recreational complements to their constrained roles at home and at
work“ (Graburn et al, 2000:150).
Na década de 1990, um novo trabalho veio reacender o interesse pelo tema do turismo. Urry
produzia 'The Tourist Gaze' (1990), dando enfoque às questões do consumo dos lugares e paisagens.
O autor inova ao inferir que existe um consumo de lugares de forma reflexiva24 por parte do turista
contemporâneo, e que tal consumo é também uma marca da sociedade atual.
Nesta mesma década, e procurando sintetizar e explicar as origens do turismo, emerge ainda
a obra de Fortuna e Ferreira (1996) que conclui que a chegada do capitalismo organizado trouxe
formas de organização política e social que permitiram o crescimento e a democratização do acesso
24 Baseado no conceito de reflexividade de Giddens.37
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
ao turismo. Os cidadãos, ao usufruírem de condições e de tempo livre para desfrutar de férias,
encontram no turismo um cosmopolitismo que lhes dá acesso a outros espaços, culturas e
interações, a que Lash e Urry (1994) chamaram de 'cosmopolitismo estético'.
Com a mobilidade e consumo mais acessível, o turismo apresenta-se como uma atividade
específica da modernidade com capacidade de gerar diferenciação social (Fortuna e Ferreira,
1996:4). Com o “fim” do capitalismo organizado, presente até há algumas décadas, esta fase é
substituída por uma outra de desorganização onde o turismo perde a particularidade da mobilidade.
Os bens, serviços e produtos culturais de outras sociedades podem agora ser acedidos e consumidos
de outras formas, quase instantâneas, podendo mesmo prescindir de qualquer tipo de mobilidade
física, utilizando, por exemplo, ferramentas como a internet.
Desse modo, o turismo perde a capacidade de diferenciar os sujeitos, graças à crescente
segmentação dos mercados e das clientelas, que acabam por permitir uma nova revalorização do
turismo, sublinhando a valorização da cultura visual e estimulando reflexivamente os turistas. Este
“pós-turista” vive da “desdiferenciação social”.
Esta bandeira da cultura visual, agregada ao consumo, permite ao turismo vender
experiências, sensações e estilos de vida, com os quais os indivíduos reinterpretam a sua identidade
através das interações, relações e consumo no ato turístico. Este pós-turista enquadra-se na crítica
de Boorstin, e na sua definição de “não-turista”, um indivíduo passivo e comodista que procura
prazer e estímulos não culturais.
Para Fortuna e Ferreira, o turismo pode levar a uma descentralização dos sujeitos, o que por
sua vez permite uma nova recentralização. Este fruto da modernidade que evade o quotidiano e
consome uma versão dramatizada de um outro quotidiano, noutro espaço-tempo, para
invariavelmente culminar na “(...) desvalorização das identidades sociais e na revalorização dos
processos de identificação dos sujeitos” (Fortuna e Ferreira, 1996:15).
Também procurando sistematizar a produção científica dedicada ao turismo, Dann e Cohen
(2002) reconhecem quatro áreas temáticas na investigação turística: os turistas; as relações entre
turistas e locais; a estrutura de funcionamento do sistema turístico; e as consequências do turismo.
Desenhando-se assim um claro enfoque sociológico em duas grandes vertentes de investigação:
macro - estudos da sociedade; e micro - estudos centrados no indivíduo (Dann e Cohen, 2002:301).
Duas vertentes nada isentas de críticas: ”O tipo de investigação realizada nessas áreas tem
38
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
um viés fundamentalmente prático, pois são estudos relacionados com as análises de mercado, a
perceção entre visitantes e visitados, caracterização de comportamentos, impactos, etc.” (Nechar e
Netto, 2011:396). Mais recentemente, Goeldner et al (2002) concluíram existir até oito diferentes
perspetivas que vão da abordagem institucional, de produto, e histórica, até à gestão económica e
sociológica, passando pelas abordagens geográfica e a abordagem interdisciplinar.
Dada a dispersão, disparidade e até repetição dos dados e da sua proveniência, parece-nos
fazer sentido olhar para a produção sobre o fenómeno turístico desde o quadro sugerido por Jafar
Jafari (1994) que defende a existência de cinco plataformas na análise ao turismo, que apesar de
surgirem cronologicamente ainda coexistem, sendo estas classificadas como plataformas: de
advocacy, cautionary, adaptancy, knowledgebased, e public.
A primeira plataforma, a de promoção do turismo (advocacy platform), que encontra no
turismo uma atividade positiva social e economicamente, bem como ambientalmente viável, que
prometia divisas internacionais e geraria postos de trabalho. Apregoada institucionalmente desde
1960 como uma alavanca ideal para a economia, em particular para a economia dos países
envolvidos e afetados pela ressaca do segundo conflito bélico mundial.
Uma segunda plataforma seria a da advertência (cautionary platform), que vê o turismo
como agente adulterador e destruidor do meio ambiente. O turismo é alvo de duras críticas,
sobretudo durante a década de 1970, em particular após a Conferência de Estocolmo (1972), sendo
apresentado como deturpador da cultura local e destruidor dos recursos ambientais, indiferente às
consequências por si causadas (Mitford, 1959; Boorstin, 1964, 1987; Rivers, 1972, 1973; Turner e
Ash 1975). Em suma, um gerador de conflitos que via no acréscimo de lucros o justificador
absoluto da sua função. Responsável por potenciar um processo de desenvolvimento
ambientalmente predatório e socialmente segregador (Candiotto, 2007), a que 'a academia'
responderia com o modelo Irridex de Doxey (1976).
A terceira plataforma, a da adaptação (adaptancy platform), concebe um turismo que não só
pretende reduzir os seus impactos negativos, como também potenciar-se como resposta positiva a
carências locais. Surgem assim opções como turismo de aventura, agro-turismo, turismo cultural,
ecoturismo25, etc., fruto de um reconhecimento mundial da importância da conservação ambiental e
25 Goeldner (2000) define ecoturismo como viagens responsáveis a áreas naturais que conservam o ambiente esustentam o bem-estar das comunidades locais.
39
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
social e que, entre outros, influenciaria e seria influenciado por produções académicas como as de
Butler (1980) e de MacCannell (1973).
A esta plataforma é seguida a do conhecimento (knowledgebased platform), em 1990, que vê
o turismo como um objeto de estudo sobre o qual muito há por pesquisar. Com a intervenção e
envolvimento de investigadores e universidades, multiplicam-se os estudos e as contribuições
científicas sobre o mesmo26. Uma plataforma influenciada não só pela anterior como por relatórios
como o de Brundtland 'Our Common Future' (1987) e conferências como a do Rio de Janeiro
(1992).
Recentemente Xiao e Smith (2006) publicaram um trabalho que procurou sistematizar a
produção teórica dedicada ao estudo do turismo numa das principais revistas internacionais sobre o
tema (Annal of Tourism Research), desde 1973 até 2003. Entre as conclusões destacamos a
existência de duas tendências predominantes no estudo do fenómeno, de um lado a construção
teórico-metodológica, e de outro o desenvolvimento e impactos. Uma outra conclusão interessante
foi a influência teórica das disciplinas sociologia, antropologia e geografia na década de 1970,
seguidas por um foco na gestão, economia e sócio-economia na década seguinte, e finalmente, na
década de 1990, um forte interesse nas questões socioculturais e ambientais. Isto, grosso modo, em
linha com as conclusões de Jafari.
Por fim, resta apresentar a quinta plataforma, a pública27 (public platform), que emerge com
o novo milénio, e que é caracterizada pelo envolvimento público transversal. Desde Estados,
instituições públicas e movimentos públicos de cidadania, até ao 'comum dos cidadãos' não
especializados, que acabam por determinar, condicionar e influenciar o turismo, tanto na sua
operacionalidade como concetualização.
Tais contribuições servem para demonstrar que o turismo tem de ser encarado como muito
mais do que uma mera prática (económica) ou técnica, e antes como um fenómeno social complexo,
profundo e vasto que afeta global e localmente de forma transversal as sociedades envolvidas direta
e indiretamente. Servem, ainda, para deixar claro que procurar generalizar sobre esta atividade é um
esforço infrutífero e vão, pois desde logo existem “(...) tantas formas de turismo como
26 Todavia, há que recordar que autores como Barreto e Santos (2005) classificam este conhecimento como meroconhecimento mercadológico, aplicado para potenciar o mercado, e portanto enquadrado nos saberes populares.
27 Durante o VII Congresso Nacional e Internacional de Investigação Turística, em Guadalajara, México, Jafariintroduz uma quinta plataforma, que classifica de Pública (public-platform).
40
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
possibilidades de análise desta atividade” (Luchiari, 1998:15).
Muitos autores apontam para a necessidade de abordar o tema de forma heurística, deixando
cair a tendência de o fazer desde uma perspetiva economicista e seguindo um modelo base
(Frankling e Crang, 2001).
Se de facto a pesquisa focada no turismo padeceu de subnutrição teórica nas décadas
iniciais, os trabalhos desenvolvidos pela pesquisa qualitativa, em particular, da sociologia,
antropologia e geografia têm sido responsáveis por uma mudança ontológica, epistemológica e
metodológica que conseguiu “(...) um espaço para um entendimento partilhado de modos de
pesquisa mais críticos e mais interpretativos” (Ateljevic et al, 2005)28.
Lohmann e Netto29 defendem a corrente pós-positivista na análise ao turismo, balizada por
“(...) uma metodologia crítica na leitura, releitura e nova interpretação do conceito turismo”
(2012:63). Uma teoria à semelhança de outras pós-positivistas como as de Popper, Lakatos, Lévi-
Strauss, Bertalanffy e Luhman, etc. Nesta linha também Pernecky afirma que os eruditos estariam a
juntar-se, a começar a desafiar as fundações ontológicas do turismo e a reconhecer a necessidade de
maior pluralidade dos métodos e abordagens epistemológicas (Pernecky, 2010:5).
Procurámos demonstrar neste ponto que a produção sociológica sobre o turismo continua a
padecer de profundidade e de uma sistematização teórica. Para efeitos de contextualização, a
abordagem sociológica sobre este fenómeno será dividida em três grandes áreas temáticas para
respetiva análise: A Autenticidade e o Turista (perspetiva de indivíduo - micro); Atitude dos
Residentes e Relação entre Anfitriões e Hóspedes; Consequências/Impactos(es) do Turismo
(perspetiva de Sociedade - macro).
O debate em torno da Autenticidade envolve o confronto teórico de quatro autores basilares:
MacCannell, Cohen, Urry, e Wang. Posteriormente, trataremos do debate em torno das Relações
entre Hóspedes e Anfitriões, sobre o qual se debruçam uma quantidade relevante de diferentes
autores. Finalmente, trataremos da questão das Consequências e Impactos(es) do Turismo, centrais
nesta investigação, e onde traremos à luz algumas das principais conclusões, ainda que embora
28 A que Ateljevic et al denominan de “Critical Turn”.29 Fala-nos portanto na Teoria Geral dos Sistemas (TGS), assente numa visão holística e que vê no método de pesquisa
estruturalista o caminho a tomar. A ideia de um conhecimento alicerçado numa postura sistémica pode também serencontrado, por exemplo, no modelo que Jafari e Richie produziram em 1981. De acordo com estes autores, a formaideal de abordar o Turismo é a transdisciplinaridade, todavia os custos que tal abordagem obrigaria, exigem que seprocure uma abordagem inter ou multidisciplinar.
41
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
contraditórias, de autores como Milman e Pizam, Ap, Faulkner e Tideswell, e Andriotis, entre
outros. Este último ponto permite produzir uma plataforma comparativa de resultados internacionais
que serão colocados em confronto com os resultados desta investigação.
3. O Turista e a Autenticidade
Como gradualmente temos vindo a descortinar, o turismo é entendido por alguns autores
como forma mercadorizada de interação. Esta interação é realizada entre vários intervenientes de
forma direta e indireta, e em vários níveis de envolvimento interpessoal. Nesse sentido, a discussão
em torno do “turista”, as suas motivações e objetivos têm gerado um aceso debate teórico que tem
influenciado a metodologia qualitativa aplicada na sociologia e antropologia do turismo, em
particular autores como Boorstin, MacCannell, Turner, Cohen, Urry e Wang. Falamos naturalmente
do debate em torno do conceito de Autenticidade.
O tema da autenticidade, apesar de reintroduzido por MacCannell, surge inicialmente em
Boorstin (1961), um crítico do turismo de massas que, no seu entender, destruía os tempos áureos e
adequados do turismo precedente, provocando uma mercadorização da cultura e a homogeneização
da experiência turística que invariavelmente resultaria numa experiência inautêntica, num “pseudo-
evento”:
These attractions offer an elaborately contrived indirect experience, an artificial product to be consumedin the very place where the real thing is as free as air. (…) The keep the natives in quarantine while thetourist in air-conditioned comfort views them through a picture window. They are the cultural miragesnow found at tourist oasis everywhere. (Boorstin, 1961:99 citado por Hillman, 2007:3)
Estes pseudo-eventos eram facilmente detetáveis através de quatro características
demarcadas: a sua não espontaneidade, o seu propósito de reprodução contínua, a ambiguidade
presente nos eventos entre o autêntico e o encenado, e finalmente, a sua capacidade em se tornarem
profecias anunciadas. Para Boorstin, o turista de massa era pouco mais que um tolo que procurava a
artificialidade, alienando-se da realidade nas suas férias assim como acontecia no seu dia-a-dia.
Todavia, os contributos deste autor são desde logo descartados pois os seus pares
consideravam a sua análise tendenciosa, não original, que englobava todos os turistas numa só
categoria e que apresentava ilustrações empíricas nada sistematizadas e quadros analíticos que não
se adequavam ao turismo moderno (Cohen, 1988). Ainda assim, é-lhe reconhecido mérito na
inovação e coragem de abordar desde a sociologia o fenómeno turístico, e de criar uma base de
diálogo com outros autores que viriam posteriormente, como MacCannell.42
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Um outro autor que parece também ter influenciado MacCannell foi Turner (1973). Apesar
de diretamente não abordar o turismo, acaba por tocar num ponto próximo, os peregrinos e a
peregrinação. Este autor encontra semelhanças entre o rito-de-passagem identificado por Van
Gennep (1908), e a experiência por que passam os peregrinos. Esta é composta por três fases: a
primeira, de separação (espacial e social), onde o individuo se separa do seu grupo social habitual;
a segunda, de liminalidade, onde o indivíduo se encontra suspenso das suas obrigações e papéis
usuais; e a terceira, de reintegração, quando o indivíduo é reintegrado no seu quotidiano espacial e
social, usualmente em condições ou papéis sociais de status mais elevados. Como se entende, as
semelhanças entre o peregrino e o turista são consistentes; tal como o peregrino, o turista também
parte para o “Center Out There”, mas durante a segunda fase, numa situação liminoide, ou seja, por
livre vontade (ao contrário de liminal que se refere à obrigatoriedade de passar pela experiência
ritual)30.
Esta inovadora abordagem abriu novas perspetivas no estudo do turismo e é amplamente
seguida por autores posteriores, apesar de se poder apontar a crítica de que Turner, mesmo com a
adição da diferenciação entre liminal e liminoide, acaba por englobar todo o turismo num só
quadro, ignorando os tipos de turismo não lúdicos.
A questão da autenticidade solidificou-se finalmente quando Dean MacCannell apresentou o
artigo “Staged Authenticity: Arrangements of Social Space in Tourist Settings” (1973). Para o autor
os turistas são influenciados e conduzidos pelos operadores de turismo para representações
teatralizadas dos aspetos culturais dos locais que visitam, no lugar dos autênticos ou originais. Para
além disso, argumenta que existe uma escala de autenticidade nos locais turísticos, tal como entre
os turistas. Entre estes, os meros turistas são os que não conseguem escapar à “armadilha da
autenticidade encenada”, ao passo que os turistas superlativos fazem-no e procuram a “autêntica
experiência”:
The touristic critique of tourism is based on a desire to go beyond the other 'mere' tourists to a moreprofound appreciation of society and culture, and it is by no means limited to intellectual statements. Alltourists desire this deeper involvement with society and culture to some degree; it is a basic component oftheir motivation to travel. (MacCannell, 1976:10)
Em suma, este autor encontra no turista não o exemplo do inautêntico, mas um peregrino do
mundo secular, que encontra no turismo a versão moderna da busca universal do homem pelo
30 Esta ideia foi acrescentada mais tarde pelo próprio (Turner e Turner 1978).43
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
sagrado (MacCannell, 1973:593). MacCannell, influenciado por autores como Durkheim e Lévi-
strauss, procura aproximar o estruturalismo e o simbolismo para definir o turismo e como este opera
num mundo de consumo.
Paradoxalmente, em muitos pontos, o autor acaba por pôr em causa o método estruturalista,
por exemplo, ao considerar que a modernidade não havia obliterado as estruturas da sociedade.
Antes, a busca ativa pela autenticidade demonstra que o homem moderno está alienado pelo seu
quotidiano vazio e inautêntico, e procura uma nova autenticidade noutros lugares e noutros tempos.
Daí o fascínio pelo outro, usualmente “exótico” e “real”. Isto é, o turista procura o que não encontra
nas sociedades modernas, a tal estrutura pré-moderna, experienciando a autenticidade. Próximo da
proposta durkheimiana de que o sagrado é parte da sociedade, com seus próprios sistemas de
representação coletiva.
Outro dos autores onde vai retirar contributos é Goffman (1959), nomeadamente em
conceitos como “bastidor e fachada” e aplica ao estudo do turismo para explicar que os locais
constroem “espaços turísticos” para entretenimento dos turistas. Estes são recriações inautênticas
que procuram dar a ilusão de autenticidade aos visitantes, aquilo a que o autor chama de
“autenticidade encenada” para consumo turístico. O autor encontra na proposta teórica de Goffman
a matriz de análise ideal para propor que, para os turistas que observam um espetáculo artificial tido
como autêntico, o que interessa é a ideia de autenticidade e não a própria autenticidade. Os turistas
buscam-na, ainda que conscientes que o que vivenciam nos destinos turísticos é apenas uma
“autenticidade encenada”.
A busca reside no ideal, no imaginário do autêntico, pelo que os turistas procuram o que
Goffman chama de “bastidor”; no entanto, é-lhes fornecido um “bastidor encenado”, o que todavia
não parece ser discernido pelo turista embriagado pela construção ideal do autêntico que considera
ocorrer naquele momento/situação claramente de autenticidade encenada. Este ideal de
autenticidade reside nos pressupostos e construções criadas em torno dos destinos, nomeadamente
da sua história/cultura passada, da tradição idílica e pura, até exótica, que parece cegar mas
alimentar os turistas.
É no fascínio da pós-modernidade pelo passado, nomeadamente pelas imagens que criou e
cria desse mesmo passado, que cabe o turismo como atividade, baseado na ideia da História como
mercadoria vendida, uma autenticidade encenada alimentada pelo desejo de experienciar culturas
44
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
anteriores, culturas pré-modernas. Esta mercadorização reflete-se nos espaços:
Spaces are typically organized by out-of-scale landscapes while distances are portrayed to createconvenient tourist itineraries. Just as the tourist attractions are commodified and made part of a touristindustry, so too the maps which guides the way for those tourists commodify and colonize space. (Birch eDayton, 1994:1)
Mas também se reflete nas experiências. O turista “comum“, ao escapar à armadilha, tem
acesso à “autêntica realidade”, se quisermos, o que permitirá construir um quadro de referência da
cultura local que lhe permitirá valorizar, socialmente, e até monetariamente, a experiência, seja esta
uma mera narrativa ou um artefacto adquirido. A autenticidade pode ser entendida também como
“(...) uma entidade simbólica sobre a qual se produz acção social em termos de 'valor', que os
agentes utilizam para se situar em posições de poder variável dentro de um campo sistematizado e
marcadamente rígido” (Francesch, 2011:245).
O trabalho de MacCannell torna-se um pivô teórico no grosso da literatura académica
dedicada ao turismo. O seu trabalho inspira uma multiplicidade de novas investigações e influencia
outros autores preponderantes, como Graburn (1977) que também vê no turismo uma quebra de
rotina estruturalmente necessária face às rotinas quotidianas, e um paralelo entre a atividade e o
religioso (em circunstâncias pontuais), reforçando ainda mais esta perspetiva.
Em suma, MacCannell tenta provar que, por um lado, os operadores turísticos conseguem
simular a realidade ou autenticidade que é procurada pelo turista, e, por outro lado, que os turistas
tentam olhar através do palco encenado para os bastidores procurando a dita verdadeira experiência.
Apesar da inovação que o autor traz, Cohen critica argumentando que a descrição de MacCannell
não é mais representativa do que a de Boorstin. Além disso comete um erro semelhante a este autor
ao considerar que a busca pela autenticidade se pode aplicar a todo e a qualquer turista. Igualmente,
a sua metodologia carece de sistematização e representatividade (Cohen, 1988).
Visto que a motivação turística é vasta e variada, a estas proposições de autenticidade Pearce
e Moscardo (1986) procuraram acrescentar uma diferenciação entre autenticidade 'dos lugares' e
'dos autores': “A autenticidade, diz-se, pode ser alcançada através quer de experiências ambientais,
quer de experiências ligadas às pessoas, quer ainda de uma interação conjunta de ambas”
(1986:125). A perceção da autenticidade das experiências é um fator chave para a satisfação dos
turistas e deve ser considerada e analisada mesmo em situações onde aparentemente é irrelevante,
como, por exemplo, quando estes se alimentam ou bebem em estabelecimentos próprios, ou mesmo
45
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
quando praticam desporto ou jogos, e até quando consomem artigos e serviços na sua estadia.
Cohen (1988) classificaria estes três autores agora destacados como determinantes na análise
sociológica face ao turismo. Três tradições da pesquisa qualitativa em turismo que demonstram uma
progressão e uma continuidade no rigor das análises, permitindo ao campo recuperar o
reconhecimento dos trabalhos teóricos de referência, solidificar a sua teoria, e progredir de uma
postura generalizadora a emic. Ainda assim, os críticos mais severos da posição autenticista
afirmam que a questão da busca pela autenticidade por parte dos turistas não se poderá pôr visto que
o cenário e os atores nos destinos constroem artificialmente os espaços e as ações de forma a manter
os turistas fora dos seus espaços privados (Urry, 1995:140).
Ademais, se os turistas buscam escapar ao seu quotidiano e aos problemas das suas
sociedades de origem, não fará sentido afirmar que nas suas férias eles procurem confrontar-se com
os problemas dos ambientes de destino31. Nesta linha autores como Reisinger e Steiner concluem
que tal conceito deve ser abandonado dada a multiplicidade de significados como, por exemplo, a
autenticidade dos objetos, que pode ter significados ao nível do objetivamente real, ao socialmente
construído, até ao cinicamente fabricado (Reisinger e Steiner, 2006). O conceito torna-se inútil. Daí
que Cohen (2007) argumente que a autenticidade enquanto conceito é inoperante dadas as várias
definições. O autor apresenta seis definições alternativas:
(...) authenticity as customary practice or long usage; authenticity as genuineness in the sense of anunaltered product; authenticity as sincerity when applied to relationships; authenticity as creativity withspecial relevance to cultural performances including dance and music; and, authenticity as the flow of lifein the sense that there is no interference with the setting by the tourism industry or other managers.(Pearce, 2007:86).
Todavia, tais definições sugerem uma perspetiva puramente objetivista ao conceito de
autenticidade, uma vez que a proposta baseia-se na ideia de mensurabilidade externa de
autenticidade.
Korstabje resume as principais falácias da teoria de MacCannell. Para o autor esta carece de
consciência metodológica e é baseada em vários pressupostos erróneos: as culturas são entendidas
como estruturas com maior ou menor consistência e força (culturas fortes e fracas); o contacto entre
culturas superiores e inferiores resulta em admiração e submissão; consideração exagerada das
31 Para Hollinshead, é o conflito entre o dia-a-dia e o excitante, novo, diferente, que atrai os turistas. Uma fuga ao seuquotidiano, onde o discurso é ideologicamente definido e sujeito a relações claras de poder. O mesmo é trabalhadopelos operadores de turismo que procuram proteger os turistas da, tanta vezes, dura realidade do seu destino deférias (Sharpley, 1994:146).
46
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
relações humanas enquanto autênticas; falsa dicotomia entre o mundo industrial e o mundo tribal;
idealização das culturas tribais enquanto espaços ausentes de diferenciação entre público e privado;
confusão sobre as limitações da construção significado/significante aplicada à encenação turística
(Korstanje, 2009:82).
O esquema bipolar proposto do autêntico/encenado está errado, visto que, por exemplo, se
as culturas não se transformam ao longo do tempo ou através da interação com outros, então não
são autênticas o que significará desde logo que aquilo a que os turistas terão acesso nunca pode
representar autenticidade, seja esta encenada pelos operadores de turismo ou não.
O autor é ainda criticado por se deixar influenciar por ideias falaciosas inspiradas por
autores clássicos, como Durkheim, Lévi-Strauss, Marx, Goffman, entre outros. Por exemplo, ao
afirmar que os turistas, procurando escapar à sua vida quotidiana, viajam para lugares exóticos e
mais autênticos (pré-industriais ou em vias de desenvolvimento) está a sugerir que o “nativo
selvagem” é mais autêntico que o “homem industrial”! Procura esta que se vê sacralizada. Uma
busca que transforma as tradições locais e os anfitriões em peões do tabuleiro nostálgico dos turistas
insatisfeitos com a sua vida quotidiana.
Daí que sobre este debate Cohen afirme que ambas as posições são inúteis e irrelevantes:
Na minha opinião, nenhuma das conceções opostas é universalmente válida, embora ambas tenhamcontribuído com ideias importantes sobre a motivação, o comportamento e as experiências de algunsturistas. Diferentes tipos de pessoas podem desejar diferentes tipos de experiências turísticas; daí 'oturista' não existir como um tipo. (Cohen, 1979:180)
3.1 'Alternativas' à Autenticidade de MacCannell
Apesar do proposta de Cohen ser anterior à de MacCannell, a sua cimentação teórica é
claramente posterior e emerge em resposta às contribuições de MacCannell. O autor vai beber a
autores clássicos como Schutz e Simmel a ideia de strangerhood32 e argumenta que o que o turista
procura não é mais do que o desconhecido, o diferente, valorizando-o apenas e só por si mesmo. A
experiência turística gira em torno da novidade e da diferença. No entanto, essa experiência é
mediada de forma a mitigar o choque cultural de quem viaja para o estrangeiro, e portanto deve ser
agrupada em ideais-tipo de familiarity (familiaridade) e strangerhood (desconhecimento).
32 É o empréstimo da “(...) religious terminology from Eliade (1969, 1971), Turner (1973) and Shils (1975) andadapting it for an analysis of tourism marked a development and enrichment of Cohen's previous position” (Dann,1996:13).
47
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
De um lado temos o turismo massificado, que permite ao turista observar “em segurança”,
com total familiaridade, a estranheza (strangeness). Depois teríamos o turismo massificado
individualizado, que estaria mais predisposto a expor-se à diferença apesar de ter preparado de
antemão a maior parte da sua experiência. Cohen enquadra estes dois grupos no turismo
institucionalizado, sob a alçada dos agentes e operadores. Um terceiro grupo seria o explorador,
mais viajante do que turista: este recusa preparar a experiência antecipadamente apesar de procurar
algum conforto e familiaridade no alojamento e transporte. Finalmente o último grupo, classificado
por drifter (vagueante), e que representa o turista que procura uma imersão e exposição total à
estranheza. Estes dois últimos grupos seriam englobados também na categoria não-
institucionalizada de turismo.
Cohen insiste na existência de grupos de turistas, reformulando e introduzindo novas
categorias, e reforça que a diferença entre estes reside na sua relação entre o Centro, as sociedades
de origem dos turistas, e o Outro, as sociedades dos hóspedes. Este autor publicou uma série de
trabalhos de relevo onde esta dicotomia entre o Centro e o Outro é reforçado tendo como pano de
fundo uma outra oposição, a da modernidade/pós-modernidade, e como a última reconfigurou o
entendimento de conceitos centrais na abordagem ao turismo como autenticidade e mercantilização
(Cohen, 1988).
Uma outra alternativa à tese sobre a autenticidade é a da "Modernidade em Conflito".
Apesar da sua génese ter nascido do trabalho de Edward Said (1978), é com Hollinshead (1993) que
ganha destaque. Este, influenciado por Foucault, aborda o turismo desde uma perspetiva linguístico-
simbólica. Sendo a natureza imune a simbologia e linguagem, a atribuição de significados por parte
do homem a essa mesma natureza e à realidade deixam espaço para o discurso, os discursos de
poder e outras manipulações.
Em Hollinshead este 'empowerment discursivo' é claramente visível na articulação com o
passado, na sua reconstrução presente e futura. Ou seja, a forma como o turismo e o seu discurso é
construído e se apropria do ambiente, dos objetos, da memória coletiva, é um exemplo do poder
discursivo que a linguagem e a simbologia encerram. O turismo é para o autor um 'ambiente
comunicante'33 que orbita em torno de diferenças de poder e verdade, onde a verdade é simbolizada
33 Nos trabalhos desenvolvidos pelo autor tanto sobre os aborígenes na Austrália, como sobre os índios norte-americanos, procuram demonstrar esse poder discursivo do turismo: “In both cases the tourism establishment seesthe need to impose the order of the mainstream society on marginal visited people. This control is effected through
48
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
por palavras e imagens.
'The Tourist Gaze' (1990) é outra das obras de destaque obrigatório. Urry cimentou a sua
retórica na proposição de que para se entender o turismo contemporâneo, o turismo pós-moderno,
teríamos primeiro de reconhecer que o turismo anterior, o moderno, provinha de uma sociedade
altamente estruturada e diferenciada que dependia de uma lógica racional e normativa
institucionalizada, tanto vertical como horizontalmente.
Este trabalho de Urry procura uma nova abordagem ao turista e à experiência turística, um
olhar que encontra no consumo uma marca da sociedade atual, e no turismo um exemplo desse
consumo. Para Urry o turismo é uma atividade pós-moderna que exige o reconhecimento do pós-
turista. Alguém consciente e indiferente à autenticidade ou inautenticidade que observa mas que
sobretudo procura experienciar uma viagem, seja ela na Papua Nova Guiné numa aldeia tradicional
remota, num resort no Algarve ou na EuroDisney em Paris. Isto é, a condição pós-moderna
encontra na artificialidade e representação do real uma realidade, ou hiper-realidade, mais autêntica
e desejada que a própria realidade. A questão da autenticidade ganha aqui novos contornos face às
posturas anteriormente abordadas. Em Urry, o turismo pós-moderno é a representação da
autenticidade!
Para o autor, em particular nas sociedades capitalistas atuais, marcadas pelo consumo,
stresse constante e superficialidade, o turismo desempenhava um papel importante: o de recriar um
cenário e uma experiência romantizada que procura dar prazer a quem participa, mesmo que à
distância ou através de barreiras físicas como janelas ou ecrãs, ou barreiras simbólicas como
observar reconstruções culturais “inautênticas”. Nas suas próprias palavras:
The post-tourist does not have to leave his or her house in order to see many of the typical objects of thetourist gaze, with TV and video all sorts of places can be gazed upon. (…) The typical tourist experienceis anyway to see named scenes through a frame, such as the hotel window, the car widescreen or thewindow of the coach. (Urry, 1990:100)
Neste processo pós-moderno de desdiferenciação, do enaltecimento da individualidade, anti-
autoritarismo e anti-massificação, nas sociedades (em particular as ocidentais pós-industrializadas),
o prazer já é agora entendido como um dever de auto-atualização: “a cultura mercantilizada é
consumida não num estado de contemplação mas de distracção” (Dann, 1996:18). Esta
contemplação permite, por um lado, uma compreensão dos processos de construção dos destinos
ethnocentric stereotypes, vocabularies, symbols, and texts” (Dann, 1996:26 citado por Hollinshead, 1993).49
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
turísticos e do seu consumo; por outro lado, serve de metáfora (to gaze) para as práticas modernas
de turismo e significados associados (Williams, 1998).
Grosso modo, uma inovadora abordagem ao turista, apresentado como detentor de livre
vontade, e de uma ação turística que não é apenas produção, mas também consumo. No entanto,
MacCannell (2001) critica o enfoque na vida quotidiana, desagradável e tediosa, em contraste com a
excitação e emoção da viagem turística. Para este autor, Urry parece esquecer as pessoas para quem
a vida quotidiana já é emocionante e que, ainda assim, continuam a ser turistas quando viajam. O
"Olhar Turístico" de Urry é apresentado como um diagrama para a transformação do sistema global
de atrações num enorme conjunto de espelhos que servem necessidades narcisistas de egos
aborrecidos (MacCannell, 2001:26).
A divisão binária de felicidade/infelicidade, lazer/trabalho, quotidiano/férias, está em Urry
aprisionada e aplica-se não só ao turista como ao que ele observa. Não há nada de ordinário no
destino turístico. Urry vê na viagem e no turista apenas a busca pelo verdadeiramente
extraordinário, tornando, por arrasto, o que é observado e vivido pelos turistas no seu quotidiano
como ordinário, comum, ou menos interessante. Urry parece ir beber a Foucault, especificamente à
lógica do visível, que vê o invisível como apenas algo que poderá vir a ser visível, apresentada na
obra “The Birth of the Clinic” (1975). E também à unidirecionalidade do olhar (panoptic gaze,
apenas os 'poderosos podem olhar') na obra “Discipline and Punish” (1977).
MacCannell (2001) pretende defender duas premissas com esta reavaliação crítica do “olhar
do turista”. Existe um olhar determinado pelas instituições e práticas do turismo comercializado,
ideologicamente formada (a que Urry apresenta), mas também existe outro olhar que reconhece que
a realidade, ou partes dela, lhe escapam, procurando em atividades como o turismo uma janela para
essa realidade que reconstrói livremente.
Numa nova vaga de repescagem do conceito de autenticidade, Wang (1999) apresentou a sua
proposta existencialista, que considera que as abordagens já referidas devem ser reconsideradas e
seus limites definidos. As posições existentes em torno da autenticidade (realista-objetivista,
construtivista, e pós-modernista) encaram a autenticidade enquanto noção 'object-related', o que
apenas explica parte das experiências turísticas. Assim, o autor propõe o conceito de “autenticidade
existencial”, originariamente de Hughes (1995).
A ser considerado como 'activity-related', este conceito permite agregar inúmeras
50
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
possibilidades de autenticidade, sendo que para o autor esta encontra-se definida em duas bases
separadas e não assente numa única (Wang, 1999:351). Ou seja, por um lado, as experiências
turísticas, e por outro, os objetos turísticos. Na perspetiva da autenticidade objetiva, os objetos
originais quando identificados como autênticos permitiriam o surgimento de uma experiência
autêntica, como afirmava Boorstin. Adversamente, a perspetiva construtivista vê a autenticidade
como uma perceção construída a partir de imagens que o turista possui do Outro, usualmente
construídas a partir de ideias e construções estereotipadas da sua sociedade de origem. Deste modo
interessa sobretudo a autenticidade na sua vertente simbólica.
Se a autenticidade é de facto uma construção social que emerge de interpretações e
construções contextualmente determinadas, o mesmo se pode aplicar à inautenticidade. Wang
afirma que: “neste sentido, se os turistas de massas experienciam empiricamente os objetos
turísticos como autênticos, então os seus pontos de vista são reais por direito próprio,
independentemente de os especialistas poderem propor uma visão oposta de uma perspectiva
objetiva” (1999:355). Para este autor, se os objetos turísticos envolvem estes dois tipos de
autenticidade, a experiência existencial envolve, por seu turno, sentimentos pessoais ou
intersubjetivos potenciados pela pontual atividade turística. É o estado de pontualidade da atividade
turística que permite ao turista a liberdade de ser mais autêntico, estando ausente do seu quotidiano
e mais próximo do seu 'eu verdadeiro'.
Para Wang, MacCannell ao apresentar a autenticidade encenada diversa da autêntica, deixa
escapar a autenticidade que, de facto, está em causa, a bipartida autenticidade como sentimento e
autenticidade como conhecimento:
O ponto-chave em debate, no entanto, é que a autenticidade não é uma questão de preto ou branco, masenvolve um espectro muito mais alargado, rico em cores ambíguas. Aquilo que é classificado comoinautêntico ou como autenticidade encenada por especialistas, intelectuais ou elites, pode serexperienciado como autêntico e real a partir de uma perspectiva emic – pode ser exactamente esta a formacomo os turistas de massa experienciam a autenticidade. (Wang, 1999:353)
Nesta vivência da autenticidade existencial, o turista procura o seu verdadeiro e autêntico
'self' quando experiencia, por exemplo, uma representação de uma qualquer atividade consumida
enquanto autêntica. Algo que, para Wang, se aplica mesmo quando esta é apresentada como mera
fantasia: “mas essa fantasia é real – é um sentimento fantástico. Apesar de ser um sentimento
subjetivo (ou intersubjetivo), é real para um turista, e é-lhe assim acessível no turismo. Este
sentimento fantástico é aquilo que caracteriza precisamente a autenticidade existencial” (Wang,51
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
1999:360). Como pudemos ver, para Wang a autenticidade existencial é mais adequada para analisar
e explicar as experiências turísticas, no entanto, o autor afirma ainda que esta pode ser subdividida
de acordo com duas dimensões ao nível pessoal, a intra e a inter. A autenticidade intrapessoal refere-
se a sensações e sentimentos individuais e a interpessoal às relações entre turistas.
Apesar das pesadas críticas e profundos acertos propostos à sua contribuição, a obra de
MacCannell deve ser destacada de forma positiva, pois numa época que os investigadores viam no
turismo um instrumento do 'progresso', MacCannell destaca os efeitos negativos e não desejados da
atividade (Korstanje, 2009:89). Um destaque que deve recordar que apesar dos intensos debates e
críticas, a autenticidade ainda é válida (Pearce, 2007:86), e de todo parece estar à beira da extinção,
já que novas ideias em torno da autenticidade continuarão a surgir e evoluir (Hillman, 2007:5).
Concluindo esta retrospetiva do discurso sociológico em torno deste conceito, recordamos as
quatro propostas: a perspetiva autenticista de MacCannell, que defende que os turistas buscam o
genuíno, autêntico; a perspetiva da diferença (strangerhood) de Cohen e Cooper, onde os turistas
preferem o virgem, remoto, fascinante, etc., marcado claramente por um uso assimétrico das formas
de comunicação entre turistas e residentes; a perspetiva de diversão/fantasia (play), de Urry, onde a
visita a lugares como Disneyland é exemplo claro da busca pelo fantasioso, imaginativo ou surreal
(Rázusová, 2009 citado por Dann, 1996); e por fim, Wang (1999) que vê na autenticidade uma
duplicidade de interpretações que exige a consideração das dimensões inter e intrapessoal.
Existem portanto três abordagens-tipo à autenticidade: realista-objetivista, construtivista, e
pós-modernista. A primeira parte do princípio que a realidade é rígida e imutável, e adjetiva com
conceitos como genuinidade e verdade, e acredita na mensurabilidade empírica da autenticidade
(ex: MacCannell, 1973). Já a perspetiva construtivista (ex.: Cohen, 1988), em oposição, considera a
autenticidade socialmente construída e, como tal, mutável e não autónoma das interpretações e
perspetivas de quem a aborda. Portanto, ela é negociável, contextual e ideológica (Bruner, 1991;
Silver, 1993).
Por fim, a perspetiva pós-modernista relega a pertinência da autenticidade afirmando que
esta é irrelevante para o turista, pois, este, consciente ou não da encenação ou da própria
autenticidade, não a considera pertinente. Argumenta ainda que o conceito de autenticidade é inútil,
pois não representa o turismo e os turistas pós-modernos (Olsen, 2007).
Estas perspetivas não reúnem todas as posturas e contribuições da Sociologia (ou
52
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Antropologia), mas antes aquelas que maior influência têm tido na abordagem ao turismo. A teoria
sociológica contém ainda muitos elementos e contribuições por explorar no que toca à análise a este
tema, e nenhuma em particular detém o controlo sobre a temática. Na verdade, a Sociologia do
Turismo exige contribuições cruzadas de várias perspetivas sociológicas, mas também de outras
ciências sociais (Dann e Cohen, 1991). A viabilidade de uma Sociologia do Turismo depende de
uma matriz teórica fundamentada e madura, e, para tal, uma postura eclética ao nível teórico é vital.
Passemos então a dedicar a nossa atenção à relação entre hóspedes e anfitriões, e como estas
moldam atitudes de uns sobre os outros, assim como, às consequências desta interação.
4. Atitude dos Residentes e Relação entre Hóspedes e Anfitriões34
A chave para o sucesso dos programas turísticos depende de uma abordagem ativa às
problemáticas relevantes com o envolvimento dos residentes, hoje reconhecidos como os principais
intervenientes no processo (Rastegar, 2009). A sustentabilidade do turismo reside na relação bem-
sucedida entre anfitriões e hóspedes. Por sua vez, esta relação depende da perceção que os
residentes têm do turismo e dos turistas; é dizer, dos impactos detetados por eles e respetivas
consequências. Daí que autores como Jurowski e Gursoy (2004) sugiram que o envolvimento das
comunidades locais (mesmo as que residem a alguma distância dos focos turísticos) na planificação
do turismo e nos seus diagnósticos e avaliações, é determinante para o seu sucesso.
A importância dos residentes no apoio e sucesso do turismo está amplamente presente na
literatura (Ashley e Roe, 1998); Andereck e Vogt, 2000; Andriotis 2008; Huh e Vogt, 2008; Ovieda-
Garcia et al., 2008; Stronza e Gordillo, 2008; Vargas-Sanchez et al, 2009). Nessa medida, é possível
traçar duas linhas de influência nas primeiras investigações que procuravam determinar os fatores
que influenciam a perceção dos residentes face à atividade turística ou desenvolvimento turístico.
Uma tendência dominante tem procurado justificar a atitude dos residentes com base em
fatores sócio-económicos como: rendimento, género, idade, etnicidade e tempo de residência. Esta
postura adveio da influência do modelo sistémico de Park e Burges aplicado ao turismo, que postula
que quanto maior for o tempo de residência mais negativa é a perceção dos residentes face ao
turismo. Esta tese foi comprovada em trabalhos como de Um e Crompton (1987), ou Sheldon e Var
(1984), Brougham e Butler (1981), ainda que com variações entre si.
34 Camargo (2003) sugere que o conceito de hospitalidade será o mais adequado para tratar a interação entre residentese visitantes.
53
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Pelo contrário, Perdue et al (1990) afirmam que este é um fator pouco determinante e até
contraditório em algumas pesquisas, não sendo capaz de explicar as variações nas atitudes.
Conclusões partilhadas por autores como Liu e Var (1986), Allen et al (1993), Tomljenovic e
Faulkner (1999), Cavus e Tanrisevdi (2002), entre muitos outros. Na verdade, McCool e Martin
(1994), Williams et al. (1995) Snaith e Haley (1999) chegam mesmo a obter resultados que
contrariam diretamente a premissa sugerida.
Uma outra tendência comum tem procurado explicar as atitudes dos residentes com base em
fatores espaciais, onde quem reside ou convive mais perto da atividade turística tende a ter uma
atitude ou perceção pior que os restantes residentes. Uma premissa influenciada pelo modelo linear
de Durkheim, Simmel, Wirth, e que obteve algumas corroborações em trabalhos como os de Pizam
(1978), Tyrell e Spaulding (1984), Hester (1993), Jurowski e Gursoy (2004), etc. Em certa medida,
esta ideia encontrou ecos idênticos noutros trabalhos que revelaram que o menor contacto entre
residentes e turistas resultava numa perceção mais positiva, como em Doxey (1975), Pearce (1980),
Brougham e Butler (1981), Teo (1994), Smith e Krannich (1998), entre outros.
Todavia, outros autores também tiveram resultados que a contrariam totalmente, como
Rothman (1978), Belisle e Hoy (1980), Sheldon e Var (1984), Korça (1998), Harril e Potts (2003),
Bujosa e Nadal (2007), etc., onde maior contacto entre os residentes e o turismo resultou numa
atitude mais positiva.
Apesar de resultados contraditórios, ambas as linhas de investigação acabaram por
contribuir para uma melhor compreensão das atitudes dos residentes, pois, concluiu-se que existia
todo um conjunto complexo de fatores que as influenciavam, muito além de fatores apenas
espaciais e sócio-económicos.
Outros estudos revelaram a influência de mais fatores como: o tipo de turistas (Woosman,
2008), os líderes comunitários (Aref e Redzuan, 2009), características sócio-demográficas (Butler,
1975; Schewe e Calantone, 1978; Dogan, 1989; Husband, 1989; McCool e Martin, 1994;
Alhansanat, 2008)35, o envolvimento dos residentes no planeamento turístico e sua aplicação
(Jacobson, 1991; West e Brechin, 1991; Heinen, 1993; Durbin e Ralambo, 1994), a duração/história
do desenvolvimento turístico num destino (Duffield e Long, 1981; Brougham e Butler, 1981;
35 Ainda que neste caso alguns autores sugiram que estas características são apenas determinantes em países em viasde desenvolvimento como Belisle e Hoy (1980), Milman e Pizam (1988), Ryan e Montgomery (1994), Lankford eHoward (1994), Liu e Var (1994), etc.
54
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Brown e Giles, 1994; Ryan e Montgomery, 1994), o tempo de residência36, o aumento do número de
turistas (Akis et al., 1996), a presença esmagadora de turistas em relação a residentes (Milman e
Pizam, 1988)37, ou ainda os benefícios económicos (Husband, 1989; Madrigal, 1993); Lankford e
Howard, 1994), entre inúmeros outros.
Este emaranhado aparentemente caótico de fatores que condicionam a atitude dos residentes
esconde muitas vezes as perspetivas teóricas que têm procurado encontrar sentido nestes resultados
tantas vezes contraditórios. Harril (2004) afirma mesmo que
Although theories of tourism may be mistaken for emerging approaches and orientations used byresearchers, the theories are drawn from mature social sciences such as sociology and psychology. Forexample, community attachment, social exchange, growth machine theories, based in sociology and otherdisciplines, provide a basis for explaining how resident attitudes toward the impacts of tourismdevelopment are formed. (Harril, 2004:9)
4.1 Teorias Explicativas da Atitude dos Residentes
Começamos esta explanação com a teoria “Community Attachment”, ou “apego à
comunidade”, aplicada por McCool e Martin (1994), e que vai beber a ambos os modelos referidos
no ponto anterior, ou seja, tanto ao modelo linear como ao sistémico. Ambos encontram eco em
resultados de investigação e, nessa medida, esta teoria postula que, dada a permeabilidade da
qualidade de vida da comunidade face aos efeitos da atividade turística, quanto maior for o apego à
comunidade, mais negativa é a sua atitude face ao desenvolvimento.
A questão que se colocou desde logo no seio desta teoria foi: como medir o nível de apego à
comunidade ou quais os indicadores adequados para tal medição? Ora, os indicadores mais comuns
nas mais diversas combinações são: tempo de residência, local de nascimento, etnicidade (Um e
Crompton, 1987), nível de desenvolvimento turístico e sentimentos de apego à comunidade
(McCool e Martin, 1994), rendimento anual (Williams et al., 1995), nível de qualidade de vida e
satisfação na comunidade (Jurowski, 1998), envolvimento na comunidade (Vesey e Dimanche,
2000; Harril e Potts, 2003). Esta teoria foi corroborada apenas por Um e Crompton (1987), pois o
grosso dos resultados demonstraram que o contrário é mais comum, ou seja, os residentes com
maior apego tendem a percecionar o desenvolvimento turístico como algo mais favorável que os
36 Onde para Brougham e Butler (1981) os recém-chegados toleravam pior os impactos, ou o contrário em Duffield eLong (1981).
37 “Isto poderá ocorrer porque as expetativas originais dos benefícios do turismo não eram realistas (e como talincapazes de serem cumpridas) ou porque os benefícios são pensados apenas para proveito de um pequeno númerode pessoas” (Fernandes e Rassing, 2000:1).
55
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
restantes residentes.
Por seu turno, a teoria “Growth Machine” (ou “máquina de desenvolvimento”) apresenta-se
como particularmente interessada nas questões do desenvolvimento urbano, nomeadamente, nas
diferenças de atitude entre residentes e elites. Nessa medida, esta teoria tem sido adaptada ao estudo
do turismo com o intuito de determinar em que medida o desenvolvimento turístico é controlado
pelos interesses no crescimento urbano e não tanto pelos interesses de residentes individuais (Harril,
2004:11). Postula-se que os indivíduos que não retiram quaisquer dividendos do desenvolvimento
turístico não apoiam o incremento do mesmo.
Já a teoria “Altruistic Surplus” (ou “excendente altruísta”) de Faulkner e Tideswell (1997),
defende que, por vezes, uma noção de bem geral pode sobrepor-se à perceção de prejuízo individual
e levar os indivíduos a apoiar o turismo mesmo reconhecendo o efeito nocivo deste na sua vida.
Uma teoria interessante mas que carece de comprovação.
A teoria “Reasoned Action” de Ajzen e Fishbein (1975), afirma que os indivíduos são
racionais e, como tal, fazem uso de toda a informação disponível, avaliam as implicações das suas
ações, tomando ou não uma decisão. Por outras palavras, se um indivíduo considera um
comportamento como favorável, a probabilidade de o executar é maior.
Uma teoria que reúne várias tentativa de comprovação, é a “Social Exchange Theory”
(SET), ou “Teoria da Troca Social”. Esta procura explicar a mudança social enquanto processo de
trocas negociadas entre indivíduos em sociedade (Ap, 1992). A SET afirma que os indivíduos
formam relações de acordo com uma análise de custo-benefício e comparação das suas alternativas.
Isto significa, por arrastamento, que as relações tornam-se mais ou menos desiguais entre os
indivíduos dependendo dos custos e benefícios das mesmas. Tal perceção é entendida como fulcral
para o desenvolvimento e apoio ao turismo por parte das comunidades. A teoria postula que os
residentes, por exemplo, consideram positivamente o turismo se os seus impactos negativos
percecionados se demonstrarem iguais ou inferiores aos positivos, algo confirmado por inúmeros38
trabalhos:
Residents are generally in favor of events that contribute socially and economically to the destination.They are, however, not ambivalent to some of the negative impacts, but are willing to cope with thesenegative impacts as long as the perceived benefits exceed the negative impacts. (Jackson, 2008:240)
38 Falamos de Arjen e Fishbein, 1980; Perdue et al, 1990; Madrigal, 1993; Faulkner e Tideswell, 1997; Jurowski et al,1997; Andereck e Vogt, 2000; McGehee et al, 2001; Kayat, 2002; Gursoy et al, 2002b; Dyer et al, 2007; Guerreiro etal, 2008; Jackson, 2008; Mohul, 2009; Nunko e Ramkisson, 2009; Brida, 2011; etc.
56
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Para Ko e Stewart (2002) os benefícios pessoais que derivam do turismo são relevantes para
entender as perceções positivas dos residentes, mas não tanto para entender as perceções quanto aos
impactos negativos. O residentes que mais dependem do turismo acabam muitas vezes por tolerar
melhor os impactos negativos ou sobrevalorizar os positivos (Brougham e Butler, 1981; Milman e
Pizam, 1988; Murphy, 1983; Pizam, 1978; Rotham, 1978; Thomason et al, 1979). No entanto, Var
et al. (1985), Ross (1992), Lankford (1994), Lawson et al. (1998), entre outros, demonstraram que
quem mais benefícios colhe é também capaz de reconhecer melhor os impactos negativos.
Em suma, uma teoria amplamente testada que encontra alguns resultados contraditórios
como o de Monterrubio et al. (2012). Este concluiu na sua investigação que, embora os resultados
quantitativos confirmem esta teoria, os resultados qualitativos relativizam-nos. De forma totalmente
contraditória, Andriotis (2005) não foi capaz de comprovar a SET na sua investigação.
Uma das críticas constantes à SET é esta abarcar sobretudo estudos de custo-benefício em
termos de benefícios económicos, relegando normalmente os aspetos mais culturais e sociais. Já
McGehee et al. (2001) consideram que esta teoria peca por partir do princípio de que os indivíduos
decidem com base em critérios de ganho para si próprios, e nessa linha não existem “perdedores”
nas trocas. Ora, nem podem apenas haver “vencedores” nas trocas, nem se pode presumir que todas
as escolhas são prudentes sem se presumir que todas as decisões são tomadas com pleno
conhecimento de todas as variáveis ou informações possíveis.
Recentemente, Yutyunyong e Scott (2009) sugerem a realização de uma análise híbrida,
adicionando à SET a Social Representation Theory (SRT). Esta, com fortes raízes na psicologia
social, vai também encontrar semelhanças no construtivismo social e interacionismo simbólico, e
uma forte influência de Durkheim e das suas “representações coletivas (Yutyunyong e Scott, 2009):
SRT framework can examine how individual perceptions or representations towards tourism developmentregulate individual actions and outcomes by finding a relationship between socioeconomic and otherfactors such as values, beliefs, norms and perceptions of tourism development. (Yutyunyong e Scott,2009:10)
Trabalhada desde os anos 60 em França, mas sobretudo por Moscovici na década seguinte,
esta teoria baseia-se no princípio de que as representações sociais são definidas de acordo com os
sistemas de valores, ideias, imagens e práticas com uma função dúplice: estabelecer uma
ordem/hierarquia entre os indivíduos e facilitar a comunicação entre os membros da comunidade.
De acordo com o autor francês Moscovici, existiriam três tipos de representações sociais:57
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
hegemónicas (representações comuns), emancipatórias (representações marginais), e polémicas
(representações divergentes). Todas elas refletem formas sociais elaboradas de pensar e discutir um
assunto, envolvem múltiplas perspetivas sociais, criam desafios, dificuldades e conflitos devido à
mudança, e, assim, contribuem para a partilha de ideias na arena pública (Yutyunyong e Scott,
2009).
Um dos resultados interessantes de uma pesquisa levada a cabo pelos autores supracitados
foi que os residentes reconheciam os impactos negativos e positivos do turismo mas que toleravam
os primeiros em detrimento dos segundos. Entre os positivos estavam a melhoria da qualidade de
vida e da economia local, pois estas permitiram aos residentes, nomeadamente as gerações mais
novas, uma formação e educação em países ocidentais, acelerando a mudança social local. Uma
mudança gradual foi o controlo e influência nas tomadas de decisão locais, e estabeleceu relações
de poder desiguais entre os residentes.
Outra conclusão foi a de que, em defesa dos seus valores em mudança por influência da
presença dos turistas, a comunidade local fazia jogo duplo com os seus valores e atitudes: no Verão
tolerava os valores, atitudes e comportamentos dos turistas; no Inverno retomava os seus
tradicionais ou conservadores (Vounatsou et al, 2005). Para os autores esta atitude dúplice é sintoma
de decadência de um espaço turístico, pois antecede a indiferença dos locais face aos seus valores e
normas e, inevitavelmente, a absorção total dos valores e normas dos turistas.
Como vimos, esta teoria assume que as pessoas efetuam trocas quando existem interesses e
mantêm-nas quando o resultado final é vantajoso. Troca essa que pode ter uma forma material
(física), ou então imaterial (como um serviço prestado), e que pressupõe uma relação positiva entre
os intervenientes quando a troca é compensatória. A recompensa ou reforço podem ser positivos ou
negativos, dependendo também das relações de poder estabelecidas entre os intervenientes. Por
exemplo, caso haja uma subordinação acentuada de um face a outro, turista face a residente, pode
chegar-se ao ponto de dependência cultural do segundo face ao primeiro, sobretudo quando uma
economia é dependente do turismo.
No entanto, ao contrário do que é muitas vezes considerado, as transformações culturais são
universais e inevitáveis; se quisermos, o turismo massificado pode ser uma oportunidade de retocar
essas transformações de uma forma economicamente proveitosa. Como infere Crick: “é certo que
ocorrem mudanças nos padrões morais e comportamentos, mas devemos ter o cuidado de não
58
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
resvalar em romantismos e etnocentrismos opondo as nossas descrições a um idílico rousseauniano
de vida tradicional. (…) Estas culturas já estavam em mudança muito antes do turismo (…)” (Crick,
1989:336).
As relações entre hóspedes e anfitriões são relações de influência mútua. Todavia, o grosso
da literatura e das investigações das ciências sociais sobre o tema dos impactos destas relações tem
incidido com particular atenção nos impactos dos turistas sobre os autóctones (ou dos hóspedes
sobre os anfitriões). Da mercadorização cultural que o turismo massificado provoca, ao reforço de
valores culturais e uma propagação dos mesmos a uma escala globalizada, todos os cenários são
praticados e praticáveis.
Há, portanto, espaço para uma diferenciação positiva que devidamente explorada política e
economicamente, poderá fazer brotar dinâmicas positivas como empowerment social (Cole, 2007).
Isto porque o turismo e seus resultados não são fatalidades pré-determinadas, mas sim jogo de
múltiplos resultados que variam de acordo com a forma de usar as peças disponíveis.
Os anfitriões reconhecem grande parte dos impactos negativos e positivos, apresentados no
ponto anterior, e da perceção desse conjunto de impactos definem a sua postura face ao turismo39,
seja ela de apoio, de indiferença ou de resistência. Assim, será na prevenção dos impactos negativos
que pode residir a chave para um maior apoio e envolvimento no turismo por parte dos anfitriões.
Por sua vez, tais condições, permitem uma melhoria do serviço prestado aos hóspedes, o que por
seu turno, garante a satisfação e o potencial retorno dos mesmos, mantendo o ciclo de vida (social,
ambiental e económico) do espaço sustentável.
Em suma, um turismo sustentável passa pelo envolvimento das comunidades locais nos
processos de tomada de decisão40, de forma a garantir que estes beneficiem não só economicamente,
mas também que as suas tradições e características perdurem de acordo com as regras por eles
próprios determinadas, sem imposição externa. Ashley e Roe (1998) consideram mesmo que o
envolvimento das comunidades pode tomar várias formas, que passam da concessão, parceria, até
ao envolvimento ativo.
39 Isto indica que os anfitriões estão conscientes da sua postura e racionalizam-na em função das informaçõesdisponíveis como aliás é reforçado pela Teoria da Acção Racional (Theory of Reasoned Action): “(...) individualsare rational, they make use of all available information, and they evaluate implications of their action before theydecide to engage or not in a particular decision” (Bujosa e Nadal, 2007:194).
40 “Local government decision makers and tourism entrepreneurs would be well advised to consider investing incontinued and long-term monitoring of those who act as hosts for community tourism” (Johnson e Snepenger,2002:236). Ver também Choi e Sirakya (2006); Shuib (1995).
59
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Daí que, determinar o sucesso de um programa de desenvolvimento assente no turismo
passa desde logo por determinar os níveis de satisfação das comunidades recetoras41, a sua atitude
face ao turismo, e esta está intrinsecamente ligada ao seu envolvimento no processo, sobretudo na
tomada de decisões:
All these studies shows local people have more positive attitude towards tourism development when theyhave right to involve in decision-making and management of the programs. Unfortunately there is lack ofresearch on tourism development in the selected study area which leads to a sustainable tourismdevelopment. (Rastegar, 2009:205)
Na questão das relações entre hóspedes e anfitriões, devemos recordar que sendo por
natureza uma relação desigual, uns em lazer e outros em trabalho, há desde logo que procurar
debater e problematizar este binómio de trabalho-lazer. O turismo é uma atividade económica, uma
transação comercial entre o provedor de serviços e um cliente. Naturalmente que nunca é apenas
isso, da mesma forma que nem sempre é apenas o contrário. Nesse sentido, não é necessariamente
um 'cordial encontro cultural', de promoção de paz (OMT) e das relações interculturais, ou o
contrário.
Autores como Crick (1989) revelaram-se acérrimos críticos desta perspetiva pacifista que
considera o turismo como, sobretudo, culturalmente benéfico:
Essa retórica, difundida pelos promotores turísticos e por algumas autoridades nacionais, deve ser vistapelo que é - uma imagem mistificadora que faz parte da própria indústria (…). Retrata mitos e fantasias, eneste sentido pode prejudicar os esforços de desenvolvimento de um país, precisamente porque asimagens fabricadas dão um retrato falso do Terceiro Mundo. (1989:329)
Muitos são os exemplos sintomáticos dessa relação de poder desigual, que claramente pende
para os países de origem dos turistas. Esta manifestação de poder reside não só no controlo do
turismo pelos países detentores do capital investido, e da maioria dos seus lucros, mas também se
manifesta noutras nuances. Nomeadamente, a(s) língua(s) dominante(s) nas interações sociais, dos
países de origem dos hóspedes, a moeda usada nas transações, etc.
O domínio é particularmente claro quando falamos de turismo em países em
desenvolvimento. Crick reforça “Os turistas não viajam para os países de Terceiro Mundo porque lá
as pessoas são simpáticas, fazem-no porque lá as férias são baratas; e o custo baixo depende, em
parte, da pobreza das pessoas” (Crick, 1989:319).
Nesta linha enquadra-se também a ideia de 'centro metropolitano' de Nash (1989): o centro
41 Demonstrado nos trabalhos, por exemplo, de Assante et al (2006).60
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
aqui serão os países ricos do Ocidente que se propagam de forma imperialista, obrigando os
anfitriões a moldarem-se de acordo com as exigências e expetativas dos hóspedes, para que estes se
sintam em 'casa' (processo de aculturação).
Novamente, ressalva-se que “(...) a introdução do turismo numa sociedade ou sub-sociedade
anfitriã nunca é uma acção unilateral, implica sempre dar e receber” (Nash, 1981:465). Esta troca
deve também ser analisada, o que usualmente é verdade; todavia, são análises que pressupõem
relações de poder desiguais onde o domínio reside nas mãos dos turistas.
Neste sentido, Cheong e Miller (2000) concluem que este jogo de poder é omnipresente,
logo invariável, mas que não é de todo unilateral, antes uma flutuação de poder, ora penetrante, ora
superficial, que pode atravessar vários níveis. Barreto (2004) infere que, de facto, existe um amplo
espectro no relacionamento entre visitantes e visitados, que são muitas as variáveis que podem
determinar a sua relação/relações. No entanto:
Apesar das poucas pesquisas sistematizadas a respeito, as existentes demonstram que, na verdade, oshabitantes dos lugares turísticos que se beneficiam economicamente com a presença dos turistas, nãoestão precisamente interessados em receber os turistas como hóspedes e a realizar com eles trocasculturais, mas sim, receber o dinheiro trazido pelos turistas. Os turistas passam a ser um mal necessário.(Barreto, 2004:16)
A realidade é bem mais complexa do que a mera dicotomia positivo/negativo; há toda uma
malha que envolve as relações e perceções mútuas de anfitriões e hóspedes. De acordo com
Woosman (2008), o maior erro será agregar qualquer dos grupos como se cada um fosse
homogéneo e totalmente diferente dos demais. Existem disparidades em qualquer dos grupos por
motivos que vão da idade, género, residência, proximidade de residência de um destino turístico,
grau académico, etc., daí que se deve identificar tanto subgrupos de turistas como de residentes,
mas também os traços comuns que tantas vezes são esquecidos.
Falamos das interações, crenças e comportamentos compartilhados por residentes e turistas,
e que levaram Wearing e Wearing (2001) a colocar as interações entre indivíduos, e a questão da
identidade como o centro étnico do turismo, e não a tradicional e dicotómica relação “eu/outro”.
Neste sentido, por exemplo, Woosman (2008) desenhou um modelo inovador na análise das
relações hóspede/residente inspirado na ideia durkheimiana de solidariedade emocional42, aplicando
uma metodologia mista no seu estudo de caso. Este autor conclui que os anfitriões reconhecem uma
42 Três tipos de participantes foram identificados e as seguintes categorias “emocionais” foram criadas: empathy,closeness, e embrace.
61
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
série de aspetos comuns com os hóspedes, nomeadamente, preocupações com o meio ambiente, a
participação em eventos especiais, festividades, e em atividades relacionadas com o património
cultural, entre outras atividades comuns do dia-a-dia (compras, alimentação43, etc.)44:
Within the Durkheim model, the construct shared beliefs was a significant positive predictor of emotionalsolidarity. The focus on common beliefs between resident and tourist throughout literature has beenminimal, with almost no mention of the way representatives from each part feel about each other.(Woosman, 2008:227)
Como se tem procurado demonstrar, as interações entre os dois grupos sofrem várias
disparidades que se sobrepõem em simultâneo no mesmo contexto. As diferenças nos
comportamentos, nomeadamente, no que se refere a diferentes perceções e relações que os
residentes têm relativamente aos turistas, dependem do tipo de turismo, dos turistas e, claro, dos
residentes. Conclusões como estas levaram, sobretudo desde a década de 1970, a procurar desenhar
modelos de interpretação e avaliação do desenvolvimento turístico de forma a antecipar ou corrigir
estas e outras situações. Como de resto ficou claro anteriormente.
Resta, portanto, analisar o último desdobramento da abordagem científica, referente às
consequências e impactos(es) do turismo. Neste ponto, serão explanadas as principais conclusões e
produzido um quadro geral útil para posterior comparação com o estudo de caso da presente
investigação.
5. Consequências e Impactos do Turismo
À medida que o turismo se solidifica como uma atividade económica forte e em expansão,
emergindo por vezes como a principal fonte de rendimentos e divisas em muitos países em
desenvolvimento, torna-se imperativo acompanhar e estudar os impactos sociais, económicos e
culturais que este provoca, mas também o efeito a médio e longo prazo destes impactos, ou seja, os
seus impactes. Assim, devem ser reconhecidos e abordados desde a importância do uso responsável
dos recursos, a investimentos económicos equitativos e justos, até à preponderância do papel das
comunidades e seu envolvimento no processo.
Ao falarmos de impactos referimo-nos aos mais variados, económicos, ambientais, culturais
43 Sobre este ponto ver o estudo realizado na comunidade Sarawak da ilha Borneo na Malásia produzido por Langgat(2011).
44 Todavia Woosman identificou também uma série de contrariedades entre o afirmado nos “focus groups” e osresultados dos inquéritos, concretamente, a questão da superficialidade das interações entre hóspedes e anfitriões, e afrequência dessas interações.
62
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
e sociais, mas apenas quando estes potenciam ou são agentes de mudança, sempre considerando que
diferentes tipos de turismo resultam em diferentes impactos.
Neste trabalho, o objeto de estudo são tanto os residentes como os turistas, nomeadamente,
aqueles que se envolvem ou se cruzam com o turismo massificado. Usualmente o turismo
massificado é classificado como sendo de 'pacote', embalado por agentes e operadores de turismo
para grandes grupos de forma a consumirem produtos pré-determinados e preparados.
Também considerada atividade alienadora e canibalista cultural, o turismo de massas vê as
comunidades locais vergarem e até encenarem as suas práticas quotidianas para deleite dos
hóspedes (MacCannell 1989). Como vimos, podem ser entendidas como representações encenadas
onde os anfitriões procuram responder às expetativas e perceções que os seus hóspedes têm dos
próprios anfitriões45 (Crick 1989; Cohen 1993).
Uma simulação que pode ganhar contornos de afrontamento: “O turismo internacional (…) é
o consumo descarado à frente dos pobres” (Crick 1989:317). Esta perspetiva marcadamente focada
nas consequências e impactos nefastos do turismo de massas vê nos grupos de turistas predadores
do(s) Outro(s) (Exótico[s]), e do seu meio ambiente, usualmente severamente castigado pela sua
estadia.
Tais teses derivam de informações recolhidas por inúmeros trabalhos desenvolvidos sobre os
impactos diretos, indiretos, a curto e a longo prazo provocados pelo turismo. Importa agora
apresentar os tais impactos positivos e negativos que a literatura tem detetado nos grandes âmbitos
de investigação, nomeadamente, social, ambiental e económico.
O desenvolvimento turístico acarreta todo um conjunto de impactos económicos positivos
que, desde cedo, foram apontados como capazes de melhorar a economia dos Estados e regiões
mais fragilizadas. Aqui constam: a capacidade de gerar postos de trabalho, tanto diretos, como
indiretos e induzidos (Milman e Pizman, 1988; Faulkner e Tideswell, 1997; Ap e Crompton, 1998;
Weaver e Lawton, 2001; Tosun, 2002; Andriotis, 2008; Gu e Ryan, 2008); de melhorar as condições
de vida nas comunidades (Pizam, 1978; Liu e Var, 1986; Akis et al., 1996); de apoiar a construção,
investimento e desenvolvimento de infraestruturas (Sharpley, 1994; Akis et al., 1996; Ap e
45 O turismo também implica alterações no status social dos locais, por exemplo, o pescador continua a pescar mas fá-lo como um show (Lage e Milone, 1998:39), por outro lado, a proeminência da mulher como empregada no turismopode provocar alterações no papel das mulheres na sociedade. Nesta relação, para além da estereotipação dosvisitados por parte dos visitantes, existe o risco de banalização da arte folclórica local e deturpação artística das suaspeças de forma a agradar os hóspedes.
63
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Crompton, 1998; Brunt e Courtney, 1999); e de permitir um crescimento económico dominante
(Greenwood, 1972; Cooke, 1982; Perdue et al., 1990). Por arrastamento, poderíamos ainda
acrescentar como impactos positivos a diversificação da economia local (Davis et al, 1998), e a
entrada de divisas estrangeiras (Jurowski et al., 1997; Sethna e Richmond, 1978; Ferreira, 2005;
Lopes, 2008).
Na outra face desta moeda residem os impactos económicos negativos, entre os quais se
destacam: o aumento do custo de vida das populações locais (Ap, 1990; Liu e Var, 1986;
Carmichael et al., 1996; Faulkner e Tideswell, 1997; Ap e Crompton, 1998; Lawson et al, 1998); o
aumento dos preços e custo de serviços (Pizam, 1978; Var et al., 1985; Ahmed, 1986; Shuib, 1995);
a divisão desigual dos benefícios entre a comunidade local, usualmente favorecendo apenas uma
minoria da mesma (Belisle e Hoy, 1980; Getz, 1994; Lindberg et al., 2001); a perda de direitos dos
residentes (Northcote e Macbeth 2005); e a sazonalidade e temporalidade do emprego (Jordan,
1980; Sharpley, 1994; Tosun, 2001). Ou ainda, acrescentar o aumento da instabilidade nos
rendimentos e preços (Gee et al., 1984), o abandono das atividades tradicionais, e a dependência
exclusiva do turismo (Ferreira, 2005; Lopes, 2008).
No que toca aos impactos ambientais há que considerar a particularidade destes reunirem
maioritariamente aspetos negativos, mormente: o aumento da poluição (de vários tipos); o
congestionamento populacional e de tráfego (Pizam, 1978; Ap, 1990; Akis et al., 1996; Ap e
Crompton, 1998; Carmichael, 2000; Sheldon e Abenoja, 2001; Ko e Stewart, 2002; Jurowski e
Gursoy, 2004; Northcote e Macbeth, 2005; Haley et al, 2005; Gu e Wong, 2006); agricultura e pesca
excessiva, destruição da beleza e tranquilidade naturais e desflorestação (Cater, 1987; Faulkner e
Tideswell, 1997); destruição de sítios históricos e de monumentos, excesso de consumo de recursos
naturais essenciais como água ou solo (Ferreira, 2005); e a pressão sobre as infraestruturas de
saneamento e tratamento de resíduos (Lopes, 2008)46.
Ainda assim devem ser notados alguns impactos ambientais positivos, como o investimento
da parte pública e privada na criação de áreas protegidas, a produção de legislação para a proteção
do património ambiental e físico, e a aposta em campanhas de educação ambiental e em medidas
empreendedoras de preservação ambiental (Ferreira, 2005; Lopes, 2008).
46 Lopes (2008), também refere que muitos destes impactos resultada da falta de estudos e fiscalização referente àcapacidade de carga do destino turístico.
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II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Finalmente, a esfera sociocultural. Os impactos socioculturais positivos do turismo mais
vezes identificados pela literatura são: o intercâmbio cultural entre anfitriões e hóspedes (Pizam,
1978; Mathieson e Wall, 1982; Esman, 1984; Liu e Var, 1986; Milman e Pizam, 1988; Ap e
Crompton, 1998); a revitalização das práticas tradicionais (deKadt, 1979); o aumento na demanda
de arte local (Liu e Var, 1986; Ap e Crompton, 1998); o apoio à preservação da identidade cultural
dos anfitriões (Evans, 1976; Liu e Var, 1986; Lopes, 2008); um crescente sentimento de orgulho nas
comunidade visitadas (Ap e Crompton, 1998); uma melhoria das condições de vida (Pizam, 1978;
Milman e Pizam, 1988; Burns, 1996); a modificação positiva da estrutura social e um aumento dos
níveis culturais e profissionais da população (Ferreira, 2005); e a criação e/ou aperfeiçoamento, e
desenvolvimento de muitos serviços úteis para a comunidade local (Sarmento, 2008).
Já em relação aos impactos socioculturais negativos, os efeitos sob mira são: a perda gradual
da língua local que é substituída pela língua/línguas dos turistas (White, 1974; Coppock, 1977); o
aumento exponencial da prostituição e crime (Liu e Var, 1986; Liu, Sheldon e Var, 1987; Ferreira,
2005)47; o aumento do alcoolismo (Ap, 1990; Tomljenovic e Faulkner, 2000); a destruição do tecido
social com o crescimento do conflito intergeracional e reforço das divisões de classe (Krippendorf,
1987; Delamere e Hinch, 1994; Faulkenberry et al., 2000); e, um declínio da atitude dos residentes
face aos turistas, por vezes até ao ponto de hostilidade e conflito (Doxey, 1975; Dogan, 1989; Munt,
1994). Podemos ainda acrescentar a pressão que o turismo exerce sobre o stresse dos residentes e a
exploração laboral (Brayley et al., 1990; Freitag, 1994), a perda gradual da autenticidade, por
exemplo, através da descaracterização do artesanato e vulgarização das manifestações culturais
locais, e ainda, a alteração da moralidade e da identidade cultural (Brougham e Butler, 1981; Ap,
1990; Brunt e Courtney, 1999; Tomljenovic e Faulkner, 2000; Ferreira, 2005; Lopes, 2008).
A maioria destes últimos impactos são devidos ao chamado 'efeito demonstrativo' que os
turistas exercem, mesmo inconscientemente, sobre os autóctones. Resultam do contacto entre
grupos com pertenças sociais e identidades sócio-culturais tão diversas que faz dele um momento
crítico no que toca ao confronto de referentes representacionais e de valores (Casanova, 1991).
Para alguns autores, a chave do comportamento dos hóspedes e seus impactes residem no
facto de estes viajarem por intermédio de operadores turísticos, institucionalizados ou não.
47 Gursoy et al (2002) concluíram que o crime e a congestão populacional são os grandes variáveis percecionadas negativamente pelos residentes.
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II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
Diferentes proveniências determinam diferentes atitudes e comportamentos? Burns (1999) critica tal
conceito pois esta ideia é estereotipada e não considera que o indivíduo pode 'ser', durante a sua
vida, diferentes tipos de turista, cada um com diferentes experiências.
Mathieson e Wall (1982) procuraram resumir os impactes sociais (referentes a relações
interpessoais) do turismo em oito categorias: (i) o ressentimento local devido ao choque entre
culturas; (ii) a transformação da estrutura laboral; (iii) a saturação das infraestruturas, equipamentos
e instalações; (iv) a modificação dos valores e condutas morais; (v) modificação nos padrões de
consumo; (vi) problemas de saúde; (vii) manifestações de etnocentrismo e o (viii) excesso de
padronização48.
Ao nível cultural, os impactes tendem a tomar uma outra forma, por vezes menos percetível.
No que toca aos impactes na cultura, nomeadamente a não-material, os traços e manifestações
culturais típicos da cultura local não perdem a sua originalidade e/ou a sua autenticidade. Todavia,
podem permitir e impulsionar a sua reconstrução e a recuperação de antigas formas de arte
mescladas com influências de outras culturas. Por esse motivo:
A cultura local, deverá envolver a participação da população local como forma de fortalecimento daidentidade local. Mais uma vez, o que importa aqui realçar, é que o turismo pode afectar directa ouindirectamente a cultura da comunidade receptora sendo fundamental determinar o seu grau de impacto.(Sarmento, 2008:535)
Os estudos dos impactos do turismo atravessam muitas vezes os campos económico, social e
cultural, apresentando resultados que dificultam um diagnóstico absoluto quanto ao papel do
turismo, nomeadamente, as consequências que dele derivam. Parece evidente que o turismo é uma
atividade que afeta e é afetada por muitos fatores estruturais da sociedade, tanto local como global.
Bem como, deve ficar claro que o fator humano, isto é, o papel dos seus intervenientes é uma força
determinante na direção dos seus impactos e consequências.
O presente estudo procura contribuir para a identificação de quais os impactos que o turismo
trouxe a um espaço específico, a ilha da Boa Vista em Cabo Verde, sobre o qual mais adiante
apresentaremos em pormenor. Uma identificação que procura, para além da já importante
48 Como exemplo, podemos apontar o estudo de caso Chinês que levou o investigador Honggang (2003) a concluir queos impactos do turismo nas atrações locais verificou-se a vários níveis, desde o aumento do número de empregados,e de emigrantes para o local (empregados com salário inferiores aos locais), até um gradual fenómeno de"commodification", isto é, construção massificada de serviços criados especificamente para turistas. Umaconstrução desordenada e economicamente contraproducente. Finalmente outras duas notas, desde logo os elevadosdanos ambientais que surgirem com a acentuação da massificação dos turistas, bem como, na mesma linha umaescalada de conflitos entre locais e o desenvolvimento do turismo.
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II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
catalogação dos mesmos, fazê-lo desde a perspetiva quer de residentes quanto de turistas. É dizer,
procura recolher as perceções que residentes e turistas têm do espaço que (temporariamente)
partilham, de forma a melhor compreender as relações estabelecidas entre os dois grupos; e como
estas influenciam a própria atividade turística e a perceção que os grupos têm dela; e quais as
consequências dessa relação/interação para a comunidade e para o espaço.
O apanhado teórico apresentado pretende introduzir alguns dos pressupostos onde se apoia a
investigação e recolher algumas contribuições que melhor influenciam a mesma, nomeadamente
neste último ponto, estabelecer o ponto da situação entre os impactos detetados pela literatura e
aqueles que a investigação determinará, como vimos, aos olhos tanto de hóspedes como de
residentes.
Desde que o turismo começou a ser abordado pelos cientistas sociais, sobretudo a partir da
década de 1970, tem constituído um campo legítimo para investigação sistematizada, sendo cada
vez menos conotado como uma área frívola que afasta investigadores (Matthews, 1983). Enquanto
característica saliente da modernidade, no caso do turismo massificado, o seu potencial para
contribuir para a compreensão dos atos sociais é evidente. Talvez por inicialmente ser um campo
abordado tangencialmente ou por coincidência, a verdade é que a quantidade de materiais
produzidos, sejam em revistas, livros ou teses de mestrado e doutoramento, demonstram a riqueza
que nele reside e o seu potencial.
Neste capítulo vimos como a economia dominou e ainda influencia muita da produção sobre
este tema, ficando ainda claro o predomínio de certas abordagens a que chamámos de institucional,
técnica e cientifica. A síntese da última permitiu demonstrar os avanços e as contribuições dos
autores de maior destaque, mas também algumas das teses na literatura sobre a importância da
relação entre hóspedes e anfitriões, e sobre os impactos positivos e negativos mais comuns.
Parece claro que a Sociologia do Turismo carece de alguma organização teórico-
metodológica, estando recheada de trabalhos, desde os puramente descritivos, aos estritamente
teóricos, passando pelos determinados em estabelecer padrões de causa-efeito tendo por base
análise estatística.
A riqueza deste campo pode ser dispersa. Todavia, o valor que reúne é sinal claro da sua
importância para a melhor compreensão da sociedade e dos indivíduos que a compõem. Para tal,
consideramos ser importante não restringir a análise apenas a uma destas perspetivas dominantes
67
II – Abordagens ao Turismo – uma retrospetiva
dentro da sociologia do turismo. Por esse motivo, esta investigação procura trabalhar este tema
retirando contribuições destas diversas perspetivas, como de resto a metodologia selecionada o
demonstra.
Além das carências e potências da Sociologia do turismo e da metodologia desta
investigação, importa reconhecer que uma investigação que se concentre no turismo deve definir,
problematizar e esclarecer a sua relação com conceitos como modernização, desenvolvimento, e
sustentabilidade. Estes, muitas vezes, se fundem e confundem nas narrativas de decisores políticos
e/ou de investigadores que se fecham na sua própria disciplina na análise a esta atividade. Assim, o
próximo capítulo, pretende introduzir e explanar estes e outros conceitos que se articulam com esta
investigação.
68
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
Falar de modernização, de desenvolvimento e até de sustentabilidade implica definir uma
posição clara quanto aos conceitos, de modo a reduzir ou mesmo eliminar os alçapões da retórica
suspensa, incapaz de definir a margem e as limitações da sua posição. Este capítulo segue esta
mesma linha de raciocínio e introduz alguns conceitos centrais desta investigação e contextualiza a
sua relevância em conexão com o turismo. O capítulo tem também como objetivo apresentar os
trilhos que conduziram Cabo Verde, assim como inúmeros outros países e regiões, a apostar no
turismo como motor para a modernização, e as várias rotas que foram tomadas até à
consciencialização da importância da sustentabilidade no mesmo processo.
Comecemos pelo conceito de modernidade. A ideia de modernidade está associada à de
racionalização, ou à sociedade racional, só esta poderia produzir a primeira. A racionalização
reorganiza a vida pessoal e coletiva, a par da secularização que afasta 'fins últimos' (Touraine,
1992:22). Giddens (1990)49 distingue o dinamismo da modernidade com base em três fontes
dominantes inter-relacionadas, nomeadamente, a “separação do tempo e espaço”, o
“desenvolvimento de mecanismos de desincorporação”, e a “apropriação reflexiva do
conhecimento”.
A modernidade emerge como agente de uma racionalização inevitável e historicamente
necessária que se aparta dos velhos costumes e crenças, e a modernização como processo
revolucionário que quebra os vícios e amarras do passado. Ao fazer do passado 'tábua rasa', os
valores religiosos são substituídos por aqueles mais úteis e eficazes à sociedade: “A sociedade
substitui Deus como princípio do juízo moral e torna-se (…), um princípio de explicação e de
avaliação dos comportamentos” (Touraine, 1992:29). O ser humano é antes de mais um agente
social com papeis definidos para o bom funcionamento do sistema social.
Tal como Giddens, este autor considera que a conceção de modernidade está interligada com
a perda da ideia de Sujeito. Tal conceção falha na prática devido ao facto da administração racional
se revelar falsa, da vida social se apresentar repleta de conflitos e poderes, e por que a
modernização se tornou gradualmente mais exógena e mais estimulada por uma vontade nacional
ou por revoluções sociais. A modernidade teórica difere então da modernização verificada. O
49 A modernidade é inseparável dos sistemas abstratos que permitem a desincorporação das relações sociais através do espaço e tempo estendendo-se tanto na natureza socializada como no universo social. (Giddens, 1990:151)
69
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
homem é absorvido pela sociedade, tornando-se 'inteiramente social e histórico'.
Dos fracassos da etapa inicial da modernidade emergem conceitos que a relançam, como o
historicismo. Este, assente na premissa de que a sociedade pode ser explicada pelo processo que a
conduz em direção à modernidade. A questão social é entendida como uma batalha eterna do futuro
frente ao passado; fundem-se as correntes do idealismo e materialismo, permitindo que o futuro seja
compreendido como inevitável pelo progresso da razão, pelo sucesso económico e da ação coletiva.
Nestas bases justifica-se a ideia de revolução: “a forma mais elementar de historicismo é um
pensamento obcecado pela ideia de destruição da ordem antiga e de procura de uma nova ordem”
(Touraine, 1992:94). Na formação da nova ordem, o sujeito cede a sua individualidade ao Estado
que a canaliza para o socialmente desejável e eficiente. A era das revoluções levaria à repressão e
guerra em nome da inevitável revolução do futuro frente ao passado50.
A terceira etapa deste processo, forçada pelo enfraquecimento do seu movimento, conduzira
a uma fase mais radical, pondo em causa não apenas as carências da modernidade, mas também os
seus objetivos positivos. A sociedade moderna ganha novo fôlego teórico com Freud e Nietzsche
(Eros) ao mesmo tempo que reconhece três novos agentes de modernização: a nação, a empresa e o
consumidor.
Exemplos icónicos desta terceira fase da modernidade são as ditaduras fascistas que surgem
na Europa Ocidental, de Portugal à Alemanha, assim como a radicalização do movimento
revolucionário comunista, nas suas várias formas e adaptações, e claro, a segunda guerra mundial
como o clímax deste percurso.
Esta fase da Modernidade é entendida por Giddens como um Juguernauta imparável e
destrutivo que vai atropelando a Humanidade ao mesmo tempo que esta o glorifica. A modernidade
(Radicalizada) antecede a pós-modernidade, e tem como principais riscos/consequências: o
crescimento de poder totalitário, o colapso dos mecanismos económicos de crescimento, guerra a
uma escala global ou nuclear, e a decadência ou desastre ecológico. Uma fase radicalizada que
também Touraine defende.
A modernidade no pós-IIGM é sinónimo da escolha entre os modelos vencedores: por um
lado o modelo soviético baseado na planificação centralizada do partido único e no ideal de
revolução constante em nome do “povo”, e por outro lado, o modelo americano, ou ocidental,
50 O triunfo do progresso leva necessariamente a esta naturalização da sociedade em nome da qual os que se opõem àmodernidade e à sua revolução são considerados obstáculos, elementos anti-sociais que devem ser suprimidos pelosbons jardineiros empenhados em arrancar as ervas daninhas. (Touraine, 1992:109)
70
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
baseado numa economia liberal e na ideia de mercado livre em nome do melhor para o
“consumidor” e de maior lucro para o empreendedor.
Em suma, a modernidade pode ser explicada e definida de forma simplificada como um
movimento que
(...) entails the destruction of traditional localisms and an unprecedented process of social mobilization asthe people in their majority are brought in the national center. (…) From a more functionalist-systemicpoint of view, modernity can be defined in terms of unprecedented levels of structural-functionaldifferentiation, as functions previously embedded in all-inclusive, multifunctional segmental units areperformed by more specialized units (roles, institutions, organizations). (Mouzelis, 2008:154)
1. A Modernidade e o Desenvolvimento
O que é o “Desenvolvimento”? Quando começou? A resposta a estas questões é
justificadamente complexa e obriga à sua definição, história e transformações ao longo das décadas.
O conceito foi politizado pela primeira vez nos EUA, e pretendia consolidar a posição hegemónica
desse país no contexto global. A data mais aceite é a de 20 de janeiro de 1949, pelo presidente
Truman, aquando o anúncio do Plano Marshall e da “era do desenvolvimento”. Consequentemente,
daria início também à ideia de que milhares de milhões de pessoas viviam em subdesenvolvimento
(Sachs e Esteva, 1997).
Assente na ideia de modernidade, o desenvolvimento exige que as sociedades se afastem das
suas tradições e costumes, e abracem a tolerância e a prosperidade desta nova era. O caminho para a
modernidade seria conseguido por um processo de modernização acelerado pelo desenvolvimento
das sociedades. O desenvolvimento torna-se bandeira das sociedades vencedoras da IIGM, auto-
proclamadas de superiores a todas as demais, e com o “dever de ajudarem as outras”. Sendo “as
outras” as novas nações que emergem da descolonização das antigas colónias europeias por todo o
mundo.
Esta postura, em paralelo com a crescente afirmação do keynesianismo enquanto paradigma
económico emergente, conduz à propagação da necessidade de desenvolver o mundo à imagem do
ocidente, seja ele através do modelo soviético ou através do modelo norte-americano, despindo as
sociedades da diversidade e da autodeterminação cultural e social (Sachs e Esteva 1997).
Os conceitos de desenvolvimento e modernidade, estão enraizados na matriz histórica e
cultural europeia, por influência judaico-cristã, e pelos movimentos da revolução industrial e da
revolução francesa. A revolução industrial é o culminar da afirmação tecnológica europeia, onde as
máquinas, a divisão e especialização do trabalho, e a produtividade ditam uma filosofia laboral
71
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
firme. E a revolução francesa solidifica e expande a ideia de Estado-Nação, com toda a sua máquina
administrativa e burocrática, com ênfase na territorialidade, e a ideia de democracia representativa
encabeçada pela ascendente burguesia que “reina” no novo espaço aglutinador que é a cidade.
Adam Smith, John Stuart Mill, Karl Marx, entre muitos outros, tiveram um papel
determinante na consolidação destas ideias, dando forma e conteúdo a ideias e conceitos como
economicismo, produtivismo, consumismo, racionalismo, antropocentrismo, etc. (Amaro, 2003),
essenciais para explicar a linha de ação e pensamento do desenvolvimento enquanto conceito
hegemónico do pós-IIGM.
Os países ocidentais que reemergiram após a IIGM, foram usados como exemplo do sucesso
inevitável que o desenvolvimento traria, nomeadamente, os avanços tecnológicos e científicos em
todas as áreas, o aumento do nível de escolarização e da produtividade e uma melhoria da saúde das
populações. Por outro lado, nos restantes países, como nas nações recém-formadas, o resultado foi o
oposto. Para a esmagadora maioria destas nações, agravou-se o fosso que as separava do ocidente, e
emergiram situações laborais semelhantes às medievais ou até mesmo de escravidão. Para piorar a
situação, vários países foram devastados por guerras que não eram mais do que palcos secundários
da disputa geo-estratégica entre as duas super-potências mundiais, os EUA e a URSS.
O desenvolvimento começa a ser sinónimo de agravamento do meio-ambiente à escala
global, com as explorações selvagens de recursos naturais para fins industriais e com o êxodo
massivo das populações do campo para as cidades. O crescimento prometido ficou aquém do
esperado, e no processo corporações e organismos internacionais arrebataram maior poder e
influência (Broad e Cavanagh, 2006; Perkins, 2004). Gradualmente, algumas nações posicionam-se
publicamente contra as super-potências e os seus discursos “messiânicos” de progresso e
crescimento.
Por tudo isto, o projeto desenvolvimentista é entendido como um projeto neocolonial,
inspirado e gerido por peritos provenientes dos mesmos contextos de onde chegam as supostas
ajudas financeiras (Escobar, 1995). O crescimento pode aumentar os níveis de pobreza, ao alargar o
fosso entre ricos e pobres (Ravallion, 2001), ou mesmo agravar as debilidades sociais e os níveis de
pobreza, caso esse crescimento diminua. Uma sociedade mais desigual facilita a propagação de
vícios sociais (Alesina e Perotti, 1996), porém, pode também beneficiar os mais pobres (Adams e
Page 2003; Dollar e Kraay 2002).
O falhanço das duas primeiras décadas de desenvolvimento, a crise petrolífera de 1973, e o72
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
lento desmoronamento da União Soviética, aceleram uma onda de contestação que obtém uma
primeira pedra científica a seu favor com o Estudo do Clube de Roma para as Nações Unidas, que
culmina na publicação de “Limits to Growth”, e que afirma que os níveis de crescimento
económico, demográfico, exploração dos recursos naturais, de produção de resíduos e de poluição
eram insustentáveis a longo prazo, pelo que a contenção era essencial (Amaro 2003). Para que o
projeto desenvolvimentista pudesse continuar nas décadas de 1970 e 80, foi necessário modificar
ideais e objetivos.
Das várias transformações da teoria e prática do desenvolvimento, Milando (2005) considera
que o desenvolvimento tem atualmente três dimensões distintas: o “desenvolvimento-processo”, o
“desenvolvimento-resultado” e o “desenvolvimento-utopia”. O primeiro conceito refere-se ao
conjunto de práticas sociais em curso desenhadas pelos operadores de desenvolvimento; o segundo
remonta aos seus resultados ou às suas consequências práticas; e, o terceiro surge como uma mera
representação social do inatingível apresentado como possível e imperativo.
Desde 1949 emergiram vários novos conceitos de desenvolvimento como ecologia
política51, o desenvolvimento humano52, desenvolvimento pro-poor, desenvolvimento local, ou o
desenvolvimento sustentável, entre muitos outros. Seguidamente, daremos atenção particular aos
dois últimos conceitos, dada a clara ligação com o contexto desta investigação.
Existem particularismos nas dinâmicas do desenvolvimento ao nível local, regional,
nacional ou até mundial, que não podem ser encarados com uma matriz comum. Daí a importância
de olhar com maior atenção para a vertente espacial ou territorial do desenvolvimento.
Desenvolvimento local implica reconhecer que as localidades e territórios dispõem de recursos
económicos, humanos, institucionais, ambientais e culturais, e de economias de escala não
exploradas que reúnem grande potencial de desenvolvimento. É a ideia de um sistema produtivo
capaz de gerar rendimentos crescentes através da utilização dos recursos disponíveis.
O desenvolvimento local pode ser entendido como “(...) o processo de satisfação de
necessidades e de melhoria das condições de vida de uma comunidade local, a partir essencialmente
51 Proporcionada pelo apelo marxista, pela economia política e através da proliferação da literatura radical de estudoscamponeses que privilegiou a produção às relações biológicas, bem como, pelos cientistas sociais ecologicamentepreocupados, que ergueram questões de como as comunidades estavam a ser integradas e transformadas pelaeconomia global com a manutenção dos recursos locais, regulação do meio ambiente e estabilidade.
52 Tido como um “(...) processo de aumento das escolhas das pessoas, que lhes permitam levar uma vida longa esaudável, adquirir conhecimento, ter acesso aos recursos necessários para um nível de vida digno, enquanto ospreservam para as gerações futuras, proteger a segurança pessoal e alcançar a igualdade para todas as mulheres ehomens” (PNUD, 2003).
73
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
das suas capacidades, assumindo aquela o protagonismo principal nesse processo e segundo uma
perspectiva integrada dos problemas e das respostas” (Amaro, 2003:57).
O desenvolvimento local53 articula três grandes vértices: o conceito de desenvolvimento; os
mecanismos que favorecem os processos de desenvolvimento; e as formas eficazes de atuação dos
atores económicos, sociais e políticos. Este último advém da necessidade de corrigir a
obsolescência ou má gestão dos recursos ou necessidades locais por parte das estruturas
administrativas centrais54, que continuamente confundem reestruturação local com a implementação
de novas técnicas de gestão e modernização de infraestruturas das instituições estatais.
Esta reestruturação é, em parte, mental e envolve processos sociais de legitimação e o
envolvimento por parte da sociedade civil e suas organizações, nomeadamente ONG (Torrens,
2006). É um processo participativo que exige uma organização local capaz de assumir a
responsabilidade de levá-la a cabo com garantia de sucesso (Albuquerque, 2007; Ernesto, 2003), e
que compreende uma estratégia clara de incorporação e articulação institucional, inclusive na
criação e fortalecimento de parcerias. A sustentabilidade do desenvolvimento local depende da
capacidade potencial de auto-criação, da diversidade, e da interdependência, e do movimento das
forças de cada lugar, ou seja, do protagonismo das bases da sociedade (Silveira, 2007) e das novas
institucionalidades e relações entre os diversos atores (Zapata, 2007).
Este movimento enaltece a localidade, a endogeneidade e as potencialidades locais,
enquanto força que conduz ao desenvolvimento sustentável. Isto em resposta ao paradigma
económico keynesianismo-fordismo, caracterizado por um modelo de desenvolvimento que
dependia da produção em massa, organização taylorista do trabalho e do centralismo dos Estados
nacionais no planeamento e condução sócio-económica.
O conceito de desenvolvimento sustentável é sugerido pela Comissão Brundtland no seu
relatório para as Nações Unidas, em 1987. De acordo com esta comissão e seus especialistas,
técnicos e cientistas, a industrialização galopante e a utilização selvagem e arbitrária dos recursos
53 Entende-se local enquanto um espaço que contém uma identidade, uma dinâmica própria e característicasespecíficas que mantêm relações de interdependência com áreas mais vastas. Compreende as estruturas sociais, asolidariedade familiar e linguística, formação e pesquisa, colaboração entre o setor privado e as municipalidades,etc.
54 “A política de desenvolvimento local é uma resposta dos diferentes territórios, cidades e regiões frente àsemergências da mudança estrutural na actual fase de transição tecnológica. (...) trata também de superar aslimitações ou a ausência das políticas centralistas e sectoriais em face às exigências de mudança ou reestruturaçãoeconômica atual, já que o caráter agregado das políticas centralistas as torna muito pouco eficientes para enfrentar osdiferentes contextos e situações territoriais” (Albuquerque, 2007:6).
74
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
naturais conduz as sociedades, e o próprio planeta, para a auto-destruição. Assim, a chave para
impedir esta projeção apocalíptica é o desenvolvimento sustentável: desenvolvimento que cobre as
necessidades do presente sem comprometer as gerações futuras de atingir as suas (Brundtland,
1987).
Este relatório destaca os sete pontos nevrálgicos e inovadores desta vertente do
desenvolvimento como qualidade de crescimento, assegurar as necessidades básicas,
sustentabilidade ao nível populacional, conservação e melhoramento dos recursos-base,
reorientação tecnológica e gestão de risco, e, por fim, a fusão entre meio-ambiente e economia ao
nível da tomada de decisões.
Numa parceria que envolve a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN),
o Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP), e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF)
foram detetadas três grandes barreiras à sustentabilidade, nomeadamente, falta de compromisso
ético, desigual distribuição do poder e separação entre desenvolvimento económico e conservação
ambiental (Munslow e Brown, 1999). Em simultâneo, estes organismos apresentaram seis linhas
gerais para abordar estes problemas: modificar as atitudes e as práticas; construir uma aliança
global; atribuir poder às comunidades; integrar ambiente com desenvolvimento; estabilizar a
procura por recursos e a população; e, finalmente, conservar a biodiversidade.
Procura-se dar valor ao trabalho imaterial55, e entende-se a cidadania como essência da
integração produtiva (sendo cidadania entendida primordialmente como participação56). “Em
síntese, a participação social, ou seja, a cooperação dos tomadores de decisão locais com todos os
atores e grupos relevantes da comunidade, é visualizada como uma pré-condição básica à obtenção
do tão almejado desenvolvimento local sustentável” (Rocha e Bursztyn, 2005:51).
Embora utilizado frequentemente, este conceito é rotulado por alguns autores como
escorregadio e ambíguo (Friedman, 1996:133), até mesmo vago e difuso (Lélé, 1991; Bartelmus,
1994). A definição universal de sustentabilidade continua distante, e as suas variações permeáveis a
interpretações e práticas diversas, o que não reduz ou abranda a sua utilização e destaque. Para
Munslow e Brown a sustentabilidade é antes de mais uma questão política, do comunitário ao
55 “O trabalho imaterial é a condição de produção de bens e serviços e, portanto, não se opõe ao material. Ésimplesmente uma característica do trabalho vivo, que existe como processo e como ato, no compartilhamento deinformações e linguagens” (Cocco citado por Silveira, 2006:3).
56 Participação é “(...) o grau de integração do indivíduo em um grupo, sociedade ou instituição, expresso naintensidade, categoria e natureza dos contatos que mantém com os demais, pressupondo um alto nível deconscientização social e política” (Sayago, 2000:41).
75
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
supra-nacional (Munslow e Brown, 1999:28).
Para Amaro (2003), desenvolvimento é, na sua essência, um processo centrado nas pessoas e
nas suas necessidades, olhando às potencialidades e especificidades locais; e para Beni (2006) a
participação destas, em todas as etapas desse processo, dá maior garantia à sua sustentabilidade, ou
seja, ao seu sucesso. Como se tentará demonstrar nesta investigação, a carência de um investimento
nas pessoas e suas capacidades, provoca um efeito nefasto que promove uma gestão ineficiente e
insustentável que, sem dúvida, coloca em causa as gerações futuras, inclusive a sua própria
existência. O papel humano é essencial à sustentabilidade, seja de que tipo for. A participação
parece ser a resposta mais viável para o almejar dos objetivos definidos e pretendidos pelos seus
protagonistas.
A mobilização no sentido da participação e da capacitação surge, originalmente, em
Friedman (1996) que considerava que o empowerment está relacionado com a gestão de três
poderes distintos: o social (acedido na base da riqueza produtiva), o político (acedido pelo processo
de tomada de decisões), e o sociológico (pelo desenvolvimento das capacidades individuais).
A participação pode ser vista como um meio ou como um fim do desenvolvimento. Ao passo
que a voluntariedade e a mobilização são fundamentais para a participação como meio, enquanto
fim, deve ser entendida como instrumento para a promoção de objetivos normativos de
desenvolvimento como justiça social, equidade e democracia, e surge desde as populações (inside-
out, under-top), conhecida também como participação enquanto empowerment (capacitação), ou
seja, exigindo descentralização de poder.
Esta requer o envolvimento da população, entendido como um exercício pleno de cidadania,
e não apenas como um envolvimento que se esgota na fase de execução dos projetos de
desenvolvimento. Como vimos, ela passa pelo reconhecimento do que é a identidade das
populações e pela descodificação e compreensão dos valores que as caracterizam, moldam, e
reproduzem, e que se refletem em diferentes comportamentos e estratégias de vida.
O sucesso da aplicação das estratégias de empowerment, depende, também, de processos
positivos ulteriores ao campo de ação local direto (Alves 2006), ou seja, é necessário não só o seu
reconhecimento e a sua promoção, mas sobretudo a sua institucionalização. Também por isso,
alguns autores usem conceitos como “pós-desenvolvimento” ou “pós-modernidade”, para se
diferenciarem. Estes “novos desenvolvimentos” têm como objetivo a rutura com o desenvolvimento
como forma de dominação do ocidente face ao resto do mundo. Uma perspetiva que surge não76
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
apenas pelo fracasso do paradigma anterior, mas também pelo surgimento de novos paradigmas
científicos que têm vindo a permitir novas abordagens57.
Concordemos ou não com a ideia de pós-desenvolvimento, importa sobretudo reconhecer
uma mudança de mentalidade, de estratégia e de ação no processo desenvolvimento, processo esse
que, enquanto parte integrante dos objetivos de modernização de países e regiões, parece ser capaz
de se adaptar às condições e condicionantes do fim do processo clássico de modernidade, nas suas
várias facetas, em particular por ser capaz de se adaptar e prosperar num contexto globalizado.
2. Da Globalização à (Pós) Modernidade
Globalization can thus be defined as the intensification of worldwide social relations which link distantlocalities in such a way that local happenings are shaped by events occurring many miles away and viceversa. (Giddens, 1990:64)
Uma das principais consequências da modernidade é a globalização. A globalização resulta
da inter-relação de quatro dimensões: o sistema de Estado-nação, a economia capitalista mundial, a
ordem militar mundial e a divisão internacional do trabalho; e é um processo de desenvolvimento
desigual que se fragmenta à medida que se coordena, introduzindo novas formas mundiais de
interdependência (Giddens, 1990).
Globalização pode ser vista tanto como o processo que justapõe culturas, como a absorção de
culturas heterogéneas por uma cultura dominante. O surgimento de uma sociedade global, se é que
esta existe, está assente no desenvolvimento económico e tecnológico. No entanto, ao contrário do
que se percecionava até à década de 1970, os EUA poderão não ser já os agentes de absorção, pois
reconhece-se agora que os indivíduos podem viver com múltiplas identidades em simultâneo. Isto
significa que
The process of globalization, then, does not seem to be producing cultural uniformity; rather it makes usaware of new levels of diversity. (…) Syncretism and hybridizations are more the rule then the exception(…). (Featherstone, 1995:13-14)
O avançar da modernidade previa uma força universalizante levada a cabo por processos
específicos (industrialização, urbanização, mercadorização, racionalização, burocratização, divisão
do trabalho, individualismo e a formação de Estados) que não ocorreu. Uma história como destino
foi confrontada com uma multiplicidade de histórias. A maior arma da modernidade, a globalização,
acabaria por trazer a voz de outras nações, seus valores e culturas ao palco mundial, rebatendo o
ocidente e a 'americanização': “the shifting global balance of power which has resulted in the West
57 Como as de Rahnema (1997) ou Amaro (2003), entre muitos outros, são exemplo.77
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
having to listen to 'the rest' is producing a relativization in which other foundational values and
fundamentalism emerge to clash upon the global stage. More players are involved in the game,
(…)” (Featherstone, 1995:83).
Este rebater ganha formas tão distintas como o fundamentalismo ou o tradicionalismo, aliás
como Mouzelis (2008) também postula. Através do processo de globalização, as diferentes culturas
usam o palco mundial como campo de batalha, para reforçar e enaltecer as suas raízes culturais
ameaçadas pelo processo de modernização.
Esta tendência ganhou contornos ritualistas para a celebração do passado e para o reforço
identitário, como por exemplo, a criação de feriados nacionais, festividades e produção artística,
como formas de identificação mitológicas, que competiam com as de outras nações no palco
globalizado. A partir da década de 1960 emerge uma segunda fase desta nostalgia, para muitos
associada com a pós-modernidade, caracterizada por uma pressão no sentido da reconstituição das
identidades coletivas por parte dos Estados-nação.
Este regresso às culturas locais é potenciado na década de 1980 com a criação de espaços
comemorativos do passado como museus, centros comerciais e parques temáticos que não eram
mais do que “(...) commemorative ritual devices which reinforce, or help people regain, a lost sense
of place. (…)” (Featherstone, 1995:96).
Assim, torna-se clara a inter-relação entre culturas locais e globais. A ideia de unicidade do
globo torna-se inconsistente. A globalização permitiu a justaposição de culturas que não se
encaixam, ao mesmo tempo que alguns Estados-nação procuram processos de homogeneização à
sua imagem. Tal processo, como vimos, levou ao confronto direto destes com outras nações e
culturas antes periféricas.
A globalização tem permitido uma articulação direta do regional/local com global, ou seja,
um diálogo direto local-global que, pela primeira vez desde o advento da modernidade, escapa ao
controlo centralizado do Estado. Estas transformações levaram também alguns autores a considerar
que a globalização é responsável por limitar e até estrangular as ações do Estado:
(…) Albrow (1996), who stresses the narrowing of choices of nation states compelled to adopt neo-liberaleconomic policies in order to compete in the world market, to Strange (1996), who complains that theimpersonal forces of world markets are more powerful than the states, to Ohmae (1995), Reinecke (1998)and Thurow (1999) who argue that globalization implies the end of the nation state as sovereign actor ininternational relations (…). (Martinelli, 2005:254)
Todavia, tanto Martinelli como Mouzelis (2008) rejeitam quer as posturas que consideram a
78
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
globalização um movimento que fará cair o Estado-nação, como as posturas que o relativizam como
um processo que nada de novo trouxe na transformação da economia mundial. Esta relação local-
global forçará a transformações no papel do Estado-nação mas não provocará o seu fim. Nessa linha
Martinelli afirma que “a world society cannot be equated to a world system. The world system is
still a system of societies and cultures. And the world polity is still a system of nation states”
(2005:244).
A globalização, ao alterar o processo de modernidade, permitiu, por exemplo, o
reaparecimento do localismo/regionalismo, deu sinal de uma nova etapa que, também Giddens, a
par de Mouzelis, classificam de pós-modernidade a “(...) dissociação completa entre a técnica e os
universos culturais, que deixam então de estar ligados a uma acção instrumental” (Touaraine,
1992:177):
Concluamos: não há modernidade sem racionalização, mas também não há modernidade sem formação deum sujeito-no-mundo que se sinta responsável em relação a si próprio e à sociedade. Não confundamos amodernidade com a formação puramente capitalista de modernização. (Touraine, 1992:242)
Touraine propõe regressar à génese intelectual da modernidade, a busca pela realidade
objetiva, rejeitando a sociedade sem agentes (Touraine, 1992). Daí a tese da sua obra se centrar na
reintrodução do Sujeito dentro da sociedade moderna, mas sempre numa relação de
complementaridade e oposição ao de racionalização.
Featherstone vê a pós-modernidade como conceito vago sem significado próprio, uma
classificação que aponta para o período que segue o da modernidade mas que na essência é um
movimento da sua negação e rejeição: “Postmodernism is of interest to a wide range of artistic
practices and social science and humanities discipline because it directs our attention to changes
taking place in contemporary culture” (Featherstone, 1991:11).
Mudanças que ocorrem na esfera cultural, envolvendo modos de produção, consumo e
circulação de bens simbólicos, que, por sua vez, alteram as relações de poder e interdependências
entre grupos. Também mudanças nas práticas e experiências do quotidiano de diferentes grupos,
provocam alterações nas estruturas de orientação e identidade.
Este autor entende a cultura de consumo em três perspetivas: como uma extensão da
produção de consumo capitalista que permitiu uma acumulação vasta de material cultural na forma
de bens e lugares de consumo; esse mesmo consumo e acumulação criam novas estruturas de
distinção e vínculos sociais; e, os 'emotional pleasures of consumption', que surgem do consumo de
79
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
lugares e imaginários culturais e que geram excitação corporal e prazeres estéticos.
'Consumer culture' é um conceito que sublinha como a totalidade de bens e seus princípios
de estruturação são basilares para a compreensão da sociedade contemporânea:
(…) today's consumer culture represents neither a lapse of control nor the institution of more rigidcontrols, but rather their underpinnig by a flexible underlying generative structure which can be bothformal control and de-control and facilitate an easy change of gears between them. (Featherstone,1991:27)
Featherstone entende o pós-modernismo enquanto processo a longo prazo que tem
conduzido à produção de especialistas em produção e disseminação simbólica, o que demonstra a
necessidade de redirecionar a procura por uma sociologia pós-moderna para uma sociologia do pós-
modernismo! Entender o pós-modernismo como mera construção social, como manipulação
cultural por membros de uma classe média, ou ainda como jogada de supremacia por parte de
especialistas culturais é, para o autor, reduzir o pós-modernismo a uma ação estratégica e ignorar
todo seu potencial enquanto forma de orientação capaz produzir novas e distintas posições artísticas
e intelectuais.
Esta postura pós-modernista da negação da modernidade é precisamente o que Mouzelis
(2008) rejeita, pois entre o eurocentrismo e o anti-modernismo, a teoria cede a um limbo que a
paralisa. Para este autor, a teoria atual continua estrangulada tanto pela postura eurocêntrica da
modernidade/modernização como também pela posição ultra-realista dos países em
desenvolvimento face à concetualização eurocêntrica da modernidade: “in this respect I think the
way out of eurocentrism is neither the total rejection of evolutionary thinking nor the adoption of an
extreme form of cultural relativism (…)” (Mouzelis, 2008:149). Tal concetualização permitiria
reconhecer que a modernidade ocidental é apenas uma de várias, apesar da sua prevalência e
domínio, como vários teóricos que subscrevem a ideia de “múltiplas modernidades” (Eisenstadt,
2000) ou “variáveis da modernidade” (Schmidt, 2006) o defendem.
Giddens infere uma definição objetiva de pós-modernidade dependendo de quatro
dimensões na sua ordem, nomeadamente, a participação democrática multidimensional, a a
desmilitarização, a humanização da tecnologia e um sistema pós-escassez. O emergente conceito de
“governança” é um exemplo comum dessa participação democrática multidimensional que
caracteriza a pós-modernidade.
80
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
3. Da Governação à Governança
Um elemento vital para o desenvolvimento e consequente modernização de uma nação é a
injeção de capital nos mercados. O dinheiro, enquanto regra ou sistema de regras que media a troca,
é uma construção social que integra e divide uma sociedade e cujo valor simbólico é determinado
pelo quadro cultural a que pertence: “there is no single, uniform, generalized money; but multiple
monies: people earmark different currencies for many or perhaps all types of interactions, much as
they create distinctive languages for different social contexts” (Zelizer citado por Burns et al,
2003:154).
Cada um destes quadros tem as suas regras de acordo com a sua moldura social e estrutura
normativa que permite a sua validação, usualmente uma estrutura administrativa ou burocrática e
simultaneamente de orgânica social. O dinheiro depende da confiança e crença dos seus utilizadores
e obriga a uma regulação controlada e eficiente do seu valor. Para tal servem diferentes instituições
responsabilizadas com essa função. Uma outra fatia importante nesta regulação, a confiança,
depende sobretudo da perceção pública do dinheiro e como é gerida a economia; assim, uma crise
ou desconfiança pode gerar uma quebra o que por sua vez aumenta a desconfiança e assim
sucessivamente.
De forma a prevenir ou reduzir esta especulação ou incerteza, os políticos e agentes
económicos criam procedimentos institucionais que regulam o dinheiro. No entanto, em primeiro
lugar, os regulamentos são adicionados ou corrigidos depois dos erros detetados e crises sofridas e,
em segundo lugar, quanto maior a regulamentação mais se restringe e estrangula a economia,
agravando as desigualdades e fragmentando ainda mais a sociedade (por exemplo, aumentando a
diferença de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres, criando tensões sociais, forçando à
emigração, etc.).
O dinheiro e a forma como é regulado depende do sistema utilizado. Atualmente, o sistema
mais comum, e quase universal, é o capitalismo. Este é capaz de produzir bens e serviços, riqueza e
inovações em produtos e nos meios de produção, assim como consequências negativas indesejadas.
Não existem sistemas perfeitos. Igualmente, não existe um único tipo de capitalismo mas sim várias
formas de interpretar e agir dentro desse sistema, que depende da moldura cultural em que está
inserido. Isto também quer dizer que é extremamente complexo lidar com crises e contradições,
particularmente em dois tipos de situações: desequilíbrios sistémicos e problemas sociais. Estes
problemas agravam as crises e complicam os processos vitais da ordem capitalista, é dizer, o81
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
capitalismo exige ordem e previsibilidade mas cria um sistema que produz desordem e
imprevisibilidade (Burns et al, 2006).
De forma a contrariar estas tendências têm sido desenvolvidos mecanismos reguladores por
parte dos Estados e do setor privado, para contrariar e ultrapassar os seus fracassos e instabilidades.
Todavia, o seu sucesso tem sido muito limitado, em parte, por fatores como certos arranjos
transnacionais e oligopolistas em mercados múltiplos, regulação financeira, sobretudo focada nas
atividades produtivas, o capitalismo globalizado, etc.
Tanto pelos efeitos multiplicadores, como pelos perversos, o envolvimento do Estado é
considerado uma vantagem na condução inicial do processo turístico, tanto do ponto de vista do
planeamento a longo prazo, como no apoio aos investidores, em particular em áreas de maior risco
para o setor privado. No entanto, por exemplo, é comum a falta de legislação adequada no uso de
solo turístico e consequentes efeitos negativos que não são equacionados de antemão. Estas e outras
falhas levaram alguns países como a Noruega, a Dinamarca e o Japão a delegar o planeamento do
setor a órgãos não-governamentais, o que por sua vez pode levar a descoordenações entre a
estratégia nacional e os interesses e necessidades do setor. Igualmente, deixar tanto as comunidades
afetadas como o setor privado fora do planeamento conduz a outras problemáticas como o declínio
da atitude dos residentes ou a carências de estímulos para as empresas.
Em resposta a tais fracassos novas formas de organização coletiva têm conseguido que
novas políticas e formas de regulação continuem a ser aprovadas, como organizações não-
governamentais, chegando mesmo a substituir as instituições estatais.
Tais novas resoluções e reformas reguladoras têm sido possíveis, em parte, através do
envolvimento do setor privado, em particular, do envolvimento das principais empresas dos vários
setores. Isto é possível porque, por sua vez, estas forçam a mão dos Estados que veem as ONG e o
setor privado a apontar o caminho para novas e melhores regras de concorrência e qualidade para os
consumidores. A este processo multi-nivelado de negociação entre Estados, setor privado e
organizações não-governamentais (entre outras) denomina-se usualmente como Governança.
Etimologicamente, governança é o ato de dirigir ou governar, “(...) the value of the
governance perspective rests in its capacity to provide a framework of understanding changing
processes of governing” (Hall citado por Stoker, 1998:18). Em última instância “(...) the
overarching concept in governance in public policy terms is the relationship between state
intervention/public authority and societal autonomy or self-regulation” (Hall, 2011:15).82
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
Tal como acontece com o conceito de Desenvolvimento, a Governança pode ter diferentes
significados e definições, e são vários os autores que nos alertam para isso, entre eles, Kooiman
(1999) que destaca que o traço comum é a relevância dada à importância das regras e qualidade dos
sistemas, da cooperação como incremento de legitimidade, a necessidade de novos processos e
métodos. Este autor define a Governança (Sócio-Política) como “all those interactive arrangements
in which public as well as private sectors participate aimed at solving societal problems, or creating
opportunities, and attending to the institutions within which these governing activities take place”
(Kooiman, 1999:70).
A necessidade desta interação entre poderes públicos e setor privado com o intuito de
resolver problemas e criar oportunidades, nasceu da incapacidade dos Estados em resolvê-los de
forma satisfatória. Nasceu como resultado de diversos avanços nas ciências sociais (e não só) que
contribuíram para uma mudança na forma como as pessoas e o mundo funcionam.
Um avanço chave foi o abandono da dicotómica visão do mundo onde o Estado e o Mercado
trabalhavam em conjunto ou em sentido contrário para resolver estas questões. Um paradigma
assente em ideologias políticas e económicas que se mostraram falaciosas e que ignoravam o papel
das dinâmicas internas dentro das empresas, e a enorme variedade institucional de formas de
governo, providência, gestão pública e de recursos comuns que existiam (Ostrom, 2009).
Ao ignorar estas formas alternativas, os indivíduos estavam predestinados a uma
incapacidade de resolver problemas coletivamente, sem a ajuda e orientação dos Estados. Os
indivíduos, enquanto seres que se comportavam de forma racional, naturalmente seguiriam uma
lógica linear de ação e pensamento. Esta falácia ignorava os inúmeros fatores que levavam à
mudança nas prioridades, na previsibilidade do comportamento racional, bem como, que o
comportamento é afetado pelo contexto e pela confiança.
Ostrom (2009) afirma que os indivíduos têm uma estrutura motivacional muito mais
complexa e competente para resolver dilemas sociais do que antes se sugeria, e que o objetivo das
políticas públicas deveria pender para um papel de facilitador do desenvolvimento institucional
policêntrico. Como Ostrom, muitos outros autores contribuíram para o aprofundamento e
proliferação do conceito de governança e, com isso, para um gradual atenuar entre o setor público e
privado.
Esta tendência que coloca os cidadãos como responsáveis pela sua segurança e redefine o
papel dos Estados é fruto de mutações e reconfigurações nas chamadas formas avançadas de83
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
liberalismos (Rose, 2000), uma clara prova de como os atores sociais estão dependentes uns dos
outros em certas questões e que a governança é um conceito central, e uma prática, para a sua
resolução.
Kooiman (1999) considera existirem várias interpretações do conceito de governança, e que
todas “(...) may contribute in one way or another to an optimal use and development of governance
as theoretical and practical concept” (Kooiman, 1999:72). Ainda assim, defende a sua própria
perspetiva, a de Governança Político-Social. Esta tem o seu ênfase na dinâmica social das situações
e sua governança.
Para o autor, a eficiência da governação político-social depende da sua capacidade em
refletir a diversidade, a dinâmica e o carácter complexo dos desafios que enfrenta. Adaptação em
alternativa aos modelos políticos estáticos obsoletos e ineficientes em vigência. Uma nova forma de
controlo que enfatiza no desmantelamento da sociedade em comunidades auto-reguladas onde o
Estado pode coletar impostos e exercer algumas funções que atualmente já exerce: “(...) 'the'
government is not capable of deciding on its own the direction in which society is to develop.
Societal development is necessarily a result of interactive social forces” (Kooiman, 1999:89).
Existindo mais do que um significado de governança, Hall (2011) apresenta dois
entendimentos gerais que podem ser reconhecidos na literatura dedicada ao tema. Um destes refere-
se à forma como os Estados se adaptam às alterações económicas e políticas, isto é, refere-se à
capacidade de adaptação das instituições governativas, e é por vezes rotulado como “good
governance”. O segundo significado remete-nos para a questão do papel do Estado, é dizer, a
capacidade e/ou competência dos Estados em conduzir ou apenas coordenar os sistemas sócio-
económicos em jogo.
Num trabalho recente o autor constrói um quadro conceptual em torno do conceito de
governação e estabelece que existem quatro tipos de governação na literatura, classificados como
hierarquias, mercados, networks ou comunidades, tendo cada um destes as suas características,
posturas e modelos próprios. Estes tipos, alerta Hall, não sendo construções estáticas, permitem
“(...) the formulation and evaluation of explanatory claims, clarify conceptual claims and assist
comparative analysis and policy learning” (Hall, 2011:15).
Sendo a Governança “(...) a complex of public and/or private coordinating, steering and
regulatory processes established and conducted for social (or collective) purposes where powers are
distributed among multiple agents according to formal and informal rules” (Burns et al, 2010:1),84
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
então há que reconhecer a importância da sustentabilidade na rede interdependente das sociedades
do mundo de hoje. Um reconhecimento que tem de ser multi-nivelado.
Enquanto plataformas dotadas de regras e políticas complexas, os sistemas de governança
remetem para domínios de política e regulação na vida social que são moldados, desenhados,
substituídos e interpretados, onde atores políticos, grupos económicos, peritos, ONG, etc. se
relacionam. Dessa forma, exigem uma abordagem multi-nivelada da base para o topo que reconhece
a importância do conhecimento ao nível local e da concetualização e análise ao nível intermédio:
“(...) our approach to sustainability emphasizes micro and meso-level conceptions, bringing into to
conceptualization the actors involved in (or concerned about) production activities and their impacts
and the dynamic developments of sustainability” (De Man et al, 2006:2).
Com isto pretende-se sublinhar a importância de todas as partes neste processo, onde antes
de mais, o Estado deve apartar-se do controle operacional total e adotar uma postura sobretudo de
regulação, garantindo os interesses de todas as partes envolvidas (Pereira, 1999).
São vastos os casos em que, por exemplo, as ONG apontam baterias a grandes companhias
forçando a mudanças seja nos materiais usados, na produção dos seus produtos, na mensagem dos
mesmos, nas regras de segurança, etc. Negociações que ocorrem devido à ausência ou incapacidade
de Governos em agir, por serem questões que escapam ao seu raio de ação, por não serem capazes
de antecipar a necessidade de regulação, por incompetência ou ineficiência dos mesmos, etc.
O sucesso da governança depende da capacidade de gerar coligações e equilíbrios entre
interesses e neutralidade na liderança durante as negociações. De forma a reduzir desconfianças
mútuas e outras adversidades, é essencial descentralizar liderança e processos de organização “(...)
power, knowledge, values, and struggle are key factors in governance transformation. (...)
governance systems are characterized typically by internal and external contestation and conflict,
which drive the exercise of power and, under some conditions, result in transformation of
governance systems (...)” (Burns et al, 2010:25-26).
Mesmo em contexto de sistemas de governança, podem ocorrer casos de cedência a
intervenientes-chave com maior poder político ou económico durante as negociações, o que pode
pôr em causa todo o sistema, desequilibrando-o. A resposta a essa situação pode passar por uma
Governança Global: “(...) any purposeful activity intended to 'control' or influence someone else
that either occurs in the arena occupied by nations, or, occurring at other levels, projects influence
into that arena” (Finkelstein, 1995:368). Implica governar sem autoridade soberana e está assente85
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
nas relações que transcendem fronteiras e regulação nacional. Um tipo de governança que atingiu a
sua maturação com a globalização, já que esta alterou as dinâmicas de governança no mundo
tornando o modelo único de governança obsoleto, até em realidades locais e nacionais (Kahler,
2004).
Com a globalização, os sistemas de governança atingem um nível estatal internacional e
perdem controlo à medida que os próprios Estados também mudam e se adaptam. Isto sem esquecer
que os países em desenvolvimento ao entrar neste sistema estabelecido tardiamente, se viram
automaticamente dominados política a economicamente por quem anteriormente definiu e impôs as
regras (Mulley, 2008:4). Prova disso é que, mesmo numa situação de governança global, alguns
Estados mais poderosos conseguem atrasar ou bloquear instituições internacionais.
O poder da economia mundial e a sua influência transformaram a economia globalizada num
meta-poder onde Estados anseiam e temem por grandes multinacionais nos seus territórios, criando
um novo tipo de campo de batalha: “this deterritorial conception reverses the logic of the traditional
understanding of power, violence, and authority. (...) This meta-power is neither illegal nor
legitimate; it is translegal, but it changes the rules of the national and international systems” (Beck,
2001:83). Para Beck outra consequência da globalização é a perda do monopólio da criação de
regras (por parte dos Estados) para as empresas e agentes não-governamentais, privatizando e
transnacionalizando as leis.
Martinelli também concorda que o sistema mundial fracassou na adaptação ao crescente
processo de globalização devido à desarticulação e fragmentação das suas instituições que
demonstraram ser ineficientes. No entanto, também defende que é obrigatória uma integração entre
instituições globais e processos de regulação, desde uma plataforma de governança global
poliárquica, multi-nivelada e multipolar democrática. A poliarquia “it focuses on democratic
accountability, individual and community empowerment, multiple identities, contextual
universalism, and supranational institutions. It is a polyarchic mixed actor system in the sense that it
is a product of many actors pursuing different strategies, both competitive and cooperative”
(Martinelli, 2007:7).
Zadek (2006) também argumenta que uma governança global (cooperante) é a resposta para
o fracasso dos mecanismos governamentais tradicionais. Este sublinha que a resposta deve vir da
participação civil e do setor público, mas mais ainda do setor empresarial, já que este: “(...) has
legitimized interests in private gains, and so treats public good instrumentally to the end” (Zadek,86
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
2006:385). O envolvimento do setor empresarial depende de responsabilidades cooperativas
devidamente definidas de forma a que a responsabilização possa ser colocada sobre a mesa,
renegociada e realinhada.
Isto é particularmente pertinente na relação entre governança e o turismo. Em 2013, Duran
realizou um profundo e transversal levantamento sobre o conceito, princípios e estratégias
associadas à governação de destinos turísticos para a UNWTO. Neste, definiu-se de forma objetiva
governança como “(...) entails a guidance process that is institutionally and technically structured,
that is, based on principles, norms, procedures and practices to collectively decide about common
goals for coexistence and about how to coordinate and cooperate for the achievement of decided
objectives” (Duran, 2013:9).
A UNWTO (2008) definiu doze metas para o turismo sustentável: viabilidade económica,
prosperidade local, qualidade de emprego, equidade social, satisfação do visitante, controlo local,
bem-estar comunitário, riqueza cultural, integridade física, diversidade biológica, eficiência dos
recursos, e pureza ambiental. Em articulação com essas metas a UNWTO entende por Governança
Turística:
(...) the process of managing tourist destinations through synergistic and coordinated efforts bygovernments, at different levels and in different capacities; civil society living in the inbound tourismcommunities; and the business sector connected with the operation of the tourism system. (UNWTO,2008: 31-21)
4. O Turismo e a Globalização
Se a paz e o crescimento económico na Europa após o fim da IIGM permitiu que o turismo
emergisse como uma atividade aliciante, o fim da guerra fria permitiu que a Europa, disponível para
“consumo turístico” aumentasse e, também por esse motivo, o turismo continuou na liderança das
principais atividades económicas no mercado mundial. Mundial, e não apenas Europeu.
Com o fim da guerra fria, também inúmeras antigas colónias das potências europeias por
todo o globo, tornaram-se países soberanos e independentes. À medida que o fim do século XX se
aproximava, descontinuaram as suas posturas marcadamente pró-socialistas ou comunistas, e
abriram as suas portas ao mercado mundial passando a haver maior diversificação de destinos
turísticos mundiais.
Uma atividade que beneficiou particularmente da globalização foi, sem dúvida, o turismo,
uma vez que todas estas mudanças anteriormente mencionadas – tecnológicas, políticas,
económicas e culturais – permitiram a sua expansão a um ritmo extremamente acelerado. Aliás,
87
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
para autores como Shaw e Williams (2002), o turismo pode até ser entendido como o melhor
exemplo do processo de globalização.
A tecnologia permitiu uma maior “aproximação” entre os turistas e os destinos turísticos, a
abertura dos mercados facilitou o investimento na edificação de infraestruturas para transportar e
alojar os mesmos turistas, e as instituições e organismos de carácter mundial promoveram e
incentivaram os Estados a adotarem o turismo como estratégia para o desenvolvimento, em
particular nos países em vias de desenvolvimento.
O turismo globalizado permitiu que povos e culturas distantes interagissem de forma direta e
frequente ao nível local (Cochrane e Pain, 2000). Isto significa um intensificar de relações sociais a
par de económicas. Uma intensificação que pode resultar em mudanças e transformações tanto
positivas quanto negativas, como já se mencionou anteriormente.
Já com um pé bem assente no século XXI, o turismo à escala global não dá sinal de recessão
ou de estagnação. De acordo com a Wolrd Tourism & Travel Council (WTTC), no ano de 2013 o
turismo foi responsável por cerca de 9,5% do PIB Mundial, isto contabilizando o seu impacto ao
nível direto, indireto e induzido, rondando os 6990 mil milhões de dólares, havendo a expetativa de
crescer 0,1% para o próximo ano. Esta atividade emprega atualmente, de forma direta, quase 101
milhões de pessoas, cerca de 3,4% do emprego mundial, sendo que, se forem contabilizados os
empregos indiretos, o valor atinge os 265 milhões de empregos (8,9%). Esta organização estima que
nos próximos 10 anos o turismo empregue ainda mais 80 milhões de pessoas.
Daí que as multinacionais especializadas na atividade turística sejam desejadas por parte dos
Estados, em particular nos países em desenvolvimento. Na arena desta afamada alavanca
económica, as possibilidades de investimento e enriquecimento por parte destes grupos é alargada
com as vantagens fiscais e económicas que os vários Estados põem à disposição para a angariação
destes investidores.
Mas os números astronómicos não se ficam por aqui. No relatório anual de 2013 da OMT da
ONU, o turismo internacional representou, em 2013, 6% das exportações mundiais ou 1.3 triliões de
dólares. Ademais, revelou que o número de turistas internacionais (arrivals) atingiu 1083 milhões.
Dados incríveis já que mais do que duplicam o número de 1995, e quase quadruplicam os de 1980
(277 milhões)! Aliás, a tendência mundial de rápido crescimento teve apenas alguns solavancos
aquando da recessão de 2000-2001, e da crise internacional de 2007-2008 (sendo que apenas em
2009 se sentiu esse impacto de forma clara).88
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
Em termos absolutos, cerca de 51,8% destes turistas procuram a Europa, que continua a
crescer sem sinais de baixar o ritmo. A segunda região mais visitada é a Ásia e o Pacífico (22,8%),
logo seguidas pelas Américas (15,5%), e depois, África (5%) e o Médio Oriente (4,7%); no caso
africano os turistas rondam apenas os 56 milhões, ainda assim, um novo recordo para a região. Em
termos globais, este organismo estima que se atinja a cifra de 1400 milhões de turistas
internacionais em 2020 e 1800 milhões em 203058!
Em simultâneo, a globalização também trouxe a nu a diferença dos dividendos retirados por
países mais desenvolvidos e em vias de desenvolvimento. São os países mais desenvolvidos os que
maiores dividendos retiram por turista e isso, em parte, deve-se a existência de infraestruturas de
base que esses países possuem, assim como pelo facto de serem elevados os números de empresas e
serviços prestados por nacionais desses mesmos países.
Economic impacts from tourism typically report the amount of new income being received in adestination area, and then use a multiplier to account for the additional spending that result afterwards.There is a danger however, of overstating the foreign exchange earnings of tourism when leakage is nottaken into consideration. Leakage refers to the amount of money that leaves an economy to import goodsand services needed for tourism development. Vaugeois (2000:8)
As fugas (leakages) das divisas do turismo nos países em desenvolvimento podem atingir
percentagens elevadas e pôr em causa o sucesso do turismo a longo prazo. As fugas correm quase
sempre no sentido dos países mais desenvolvidos de onde saem a maioria dos turistas. Mill e
Morrison (1999) apontaram para fugas de seis tipos: os custos dos bens e serviços comprados para
satisfazer os visitantes; a importação de materiais e equipamentos para abastecer a infraestrutura
turística; os pagamentos a fatores externos de produção; as despesas de promoção do destino no
estrangeiro; determinação dos preços do transporte de visitantes; os destinos isentam as empresas
estrangeiras de impostos e taxas de propriedade para incentivar investimentos.
Já Nowak e Sahli (2010) consideram que estas fugas podem ter três formas: internas,
externas e invisíveis. A internas referem-se, por exemplo, aos serviços de promoção, marketing e
venda de férias que muitas vezes são importados, o que é agravado pela comum repatriação dos
lucros nos seus países de origem, pelo uso de emigrantes que também expatriam parte dos seus
rendimentos aos seus países de origem, e pela importação de produtos como comida, bebida,
veículos, materiais, etc.
As fugas externas são referentes a perdas fora do espaço económico do país recetor, e estão
58 Relatório da UNWTO (2013).89
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
relacionadas com fatores que escapam às contabilidades dos países recetores, nomeadamente, na
forma como os destinos são catalogados e vendidos nos países emissores, incapacitando operadores
locais de competirem com operadores dos países emissores.
As fugas invisíveis são as perdas de dividendos que ocorrem na própria economia do país
recetor mas que não são consideradas como pertencentes ao setor turístico.
They may be the most difficult to assess, but they are nonetheless very real. These costs can, for example,be linked to damage caused to the environment or natural and cultural sites used by tourism, illicit capitalflights abroad, deterioration and congestion in public infrastructure, etc. All these factors have an impact –in the short or long term – on the viability of the tourism industry. (Nowak e Shali, 2010:11)
O cálculo real do valor destas fugas é de particular dificuldade, já que muitos destes países
estão sob pressão para obter divisas rapidamente, de forma a cobrir os custos do desenvolvimento
da infraestrutura implementada, e muitos não dispõem de materiais ou recursos humanos adequados
para se auto-estabelecerem turisticamente (Vaugeois, 2000).
Para além destas fugas, outras situações podem afetar negativamente os espaços recetores,
como já mencionámos: os danos no ecossistema, deterioração da paisagem, aumento da poluição,
entre muitos outros impactos negativos, tal como a existência do perigo destes países se tornarem
dependentes do turismo. Nessa situação de dependência, a mínima flutuação da procura ou crise nos
países emissores, pode levar a pesadas consequências em toda a economia nacional dos países
recetores.
All these risks highlight the need for tourism to be designed and planned to be sustainable. In order tobenefit from the potential benefits offered by this activity, all the risks it may carry must be taken intoaccount. Tourism development can – and must – take place in compliance with the norms of sustainabledevelopment, which foster benefits by reducing risks. (Nowak e Shali, 2010:12)
Os países em desenvolvimento estão profundamente dependentes do investimento externo
em infraestruturas, assim como dependem da capacidade e conhecimento de técnicos e especialistas
estrangeiros para garantir um serviço adequado e exigido pelos turistas internacionais. Ambas as
dependências aprofundam o desvio de dividendos dos seus países para os países mais desenvolvidos
de onde oriunda a maioria dos turistas e dos provedores de serviços diretos e indiretos associados ao
turismo internacional (Mowforth e Munt, 2003).
Muitos países em vias de desenvolvimento procuram potenciar o turismo nos seus territórios
de forma a atingir um rápido crescimento económico e desenvolvimento estrutural. Isto apenas tem
sido possível graças a programas do FMI como o Programa de Ajustamento Estrutural que faculta
ajuda financeira.
90
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
Esta ajuda não é facultada sem exigências. Entre elas, a integração destes países na
economia global, a liberalização da economia e do setor financeiro, a aposta nos serviços, e forte
investimento na construção de infraestruturas, como estradas, aeroportos, etc. Por seu turno, a
liberalização da economia implica também que os governos destes países facilitem o investimento
externo através, por exemplo, da redução ou abolição de impostos aduaneiros, sobre património e
sobre os lucros das empresas ligadas ao turismo por tempo determinado ou indeterminado.
Podemos afirmar que a globalização do turismo, potenciada e facilitada pelos vários motivos
até agora identificados, transforma atrativos locais num valor a ser explorado como produto numa
economia cada vez mais intensificada e inter-dependente. Praias, montes, monumentos e
comunidades são entendidos como produtos atrativos a serem consumidos globalmente em nome do
crescimento económico e desenvolvimento dos países em que se encontram.
O turismo é hoje uma multiplicidade de serviços que vão muito além da hospedagem em
pacotes massificados onde "tudo" está incluído no preço do bilhete. O turismo é um serviço que tem
variadas formas e que pode ocorrer nos mais diversos espaços. De uma praia em Cabo Verde à
estratosfera, o turismo encontra produtos que saciam todo o tipo de clientes, gostos e carteiras. O
turismo encontra nos lugares mais remotos e inacessíveis do globo uma oportunidade de negócio e
dentro de algumas não será inconcebível especular passeios a outros pontos do sistema solar.
Com os pés bem assentes na terra, importa considerar o que o turismo pode e até deve
contribuir para uma sociedade mais justa e equitativa. Esse desejo, bem alicerçado nos Objetivos do
Milénio das Nações Unidas, ganhou a forma de várias propostas de turismo alternativo que, a par
das novas posturas de desenvolvimento, procuram sustentabilidade ambiental, social e económica
para as comunidades envolvidas, entre elas, a própria sustentabilidade do delicado ecossistema
planetário.
Apesar da óbvia preponderância desta temática, os impactos da globalização no turismo e o
estudo do turismo enquanto processo globalizado não tem tido a devida atenção por parte dos
investigadores. Por esse motivo, Hjalager (2007) sugeriu a utilização do seu modelo de quatro fases
do turismo globalizado como ferramenta para uma melhor compreensão das transformações,
tendências e consequências deste a uma escala ampla, escapando aos estudos de caso que acabam
por não tocar no turismo enquanto processo globalizado. Este infere que:
Globalization has still not been discussed to any great extent in tourism research, and the literature tendsto focus on selected manifestations only. Therefore, there is a real need for further investigation andimproved empirical documentation. In particular, there is a lack of a genuine and more detailed insight
91
III – Da Modernização ao Turismo Globalizado
into the changed composition of value chains, which are relocating economic assets, employment, andearnings in the industry across national and regional borders, as described in stage three of the model.(Hjalager, 2007:452)
92
IV – Metodologia de Investigação
IV – Metodologia de Investigação
Quando, no século XIX, as raízes da Sociologia cresceram com o contributo de autores
como Comte, Tocqueville, Marx, Weber, Durkheim, etc., estas retiravam os seus 'nutrientes' do
estudo da emergente sociedade industrial fortemente influenciada pela epistemologia das ciências
naturais, onde a matemática era a linguagem 'científica'. Coube a estes autores demonstrar, ainda
que uns mais do que outros, que um novo tipo de linguagem era necessária para compreender os
fenómenos sociais que rapidamente mudavam nas sociedades ocidentais. A Sociologia cresce num
século onde apenas o replicável, calculável e generalizável era de facto Ciência, pelo que os
graduais contributos dos primeiros 'sociólogos' lentamente cambiaram este paradigma e deram à
investigação empírica espaço para o seu desenvolvimento.
Grande parte das publicações sociológicas dos primeiros tempos foram produto de investigaçãobibliográfica e consistiram em críticas ou sínteses de obras anteriores. Pelo contrário, o tipo deinvestigação mais frequente, ultimamente, em Sociologia, é predominantemente empírico e reflecte amencionada inversão de ênfase na preparação dos sociólogos. (Greenwood, 1963:314)
Uma investigação sociológica obriga a um aprofundamento científico, o que desde logo
afasta o senso comum quotidiano e superficial que outros poderão procurar usar como explicação
para um qualquer facto ou fenómeno social. No entanto, isto não significa que alguém sem treino
em sociologia não faça as mesmas questões que um sociólogo e que, portanto, as procure responder
com os argumentos de que dispõe, ainda que muitas vezes profundamente condicionados pelas suas
crenças, valores, ou simples informação insuficiente. A diferença reside no método científico de
investigação. O sociólogo tem como ferramenta uma metodologia que legitima as suas conclusões,
que tantas vezes são díspares do senso comum. É através do seu método, e posteriores conclusões,
que o sociólogo interpreta o significado desses factos à luz do conhecimento teórico adquirido
anteriormente pelos seus pares. Caso este não se adeque ou de alguma forma seja incapaz de
explicar ou relacionar os factos, o investigador procura produzir nova teoria ou corrigir a existente,
permitindo assim um avanço sistemático do conhecimento científico em Sociologia.
Este avanço encontra-se dependente, muitas vezes, do questionamento sociológico, isto é, do
processo pelo qual o investigador coloca questões que procura responder – o primeiro passo da
metodologia sociológica. Estas podem ser do tipo factual, quando se questiona o como ocorreu, por
exemplo, 'Como foi o processo de turistificação na Boa Vista?'; podem ainda ser do tipo
93
IV – Metodologia de Investigação
comparativo, quando procuramos confrontar com outros casos conhecidos, (ex.:) 'Este processo é
diferente do das ilhas Canárias?; o de desenvolvimento, por sua vez, pretende compreender os
processos de mudança, 'Quais os padrões do turismo na Boa Vista?'; finalmente, as questões de tipo
teóricas, que pretendem interpretar os factos, como 'Porque esta ilha passou de emissora de
migrantes para recetora? Que fatores explicam essa transição?'.
Formulada a questão, inicia-se o processo de investigação que segue vários passos, desde
logo a definição do problema e posterior revisão bibliográfica sobre o mesmo. Esta revisão
permitirá conhecer o estado do conhecimento sobre o tema e quais as conclusões propostas por
outros investigadores, caso existam. Com este conhecimento adquirido, o investigador formula as
suas hipóteses e elabora um plano de investigação que procura precisamente testar essas hipóteses.
É neste plano que devem ficar definidos os métodos concretos de recolha de dados, sobre o qual
trataremos nos pontos seguintes.
Complementando este processo de investigação, resta ainda a realização da investigação e
posterior interpretação dos resultados, que ficarão registados num relatório final e disponíveis para
discussão dentro da comunidade científica. Naturalmente que esta fórmula diz respeito a uma
sequência simplificada do que realmente ocorre em investigação. A realidade pode obrigar a
alterações ou adaptações a esta descrição geral do método de investigação: “Seguir esquemas fixos
pode ser excessivamente restritivo e muitas das investigações sociológicas mais famosas não se
ajustariam de todo à sequência acabada de mencionar, apesar de alguns passos poderem estar
presentes” (Giddens, 2010:646).
Para Greenwood, nas obras de referência da Sociologia Clássica, e mesmo contemporânea,
as investigações assumiram, grosso modo, um carácter bibliográfico onde, retirando dados já
publicados (e portanto, em certa medida, desatualizados), eram apresentados sob a forma de novas
sínteses organizadas e confrontadas. Um método que permitiu, e permite, abordar vastas
quantidades de informação, ainda que por vezes a informação disponível tenha uma importância
tangencial ou relativa face à nova síntese apresentada.
Este método mostrou-se incapaz de cobrir todas as vertentes desejadas e um novo método, o
empírico, onde para se obter conclusões são elaboradas análises com base em informações
recolhidas pela observação direta, e seu subsequente registo sistematizado, ganhava terreno. Como
reflete Berg: “Since the 1980s, the social sciences have developed a much more encompassing
orientation toward research and have embraced qualitative techniques and texts in general research94
IV – Metodologia de Investigação
courses” (Berg, 2000:XIII).
Greenwood reconhecia que a Sociologia havia iniciado uma terceira via, é dizer, uma nova
forma de realizar investigações sem recorrer apenas aos métodos clássicos, que denomina de
Experimental e de Medida. O método Experimental, ou experimentação, tem como características
principais o facto de requerer, pelo menos, dois grupos ou conjuntos de unidade onde ocorra uma
variável, onde se procuraram identificar essas consequências diferenciais reconhecidas. Bem como,
procura-se verificar se existem outros fatores que possam condicionar a variável identificada. Aqui,
as experiências podem ainda ser do tipo projetado (onde o investigador chega ao contexto antes da
variável), ou ex post facto (investigador chega após a mesma).
Já o método de Medida exige a observação, por meio de perguntas diretas e/ou indiretas
sistematizadas, de populações relativamente vastas, de modo a obter respostas que possam ser
manejadas mediante uma análise quantitativa. Como método nativo das ciências sociais59, emerge
durante os primeiros estudos de caráter sociológico como resposta à necessidade de medir o bem-
estar social na Inglaterra do século XIX. Este método é aplicado em populações amplas e
geograficamente dispersas, a uma escala significativa, sendo um estudo mensurativo quantitativo.
Estas medições, baseadas na recolha de dados através da realização de entrevistas ou
questionários, são realizadas no campo, onde o investigador tem de se deslocar para obter as
respostas que procura. Por fim, como última característica deste método, os dados são alvo de uma
categorização, e apresentados quantitativamente sob a forma de quadros estatísticos60.
O referido tipo de método que Greenwood aponta como “novo e promissor”, o empírico, é
denominado de Estudo de Caso. Este consiste numa abordagem intensiva de uma amostra particular
(objeto), que possa ser apresentada como detentora de características específicas (fenómeno social)
que, uma vez compreendidas, procuram responder às questões sobre o fenómeno na sua totalidade.
Este método tem como características principais, como vimos, a sua intensidade, que ultrapassa os
métodos apresentados anteriormente em termos de profundidade e amplitude de análise.
Permite uma investigação que explora várias ramificações de uma determinada conjuntura,
desde a sua origem até à condição atual, pode ter como objeto de estudo tanto um só indivíduo,
como uma comunidade, instituição, etc., permitindo ainda maior multiplicidade de aspetos de
59 Visto que o Experimental é oriundo das ciências naturais.60 “A maioria das investigações mensurativas consiste em combinações descritivo-explicativas. O investigador leva a
cabo uma medição, tanto a fim de apreender a existência de uma pressuposta uniformidade social, como paraconfirmar e explicar uma uniformidade social já apreendida” (Greenwood, 1963:328).
95
IV – Metodologia de Investigação
inquirição, apenas disponíveis ao investigador que, no campo, detém a liberdade de orientação do
seu estudo de acordo com as informações que vai recolhendo.
A utilização simultânea dos numerosos e variados dados procedentes do estudo de casos aumenta asexigências postas ao investigador no que diz respeito à sua capacidade de integração, quando ainvestigação incide sobre a análise dos dados. Por este motivo se considera o estudo de casos como umestudo qualitativo. (Greenwood, 1963:334)
O objetivo deste método de Estudo de Caso é compreender globalmente os fenómenos tendo
como referência o caso específico analisado. Como tal, o conhecimento aprofundado do contexto do
objeto exige mais do investigador do que os métodos anteriores, como por exemplo a permanência
no terreno. Um exemplo deste tipo de investigação é o trabalho de William F. Whyte “Street Corner
Society” (1993 [1943]), que durante três anos e meio habitou no bairro que estudava, aprendendo
italiano e envolvendo-se ativamente na comunidade:
(...) widely recognized as a masterwork of social science research (...) [he] knew what he was talkingabout, he had observed the social organization he analyzed in minute detail over a long time, and hadlooked not only at the interactions of a few "corner" boys, but also at the operation of much largerorganizations in politics and crime, which impinged on the corner boys' lives. (Becker, 1996:69)
Os métodos sugeridos não tentam representar em si plataformas de dispersão ideológica
entre os sociólogos. O método Experimental, apesar da sua dependência (por exemplo) de
indivíduos dispostos a cooperar na experiência e da dificuldade em reproduzir os estímulos que
ocorrem naturalmente num laboratório, é superior aos demais na sua capacidade de determinar a
relação causal entre uma variável independente e uma variável dependente pela experimentação, e
assim, se um investigador procura comprovar uma hipótese causal, esta é sem dúvida a melhor
opção.
No método de Medida (Quantitativo ou Extensivo), a extensão da análise é muito superior
aos restantes métodos, podendo chegar a vários milhares de indivíduos, ou até grande parte da
população, enquanto a qualitativa, executa uma abordagem, sobretudo, de estudo de caso. A análise
extensiva apenas expõe o investigador ao objeto na medida do seu interesse particular, protegendo-o
do acesso a informações inúteis e desnecessárias, algo que o investigador de estudo de caso não
pode beneficiar dada a sua imersão no terreno.
Por outro lado, a sua extensão reduz a profundidade, e ocorre que os questionários, ou
entrevistas, estão munidos de perguntas que apenas procuram respostas diretas e quantitativamente
codificáveis, perdendo assim informações que poderiam apresentar-se vitais na investigação
(inclusivamente detetar fatores que condicionam as respostas obtidas). Esta questão da
96
IV – Metodologia de Investigação
profundidade não se pode colocar no método qualitativo pois as questões intensivas são abertas, de
natureza exploratória, onde a aproximação e o contacto direto com os informantes é basilar, e a sua
profundidade é, por natureza, maior.
Finalmente, no método de Estudo de Caso, a minúcia que a prolongada e profunda
exposição do investigador ao objeto de estudo permite, abre portas a um conhecimento e
compreensão do fenómeno enquanto totalidade, reconhecendo e até participando das dinâmicas
sociais do fenómeno. No entanto, a dependência da integração do investigador no terreno para a
obtenção de informação pode ser considerada um aspeto negativo, pois pode colocar em cheque
todo o trabalho desenvolvido e não produzir resultados.
Adicionalmente, por mais aprofundados que demonstrem ser os estudos de caso, isso pode
não significar necessariamente uma produção de conhecimento que sirva de base para uma
generalização. No entanto, o investigador necessita de uma competência elevada para cumprir os
seus objetivos, ao passo que, na análise quantitativa, os entrevistadores não necessitam de tanta
especialização. Os resultados extensivos são estatísticos e sintetizantes, 'facilmente' replicáveis, e
envolvem uma pesquisa de tipo descritiva ou causal, e não exploratória e de difícil replicação como
as intensivas (conotadas ainda com um tipo de análise interpretativa/subjetiva).
Como fruto de uma intensa reformulação no seu método, a Sociologia emerge atualmente
como resultado dessa reconfiguração. Onde Greenwood via o estudo empírico resumido a Estudos
de Caso, com consideráveis fragilidades e limitações, hoje existem uma enorme variedade de
abordagens intensivas ao dispor dos investigadores.
Antes do fortalecimento do paradigma qualitativo, o argumento essencial era que uma
explicação de um ato só poderia ser explicado pela lógica da diferença entre grupos com traços
diversos (Becker, 1996), daí a preponderância metodológica quantitativa. Os dados estatísticos
mantiveram o seu valor, em particular, após a IIGM, com o desenvolvimento da teoria da
amostragem (Clogg, 1992). A crescente complexidade dos dados estatísticos tem permitido à
Sociologia uma extensão e amplitude de análise sem precedentes, como aliás o European Social
Survey é exemplo.
Os investigadores do método qualitativo, ao realizarem uma análise intensiva dos dados, em
amplitude e profundidade, tratam as unidades investigadas como totalidades, o que permite abrir a
realidade social para melhor apreendê-la e compreendê-la (Martins, 2004:292). Ao passo que a
pesquisa quantitativa se refere à medida das coisas, a qualitativa refere-se à natureza das coisas. A97
IV – Metodologia de Investigação
qualidade refere-se ao quê, como, porquê e quando de uma essência e seu meio, ou seja, atinge os
significados, definições, características, metáforas, símbolos, e descrição de coisas (Berg, 2000).
Como observámos, em cada um dos métodos são consideradas qualidades e defeitos,
dependendo do objetivo da investigação, do objeto de estudo, etc. Caberá ao investigador selecionar
o, ou os, método(s) adequado(s), podendo, pela sua complementaridade, ser aplicados em
simultâneo ou sucessivamente. Hoje reconhece-se que tanto na pesquisa qualitativa como na
quantitativa os conceitos têm uma função mediadora entre a teoria e a observação. Ambos são
capazes de organizar, categorizar e viabilizar a observação.
Como vemos, por comparação clássica, a pesquisa qualitativa tende a ser vista como relativa
a palavras, ao passo que a quantitativa é relativa a números. No entanto, as suas características, em
oposição às da quantitativa, são mais complexas. Importa referir a sua relação indutiva entre teoria e
pesquisa, o seu foco na compreensão do mundo social através da análise do mesmo e dos seus
participantes, e claro, o reconhecimento de que as componentes sociais são resultado das relações
entre indivíduos (construtivismo). Todavia, existem outras formas de abordar esta questão. Por
exemplo, para Denzin e Lincoln (2000), as diferenças da pesquisa qualitativa relativamente à
quantitativa passam pelo uso do positivismo e pós-positivismo, pela aceitação das sensibilidades
pós-modernas, pelo reconhecimento da perspetiva do ponto de vista dos indivíduos, pela abordagem
de problemáticas quotidianas, e, finalmente, pela realização de descrições ricas e minuciosas
(2000).
Importa, então, reconhecer que ambos os paradigmas possuem aspetos positivos e negativos,
e que o tipo de método a aplicar depende sobretudo do objetivo e objeto que o investigador define.
Devemos ainda inferir que não existe a necessidade de optar por um método ou o outro61, pois
podemos, inclusivamente, cruzar ambos os métodos. Denominada de 'Mixed Methods', ou Método
Misto, esta abordagem procura colmatar as falhas mútuas dos paradigmas referidos e, de forma
conclusiva, atingir todos os objetivos da investigação.
A conjunção destes métodos exige uma aplicação de diferentes estratégias de pesquisa,
podendo dar resposta a um desenho de investigação usualmente mais complexo e de maior
longevidade (em termos de tempo de investigação), e podendo ainda ser executado de forma
consecutiva por vários grupos de investigadores que podem ou não aplicar métodos diferentes
(Brannen, 2006).
61 Aliás, Silverman (1997) afirma que estes métodos não são mutuamente auto-excluíveis.98
IV – Metodologia de Investigação
Todavia, tem ocorrido que, muitas vezes, os investigadores, apesar de aplicarem os dois
métodos, nem sempre os cruzam (Bryman, 2007). Isto ocorre tanto porque esse não era o seu
objetivo, como porque simplesmente os investigadores não retiram proveito da informação que
recolheram, mas também devido ao facto de: “mixed methods researchers sometimes find that they
end up writing up their quantitative and qualitative findings for different audiences. Either the
nature of the topic attracts certain audiences or impressions of audiences’ expectations sometimes
means that either one set of data is highlighted or used more or less exclusively” (Bryman,
2007:12).
Dentro dos Métodos Cruzados podemos considerar diferentes abordagens, como por
exemplo 'Sequencing', 'Hybrid' (Fielding e Schreier, 2001), ou, por fim, a Triangulação.
'Sequencing' resume-se à aplicação sequencial do método quantitativo e qualitativo numa mesma
investigação. Os métodos nunca são sobrepostos no decorrer da investigação. Já no método Híbrido,
tanto o método qualitativo como quantitativo, “(...) may be so closely 'packed' as to be practically
indistinguishable-systematic content analysis which combines the (qualitative) coding of texts with
the (quantitative) calculation of coefficients of interrater agreement would be a case in point“
(Fielding e Schreier, 2001:12).
Quanto à Triangulação, podemos defini-la como um método que procura comprovar
interpretações díspares do mesmo fenómeno, bem como verificar a veracidade de uma justaposição
atribuída: “triangulation then can serve as a tool to verify the validity of connections between the
indicator and the term by means of other indicators. This subsequently serves a final verification of
the validity of the analysis and the validity of the conclusion on the basis of collected data”
(Konecki, 2008:15).
Em suma, Triangulação é, para Denzin (1978), um método que poderá ser subdividido em
quatro categorias: Dados62, Investigador63, Teoria64 e Metodologia65. Erradamente, poder-se-á inferir
que na Triangulação são os diferentes tipos/origens de informação que suportam uma mesma
conclusão, corroborando-se mutuamente numa aproximação da 'realidade'. Diferentes métodos
cruzados eliminam mutuamente as suas lacunas, e a informação recolhida detém uma 'autoridade'
62 Os dados que derivam da triangulação têm 3 subtipos: tempo, espaço e pessoa (esta com 3 níveis agregado,interativo e coletividade).
63 Utilização de múltiplos investigadores no lugar de apenas um.64 Aplicação de múltiplas perspetivas na abordagem ao mesmo objeto.65 Pode compreender uma triangulação inter-método ou entre-método.
99
IV – Metodologia de Investigação
acrescida.
No entanto, “what is involved in triangulation is not the combination of different kinds of
data per se, but rather an attempt to relate different sorts of data in such a way as to counteract
various possible threats to the validity of (their) analysis“ (Hammersley e Atkinson, 1983:199). O
objetivo é, então, permitir aos investigadores uma perspetiva válida, mas também, mais crítica em
relação à informação recolhida, escapando aos alçapões facilitistas das conclusões causais66,
baseadas em informações unilaterais e erróneas:
Theoretical triangulation does not necessarily reduce bias, nor does methodological triangulationnecessarily increase validity. Competing theories are generally the product of different traditions, so whencombined they may offer a fuller picture but not a more "objective" one. Likewise, different methodsdraw on different (and often competing) epistemologies and while combining them can add range anddepth it does not necessarily add accuracy. In this approach, when we combine theories and methods wedo so to add breadth or depth to our analysis, not to pursue an "objective" truth. (Fielding e Schreier,2001:19)
1. O Método Intensivo: a opção ideal?
A questão central é agora definir qual o método que melhor se coaduna com os nossos
objetivos. Para tal, é vital considerar que o modo de analisar, abordar, e lidar de uma investigação
deve refletir as formas da vida social que procura estudar (Atkinson, 2005). É comum, ao desenhar
um projeto de investigação, debater-se qual a abordagem mais competente a utilizar para se atingir
o objetivo do mesmo. Método Intensivo ou Extensivo? Como escolher? Será que há a necessidade
de o fazer? Por que não optar pelo método da Experimentação? Bem, aqui a resposta parece ser
mais evidente, como de resto afirma Martins (2004):
(...) na sociologia, como nas ciências sociais em geral, diferentemente das ciências naturais, osfenômenos são complexos, não sendo fácil separar causas e motivações isoladas e exclusivas. Não podemser reproduzidos em laboratório e submetidos a controle. As reconstruções são sempre parciais,dependendo de documentos, observações, sensibilidades e perspectivas. (Martins, 2004:291-292)
Embora a questão de partida e as hipóteses que conduziram esta investigação estejam
descritas no ponto seguinte, é importante recordar que a mesma pretende abordar os impactos do
turismo num espaço-tempo específico e numa dada comunidade, e portanto seria razoável
considerar uma metodologia extensiva e recolher esses mesmos dados através de inquérito por
questionário cruzado com uma análise de dados sociais, económicos e demográficos disponíveis.
No entanto, é também do interesse do investigador abordar os discursos, ou seja, não apenas
66 “(...) we do argue that when we look at triangulation its value lies more in its effects on 'quality control' than in itsguarantee of 'validity'. A further benefit is that this approach promotes more complex research designs and that theseoblige researchers to be more clear about what it is they are setting out to study” (Fielding e Schreier, 2001:17).
100
IV – Metodologia de Investigação
as perceções dos inquiridos mas também, e sobretudo, os seus discursos relativamente aos impactos.
Ao considerar o discurso estamos também a contextualizar as suas respostas e a obter informações
adicionais à simples aplicação de questionários, como de resto o capítulo anterior demonstrou ser
prática usual dentro da sociologia do turismo, e mesmo de outras subdisciplinas. Isto indica, desde
já, que só a aplicação de entrevistas pode conseguir recolher as informações pretendidas e
enquadrar os seus discursos.
Considerámos como ideal para a recolha de tais dados a presença do investigador no terreno,
observando e interagindo com os vários grupos e subgrupos que existem na comunidade, analisando
e avaliando estas 'respostas' de apoio ou obstrução ao fenómeno do turismo e suas consequências.
Estamos então perante um estudo de caso que exige a aplicação de um método maioritariamente
imersivo e profundo, colocando o investigador no terreno, ou seja, estamos perante um modelo
intensivo, ou qualitativo. Apesar de já termos tocado nas questões diferenciadoras entre os modelos
intensivo e extensivo não devemos olvidar que dentro da metodologia qualitativa existem várias
propostas e portanto devemos considerá-las.
Esta variedade merece ser revisitada com frequência pela multiplicidade de propostas
alternativas que ainda deixam margem para redefinição. A capacidade de redefinição é importante
dadas as inúmeras variações, pois algumas posições metodológicas parecem defender estratégias de
pesquisa sem referência aos modos de organização social indígena que supostamente trabalham
(Atkinson, 2005).
De forma mais generalista, Strauss e Corbin dizem mesmo que a metodologia qualitativa
será todo o tipo de investigação que não atinge os seus objetivos através da utilização do meio de
quantificação, e pressupõe que a informação advenha de fontes (como entrevistas, observações,
documentos, registos, etc.), e de procedimentos que os investigadores possam interpretar e
organizar em resultados, que são escritos ou oralmente relatados (Strauss e Corbin67, 1998).
Gubrium e Holstein (1997), por exemplo, sugeriram quatro tradições na pesquisa qualitativa
(a naturalista, etnometodologia, emocionalismo, e pós-modernismo), mas, por outro lado, Silverman
(1997) afirma que qualquer definição da pesquisa qualitativa exige que se considere os diferentes
tipos de método de pesquisa que ela contempla (etnografia/observação participante, entrevista
qualitativa, Focus-groups, etc.).
67 Adeptos da denominada 'Grounded Theory', que defende que devem ser os resultados que produzem a teoria e não ateoria que influência os resultados.: “Analysis is the interplay between researchers and data.” (Strauss e Corbin,1998:13)
101
IV – Metodologia de Investigação
Embora a confiança ('reliability') e a validade sejam consideradas chave na pesquisa
qualitativa, alguns autores afirmam que a sua relevância é relativa, senão mesmo descartável.
Daremos exemplos destas duas perspetivas. Para Mason (1996) estas duas exigências, aplicadas nos
métodos extensivos, devem ser adaptadas para que possam ser aplicadas também nos métodos
intensivos. Para o autor, confiança, validade e generalização são diferentes tipos de medida, de
qualidade e rigor, que são apenas alcançadas de acordo com certos princípios e convenções
disciplinares (Mason, 1996).
Já LeCompte e Goetz (1982) sugerem diferentes classificações, nomeadamente, 'confiança
externa', 'confiança interna', 'validade externa', e 'validade interna'. A confiança externa refere-se à
sua replicabilidade, sendo impossível reproduzir um contexto social e as circunstâncias que o
compõem, pelo que, sugerem que o investigador que a procura adote um papel similar à
investigação original de modo a aproximar-se dessa replicabilidade. Já a confiança interna refere-se
ao modo como os investigadores encontram convergência nas suas interpretações da mesma
realidade.
Em termos de validade interna, isto é, coerência entre as observações do investigador e a
teoria que consideram para a abordar, os autores afirmam que a presença do investigador no terreno
permite um conhecimento suficientemente aprofundado para discernir a melhor forma de abordar
teoricamente o mesmo. Por fim, a validade externa, ou a generalidade que o caso investigado
permite, continuará a ser o calcanhar de Aquiles do método intensivo, e deve ser considerado caso a
caso.
Estas formas de avaliar a pesquisa qualitativa tendem a adaptar os critérios quantitativos aos
qualitativos pelo que, autores como Lincold e Guba (1985) e Guba e Lincoln (1994) sugerem dois
critérios alternativos: o da autenticidade68 e o da 'fidelidade'69. Então, podemos afirmar que a
plausibilidade e a credibilidade do investigador, e a relevância da investigação emergem como os
principais alvos para avaliar uma investigação qualitativa.
As principais preocupações dos investigadores qualitativos passam por procurar apresentar
de forma clara como as pessoas que estudam veem e interpretam o mundo à sua volta, ou seja, ver o
mundo pelos seus olhos. Todavia, existem inúmeras formas de o interpretar, mesmo para o 'nativo',
pelo que a metodologia qualitativa deve ser um reflexo dessa variabilidade: “the social world must
68 Com cinco critérios internos: justiça, autenticidade ontológica, autenticidade educativa, autenticidade catalisadora, eautenticidade tática.
69 Com quatro critérios internos: credibilidade, transmissibilidade, dependência e confirmação.102
IV – Metodologia de Investigação
be interpreted from the perspective of the people being studied, rather than as though those subjects
were incapable of their own reflections on the social world“ (Bryman, 2004:279).
No entanto, três perigos emergem: desde logo, a probabilidade do investigador perder a sua
objetividade e ser absorvido pelo terreno, "going native", e, em simultâneo, a ténue linha entre o
que o investigador deve ou não fazer para ser aceite e reconhecido no terreno. Por fim, o perigo do
investigador ver apenas a realidade de forma muito localizada dentro da comunidade que investiga,
deixando de detetar, em perspetiva, quais são as visões particulares e as visões gerais na mesma.
Existem várias formas de evitar estes perigos. Referimo-nos à descrição e ao ênfase no
processo, mas também à flexibilidade e à aplicação de uma estrutura limitada. Uma descrição
minuciosa e detalhada permite identificar e mapear o contexto onde os comportamentos analisados
foram detetados, ao passo que o foco no processo permite discernir como eventos e padrões se
desdobraram ao longo do tempo, sendo assim possível definir as suas causas e consequências na
comunidade (por exemplo).
A pesquisa qualitativa “(...) tends to be a strategy that tries not to delimit areas of inquiry too
much and to ask fairly general rather than specific research questions“ (Bryman, 2004:282). Este
tipo de flexibilidade permite ao investigador adaptar-se ao terreno que encontra, podendo assim
aplicar técnicas e procedimentos mais adequados e retirar resultados melhores, ao passo que uma
estrutura limitada permite abordar o terreno de forma mais restrita evitando perder o controlo da
investigação (ao procurar abordar tudo e todos, por exemplo).
Para Becker, na metodologia qualitativa, ao contrário da quantitativa, a questão coloca-se
não na causalidade, mas na descrição do sistema de relações: “(…) to show how things hang
together in a web of mutual influence or support or interdependence or what-have-you, to describe
the connections between the specifics the ethnographer knows by virtue of 'having been there'”
(Becker, 1996:56). Ao permanecerem no terreno, absorvendo continuamente novas informações,
podem adicionar variáveis e ideias novas aos seus modelos, reelaborando a melhor descrição
possível, ou seja, tem-se, potencialmente, uma aproximação mais fidedigna da realidade que
investiga.
A capacidade do investigador se adaptar às novas informações, e delas discernir quais as
úteis para a sua investigação, revela que existem certos atributos ou características necessárias para
aplicar este método com sucesso. Entre estas, apontaria uma capacidade de integração e análise que
depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva (Martins, 2004), bem como103
IV – Metodologia de Investigação
“(...) appropriateness, authenticity, credibility, intuitiveness, receptivity, reciprocity, and sensitivity”
(Strauss e Corbin,1998:6).
Uma das principais críticas de que o método qualitativo é alvo, é a representatividade, isto é,
em que medida pode ser representativo um estudo de caso para o conhecimento do fenómeno à
escala total. Esta indagação emerge, novamente, por influência da noção estatística da amostra, tão
vital no método quantitativo (e nas ciências naturais).
Esta necessidade de representatividade, causal e aleatória, é fruto da necessidade de
coeficientes quantificáveis que antecipem ou detetem variações, e não deve ser considerada na
metodologia qualitativa pois a questão reside na sua validade; esta está assente no seu rigor que
provém “(...) da solidez dos laços estabelecidos entre nossas interpretações teóricas e nossos dados
empíricos” (Laperrière citado por Martins, 2004:295).
Outra crítica comum prende-se com a validade dos dados, argumentando-se que o
investigador intensivo pode ser vítima da sua proximidade com o terreno e seus informantes, pondo
em causa a validade dos dados recolhidos, e subsequentes resultados. A questão da objetividade não
se prende tanto com as opções que o investigador tomou no decorrer do seu trabalho, mas antes se
os resultados que apresenta são replicáveis. A replicabilidade será a forma mais convincente de
proteger os seus resultados; todavia, replicabilidade não no senso de recriar (artificialmente) o
mesmo cenário, mas antes, consiste em deixar claro os processos que levaram às conclusões que se
advoga, para que outros investigadores, seguindo essas pistas, possam confirmar os seus resultados.
Simultaneamente, reconhecendo que o comportamento humano pode ser (grosso modo)
previsto, o investigador deve garantir que os seus resultados refletem uma generalização, uma
representatividade que permite antecipar as condições gerais necessárias para um efeito de causa-
consequência. Neste ponto sugiro o argumento de Becker ao recordar que todos os cientistas, de
forma implícita ou não, interpretam as ações/dados dos seus informantes. A questão será antes se
esse processo de interpretação é sistematizado ou não: “(...) we always describe how they interpret
the events they participate in, so the only question is not whether we should, but how accurately we
do it” (Becker, 1996:58).
Na metodologia intensiva, em particular nos estudos de caso de cariz etnográfico, a
utilização de técnicas sistematizadas é então vital para a sua validade, sobretudo porque corremos o
risco de fazer interpretações que podem invalidar os nossos resultados. Ao aproximar-se do seu
objeto, mergulhando no terreno, o investigador deve procurar entender as ações, razões e motivos104
IV – Metodologia de Investigação
que condicionam os atores sociais e não procurar atribuir significados que se baseiam nas suas
interpretações subjetivas.
A subjetividade das interpretações, a validade, por assim dizer, não é uma questão
epistemológica que se resume às ciências sociais, ou ao método intensivo. Mesmo no método
extensivo existe a necessidade do entrevistador ou investigador ser aceite pelo entrevistado ou
informante. Clifford Geertz (1978) é um dos muitos autores que recorda que os cientistas sociais
lidam constantemente com interpretações, e afirma que “por definição, somente um ‘nativo’ faz a
interpretação em primeira mão: é a sua cultura” (Geertz citado por Martins, 2004:295).
Uma terceira crítica, válida integralmente, é que os métodos intensivos exigem um grande
investimento de tempo e de pessoal qualificado, condições essenciais para estabelecer a confiança
necessária entre investigadores e investigados, de modo a obter os dados que procura. O que nem
sempre é viável, e logo, exequível.
Por fim, a quarta e última crítica remete para a problemática da interferência. Podemos
aferir, pela presença do investigador no terreno, que este está a interferir no seu objeto de estudo, e,
por consequência, a minar os seus dados tornando-os inúteis. A neutralidade, como alicerce da
ciência, parece estar condenada. No entanto, poderíamos refutar questionando se a não presença do
'investigador' não afetaria também a realidade: “clearly, whenever a social scientist is present, the
situation is not just what it would have been without the social scientist. I suppose this applies even
when no one knows that the social scientist is a social scientist doing a study” (Becker, 1996:61).
Em outras palavras, a questão não se prende com a presença ou ausência do investigador no
terreno, mas antes, na sua capacidade de reconhecer e registar, de forma sistematizada, o seu papel,
e até influência, nas ações que observa. Sumariamente, e numa postura mais demarcada, “(...) no
trabalho de pesquisa sociológica, a neutralidade não existe e a objetividade é relativa,
diferentemente do que ocorre no positivismo – do qual, aliás, partem muitas das críticas feitas à
metodologia qualitativa” (Martins, 2004:292).
As técnicas qualitativas, pela compreensão das perceções dos 'outros' e da forma como 'eles'
estruturam e atribuem significado ao seu quotidiano, permitem aos investigadores interpretar como
grupos, comunidades, até indivíduos, se reconhecem e decifram a realidade. Permitem um acesso
aos seus 'conceitos': “concepts, then, are symbolic or abstract elements representing objects,
properties, or features of objects, processes, or phenomenon. (...) Concepts provide a means for
people to let others know what they are thinking, and allow information to be shared“ (Berg,105
IV – Metodologia de Investigação
2000:16).
(...) qualitative sociology is something more than a kind of method. It is a way of thinking about socialworld, the way of considering human being as an active part of the never ceasing process of societybecoming. (…) The variety [of approaches] is in fact a response to the multiplicity of processes, eventsand other elements of the phenomenon called society. (Marciniak, 2005:1)
Existem várias formas de abordar a investigação e o objeto dentro da metodologia intensiva,
na sua vertente de Estudo de Caso. Stake (1994) refere a existência de três tipos distintos de Estudos
de Caso: 'intrínseco', 'instrumental' e 'coletivo'. O primeiro é aplicado num contexto onde o objeto
de estudo detém um particularismo único, sendo esse particularismo que promove o interesse do
investigador. O segundo tipo é usado sobretudo quando o investigador deseja entender melhor
alguma questão ou problema teórico externo. Por fim, o estudo de caso coletivo ('collective')
envolve o estudo conjunto de vários casos de forma a melhor entender e talvez permitir uma
teorização a uma escala superior.
Os Estudos de Caso podem ainda ser diferenciados de outros modos: em termos de objetivo
(ou 'design'); os exploratórios (que procuram detetar a relevância dos dados recolhidos para uma
investigação aprofundada); os explanatórios (em estudos causais, onde a complexidade das
organizações ou comunidades estudadas é elevada, sendo que a sua relevância é já confirmada); e,
os estudos de caso descritivos (exige a existência de um quadro teórico fundado de onde o
investigador estabelece os passos que deve tomar). A pertinência dos Estudos de Caso é a sua
capacidade de abrir portas para novas abordagens, uma plataforma de onde novas ideias e hipóteses
podem surgir, sendo que a principal questão que podemos colocar é a objetividade dos seus
resultados, e por conseguinte, se os mesmos podem ser generalizados.
A etnografia é uma das técnicas qualitativas da metodologia intensiva, e tem sido conotada
como um método qualitativo atribuído, e, sobretudo, praticado por antropólogos (Malinowski, Boas,
Evans-Pritchard, etc.). É uma prática que, ao colocar o investigador no terreno, permite uma
aproximação e um conhecimento do seu objeto de estudo que pode ser valiosa. Nas últimas décadas
a Etnografia rasgou a bolha antropológica a que estava conotada e tem vindo a ser aplicada em
investigações qualitativas nas ciências educativas, de saúde, económicas, etc., e, claro, na
Sociologia.
Em suma, a metodologia adequada ao turismo deve-se preocupar não apenas com o
fenómeno em si mas com o seu significado individual ou coletivo para a vida das pessoas. Daí ser
determinante a escolha de uma metodologia intensiva. Nela, as representações que emergem das
106
IV – Metodologia de Investigação
perceções da realidade que rodeia os indivíduos são a chave para determinar o seu significado. Ou
seja, o significado tem uma função estruturante já que este tem um papel organizador nos seres
humanos.
Em se tratando do conhecimento do turismo, significa trabalhar com atores e sujeitos sociais inseridos noprocesso de produção e não apenas no produto transmitido sob forma de narração para aquele queapre(e)nde; este deve ser visto como aquele que, em suas relações sociais, é capaz de construir novosconhecimentos. É trabalhar com os sujeitos inseridos nas diversas esferas do social de forma que elesentendam, vivenciem e participem do processo de conhecimento. (Alves, 2011:612)
A metodologia não se esgota na escolha do método. Nesta investigação, o método intensivo
é acompanhado pela análise documental e pela observação participante. A análise documental
consiste na recolha e análise de conteúdo em documentos, sejam estes livros, fotografias, filmes,
endereços eletrónicos, entre outros. Sendo mesmo possível basear toda uma investigação apenas
nesta análise se o objeto de estudo forem os próprios documentos.
Os documentos analisados neste trabalho referem-se a relatórios oficiais do governo de
Cabo Verde, do Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde, do Banco de Cabo Verde, do World
Tourism & Travel Council, entre outras instituições oficiais. Pese embora que alguns dos dados
referentes ao ano de 2014 não estejam ainda disponíveis.
Fora dos indicadores estatísticos recorremos a algumas obras chave sobre a história da ilha
da Boa Vista de autores nacionais. Obras cujo acesso e conhecimento proveio de informantes no
terreno já que foram publicados apenas algumas centenas de exemplares em Cabo Verde.
Já a observação participante, ou trabalho de campo, envolve a inserção do investigador no
grupo observado. Esta pode ser do tipo participação-observação, quando o investigador faz parte do
grupo que pretende investigar, ou observação-participação, quando o investigador se integra ao
iniciar a investigação, como é exemplo o presente trabalho (Vargas, 2002).
Na verdade, esta investigação contou com uma observação participante integrada e
profunda, por um período de catorze meses, exigindo uma aproximação quotidiana e envolvimento
na comunidade estudada, já que, para além do objetivo da aplicação de entrevistas, pretendia-se
experienciar as vivências dos membros da comunidade boavistense em toda a extensão possível. A
partilha dessas vivências resultaram na aquisição de mais informações e reforçaram os laços entre o
investigador e os membros da comunidade, o que, por sua vez, permitiu a confiança e a intimidade
necessárias para uma aplicação de entrevistas que o investigador considerou fiáveis. Este ponto é da
maior importância se considerarmos que a ausência de confiança entre entrevistador e entrevistado
107
IV – Metodologia de Investigação
pode conduzir a dados e informações inconsistentes, inviáveis e erróneos.
Mergulhar na realidade quotidiana de forma intensiva permite tratar as unidades
investigadas como totalidades e possibilitar uma abertura da realidade social, apreendendo-a e
compreendendo-a melhor. A baliza de catorze meses teve como objetivo, exatamente, permitir uma
observação participante profunda, que cobriu tanto as épocas altas como baixas de turismo, mas
também, os momentos onde o movimento turístico é nulo ou irrelevante, de modo a identificar
potenciais diferenças nos comportamentos, discursos e expetativas dos intervenientes face ao
turismo. Esta metodologia intensiva contou ainda com o apoio de ferramentas como o diário de
campo, a aplicação de questionários, de entrevistas semi-dirigidas aos residentes das comunidades
locais, e claro, a utilização de outras ferramentas como máquina fotográfica, gravador digital, etc.
2. Análise de Conteúdo
Content analysis is a research method that uses a set of procedures to make valid inferences from text.These inferences are about the sender(s) of the message, the message itself, or the audience of themessage. (Weber, 1990:9)
Para além do método selecionado, importa estabelecer como tratar as informações e dados
recolhidos de forma a chegar a conclusões, após a aplicação de entrevistas ou de questionários no
terreno. A análise de conteúdo é uma ferramenta técnico-metodológica basilar nas investigações
empíricas das mais diversas ciências sociais e humanas, sendo utilizada tanto em questionários
como em entrevistas, mas também em mais tipos de observação. A análise de conteúdo pode ser
aplicada a diferentes tipos de comunicação, da oral à escrita, passando pela imagem e textos, e
pretende ser uma descrição objetiva, sistemática e quantitativamente representativa do que está
presente na comunicação a que se refere.
Para tal, certos critérios devem estar presentes de forma a garantir a sua validade. Esta
análise exige definições precisas de categorias que possam ser utilizadas por outros investigadores,
bem como a análise total do seu conteúdo relevante para posterior quantificação precisa e objetiva,
e por fim, devem produzir variáveis válidas que respondam ao que o investigador pretende medir. O
problema principal da análise de conteúdo tende a ser o processo de redução de dados em categorias
mais pequenas, unidades. Em parte, o cerne deste problema reside na consistência e fiabilidade das
classificações com vista a garantir a sua validade. A fiabilidade deve reger-se por uma estabilidade,
reprodutividade e precisão; por outras palavras, deve ser imutável ao longo do tempo na sua
classificação; quando classificada por outros os resultados têm de ser idênticos; e, a classificação
108
IV – Metodologia de Investigação
deve seguir a norma aplicada em casos idênticos ou semelhantes. Isto é fulcral para assegurar
validade à análise de conteúdo, sendo que aqui entendemos 'validade' como a generalização de
resultados, referências e teoria (Bringberg e McGrath 1982 citado por Weber, 1990:18).
De acordo com Berelson (1967), os três critérios seriam a subtração de qualquer forma de
subjetividade, a análise exaustiva e sistemática, e, o cálculo das respetivas frequências dos dados
(citado por Janeira, 1971:371), isto sempre considerando que é “pernicioso confundir rigor com
estatística” (Janeira, 1971:372). Esta confusão é fruto do grande desafio que é obter “(...)
conhecimento por meio de dados, o que exige o domínio de técnica de análise” (Freitas, 2000:84).
Análise essa catapultada em parte pelo pretenso rigor científico das medidas face à
interpretação apenas qualitativa (Minayo, 2000). Freitas afirma que
Esta técnica, no campo das ciências sociais, pretende ser um meio capaz de detectar valores sociais,imagens, modelos ou símbolos empregues pelos emissores culturais e, igualmente, aferir o grau desintonização daqueles com os interesses, motivações, aspirações da sociedade a que se destinam. (Janeira,1971:398)
Um dos autores de referência para a introdução desta proposta teórico-metodológica é sem
dúvida Bardin (1979). Para esta autora, a análise de conteúdo é “um conjunto de técnicas de análise
de comunicação visando a obter (…) indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência
de conhecimentos relativos às condições de produção/receção destas mensagens” (Bardin, 1979:42).
A estes conhecimentos podem por sua vez ser atribuídas funções tanto de administração de prova,
confirmando hipóteses, como heurística, procurando fortalecer investigações exploratórias em
campos pouco estudados.
Krippendorff sugere que as análises de conteúdo têm maior sucesso quando se dedicam a
factos constituídos através da linguagem, os quais podem ser divididos em quatro tipos: atribuições
(conceitos, atitudes, crenças, intenções, estados mentais e processos cognitivos que se manifestam
em atributos verbais de comportamento); relações sociais (construídas através do modo como as
comunicações têm lugar ou são construídas); comportamento público (valores, disposições,
conceitos do mundo que revelam a forma de ser criadas pela repetição); e realidades institucionais
– como estas instituições são construídas e reconstruídas através da escrita, estabilizando as
memórias organizacionais, identidade e práticas (Krippendorff, 2004).
As etapas da análise de conteúdo devem respeitar uma ordem cronológica, partindo de uma
pré-análise, prosseguindo numa exploração do material e terminando no tratamento dos resultados e
respetiva interpretação. No caso específico desta investigação, estas etapas seriam naturalmente a
109
IV – Metodologia de Investigação
aplicação das entrevistas (recolha dos dados e pré-análise), codificação dos dados em símbolos ou
representações mensuráveis (tratamento dos dados através da criação e organização de uma base de
dados num software especializado, o SPSS 20), e por fim, apresentação dos resultados e respetivas
interpretações.
Naturalmente que, sendo a análise de conteúdo empírica não existe de facto um modelo-base
exato, ou um modelo pré-definido e aplicável invariavelmente (Bardin, 1979). Portanto, o modelo
de análise pode variar de acordo com a investigação e suas especificidades, inclusivamente pode
tanto produzir categorias classificatórias que vão do geral para o particular, como através das
categorias particulares procurar compreender as categorias gerais: “there is no simple right way to
do content analysis. Instead, investigators must judge what methods are most appropriate for their
substantive problems” (Weber, 1990:13).
Consoante o autor selecionado, existem mais ou menos tipos diferentes de análise de
conteúdo. Entre as mais referenciadas destacamos: a análise Lexical que é uma técnica que procura
interpretar questões abertas ou textos70, nomeadamente, desenhando um mapa lexical com as
palavras produzidas nas respostas; a análise Avaliativa71 ou Representacional, que pretende medir as
atitudes do locutor tendo como base os comportamentos que tem e afirmações que profere sobre um
determinado tema, objeto ou pessoa; A análise de Expressão é uma técnica que faz uso de
indicadores para compreender a inferência formal das mensagens, procurando explicar essas
mensagens tendo como referências as características e meio do locutor; ainda, a análise das
Relações, que faz uso das técnicas da análise categorial aprofundando-as através da busca de
relações que dois ou mais elementos da mensagem possam conter72; e, finalmente, a análise de
Enunciação que trabalha apenas as condições em que as mensagens foram construídas e respetivas
modalidades de discurso, ignorando a estrutura e elementos formais da mensagem.
Para alguns autores existe ainda a chamada técnica de análise de Discurso que compreende a
análise dos processos de produção das mensagens tendo como indicadores as manifestações
semântico-sintáticas. A análise de discurso procura determinar os mecanismos de dominação
camuflados pela linguagem que estrutura a mensagem, e assim, problematiza as outras formas de
70 “(...) por meio de processos automáticos que associam a matemática e a estatística” (Freitas, 2000:89).71 Parte do pressuposto que a sua linguagem é reflexo absoluto do que realmente é a sua posição/opinião.72 Esta pode ainda ser do tipo estrutural (desmantelamento e reconstrução do texto a fim de o explicar) ou de
coocorrências (identificação da presença simultânea de elementos).110
IV – Metodologia de Investigação
análise de conteúdo73.
Optámos nesta investigação por seguir a linha de análise de conteúdo assente num tipo que
não apresentámos nos parágrafos acima e que é das mais utilizadas. Referimo-nos à análise
Categorial ou temática que “(...) consiste em operações de desmembramento do texto em unidades
(categorias)” (Capelle, 2003:8), e procura revelar as parcelas de sentido das mensagens incidindo
sobre as frequências das mesmas e a sua comparabilidade.
Esta opção foi influenciada também pelos dados secundários apresentados por investigações
dedicadas ao mesmo tema e aplicadas em diversos estudos de caso, como de resto já fizemos nota
no capítulo dedicado à revisão bibliográfica. Procurámos assim criar dados que pudessem, por um
lado, garantir comparabilidade, e por outro, garantir que as nossas questões de partida fossem
respondidas.
No que toca ao tema deste projeto, podemos afirmar que este estudo pretende averiguar
quais os impactos e/ou as suas representações que ocorrem ou ocorreram na ilha da Boa Vista de
Cabo Verde, em consequência direta ou indireta do turismo, procurando responder à seguinte
questão de partida: Quais são e como são entendidas as mudanças promovidas pelo turismo, por
parte de residentes e operadores, e quais os mecanismos de resistência e/ou de reforço à
turistificação massificada?
Através da recolha de informação sobre expetativas, discursos e perspetivas dos vários
atores sociais envolvidos, e observação das suas práticas, pretende-se discernir quais as
consequências dessas mudanças ao nível local. Bem como como recolher dados sobre a satisfação
dos turistas que visitam o espaço, cruzando-as com as perceções dos entrevistados.
Finalmente, há que determinar se o investimento no Turismo em Cabo Verde, tanto nacional
como estrangeiro, tem tido os resultados esperados nas vidas dos residentes e no serviço prestado
aos turistas na perspetiva da comunidade boavistense. Trata-se, pois, de observar quais os impactos
percecionados ou ignorados, por quem e porquê? Assim, apontaram-se como objetivos desta
investigação os seguintes pontos:
1) Recolher os discursos sobre expetativas, motivações e consequências percecionadas
por residentes e operadores. Estes permitem desenhar o quadro atual e as principais mudanças, e
73 “Nesse processo, o analista deve evidenciar a compreensão do que é a textualização do político, a simbolização dopoder, o modo de historização dos sentidos, o modo de existência dos discursos no sujeito, na sociedade e nahistória” (Cappedelle et al. 2003:9). Todavia podemos também argumentar que esta análise de discurso pode estarincluída nos outros tipos de análise não merecendo necessariamente um destaque próprio.
111
IV – Metodologia de Investigação
diferenças, do turismo exploratório da década de 1990 para o massificado pós-2007 e verificar
posturas face ao futuro;
2) Comparar os impactos e atitudes presentes na literatura com aqueles percecionados,
cruzando os discursos com as evidências dos dados oficiais disponíveis e a observação e
experiência do investigador no terreno;
3) Observar, registar e analisar as práticas locais de reforço e/ou de resistência às
mudanças identificadas ou reconhecidas pela comunidade boavistense. Entenda-se, aqui, os
processos e mecanismos de adaptação e/ou construção de traços culturais tradicionais, tidos como
característicos das comunidades locais, seja nas relações interpessoais, na organização social, na
migração, na reconstrução e reinterpretação dos seus traços culturais, etc., o que obriga a uma
observação das interações entre os vários agentes, bem como dos espaços de interação e de ausência
da mesma;
4) Recolher as motivações e a avaliação dos turistas que visitam a Boa Vista. Uma
comparação entre as motivações percecionadas pelos residentes e as dos turistas permite verificar se
as primeiras se encontram alinhadas com as segundas. Igualmente, a recolha da avaliação da
experiência dos turistas facilita a determinação de previsões de futuros fluxos, correções a
considerar e preferências;
5) Pretendeu-se, por fim, contribuir com recomendações que permitam minimizar os
impactes negativos e maximizar os impactes positivos, pensado desde uma perspetiva local e
tendo em vista o objetivo de atingir um turismo que seja sustentável e justo, social, económica e
ambientalmente. Para tal, nas entrevistas a residentes e operadores, recolheram-se sugestões de
prioridades de intervenção.
Sendo os discursos relativos ao turismo e suas consequências o centro desta investigação,
definimos como objeto de estudo da mesma três universos: os turistas estrangeiros que visitam
Cabo Verde, os residentes que recebem esses mesmos visitantes, e os operadores que conduzem a
atividade turística.
Os turistas, considerados como objeto, enquadram-se nas características do turismo
convencional ou tradicional, mormente, de acordo com a seguinte tipologia geral: o destino de
férias preferido é famoso, encontra-se numa fase pós-exploratória, o contacto com a comunidade
local é reduzido, encontram-se alojados em complexos turísticos construídos para o efeito,
procuram sobretudo um turismo balnear. Entre estes, interessam aqueles cujo local de origem é a112
IV – Metodologia de Investigação
Europa (Portugal e França), o propósito de visita é ocupar os períodos de férias nacionais dos seus
países de origem (nomeadamente, as férias nacionais de Natal e Ano Novo, e as férias de Verão), e
que se deslocaram em grupos organizados tanto por agências de viagens/hotéis, como por agentes
privados.
Considerando o contexto de investigação, o atual estado da arte e os objetivos deste projeto,
foram apontadas hipóteses globais, que têm sobretudo um papel de apoio à pesquisa, com o
propósito de detetar tendências, e que se podem resumir da seguinte forma:
1) As perceções sobre o desenvolvimento do turismo encontram variações entre os
diferentes tipos de residentes e operadores da ilha da Boa Vista, principalmente por motivos sócio-
demográficos. É esperado, por exemplo, que os operadores sejam capazes de identificar sobretudo
impactos positivos e os residentes impactos negativos. Ou mesmo que entre os entrevistados com
maior nível de escolaridade exista maior capacidade de identificar impactos, tanto negativos como
positivos. Que, de entre os entrevistados, a identificação de impactos negativos será mais evidente
por aqueles que mais próximos estão dos centros turísticos. Existindo ainda muitas outras variações
proliferadas na literatura de referência apresentada no segundo capítulo.
2) A maioria dos impactos positivos percecionados pelos entrevistados são de cariz
económico e os negativos são de cariz social e ambiental.
3) O investimento no turismo na ilha da Boa Vista trouxe maior visibilidade e diversidade ao
setor e permitiu um crescimento do número de turistas, tendo assim contribuído para uma perceção
do turismo como alavanca sólida da economia local e nacional por parte dos residentes.
4) A escassez de envolvimento da sociedade civil no planeamento e execução do
desenvolvimento do turismo nesta ilha, tem contribuído para uma perceção local generalizada de
insatisfação e desilusão face às expetativas criadas pelo governo local e central, e pelo sector
privado.
5) Movimentos locais de salvaguarda e reinvenção das tradições locais, encabeçadas por
movimentos associativos e/ou indivíduos concretos, encontram um palco privilegiado no contexto
do desenvolvimento do turismo, em particular, na ilha da Boa Vista.
3. Técnicas, Tratamento de Dados e Calendarização
Não restam dúvidas de que a utilização de informação verbal tem vindo a dominar as ciências sociais.Fazer perguntas é normalmente aceite como uma forma rentável (frequentemente única) de obterinformação sobre comportamentos e experiências passadas, motivações, crenças, valores e atitudes,
113
IV – Metodologia de Investigação
enfim, sobre um conjunto de variáveis do foro subjectivo não directamente mensuráveis. (Foddy, 1996:1)
Foi referido que se fez uso da aplicação de entrevistas semi-dirigidas e inquéritos. Agora,
iremos referenciar em pormenor a amostra selecionada, o guião destas entrevistas, os seus
propósitos, como foram tratados os dados e que ferramentas foram usadas para retirar a informação
procurada. No caso concreto das entrevistas, estas seguiram um guião temático74 circunscrito ao
tema da investigação, o Turismo. Este guião temático era ajustado a cada um dos grupos-alvo
definidos previamente. Eram estes: 1) Residentes Naturais da Boa Vista (RNB); 2) Residentes
Naturais de Outras Ilhas de Cabo Verde (RNOI); 3) Residentes Estrangeiros (REB); e 4) Operadores
(OP).
Com estes diversos agrupamentos pretendia-se averiguar a existência de variações nas
perceções dos seus elementos, como de resto é sugerido no capítulo II, dedicado à abordagem
científica do turismo. Existia ainda uma outra condicionante que era referente à localização da
residência; realizou-se uma distinção entre os que habitavam em espaço “urbano” e em espaço
“rural”. Por espaço urbano entenderam-se os espaços mais densamente ocupados, a capital regional,
cidade de Sal-Rei e a vila do Rabil, mas também, duas povoações localizadas entre estas duas,
nomeadamente, as aldeias de Estância de Baixo e Bofareira, que gozam da proximidade das novas
artérias de comunicação entre a capital e o aeroporto, situado no Rabil. Falamos, portanto, de todas
as zonas habitadas no litoral Nordeste da ilha da Boa Vista.
E por espaço rural entenderam-se todas as povoações restantes. A “Povoação Velha” foi a
única aldeia não considerada nesta investigação, apenas para evitar dispersão espacial e por ser
difícil o acesso à mesma para o investigador. Assim sendo, as povoações rurais consideradas foram
João Galego, Fundo das Figueiras e Cabeça de Tarafes, todas no interior a Nordeste da ilha.
O guião da entrevista apontava vários objetivos e estava organizado em vários “blocos”,
cada qual com a pretensão de alcançar tais objetivos. Com o primeiro pretendia-se recolher dados
referentes às características sócio-demográficas dos entrevistados (idade, género, profissão,
nacionalidade, proveniência). Com o segundo bloco pretendia-se observar quais as expetativas que
os entrevistados tinham quanto à motivação dos turistas para visitar a ilha da Boa Vista. Já com o
terceiro bloco pretendia-se responder à questão dos impactos(es) e consequências do turismo na
ilha, tanto negativos como positivos, e ainda, captar pistas quanto ao estado da relação entre
visitantes e visitados. O quarto bloco refere-se à recolha das narrativas retrospetivas sobre a
74 Ver Guião em Anexo A.114
IV – Metodologia de Investigação
presença do turismo até à data, nomeadamente, as justificações que os entrevistados encontravam
para a situação atual e quais as recomendações/desejos que apontam. Finalmente, um quinto bloco
que se reduz à recolha da perceção dos entrevistados quanto ao futuro da Boa Vista, de acordo com
a sua visão do atual rumo.
Realizadas as 96 entrevistas, foi criada uma base de dados em 'SPSS 20' com as informações
retiradas das entrevistas de acordo com unidades simplificadas divididas em setenta e seis variáveis
que se enquadravam nos blocos de questões acima apontados, e duas adicionais ('nome', e 'código')
com vista à identificação dos entrevistados. As unidades de significado referentes ao bloco 1 são
seis variáveis: 'idade', 'género', 'nacionalidade', 'residência', 'profissão', e 'grupo'. Já as do bloco 2
contêm treze variáveis referentes às perceções dos residentes relativas às motivações dos visitantes:
'natureza e paisagem', 'clima', 'biodiversidade', 'propaganda', 'infraestruturas', 'proximidade', 'clima
político', 'tranquilidade', 'desporto', e 'cultura' (por sua vez subdividida entre 'gente', 'artesanato',
‘gastronomia’ e 'música').
Já o bloco 3 contém a maioria das variáveis, sendo estas agrupadas em impactos positivos e
negativos, subdivididos entre 'económicos', 'sociais' e 'ambientais', num total de 43 variáveis, numa
matriz que se aproximou das propostas encontradas na literatura e apresentadas no capítulo II.
Seguidamente, o bloco 4, com 9 variáveis referentes às sugestões/desejos dos residentes quanto ao
futuro: 'maior investimento Estatal em infraestruturas'; 'maior intervenção e investimento
camarário'; 'maior e melhor regulamentação/legislação'; 'maior investimento privado'; 'maior
investimento em formação e educação'; 'melhor e maior policiamento e fiscalização'; 'maior
cooperação política multipartidária'; 'maior envolvimento da sociedade civil'; 'diversificação do
produto turístico'; e, 'criação de linhas de financiamento e apoio ao investimento privado'.
Por fim, o bloco 5 que se refere à questão da perceção sobre o futuro da ilha da Boa Vista.
As unidades de significado foram estabelecidas a priori, durante a criação da plataforma de base de
dados, sendo atualizados após a introdução das primeiras 20 entrevistas, uma vez que se verificou a
necessidade de adaptar a matriz criada a partir dos objetivos da investigação e da literatura de
referência. Esta base de dados em 'SPSS 20' foi posteriormente exportada e trabalhada numa folha
de cálculo de 'Excel'.
Quanto ao conjunto dos entrevistados, a “amostra”, é composto por 96 indivíduos, 58 dos
quais do género masculino, cerca de 60,4%, e os restantes do género feminino. Em termos de
proveniência, 78,1% são nativos de Cabo Verde, 19,8% são oriundos da Europa (Portugal, Espanha,115
IV – Metodologia de Investigação
França, e Itália), e os restantes 2,1% provenientes de outros países (um do Brasil, outro de Angola).
Em termos de residência, a maioria dos entrevistados habita em espaço urbano (71,9%) e os
restantes em espaço rural. A escolaridade foi outra das características sócio-demográficas
recolhidas. Esta foi dividida em 6 categorias, começando no “ensino primário incompleto” até “pós-
graduação ou superior”. Aqui reuniram-se um grande número de entrevistados enquadrados na
categoria “ensino superior ou bacharelo”, cerca de 46,9%. Isso justifica-se pela maioria dos
elementos estrangeiros, operadores, e intervenientes políticos entrevistados terem formação
superior, e por alguns dos residentes naturais da Boa Vista e das outras ilhas serem professores do
ensino secundário, e portanto terem também formação superior.
Consideraram-se apenas indivíduos adultos, tendo o mais novo 20 anos e o mais velho mais
de 70 anos. Subdividiram-se em 6 as categorias de idade (20-29, 30-39, 40-49, 50-59, 60-69, 70+).
A característica seguinte refere-se à situação profissional. Consideraram-se cinco categorias:
“empregado” (64,6%), “desempregado”(5,2%), “trabalhador por conta própria” (22,9%),
“reformado” (6,3%), e “doméstico” (1%). A última característica sócio-demográfica considerada foi
o “Grupo”, que se refere à origem dos residentes (naturais da Boa Vista, de outras ilhas, e
estrangeiros residentes) incluindo ainda a categoria de “operadores”. Aqui destacamos a prevalência
de “residentes naturais da Boa Vista” que representa cerca de 61,5%, sendo as restantes muito
aproximadas em percentagem, variando entre os 11,5% dos “operadores” e os 14,6% dos
“residentes estrangeiros”.
Esta “amostra” assumiu uma maior prevalência da parte dos residentes naturais da Boa Vista
pois um dos objetivos era determinar as perceções destes nativos, isto apesar de, à partida, de
acordo com os dados estatísticos disponíveis, a maioria da população ser já originária de outras
ilhas por uma curta margem. Todavia, no terreno verificou-se que os dados estatísticos estavam
profundamente desatualizados, apesar de os mais recentes terem sido recolhidos para o Censo
nacional de 2010, pois a população aumentou mais de 30% em três anos.
Inicialmente, pretendia-se aplicar esta entrevista também a turistas e a “mediadores” ou
intervenientes. No entanto, optou-se por suprimir a categoria de mediadores pelo facto de muitos
destes serem estrangeiros e/ou políticos locais, e com menos disposição para participar nesta
investigação. Daí, criarem-se as categorias de “operadores” e de “residentes estrangeiros” que
abarcam boa parte destes mediadores. Cancelaram-se as entrevistas aos turistas pois, por um lado, o
investigador não conseguiu autorização por parte dos resorts e operadores turísticos para aplicar as116
IV – Metodologia de Investigação
mesmas nos seus espaços/serviços e, por outro lado, porque a aplicação das mesmas aos turistas,
que por livre vontade visitavam os espaços turísticos da ilha, demonstrou claramente uma tendência
enviesada, em parte porque se verificou empiricamente que apenas uma percentagem residual dos
milhares de turistas que visitam a ilha saíam dos resorts, e uma ainda menos representativa o fazia
livremente (sem recurso a operadores ou agências).
Com vista a corrigir a ausência da perspetiva dos turistas optou-se pela aplicação de
questionários75 aos mesmos, na fase final do estudo, procurando determinar as suas expetativas e
avaliação da experiência na Boa Vista, com o objetivo principal de conhecer as suas motivações,
avaliação da sua experiência e a perspetiva de um futuro regresso, e, sempre que possível, cruzar
estas com as dos residentes.
Foram inquiridos 100 turistas no aeroporto internacional da Boa Vista, Aristides Pereira, 26
dos quais de nacionalidade francesa em agosto de 2013, e os restantes de nacionalidade portuguesa
em agosto de 2014; deste total, 43 são do género feminino. De forma a simplificar potenciais
comparações, as faixas etárias são idênticas às das entrevistas, sendo que, a faixa com maior
representatividade é a dos 30 a 39 anos de idade com 27 inquiridos, mais 3 que a faixa mais jovem e
mais 6 que a faixa dos 40 a 49 anos de idade. A alguma distância ficaram as faixas dos 50-59 anos
(14%), 60-69 (10%) e 70 ou mais anos de idade (4%), o que, desde logo, evidencia que a amostra é
maioritariamente composta por adultos com menos de 49 anos de idade.
A situação profissional dos turistas concentra-se na primeira categoria de “trabalhador por
conta de outrem” (45%), seguida por aqueles na categoria de “patrão” (14%), “trabalhadores por
conta própria” e “reformados”, ambos com 13%, e ainda, dos desempregados (8%) e estudantes
(7%). Metade dos turistas inquiridos viajavam com apenas 1 acompanhante, 31% com 2, 10% com
3, 4% com 4, e apenas 5% viajavam sozinhos.
Outra característica refere-se ao número de vezes no continente africano. Do total, 52% dos
turistas afirmaram ser a primeira vez, 20% afirmou ser a segunda, apenas 7% a terceira, e 21%
apontaram estarem a visitar África pelo menos pela quarta vez. Já especificamente no arquipélago
de Cabo Verde, a maioria aterrou no mesmo pela primeira vez, (cerca de 78%), 17% pela segunda
vez, e apenas 5% pela terceira. Por fim, só 7 dos 100 turistas inquiridos já havia visitado a Boa
Vista. Isto reforça o quadro geral de que a Boa Vista é para a maioria dos turistas um cartão-de-
visita para o país.
75 Ver Anexo B no CD-Rom.117
IV – Metodologia de Investigação
Para se chegar a estas informações, as primeiras sete questões procuraram determinar a
idade, o género, a situação profissional, o número de acompanhantes, o número de vezes em África,
o número de vezes em Cabo Verde e o número de vezes na Boa Vista. As restantes questões
remetem para a motivação dos turistas (“Porquê Cabo Verde?”), averiguação das opções de
entretenimento fora do hotel e a forma como o faziam (“Saiu do Hotel? – Livremente/Com
Operador”).
A décima questão procurava recolher a avaliação da experiência dos turistas partindo da
opção “não gostei nada”, até “gostei muito”, passando pelas intermédias “não gostei”, “indiferente”,
e “gostei”. Experiência referente à praia, comida, gente, preços, hotel, Sal-Rei, aldeias, artesanato e
os tours disponíveis. Por fim, as questões finais (“11 – Pondera Regressar à Boa Vista?”; “12 –
Pondera Regressar a Cabo Verde?”), tinham como objetivo determinar a percentagem de potenciais
revisitas ao destino e ao arquipélago.
No que respeita ao calendário de investigação, este contemplou, para além da contínua
pesquisa bibliográfica, a permanência no terreno ao longo de 14 meses (entre maio de 2012 e
fevereiro de 2013, e posteriormente, julho e agosto de 2013 e de 2014. As entrevistas foram tratadas
e uma base de dados em SPSS foi construída entre abril e junho de 2013 e os questionários
seguiram o mesmo traço, entre os meses de setembro e outubro de 2014. Os restantes meses, até à
entrega do documento final, foram dedicados à sua ultimação.
4. Sucessos e Constrangimentos na Aplicação
Avaliar os sucessos e insucessos da aplicação de uma metodologia exige reconhecer, antes
de mais, se a mesma foi eficaz assim como eficiente. Com isto pretendemos dizer que, se por um
lado as entrevistas foram aplicadas, os questionários foram preenchidos e o campo foi observado,
importa identificar em que medida essas mesmas tarefas poderiam ter sido cumpridas de forma mais
eficiente, contribuindo com melhores e mais profundos dados do que os obtidos.
Esse exercício com base em suposições, muitas vezes leva-nos a desconsiderar o esforço que
existiu na adaptação do plano original à realidade do terreno. Naturalmente que, se hoje o
investigador chegasse ao terreno com as redes e os conhecimentos já estabelecidos, a investigação
apresentaria dados e resultados mais próximos dos ideais, eventualmente até mais perspetivas do
que as conseguidas, e mais problemas e soluções do que os identificados.
Apesar da experiência em trabalhar no contexto africano, e o facto de ser português, uma das
118
IV – Metodologia de Investigação
maiores dificuldades encontradas foi a aproximação à comunidade local. Inicialmente este
distanciamento parecia não ter saída e muitas vezes era mais simples interagir e ganhar a confiança
e amizade de informantes exteriores à Boa Vista do que criar esses mesmos laços com a
comunidade autóctone.
Por esse motivo as entrevistas levaram bem mais meses a começar e a terminar do que o
previsto. Primeiro, foi necessário considerar a realidade local e confrontar os dados que trazia nas
páginas das anotações e projetos com essa mesma realidade. A desconfiança face a estrangeiros e
imigrantes por parte dos nativos da Boa Vista não era necessariamente fruto de traços da
comunidade local, mas antes uma consequência da rápida chegada de elementos “estranhos” de
dentro e fora do país que havia deixado muitos locais numa postura defensiva e evasiva face às
investidas no terreno. Isto agravado pelo receio que muitos locais tinham em dar a sua opinião sobre
a forma como o turismo era conduzido, em particular pelos poderes locais. Estas e outras situações
particulares serão abordadas nos impactos negativos e noutros pontos desta investigação pelo que
não adiantaremos mais para já.
Por outro lado, o elevado custo de vida na ilha superou todas as expetativas do investigador.
Algo que, em conjunto com a escassez de habitações e de acesso a víveres básicos e água, atrasou
bastante a integração na comunidade local. Já para não falar de como a fina areia e forte vento que
se faz sentir na ilha danificou vários equipamentos como o computador e o gravador. Ainda assim,
as entrevistas foram aplicadas e, portanto, em larga medida isto considerou-se um sucesso,
sobretudo considerando as dificuldades encontradas.
No entanto, os questionários aos turistas padeceram de outros problemas, cuja solução quase
escapou. Com o intuito de recolher dados sobre a experiência dos turistas na ilha, os questionários
pretendiam inicialmente cobrir cinco nacionalidades e atingir as trezentas unidades. Seriam
aplicados no aeroporto internacional Aristides Pereira, enquanto os clientes dos hotéis aguardavam
o voo de regresso. Uma vez que estes turistas estavam sob a responsabilidade dos operadores
turísticos a sua participação e envolvimento eram obrigatórios sob pena de não conseguir
autorização de os aplicar.
Ora, uma vez que os resultados dos mesmos poderiam ser também relevantes para estas
empresas, para avaliar os serviços dos hotéis e a experiência da viagem dos seus clientes, partiu-se
da premissa que a sua participação e envolvimento não seriam um problema. Na verdade, a
realidade revelou-se profundamente diferente. À exceção dos operadores de menor dimensão, que119
IV – Metodologia de Investigação
lidavam com os turistas franceses e portugueses, as grandes operadoras que lidavam com turistas do
Reino Unido e Alemanha (assim como de Itália) constantemente atrasaram a sua aplicação. Ou seja,
apesar de formalmente assumirem uma posição favorável face à aplicação dos questionários, na
prática a sua colaboração era nula, chegando mesmo a obstruir a aplicação de forma direta,
argumentando não quererem que os seus clientes fossem molestados. Na verdade, essa obstrução foi
o motivo principal que forçou o investigador a voltar ao terreno em junho e julho de 2014, já que
entre julho e agosto de 2013 os seus esforços para aplicar os ditos questionários se mostraram
inglórios, perante a realidade da situação com a qual não podia esperar nem ultrapassar.
Apesar da recolha de duas das nacionalidades desejadas, não podemos, em boa-fé, admitir
que os dados recolhidos são representativos de “todos” os turistas estrangeiros, sobretudo se
tivermos em conta que os turistas do Reino Unido e da Alemanha representam mais de um terço dos
visitantes da ilha, e portanto, os que mais a visitam e os que detêm o maior poder de compra, e logo,
de entre todos os turistas, os que maior atenção merecem quanto às suas respostas ao inquérito.
Refletindo ex post facto, a investigação merece que os seus resultados sejam considerados,
tendo como nota de rodapé estas situações, não apenas por necessidade de justificação dos seus
insucessos mas também como explicação dos rumos que conduziram aos seus sucessos, ou seja, ao
cumprimento dos objetivos propostos.
120
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
Foi precisamente em busca de um processo de modernização e dinamização da economia
que Cabo Verde, assim como inúmeros outros países em todo globo, apontaram baterias ao turismo
internacional. Olhemos agora para os dados estatísticas do contexto africano antes de passarmos ao
caso concreto de Cabo Verde.
De acordo com o relatório de 2013 da WTTC, o continente africano apresenta uma
tendência de crescimento no que se refere à contribuição direta do turismo para o PIB do
continente. Entenda-se que, apesar de ser uma tendência ligeira, com alguns anos de oscilação na
última década, os números apontam para 170 mil milhões de dólares no ano passado, cerca de 8,5%
do total do PIB (WTTC, 2013).
O turismo emprega no continente africano cerca de 2,9% da população ativa,
aproximadamente 8,1 milhões de empregos diretos, número que chega aos 19,3 milhões se
somarmos os empregos indiretos e os induzidos. Com um aumento de 6% no número de visitantes
internacionais, esta região recebeu os já mencionados 56 milhões de turistas, números bem mais
elevados que os 27 milhões de 2001, ou os 19 milhões de 1995 (OMT, 2013).
Estes dados devem ser, ainda assim, relativizados, uma vez que, se recordarmos os valores
globais das estatísticas do turismo mencionados anteriormente, verificamos quão “baixos” estes
valores são na realidade. A África, quase a par do Médio Oriente, é a região onde o turismo tem pior
performance. O continente africano está dividido em duas sub-regiões turísticas, a África sub-
sariana e a África do norte. Esta última apenas comporta a Argélia, Egito, Líbia, Marrocos e
Tunísia, países que têm sofrido várias convulsões sociais e guerras nos últimos anos, e mesmo
assim representam o destino de 18,5 dos 52,4 milhões de turistas internacionais que viajaram para
este continente em 2012 (OMT, 2012).
Ainda assim, o crescimento da atividade no continente demonstra que os governos estão
atentos aos seus benefícios, tanto à escala macro (nacional) como micro (local). O turismo
representa aumento de consumo estrangeiro e mais dinheiro em impostos a recolher, mas também
uma melhoria da qualidade de vida, maior distribuição de riqueza e criação de empregos. No
entanto, é reconhecido que o turismo é muito mais que uma atividade económica.
O turismo força a uma interação vasta entre pessoas e exige uma variedade de serviços,
121
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
infraestruturas e investimentos que permitam gerar e aproveitar oportunidades. Assim, existe a
necessidade de gerir o crescimento e as mudanças do turismo de modo a garantir que o crescimento
deste não afeta os objetivos estabelecidos para o crescimento ao nível local e nacional.
O turismo, como vimos, está longe de ser a batuta mágica outrora apregoada (Brown, 1998),
em particular nas economias mais frágeis dos países em vias de desenvolvimento. Entre os países
africanos, o veredito sobre o sucesso da sua implementação é algo discutível, dada a disparidade
entre os resultados das estatísticas globais desses países e as consequências regionais e locais do
turismo nesses espaços e nas suas comunidades.
Azarya (2004) infere que apenas as elites e a classe média, líderes políticos e os mais ricos,
beneficiam de um aumento dos seus rendimentos através deste tipo de processos de
desenvolvimento por meio do turismo. Situação que Dieke (2003) rotula de uma forma de
exploração e dependência que se assemelha ao neocolonialismo, dado que as populações mais
pobres, afastadas das decisões e da capacitação adequada, preferem benefícios económicos
imediatos à custa de uma sustentabilidade a longo prazo, pois a essa condição estão submetidas
dada a sua “egoísta luta pela sobrevivência” que relega para segundo plano ideias como o altruísmo
ou a sustentabilidade (Redclift, 1992):
We need to set targets and monitor whether tourism is really doing something about poverty as well as tobe watchful about where money from tourism goes to in the recipient communities. Benefits in kind canbe more certain to meet needs and therefore it is important to have transparent auditing of how moneyfrom tourism is being distributed to, and used within, communities. Examining the supply chain totourism enterprises and seeking changes that will bring more benefits to the poor is essential. (Okecha eMwagona, 2007:12)
Nesta investigação já reforçámos a importância do papel da capacitação das comunidades.
Nessa linha, também o desenvolvimento promovido através da aposta no turismo internacional em
África deve ter em conta os impactos que inflige nas populações mais pobres e qual a melhor forma
de, envolvendo essas mesmas populações, desenhar o roteiro para uma sociedade mais justa e
equitativa. Só nestas condições podemos declarar o intuito de procurar atingir um desenvolvimento
sustentável, no caso do contexto desta investigação, um turismo sustentável.
Deve-se procurar desenvolver os recursos humanos, nomeadamente, capacitando e
especializando os locais, e importa que os investidores estejam não só atentos às consequências das
suas ações como também que seja contemplada a sustentabilidade do próprio setor a longo prazo.
Como resultado, “(...) will potentially encourage sound utilization of local suppliers and thus
enhance not only their productivity but also intersectoral linkages. In this sense, the spin-off effects122
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
are obvious: foreign exchange will be retained locally and further income would be earned” (Dieke,
2000:8).
Finalmente, é necessário que as pequenas e médias empresas locais de turismo sejam
capazes de escapar a uma situação de precariedade, o que reduzirá a qualidade do serviço prestado,
e consigam investir em estratégias bem-sucedidas de cativação de clientes/turistas. Este será um
dos maiores desafios do turismo em África.
Cabo Verde é caracterizado por uma população que ronda o meio milhão de habitantes. A
ilha de Santiago é responsável por concentrar mais de metade da sua população, na sua maioria
residentes na capital do país, a cidade da Praia. Recentemente Cabo Verde ascendeu ao grupo de
Países de Rendimento Médio, uma evidência do esforço político e social na melhoria das suas
condições de vida.
Enquanto Pequeno Estado Insular (PEI), Cabo Verde é um exemplo de um país fechado num
modelo de integração caracterizado pela dependência das migrações, remessas, ajuda externa e de
um sistema burocrático, o dito modelo MIRAB. Este, originalmente sugerido por Bertram e Watters
(1986), procurava caracterizar as sociedades das ilhas do pacífico como pequenas economias
insulares dependentes de acentuados fluxos migratórios (MI), das remessas dos trabalhadores
emigrados (R), da ajuda pública externa para financiar as despesas públicas (A), e de uma pesada
máquina de burocracia administrativa (B).
Estes argumentariam que o sistema MIRAB não se trata de uma fase mas sim de uma
estratégia viável a longo prazo, que pretende, por um lado, utilizar a ajuda externa para equilibrar a
Balança de Pagamentos, e por outro, complementá-la com as remessas enviadas pela população
emigrada76. A população emigrada não é, nestes casos, dispersa. Antes, ela é conscientemente
selecionada por parte das famílias ou países de forma a manter e maximizar as remessas (Galey
citado por Poirine, 1998:77), qual 'empresa familiar transnacional' (Poirine, 1995).
A questão é, então, como desenhar uma estratégia que permita escapar às debilidades deste
sistema e simultaneamente potenciar as vantagens de forma sustentável. Para Sarmento (2008), a
resposta reside na criação e reforço da dinâmica do exterior para o interior, é dizer, pela captação do
mercado mundial através do turismo: “o turismo (…) solicita a participação de um amplo conjunto
de actividades locais. Por outro lado, permite uma inserção directa no comércio internacional. (…)
Também apresenta a vantagem de minimizar o problema da dimensão e da distância” (2008:96).
76 Classificado de 'sector moderno do país' (Poirine, 1995).123
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
Isto tendo em atenção o perigo numa aposta messiânica no turismo, como diz Sarmento:
“(...) se não for adequadamente planeado, gerido e implementado, pode ter consequências graves na
conservação dos recursos culturais e naturais” (2008:132). Algo que já havia sido mencionado em
1998 durante a Conferência Internacional sobre o Turismo Sustentável nos Pequenos Estados
Insulares.
Um equilíbrio delicado é a chave para o sucesso desta aposta, e a sustentabilidade depende
de uma planificação e execução consciente e adequada. A chave da sustentabilidade parece residir
em parte na capacidade de gerir os frágeis territórios insulares com capital natural limitado:
Neste sentido, torna-se imperativo transformar as suas vantagens comparativas (como a localizaçãogeográfica privilegiada) em vantagens competitivas (Lourenço & Foy 2004, Cabral 2005; Sarmento2008). Assim, o perfil competitivo das ilhas assenta numa aposta na qualidade dos serviços e naprofissionalização do atendimento. Para além disso, depende também da diversificação do produtoturístico, na tentativa de captar outros mercados (Bardolet & Sheldon 2008). (Lorena, 2009)
Daí, autores como Vellas (1997), Kakazu (2007), e Sarmento (2008) afirmarem que a
exportação de serviços poderá ser a estratégia ideal. Na exportação de serviços entenda-se que o
turismo:
(...) pode ser menos susceptível de poluir o ambiente ou contribuir para a preservação do mesmo,emprega uma mão-de-obra abundante e pouco qualificada, emprega mão-de-obra nos locais rurais o quepode contribuir para a fixação das populações e evita os malefícios do êxodo rural que normalmente odesenvolvimento das indústrias acarreta. Cria um efeito de arrasto para as actividades locais como é ocaso dos trabalhos públicos, bens intermédios para a construção, o artesanato local, os transportesterrestres, marítimos e aéreos, as actividades culturais e de lazer. Finalmente, permite uma taxa decrescimento elevada desde o início. (Sarmento, 2008:90)
Dado o vastíssimo conjunto de vantagens previstas pelos autores, é evidente a escolha do
turismo como estratégia por parte tanto de privados como do setor público. Sobre este último
faremos agora uma sintética retrospetiva dos modelos e das medidas adotadas pelos sucessivos
governos caboverdianos desde a sua independência, em 1975, apesar do turismo despertar interesse
mesmo antes da independência:
As Centro de Informação e Turismo de Cabo Verde, como tivemos ocasião de verificar, chegam quasediariamente pedidos de esclarecimento sobre a possibilidade de investimentos no sector turístico. Pedidosque vêm de todas as partes do mundo […] Entretanto, são constantes as visitas de estrangeiros que ali vãopara confirmarem pessoalmente se correspondem à realidade as maravilhosas descrições que lhes fazemsobre as possibilidades turísticas destas ilhas. (Oliveira, 1973:153)
Usualmente, reserva-se um momento particular para uma descrição pormenorizada das
características morfológico-sociais do espaço ou objeto de investigação, neste caso, da ilha da Boa
Vista e sua população. No entanto, três fatores moldaram a nossa construção deste capítulo. Por um
124
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
lado, as quase inexistentes fontes sobre a história da ilha restringem essa descrição. O mesmo
poderia ser referido sobre os dados referentes à própria história do país e dos seus dados sócio-
demográficos até aproximadamente à década de 1960.
Por outro lado, dado que o foco desta investigação é o turismo, a janela temporal de
interesse é sobretudo após a independência de Cabo Verde, concretamente, após a abertura aos
mercados internacionais na década de 1990. Finalmente, gostaríamos de dar continuidade lógica
aos capítulos anteriores e apresentar dados específicos do turismo nacional e regional, tanto os
estatísticos disponíveis, como apresentar relatos diretos desse mesmo processo de transição. Relatos
esses recolhidos aquando das entrevistas aplicadas.
Deste modo, iniciamos com uma descrição do modelo de desenvolvimento e procedentes
alterações e resultados da sua modificação até a data. Esta será seguida por uma sintética
contextualização da história, economia e cultura da Boa Vista até à independência, e
apresentaremos alguns dados sócio-demográficos específicos da ilha, assim como outros dados
referentes ao crescimento do turismo na ilha, enquadrados pelos relatos dos entrevistados.
1. Modelos de Desenvolvimento Caboverdiano (1975-2016)
Neste ponto trataremos o modelo de desenvolvimento caboverdiano, particularmente os
sucessivos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND), começando pelo primeiro, lançado no ano
de 1982. Entre a independência e o lançamento desde primeiro plano, o país rapidamente evoluiu
para um modelo MIRAB. Este modelo, particularmente dependente de receitas e exportações de
bens e serviços e de transferências unilaterais (Sarmento, 2008:173), é caracterizado por uma
crescente taxa de urbanização, consumo decrescente e um ligeiro crescimento da agricultura.
Face a tais debilidades, a resposta governamental e do partido PAICV77, nasce na forma de
um plano, ou estratégia: o 1º Plano Nacional de Desenvolvimento (1982-1985). Este alertava desde
logo para as dificuldades que o país enfrentava, não só as que derivam de uma independência
recente, como as que advêm de uma localização periférica face ao continente africano, e da
dispersão geográfica do arquipélago.
O PND apresentava como medidas concretas a aposta na indústria, primeiro no mercado
interno e depois no externo, e tinham como objetivo atuar nas áreas prioritárias identificadas pelo
governo, isto é, essencialmente criar condições de base que permitissem escapar ao modelo
77 Partido Africano para a Independência de Cabo Verde.125
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
MIRAB. Contudo, a dependência face à ajuda externa manteve-se como principal, e quase única,
fonte de acumulação.
Já o 2ª PND (1986-1990) reunia como principais objetivos criar uma base económica sólida
de forma a permitir estabilizar a produção, e, como medidas concretas, apontava já para uma
preocupação social clara, com intenções de equidade social, criação de emprego e construção de
infraestruturas. Dois modelos que na teoria e na prática seguiam um modelo económico e social
pró-soviético isolacionista.
Se entre 1975 e 1991 o Turismo não era um dos eixos prioritários da economia para a classe
política, a partir de então, com as primeiras eleições multipartidárias vencidas pelo MpD, esta
atividade é encarada como a alavanca ideal para o futuro económico e social do país. Algo que se vê
refletido nos vários planos que se foram desenhando, em particular desde o 3º PND (1991-1995).
Este demonstra uma aposta no mercado externo, numa dinâmica que procurava inserir o país no
mercado global através do incentivo do investimento privado e liberalização da economia.
No 4º PND (1997-2000) assistiu-se a um reforço desta postura de liberalização (através da
privatização de empresas públicas, por exemplo) e aposta na economia internacional. Deve-se
destacar um terceiro elemento estruturante que é inovador. Falamos da ideia de “desenvolvimento e
afirmação da cultura nacional”. Indício da necessidade de potenciar a ideia de identidade, unidade e
diversidade nacional, algo que pode acarretar enorme potencial se devidamente aplicado ao turismo
e à sua promoção.
Neste, foi aberta a porta para o investimento privado e reduzida a intervenção estatal. Com
propostas de 10% das verbas disponíveis a aplicar no Turismo e com a criação da Lei Base do
Turismo, este viu ainda criadas, através de Decreto-Lei, a categoria de 'Zonas Turísticas Especiais'
(ZTE). Entre estas, as de 'Desenvolvimento Integral' e as de 'Reserva e Protecção Turística'
(Sarmento, 2008:258). Estas passam a ser geridas pela 'CV Investimentos e Sociedades de
Desenvolvimento Turístico'.
A política liberalizadora acentuou-se com este PND, que apesar de reconhecer alguma falta
de controlo e proteção da fauna e da flora, reforçou a aposta no turismo como uma potencial área,
destacando como objetivos: a valorização dos recursos turísticos naturais, o desenvolvimento de um
turismo de qualidade e o aumento da contribuição do setor para o equilíbrio das contas externas.
Todavia, considerando as fraquezas apontadas, a aposta passa pela captação, não de um turismo de
massas, mas de um turismo de elite. Para tais objetivos e ambições procurou-se construir novas126
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
infraestruturas, reabilitação do património histórico e cultural, e a promoção de Cabo Verde como
destino turístico (Sarmento, 2008).
No último PND, o 5º, e referente ao período 2002-2005, desta feita implementado pelo
PAICV que venceria as eleições legislativas de 2003, encontrava-se estruturado sob três pilares, a
procura de Equilíbrio Locais, Boa Governação e Ética, e Aspirações Nacionais de
Desenvolvimento. Se o último pilar é uma nova aposta nos princípios condutores do PND anterior,
a ideia de detetar e desenhar as vantagens e potencial de cada ilha, apostando na erradicação da
pobreza e no crescimento económico e social do meio rural, presente no primeiro pilar, é sem
dúvida uma abordagem refrescante. Já o segundo pilar prende-se com uma das questões sempre
presentes em contextos de poder. Falamos do combate à corrupção, compadrio e outras estratégias
que minam o melhor desempenho administrativo e económico do país.
Devemos destacar a intenção de executar os seguintes sub-programas: aumento da eficiência
da administração pública; diversificação dos produtos turísticos; formação de recursos humanos
para o setor; desenvolvimento do turismo das ilhas da Boa Vista e do Maio78; uma planificação
turística mais eficaz na promoção de investimentos no setor e que assegure um desenvolvimento
sustentável do turismo na ilha do Sal e nas ZTE. Ainda de destaque, há que referir a criação de uma
Escola de Hotelaria e de um Instituto Superior de Turismo e Hotelaria, para além de intenções
expressas para a promoção do eco-turismo, turismo de habitação, entre outras formas de turismo.
Essa preponderância permitiu que em 2007 o turismo atingisse um volume de receitas
correspondente a 23% do PIB do país, responsável por 90% dos investimentos externos (CCIT79).
Em 2007 o país recebeu 333 mil turistas, algo a considerar vista a evolução da chegada de hóspedes
desde 1990. Nesse ano entraram pouco mais e 21 mil turistas, e dez anos depois já eram 145 mil
(INE-CV, 2008)! Esta rápida ascensão demonstra o impacto de uma aposta de fundo no setor. No
ano de 2008 os principais emissores de turistas foram o Reino Unido, Itália e Portugal, totalizando
os três cerca de 56,7% do total de turistas (INE-CV, 2008). Entre os referidos, o destaque vai para o
Reino Unido que desde 2007, e sobretudo com a abertura de ligação aérea direta entre Estados,
permitiria um aumento acentuado e a atual hegemonia (cerca de 77 mil turistas, mais 15 mil que os
que provêm de Itália, e mais 28 mil que Portugal80).
78 Em 2005 é criada a Sociedade Desenvolvimento das Turístico das Ilhas da Boa Vista e Maio (SDTIBM).79 Câmara de Comêrcio Indústria e Turismo Portugal Cabo Verde (http://www.portugalcaboverde.com/main.php).80 INE-CV (2008).
127
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
O crescimento e desenvolvimento do país foi e é bandeira política cunhada de sucesso. Basta
rever as palavras do Primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria das Neves, quando se dirigiu à
sua nação em julho de 2010: “Cabo Verde manteve taxas de crescimento robustas. O PIB cresceu
em média 7,3% por ano entre 2006 e 2009. Já em 2006 atingimos a taxa de crescimento de 10,1%.
A crise internacional veio contrariar essa expansão. Mesmo assim, continuamos com bons índices
de crescimento” (Neves, 2010:2).
A ideia de potenciar a exploração do turismo foi também apontada como desejo e meta a
atingir a curto prazo pelo Governo: “a nossa visão é construir um turismo de qualidade e de alto
valor acrescentado; desenvolver uma praça financeira; transformar o país num hub no domínio dos
transportes aéreos e marítimos, e criar uma base logística de apoio às pescas (Neves 2010:4)”.
Nessa linha, é importante ainda um sublinhar dos pontos-chave do Governo e do seu plano
para 2011-2016, presente no documento oficial “Programa do Governo VIII Legislatura 2011-
2016”81. Desde logo, uma continuidade na abertura aos mercados internacionais, o desenvolvimento
do setor privado e reformas no setor público; também, medidas que vão ao encontro das palavras
citadas do líder do Governo, como as questões sociais, inclusão e coesão. Ainda, a continuidade na
aposta educativa82 e na construção de infraestruturas (saneamento, energia, mas também as que
permitam maior mobilidade entre ilhas e para o exterior, nomeadamente, para os países de onde
provém o mercado turístico).
Naturalmente que o desenho de um programa não determina nem pressupõe a sua
realização. É antes uma declaração de intenções e desejos teoricamente realizáveis. Comprovado o
compromisso político numa sociedade e economia mais sustentável, através da catapulta turística,
devemos olhar agora as medidas concretas desenhadas para potenciar essa atividade de 'alto valor':
Primeiro, como passar do turismo de massa para o turismo de elevado valor acrescentado. Segundo,torna-se imperativo aumentar a sua contribuição para a economia nacional. Neste sentido, será importanteque o turismo tenha uma ligação muito maior com a economia nacional e assegure uma participaçãocabo-verdiana mais alargada no sector. A chave é assegurar-se de que, com o decorrer do tempo, um novosector de turismo apareça, em que o conteúdo e impacto económicos locais sejam muito mais elevados doque os de hoje. A agenda é construir um sector de turismo que seja muito bem integrado na economiacabo-verdiana. Tal tem sido difícil e exigirá uma reorientação das políticas e dos incentivos. Coloca-se,ainda, a necessidade de diversificar as ofertas, de implementar uma promoção turística sofisticada eeficiente e de assegurar que todas as ilhas participem no desenvolvimento do sector. O Governo procurará
81 Ofício de 14 de Junho de 2011.82 “Será revisto o quadro institucional do sector para uma melhor racionalização das instituições existentes e para
reforçar a capacidade de coordenação, planeamento e gestão do desenvolvimento do sector do turismo. Iremosigualmente melhorar a qualidade dos serviços prestados, investindo na formação e especialização da mão de obradirecta e indirectamente vinculada às actividades turísticas” (Programa do Governo, 2011:29).
128
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
criar novas rotas aéreas e atrair turistas oriundos de novos mercados.(Programa do Governo, 2011:28-29)
Dado que esta investigação decorre até ao ano de 2014, importa introduzir as conclusões do
Plano Estratégico para o Desenvolvimento do Turismo em Cabo Verde 2010/2013; um relatório
elaborado pelo Ministério da Economia, Crescimento e Competitividade, mormente, a Direção
Geral do Turismo de Cabo Verde, com o propósito de realizar um diagnóstico do turismo nacional.
Algumas das principais conclusões desse diagnóstico revelaram as deficiências do processo de
desenvolvimento do turismo, a insuficiência de recursos e infraestruturas (ou mesmo inexistência) e
a inflação dos preços.
Este auto-diagnóstico é importante também na perspetiva de demonstrar a preocupação e o
interesse que oficialmente o governo caboverdiano tem no turismo, e, sobretudo, demonstra ainda,
como o turismo é a grande, ou única, aposta governamental às difíceis condições, constrangimentos
que assolam o país. Em resposta a este cenário, o relatório sugere todo um conjunto de ações e
atividades que pretendem um turismo sustentável e de alto valor acrescentado, capaz de maximizar
os efeitos multiplicadores, com elevado nível de competitividade, diversificado e de qualidade
(PEDTCV, 2009). Nas suas conclusões destaca-se ainda o reconhecimento do papel determinante da
sociedade civil na implementação e melhoria do plano estratégico.
Em síntese, temos de destacar as infraestruturas de base que existem atualmente e que são
originárias do investimento e aposta no turismo, desde aeroportos, estradas, saneamento,
eletricidade, transportes, formação e qualificação de pessoas, etc.; e, claro, os dados sociais e
económicos que sugerem uma melhoria profunda quando comparados com os de 1975, ou mesmo
de 2000.
Hoje, Cabo Verde é um país de Médio Desenvolvimento, de acordo com o índice as Nações
Unidas. Para tal, o país fez enormes progressos ao nível económico mas também social. A esperança
média de vida à entrada no século XXI era pouco superior a 69 anos e hoje é de 74 anos. A taxa de
fertilidade atingiu em 2013 os 2,3 filhos por mulher, demonstrando uma tendência de declínio da
natalidade, também esta acompanhada pela de mortalidade. Ainda assim, Cabo Verde tem uma
população jovem com uma média de idade a rondar os 27 anos de idade. Os avanços nas áreas de
saúde e educação mostram os progressos realizados pelo país que, para tudo isto alcançar, sacrificou
muitos milhões de euros de dívida pública, hoje várias vezes superior à de 2000.
129
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
2. Turismo em Cabo Verde – um Balanço Nacional
O primeiro passo para o turismo internacional surge com a construção do aeroporto
internacional na ilha do Sal na década de 1960, que permitiu o investimento numa modesta
pousada, em 1967, por parte de uma família belga (Vynkier), que procurava hospedar turistas
balneares. Só mais tarde, em 1986, é que seria inaugurado o primeiro hotel, o Belorizonte,
construído pelo Governo e explorado por uma rede turística francesa. Só na década seguinte, com o
gradual interesse de investidores italianos, portugueses e espanhóis, e com a acessibilidade
apresentada por parte dos vários governos, é que o turismo descolou de vez.
Como vimos nos pontos anteriores, volvidas todas estas décadas com independência, adoção
de ideologias governativas pró-marxistas, posterior abertura e sucessivos governos, foram vários os
avanços e recuos que colocaram Cabo Verde já longe de um pequeno arquipélago desconhecido
enquanto destino turístico. À escala do turismo mundial, Cabo Verde é ainda uma gota num oceano,
mas os dados são claros quanto ao seu crescimento. De acordo com o Banco de Cabo Verde (BCV)
as receitas brutas do turismo representaram em 2013 cerca de 24,1% do PIB.
20002001
20022003
20042005
20062007
20082009
20102011
20122013
2014
0
500.000
1.000.000
1.500.000
2.000.000
2.500.000
3.000.000
3.500.000
Evolução do Número de Hóspedes e Dormidas (2000-2014)
Hóspedes
Dormidas
Figura 5.1: Evolução do Número de Hóspedes e Dormidas (2000-2014)
Idealmente seria útil apresentar uma retrospetiva clara do crescimento dos indicadores de
referência quanto ao crescimento turístico no país, desde pelo menos, a sua independência. No
entanto, os dados disponíveis não são públicos; dir-se-ia mesmo, inexistentes de forma contínua e
consistente até por volta do século XXI. Assim, apresentam-se agora os dados relevantes desde o
130
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
ano de 2000.
Como na figura acima indica, fica claro que tanto o número de hóspedes quanto o número de
dormidas a nível nacional aumentaram entre 2000 e 2013. Não deixa de ser também evidente que
tanto o número de hóspedes mais do que triplicou quanto o número de dormidas quintuplicou,
passando 684 mil dormidas em 2000 para as 3,4 milhões!
Também se pode verificar um ligeiro decréscimo no número de dormidas e de hóspedes
durante o ano de 2014, um resultado inesperado dado o crescimento contínuo e acelerado que se
tem verificado nas últimas décadas.
De igual modo, verifica-se um crescimento nas estadias médias que foram das 4,4 noites em
2000 para as 5,9 noites em 2013, apesar de algumas flutuações intermédias; bem como, da estável
percentagem de ocupação acima dos 50% desde 2010. Naturalmente que a percentagem de
ocupação deve ser lida com cautela visto que a simples abertura de alguns novos estabelecimentos
hoteleiros provoca uma flutuação na taxa de ocupação. Não é comum uma ocupação elevada nos
primeiros anos de abertura, com exceção para os grandes empreendimentos hoteleiros do tipo tudo-
incluído.
Para uma caracterização macro ainda mais segura, resta ainda fazer nota dos números de
hóspedes nos vários tipos de espaços, da pousada ao hotel, e ainda, do número médio de noites que
cada tipo tende a servir aos seus clientes. Vamos tentar perceber quem são os clientes/turistas que
visitam Cabo Verde. Ainda em relação ao número de hóspedes, deixámos os hotéis de fora na figura
abaixo por uma simples questão de escala. Isto é, os valores são tão mais elevados que os restantes
que não permitiriam uma análise cuidada dos outros tipos de espaço, bem como, sendo o turismo
em hotel um elemento privilegiado da nossa análise, preferimos abordá-los separadamente.
131
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
O que esta figura gráfica nos indica é que o número de hóspedes nos vários tipos de espaço
tendeu a crescer, atingindo um primeiro pico no ano de 2006, apenas para lentamente decrescer até
ao ano de 2009 ou 2010, para depois gradualmente voltar a crescer. Tendência geral apenas
contrariada pelo declive das pousada a partir de 2006. No ano transato confirmam-se os dados de
uma tendência de redução do número de hóspedes nos vários tipos de alojamento, com exceção dos
aldeamentos turísticos.
Os grandes acolhedores de hóspedes em 2013 foram, de longe, os hotéis com uma média de
6,3 noites por turista, logo seguidos dos aldeamentos turísticos com uma média 5,4 noites,
relegando os restantes tipos para valores inferiores a 3,1 noites. Isto demonstra que os aldeamentos
turísticos, apesar do número intermédio de hóspedes que recebem, conseguem garantir um serviço
mais prolongado aos seus clientes.
Regressando então aos hóspedes em hotéis, os valores, como afirmámos, são também
esclarecedores. Se, entre 2000 e 2005, o número de turistas hospedados não ultrapassavam os 200
mil, eles mais do que duplicaram em 2012, atingindo os 476 mil hóspedes em 54 alojamentos. No
ano passado, os mais de 468 mil hóspedes que ficaram hospedados em hotéis representaram 86,8%
do total de turistas registados e 91,3% das dormidas. Este valor é ainda mais representativo se
considerarmos que os restantes espaços juntos apenas somam menos de 72 mil hóspedes em 2014,
132
20022003
20042005
20062007
20082009
20102011
20122013
2014
0
10.000
20.000
30.000
Evolução do Número de Hóspedes por tipo de Alojamento (2002-2014)
Pensões
Pousadas
Hotéis-apartamentos
Aldeamentos turísticos
Residenciais
Figura 5.2: Evolução do Número de Hóspedes por tipo de Alojamento (2002-2014)
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
em cerca de 168 alojamentos!
O turismo hoteleiro, em particular o turismo hoteleiro assente numa política de tudo-
incluído, é o grande responsável por assegurar estes clientes/turistas. Como vimos nos pontos
anteriores, o esforço dos vários Governos desde a abertura aos mercados internacionais, garantiram
condições vantajosas para os investidores estrangeiros, permitindo que hoje o turismo em Cabo
Verde seja a atividade económica mais importante do país. O turismo internacional é a principal
alavanca económica que prometia ser; um fabuloso farol para a economia do arquipélago que sente
o seu efeito multiplicador para além das naturais remessas diretas recolhidas centralmente pelo
Governo.
Os últimos dados sobre o número de estabelecimentos confirmam que desde 1999 os
estabelecimentos hoteleiros passaram de 79 para 222 em 2013, sempre em crescimento contínuo,
com particular destaque para os hotéis, e onde permanece a maioria dos turistas. Turistas estes, na
sua maioria europeus, como de resto a figura seguinte demonstra83.
Já em termos da evolução do número de turistas por nacionalidade, podemos verificar que os
Italianos têm vindo a diminuir apesar de historicamente serem os principais turistas até ao ano de
2006. O grande destaque é, sem dúvida, da parte dos habitantes do Reino Unido que, tendo apenas a
83 Nestas retiraram-se as nacionalidades com valores inferiores aos 20 mil turistas no ano de 2014.133
20002001
20022003
20042005
20062007
20082009
20102011
20122013
2014
0
20.000
40.000
60.000
80.000
100.000
120.000
Número de Turistas por Nacionalidade entre 2000-2014
Cabo Verde
Alemanha
Bélgica/Holanda
França
Reino Unido
Itália
Portugal
Figura 5.3: Número de Turistas por Nacionalidade entre 2000-2014
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
partir de 2004 chegado a Cabo Verde, são hoje o principal grupo de turistas com 96 mil turistas/ano,
logo seguidos dos Alemães, com 68 mil visitantes, e os Franceses, com 61 mil (apenas mais mil
turistas que Portugal), demonstram uma clara tendência de crescimento estável. Isto, mesmo
considerando o abrandamento, ou mesmo recuo, de alguns dos valores no ano de 2014.
Estas nacionalidades encontraram em Cabo Verde um serviço ao qual estavam
familiarizadas e que é disponibilizado por grandes empresas e agências de turismo e viagem que
permitiram este crescimento acentuado. Falamos em particular da agência/operador turístico TUI,
alemã, e da rede hoteleira RIU, espanhola, que já se encontram associadas no país, tanto na ilha do
Sal como na ilha da Boa Vista. Em maior pormenor falaremos sobre estas empresas e a sua
influência nos pontos dedicados às particularidades da ilha da Boa Vista.
Resumindo, a oferta mais antiga e ainda predominante é o turismo balnear, com destaque
para a ilha do Sal; no entanto, a ilha da Boa Vista parece emergir com potencial para ultrapassar tal
hegemonia, particularmente agora que dispõe de aeroporto internacional (poderíamos também
considerar a ilha de Maio neste grupo, todavia, esta continua à margem do turismo caboverdiano
apesar do potencial para o turismo balnear).
Nas ilhas do Fogo e de Santo Antão, o principal atrativo é a natureza e morfologia,
nomeadamente as paisagens rurais, ora montanhosas ora verdejantes, ideal para o turismo de
aventura. Em Santiago e São Vicente, principais centros urbanos, reside a oportunidade de turismo
histórico e cultural, em particular a Cidade Velha em Santiago, que desde 2009 tem o estatuto de
Património Mundial da Humanidade da UNESCO. São Vicente tem também como trunfo o já
famoso Festival de Música da Baía das Gatas que se realiza desde 1995. Um outro tipo de turismo,
mais disperso e particularmente interessante, é o residencial. Cada vez são mais os turistas que
procuram investir na compra de uma segunda casa. Casas estas construídas com investimento
igualmente externo e que têm como mercado-alvo pessoas em idade de reforma de países europeus.
As características morfológicas de Cabo Verde intensificam as suas carências,
nomeadamente, a sua pequena dimensão, insularidade e descontinuidade territorial. Dada a sua
fraca capacidade produtiva e o seu mercado interno diminuto, este Estado depende fortemente da
importação. Cabo Verde vê-se condicionado adicionalmente pela sua distância geográfica a outras
economias e ao comércio internacional.
Se apesar de tais constrangimentos o turismo parece vingar, a resposta poderá residir nos
elementos diferenciadores que dispõe, nomeadamente, a estabilidade política, económica e social134
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
que vive, os bons indicadores económicos que apresenta, a proximidade face aos principais
mercados, sobretudo europeus. Podemos ainda destacar o seu posicionamento geográfico com
potencial de captar novos mercados no continente americano e africano, e ainda, claro, as
temperaturas médias que apresenta (25ºc).
Consideramos mesmo que um dos seus trunfos principais é a variedade e diversidade
paisagística e cultural existente nas suas ilhas, que potenciam vários tipos de turismo que vão além
do balnear. Trunfo este que, com a liberalização gradual dos transportes, mormente os aéreos,
parece começar a ser tida em conta. Ou seja, novos planos de uma estada turística diversa e múltipla
parecem ser oferecidas e procuradas.
3. Da Boa Vista descoberta a Cabo Verde Independente
Esta ilha da Boa Vista, de 620 km² e de clima ameno ao longo de todo o ano, está repleta de
longas e belas praias, sendo a maior Santa Mónica com 18km de comprimento. Foi descoberta
pelos portugueses a 3 de maio de 1460 e povoada apenas no final do século XVI. Enquanto ilha
mais oriental do arquipélago, é também a que está mais próxima do território continental africano.
A Boa Vista é conhecida, sobretudo, pelas suas características morfológicas e por ser o
berço da morna, estilo musical com influência afro-negra, tida como exemplo do modo de “ser e
estar do boavistense”, um modo que poderá tender a desaparecer: “(...) embora o património
histórico-cultural venha desempenhando um relevante papel na vida psico-social do boavistense,
muitos dos seus traços tendem a desaparecer” (Lima, 2002:23).
Da história desta ilha, assim como a de todo o arquipélago, não existem muitos registos pelo
que, as obras publicadas sobre a sua história e cultura são uma sombra da sua riqueza cultural e
património histórico. Dos poucos autores que compilaram um levantamento de nota registem-se
João Lopes Filho (1976)84, e António Germano Lima (199785; 2002).
São conhecidas as dificuldades históricas da população da ilha em sobreviver nas difíceis
condições climáticas da Boa Vista, forçando algumas vezes as suas populações a migrar, escapando
à fome e à miséria. Foram essas características deste povo que acabaram por o moldar de forma
diferente das outras ilhas, a que Lima (2002) chamou de “um perfil psico-sociológico específico”.
Ainda assim, em paralelo com as suas dificuldades, é ainda tido como um povo alegre cuja alcunha
Kabrere terá origem na comercialização de gado caprino. Alcunha essa que é tida ainda hoje com
84 Filho, João (1976) Cabo Verde: Apontamentos Etnográficos, Edições do autor: Lisboa. 85 Lima, Germano (1997) Boavista: Ilha de Capitães (História e Sociedade), Spleen Edições: Praia.
135
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
motivo de orgulho.
Nesta ilha a iniciativa de povoamento “sério” só aconteceu tardiamente, especificamente
entre os finais do século XVI e início do século XVII. Até aí, os povoados existentes eram de
caçadores e escravos-pastores que ocasionalmente recebiam seus exploradores ou colonos que
arrendavam a ilha à coroa portuguesa. Uma prova disso é que em 1580 viviam apenas 50 pessoas
em toda a ilha (Kasper, 1987). Um dos acontecimentos chave que acelerou o processo de
colonização e de expansão dos assentamentos e suas comunidades, foi a abolição da escravatura em
1842, sendo que, em 1850, contavam-se já 2305 “almas” em 461 fogos86.
Desenvolvendo-se a um ritmo acelerado, em 1843 assim falava de Sal-Rei Lopes de Lima (…) '...apovoação de Sal-Rei, hoje tão notável pela nobreza e grande quantidade de suas casas e armazéns, deconstrução europeia, que começa a rivalizar neste ponto com a Vila da Praia (…), cresce cada dia emriqueza e em edifício e em importância social.' (Lopes de Lima, 1843 citado por Lima, 1997:75)
Os centros religiosos da ilha foram edificados entre os séculos XVIII e XIX, período de
crescimento económico na ilha, sendo o principal a Igreja de S. Isabel (1857), padroeira de Sal-Rei,
capital regional. Nas festas dedicadas a esta santa ainda hoje se praticam alguns desportos
tradicionais, como a corrida de cavalos e a corrida de regatas.
Tal como nas outras regiões e territórios do então império colonial português, a
evangelização toldou muitas das práticas religiosas tradicionais, mas sem nunca as conseguir abolir
totalmente. Em particular, a prática de feitiçaria e outras práticas supersticiosas. Este fenómeno
cobre tanto a feitiçaria com propósitos de bem (benfazeja) como de mal (malfadeza):
A feitiçaria também se aprendia. Neste sentido, apurámos que antigamente, quem quisesse aprender a arteda feitiçaria, podia fazê-lo mediante um pagamento a preço de ouro. Houve quem na Boavista tivessepago um boi e uma cama para aprender a arte da feitiçaria só para se vingar de alguém. (Lima, 2002:60)
Daí que as práticas religiosas tradicionais ainda influenciem algumas festividades hoje
assimiladas pela religião dominante, a católica. As festas tradicionais estão associadas a santos
padroeiros, festividades típicas do catolicismo como Natal, Páscoa, etc. Estas festas terminavam e
terminam sempre com música e dança. Antes eram lubrificadas com o grogue localmente
produzido, hoje com bebidas alcoólicas mais comuns como cerveja:
Assim, sejam quais forem as suas origens e as influências nelas exercidas, as manifestações religioso-supersticiosas e sócio-culturais dessa Ilha ganharam foro próprio e, embora as emoções de outroravenham decaindo ano após ano, a tradição das suas comemorações ainda se mantém. (Lima, 2002:316)
No que se refere às riquezas do solo, a Boa Vista foi desde cedo identificada como tendo
86 De acordo com o Dicionário Geográphico das Províncias e Possessões Portuguezas no Ultramar, segundo Lima,1997:72.
136
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
grande potencial para a produção de gado, dada a grande estepe de vegetação que a época das
chuvas permitia, ideal para a pastagem. Para além da pastorícia, alguma plantação de algodão foi
implementada na ilha sem grande sucesso. Na verdade, o auge económico da ilha surgiu apenas no
início do século XVII com a chegada dos ingleses à ilha. Estes iniciaram a exploração das salinas de
Sal-Rei e a produção de urzela para a indústria têxtil.
O auge económico que atravessa a ilha e a sua população declina rapidamente a partir do
primeiro quartel do século XIX, devido a alterações político-económicas em Portugal e nos
principais países industrializados. Situação agravada pelo investimento em outras ilhas, como a ilha
do Sal. Foram necessários quase 80 anos para se sentir alguma recuperação económica, esta,
sobretudo, pela mão de casas como a de Ben'Oliel e Martins Carvalho & Filhos:
Do Século XX aponta-se o exemplo da família de David Ben'Oliel que, para além dos bens deprodução, como casas comerciais, gados, terras e navios, era detentor de vários bens sociais quesimbolizavam a classe alta boavistense da época. De entre esses bens, David Ben'Oliel foi oprimeiro abastado da Ilha a importar um automóvel ligeiro; era praticamente dono de uma praia(…). (Lima, 1997:226)
Esta recuperação assentou na pesca, em particular de baleia, mas também na salga de peixe.
A purgueira, ideal para produção de azeite e para iluminação, foi outro dos recursos importantes
nesta fase de reacendimento da economia local, assim como a produção de cal, objetos tradicionais,
lã de carneiro:
[Bofareira] (...) não chegava a 10 casas! (...) eu tinha 10 irmãos! Naquele tempo havia quem tinha casasde cal, exportava cal e sal... carne, sal, lenha, urzela... produtos que se exportava... (...) de árvores, depoieiras, espinha... mais forte em Tarafes... (...) BFHRNB95
Era um pouco diferente. (...) Já antes a gente era de horta e animais. As casas não eram como agora, (...)eram com caule, e havia pessoas que trabalham na produção de caule, que nós chamávamos de forno. (...)Na vila era mais pescadores (...), também tinha o sal, sim. (...) Mas já ninguém faz isso, agora tem muitaconstrução nova e... já não se trabalha o sal aqui. (...) Antigamente aqui eram casas só de pedra com palhae depois os emigrantes, como estávamos a falar, começaram a fazer em condições. (...) A situação, graçasa Deus, foi melhorando e já é com coisas diferente, mas antes era quase todas dessa maneira. URHREB51
(...) Boa Vista era assim, maridos agricultores e pescadores e daí se aguentava. Havia grande comércio dailha mas praticamente uma pessoa, o Sr. David Benoniel. Fazia-se o comércio com essa casa. Haviatambém a fábrica, a estrutura ainda lá está. Há 15 ou 20 anos deixou de funcionar, era uma fábrica deconserva. Também havia muitos gados e exportava-se pele de animal, sal, o sal-rei mesmo. Daí talvezvenha o nome. URHRNB46
A saída de Martins e de outras famílias preponderantes em função de promessas de melhor
investimento na ilha de S. Vicente (e noutras paragens), onde um novo porto faria redundar a
preponderância de Sal-Rei, acabou por ditar um novo e lento declínio económico e social da ilha.
Período seguido por forte migração da população local para outras ilhas e países, na década de
137
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
1950/60, provocando um sentido êxodo migratório que lentamente afundou a frágil economia local
até à data da independência em 197587:
Anotamos contudo que o maior responsável pela decadência demográfica da Boavista, assim como detodo o Cabo Verde, é o próprio descalabro do império marítimo português e do seu comércio,nomeadamente com o Acto da Conferência de Berlim, o que traria reflexos desastrosos à economia dailha da Boavista que, de entre outras consequências negativas, veria a sua população diminuirbruscamente. (Lima, 1997:79)
Da emigração forçada, às catástrofes naturais e humanas, da crise do império português,
cujos ideais se arrastaram no Estado Novo, a Boa Vista sofreu uma fuga de capital cultural, social e
humano nas décadas anteriores e posteriores à sua independência. Por isso, António Germano Lima
lamenta: “(...) entre 1953/1973, foi vendo uma parte do seu capital cultural voar, (...) quem aprende,
hoje em dia, a tocar violão na Boavista? Quem aprende a dançar mazurca?” (Lima, 1997:236).
A independência foi conseguida com a queda do Estado Novo em Portugal, após 13 anos de
guerra colonial nas províncias da África Continental, e ditou o fim de mais de 500 anos de história
conjunta. Este processo moroso foi alimentado pelo contexto político-económico mundial,
nomeadamente, pelo confronto dos blocos ocidentais e soviéticos que, no caso do segundo bloco,
ativamente interveio no treino e financiamento das forças independentistas.
A pós-independência é precisamente o período de maior interesse nesta investigação daí que
sugerimos uma leitura aprofundada de Lima (2002) para um olhar mais minucioso à história da Boa
Vista até esta data. Assim, dada a referida influência do bloco soviético no processo de
independência de Cabo Verde, sem surpresa o país rapidamente adotou o modelo de
desenvolvimento socialista assente no isolacionismo face ao ocidente, controlo dos mercados e da
produção, nacionalização de bens, empresas e indústrias privadas por um partido único.
Este movimento político-económico cessaria apenas em 1992, com as primeiras eleições
multipartidárias livres, e criaria a base para o investimento público-privado no turismo e serviços
dependentes. Esta foi também a década que viu com gradual consistência a chegada de turistas
aumentar ao ponto de se avançar a construção do primeiro Hotel de dimensões médias na ilha e, à
data, um dos maiores do país, o Marine Club:
Desde sempre que a principal atividade foi a agricultura, pesca e pecuária. Antes não havia nada deturismo. Só a partir dos anos 90 com a criação dos primeiros hotéis é que começaram a inverter essasituação URHRNB30
(...), era uma ilha pacata com menos habitantes que todas as ilhas. Em termos de desenvolvimento de
87 População Recenseada em 1970 era de 3569 habitantes, número que diminuiria para os 3375 dez anos mais tarde(1980) [citado por Lima, 1997:73].
138
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
turismo não havia infraestruturas. Havia uma pousada pequena (...) e as pessoas vinham... Durante adécada de 80 os turistas eram mais franceses, e portugueses também, vinham muitos iates, muitos iates.(...) Meu pai era artesão. (...) Na nossa casa todos os turistas que vinham à ilha passavam lá para comprarprodutos em cascas de tartarugas! (...) As pessoas eram muito acolhedoras. Quando vinham os turistas as pessoas estavam dispostas a recebê-las. As pessoas eram muito abertas,mesmo para pessoas das outras ilhas. Era muito tranquila, não havia essa violência, e as pessoas deixavama porta aberta. Sal-Rei vivia da pesca, havia muito peixe. (...) Só que ao nível de desenvolvimento estavaao abandono. Não se apostava na ilha e não se dava importância ao turismo! (...) Havia poucas ligações debarco e poucos aviões por semana. (...) Só em 1981 é que é eletrificado Sal-Rei! URMRNB43b
Nos anos 80 era uma Boa Vista... era uma ilha calma, assim, estávamos num paraíso onde todas aspessoas que falavam lá fora reconhecíamos logo pela voz. Ouvia-se um carro reconhecíamos pelo motor,eram tão poucos que conhecíamos quem era! As portas e as janelas ficavam abertas durante o dia, e noverão durante a noite também. Quem precisasse de alguma coisa entrava em casa e apanhava e depoisvinha lá pôr! Uma Boa Vista de dunas altas e brancas! De muitas plantações das dunas, entre as dunas... mais verde nas ribeiras! Já em 93 na ribeira do Rabil aopé da estrada os agricultores faziam agricultura naquela ribeira que é a maior bacia hidrográfica de CaboVerde! Havia melão, melancia, os frutos que davam todos! A gente passava e apanhava o que precisasse edeixava o resto lá! Era uma Boa Vista de uma comunidade de família onde tudo era diferente!URMRNB46
Para muitos locais os dois pontos altos para a ilha na década na pós-independência foram
sem dúvida a construção do Marine Club e a eletrificação da ilha. Ainda que no caso da
eletrificação muitos sublinham que esta apenas foi acelerada por pressão dos emigrantes, que por
iniciativa privada já começavam a procurar instalar a rede elétrica em algumas povoações.
Sobretudo emigrantes que haviam partido na década de 1960 para trabalhar para embarcações
pesqueiras europeias, nomeadamente, holandesas, espanholas, portuguesas entre outras:
Na Boa Vista na época ainda havia alguns emigrantes que mandavam remessas ou se vivia do gado, dapesca, uma agricultura ainda fraca mas que dava para safar porque não havia muita gente. URHRNB48
Boa Vista desde a independência está a soluçar, passo a passo. Agora a partir dos anos 82 ou 85, data emque… aqui na Boa Vista não tínhamos luz… foi em 85 que começaram a pôr luz na vila e no nortetambém porque um grupo de emigrantes reuniu para pôr eletricidade no norte e depois o governo sentiu-se envergonhado e pôs luz [na vila]. Eles reuniram e deram 100 escudos cada um! Naquela data 100escudos ainda era muito dinheiro… (…) Nós tivemos luz aqui [BF] em 95! BFHRNB44
Vivendo sobretudo da produção escassa das atividades tradicionais e do comércio de
eventuais excedentes de produção, a população da Boa Vista ainda recorda as dificuldades de
transporte de produtos e pessoas pelas estradas e caminhos que ligavam as povoações do interior a
Sal-Rei:
Vender na vila. (…) [De burro] era um bocado de caminho! Agora tem carro. Umas 3 ou 4 horas decaminho [de burro] era longe. O caminho era antes, do deserto, estrada de pedra aquela. Era dificuldade,levar carvão, lenha, para vender na vila! [risos] Dificuldade... Agora a coisa está melhor! Coisa melhora.JGHRNB73
Os primeiros visitantes pós-independência foram os voluntários franceses que, num
139
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
protocolo de apoio médico, passavam algumas semanas por ano na ilha. O seu acampamento de
apoio médico era montado no exterior do centro da cidade, junto aos novos bairros edificados para
alojar turistas de residência na praia de Cruz. Gradualmente estes visitantes foram ultrapassados
pelos turistas de aventura que chegavam à ilha de barco, em embarcações particulares, ou em voos
de domésticos via Sal:
Os primeiros turistas eram sempre relacionados com os franceses. Quando éramos crianças, todo opessoal [turistas] eram considerados franceses! Eram turistas dos veleiros. Vinham aqui, passeavamsempre, faziam caminhadas, nunca faziam esse tipo de coisas que fazem agora de excursões nem nada.Era sempre de mochila às costas pelas ruas. Era um tipo de turista mais próximo da população,cumprimentava as pessoas, as crianças... Era bom encontrar essas pessoas diferentes na ilha! URHRNB36
Com a chegada dos primeiros turistas a população da Boa Vista teve muita abertura. Quando chegavamvinham sempre em missão de ajudar também a população da ilha, não vinham só pelo turismo! Vinhampara conhecer e ajudavam a população, como por exemplo, os primeiros turistas do Marine Club vinhamtambém fazer acampamentos ao lado do hotel. URHRNB30
Foi uma coisa diferente ter turistas a passear no meio da vila a conversar. Havia um contacto que já não háhoje. (...) Tinha uma sobrinha com 4 anos e todos os estrangeiros que via dizia "Olha tia um francês!", erauma novidade para ela. Todo português era um francês [risos]! Era uma relação diferente com turistas. Osturistas estavam na praia e nós aproximava-mo-nos e descobríamos a nacionalidade através do livro quetinham na mão! URMRNB46
O turismo de antigamente na Boa Vista, claro era com menos gente que agora e... mas era um turismomais perto da população... andavam de povoação em povoação! (...) Chegavam e passavam horas,compravam água e coca-cola e ficavam um tempo e falavam... (...). JGHRNB49
Este hotel, o Marine Club, sem regime tudo-incluído foi, rapidamente acompanhado e
seguido por outros novos pequenos hotéis e residenciais em Sal-Rei, sendo um período rotulado
pelos locais como o 'bom turismo', em oposição ao turismo que conheceram depois de 2006. Este
período de 'bom turismo' foi caracterizado ainda pela presença de empresas e investimento privado
italiano, para turistas italianos:
Tudo influência do que aconteceu no Marine Club! Do turismo do início, porque era só italianos,antigamente ficam poucos portugueses, poucos ingleses, eram contados pelos dedos. Em 100%, 90 eramitalianos e os outros 10 eram divididos. URHRNB31
Na altura quando vinha de férias dizia-se mesmo que 'nesta ilha tem mais italianos que boavistenses!' Erasó italianos. (...) As pessoas começaram a ter mais interesse em trabalhar no turismo. Víamos já pessoas afalar italiano corretamente. (...) Todos os sítios mais frequentados acabavam por ser de italianos. Erameles que faziam movimentar! URHRNB36
Bom... os portugueses tinham partido... os italianos começaram a vir porque em Itália há muitoscaboverdianos a trabalhar! Agora, os primeiros devem ter vindo por convite desses caboverdianos emItália. Começaram primeiro a Sal, um voo, Bergamo-Praia-Sal. Depois desenvolveu-se o turismo no Sal.Quando os italianos começaram a ver Boa Vista (...) vieram investir cá... era muito complicado investir cámas era muito bonita como ilha! Começaram a vir mais italianos não só em passeio turístico mas paratrabalhar cá! URHREB37
140
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
Os turistas visitavam, na altura, os italianos, e era estranho ver pessoas de outra nacionalidade aqui nanossa ilha. Era uma coisa difícil de explicar, despertava o interesse. E estavam mais próximo das pessoas,era mais consumista do ponto de vista local. Exploravam mais o mercado boavistense ao nível dosprodutos locais e da cultura boavistense. Já agora nós temos uma cultura de turismo completamentediferente. É percetível! URHRNB27
O turista, pelo menos o francês que recordo do meu período de infância era, como vou dizer... um turistamais próximo da população local. Porque na altura não havia hotéis, havia uma ou duas pensões... nãoestavam fechados. Havia sempre ali a circular nas ruas e tinha mais contacto. Já o turismo, já o italiano,era mais de hotel... o turismo italiano... antes da construção dos hotéis maiores eram poucos e depois oMarine Club, e os que se seguiram, os turistas estavam dentro do hotel. Vinham para aproveitar o Sol e apraia... e via-mo-los na rua mas não havia aquele contacto... não dava para aproximar, era já turismo decomércio. Não era como o turista francês que vinha para descobrir. Ali [com os italianos] a ilha já eravendida, digamos assim! E depois o turismo all-inclusive que esta enclausurado nos hotéis e quepraticamente não se vê, e por conseguinte não há qualquer contacto. URHRNB36
A hegemonia italiana, apesar do curto período, teve um profundo impacto na economia e
cultura locais. Inúmeros funcionários das empresas que inicialmente investiram na ilha, são hoje
empresários de sucesso que conseguiram aproveitar as oportunidades de negócios que se
multiplicaram com a abertura ao turismo internacional. A influência destes elementos estendeu-se
também à forma como o turismo é entendido e percecionado.
Alguns sim, nem todos tinham aqueles pacotes! Tinha de ir no Sal e do Sal… (…) [para a Boa Vista].Naquela época também a questão das casas. Aí que mudou total em termos de residências aqui em Sal-Rei! Ou mesmo na Boa Vista de uma forma geral. As casas se alugavam muitas vezes em termosirrisórios! Não tinha quem ocupá-las! Mas de repente com isso… Marine Club, e lá também com essepessoal dessas pequenas pensões que estavam todas cheias… pessoas começaram a ver que podiam fazernegócio nisso! Os cabo-verdianos não conseguem bem ver essas coisas, eram os estrangeiros que alugavam uma casa poruma quantia que não era tão alta assim por mês ou ano. Mas sabiam que naquela época vinham os turistasalugar com pequeno-almoço e assim, e conseguiam lucrar com isso! Quem começou esses negócios erampessoas italianas que vieram para cá, muitas vezes como turistas ou para trabalhar nessesempreendimentos turísticos como o Marine Club (…) e depois desligavam-se da empresa e fixavam-seaqui! Hoje em dia são vários. Temos o Pancinni que se envolveu em outras áreas de construção (…) eoutros que viram a oportunidade e foram ficando. Ou foram e voltaram para se estabelecer! JGHRNB41
O referido 'bom turismo', época dourada de desenvolvimento económico local e de muitas
oportunidades para os nativos da ilha, é comummente comparado com o turismo pós 2006,
classificado como 'mau turismo', o 'all-inclusive'. É dizer, o turismo massificado de serviço tudo
incluído. Este sentimento está sobretudo generalizado entre os nativos da ilha e será abordado com
maior profundidade no capítulo seguinte:
Eu comecei a sentir as mudanças na ilha da Boa Vista quando eu vim trabalhar em finais de 96. Eu tive oimpacto da nova Boa Vista, completamente diferente, mais pessoas, mais carros, empresas a abrir todosos dias, novos projetos, pessoas com outra atitude na vida! Lembro-me quando era jovem que as pessoaseram muito tranquilas, não se preocupavam com nada. Se houvesse emprego havia, se não, é igual.Ninguém com muitas ambições! URHRNB31
No inicio dos anos 90 a vila de Sal-Rei, praticamente era muito diferente de hoje, não tinha quase nada
141
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
comparado com a atual! Em termos de infraestruturas não havia muita coisa... umas coisas básicas para apopulação. Mas a partir dos anos 95 a 2000 começaram a ser construídas algumas infraestruturas básicaspara a população e começou a haver algum desenvolvimento. Com a abertura do aeroporto, o turismotransformou-se aqui na ilha da Boa Vista! Foi o momento mais importante! URHRNB30
Depois dos franceses veio esse boom de italianos. (...) Quando voltei depois, já tinha o hotel LukaKalema, foi mais ou menos em 98, que eu pessoalmente comecei a ver mais movimentação de turistasaqui na ilha. E agora já não é só franceses e italianos. (...) Os italianos dominaram o mercado do turismona Boa Vista até antes da construção do hotel RIU. Até à construção era basicamente italianos. O hotelRIU inaugurou-se em 2007 se não estou em erro, portanto até 2005, 2006 era dominado pelos italianos.URHRNB36
Antigamente conhecia todos os habitantes, agora é muito complicado. "Aquela senhora é filha de fulanoou senhor", mas agora é muito diferente! A ilha cresceu e modificou-se muito! CTHRNB45
Da mesma forma, também existe a ideia do 'bom turista', naturalmente, associado ao 'bom
turismo':
Era um turismo em 2001 era bem diferente. Havia interação com a população residente. A Boa Vistaantigamente que tinha muito menos turistas que hoje, mas era um turismo que tinha uma interação com apopulação, que procurava alguns locais de diversão, digamos que, mesmo comparando com hoje, aspessoas dizem que era um turismo que deixava muito mais rendimento! Pelo menos na população local.JGHRNB35
No início… como dizer, os turistas eram mais ativos, tinham mais contacto com a população, não é comoagora que vão para os hotéis, é all-inclusive… ficam aí dentro e já saem menos. Mas antigamente não,vinham e por exemplo, era só meia-pensão, já saíam, frequentavam os restaurantes, os bares, à noite saiampara jantar e… agora já não acontece a não ser à sexta-feira que é o dia que o pessoal sai para divertir.URHRNB31
Isto apesar de exceções que encontram nos turistas do tempo do “bom turismo” os “não tão
grandes turistas”. Assim, o turista menos bom é tido como aquele que consome menos e assim não
deixa tantos rendimentos na ilha e no país:
Falando de turistas, antes recebíamos turistas franceses, na altura eu era ainda criança. Até porque paraum boavistense sempre que aparecia uma pessoa de cor clara era chamado de francês! Sempre assim.Depois passámos a ter turistas estrangeiros que se tornaram investidores. Passaram a ser donos de hotéis,de residências e essas coisas, mas com a evolução do tempo (...) investiram aqui [os espanhóis]. Houveuma evolução. Os franceses como turistas gostam de gastar mais na parte de beleza, no SPA, porexemplo. (...) Os italianos também não são grandes turistas, não gostam muito de gastar. Mas com a vindade Espanhóis, temos alemães e ingleses que quando chegam à ilha deixam uma certa receita na ilha ondeestão alojados. URHRNB29b
Em suma, representa o período tido como áureo do turismo e que termina no ano de 2006
com a expansão do aeroporto e com a construção dos primeiros hotéis com regime tudo-incluído,
nomeadamente o Ventaclub e o Riu Karamboa:
A principal fase foi a abertura do primeiro hotel, depois o Ventaclub (...). Nós fomos muito ajudados como aumento dos quartos do Sal porque havia só um avião de Itália. Quando o avião enchia todos os quartosde Santa Maria então os a mais vinham para cá. (...) E com muita dificuldade, através de pequenos aviõesda Cabo Verde Express, chegavam cá... era muito cansativo. (...) Depois, o Governo acreditou no
142
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
aeroporto internacional na Boa Vista. (...) Antes, o aeroporto era curto e perigoso com a montanha ali.Depois, lançado este projeto, fizeram um contrato com a RIU. Se não fosse o aeroporto não havia esseinvestimento. URHREB51
A mudança foi depois da abertura dos grandes hotéis e do aeroporto! (...) Chegou gente de fora e agoraestá tudo diferente. URHREB51
Até à abertura do aeroporto internacional ficou um bom mercado... digamos que a economia caboverdianada Boa Vista trabalhava em tudo... restaurantes, hotéis, bares.. e depois com o RIU Karamboa as coisasmudaram um pouco! URMREB60
Na altura, o único hotel que tinha era o Marine Club, e até tinha a sua graça porque havia um dia dasemana que as pessoas podiam entrar lá e coiso... Depois já estava a aberto, por exemplo, o Ventaclub,havia mais pessoas... Não quero cair no cliché mas foi depois da abertura dos grandes hotéis! Notei assimuma grande mudança. Parecia que tinha mais pessoas estranhas que locais! Passavas na rua e "Olá, olá!",passado algum tempo era tanta gente que já não se via... URHRNB36
Eu acho que nos últimos anos o tipo de turismo mudou muito! Nos primeiros anos, eu costumo chamar,mais aventureiro... pessoas que queriam descobrir lugares novos onde não havia quase nada e só por issojá era interessante! Agora, com a abertura do aeroporto internacional e com a abertura destas grandescadeias, com o custo do pacote tudo incluído começaram a chegar todas as pessoas (...) e querem umasemana de férias sem se preocupar com nada e então acho que os hotéis têm tudo-incluído e oferece isso!OPFREB41
Olhando para os últimos sete anos na Boa Vista, podemos verificar como o número de
hotéis, da pequena à grande dimensão, se multiplicaram. A ilha passou a pertencer ao circuitos
comuns de turismo internacional, em particular Europeu, em grande parte pela mão de grandes
operadores, com destaque para a TUI. Esta empresa alemã é responsável pelo grosso dos turistas do
centro e norte da Europa, em particular do Reino Unido, Alemanha e países nórdicos.
4. Dados do Turismo na Boa Vista
Foi realizado um estudo em 1967 sobre a viabilidade da ilha como destino turístico, em
particular pela companhia Atlantic Interplan que manifestou interesse em criar infraestruturas para
albergar 5000 turistas, incluindo um aeroporto internacional. Neste sentido, em 1969, o Ministério
do Ultramar tomou a iniciativa de legislar para que uma sociedade anónima tomasse controlo dessa
exploração (Lima, 1997). Do projeto não se passou, mas hoje são mais de 5000 os turistas que
semanalmente visitam a ilha da Boa Vista.
De acordo com os planos e previsões da Sociedade de Desenvolvimento Turístico das Ilhas
da Boa Vista e Maio (SDTIBM) existem três ZDTI (Zonas Desenvolvimento Turístico Integral), as
de Chave, Morro de Areia, e Santa Mónica. Essencialmente áreas disponíveis para o
desenvolvimento de infraestruturas hoteleiras e que no total contabilizam mais de 5700 ha. A ZDTI
de Chave, fica na costa oeste da ilha, cobre do sul da Sal-Rei até quase toda a extensão da praia de143
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
Chave onde se encontram já três cadeias hoteleiras internacionais em pleno funcionamento e uma
quarta de forma intermitente, e onde atualmente se executam obras de expansão.
A ZDTI de Morro de Areia, na ponta da praia de Chave, não tem qualquer infraestrutura,
nem hoteleira, nem de acesso, e também não tem qualquer projeto previsto no futuro próximo.
Finalmente, a tão desejada ZDTI de Santa Mónica que fica a sul da ilha e que, essencialmente,
cobre toda a praia do mesmo nome com 18 km de comprimento. Nesta ZDTI está instalada um dos
principais hotéis da ilha o Riu Touareg, o hotel mais recente, edificado em 2011, e encontram-se
algumas infraestruturas de acesso e de planificação para novos empreendimentos.
Esta última ZDTI ocupa mais de metade da área das ZDTI, com 3432 ha, quase dois milhões
de metros quadrados de área bruta de construção disponível. De acordo com os planos da SDTIBM,
a Boa Vista, nas suas ZDTI, teria a capacidade de albergar mais de 44 mil quartos, 28 mil dos quais
em Santa Mónica. De acordo com o Guia do Investidor disponível no sítio desta sociedade, calcula-
se que, ocupadas as ZDTI, a ocupação turística se situaria acima dos 30 mil visitantes, provocando
direta e indiretamente um incremento de população que ultrapassaria os 120 mil habitantes
(STDIBM, 2010). Na verdade, em junho de 2014, durante o 1º Fórum para o Turismo Sustentável
da Ilha da Boa Vista, um representante desta sociedade, responsável pelo setor das infraestruturas
afirmou existir uma projeção de 250 mil habitantes por volta do ano de 2085!
Falar da evolução do turismo na Boa Vista implica comparar com a ilha do Sal, o principal
motor turístico do país até meados da década de 2000. Se considerarmos a evolução do número de
estabelecimentos em ambas as ilhas (figura abaixo), verificamos um aumento do número de
estabelecimentos em ambas as ilhas, sendo que a Boa Vista se tem vindo a aproximar dos valores da
ilha do Sal.
144
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
Nesta linha, também o número de camas, quartos, e capacidade de alojamento são ainda
significativamente superiores no Sal face à Boa Vista. Basta um olhar sobre a evolução do número
de hóspedes, que cruze estas ilhas e o total nacional, e duas conclusões saltam à vista: primeira, a
Boa Vista está novamente a curta margem da ilha do Sal, apesar do número mais reduzido de
alojamentos; segunda, ambas as ilhas acolhem mais de 401 mil dos 539 mil turistas que visitam o
arquipélago de Cabo Verde.
145
20002001
20022003
20042005
20062007
20082009
20102011
20122013
2014
0
100.000
200.000
300.000
400.000
500.000
600.000
Evolução Comparativa do Número de Hóspedes
Boa Vista, Sal e Cabo Verde (2000-2014)
Boa Vista
Sal
Cabo Verde
Figura 5.5: Evolução Comparativa do Número de Hóspedes (2000-2014)
19992000
20012002
20032004
20052006
20072008
20092010
20112012
2013
0
5
10
15
20
25
30
35
40
Evolução Comparativa do Número de Estabelecimentos
Sal e Boa Vista (1999-2013)
Boa Vista
Sal
Figura 5.4: Evolução Comparativa do Número de Estabelecimentos (1999-2013)
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
A ilha da Boa Vista foi alvo de investimento público e privado direcionado para o turismo
massificado, pelo que, a esmagadora maioria destes hóspedes ficam alojados em quatro grandes
complexos hoteleiros de regime tudo-incluído. Um esforço que adveio da construção do aeroporto
internacional em 2007 e que abriu caminho para o rápido surgimento destes complexos. Daí, a
rápida curva do número de hóspedes desde então. Um outro dado que corrobora e reforça a
preponderância destes grandes complexos hoteleiros, de capital europeu, é o facto da percentagem
de ocupação da Boa Vista ser avassaladora quando comparada com o país ou com a ilha do Sal.
Ultrapassando uns incríveis 80% à três anos consecutivos!
Num espaço de tempo relativamente curto, a ilha, e o país, têm lugar de destaque nas
preferências dos turistas, em parte também pela retirada de outros destinos competitivos como
Tunísia e Egito, em virtude da escalada da Primavera Árabe em vários países do norte de África e
Médio Oriente, que desviaram milhares de turistas para destinos como Marrocos e Cabo Verde:
Boa Vista passou muito tempo esquecida! Quando passava uma notícia... ainda hoje, tem um minuto oumenos e depois ficamos todos aborrecidos porque não mostrou nada! Boa Vista sempre foi uma ilhaassim, e de repente despertaram e lembraram-se da Boa Vista! BFHRNB25
Era uma ilha calma, uma das que tinha menos população em Cabo Verde. A terceira menos grande. Maséramos 4 mil na ilha. Podias deixar a porta aberta e podias estar ali. Depois começou a mudar e perdemosa nossa tranquilidade e a confiança! Era uma ilha de morabeza! Era só dunas, tamareiras... ninguémqueria saber da Boa Vista em Cabo Verde, só de férias! Agora toda gente... a Boa Vista virou lema demoda! (...) Boa Vista é o centro de Cabo Verde agora! URHRNB33
146
20002001
20022003
20042005
20062007
20082009
20102011
20122013
2014
20
30
40
50
60
70
80
90
Evolução Comparativa da Taxa de Ocupação
Boa Vista, Sal, Cabo Verde (2000-2014)
Boa Vista
Sal
Cabo Verde
Figura 5.6: Evolução Comparativa da Taxa de Ocupação (2000-2014)
V – Cabo Verde e os Trilhos para a Abertura
A mudança está presente nos discursos dos locais que ainda se mostram surpresos pela sua
rapidez e dimensão:
Havia mais postos de trabalho. Aliás o Karamboa foi maioritariamente construído por mão de obraestrangeira! E de repente hoje temos 38 voos semanais, internacionais... foi uma coisa... depois dainauguração do aeroporto internacional e da abertura dos hotéis foi uma coisa que a gente não esperava,muito rápido! URMRNB46
Isso já foi em 2007, na segunda vez. (...) Era uma aldeola quando chegámos a primeira vez, temevoluindo. Uma coisa pequenininha com dois restaurantes que um deles hoje em dia já nem existe,curiosamente! Cresceu imenso ao nível humano! Primeira vez que vim cá tinha 2000 habitantes! Dizemque já vai em 11 ou 10 mil! É muito significativo! URHOP47
A mudança é precisamente o ator principal desta investigação: as alterações no quotidiano
da Boa Vista, fruto direta e/ou indiretamente do crescimento do turismo neste espaço, e as suas
consequências, impactos imediatos e impactes que se vão desdobrar no futuro. Estas mudanças
poderiam ser descritas numa narrativa estatística de dados macro-económicos, mas ignorariam as
particularidades do ilhéu, o perfil das suas gentes, e sobretudo, a voz das suas gentes. No Anexo
“D” encontram-se algumas fotografias retiradas pelo investigador com o propósito de contextualizar
também visualmente a ilha da Boa Vista e algumas das suas características.
No próximo capítulo apresentamos essas mesmas vozes, e como elas interpretam as
mudanças no espaço da sua comunidade. Daremos lugar às suas perceções procurando determinar
como veem os turistas, quais os impactos a que mais atenção atribuem, quais as prioridades de
intervenção que apontam e qual o futuro que anteveem para a Boa Vista. Tudo isto cruzando os
dados disponíveis com excertos das entrevistas realizadas, e com outras investigações realizadas
dentro e fora de Cabo Verde.
147
VI – Perceções das Motivações em Análise
VI – Perceções das Motivações em Análise
A primeira questão do guião de entrevista aplicado procurava determinar a perceção que os
entrevistados tinham dos fatores motivacionais que levavam os turistas a selecionar a Boa Vista
como o seu destino de férias. Das noventa e seis entrevistas aplicadas recolheram-se duzentos e
dezasseis fatores que determinariam esta seleção, os quais foram agrupados em dez 'motivações';
estas destacadas no quadro abaixo por ordem decrescente de frequência, foram divididas em três
tipos: de ordem Ambiental, nomeadamente, "Natureza", "Clima", e "Biodiversidade" (a rosa);
Social, como, "Cultura", "Tranquilidade", "Desporto", e "Estabilidade" (a amarelo); e ainda
Económico, "Propaganda", "Hotelaria", e "Proximidade" (a verde).
No mesmo quadro podemos verificar que os dois fatores mais mencionados, e portanto, mais
determinantes na perceção dos entrevistados, são fatores ambientais, atingindo uma percentagem
acumulada de 54% do total de menções, isto é, ligeiramente mais de metade, dominando assim as
perceções totais por larga vantagem.
Seguidamente, constatamos que os seguintes dois fatores mais determinantes foram sociais,
curiosamente com o mesmo número de menções cada. Se adicionarmos todas as menções de índole
social verificamos que reúnem praticamente metade do total das menções do fator ambiental
contabilizando cerca de sessenta e quatro. Estas, por sua vez, são bastante mais numerosas que as de
caráter económico que totalizaram apenas cerca de trinta e seis; ainda assim, podemos verificar que
tanto o quinto como o sexto fator mais mencionado são desse mesmo critério económico.
149
Quadro 6.1: Perceção das Motivações
VI – Perceções das Motivações em Análise
Analisemos o fator motivacional seguindo uma análise ponto por ponto, e variável por
variável, procurando determinar as tendências e que variáveis são ou não determinantes para cada
ponto. O primeiro refere-se à perceção que os entrevistados têm quanto ao que leva os turistas a
escolher a ilha da Boa Vista como destino de férias num mercado tão competitivo como é o do
turismo.
Resta referir que os dados percentuais apresentados nas análises de conteúdo seguintes
referem-se à percentagem interna das variáveis sócio-demográficas, ou seja, referem-se não aos
valores absolutos de cada critério mas sim à percentagem relativa interna dos mesmos. Por
exemplo, se considerássemos os valores absolutos em termos de género, o masculino seria
predominante de forma praticamente invariável dado que a maioria dos entrevistados são homens
(cerca de 60%). Assim, interessa a percentagem interna de homens e de mulheres que consideram
um dado critério, e não o número absoluto de homens ou mulheres que o mencionaram. Só assim se
garante que os dados apresentados não sejam inquinados à partida.
1. Por que motivo escolhem os turistas a Boa Vista para fazer férias?
Podemos partir para uma análise aprofundada dos dados referentes às perceções
motivacionais tendo em conta que as seis primeiras motivações se encontram emparelhadas por
uma ordem de importância que revela que, por larga margem, as motivações dos turistas para visitar
a ilha têm origem, na perspetiva dos entrevistados, em fatores predominantemente ambientais e,
ainda que com menor peso, em fatores sociais.
Perceção da Motivação: Natureza
Há que sublinhar a beleza natural desta ilha, mormente, no que toca às suas belas praias
beijadas por uma suave ondulação, ideal como destino de férias balnear. O magnífico Deserto de
Viana também merece uma atenção, ou não fascinasse qualquer um uma área isolada no centro da
ilha coberta por um manto de dunas de areia branca trazidas pelos ventos do Saara e que ali
caprichosamente repousam.
Ou ainda as longas e virgens praias do sul da ilha, apenas acessíveis para carros com tração
às quatro rodas, como a deslumbrante praia de Santa Mónica, que cobre nem mais nem menos que
18km da costa desta ilha:
Há ainda qualquer coisa de puro na Boa Vista, (…) sobretudo vêm pela natureza, não pelas gentes.URHRNB36
150
VI – Perceções das Motivações em Análise
Eu acho que são as lindas praias daqui da Boa Vista! URHRNB80
É praia! Praia, o mar… um lugar livre, tranquilo. BFHRNB44
Seguramente o mar! (...) O que traz os turistas à Boa Vista são as praias que são lindíssimas! URHREB51
As mais valias... vou começar pelas mais lógicas, as praias, a paisagem... de resto se formos ver é seca...até chegar a algumas praias só vês terra! URMRNB27
De acordo com os entrevistados, a natureza e a paisagem da Boa Vista são o principal
motivo que traz os turistas à mesma, independentemente da sua idade, isto porque todas as faixas
etárias apresentam percentagens internas muito elevadas, na casa dos 80% (com exceção dos 60%
dos indivíduos com 70 ou mais anos); no entanto, existe uma ligeira tendência para esta motivação
ser mais importante para as camadas mais jovens.
Praticamente com os mesmos valores, tanto estrangeiros (81%) como nacionais (79%),
apontam para a natureza, e do mesmo modo, ambos os géneros apresentam valores elevados, onde o
masculino lidera por apenas mais 7% que o feminino (74%). Também, os entrevistados que habitam
em espaço urbano (81%) e os que habitam em espaço rural (74%) estão próximos, sugerindo mais
uma vez que estas características não parecem muito determinantes no desenho do perfil dos
entrevistados que mencionam esta motivação.
Fica também clara a ideia de que, quanto maior for o nível de escolaridade, maior é a
atenção dada a esta motivação, flutuando os valores entre os 65% dos entrevistados com o ensino
primário e os 87% do ensino preparatório, muito próximo dos 85% daqueles com o ensino superior.
Também a análise da característica situação profissional revela que são os trabalhadores por
conta própria (86%) e os empregados (77%) quem mais mencionam a natureza e a paisagem, isto se
ignorarmos os 100% dos domésticos, que sendo apenas uma pessoa terá em todas as variáveis ora
0% ora 100%, e assim será sempre relativizado. Há ainda a mencionar os 67% de tanto
desempregados como reformados.
Na análise por grupos de residência verificamos que são os estrangeiros residentes (86%) e
os operadores (82%) quem mais valorizam esta perceção, embora seguidos por perto pelos nativos
da Boa Vista (78%) e os oriundos de outras ilhas do arquipélago (75%). Assim, conclui-se que esta
motivação atravessa com percentagens elevadas todas as diferentes características sócio-
demográficas apresentadas, reforçando que é uma perceção geral entre os entrevistados.
151
VI – Perceções das Motivações em Análise
Perceção da Motivação: Clima
Cabo Verde é um país de clima quente, tropical seco, onde raramente se atinge os 30ºC ou
menos de 20ºC, e assim, também a Boa Vista apresenta valores máximos e mínimos semelhantes,
uma temperatura média a rondar os 25ºC, a mesma temperatura que podemos sentir nas suas águas
no mês de setembro. A grande diferença das ilhas mais a Este do arquipélago para com a grande
maioria das restantes é a pluviosidade média que é ligeiramente mais baixa. Aliás, as planícies secas
e áridas da Boa Vista, Sal e Maio são prova disso mesmo. Com isto, introduzimos o segundo fator
motivacional mais mencionado, o clima, indicado por 43% dos entrevistados:
É por causa das condições naturais que a ilha oferece aos turistas, como por exemplo, quando os turistasvêm para ilha vêm à procura de um turismo, de sol de mar... de turismo balnear! A Boa Vista é uma ilhapropícia a estas condições. Como todos sabemos, em termos de praia em Cabo Verde é a que temmelhores condições e tem Sol praticamente todo ano. URHRNB30
A água é quente mesmo em março e abril, o tempo está bom! Em dezembro e janeiro estamos em t-shirt.Não chove. URHREB68
Bem o sol a praia... os hotéis daqui são todos sol e praia. Isto é um destino novo... basicamente eradesconhecido ao mercado e agora nos últimos 5, 7 anos foi dado a conhecer! RUHOP39
Quem não conhece as temperaturas do arquipélago caboverdiano pode pensar que as
temperaturas médias do mesmo não são assim tão elevadas. Mas na verdade o seu clima é tropical e
se as temperaturas não fossem amenizadas pelos ventos alísios que chegam da África continental e
que suavizam as temperaturas altas e a humidade constante, a ilha seria um “lugar insuportável”.
Apesar de conhecer outros destinos africanos, o investigador recorda o dia em que pela
primeira vez aterrou na Boa Vista no início de maio de 2012, sendo surpreendido pelo clima.
Naquele momento da chegada o vento desaparecera. Carregado com malas, o impacto da
temperatura seca e quente do exterior contrariava a temperatura fresca do interior do avião. Os
calções e a manga curta pareciam escaldar na caminhada entre o avião e o terminal do aeroporto.
Por motivos estéticos, o dito aeroporto não está totalmente coberto e está permeável aos
caprichos do tempo. Como uma claraboia sobre as cabeças de todos, o sol caía sobre os turistas com
violência enquanto, lentamente, a fila em ziguezague avançava. Foram 45 minutos que pareceram
horas. Quando finalmente o investigador chegou ao balcão alfandegário já nada podia evitar o
ligeiro escaldão no pescoço.
O simples facto da brisa constante que está presente na Boa Vista ter momentaneamente
terminado, teve um impacto imediato na capacidade de suportar o seu sol e clima seco. Brisa essa
152
VI – Perceções das Motivações em Análise
que nos meses de verão se torna vento forte, que levanta o fino areal, perturbando os turistas na
praia, mas também penetra nas redes mosquiteiras das habitações e invade as casas. Como nota
adicional, recorde-se que, apesar de cuidados redobrados, esse areal fino danificou o computador
portátil do investigador deixando-o semanas sem poder usufruir dele. Um problema comum entre
aqueles que com regularidade usam esse tipo de aparelhos na ilha, mas também outros aparelhos
eletrónicos e máquinas.
Aliás, esse tipo de contrariedades, associadas aos danos provocados pela salinação de
equipamentos e infraestruturas, elevam ainda mais o custo de vida de todos os seus residentes já que
torna a sua manutenção extremamente dispendiosa. Aquando da entrada do investigador no
primeiro apartamento, onde viveu por sete meses, todas as torneiras e tubagens da habitação foram
trocadas e o mesmo teve de ser feito após a sua saída dada a elevada erosão dos materiais, incapazes
de suportar algumas das característica climáticas do espaço e suas consequências.
O clima é uma das motivações-chave para os entrevistados. Todas as faixas etárias o
mencionaram, dos 30% dos entrevistados entre os 40 e 49 anos, aos 50% dos 30 aos 39 anos, sendo
desenhada uma ligeira insinuação que sugere que quanto maior for a idade dos entrevistados menor
é a atenção dada a esta perceção.
Apesar do espaço de residência ser indiferente (pois tanto urbanos como rurais apresentam
valores praticamente idênticos, na casa dos 43%), foram mais os indivíduos do género masculino
(48%) nacionais de Cabo Verde (45%) que mencionaram esta motivação, mais que o género
feminino (34%) e estrangeiros (33%).
No entanto, é sem sombra de dúvida que se afirma que maior nível de escolaridade leva a
maior atenção à motivação climática, já que os valores vão dos 37% dos indivíduos com ensino
primário, aos 46% com ensino superior.
Do mesmo modo, são os operadores (64%) que por larga vantagem sublinham o clima como
motivação, deixando os nativos (cuja média de ambos os grupos nativos fica nos 43%) e os
estrangeiros (21%) a uma distância considerável. Também interessante é que nenhum dos
entrevistados desempregados acham o clima determinante, ao passo que as restantes situações
profissionais variam entre os 44% dos empregados e os 50% nos reformados.
Perceção da Motivação: Cultura
“Cultura”. Neste conceito cabe um conjunto de aspetos característicos da comunidade local153
VI – Perceções das Motivações em Análise
que são diferenciadores de outras povoações estrangeiras, entre eles a "Morabeza" (o ato de bem
receber, hospitalidade). Os indivíduos não diferenciaram a cultura da Boa Vista da das restantes
ilhas, mas apontaram para uma ideia de cultura nacional que “já é reconhecida internacionalmente”
e capaz de ser um fator determinante na deslocação dos turistas.
Eu continuo a achar que é uma certa proximidade com o mar, uma diferença muito grande à vida urbanaque eu conheço, do Porto, do clima do Porto… é isso que tem para explorar. Agora, tem alguma música,alguma morabeza, uma certa maneira relaxada de ser mas eu acredito que é mais isso, a diferença… paramim! URMRNB27
Eu não diria que não está a ser mostrado, porque uma das coisas boas somos nós! Eu estou aqui a falarcontigo (...) é essa a nossa maneira de ser, é importante, é um dos fatores que acabou de fazer esteinvestimento do turismo neste país! A nossa maneira de ser funcionou. Vieram cá, viram as pessoas e amaneira de ser das pessoas, o seu carácter e a sua natureza. Foi isso que fez os turistas pensar ser idealvisitar esta ilha! URMRNB46
Englobaram-se, então, dentro de “cultura” os fatores "Música", "Gastronomia" e
"Morabeza". Estes serão também analisados comparativamente logo após uma leitura ao seu
conjunto:
Também tem outra coisa que é muito importante aqui em Cabo Verde, que é a hospitalidade do povocaboverdiano! É um povo que recebe muito bem os turistas. Também a gastronomia daqui, é muitoimportante, os turistas gostam muito... a música... tudo isso influencia a escolha dos turistas. URHRNB30
Existe a ideia de que os caboverdianos são particularmente bons acolhedores, gente
hospitaleira, detentores de uma "morabeza crioula", noção que está bem enraizada na narrativa
local, em particular nas ilhas consideradas “mais tradicionais e típicas”, como a gente da Boa Vista
parece considerar ainda a sua:
De todo o património histórico-cultural, destaca-se o seu criador: o boavistense. Com efeito, o grandepatrimónio da Boavista é, antes de tudo, a sua gente. De facto, quem conhece o kabrere, por ter convividocom ele longo tempo, sabe que o mais belo da sua ilha é, na sua essência, o calor humano da sua gente, deespírito acolhedor e de convivência alegre e amiga, junto da qual ainda se sentem reminiscências da suagenuína morabeza de outrora. (Lima, 2002:317)
Esta narrativa é também reforçada pela publicidade e marketing, mas sendo esta a quinta
motivação mais registada, deixaremos essa análise para esse ponto e viramos as nossas miras para
um livro de Germano Almeida que tantas vezes é apontado como um farol da "verdadeira Boa
Vista", uma obra intitulada "A Ilha Fantástica".
Esta recorda histórias de acordo com as memórias do autor dos seus tempos de infância e
juventude na ilha entre os anos 50 e início dos anos 60 do século passado. Uma narrativa marcada
não só pela presença portuguesa mas também por uma rica mistura de relatos que tratam as questões
familiares, pequenos poderes locais, religião, e muita descrição minuciosa de acontecimentos e
154
VI – Perceções das Motivações em Análise
cerimónias.
Munido com este livro, nenhum viajante ou curioso ficará por dentro da Boa Vista dos dias
de hoje, mas sem dúvida que faz um excelente papel introdutório, que contribui para melhor
compreender os nativos locais, hoje uma minoria da população residente. Isso leva-nos a levantar a
questão de que se os turistas se encontram na sua esmagadora maioria nos grandes resorts, onde os
trabalhadores são também quase todos de outras ilhas e estrangeiros, que hospitalidade é essa?
Podemos considerá-la como exemplo dessa afamada morabeza boavistense?
No meu ponto de vista tem a ver com praias, lindas praias, um clima, praticamente durante o ano. (...) Aspessoas são amáveis, simpáticas e acolhedoras. Portanto isso também ajuda, mas acho que basicamente éisso! BFHRNB34
Sem dúvida uma contradição, mas deixemos agora esta questão e olhemos para os dados
recolhidos.
Com uma variação de apenas 2%, são os Europeus (29%) que mais referenciam o fator
cultural, tal como, com uma outra ligeira variação (mais 5% que o género feminino) são os homens
que mais atenção dão à cultura (28%).
Com uma diferença já mais significativa, são os entrevistados de meio rural (33%) que
superam os urbanos (25%). Em termos de faixa etária, os dados apontam para a faixa dos 20-29
anos com os valores mais elevados, na casa dos 45%, depois, cai até aos 20% dos indivíduos entre
40 e 49 anos, para novamente subir até aos 33% dos 60 aos 69 anos, e depois cair até ao valor de
0% entre os mais idosos!
Igualmente oscilante, mas dentro de uma variação bem mais próxima, temos a leitura por
grupo de residência onde os valores variam entre os 21% dos residentes estrangeiros, os 27% de
tantos operadores como nativos de ilha, até aos 33% dos nativos das outras ilhas. Ainda assim,
podemos concluir com alguma segurança que a cultura é muito importante para todos os grupos,
algo que já não pode ser dito se olharmos para a escolaridade.
Os valores mais elevados são dos indivíduos com o ensino preparatório (40%) e licenciados
(30%), ambos bem acima dos restantes, levando à conclusão que uma escolaridade superior não
significa uma tendência para apontar a cultura como fator determinante. A cultura é basilar desde a
perspetiva geral destes entrevistados sem que se possa de facto desenhar um perfil absoluto dos que
têm esta perceção.
155
VI – Perceções das Motivações em Análise
Perceção da Motivação: Que cultura?
Olhemos agora para as partes que compõem a “Cultura”. Comecemos por "Morabeza", um
traço ou característica auto-catalogado que se refere ao ato de bem receber e que mereceu vinte
menções! Não deixa de ser interessante a quantidade de menções, pois, caso o considerássemos
separadamente, seria o quarto fator mais mencionado da lista das motivações, apenas superado pela
"tranquilidade", "clima" e "natureza"!
Penso que os turistas são muito curiosos mas há que dizer no todo, o povo caboverdiano faz a morabezacrioula. Claro que vai-se diferenciar de ilha para ilha. O povo da Boa Vista é acolhedor! Mas o turista vaisempre além da praia, sol e mar! Procura saber como as pessoas vivem cá, a qualidade de vida, como sãoas famílias, as ruas, as casas.. porque já reparei numa questão.. quando um Europeu fala sobre Cabo Verdepensa em África com tribos e quando chega aqui tem aquele impacto muito diferente e muda tudo estás aver!? Há sempre a curiosidade de saber o que se passa! URMRNOI30
A primeira coisa acho que são as praias e também a morabeza das pessoas daqui. Como recebem osclientes aqui. Há uma receção muito forte aqui. As pessoas vêm, passam férias aqui e depois voltam!Logo querem ficar aqui e investir, outros viver aqui! É o povo daqui, que não encontram noutro lugar,principalmente a tranquilidade daqui. URHOP29b
Primeiro é a beleza de Cabo Verde em geral, da ilha, também como as pessoas recebem, essa morabeza detodos os cabo-verdianos. BFHRNB29
A sua beleza natural, o clima... a segurança e a tranquilidade, e a simpatia das pessoas que ainda existe.Não como de antes mas ainda existe... a morabeza, sim. BFHRNB25
Adicionaram-se ainda nesta categoria outras referências pontuais às 'boas qualidades' da
comunidade:
Penso que a Boa Vista está na moda também porque na Boa Vista é tudo terra-a-terra. URMRNOI32
Gostam da Boa Vista porque é ainda uma ilha acolhedora, são gente boa... gostam também da ilha, temum clima bom, gostam de vir! (...) É uma ilha fantástica e todo mundo gosta da Boa Vista! CTMRNB53
Os entrevistados que referiram este fator não têm uma nacionalidade, género ou residência
específica ou demarcada, pois nestas três variáveis os valores são todos superiores aos 20% e
inferiores aos 26%, reforçando a ideia de que parecem ser irrelevantes como diferenciadores. Pelo
contrário, a situação profissional indica que os desempregados ignoram a morabeza como fator e
são aqueles que ainda trabalham que mais importância lhe dão, com valores acima dos 23%. Do
mesmo modo, também a escolaridade parece condicionar este fator dado que, com exceção dos
valores do ensino secundário, os dados indicam uma tendência de crescimento face ao nível de
ensino. Com valores mais oscilantes temos a faixa etária que apresenta valores elevados entre os
indivíduos dos 20 aos 29 anos (35%) e dos 60 aos 69 anos (33%), muito acima dos restantes que são
tendencialmente mais baixos dos 30 aos 49 anos (entre os 14 e 21%) e bem acima dos 0% dos mais
156
VI – Perceções das Motivações em Análise
idosos.
Toda esta análise obriga a uma referência pessoal de um primeiro exemplo da hospitalidade
local. Apenas a algumas semanas no terreno, o investigador foi convidado por um informante nativo
da Boa Vista a participar num evento social que envolvia toda a sua família e amigos. Este decorreu
na pequena 'Praia de David' também chamada 'Praia de Fátima', um recanto de areia entre dois
paredões naturais de rocha que deixa o mar quente tão tranquilo como uma piscina. Éramos cerca
de quarenta pessoas e, não fosse o facto de estarmos muitos de pé, certamente não caberíamos
deitados todos em toalhas no curto areal. A ideia também não era apanhar sol mas antes saborear
uma bela cachupa caseira e frango no churrasco em boa companhia, regados por cervejas menos
frescas que o ideal, e vinho morno. O convívio durou todo o dia e só terminou depois do sol se pôr.
Sem surpresa, foram alguns episódios semelhantes que permitiram ao investigador aceder a
mais informantes, contactos importantes e amizades essenciais para a recolha de muita da
informação pretendida.
Voltando à análise dos dados, com cinco menções, temos a música caboverdiana. Apesar da
morna ser o género musical mais conhecido internacionalmente, em parte pela fama da cantora já
falecida, e diva nacional, Cesária Évora, outros como o funaná ou a coladeira são relativamente bem
conhecidos, em particular onde a diáspora caboverdiana está presente:
As praias! Essa é a primeira, mais as praias e o sol! (...) Pode ser também a cultura, particularmente amúsica... CTHRNB25
Quem são então os entrevistados que apontaram a música como fator determinante? São
praticamente todas mulheres trabalhadoras, tanto empregadas (26%) como trabalhadoras por conta
própria (5%), sem nacionalidade, residência, ou escolaridade específica, com a nota de terem entre
20 e 59 anos.
Um dos espaços onde com maior frequência podemos assistir a espetáculos de bandas de
música caboverdiana está localizado mesmo no centro da praça de Sal-Rei, onde uma vez por
semana a esplanada acolhe grupos ao vivo. Naturalmente que existem outros espaços onde se pode
ouvir música caboverdiana ao vivo na Boa Vista, mas na sua maioria só em ocasiões especiais, ou
mesmo durante certos festivais ou festas, por exemplo, no polivalente "DjiDjung".
O prato gastronómico mais famoso do arquipélago é a "cachupa", essencialmente um prato
com milho, feijão, carne, mandioca, batata-doce e couve, pese embora existam vários outros pratos
e iguarias que merecem destaque, tais como a lagosta, o peixe-espada, o atum ou o polvo. Temos
157
VI – Perceções das Motivações em Análise
também de fazer nota das bebidas típicas como o ponche e o grogue (aguardente de cana-de-
açúcar).
Aquando da presença do investigador nas aldeias do "norte" ou interior, mormente em
Cabeça de Tarafes, este teve a oportunidade de provar o localmente denominado "melhor grogue da
Bubista!". Num dos únicos espaços abertos ao público da pequena aldeia, um casal recebe tanto
locais como os poucos turistas que se aventuram naquela povoação remota. Denominada
comummente por loja, estes espaços não são exatamente cafés nem mercearias, mas nele podemos
adquirir ou consumir produtos alimentares, bebidas frescas e até o dito grogue caseiro. No caso
específico da loja referida, a hospitalidade dos seus proprietários é sem dúvida também um exemplo
digno da morabeza que os nativos da ilha apregoam.
O almoço foi de rei. A (…) fez sopa e galinha no forno com batatas. Fomos acompanhados por um jovemda família com cerca de dez anos cuja presença foi justificada como 'havendo espaço sempre para maisum da família ou amigos'! O senhor (…) pai do (…) e eu estivemos a falar sobre tradição e agricultura nailha. Mostrou imenso orgulho pelas suas produções, alguns objetos e técnicas agrícolas que os 'jovens jánão sabem nem querem saber'! A conversa foi acompanhada por grogue e mais alguns vizinhos, no entanto, fiquei-me por um par decervejas, caso contrário, ao ritmo que consomem grogue, não me lembraria de nada para além dosprimeiros trinta minutos. Entretanto, aparece na loja um casal de turistas franceses que haviam alugado um carro e andavam aexplorar a ilha. Com as voltas haviam gasto alguma gasolina e estavam preocupados que não chegasse.Afirmámos que só havia gasolineiras em Sal-Rei [a hora e meia] ao que os turistas boquiabertosafirmaram enquanto gesticulavam 'Mas isso é de doidos!' Sim, estamos longe de Paris... pensei eu. À tarde fomos de mota para Fundo das Figueiras. Por três vezes tivemos de desmontar e empurrar a motoaté que (…) desistiu e encostou a moto na berma e seguimos o caminho a pé. A distância era de apenas 15minutos a pé e, sendo a única estrada aquela, a moto estava em segurança. (…) Foi um dia em cheio ondea cereja no topo do bolo foi provar o famoso 'melhor grogue da Boa Vista' em Cabeça de Tarafes! (DC,25/11/2012)
Também noutra aldeia do interior, em Fundo das Figueiras, outros restaurantes e lojas têm
prosperado com as visitas de turistas em passeios organizados, pese embora que sejam apenas um
punhado deles, concretamente aqueles que conseguem garantir aos operadores turísticos a qualidade
de serviço procurada pelos seus clientes. Nas aldeias da Boa Vista, ao contrário da cidade de Sal-
Rei, os restaurantes pertencem e são geridos por "fijos da bubista", gente nativa:
É o típico! Calmo, vem aproveitar o Sol, as praias, comida é boa... mesmo a, como posso dizer... odiálogo entre as pessoas! As pessoas muitas vezes vão e voltam! FFMRNB38
A gastronomia é então um fator cultural determinante apenas para dois indivíduos,
masculinos, cabo-verdianos, de meio urbano, ambos empregados, entre os 20 e 29 anos, com o
ensino preparatório ou secundário. Portanto um perfil extraordinariamente preciso.
158
VI – Perceções das Motivações em Análise
Perceção da Motivação: Tranquilidade
Como será claro, por tranquilidade os entrevistados entendem o ritmo lento e sem distúrbios
que a ilha da Boa Vista possui, em parte pela reduzida população e pela distância entre os povoados
e os resorts turísticos. Ainda assim, também aplicável àqueles que optam por pernoitar na vila de
Sal-Rei pois apesar de ser um centro urbano, a sua reduzida área geográfica, tráfego, e
infraestruturas, mantêm um espaço agradável e sem sobressaltos, como criminalidade violenta ou
algum tipo de distúrbios à ordem:
Eu acho que são as praias, temperatura, os desportos náuticos… também por causa da tranquilidade e dapaz que aqui tem. Aqui é um país muito tranquilo. Aqui dizem ‘Cabo Verde no stress’ né!? URHRNB31
Acho que principalmente por questões de tranquilidade. Por que praias, eu falo com os meus amigos, hámuitas outras praias mais bonitas e com infraestruturas. (…) É a paz, a tranquilidade. Ver coisas novas,novo, virgem, você quer aquele toque primeiro. JGHRNB41
Cabo Verde é tipo, o primeiro é o lema: 'no stress'. A tranquilidade que temos e o sorriso de orelha aorelha, e o mar! URHRNB33
A tranquilidade existe em abundância nesta ilha, para alguns até é "tranquila em excesso"!
Ou seja, entre os estrangeiros que residem na ilha, nomeadamente, entre os membros das
comunidades italiana e portuguesa com os quais o investigador travou conhecimentos e até
amizades, surgiam comentários desta natureza. Sem dúvida comentários que exprimem desilusão,
pelo facto de não existirem muitas alternativas de entretenimento para quem reside na ilha. Um
exemplo, talvez, extremo de tentativa de entretenimento por parte destas duas comunidades é a
prática de golfe numa zona de areal plana e consistente.
No entanto, de acordo com as perceções recolhidas, é inquestionável que esse é o tipo de
tranquilidade que os turistas procuram, sobretudo quando, no caso dos clientes dos resorts, estes já
encontram “tudo o que podem necessitar” onde estão hospedados:
Tem muito espaço onde o turista pode passear... tem calma, ainda. O turista vem para descansar, tem todoo silêncio do mar, envolvendo uma paisagem natural ainda. Penso que é isto que trás os turistas... e aprópria Morabeza dos boavistenses para aqueles turistas que a quiserem experimentar! URMRNB46
Para além disto é tranquilo! As pessoas são relativamente tranquilas e quando estamos cá algum tempofazemos amigos. URHREB68
Eu pergunto realmente... uma ilha como Boa Vista, muitos turistas procuram tranquilidade, ao pé do marmas que seja tranquila. Depende de onde vêm. (...) Pessoas mais reformadas que compram terreno e casaaqui, por isso eu relaciono com tranquilidade. A Boa Vista é tranquilidade! Porque as condições para umapessoa que vem de um país como Reino Unido e as condições da Boa Vista são completamentediferentes! URHRNOI30
Para mim é porque tem um bocadinho de paz! (...) É espaço, sossego e o clima também! BFHRNB95
159
VI – Perceções das Motivações em Análise
A tranquilidade emerge nos discursos de elementos de todos os grupos pelo menos acima
dos 25% (no caso dos nativos de outras ilhas do arquipélago) chegando mesmo aos 29% (entre os
estrangeiros residentes), sendo mais valorizada no meio rural do que urbano mas apenas por
reduzida margem de 4%. Entre os homens (29%) ligeiramente mais que entre as mulheres (com
menos 5%). Ainda com ligeira diferença de 2%, são os Europeus, que valorizam mais a
tranquilidade (com 29%) que os nacionais.
As variáveis restantes já têm uma diferença mais demarcada, como é o caso da situação
profissional. Os dados demonstram que são os desempregados que menos valor dão à tranquilidade
(com apenas 17%), seguidos dos empregados (mas já com 24%), muito distantes dos trabalhadores
por conta própria (36%) e reformados (33%) com percentagens a partir de um terço.
Já a escolaridade parece indicar que quanto maior o nível maior importância se dá a este
fator, mas deve-se destacar que os licenciados dão menos importância que os indivíduos com o
ensino secundário; ainda assim, no geral, todos entre os 21 e os 31%.
Finalmente temos a faixa etária, cujos dados são um tanto caricatos. Temos uma média dos
indivíduos entre os 20 e os 49 anos que varia entre os 29 e os 35%, mas logo seguidos de um nulo
para os indivíduos entre os 50 e 59 anos, e de uma acentuada subida para as idades seguintes (17 e
20% respetivamente). Ainda que pudéssemos apontar para uma tendência de maior referência para
os mais novos, esta oscilação profunda exige ponderação e, por tanto, não merece que se retire
ilações perentoriamente. A análise a estes valores parece confirmar que a tranquilidade é
preponderante, de forma geral, sem grandes distinções sócio-demográficas.
Perceção da Motivação: Propaganda
O fator seguinte é a "Propaganda", ou seja, a eficiência e eficácia do marketing e
publicidade que, tanto operadores e agências, como Governo, foram e são capazes de manter de
forma a garantir que potenciais clientes não estejam ignorantes à Boa Vista como destino de férias.
Propaganda essa que apontam à capacidade das agências de viagem de vender um produto
apresentado como novo:
Vêm mais pessoas porque conhecem a Boa Vista pelos media, as agências turísticas fazem chegar mais.Há mais passagens. O aeroporto desenvolveu-se. É bem vendida... há um impacto natural! URHREB35
Falta de conhecer! Turistas vêm na Boa Vista para conhecer a terra! Aquela que é a importância deturistas! URHRNO49
160
VI – Perceções das Motivações em Análise
(...) procurar outros destinos, por curiosidade... novos voos não é?! Temos um potencial enorme emtermos de natureza! (...) Poucas pessoas conhecem devidamente a ilha da Boa Vista e com certeza é umailha que tem um potencial enorme ao nível paisagístico! URHRNB27
Neste momento, no meu ponto de vista, os turistas que vêm para cá para conhecer um destino novo eaproveitar o produto sol e praia! JGHRNB31
Temos portanto um esforço publicitário, de marketing, encabeçado por empresas
estrangeiras, também mais valorizado por nativos desses países estrangeiros e empresas que
trabalham na atividade turística. É, sem dúvida, determinante o esforço de propaganda que tanto
empresas privadas como até o próprio Governo têm promovido de modo a cativar a atenção de
milhões de potenciais turistas. Por outro lado, este esforço é também criticado negativamente pois,
apesar dos seus resultados positivos, sugere-se que os meios são duvidosos:
São fotografias mal tiradas, enganam as pessoas, de pessoas sentadas nas agências de viagens! (…) Masas pessoas dizem já tive no Egito, no Brasil, quero um sítio barato que não seja o Brasil que já vi 3 vezese à República Dominicana… Existem pessoas que vêm por que querem conhecer Cabo Verde, pronto,tem uma vantagem por que tens um pé em África mas ainda não é bem África. URMRNB27
Não sei, acho que é um sítio estranho! Eu penso que muita gente até ir à agência nunca ouviram falar dailha! (...) Acho que é isso, ficam curiosas com um país que nunca ouviram falar! (...) Acredito quetambém haja muita publicidade enganosa! URMRNB27
A ilha da Boa Vista é ainda um destino considerado novo, aliás, todo país à exceção da ilha
do Sal, é considerado um destino novo, e essa é a imagem que se procura passar na propaganda da
ilha e do país. Uma promoção imagética recheada de belas paisagens que precipitam os sentidos
para uma imagem errónea da realidade, simplificando-a:
As imagens turísticas mascaram o mais desagradável e desta forma constroem seletivamente a realidade,convertendo-a num produto mais apelativo e sugestivo. O discurso turístico pauta-se pela seleção edescontextualização e apoia-se na exaltação e no exagero de certos traços do destino.Concomitantemente, ignora e silencia o que considera não dever fazer parte da atenção turística. Assim,mediante a informação que é incluída e excluída, a imagética turística providencia uma certa forma de vero mundo. (Santos, 2008:3)
Naturalmente que esta citação não é referente apenas ao caso de Cabo Verde ou da Boa
Vista, mas a autora procura chamar a atenção para o arquipélago no seu estudo de caso onde acaba
por referir esta problemática, assim como tocar em vários dos fatores motivacionais aqui já tratados,
como a natureza, a paisagem e a morabeza (cultura). Este trabalho sugere como a imagética
escolhida no discurso sobre este destino molda a forma de o ver, tanto externa como internamente,
criando e/ou reforçando certas características em detrimento de outras. Recomenda-se a quem
estiver mais interessado, uma leitura atenta do seu trabalho sobre a imagética turística e o caso de
161
VI – Perceções das Motivações em Análise
Cabo Verde.
Regressando aos dados recolhidos, a propaganda parece ser sobretudo preponderante para os
indivíduos entre os 20 e os 39 anos e de meio urbano, com ligeiro acentuar para os homens e
curiosamente irrelevante apenas para os reformados.
No que toca à nacionalidade, esta não é de todo diferenciadora (14% para nacionais e 13%
para estrangeiros) ao contrário da escolaridade, cuja tendência é de maior relevância à medida que a
escolaridade é também superior, com exceção do ensino preparatório (7% face aos 11% do primário
e 13% e 17% do secundário e superior, respetivamente). Em termos de grupo, tanto os residentes
estrangeiros (21%) como os operadores (18%) dão uma importância significativamente superior
face aos restantes (12% para nativos da ilha e 8% para nacionais que migraram para a ilha).
Perceção da Motivação: Hotelaria
O crescimento da capacidade de alojamento depende das infraestruturas que localmente
conseguem alojar e entreter os turistas no terreno. Falamos de hotéis, residenciais, pensões etc., e o
fator seguinte é precisamente a infraestrutura hoteleira, ou Hotéis, com onze menções. Colocamos
aqui excertos de entrevistas onde são apontadas algumas dessas infraestruturas preponderantes:
Temos praia, temos sol 365 dias do ano. Temos clima e há condições, há hotéis, há aeroporto e há asagências turísticas. URHRNB36
Esses hotéis [resorts] têm proporcionado aos seus clientes grandes momentos de lazer e de prazer!Quando saem daqui vão satisfeitos porque o dinheiro foi bem empregue. URHRNB48
De acordo com os dados disponíveis no Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde
(INE-CV), o crescimento da infraestrutura hoteleira na ilha da Boa Vista é claro. Se no fim da
década de 1990 existiam apenas seis unidades hoteleiras na ilha, em apenas dez anos o número total
ascendeu às vinte. Naturalmente que nem todos os hotéis se enquadram na categoria de hotéis
resort com capacidade para albergar turistas em larga escala.
Daí ser importante recordar que apenas em 1997 foi aberto o primeiro hotel de quatro
estrelas na ilha, e à data considerado o melhor do país. O Marine Club Beach Resort não era, nem é
hoje, um hotel com regime tudo-incluído e as suas unidades são semelhantes a bungalows num total
de 34 moradias e 98 quartos.
Este hotel foi o grande responsável pelo desenvolvimento do turismo estrangeiro de forma
consistente e crescente na ilha, ainda que quase exclusivamente proveniente de Itália. Vários dos
162
VI – Perceções das Motivações em Análise
residentes de origem estrangeira, hoje também com nacionalidade caboverdiana, assim como
nativos da ilha, iniciaram funções neste hotel ou em outras empresas dependentes e vieram a tornar-
se grandes empresários da ilha:
A Boa Vista era uma ilha que encantava, porque a diferença do Sal e a Boa Vista era grande. Na alturahavia 230 camas na ilha, quase todas no Marine Club, numa superfície de 650 km2 com pequenas aldeiasapenas habitadas por caboverdianos. Vivia-se uma atmosfera local em contacto com os caboverdianos.Era como uma pequena aldeia e mudou muito... URHREB37
Cheguei cá e me apaixonei totalmente desde o primeiro dia, da ilha... os ambiente, as pessoas. E na épocaa ilha era formada mais por pessoas da Boa Vista mesmo. Locais, criadas da ilha. E por isso foi talvezmais fácil entrar na comunidade, socialmente, na ilha. Foi bom, foi fácil. Encontrei um povo alegre, feliz,muito lindo... embora não havia muito em termos de serviços e... lojas, infraestruturas... as pessoas viviambem, e se calhar melhor que hoje! (...) Me apaixonei pela Morabeza! (...) Na época havia mais ou menos2500 pessoas, não havia esse bairro da barraca. Não havia nada disso! URHREB35
O povo começou a trabalhar mais em relação ao turismo, porque na época, quando cheguei cá, as pessoasque trabalhavam no turismo eram apenas as do Marine Club. 100 famílias, 150 empregados. Tínhamos 19estrangeiros em toda a ilha, destes, 15 italianos e os outros de outros países, Bélgica, Suíça, França... ehavia várias pessoas que passavam cá 6 meses de férias e 6 de trabalho. URHREB35
A este hotel seguiu-se um segundo, de dimensões superiores, apenas em 2007, o Ventaclub,
com capacidade para 900 turistas, cuja abertura foi adiada devido aos atrasos na construção do
aeroporto internacional e que na altura forçaram a empresa a dispensar centenas de funcionários até
que este estivesse terminado. Na verdade, foi a inauguração nesse ano do aeroporto internacional
Aristides Pereira que permitiu que novos investidores apostassem na ilha. Daí que apenas alguns
meses depois fosse inaugurado o RIU Karamboa com 750 quartos e capacidade para mais de dois
mil hóspedes, empregando mais de um milhar de pessoas.
Esta cadeia hoteleira internacional, a RIU, viria ainda a construir um segundo hotel na
mesma ilha, de seu nome RIU Touareg, no ano de 2011. Com 881 quartos é mais um hotel de cinco
estrelas com o regime tudo-incluído cujo valor total do investimento rondou os 120 milhões de
euros, solidificando assim a posição da cadeia no país, totalizando mais de 2600 quartos em cinco
hotéis.
Estes números incríveis podem ser agregados aos de outros hotéis de regime idêntico, como
o Iberostar ou o Royal Decameron (antigo Ventaclub), de modo a mostrar os valores totais do
turismo na ilha volvidos todos estes anos. Como é visível no quadro abaixo, o número total de
quartos passa de menos de 600 em 2007, para mais do dobro após a abertura do aeroporto
internacional. Valor que em cinco anos quase duplica.
163
VI – Perceções das Motivações em Análise
Um outro número digno de nota é a capacidade de alojamento, sobretudo se considerarmos
que a ilha hoje tem mais camas disponíveis para turistas que habitantes à dez anos! Estas unidades
hoteleiras, lideradas pela cadeia RIU, conseguem alojar mais de cinco mil pessoas por dia, o que
significa em termos práticos que, semanalmente, passam pelo aeroporto internacional pelo menos
esse número de turistas. Isto porque, por norma, estes clientes adquirem o pacote semanal de férias.
Antes de passarmos à análise dos dados recolhidos nas entrevistas ficam aqui algumas notas
do diário de campo do investigador sobre estes hotéis:
'Chegámos' pouco faltava para as 14 horas locais. Depois do check-in normal com as suas filas, e do outrocheck-in no hotel, do almoço e de arrumar as coisas no quarto dei uma volta ao complexo. Uma estruturarecente com jardins e com uma bela vista para o mar de água clara e de temperatura morna abraçada porum areal fino, branco e solto que nos é regado pelo vento. Molhei os pés na água, contei os turistas noareal e no mar e voltei-me... o meu hotel no seu leve tom claro e pacífico destoa com os pequenos montesde pedra vulcânica rude e desolada. A piscina e o bufete são muito procurados. Nas traseiras, os campos desportivos e os estaleiros earmazéns são a última ponta de cimento antes dos prados arenosos, rochosos e áridos da ilha da BoaVista. (DC 5/5/2012)
Se a infraestrutura hoteleira é um fator motivacional de nota entre aproximadamente 10%
dos entrevistados das três faixas etárias mais novas, os valores parecem crescer à medida que as
mesmas avançam, já que 14% dos entrevistados entre os 50 e 59 anos de idade o mencionam, e
cerca de 33% dos entrevistados entre os 60 e 69 anos. No entanto, esta curva é bruscamente
164
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 20130
500
1.000
1.500
2.000
2.500
3.000
Evolução do Número de Quartos na Boa Vista (2002-2013)
Boavista
Figura 6.1: Evolução do Número de Quartos na Boa Vista (2002-2013)
VI – Perceções das Motivações em Análise
interrompida pelo nulo dos entrevistados com 70 ou mais anos de idade.
Com valores praticamente idênticos, género e nacionalidade, não parecem ser determinantes
no perfil dos entrevistados em causa, uma vez que variam entre si em 1% ou 2%, respetivamente, ao
passo que os indivíduos de meio urbano (13%) parecem mais atentos à mesma que aqueles de meio
rural (7%).
Também esclarecedores são os dados referentes ao nível da escolaridade. Estes sugerem que
quanto maior o nível, menor a incidência da perceção, isto pois o valor mais elevado é daqueles
com o ensino primário (16%), bem acima dos 7% do ensino preparatório, e dos valores dos
restantes níveis de escolaridade, cuja média é de 12%.
Em termos de situação profissional, 17% dos reformados, 14% dos trabalhadores por conta
própria, e 11% dos empregados apontaram para a infraestrutura hoteleira, ao passo que os restantes
a ignoram. Finalmente, os residentes estrangeiros (8%) e naturais da Boa Vista (7%) parecem
atribuir menos importância a este fator que operadores (18%) e residentes de outras ilhas (25%).
Perceção da Motivação: Desporto
Entre as atividades mais praticadas pelos primeiros turistas da ilha, franceses e italianos, isto
entre as décadas de 1970 e 1990, sem dúvida que o desporto aquático era uma das mais procuradas,
particularmente o surf e a pesca. Esta procura deixou a sua marca na comunidade local, já que os
visitantes estrangeiros eram em menor número e quase forçosamente interagiam constantemente
com os habitantes locais:
O mar, o sol, a praia! Isso é o que se sente constatado durante os tempos. Começou com os franceses aquimesmo na praia do Estoril, vinha com esses, para fazer surf, essas pranchas. Há mais de vinte anos, porcausa do vento. (...) Isto logo em 1978, a minha mãe emigrou para Itália em 1979 e já havia esta atividade. (...) Não vinhamem grande número. Antigamente um pescador via um branco e dizia "Olha, amanhã já vai haver vento!".As pessoas já sabiam quando era a época de vento porque eles vinham para cá. URHRNB46
No caso da pesca, este serviço foi explorado sobretudo por italianos e para turistas italianos.
Memórias, comentários e lembranças de grandes pescarias podem ser encontradas, por exemplo,
nas paredes de um restaurante da praça de Sal-Rei, o "Cá Santinha". Hoje, este serviço ainda está
disponível, mas, segundo os locais e estrangeiros, o peixe está mais difícil de apanhar devido à
elevada procura para consumo:
Aqui nós temos coisas especiais! Temos duas coisas daquelas mais especiais que os turistas procuram, Sole Mar! Ou Sol e praia, mas temos outras coisas... temos pesca (...)! URHRNB48
165
VI – Perceções das Motivações em Análise
Atualmente existe toda uma panóplia de desportos náuticos que podem ser praticados nas
praias e nas ondas da Boa Vista, do kite e windsurf, ao skimming, bodyboard à pesca submarina.
Mas também em terra existem alternativas. Falamos concretamente da ultra-maratona internacional
da ilha, que já vai na sua 13.ª edição e que consiste numa corrida de resistência de 150km que
atravessa boa parte da ilha e que conta com a participação de dezenas de atletas de vários países na
categoria 'sem limite'.
Ora as faixas etárias com valores mais elevados nesta perceção encontram-se entre os 40 e
os 69 anos, sendo que a média das três faixas ronda os 15%, bem acima dos 5% entre os 20 e os 39
anos e do nulo dos entrevistados com 70 ou mais anos de idade. Uma nota pertinente é que, ao
contrário do que seria de esperar, a variável da idade aponta para que o desporto seja mais
determinante para as faixas etárias dos 40 aos 69 anos!
O género masculino (9%) supera o feminino (8%) pela margem mínima, ao passo que os
entrevistados de nacionalidade estrangeira (19%) superam largamente os nativos de Cabo Verde
(5%) que parecem quase ignorar o desporto como fator atrativo.
Todos os que mencionaram esta perceção habitam em espaço urbano e, à exceção de um
entrevistado com o ensino preparatório (5%), todos têm o ensino secundário (25%) ou superior
(7%). São os reformados (17%) e os desempregados (17%) que apresentam os valores mais altos
por situação profissional, seguidos por perto pelos empregados (10%). Os restantes não mencionam
o desporto.
Em termos de análise por grupo de residentes, verificamos que os nativos de outras ilhas não
fazem qualquer menção a esta motivação, ao passo que são os residentes estrangeiros (21%) que
mais a valorizam, bem acima tanto dos operadores (9%) como dos nativos da ilha (7%). São os
estrangeiros e os operadores que mais valorizam este fator porque em grande medida são os que
mais a praticam, mas também que dela dependem. É curioso, no entanto, que sejam os adultos mais
velhos que mais importância dão ao desporto.
No caso dos operadores, são vários os pacotes disponíveis para turistas, tanto dentro como
fora dos resorts, já para não falar das várias escolas de surf e serviços semelhantes que operam nas
praias junto a Sal-Rei, e que, apesar de pertencerem a estrangeiros residentes, são nativos da Boa
Vista que nelas trabalham.
Perceção da Motivação: Proximidade166
VI – Perceções das Motivações em Análise
A “Proximidade”, como será claro, aponta para a proximidade geográfica da Boa Vista face
ao principal mercado de clientes, a Europa. É um fator importante na escolha do destino em causa e
é englobada na categoria económica pois, grosso modo, existe uma interdependência entre a
distância e o custo das férias. Daí que este destino apresente preços bastante competitivos:
Primeiro, a beleza das praias, também o mar limpo e o sol, uma ilha muito quente... o voo, cinco horas emeia da Europa à Boa Vista. E também, apesar de algum desenvolvimento turístico, ainda há muito porfazer! URHREB37
Penso que a ilha da Boa Vista e as outras ilhas em geral são bons destinos porque não é muito longe daEuropa. Cinco ou seis horas da Europa de avião. Praticamente não há diferença de fuso horário, só duasou três horas. Não é muito! URHREB68
Uma das vantagens é os voos charter de ligação. URHREB68
A proximidade é importante para indivíduos de meio urbano, com pelo menos o ensino
preparatório, apesar da faixa etária não parecer determinante (devido a profundas variações). O
género masculino (10%) destaca-se face ao feminino (5%), e os dados mostram que é extremamente
determinante para os indivíduos de nacionalidade europeia (24% dos mesmos referiram a
proximidade muito acima dos 4% dos nativos do país). Isso confirma-se quando olhamos para os
grupos, onde 36% dos estrangeiros residentes referiram também este fator, muito acima dos 9% dos
operadores e dos 3% dos autóctones da ilha.
Apesar da surpreendente reduzida atenção dos operadores dada a este fator, não deixa de ser
claro que são os estrangeiros que maior importância lhe atribuem, visto que são eles que se
deslocam e, também por isso, reconhecem o salto qualitativo e quantitativo que a ilha deu com a
expansão do aeroporto para a categoria de aeroporto internacional, permitindo mais voos, mas
também, "melhores voos", ou seja, com pistas capazes de suportar aviões maiores e igualmente
mais confortáveis para os turistas.
Não se deve minimizar a importância do aeroporto internacional. Apesar da proximidade
geográfica, o sucesso do destino está mais intimamente ligado ao aeroporto e uma outra prova disso
é que, até à expansão dessa infraestrutura, o destino era apenas procurado por quem estivesse
disposto a apanhar um segundo avião e perder dois dias de férias em viagens dentro do arquipélago.
O aeroporto internacional é também importante para os outros voos internacionais com ligação à
Europa que não são charter, ou fretados especificamente pelos operadores e agências ligadas
contratualmente aos resorts localizados na ilha. Estes permitem a sobrevivência e crescimento de
muitos pequenos hotéis e residenciais na Boa Vista, mas também de outros negócios como o
167
VI – Perceções das Motivações em Análise
imobiliário ou o comércio.
Perceção da Motivação: Estabilidade
Segue-se a Estabilidade (política e social). Apenas quatro entrevistados consideram que a
estabilidade política e social da jovem democracia multipartidária do país é determinante na decisão
dos turistas em visitar a Boa Vista:
(...) O estado social é estável o que faz com que os turistas venham a Cabo Verde. Em termos políticos esocial. URHRNB48.
Com a abertura do mercado à influência internacional em 1991, e a oficialização da
Constituição de 1992, o país tem gozado de uma estabilidade política e social que se tem reforçado
com a gradual melhoria das suas condições e qualidade de vida. Prova disso mesmo é a ascensão de
Cabo Verde a país de médio desenvolvimento, grau atribuído pelas Nações Unidas em 2008, bem
como, uma rotatividade no Governo entre os partidos PAICV e MPD.
O clima político é determinante para indivíduos de meio urbano que trabalham (seja por
conta própria ou de outrem), e que têm entre 30 e 49 anos de idade. São ainda nativos da ilha e têm
pelo menos o ensino preparatório, sendo que nem o género nem a nacionalidade são determinantes.
Perceção da Motivação: Biodiversidade
O fator menos referido foi a "Biodiversidade", isto é, a riqueza que o ecossistema natural da
ilha detém. Conta apenas com três referências, ou três entrevistados, a listar tal característica como
determinante na escolha dos que visitam a ilha da Boa Vista:
Em termos de clima e paisagem marítima e… a natureza marinha, baleias, tartarugas, é a ilha porexcelência. URHRNB36.
A Biodiversidade é parte integrante do trabalho desenvolvido por técnicos especializados,
em particular biólogos estrangeiros e voluntários locais, que desenvolvem projetos de conservação
de algumas espécies, nomeadamente as apontadas na citação anterior, ainda que possamos
acrescentar algumas espécies de aves migratórias. Estes trabalham, na sua maioria, em duas
organizações não-governamentais, a "Natura2000" e a "Turtle Foudation", mas também, em
gabinetes governamentais localizados no terreno:
Fui ao acampamento da Natura2000 no Lacacão. (…) Há um elevado número de estrangeiros, quasetodos espanhóis das Canárias. Parecem ser cerca de 16 estrangeiros e 10 nacionais. O acampamento temuma tenda central e nas traseiras outra onde se dorme. Entre a praia e o acampamento há uma vasta área
168
VI – Perceções das Motivações em Análise
de lama. Um percurso de duzentos metros onde o perigo de escorregar para o lamaçal está bem presente.A praia em si não tem nada de particular em termos de beleza. Algumas rochas e um areal curto. A mais valia é mesmo ser lugar de nidificação das tartarugas. Pelas 21 horas até às duas da manhã, váriasequipas de três elementos patrulham a praia procurando os rastos das patas das tartarugas. Após a desovaelas são medidas e o lugar do ninho é marcado para proteção. Existe até um espaço, ao fundo da praia,onde são transladados os ninhos para uma proteção mais eficiente.As luzes permitidas são apenas as vermelhas e a roupa obrigatória é escura. Temos ainda de andaragachados para não perturbar a nidificação. Qualquer luz, vulto ou movimento suspeito e as tartarugasinterrompem o processo em definitivo. Todo o cuidado é pouco, mas... de nada serve falar baixo como euestava a fazer para comunicar com os elementos da equipa que acompanhei... as tartarugas são surdas! Os turistas chegam em vários veículos com seus faróis camuflados de vermelho por plástico. Vêm emsilêncio e após uma explicação do processo da visita são criados grupos que separadamente vão para apraia aguardar uma oportunidade de ver de perto a nidificação.O céu estava limpo e as estrelas pareciam multiplicadas. O único clarão de luz artificial distinguível nohorizonte era o do hotel Riu Touareg. Não surpreende que muitas tartarugas acabem perdidas, desidratasou caçadas na costa. A luz artificial é tão potente que, apesar da distância, confunde-as. (DC12/8/2012)
Dado o frágil ecossistema da ilha da Boa Vista e o já longo trabalho desenvolvido por estas
organizações para a formação e alerta da importância da sustentabilidade ambiental das espécies e
dos seus habitats naturais, não deixa de ser surpreendente o reduzido número de menções obtidas.
Aqui, todos os entrevistados eram homens residentes em meio urbano e estavam
empregados, com idades compreendidas entre os 30 e os 49 anos, e com pelo menos o ensino
secundário sem, no entanto, que fosse determinante a sua nacionalidade. Deve-se notar que apenas
os nativos da ilha e os residentes estrangeiros consideraram a "Biodiversidade" como determinante.
2. Perceção e Tendências Sócio-demográficas
Vejamos agora se podemos encontrar algumas tendências reveladoras ao interpretar os dados
cruzados transversalmente da perceção motivacional e das características sócio-demográficas dos
entrevistados88.
Comecemos então com o género. Uma leitura transversal mostra uma tendência interessante
onde o género masculino é o que mais fatores identifica independentemente do que é percecionado,
chegando mesmo ao ponto de ser o único a considerar o fator "Biodiversidade", como já fizemos
referência.
Se ao recordarmos a análise anterior, podemos verificar que em cinco fatores a diferença é
de apenas mais 5% para os homens, e noutras três essa variação é igual ou inferior a 2%, é ainda
assim inegável que o género masculino parece mais atento quantitativa e qualitativamente aos
fatores que motivam os turistas a visitar a ilha da Boa Vista, ainda que nestes casos, por margem
reduzida. Contrariamente, uma última leitura revela que nos dois fatores mais mencionados as
88 Todos os resultados encontram-se no CD-Rom em formato de Excel, no Anexo C.169
VI – Perceções das Motivações em Análise
distâncias entre os géneros são as maiores atingindo uma variação de 9% no fator "Natureza" e uns
significativos 14% no fator "Clima". É pertinente reforçar que o género é, sem dúvida, uma variável
reveladora entre os entrevistados.
No que se refere à nacionalidade, os dados mostram uma predominância quantitativa dos
não caboverdianos, denominados de Estrangeiros. Dos dez fatores motivacionais apontados pelos
entrevistados, sete são dominados por este grupo, no entanto, em cinco destes as variações são
inferiores a 4%, e nas restantes duas (desporto e proximidade) estas oscilam entre os 14% e os 20%
(respetivamente)! Os nacionais do arquipélago caboverdiano apenas apresentam dados superiores
nos fatores clima, cultura e infraestrutura, sendo que deste, o único que tem dados superiores a 4%
de variação é o clima com 8%.
Isto sugere que os nacionais de Cabo Verde são, em termos absolutos, menos capazes de
apontar fatores motivacionais, ainda que se deva notar que estes têm maior superioridade percentual
face aos estrangeiros no segundo e terceiro fatores mais mencionados (clima e cultura). Esta
referida menor capacidade de encontrar fatores que motivam a deslocação de turistas estrangeiros
poderá residir no facto de os nativos europeus serem precisamente oriundos da região emissora dos
turistas, a Europa, e assim deter maior capacidade de descortiná-los.
170
Natureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Perceção das Motivações por Género
Feminino
Masculino
Percentagem Interna
Mo
tiva
ção
Figura 6.2: Perceção das Motivações dos Turistas por Género
VI – Perceções das Motivações em Análise
Em certa medida tal pode ser confirmado ao analisarmos a perceção por Grupo de
Residência, onde os Residentes Estrangeiros da Boa Vista apresentam percentagens superiores a
qualquer outro grupo em seis fatores, ainda que no caso de em quatro destes fatores a vantagem seja
mínima face ao grupo dos Operadores (este com maioria de elementos estrangeiros, 7/11).
Na verdade, os Operadores são os claros líderes das menções ao fator clima onde, como já
foi referido, apresentam valores bem mais elevados que qualquer outro grupo. Apesar de apenas
liderarem neste fator, em pelo menos outras sete circunstâncias encontram-se numa segunda
posição, ainda que no caso da cultura e tranquilidade estejam ex-aequo com os Residentes Naturais
da Boa Vista.
Entre os nativos de Cabo Verde, os provenientes de outras ilhas apenas superam os restantes
grupos nas menções à infraestrutura e à cultura e, entre os nativos da Boa Vista, em nenhuma
circunstância conseguem superar os restantes grupos. O que serve apenas para confirmar o claro
domínio de estrangeiros e operadores face aos restantes grupos no que se refere à perceção
motivacional.
171
Natureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Perceção das Motivações por Nacionalidade
Caboverdianos
Estrangeiros
Percentagem Interna
Mo
tiva
ção
Figura 6.3: Perceção das Motivações dos Turistas por Nacionalidade
VI – Perceções das Motivações em Análise
Uma variável de leitura transversal que tem particularidade interessante é sem dúvida ao
espaço de Residência. Quantitativamente, são os habitantes de espaços urbanos que mais fatores
lideram, sete em dez possíveis, chegando mesmo a ser os únicos nos quatro fatores menos
mencionados (Desporto, Proximidade, Clima Político, e Biodiversidade), e a liderar por larga
margem no caso da Propaganda, da Infraestrutura Hoteleira, e da Natureza. Todavia, em três dos
quatro fatores mais mencionados, Clima, Cultura, e Tranquilidade, são os residentes em meio rural
que atingem maiores percentagens internas. Percebemos que os rurais dominam os fatores sociais,
ao passo que os urbanos são claros dominantes nos fatores de tipo económico e ambiental.
O domínio dos residentes de meio rural nos fatores sociais vai, por um lado, ao encontro da
valorização da tranquilidade dos seus espaços face aos espaços de onde provêm os turistas, e por
outro, da ideia de que são estes que valorizam e preservam a "verdadeira cultura". Como referimos
no ponto anterior, uma ideia claramente enraizada entre os entrevistados, mesmo entre os que
habitavam em meio urbano.
172
Natureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Perceção das Motivações por Grupo de Residentes
RNB
RNOI
REB
Operadores
Percentagem Interna
Mo
tiva
ção
Figura 6.4: Perceção das Motivações dos Turistas por Grupo de Residentes
VI – Perceções das Motivações em Análise
A Escolaridade é uma característica sócio-demográfica cujos dados não revelam grandes
surpresas. Como será expectável, os melhores níveis de escolaridade, ensino secundário e superior,
apresentam uma liderança em seis dos dez fatores motivacionais, sendo que esta tendência é apenas
quebrada em três outras circunstâncias pelo ensino preparatório, nomeadamente, nos casos da
Natureza, Cultura e Estabilidade, ainda que seja nos primeiros dois que os valores apresentados
disparam bem acima dos outros níveis de escolaridade.
Sem surpresa, o ensino primário apresenta-se quase sempre na última posição, com exceção
dos fatores Propaganda e Desporto, e de uma surpreendente liderança no caso da Hotelaria, ainda
que por ligeira vantagem. Estes dados confirmam que os entrevistados com níveis de escolaridade
mais elevados estão mais atentos aos fatores que levam os turistas à ilha da Boa Vista.
173
Natureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Perceção das Motivações por Área de Residência
Urbano
Rural
Percentagem Interna
Mo
tiva
ção
Figura 6.5: Perceção das Motivações dos Turistas por Área de Residência
VI – Perceções das Motivações em Análise
No que se refere à Situação Profissional, os dados apontam uma tendência quanto aos
fatores motivacionais que se prende com o facto de o grupo de desempregados ser o que menores
valores apresenta, com exceção do Desporto que divide a liderança com os reformados, chegando
mesmo a ignorar completamente quatro dos fatores, entre eles, a Cultura, um dos mais
mencionados, e a apresentar os valores mais baixos no caso dos fatores Clima e Tranquilidade.
Já os reformados, apesar de ignorarem a Propaganda, o Clima Político e a Biodiversidade,
apresentam valores internos nos restantes fatores acima dos 16%, chegando a encabeçar o fator
Clima, Proximidade e Infraestrutura Hoteleira, demonstrando assim uma atenção consistente aos
fatores motivacionais. Já os trabalhadores por conta própria ignoram o Desporto e a Biodiversidade,
mas de resto, os seus números são elevados em todos os fatores, com destaque para os seis fatores
mais mencionados. Os empregados apenas lideram o fator Biodiversidade e Cultura, mas são os
únicos presentes em todos os fatores, conduzindo sem contestação a Biodiversidade e a Cultura. Os
dados parecem sugerir que os elementos desempregados contrariam a tendência geral e encontram-
se, em larga medida, indiferentes à perceção dos fatores motivacionais.
Finalmente, a Faixa Etária é a característica com valores mais flutuantes, sendo que, ainda
assim, se pode vislumbrar uma tendência onde as faixas etárias mais novas estão mais atentas aos
174
Natureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Perceção das Motivações por Escolaridade
Primário
Preparatório
Secundário
Superior
Percentagem Interna
Mo
tiva
çõe
s
Figura 6.6: Perceção das Motivações dos Turistas por Escolaridade
VI – Perceções das Motivações em Análise
fatores motivacionais que as restantes. Por exemplo, pelo menos uma das duas faixas etárias mais
novas (20-29 e 30-39 anos de idade) lidera em quatro dos fatores, e encontra-se em segunda posição
ou em igualdade com outra faixa etária em outros quatro fatores.
Existem aqui outras particularidades dignas de nota, como o caso da faixa etária dos 60-69
anos comandar nos fatores Proximidade, Desporto e Infraestrutura, e seguir o líder no caso da
Cultura. Ou seja, os dados apresentam-se dispersos e sem claras tendências, tanto ao nível das
percentagens internas dos agrupamentos de idades, como numa leitura aos tipos de fatores, levando
a considerar que esta variável não será determinante no que se refere à perceção motivacional, com
exceção dos mais jovens que parecem mais enunciadores de fatores motivacionais.
175
Natureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Perceção das Motivações por Situação Profissional
Empregados
Desempregados
TCP
Reformados
Percentagem Interna
Mo
tiva
ção
Figura 6.7: Perceção das Motivações dos Turistas por Situação Profissional
VI – Perceções das Motivações em Análise
20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 700
10
20
30
40
50
60
70
80
90 Perceção das Motivações por Faixa EtáriaNatureza
Clima
Cultura
Tranquilidade
Propaganda
Hotelaria
Desporto
Proximidade
Estabilidade
Biodiversidade
Faixa Etária
Figura 6.8: Perceção das Motivações por Faixa Etária
3. Os Turistas e as suas Motivações
Ao falarmos da motivação percecionada pelos residentes entrevistados, importa cruzar estas
com as motivações que os turistas declararam nos questionários89. Como descrevemos no capítulo
dedicado à metodologia, a maioria dos turistas viajava pela primeira vez a África (52%) e na sua
maioria pela primeira vez a Cabo Verde (78%), o que por arrasto implica que quase todos
conheciam a ilha da Boa Vista pela primeira vez (93%)! Ora, 40% destes revelaram estar curiosos
com a ilha, 19% optaram pela Boa Vista ao se depararem com a opção na Internet, 16% seguiram
recomendação de anteriores turistas, 13% por confiaram na agência de viagens ou no hotel onde
estavam hospedados e 12% foram sobretudo acompanhar um amigo ou familiar.
Como é visível, não é possível realizar uma comparação direta entre os questionários e as
entrevistas, visto que apresentam categorias diferentes; no entanto, existem semelhanças
interessantes. Desde logo, sendo a opção “curiosidade” abrangente, ao ponto de incluir vários tipos
de curiosidade – pela praia, temperatura, cultura, etc. – podemos inferir que os residentes têm uma
noção muito aproximada das motivações dos turistas. Isto reforça-se no caso da infraestrutura
hoteleira, que para 11% dos entrevistados é um fator determinante na motivação dos turistas; ora,
como os resultados mostram, de facto, 13% dos turistas afirmam que o hotel ou a agência de
viagens foi a principal motivação para a sua escolha.
89 Os resultados encontram-se no CD-Rom, em formato de SPSS, no Anexo C.176
VI – Perceções das Motivações em Análise
Por outro lado, apenas 16% dos inquiridos optou pela Boa Vista por recomendação de
anteriores turistas, o que nos leva a questionar porque assim sucede, questão que retomaremos nos
capítulos seguintes.
Na verdade, a incompatibilidade entre as categorias de resposta dos questionários e das
entrevistas não foi inocente. Dadas as dificuldades da aplicação dos questionários, referidas no
capítulo da metodologia, estes foram o mais possível despidos de opções de resposta de forma a
aplicar os mesmos mais rapidamente, satisfazendo assim uma das exigências dos operadores. Em
suma, este bloco do questionário tem sobretudo uma utilidade comparativa mais fértil quando voltar
a ser aplicado por outros investigadores ou entidades interessadas, no futuro. Pois, resta definir em
que consiste aquela curiosidade. De qualquer forma, os resultados obtidos junto dos turistas revelam
que existe uma elevada curiosidade em conhecer o destino, e em muitos casos a viagem é a primeira
experiência em Cabo Verde e até no continente africano.
Uma outra forma de verificarmos a motivação é através da avaliação que os turistas fazem
da sua experiência. Olhemos com atenção para outros resultados dos questionários aplicados aos
turistas.
No que concerne a avaliação dos turistas quanto à sua experiência nas diversas categorias
colocadas, refira-se o claro predomínio positivo das opções “praia”, “comida”, “hotel” e “gente”,
como de resto o próximo gráfico o demonstra com clareza:
177
VI – Perceções das Motivações em Análise
Ou seja, 77% dos inquiridos afirmou gostar muito da praia, 15% gostou, e apenas 7% se
mostrou indiferente à experiência. Cerca de 39% gostaram muito da comida, 52% apenas gostaram,
7% foi indiferente à comida, e 2% não gostaram. A gente foi avaliada de forma muito positiva
(“gostei muito”) por 41%, e positiva (“gostei”) por 39%, 18% mostrou-se indiferente e 2% não
gostou da sua experiência nesta categoria. Finalmente, um terço dos turistas gostou muito do hotel e
57% gostou, também, cerca de oito mostraram-se indiferentes e, novamente, apenas 2% não
gostaram.
Apesar de 49% ter apreciado os preços, e 17% ter apreciado muito, 16% dos inquiridos
foram indiferentes aos preços ou mesmo não gostaram dos valores cobrados, e, por fim, 2% não
gostaram nada dos preços, é dizer, acharam-nos elevados.
A cidade de Sal-Rei recolheu apenas dois “gostei muito” e vinte e nove “gostei”, sendo que
49% dos inquiridos saiu da ilha com uma avaliação indiferente da capital do ilhéu, 18% afirmaram
que não gostaram, e 2% que não gostaram nada. As aldeias do interior foram muito apreciadas por
6% dos turistas e apreciadas por 21%, ao passo que a maioria, 54%, manifestou indiferença, 16%
não gostou e 3% não gostou nada.
Caminhando para o final, o artesanato foi avaliado com 7% “gostei muito” e 18% “gostei”,
mas 40% dos turistas ficaram indiferentes, 30% não gostou dos objetos e 5% não gostou nada. Os
tours disponibilizados pelos operadores tiveram uma avaliação muito positiva em dezasseis casos
178
Praia Comida Gente Preços Hotel Sal-Rei Aldeias Artesanato Tours0
10
20
30
40
50
60
70
80 Avaliação dos Turistas por Categoria
Não Gostei Nada
Não Gostei
Indiferente
Gostei
Gostei Muito
Figura 6.9: Avaliação dos Turistas por Categoria
VI – Perceções das Motivações em Análise
(16%), positiva em trinta e um (31%), indiferente em quarenta e sete (47%), e não foram apreciados
em seis (6%). Vejamos todos estes dados sintetizados no quadro seguinte:
Sem dúvida que a perceção dos residentes da grande motivação dos turistas ser a praia terá
origem na satisfação que os turistas demonstram desta sua experiência. Igualmente, os hotéis e a
comida neles servida é considerada de elevada qualidade e é da mesma forma um motivo de agrado
para os turistas. Concomitantemente, as gentes que acolhem os turistas são avaliadas de forma
muito positiva. Os resultados apresentados permitem admitir com algum conforto que as perceções
das motivações dos residentes face aos turistas são, grosso modo, e dentro do que é possível
comparar, muito aproximadas.
179
Avaliação Média (1-5) por CategoriaCategoria Média Desvio
Praia 4,69 0,615
Comida 4,28 0,683
Gente 4,19 0,8
Preços 3,63 1,012
Hotel 4,21 0,671
Sal-Rei 3,11 0,79
Aldeias 3,11 0,852
Artesanato 2,92 0,981
Tours 3,48 0,82
Quadro 6.2: Avaliação Média por Categoria
VII – Impactos Percecionados em Análise
VII – Impactos Percecionados em Análise
Neste capítulo apresentamos e discriminamos os resultados obtidos referentes aos impactos
percecionados pelos entrevistados. Estes estão divididos entre positivos e negativos, e são
acompanhados por uma breve descrição e definição dos mesmos, cruzados com dados ou
experiências recolhidas durante a presença do investigador no terreno.
1. Impactos Positivos Percecionados
Quadro 7.1: Impactos Positivos Percecionados
Os impactos positivos declarados foram onze, sendo que, ao contrário das motivações, os
impactos ambientais (a cor-de-rosa) detêm uma atenção marginal, com apenas três referências em
“Proteção Ambiental”, totalizando apenas 1%. Já os impactos de cariz económico (a verde) ocupam,
sem dúvida, o lugar de destaque com 67% do total das referências. Estes são: “Criação de
Emprego”, “Infraestruturação”, "Melhoria das Condições de Vida”, “Crescimento Económico” e
“Entrada de Divisas”. Se analisarmos com atenção a tabela que quantifica o número de menções,
verificamos que dos cinco principais impactos referenciados, quatro enquadram-se nesse grupo.
Apesar de representados na parte superior da tabela, na terceira posição, a curta distância do
segundo impacto mais apontado, os impactos sociais ocupam um lugar de médio destaque, com
29% das referências totais. Estes são: “Migração”, “Intercâmbio Cultural”, “Aumento dos Níveis
Profissionais e Culturais”, “Revitalização das Tradições” e “Procura por Artesanato”. Tal como se
procedeu no ponto anterior, iniciaremos a análise com os impactos mais referenciados.
182
VII – Impactos Percecionados em Análise
Criação de Emprego
Apesar de um apogeu pontual, a ilha da Boa Vista padeceu de uma periferia de séculos não
só administrativa como também económico-estratégica. A sua comunidade habituou-se ao longo dos
séculos a procurar uma vida melhor nas outras ilhas do arquipélago e noutros países, já que até o
setor primário encontra dificuldades acrescidas devido às suas características climáticas.
Um terreno seco com pouca pluviosidade anual equivale a baixa produção agrícola e a uma
produção pastorícia limitada. São comuns as histórias de migração forçada para fugir à fome e a
outras privações.
Desde a sua independência, Cabo Verde tem elevado o seu nível alfabetização e literacia, e
até recentemente, por causa das limitadas infraestruturas escolares, apenas algumas dezenas de
jovens locais terminaram estudos superiores com e sem o apoio da Câmara Municipal, Governo e
privados. Mas, uma vez formados, encontrar uma oportunidade de trabalho na sua ilha natal
revelava-se extremamente complicado.
Com o impulso da construção de infraestruturas para o turismo, e a chegada de novas
empresas à Boa Vista, o cenário hoje é quase o oposto. Em menos de vinte anos a economia local
fervilha e são inúmeras as oportunidades para trabalhar na ilha, tanto para locais como para
estrangeiros ou migrantes nativos:
Hoje em dia, esta nova geração que tem aquela coisa de 'não vou sair [emigrar para trabalhar], queroestudar! Quero um futuro melhor para mim, mesmo que seja fora de Cabo Verde!' (...). URHRNB36
Deixamos exemplos dessa perceção entre os entrevistados:
A ilha da Boa Vista é a que tem a taxa de desemprego mais baixa do país e a que mais contribui para oPIB nacional neste momento, e vai resolvendo os problemas do país de desemprego. URMREB34
O futuro da Boa Vista é de trabalho e de luta sim! (...) há trabalho para todos! BFHRNB95
Em termos da população concreta, a criação de emprego trouxe mais emprego, beneficiou com isso... mastambém o turismo é all-inclusive e a população não ganha muito com isso! A única forma que apopulação ganhou foi o emprego, de outra maneira não me parece que a população tenha ganho muitocom o turismo! URHRNB30
Ali a partir do aeroporto internacional muito, uma mudança boa na ilha. Aquele RIU por exemplo, haveremprego ali. Mais do lado do trabalho... muitas coisas melhoraram. (...) aeroporto, o RIU... os dois hotéisRIU... tem dado muito emprego essas infraestruturas, o resto são poucas [outras melhorias]. FFMRNB38
Se formos ver os hotéis que tem turismo de massa... eles fazem aqueles hotéis, dão mão de obra... éevidente que o salário é barato, mas já é contributo que estão a dar para quebrar a taxa de desemprego daBoa Vista! URHRNB48
183
VII – Impactos Percecionados em Análise
Bom... (...) estou cá à mais ou menos quatro anos... desde 2008... (...) o motivo principal para estar na BoaVista é a questão de busca de oportunidades e trabalho! Neste momento a Boa Vista é o mercado maisfluído e segmentado... proporciona mais postos de trabalho e oportunidades de trabalho! (…) Estamos aver, aqui está a ter um boom no turismo que significa um incremento de postos de trabalho significativo!(...) Mas é uma oportunidade limitada, setorizada por competência, habilitação e formação também!URMRNOI30
Então trouxe à Boa Vista mais desenvolvimento e postos de trabalho, e muitíssimos postos indiretos.URMOP40
O aumento do emprego. A melhoria considerável da vida das pessoas. Mais emprego, ganhasse mais.URMRNOI32
Estas e outras citações são prova clara da preponderância que a criação de emprego tem na
vida dos habitantes da ilha e a sua posição isolada na tabela das perceções positivas confirma essa
mesma importância atribuída. Com quase dois terços dos entrevistados a referirem este fator, é sem
surpresa que a caracterização geral dos entrevistados que a mencionaram seja também dispersa.
Ainda assim, podemos apontar como uma das tendências a idade dos entrevistados. As três
faixas etárias com maior incidência de menções são as três mais jovens, sendo a maior percentagem
interna da faixa entre os 30 e os 39 anos de idade com 84%, quase o dobro das três faixas de idade
superior, que apresentam percentagens internas entre os 33% (60-69 anos) e os 43% (50-59 anos).
Isto demonstra que, quanto menor a idade, maior a importância dada à criação de emprego como
fator positivo, algo que é compreensível uma vez que a maioria dos novos postos de trabalho são
sobretudo para jovens adultos na construção civil ou hotéis e operadores turísticos.
Também de compreensão imediata, é o facto de, em termos de nível de escolaridade, sejam
os entrevistados com menor nível que maior importância atribuem à criação de emprego, uma vez
que os postos de trabalho são na sua maioria para mão de obra não especializada (barman,
camareiras, guias turísticos, trolhas, etc.). Os dados mostram que os entrevistados com o ensino
primário (79%) e ensino preparatório (80%) apresentam valores internos bem acima dos
entrevistados com ensino secundário (56%) e superior (28%).
Em termos de género, deve-se assinalar que ambos reúnem percentagens internas próximas,
mas são os homens que apresentam valores superiores (com 37%) face às mulheres (27%). O
mesmo ocorre se cruzarmos os dados em termos de situação profissional: com exceção dos
empregados (71%), os restantes grupos apresentam valores médios próximos dos 53%. A
entrevistada doméstica também fez referência a este fator e, portanto, nesta categoria apresenta uma
percentagem interna de 100% que deve ser sempre relativizada. A superior percentagem dos
184
VII – Impactos Percecionados em Análise
empregados entre os entrevistados vai ao encontro de que imensos novos postos de trabalho
emergiram com o turismo massificado.
Esta proximidade já não se verifica no caso da nacionalidade, já que, com enorme destaque,
são os nativos que mais importância atribuem a este aspeto positivo, com 71%, bem acima dos 52%
dos estrangeiros. Esta diferença não deve despistar o facto de ambas as percentagens serem
elevadas, sublinhando a importância da criação de emprego.
O mesmo ocorre em termos de lugar de residência, já que os habitantes de espaço urbano
dão maior importância (70%) que os de espaço rural (59%). Ou seja, até os habitantes afastados dos
centros urbanos e dos espaços hoteleiros, onde estão disponíveis esses novos empregos, reconhecem
a sua importância, ainda que com menor incidência que os habitantes urbanos.
A última característica sócio-demográfica a tratar é o grupo, onde, com esmagadora
percentagem, os residentes nativos de outras ilhas, ou seja, os migrantes, apresentam percentagens
internas de 92%, logo seguidos dos operadores (empregadores) com 73%, e depois, os nativos com
66%. Percentagens elevadas que contrastam com os residentes estrangeiros (43%). Esta análise por
grupo sustenta mais uma vez a tese de que a criação de emprego é sem dúvida um fator positivo de
elevado destaque, em particular para os que dele mais beneficiaram, os migrantes por um lado e os
empregadores por outro:
Um dos jovens chamava-se (…) e era o animador principal do catamarã. Tinha 25 anos e era de Santiago.Inicialmente o seu pai havia chegado à ilha para a construção de alguns hotéis, e depois chamou-o. O paientretanto regressou mas ele trabalha em turismo à cinco anos sendo que aquele trabalho já o ocupa à três.Vive nas barracas onde paga 4000 ECV pelo quarto e mais 1000 de eletricidade porque tinha umalâmpada. O resto do salário é para comer 'Mas não se pode comer muito, para poupar'! Conta regressarem breve com o dinheiro que poupou para se casar e comprar um pequeno terreno agrícola na sua ilha.(DC 27/11/2012)
É de notar que aqui não falámos de questões que orbitam o emprego, como é o caso da
exploração laboral, da migração, ou dos níveis profissionais. Cada um destes pontos tem o seu
espaço e será tratado de forma independente.
De acordo com os dados do World Travel & Tourism Council, o emprego direto e indireto
gerado pelo turismo no país, no ano de 2013, foi de 84.500 empregos, cerca de 38,3% do emprego
nacional, e estima-se que em 2014 o turismo seja responsável por 39,1%, chegando muito próximo
dos noventa mil empregos. Salvo uma quebra em 2009, o emprego associado ao turismo tem
crescido e só os empregos diretos chegaram aos 14,5% em 2013 (WTTC, 2013). Já no ano de 2012,
a principal cadeia hoteleira nacional, a RIU, disponibilizou um relatório onde apontava para 1.110
185
VII – Impactos Percecionados em Análise
empregos na Boa Vista e uma despesa salarial direta que ultrapassava, a nível nacional, desde 2005,
os 25 milhões de euros anuais.
A criação de emprego é um fator incontornável e da maior importância para os entrevistados
e os dados comprovam-no, indo ao encontro de muitos outros estudos internacionais (como Milman
e Pizman, 1988; Faulkner e Tideswell, 1997; Andriotis, 2008; Gu e Ryan, 2008; entre outros).
Apesar do seu destaque, não devemos descartar os próximos impactos positivos percecionados, em
particular os dois próximos que totalizam ligeiramente menos.
Infraestruturação
Como referimos já nas perceções que os entrevistados tinham das motivações que moviam
os turistas para a Boa Vista, as infraestruturas hoteleiras são determinantes para cativar e manter
clientes; mas não só essas como outras infraestruturas basilares, entre elas, o aeroporto:
Antes tínhamos o aeródromo do Rabil, agora, o aeroporto pronto mal dava para os voos nacionais, passounum espaço muito curto de tempo de um aeroporto nacional a internacional e isso veio melhorar.URHRNB36
A Boa Vista não era assim procurada, não tinha quase nada. Há diferenças significativas em todos osaspetos. Depois da construção do aeroporto houve muitas mudanças. A ilha foi procurada por váriaspessoas das outras ilhas…muitas mudanças em todos os aspetos. BFHRNB29
Isso é uma parte essencialmente do Governo de Cabo Verde que na sua visão optou por investir nas bases,nos pilares de desenvolvimento, aqueles grandes investimentos que nós, localmente, não conseguimosmobilizar recursos para os fazer. (...) Eu acho que as pessoas beneficiam sim dessas obras, acabam porcriar condições para o bem-estar de todos. A mesma pessoa que é do norte e nunca viajou e diz que nãobeneficiou com a construção do aeroporto, se calhar está com uma visão errada porque, se calhar, elatrabalha no hotel RIU e esse hotel depende do aeroporto! URHRNB31
Mas também, vias de comunicação que vieram substituir antigos caminhos de terra-batida
ou empedrados, assim como, foram criadas novas vias que aproximaram as populações:
Em termos de transporte teve muito impulso, a nível terrestre e aéreo. Mais possibilidade de viajar, a ilhaestá mais próxima do Mundo! URHRNB48
Antigamente havia um complexo entre pessoas do Rabil, que éramos considerados pessoas do interior, emrelação às pessoas da cidade de Sal-Rei. (...) Eu sinto como um cidadão da cidade, eu penso que é umaspeto positivo para a Boa Vista e para a população do Rabil.I: O que permitiu isso, foi a estrada?Exatamente, o acesso. Antigamente na época dos meus pais só podiam ir para a vila uma vez por mês etinham de reservar transporte com semanas de antecedência, o que hoje não acontece porque se podeapanhar a qualquer momento! URHRNB29b
O sucesso de um destino turístico depende da satisfação dos seus trabalhadores e residentes,
e esta está intimamente interligada com a sua qualidade de vida. Daí que, em segundo lugar entre os
186
VII – Impactos Percecionados em Análise
impactos positivos do turismo, os entrevistados tenham referido a construção de outras
infraestruturas como o hospital, a habitação, entre outras cuja edificação se deve indiretamente à
chegada do turismo massificado:
Foi preciso os turistas e haver interesse para... 'realmente é preciso um hospital!'. (...) As pessoasreclamam, reclamam mas sentadas no sofá. Os estrangeiros que vêm cá é que acabam por fazer algumacoisa! (...) Se não fosse por eles, íamos estar a mesma coisa. URHRNB36
Sal-Rei está mudado, mudado! (…) Para melhor. A vida está diferente, completamente! Tem grandesprédios. JGHRNB73
Temos praça em melhores condições, um mercado municipal, um parque infantil... etc. Enfim, temosessas infraestruturas que não tínhamos anteriormente. URHRNB27
Já há algum tempo que andamos a pedir água (...) este ano houve chuva e os agricultores estão bastanteanimados, graças aos diques construídos. JGHRNB59
Iniciando a análise cruzada das características sócio-demográficas com este impacto
positivo, destacamos primeiramente a faixa etária: existe uma tendência para atribuir menor atenção
a este impacto à medida que avançamos nos subgrupos de idade. No entanto, numa leitura faixa por
faixa é possível determinar que existem duas exceções entre os grupos mais velhos, que apresentam
uma ligeira subida face aos entrevistados com idades entre os 50 e os 59 anos, com percentagem
interna de 29%. Ainda assim, os valores mais elevados são entre os entrevistados com idades
compreendidas entre os 20 e os 29 anos (70%) e os 30 e os 39 anos (53%), logo seguidos pelos 40%
dos subgrupos 40-49 e os 50-69 anos.
Entre o género feminino (53%) existe uma maior perceção face a este impacto em relação ao
masculino (48%); no entanto, os valores são demasiado próximos para se fazer retirar qualquer
conclusão preliminar. O mesmo ocorre com as nacionalidades onde a diferença é de apenas 3%
entre os nativos (51%) e os estrangeiros (48%), e na residência, onde os habitantes de meio rural
(53%) apresentam percentagem interna 3% acima dos de meio urbano. É dizer, nenhuma destas
características parece ser determinante no perfil dos entrevistados que apontaram para este impacto.
Conclusão semelhante pode ser retirada quando analisamos a situação profissional onde os
valores variam entre os 51% dos empregados, 50% dos desempregados, 45% dos trabalhadores por
conta própria, sendo que apenas os 33% dos reformados emerge com maior distância.
Em termos de nível de escolaridade surge novamente uma tendência crescente, ou seja,
quanto maior a escolaridade maior a percentagem interna de entrevistados que apontam à
construção de infraestruturas. Os valores crescem entre os 42% dos entrevistados com o ensino
187
VII – Impactos Percecionados em Análise
primário e os 59% dos com o ensino superior; no entanto, deve fazer-se nota aos reduzidos 31% dos
entrevistados com o ensino secundário que contrariam esta tendência.
Os resultados que possivelmente mais surpreendem são os da análise por grupo, onde os
nativos (54%) e os operadores (55%) lideram. Os primeiros são os que maior proveito retiram das
infraestruturas públicas criadas, e os segundos das infraestruturas privadas. Seguidamente são os
estrangeiros (43%) e os oriundos de outras ilhas (33%). Ao passo que os estrangeiros beneficiam de
ambas as estruturas, devido à sua motivação empresarial, não deixa de parecer estranho que apenas
uma percentagem tão baixa de migrantes destaque a criação de infraestruturas, uma vez que os
migrantes são a principal força de trabalho nessas construções.
Resta apenas referir que esta perceção parece ajustada ao crescimento registado de
infraestruturas na ilha, nomeadamente de empreendimentos hoteleiros, cujos dados estão
discriminados em capítulo anterior dedicado à contextualização da ilha, assim como, vai ao
encontro dos trabalhos de referência de autores como Akis et al (1996), ou Ap e Crompton (1998).
Migração
Com praticamente o mesmo número de menções, a migração para a Boa Vista surge na
terceira posição dos impactos positivos percecionados pelos entrevistados. Optámos por criar a
categoria de migração no lugar de emigração e/ou imigração, agregando ambos subgrupos, uma vez
que a questão prende-se com o movimento de pessoas para a Boa Vista e não a sua proveniência.
No que se refere aos impactos de grupos de pessoas de proveniências diferentes na sociedade
boavistense, trataremos nos impactos negativos no ponto destinado à 'descriminação', e à 'divisão
desigual dos benefícios entre a comunidade local':
(...) muitos turistas, muitos operadores europeus, muita gente de outras ilhas, da costa de África... mudou aidentidade da ilha comparado à 10 anos! URHREB37
Esta força de trabalho que chega à ilha é composta inicialmente por migrantes nativos, em
particular da ilha de Santiago, e gradualmente reforçada por gente de outras ilhas e de origens tão
diferentes como países da costa africana, Senegal e Guiné, e da Europa, como Itália e Espanha, e
ainda nativos da Boa Vista que regressam em virtude das oportunidades que vão sendo criadas. Ora,
como será evidente, a criação de empregos e de mão de obra que a construção de infraestruturas e
seu funcionamento requer. Seguindo essa lógica, não surpreende que a migração para a ilha seja o
ponto seguinte com maior número de menções. Nas palavras dos entrevistados:
188
VII – Impactos Percecionados em Análise
Para mim o aumento da população foi um impacto positivo. URMRNOI32
Eu muitas vezes digo que o turismo da Boa Vista e a vinda das pessoas das outras ilhas, sobretudo deSantiago e da costa ocidental de África, é um mal menor para o nosso turismo, era uma necessidade quetínhamos e temos de preparar para arcar com essa responsabilidade. URHRNB36
Tivemos uma migração enorme, nos últimos três, quatro anos por causa desses hotéis. A maioria doscaboverdianos desempregados noutras ilhas viajavam para cá a procurar trabalho e encontravamfacilmente. Vão ganhar muito mais do que nas suas ilhas! URHREB35
Éramos até 6 mil pessoas à cinco anos atrás, hoje somos onze mil ou doze mil pessoas com a chegada depessoas das outras ilhas, e de África. Todos à procura de trabalho. Hoje só não tem trabalho quem nãoquer! Sempre relacionados com os hotéis! (...) Na Boa Vista havia essa tradição e quase toda a gente tinhafamiliares emigrados! URHRNB33
Agora o ponto forte era claramente o turismo! No princípio criou muito e a população aumentou de umamaneira extremamente rápida e as pessoas invadem a trabalhar nesses hotéis por causa dessa abertura.Assim o povo garante a maior parte da vida no turismo. URMRNB46
É curioso que, apesar das inúmeras oportunidades de emprego oferecidas direta e
indiretamente pelo turismo, são muitos os nativos, principalmente os jovens na casa dos 20-40 anos
de idade, que estão desempregados ou que têm algum tipo de emprego a tempo parcial e/ou
esporádico. Não estão disponíveis dados concretos que comprovem esta perceção geral dos
entrevistados, mas o próprio investigador ficou com essa mesma perceção. Ao lidar diariamente
com membros da comunidade local nativa são vários os casos que poderiam ser enumerados, cujas
justificações mais comuns apresentadas pela população apontavam para fatores culturais:
Alguns porque têm famílias emigradas e não querem fazer nada… é por isso que existiu essa necessidadede recrutar pessoas para trabalhar porque a gente da Boa Vista, de facto, não queria trabalhar, alguns sim,mas a maioria não queria. BFHRNB29
Esses badios, como dizem aqui, se forem embora, não tem quem trabalhe! A população aqui... são gentede outras ilhas e guineenses que estão aqui! URFOP29
Tendência essa que muitos sugeriam começar a alastrar aos nativos de outras ilhas que
vieram com o intuito de trabalhar:
O caboverdiano gosta de festa e gosta de dançar. Gerir um hotel é muito difícil aqui. Quando há uma festa(...) no dia depois fico com 50% do pessoal a menos! É por isso que cada vez mais trabalham guineenses,eles estão sempre lá. Não tem essa coisa... URHREB51
Há muitos Senegaleses e Guineenses aqui, quando os turistas franceses estão aqui dizem que não pareceCabo Verde parece o Senegal! (...) Ao menos eles vêm aqui para trabalhar, porque o caboverdiano emgeral quer ganhar dinheiro sem fazer nada. URMOP47
Veremos no ponto dedicado à descriminação como os nativos da Boa Vista e mesmo de
outras ilhas começam a apontar como negativa a presença dos estrangeiros, sobretudo da África
continental. Todavia, deve ser feita a nota de como esses mesmos emigrantes estrangeiros começam189
VII – Impactos Percecionados em Análise
já a trabalhar para os locais, mesmo em trabalhos agrícolas no interior da ilha:
Sim, já começamos a ter porque aqui há pouca mão de obra, há pouca gente. Então os agricultorestrabalham com essa gente da vizinha África. JGHRNB33
Em termos de faixa etária não existe nenhuma tendência claramente visível. Os valores
oscilam entre os 33% dos entrevistados entre os 60 e 69 anos, chegando até aos 55% entre aqueles
com idades compreendidas entre os 30 e 39 anos. A nota de destaque vai para a exceção dos 71%
dos entrevistados com 50 a 59 anos de idade. Contrariamente, é sem sombra de dúvida que a
nacionalidade não determina em nada a escolha deste fator, visto que tanto nativos como
estrangeiros assentam numa percentagem interna de 48%.
Se entre os homens apenas 41% aponta este aspeto positivo, já as mulheres superam este
valor com 58%, sugerindo que o género parece apresentar uma tendência ligeira. O mesmo ocorre
em termos de residência, onde os habitantes de espaço urbano (49%) superam os de espaço rural
(44%), por ligeira vantagem.
Algo semelhante poderia ser dito sobre a escolaridade, onde uma tendência muito subtil
emerge. Quanto maior o nível escolar, maior a atenção dada a este aspeto positivo, ainda que os
valores de maior destaque sejam para o ensino primário (54%) e ensino superior (54%), bem acima
dos restantes, cuja média interna se fica pelos 35% aproximadamente.
Também com percentagens aproximadas, a característica grupo apresenta valores que
ondulam entre os 55% dos operadores e os 51% dos nativos, passando pelos 43% dos estrangeiros,
até aos 33% dos nativos de outras ilhas. Não deixa de ser novamente curioso a baixa percentagem
dos migrantes num outro impacto positivo diretamente relacionado com a migração.
A situação profissional aponta para uma percentagem superior por parte dos trabalhadores
por conta própria (59%), seguida pelos empregados (50%) e desempregados (45%), ainda bem
acima dos 33% dos reformados. Estes dados encontram pouco paralelo direto com outros estudos
consultados pelo investigador, isto leva-nos a considerar que a determinação da migração como um
aspeto positivo é algo aparentemente particular ou diferenciador deste estudo de caso para com
outros. Ainda assim, uma situação semelhante à recolhida por Monterrubio et al (2012) no México,
onde também membros de grupos culturais diferentes representam 70% da força de trabalho da
comunidade de Huatulco.
Melhoria das Condições de Vida
190
VII – Impactos Percecionados em Análise
Sem dúvida que a criação de emprego e de novas infraestruturas podem garantir uma
melhoria geral da vida das pessoas, mas nem sempre é o caso. Um exemplo concreto na Boa Vista
foi a migração sem capacidade de alojamento para os novos habitantes que levou à construção de
guetos, sem condições sanitárias, onde abundam problemas de higiene e de saúde que podem levar
a pressões maiores sobre as unidades de saúde. Este caso será tratado nos impactos negativos, mas
serve aqui para demonstrar que a criação de emprego e de infraestruturas não é sempre garantia de
melhoria das condições de vida.
Ainda assim, as condições em que habitam estes migrantes pode ser idêntica ou semelhante
à do seu lugar de origem, pelo que, a questão da deterioração das suas condições de vida pode não
se colocar. Independentemente da leitura que a priori queiramos fazer, é inegável que para uma
grande percentagem dos entrevistados houve, de facto, uma melhoria das condições de vida, já que
trinta e três dos noventa e seis entrevistados a apontaram. Por melhoria das condições de vida
considerámos: a diminuição do custo de vida, o acesso a novos serviços ou a serviços melhorados, e
o aumento do poder de compra, etc. Aqui estão alguns exemplos:
Hoje os nossos emigrantes podem viajar a um custo mais baixo da Europa para a Boa Vista e Cabo Verde.É um dos aspetos positivos. URHRNB36
Está diferente! As pessoas sempre se queixam, as populações sempre se queixam… mas eu falo que estádiferente porque todas as casas que passo têm telefone, não tinham. Já houve uma altura em que havia 12telefones na zona norte! (…) Hoje tem Internet. (…) De uma forma ou de outra está tendo coisas! Aspessoas estão tendo um rendimento muito melhor do que antes! JGHRNB41
Em termos do hospital, antes era um pronto-socorro, beneficiou toda a ilha! URHRNB33
Não podemos esquecer que muitos não puderam fazer mais do que o ensino gratuito, o obrigatório. Nemtiveram hipótese de fazer o secundário ou licenciatura fora. Mas hoje temos os mais pequenitos que até jásabem quando é a desova das tartarugas. JGHRNB31
Mão de obra... trabalho para as pessoas, isso é fundamental. Ao fim ao cabo também... há riqueza e aspessoas têm melhor qualidade de vida. Algumas... podem não aparentar aqui, mas de certeza que retiramdinheiro para mandar para as famílias para as outras ilhas! (...) Nota-se que existe uma melhor qualidadede vida das pessoas! As pessoas já saem, antigamente não se via caboverdianos nos restaurantes.URHOP47
Olha, por exemplo, houve um aumento significativo de taxistas... e que prestam serviço de táxis e de guia,carro guia... guias turísticos ao longo da ilha... houve aumento de lojas de souvenirs que não existia antes.É um dos aspetos positivos desse trabalho, houve trabalho e abriu-se lojas... houve iniciativas privadas depequenos comerciantes. Houve incremento de hotéis, também locais que com algum capital conseguiraminvestir num hotel, um guest-house ou residencial. Houve também um aumento de restaurantes e onde sepode comer bem também! Digamos assim! Houve também outros pequenos serviços que se foramdesenvolvendo com o turismo em vários setores... na área de carpintaria, canalização... (...) Há também oturista que vem alugar uma casa, e depois comprar uma casa e tem necessidade (...) de pequenoscomércios (...). URMRNOI30
191
VII – Impactos Percecionados em Análise
Sinceramente noto. (...) As pessoas começam a poder comprar artigos. Muitas pessoas com famosostelemóveis e computadores. Também pessoas que felizmente começam a fazer outros cursos... (...). Têmdinheiro para mandar familiares para Portugal e outros países por motivo de doença! Isso para mim é umagrande diferença! E depois também noto diferença ao nível de higiene pessoal. Uma grande diferença dequando vim a primeira vez. URMOP27
No que se refere às faixas etárias, a tendência é claramente para atribuir menor importância a
este fator à medida que a idade aumenta; no entanto, os valores não são assim tão claros e podem
parecer até, à primeira vista, oscilantes; mas as percentagens mais elevadas de 50%, para as idades
entre 20 a 29 anos, e de 40%, para 40 a 49 anos, reforçam essa mesma ideia.
Novamente, os dados referentes ao género não são conclusivos, apesar de ligeira
superioridade das mulheres (37%) face aos homens (33%). Com uma diferença ligeiramente
superior, tanto a nacionalidade como residência apresentam valores internos próximos entre nativos
(32%) e estrangeiros (43%), e os habitantes de espaço urbano (38%) e rural (26%). Ainda assim, é
aparentemente inconclusivo.
Já o nível escolar parece determinar a importância deste impacto positivo, uma vez que os
valores variam entre os 21% do ensino primário até aos 39% do ensino superior, isto apesar do
valor destacado do ensino preparatório, que contraria ligeiramente essa tendência com os seus 40%
de percentagem interna.
Novamente determinante parece ser a situação profissional, já que domésticos e
desempregados ignoram este impacto, e o mesmo pode ser dito sobre os reformados, uma vez que
apenas há uma menção. Do outro lado, são os que trabalham por conta própria (11%) e os
empregados (21%), portanto, os trabalhadores, que destacam a melhoria das condições de vida
como fator positivo.
Um outro aspeto interessante é a relação entre este impacto e o grupo, onde os operadores
parecem atribuir um enorme destaque ao mesmo, atingindo uns 73%, muito acima dos restantes
grupos, cuja percentagem interna varia entre os 29% (entre nativos e estrangeiros) e os 33% (entre
migrantes).
Os dados oficiais do Governo de Cabo Verde sugerem que ao nível nacional os índices de
mortalidade infantil entre 2000 e 2011 nunca foram superiores a 5,5%, sendo que, a tendência de
aproximação aos 5% está presente. Já a taxa de crescimento natural tem, no mesmo período,
decrescido e estabilizado nos 1,5%, e a esperança média de vida passou de 69,7 anos em 2000 para
192
VII – Impactos Percecionados em Análise
74,2 anos em 2011. Sinais da melhoria geral das condições de vida, nestes casos associadas às
melhorias na área da saúde.
Por outro lado, na educação o número de alunos inscritos no terceiro nível passou de 800 em
2000 para 10.100 em 2010, sendo que 5600 destes são do género feminino. No entanto, é
impossível comprovar estatisticamente que estas melhorias se verificam também na Boa Vista, pois
não estão disponíveis dados por ilha no sítio do INE de Cabo Verde.
Ainda por outro lado, a edificação de um novo hospital, o aumento do pessoal no mesmo, e
a expansão da escola da Boa Vista, são claros exemplos de indicadores dessa mesma melhoria das
condições de vida verificadas naquele espaço, sendo novamente um outro impacto expectável de
acordo com os resultados das investigações, por exemplo, de Liu e Var (1986), Akis et al (1996),
Chen et al (2004).
Crescimento Económico
O crescimento económico é o impacto positivo que se segue, e engloba a multiplicação de
novas empresas e oportunidades de negócio, mas também o aumento do consumo, o acesso ao
crédito, o acesso a novos produtos e a redução do custo dos produtos. Alguns exemplos das vinte e
cinco referências retiradas das entrevistas:
Todo o turista que entra deixa um pequeno recurso… embora o tipo de turismo que está sendo feito é detudo incluído e a maioria do dinheiro já está no banco! URHRNB48
Talvez tenha sido bom para a ilha, porque a ilha desenvolveu-se muito rápido. Há dez anos na ilhaexistiam 10 carros. Hoje todos os carros têm menos de 3 anos, às vezes até há engarrafamentos. Sente-seque entrou muito dinheiro, mas também é de lamentar porque é um turismo de massa. URHREB68
Também temos restaurantes que são, como "Cá Santinha" os donos são uma caboverdiana e um italiano esempre nos hotéis fazem publicidades para ir ali com os turistas italianos... então beneficiou também eles!Alguns restaurantes e mais os condutores! URHRNB33
É que fez subir o nível de vida porque, apesar de tudo, algum dinheiro circula. Sobretudo com osserviços. Sente-se que há mais dinheiro a circular do que há 10 anos. Vê-se pessoas a comer e a beberaqui e ali. Há mais dinheiro embora haja pouco dinheiro. Aqui ninguém passa fome! URHREB68
Não é por ser a minha empresa mas trabalha [é das poucas que trabalha] com os locais. Com quatrocarros da nossa ilha faz viver quatro famílias. URMOP33b
Não, o custo de vida era superior nos anos 90. Não havia comércio. Havia dois ou três comerciantes quecompravam tudo na Praia e colocavam 100% mais! Hoje passaram 15 anos. Uma água de Caramulo em97 custava 120 escudos e agora custa 80. URHREB51
Com uma percentagem interna nos 50%, os entrevistados com idades compreendidas entre
193
VII – Impactos Percecionados em Análise
os 60-69 anos apresentam um valor muito acima dos demais, sendo mesmo mais de três vezes o dos
com idades entre 40 e os 49 anos (15%) e bem acima dos 32% dos entrevistados entre os 30 e os 39
anos, o segundo com maior percentagem. Esta flutuação não esconde uma tendência clara para
atribuir maior importância a este aspeto positivo à medida que avançamos na faixa etária.
Ainda com uma diferença significativa, há a mencionar que os homens (31%) apresentam
mais menções que as mulheres (18%), sugerindo uma tendência de género. O mesmo já não é
verdade na nacionalidade, já que, estrangeiros (29%) e nacionais (25%) têm uma diferença ligeira.
Com uma diferença nula temos a residência, já que, tanto urbanos como rurais apresentam uma
percentagem idêntica de 26%.
Regressando às tendências ligeiras, o nível de ensino parece condicionar subtilmente esta
perceção, uma vez que, quanto maior o nível escolar, menor a importância atribuída ao impacto
positivo em causa. O crescimento económico é mais mencionado por entrevistados com o ensino
preparatório, muito acima dos que têm o ensino secundário (19%) e do segundo com maior
percentagem interna, o ensino superior com 26%.
O cruzamento com a situação profissional revela que o crescimento económico é mais
preponderante para reformados (33%), logo seguidos por empregados (29%) e trabalhadores por
conta própria (23%); os restantes não fazem qualquer menção a este impacto. Por fim, são os
nativos de outras ilhas (33%) e os estrangeiros (29%), os grupos que mais referenciam o impacto
positivo em causa, logo seguidos pelos nativos (25%) e distantes dos operadores (18%).
De acordo com os dados do INE-CV verificou-se uma multiplicação de novas empresas nos
últimos anos e consequente injeção de capital que circula na economia local e nacional. O rápido
crescimento, não só do número de empresas como do seu volume de negócios e número de pessoas
ao serviço, são mais sinais do impacto da chegada do turismo massificado à ilha da Boa Vista. Os
valores abaixo demonstram com clareza que o crescimento económico é uma realidade na ilha da
Boa Vista, assim como se verificou nos trabalhos de Cooke (1982) ou Perdue et al (1990):
194
VII – Impactos Percecionados em Análise
Intercâmbio Cultural
O intercâmbio cultural é de complicada medição, sendo portanto essencial que seja a
experiência relativa dos entrevistados a medida desse intercâmbio, que tanto pode ser positivo como
negativo. Neste ponto falamos de intercâmbio percecionado como positivo e que toma diferentes
formas de acordo com os entrevistados, sendo as mais comuns, a aprendizagem de novas línguas,
novas tradições e costumes, e outros fatores que de alguma forma enriqueceram a comunidade e a
transformaram. Contemplemos os intercâmbios de natureza externa, tanto nacionais como
internacionais:
(…) o pessoal começou a interessar-se pelo turismo e pela língua italiana. Por exemplo, agora podesencontrar um jovem que não aproveitou a escola e fala italiano mas não fala português! Tudo influênciado que aconteceu no Marine Club! URHRNB31
Nós os condutores que temos contrato com algumas agências, como eu... consegui aprender cinco línguasdiferentes então tenho trabalho todos dias... mas tem outros que só fazem português... esses têmdificuldades... URHRNB33
Penso que não foi assim um choque tão grande como as pessoas estão a dizer porque a própria emigraçãocontribuiu para desenvolver a mentalidade das pessoas! URHRNB48
Penso que a mudança mais visível aqui foi em termos culturais porque eles tentaram conhecer a cultura dailha e interagir com a população, e isso foi... as pessoas tiveram de dar muitas informações à cerca dacultura da ilha e houve também alguma troca de experiência com os turistas. URHRNB30 Os africanos está a dizer... não há diferença, são poucos... as opiniões são diferentes mas é uma partecomplicada porque os hábitos dos guineenses e senegaleses já são diferentes do povo caboverdiano. Ali éuma coisa que aconteceu, mesmo estranha para nós que não tínhamos esses hábitos... FFMRNB38
As pessoas mudaram muito! Gostam de ver o turismo, gostam de ver as pessoas, a gente conversa com aspessoas... O turismo é bom, sim senhor... CTMRNB53
A nível cultural, comportamental, estamos a sofrer essas influências, porque normalmente tem de haverum convívio e um relacionamento com as pessoas que não são de cá com as de cá. Essa mistura, e háalguma alteração! URMRNB36
Tem muitas misturas dessas raças e cultura diferentes! (...) Muita coisa que aprendi aqui com esses, essas
195
Ano Empresas com Contabilidade Organizada Pessoas ao Serviço Volume de Negócios2007 57 1.270 6.519.4542008 101 1.637 5.630.3362009 128 1.640 3.057.2182010 169 1.984 4.851.6512011 201 2.376 2.797.130
Quadro 7.2: Empresas com Contabilidade Organizada, Pessoas ao Serviço, Volume de Negócios
VII – Impactos Percecionados em Análise
gentes! URFOP29
A partir do momento que começou a ter um turismo muito massivo aqui as atenções viraram-se para aBoa Vista (...). São pessoas que vêm trabalhar e é uma mistura de várias culturas. Então, é essa misturatoda que temos neste momento aqui que faz que por um lado as pessoas vêm para cá para trabalhar eganhar, mas também tráz gente que não vem trabalhar! Isso faz com que as coisas mudem. Agora em Sal-Rei há uma miscelânea de culturas, da costa africana, das ilhas, da Europa (...). URHRNOI34
Com apenas 17 menções, o intercâmbio cultural é, sobretudo, referido por um grupo de
entrevistados cuja faixa etária predominante são os grupos mais jovens. Em particular os jovens
com idades entre 20 e os 29 anos (35%), sendo que, nas restantes a inclinação é de valores na casa
dos 18% (30-39 anos) a 14% (40-49 anos), com exceção do nulo dos mais velhos e dos reduzidos
5% dos com 40-49 anos de idade.
O género apresenta valores novamente superiores para o género feminino (21%) com ligeira
margem (mais 5%) face ao masculino.
São os nacionais de Cabo Verde que mais importância dão ao intercâmbio cultural (com
20%), exatamente o dobro dos estrangeiros, algo compreensível dado que são eles os principais
recetores e emissores desse intercâmbio com turistas e operadores. Ainda assim, não deixa de ter
uma percentagem interna bastante reduzida.
A situação profissional é um caso similar, onde (à exceção dos 0% da doméstica) os valores
vão dos 21% dos empregados até aos 9% dos trabalhadores por conta própria, passando pelos 17%
tanto de desempregados como de reformados.
Igualmente díspar é a análise em termos de residência, onde tanto os residentes em meio
urbano (14%) como os de meio rural (3%), apresentam valores bastante reduzidos, em particular os
habitantes rurais, insinuando que essa perceção de intercâmbio cultural é praticamente nula nas
zonas afastadas dos principais centros urbanos, da presença de turistas e cadeias hoteleiras.
Em termos de nível escolar, são novamente os dois níveis mais elevados que maior atenção
dão a este impacto, com destaque para os 31% dos entrevistados com o ensino secundário, ficando
os restantes na casa dos 16% (primário) e 17% (superior), ainda assim, bem acima dos 7% dos
entrevistados com o ensino preparatório.
Os resultados mais surpreendentes da análise a este impacto são, sem dúvida, os
relacionados com o grupo, uma vez que são os operadores (36%) que, por larga margem, superam
os restantes grupos, com quase o dobro dos nativos (19%) e mais de cinco vezes o valor dos
estrangeiros (7%) e oriundos de outras ilhas (8%). É de difícil justificação se considerarmos o grupo
196
VII – Impactos Percecionados em Análise
dos operadores como sendo estrangeiros, mas como já afirmámos, este grupo é composto por
elementos provenientes dos outros grupos, mas que laboram em operadores, agências e hotéis, pelo
que, estão em contacto constante com turistas, logo, mais oportunidades para o dito intercâmbio.
Novamente, isto não explica por que motivo tanto os nativos como os oriundos de outras ilhas
apresentam valores tão baixos, em particular o segundo grupo que é a grande força de trabalho nos
hotéis de turismo massificado.
No caso deste impacto positivo, é impossível determinar estatisticamente o grau de
intercâmbio cultural pois trata-se de um impacto subjetivo e, assim, apenas é determinável através
de uma avaliação qualitativa que nos remete novamente para a subjetividade dos elementos afetos.
É dizer, os únicos dados palpáveis acabam por ser as perceções dos próprios membros da
comunidade. Complicando mais esta questão, há que considerar ainda que é extremamente difícil
diferenciar o intercâmbio cultural motivado pelo turismo, daquele motivado, por exemplo, pelo
contacto com outras culturas através de meios de comunicação como a televisão ou Ia nternet.
Ainda assim, um resultado semelhante aos de Milman e Pizam (1988), ou Ap e Crompton (1998).
Aumento dos Níveis Profissionais
À medida que avançamos nos impactos positivos percecionados é cada vez menor o número
de menções que estes recebem, e, neste caso, o aumento dos níveis profissionais locais foi
contemplado apenas com dezassete referências por parte dos entrevistados. De forma bastante
evidente, este impacto prende-se com a capacitação profissional que a experiência e formação
profissional no ramo da hotelaria e hospitalidade acarreta.
Os milhares de pessoas que direta ou indiretamente trabalham com os turistas foram, e são,
alvo de formação por parte das empresas privadas que têm esse interesse de melhor servir os seus
clientes, mas também, por parte de outros organismos como as associações de juventude, outros
órgãos da Câmara Municipal da Boa Vista, e instituições privadas, como é o caso da SDTIBM.
Esta profissionalização pode tanto implicar formação formal como informal, e também
enquadra outros eventos não formais, como debates públicos. Alguns exemplos das entrevistas:
Está a dar mais oportunidades para os jovens. Com os novos hotéis como os RIU, já há mais formações delínguas mesmo.(...) Então acho que está a trazer mais benefícios. Novos conhecimentos. Agora estámelhor, se não fosse o turismo, a ilha agora estava a passar um mau bocado! URHRNB31
(...) há mais condições e mais profissionalismo, tem restaurantes, tem bares, tem coisas preparadas para oturismo. URHRNOI61
197
VII – Impactos Percecionados em Análise
As pessoas começaram a conhecer outros tipos de serviço e regras de hotelaria que antes não conhecíamosna ilha. (...) Quem trabalhe aqui hoje no RIU ou no Iberostar já está preparado para trabalhar em qualquerpaís, por que são hotéis de renome de nível mundial e os serviços que estão aqui também encontram láfora! URHRNB29b
No que toca à faixa etária, os dados apontam para uma destacada percentagem interna de
33% entre os entrevistados dos 60-69 anos, em contraste com ambos os nulos dos grupos anterior e
posterior a este. Ainda assim a tendência estatística sugere que quanto mais avançada a faixa etária
menor importância é atribuída a este impacto. Resta referir que as restantes faixas etárias
circunscrevem-se entre os 20% (20-29 anos) e os 10% (40-49 anos). É pertinente recordar que,
sendo as camadas mais jovens as que mais beneficiam com a formação e capacitação profissional,
sejam, em contra-maré, os mais velhos que maior atenção dão à mesma. Ou seja, são os adultos
mais velhos que beneficiando destas oportunidades que mais as valorizam.
Se são os homens (17%) que mais atenção dão a este impacto, as mulheres (11%) não ficam
muito atrás, e o mesmo ocorre em termos de nacionalidade, onde os nativos (14%) ficam
ligeiramente aquém dos estrangeiros (19%). Novamente, esta curta diferença percentual ocorre
ainda na residência, onde os habitantes urbanos (16%) superam os de meio rural (11%). A
proximidade percentual nestes três casos poderá ser um indicador da sua aparente irrelevância.
Contrariamente às características sócio-demográficas anteriormente analisadas, o nível de
escolaridade é claramente determinante, visto que são os indivíduos com o ensino secundário (31%)
e ensino superior (15%) que têm os valores mais elevados, destacando-se dos 5% e 7% de ensino
primário e preparatório, respetivamente. Esta tendência implica que o impacto positivo 'aumento
dos níveis profissionais da população residente' é alvo da atenção dos indivíduos com maiores
níveis de escolaridade.
A situação profissional também parece indicar que os que estão profissionalmente ativos e
os reformados estão mais atentos a este impacto, já que, os desempregados (e a doméstica)
apresentam valores nulos, abaixo dos 18% dos empregados, 17% dos reformados e 9% dos que
trabalham por conta própria.
Se os estrangeiros residentes são o grupo que menos importância deu a este impacto, com
apenas 7%, tanto os operadores (27%) como os residentes naturais de outras ilhas (25%)
apresentam os valores mais elevados, permanecendo os locais a caminho com 14%. Sem dúvida que
os operadores são grandes beneficiadores da profissionalização dos seus trabalhadores, na sua
198
VII – Impactos Percecionados em Análise
maioria naturais de outras ilhas, e havendo um número muito marginal de nativos a trabalhar nesse
tipo de postos de trabalho diretamente ligados ao turismo, a sua baixa percentagem é
compreensível. O mesmo ocorre com os estrangeiros residentes que, na sua maioria, são
proprietários de uma ou várias empresas com pessoal reduzido e/ou com mão de obra não
especializada, como é o caso das empresas de construção civil, comércios e alguns serviços; daí,
talvez se justifique a sua baixa percentagem.
Uma vez que a formação profissional da população local na área do turismo, e não só,
ocorre maioritariamente in loco nas empresas que as contratam, não é possível determinar se esta
perceção acompanha dados documentais. No entanto, as várias parcerias estabelecidas entre as
instituições educativas e governamentais caboverdianas com empresas na área da hotelaria e
turismo a trabalhar em Cabo Verde, e com universidades e instituições de ensino no estrangeiro,
nomeadamente em Portugal, demonstram, quer um esforço formal na melhoria dos níveis
profissionais dos seus cidadãos, quer uma aposta séria do país no turismo a longo prazo, pelo menos
no que se refere à formação profissional para os quadros administrativos, ou seja, de ensino superior
ou equivalente. Este aumento dos níveis profissionais é também destacado nos trabalhos de Ferreira
(2005) e destacado em Sarmento (2008).
Entrada de Divisas
Ao fluxo de dinheiro estrangeiro que entra num país chama-se entrada de divisas. Estas
podem entrar através de exportações, empréstimos, aplicações em bolsas de valores, remessas de
empresas nacionais no estrangeiro, remessas de particulares emigrados, de forma mais direta através
de tributação de serviços aduaneiros ou, ainda, através da requisição de um visto de turismo. Estes
são alguns exemplos dessas divisas, que, por sua vez, são, ou podem ser, canalizadas pelos
Governos nos seus orçamentos de Estado anuais:
Penso que o Governo não está para trabalhar nesse turismo, ele sentiu entrar divisas, vistos… sobretudo.URHRNB36
No que concerne ao Governo, cada turista paga 25€, (...) é um lado positivo... (...) agora há que criarcondições para que a população se beneficie, digamos assim, do turismo! (...) Eu acho que o turismoacaba por dificultar a vida dos boavistenses! URHRNOI61
Está a dar certo! Antes ninguém estava aqui... os turistas compra a 10 e vende a 300, o Governo vende enós na terra não ganhámos nada. URFRNB83
A ilha não ganha nada com o turismo e o Governo ganha mais do que a ilha! URHRNB44
199
VII – Impactos Percecionados em Análise
Está-se a dizer que trouxeram muito dinheiro, pela rádio e pela televisão, (...) até então a nação é que estáusufruindo, e os hotéis. Nós ainda não, sinceramente. JGHRNB59
Há uma necessidade do Governo, uma vez que marcou a Boa Vista como uma ilha turística, e nestemomento é considerada uma ilha para o desenvolvimento da Boa Vista... porque cada turista que entrepaga ao Estado por cada visto, que entra... cada avião que aterra na Boa Vista paga uma taxaaeroportuária. URMRNB46
Pois bem, apesar de apenas onze indivíduos terem apontado a entrada de divisas como um
impacto positivo do turismo massificado na Boa Vista, há ainda assim que desenhar o perfil dos
mesmos. Se foram os indivíduos com 30-39 anos e 70 ou mais anos que apresentaram os valores
mais elevados (com 20%), os restantes subgrupos variaram entre os 8% (20-29 anos) e os 17% (60-
69 anos), reforçando a ideia de que quanto maior a faixa etária maior atenção é dada a este impacto.
Mais uma vez, o género não parece ser determinante, já que, os homens (12%) superam as
mulheres em apenas 1%. Igualmente, tanto reformados como desempregados apresentam valores
idênticos (com 17%), seguidos de perto pelos trabalhadores por conta própria (14%) e pelos
empregados (10%), pelo que não é possível retirar conclusões claras dada a proximidade dos
valores.
A residência mostra que os indivíduos de meio urbano (13%) superam com relativa margem
os de meio rural (7%), praticamente o dobro. Também com uma margem significativa faz-se
menção de que os estrangeiros ignoram este impacto deixando os nativos destacados com 15%.
Graças aos valores abruptos dos indivíduos com o ensino preparatório (20%) e dos
indivíduos com o ensino secundário (6%), a análise ao nível escolar comprova uma também subtil
maior atenção a este impacto à medida que o nível escolar aumenta.
Ora, mais uma vez, a análise por grupo apresenta profundas disparidades. Desta feita, temos
um nulo tanto nos residentes estrangeiros como nos operadores, ao passo que os nacionais se
aproximam com os 15% dos nativos da Boa Vista e os 17% dos naturais das outras ilhas do
arquipélago.
De acordo com o Banco de Cabo Verde (ver figura abaixo), tanto o investimento direto
estrangeiro como as receitas brutas do turismo, entre elas milhões em vistos de turismo, foram e são
significativos. Apesar de existir uma tendência atual para uma abrupta redução do investimento
externo e uma crescente receita bruta do turismo, o que mantém a ideia de que existiu e continua a
existir, de facto, uma enorme entrada de divisas que pode novamente fazer crescer o investimento
200
VII – Impactos Percecionados em Análise
se novos empreendimentos hoteleiros forem edificados.
Resta notar, como aliás a figura acima o demonstra, que a perceção dos entrevistados de que
existiu um galopante investimento no turismo se revê nos dados objetivos. Estes mostram que o
pico foi entre 2007 e 2008, precisamente na altura em que se ergueu o aeroporto e as grandes
cadeias hoteleiras, que investiram centenas de milhões de euros na edificação ou remodelação dos
seus hotéis na Boa Vista.
Tais dados vão ao encontro da literatura internacional (Ferreira, 2005; Lopes, 2008). Na
verdade, o WTTC afirma que em 2013 o investimento específico em turismo rondou os 21% do
total do investimento no país, o que se traduziu em 16,3 mil milhões de Escudos de Cabo Verde
(ECV) ou 147,8 milhões de euros.
Revitalização das Tradições
Como se fez menção na contextualização da Boa Vista, esta ilha dependia até há poucas
décadas da agricultura de subsistência, pastorícia e da pesca artesanal. Esta são algumas das práticas
tradicionais mais importantes, mas poderíamos incluir aqui outras como a recoleção de sal, urzela,
cal, cerâmica, entre outras já extintas. No caso dos cinco entrevistados que falaram na revitalização
201
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 20130
5
10
15
20
25
Evolução das Receitas do Turismo e Investmento Externo (2002-2013)
Receitas Brutas de Turismo
Investimento Directo Estrangeiro em Cabo Verde
Figura 7.1: Evolução das Receitas do Turismo e Investimento Externo em Percentagem do PIB (2002-2013)
VII – Impactos Percecionados em Análise
das práticas tradicionais como um impacto positivo, foi por unanimidade que apenas quatro foram
apontadas, mormente, a pesca, a agricultura, a pastorícia e a cerâmica; sendo que as últimas duas
apenas por uma vez cada, cimentando a ideia de que a agricultura na Boa Vista passa por um
processo de revitalização acelerado, graças à construção de algumas infraestruturas e ao
investimento em tecnologias contemporâneas de rega e técnicas de produção.
O caso da pesca é particular, dado que, de facto, hoje existe aproximadamente uma centena
de pescadores e algumas dezenas de barcos artesanais, ultrapassando largamente os número de há
três décadas, por exemplo.
No entanto, os entrevistados falavam na revitalização destas práticas tradicionais pesqueiras
como um impacto negativo, uma vez que apenas uma percentagem marginal dos pescadores são
naturais da Boa Vista. Sobre este assunto falaremos um pouco mais no ponto ”exploração externa
das oportunidades de negócio”. Por agora apresentamos exemplos das entrevistas referentes a este
impacto positivo:
Neste momento há uma viragem e o Governo já considerou a Boa Vista como a aposta mais séria emtermos agrícolas e pecuária e está neste momento a construir na ilha dez diques de retenção e captação deágua que vão permitir disponibilizar pelo menos 10 mil metros cúbicos de água por dia. E os agricultorescomeçam a aproveitar e estender as suas produções com tomate, pepino… URMREB34
A agricultura daquela época é totalmente diferente da agricultura que se pratica hoje! Já não é exatamenteuma agricultura de subsistência (…) visa o lucro! JGHRNB41
O turismo trouxe uma causa efeito no sentido de trabalho e crescimento. Se neste momento o ministérioda agricultura está a investir para desenvolver a agricultura não é porque mas para (...) criar postos detrabalho e atividades novas (...). URHREB37
Dado o reduzido número de menções, o perfil dos indivíduos que apontaram para este
impacto é, no que concerne à idade, bastante claro, são indivíduos com idades compreendidas entre
os 30 e os 49 anos, de ambos os géneros (5%), nacionais de Cabo Verde (7%), residentes em ambos
os espaços (urbano com 2% e rural 3%), com ensino preparatório (7%) até ao ensino superior (7%,
1% a mais que o ensino secundário). Todos estão empregados (8%) e pertencem ao grupo de
residentes naturais da Boa Vista (8%). Em suma, o seu perfil são jovens nativos da ilha,
profissionalmente ativos, com níveis de escolaridade elevados. A revitalização das práticas
tradicionais é um impacto positivo pouco comum na maioria dos estudos internacionais, ainda
assim, partilhado pelo trabalho de deKadt (1979).
Proteção Ambiental
202
VII – Impactos Percecionados em Análise
Este extenso impacto positivo engloba todo o tipo de investimento público ou privado na
criação e manutenção de áreas protegidas, incluindo campanhas ambientais e todo tipo de legislação
que visa a proteção do ecossistema natural da ilha, desde organismos públicos, do Governo à
Câmara Municipal, até associações de proteção ambiental ou de capacitação de jovens. Este
impacto é considerado tanto por Ferreira (2005) como por Lopes (2008) nos seus trabalhos.
A Boa Vista contém catorze das quarenta e sete áreas protegidas do país, entre elas sete
reservas em ilhéus, quatro monumentos naturais e duas paisagens, abrangendo área terrestre e
marítima, sobretudo a leste da ilha, sendo que, algumas destas áreas protegidas se sobrepõem a
zonas de desenvolvimento turístico90.
Hoje, a população é muito mais crítica, vai para a rua, faz abaixo-assinados, protesta, já não aceitaatentados ambientais de outrora. URMREB34
O perfil é novamente claro, os indivíduos que apontam para este impacto positivo têm
idades compreendidas entre os 20-29 (10%) e 30-39 anos (3%), tanto homens (2%) como mulheres
(5%), nacionais (3%) como estrangeiros (5%), de ambos os espaços (urbano 3% e rural 4%),
licenciados, profissionalmente ativos (3% dos empregados e 1% dos trabalhadores por conta
própria), tanto do grupo de naturais da Boa Vista (3%) como estrangeiros residentes (7%).
Procura por Artesanato
Tal como no caso anterior, o aumento da demanda de arte local, isto é, a procura de produtos
artesanais produzidos na ilha da Boa Vista, é entendido como um aspeto negativo mais do que
positivo, visto que, mais uma vez, os grandes produtores e vendedores de arte são estrangeiros.
Questão a aprofundar nos impactos negativos.
Resta referir que, como aspeto positivo, recebeu apenas uma menção, referente à escola de
olaria do Rabil, mas poderíamos aqui apontar para alguns produtores de artesanato no interior que,
afastados das rotas e do conhecimento dos operadores e turistas, escapam aos circuitos de consumo,
ou ainda, de alguns artistas locais que trabalham pontualmente para organismos públicos e privados
nas artes plásticas, sobretudo pintura. A citação:
Olha, estamos na escola de olaria onde aprendi a trabalhar com o meu irmão! (...) vemos esta loja que estácheia de produtos que são vendidos na sua maioria para os turistas! Quer dizer que de um ponto de vista,não havendo turistas teríamos de fazer outra coisa que não a produção de cerâmica! São algumas famíliasque vivem dessa produção! Temos jovens a trabalhar (...) melhor que estar sentados... mesmo que muitosjovens acabem os estudos, mas com o hotel e as pensões têm como trabalhar! Isso é importante!
90 Sugere-se a visita a um espaço virtual que se dedica a este ponto, o sítio: http://areasprotegidasboavista.blogspot.pt . 203
VII – Impactos Percecionados em Análise
URMRNB46
O único indivíduo que mencionou este impacto positivo tem 46 anos, é do género
masculino, caboverdiano natural da Boa Vista, com o ensino preparatório, empregado e habita no
espaço urbano. Na verdade, o indivíduo concreto que mencionou, neste caso, a escola de olaria fê-
lo, provavelmente por pertencer à mesma e nela laborar; mas dada a enorme afluência de turistas
que aquele espaço recebe, chegando às várias dezenas por dia, é de surpreender que operadores e
outros nacionais de Cabo Verde que trabalham, por exemplo, como motoristas e/ou guias de tour
entrevistados, não tenham mencionado a mesma. Por fim, resta referenciar os resultados
semelhantes dos trabalhos de Liu e Var (1986), ou Ap e Crompton (1998).
2. Perceção dos Impactos Positivos por Variável Sócio-demográfica
De forma a determinar a existência de alguma tendência transversal por variável sócio-
demográfica91, iremos analisar cada uma destas iniciando com a faixa etária dos entrevistados. No
que se refere à faixa etária mais jovem, compreendida entre os 20 e os 29 anos de idade, podemos
encontrar uma acentuada presença em todos os impactos, com exceção dos impactos positivos
referentes à maior procura por arte local e revitalização das práticas tradicionais onde não existe
qualquer menção da parte desta faixa. Quanto às restantes, esta faixa etária lidera em seis dos onze
impactos e surge em posições próximas dessa mesma liderança em três outros impactos.
Da mesma forma, a seguinte faixa etária, dos 30 aos 39 anos, também se apresenta em
posições cimeiras em praticamente quase todos os impactos, com exceção do nulo no impacto
positivo referente à procura pela arte local. É dizer, em seis impactos é a segunda faixa com maior
percentagem interna, e no impacto mais mencionado é o líder com elevado destaque. Estes dados
confirmam que existe uma forte presença das duas faixas mais jovens em todos os impactos
positivos e portanto leva-nos a inferir que a idade parece ser determinante na identificação dos
impactos positivos.
Quanto às faixas etárias restantes, podemos avançar que entre os entrevistados com idade
compreendida entre os 40 e os 49 anos em três impactos lideram e noutros quatro estão
posicionados próximos das duas posições mais elevadas. Na verdade esta faixa etária foi a única a
destacar a procura de arte local, mas por outro lado, não teve presença no impacto referente às áreas
91 Os resultados referentes aos impactos positivos e negativos, encontram-se no CD-Rom, em formato de Excel, noAnexo C.
204
VII – Impactos Percecionados em Análise
protegidas e campanhas ambientais.
A faixa entre os 50 e os 59 anos de idade não fez qualquer menção nos três impactos
positivos menos mencionados e apenas liderou, ainda que com grande destaque, o impacto referente
à migração. Entre os entrevistados na faixa 60-69 anos de idade, os valores oscilam entre duas
lideranças e dois lugares próximos da liderança, e quatro posições residuais e três nulos. A faixa
etária com 70 ou mais anos de idade é a que apresenta mais nulos, em cinco impactos positivos não
faz qualquer menção, e nas restantes ocupa o meio ou o fim da tabela.
Estes dados reforçam a ideia de que quanto maior a idade, menor a capacidade de identificar
impactos positivos e menor a presença nos impactos identificados. De forma geral a tendência é
esta, com a exceção dos impactos “crescimento económico” e “entrada de divisas”. Por fim, não é
detetável qualquer outra inclinação, mesmo em termos do cariz dos impactos, ou seja, a inclinação
anterior cobre tanto os impactos de cariz económico, como os de cariz social e ambiental.
205
VII – Impactos Percecionados em Análise
O género, por seu turno, sugere uma maior variação de resultados, já que, em quatro
impactos o género masculino lidera com destaque, e noutros dois por ligeira margem, ao passo que
o género feminino lidera com destaque em três impactos e por curta margem num outro, mas é o
único presente no impacto menos mencionado referente à procura pela arte local. No impacto
positivo “revitalização das práticas tradicionais” existe um empate técnico. Isto revela que o género
masculino, por uma ligeira margem, é o que maior presença tem nos impactos positivos, apesar de
num destes não ter qualquer menção.
206
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração
Melhoria das Condições De vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização dasTradições
Proteção Abiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Impactos Positivos Percecionados por Faixa Etária
20-29
30-39
40-49
50-59
60-69
70
Percentagem Interna
Figura 7.2: Impactos Positivos Percecionados por Faixa Etária
VII – Impactos Percecionados em Análise
A perceção do impacto por nacionalidade reúne seis situações de liderança para a
nacionalidade cabo-verdiana, em que cinco lidera com destaque, ao passo que os estrangeiros
lideram em quatro, duas das quais com destaque, e por outro lado, não têm qualquer menção no
impacto referente à entrada de divisas. Há ainda uma situação de empate no caso do impacto
positivo migração para a Boa Vista. Esta leitura revela que os nacionais de Cabo Verde são capazes
de identificar mais impactos positivos, e neles contabilizar mais menções.
207
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração
Melhoria das Condições De vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização das Tradições
Proteção Ambiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Impactos Positivos Percecionados por Género
Feminino
Masculino
Percentagem Interna
Imp
act
os
Po
siti
vos
Figura 7.3: Impactos Positivos Percecionados por Género
VII – Impactos Percecionados em Análise
Também claramente percetível é o domínio dos entrevistados que residem em meio urbano,
dado que são os que mais menções apresentam transversalmente, liderando em sete casos, sempre
com destaque face aos de meio rural que apenas lideram em três casos, onde apenas num deles com
destaque, nomeadamente, no impacto referente à revitalização das práticas tradicionais. Resta
referir o nulo dos residentes em meio rural no caso da procura pela arte local, e os dois impactos em
que ambos apresentam os mesmos valores, mormente, no caso da migração e do crescimento
económico. Com isto podemos afirmar que o espaço de residência condiciona a capacidade de
identificar impactos positivos e a subsequente presença nos mesmos.
208
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração
Melhoria das Condições De vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização das Tradições
Proteção Ambiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Impactos Positivos Percecionados por Nacionalidade
Caboverdianos
Estrangeiros
Percentagem Interna
Imp
act
os
Po
siti
vos
Figura 7.4: Impactos Positivos Percecionados por Nacionalidade
VII – Impactos Percecionados em Análise
O nível de escolaridade em co-relação com os impactos positivos percecionados indica que
os entrevistados com o ensino primário não lideram em nenhum dos impactos, mas encontram-se
próximos dessa liderança em três situações, o mesmo número de impactos em que não fazem
qualquer referência, isto nos três impactos menos mencionados. O nível de escolaridade
preparatório é o que mais impactos lidera, cerca de cinco, sendo que na maioria dos restantes ocupa
as últimas posições, não estando mesmo presente no impacto referente às áreas protegidas, porém
salienta-se que é o único a mencionar a procura de arte local.
Já entre os entrevistados com o ensino secundário, estes apenas lideram nos dois impactos
“intercâmbio cultural” e “aumento dos níveis profissionais” (ambos de cariz social), e na maioria
dos restantes ficam-se entre as últimas duas posições, não estando se quer presentes nos dois
impactos menos mencionados. Finalmente, entre aqueles com o ensino superior, foram capazes de
liderar em quatro impactos e seguir a liderança noutros cinco, sendo que não têm qualquer presença
no impacto menos mencionados e são os que menor presença têm no impacto mais mencionado,
mas por outro lado, são os únicos a mencionar o impacto referente ao ambiente. Grosso modo, o
nível de escolaridade parece determinante, ainda que em quatro impactos tenham sidos os níveis
mais baixos a apresentar mais menções.
209
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração
Melhoria das Condições de Vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização das Tradições
Proteção Ambiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70
Impactos Positivos Percecionados por Área de Residência
Urbano
Rural
Percentagem Interna
Imp
act
os
Po
siti
vos
Figura 7.5: Impactos Positivos Percecionados por Área de Residência
VII – Impactos Percecionados em Análise
Antes de fazermos a leitura transversal entre os impactos positivos e o nível profissional,
devemos novamente recordar que, existindo apenas uma pessoa na categoria de doméstica, optámos
por não a destacar dada a profunda flutuação dos valores da mesma, ora a zero ora a cem por cento.
Assim, iniciamos com os empregados. Estes foram os únicos a mencionar tanto a procura de arte
local como a revitalização das práticas tradicionais, e um dos dois que mencionaram a criação de
áreas protegidas e campanhas ambientais. Para além disto, lideraram em seis impactos e seguiram a
liderança noutros três.
Os desempregados, por outro lado, apenas contam com presença em cinco impactos, sendo
que em quatro eles seguem na segunda posição (duas destas em ex aequo). Resta referir que a
maioria dos nulos são em impactos de cariz social. Já os trabalhadores por conta própria lideram em
três impactos e noutros dois seguem o líder, e têm dois nulos em impactos de cariz social, mormente
os menos votados. Os reformados ignoram os três impactos menos mencionados, são os que maior
percentagem interna apresentam no impacto referente ao crescimento económico, seguem o líder
em três impactos e encontram-se na última posição noutros tantos.
De acordo com o que podemos discernir, a situação profissional parece ter algum peso, uma
vez que na maioria dos impactos positivos são os empregados e os trabalhadores por conta própria210
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração
Melhoria das Condições De vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização das Tradições
Proteção Ambiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Impactos Positivos Percecionados por Escolaridade
Primário
Preparatório
Secundário
Licenciatura
Percentagem Interna
Imp
act
os
Po
siti
vos
Figura 7.6: Impactos Positivos Percecionados por Escolaridade
VII – Impactos Percecionados em Análise
quem têm maior destaque, ou seja, os que estão profissionalmente ativos parecem ser capazes de
mencionar mais impactos e garantir maior presença nos mesmos.
Resta tratar os grupos de residência, onde os nativos da Boa Vista estão presentes em todos
os impactos, sendo mesmo os únicos a mencionar as práticas tradicionais e a arte local, ademais são
os segundos em percentagem interna em cinco impactos. Os nativos de outras ilhas do arquipélago
ignoram os três impactos menos mencionados, entre eles o de cariz ambiental, por outro lado, são
os que lideram com enorme destaque no impacto criação de emprego, liderando ainda noutros dois
impactos, também estes de cariz económico. Já os estrangeiros residentes são os que mais se
preocupam com as questões ambientais, sendo que ignoram três impactos e estabelecendo-se nas
últimas posições na maioria dos casos.
Os operadores residentes são os que mais impactos lideram, cerca de cinco, sendo que em
dois destes com enorme destaque, nomeadamente na melhoria das condições de vida e no
intercâmbio cultural, por outro lado são os que menos importância deram ao crescimento
económico e ignoram os quatro impactos menos mencionados, entre eles o de cariz ambiental. Esta
leitura permite-nos inferir que os operadores são o grupo com maior presença nos impactos
positivos, sem que, no entanto, seja capaz de identificar tantos impactos como os nativos da ilha da
Boa Vista.
211
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração para Local
Melhoria das Condições De vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização das Tradições
Proteção Ambiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Impactos Positivos Percecionados por Situação Profissional
Empregado
Desempregado
TCP
Reformado
Percentagem Interna
Imp
act
os
Po
siti
vos
Figura 7.7: Impactos Positivos Percecionados por Situação Profissional
VII – Impactos Percecionados em Análise
3. Impactos Negativos Percecionados
Uma outra questão basilar desta investigação era determinar, de acordo com as perceções
dos entrevistados, quais os impactos negativos que o turismo massificado trouxe e traz para a ilha
da Boa Vista. Como a figura abaixo aponta, foram detetados dezanove impactos negativos, isto é
mais do que duplicou os positivos e quase duplicou o número de menções positivas. Ora, se nas
perceções motivacionais dos turistas os fatores associadas à natureza foram as que mais atenção
tiveram, e nos impactos positivos dos residentes foram os fatores ligadas à economia, aqui o cenário
é diferente.
Com largo destaque, são os impactos de cariz social (a amarelo) os mais mencionados, com
duzentas e noventa e uma menções em doze diferentes impactos, sublinhando que os efeitos sociais
negativos trazidos pelo turismo massificado ocupam lugar cimeiro nas perceções dos indivíduos
entrevistados. Dado o elevado número dos mesmos, não serão aqui discriminados individualmente.
Seguidamente vêm os impactos negativos associados à natureza, mormente “Ausência de
Infraestruturas”, “Aumento da Poluição”, e “Destruição da Natureza”. Por fim, os impactos
negativos intimamente ligados à economia, com cerca de cento e trinta e quatro menções, divididas212
Criação de Emprego
Infraestruturação
Migração para Local
Melhoria das Condições De vida
Crescimento Económico
Intercâmbio Cultural
Aumento dos Níveis Profissionais
Entrada de Divisas
Revitalização das Tradições
Proteção Ambiental
Procura por Artesanato
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Impactos Positivos Percecionados por Grupo de Residência
RNB
RNOI
REB
Operadores
Percentagem Interna
Imp
act
os
Po
siti
vos
Figura 7.8: Impactos Positivos Percecionados por Grupo de Residência
VII – Impactos Percecionados em Análise
por cinco impactos, entre os quais “Dependência face ao Turismo”, “Perda do Direito dos
Residentes”, “Abandono das Práticas Tradicionais”, “Aumento dos Preços”, e “Divisão Desigual
dos Benefícios na Comunidade Local”.
Como será de notar, alguns destes impactos são idênticos ou muito próximos de impactos
positivos anteriormente tratados, e noutros casos até o reverso de impactos positivos, o que
demonstra a panóplia de diferentes e até contraditórias perceções que coabitam entre os
entrevistados, e que enriquecem esta investigação e seus resultados. Como fizemos até agora,
iniciaremos pelo mais vezes mencionado e continuaremos por ordem decrescente.
Aumento da Criminalidade
Quando voltava do treino de basquetebol, por volta das 21 horas, olhava estrada empedrada no meucaminho quando numa rua mal iluminada junto à praça um indivíduo da África continental interpelou-memesmo junto à igreja na praça de Sal-Rei: “Hello my friend!” - saudou-me. Sem mais rodeios ofereceu-se para vender droga do tipo que eu quisesse. Chamava-se (…) e vinha doZimbabué. Apesar de rejeitar perentoriamente os seus serviços imediatamente vi naquela situação umaoportunidade de melhor conhecer a comunidade da África Continental e possivelmente uma outra janelapara a Boa Esperança. Sem grande margem para conseguir grandes informações o meu discurso era sempre interrompido pelasua pressão para lhe comprar os seus produtos. Tentou convencer-me a adquiri-los argumentando em
213
Quadro 7.3: Impactos Negativos Percecionados pelos Residentes
VII – Impactos Percecionados em Análise
inglês que: 'Às vezes estamos assim cansados e um medicamento ajuda a ficar leve!' - afirmouentusiasmado! (…) As drogas estão de facto à vista de todos! (DC 12/6/2012)
De forma muito sintética, o impacto negativo “aumento da criminalidade” engloba na
realidade um conjunto vasto de impactos como a prostituição, assaltos à mão-armada, assaltos a
casas, homicídios, venda e consumo de drogas, violência de gangues e um conjunto de atos
considerados como criminosos, chegando ainda até à simples noção ou “sensação de insegurança”
percecionada pelos entrevistados. Este impacto está em primeiro lugar na lista dos entrevistados
com sessenta e quatro menções, tantas quantas o melhor cotado impacto positivo, totalizando cerca
de 13% das menções a impactos negativos, e estando referido em 67% das entrevistas:
(…) temos uma ilha que cresce em demanda e também uma nova realidade que foi surgindo que são osassaltos, furtos a residências e portanto provocada pela vinda de gente de outros pontos do país, da costaafricana também, mas portanto desta discrepância social que se vai acentuando cá na ilha da Boa Vista.URMREB34
[Aumento populacional] (...) Aumento do consumo de droga, mais que posso dizer... tambémcriminalidade... tem pessoas assim, qualquer área tem trabalho mas tem pessoas que não queremtrabalhar. O que é que acontece, são mais as pessoas que estão no uso de droga e de bebida. Alcoolismo.Preferem não trabalhar do que estar atrás de turistas. URHRNB33
Só que aqui, com o aumento populacional, foi aparecendo outros aspetos que a Boa Vista não estavahabituada. (...) Segurança. Cresceu, mas em termos de segurança em termos policial estamos aquém doque uma ilha turística... (...) A delinquência juvenil, a prostituição e também... Quem trabalha num hotelnão consegue! (...) Nunca conseguem ter uma vida digna, então as pessoas vão desviando para outros...droga, prostituição, crianças de rua... outro aspeto que não havia antes. (...) São aspetos que estão acrescer! Cada dia que passa mais meninos na rua... JGHRNB31
Trouxe os tais problemas sociais característicos, a questão da prostituição, um aumento de droga... (...)alcoolismo... não sem o facto de ter aumentado teve a haver com o turismo... houve também questões dedelinquência... um incremento de roubos, a questão da segurança que não está muito boa! URMRNOI30
Havendo mais gente vai havendo outros problemas que o progresso sempre tráz. Não quero ser moralistamas... o aumento do consumo de drogas e o seu tráfico! Também de certa forma a prostituição! (...) anteshavia uma prostituição meio camuflada... (...) uma troca de favores! URFREB39
Aumento de criminalidade, de vandalismo... porque o aumento de turismo tem benefícios mas tambémtem essas partes negativas. Então na criminalidade na Boa Vista aumentou bastante e de forma bembrusca. Agora as pessoas estão sempre com medo na rua e isso! URHRNOI32
Os aspetos negativos são os assaltos, muitos turistas têm sido assaltados, com certa frequência na BoaVista. URHRNB29b
As alterações sociais que o aumento da criminalidade trouxe, leva muitas vezes os
entrevistados a revisitar o discurso da comparação da atual Boa Vista criminalizada com a imagem
de uma “antiga Boa Vista”, uma comunidade à margem dessa realidade, vivida na base de uma
espécie de ingenuidade idílica de comunhão e harmonia social:
214
VII – Impactos Percecionados em Análise
A antiga Boa Vista... Eu gostava mais da Boa Vista que havia antes porque era uma Boa Vista comqualidade de vida... imagina que antigamente podíamos abrir com o portão, tínhamos uma linha no portãoque era para abrir e fechar o portão. Podíamos dormir com a linha no portão, e podíamos ir à praia aqualquer hora do dia ou da noite e não havia problemas nenhuns! Era uma Boa Vista onde as pessoasestavam mais... havia mais união. Para mim, a qualidade de vida era muito melhor que agora. Agora há muita delinquência, há roubos, hámuitas pessoas de fora... pronto, é o turismo que trouxe muitas coisas boas para a ilha mas também tem assuas desvantagens! Eu agora tenho medo de sair à rua, não saio a partir das 7 ou 8 horas da noite, eu nãogosto de andar sozinha! Já ouviste falar que há muitos roubos na praia e mesmo na rua... URMRNB48
O turismo é bem visto, os problemas é que põem as pessoas da Boa Vista inquietas! Não tem esse espíritode agressão, não estão acostumadas a isso! (...) Mas vai ter um crescimento ainda mais acelerado...antigamente as pessoas viviam com as suas portas abertas! (...) As pessoas têm medo de sair à rua denoite! Principalmente as mais velhas que não estão acostumadas nem vão acostumar porque sempreviveram assim! (...) Acabou-se a tranquilidade da Boa Vista! Todos têm medo de sair à rua! CTMRNB20
A Boa Vista é uma ilha muito pequena! Antigamente aqui na Boa Vista eu podia sair e deixar a portaaberta que não tinha problema. Mas agora com os turismos aqui vem muitas pessoas... há pessoas boasmas sempre há pessoas que não é muito bem vindo! URMRNB44
Os boavistenses ficam sempre a reclamar... que a Boa Vista era uma vez... e agora está estragada!Dormiam com porta aberta e colocavam roupas lavadas sem mexer nada! (...) Agressividade aqui comarma era uma coisa de outro mundo e agora já estão a matar! URMRNB32
Existe este facto que é a violência, a droga, a prostituição... são danos para esta ilha tão tranquila depessoas educadas! URMRNB46
Importa também ressalvar que, por vezes, foi apontada uma forma de prostituição que existe
em paralelo com a mais comum; para além daquelas mulheres que a troco de dinheiro prestam
serviços de caráter sexual a outros, existem também referências a prostituição perpetrada por
homens, mas que não se enquadram exatamente nos mesmo moldes que a primeira. Alguns
entrevistados referiram que alguns jovens se sustentam com turistas que passam a “namorar”
enquanto estão de férias na ilha. Essencialmente trocam a sua “companhia” por presentes (como
telemóveis), refeições, dinheiro de bolso, etc. Uma espécie de prática que os aproxima de gigolos
informais:
Eles não vão gostar do que estou a dizer mas é prostituição! Muitos dos jovens veem um grupo, na outrasemana outro grupo, e na outra a “pessoa da minha vida”! URHRNOI34
A análise das características dos subgrupos das faixas etárias revela uma subtil relação
quanto aos entrevistados que apontaram para o impacto negativo “aumento da criminalidade”. Esta
prende-se com maior número de menções à medida que a idade é maior. Sublinhando, novamente,
que esta é uma tendência ligeira, resta apontar os dados concretos, que variam entre os 75% (40-49
anos de idade) até aos 60% (dos subgrupos mais novos e mais velhos da amostra), isto com a
215
VII – Impactos Percecionados em Análise
exceção dos 43% dos entrevistados entre os 50 e os 59 anos de idade.
Ora, se o género parece não ser determinante, visto que os homens (67%) apenas
acrescentam 1% às mulheres, já a nacionalidade aponta para uma acentuação por parte dos
estrangeiros (76%) face aos nativos (64%), ainda assim, ambos com elevadas percentagens. Por
outro lado, uma análise por zona de residência mostra que a esmagadora maioria dos entrevistados
do espaço urbano (72%) apontaram para este impacto negativo, ao passo que apenas 52% do espaço
rural o mencionou.
No que concerne ao nível de escolaridade, os dados são bastante próximos, todos entre os
63% do ensino primário, até aos 69% do ensino secundário (os restantes têm 67%), sugerindo uma
ligeira tendência para os entrevistados mencionarem mais este impacto à medida que avançamos no
nível de escolaridade.
Ao nível da situação profissional, para além da liderança por parte dos reformados (83%),
isto se ignorarmos novamente o caso isolado da doméstica (100%), tanto os trabalhadores por conta
própria (68%) como os empregados (65%) apresentam dados elevados (e próximos entre si),
deixando os desempregados (50%) para último lugar.
O aumento da criminalidade é muito importante também para o grupo de residentes
estrangeiros (86%), possivelmente em parte pelo receio pelos seus negócios e potenciais clientes;
logo seguido pelos naturais de outras ilhas (67%) e nativos da Boa Vista (64%). Na última posição
permanecem os operadores (55%) eventualmente porque os seus clientes e negócios ocorrem em
espaços privados com segurança própria, tal como as suas atividades e passeios em espaços
públicos, como os passeios de moto-4 são exemplo, sempre acompanhados relativamente de perto
pelas forças de segurança públicas em parceria com o exército.
Um exemplo disso é o programa “Turismo seguro”, onde dois elementos, um polícia e um
militar, patrulham as praias mais visitadas pelos turistas, forçando a uma diminuição da
criminalidade nesses espaços desde a sua implementação:
Tranquila, mas com pequenos problemas desde que os hotéis se implantaram, vieram muitos estrangeiros,badios, africanos e fizeram cabanas lá em baixo, as chamadas barracas. Umas 1000 ou 1500 pessoas...depois de terminados os hotéis ficaram sem trabalho, havia agressões, roubos e mesmo assim reforçarama polícia. Mas havia muitas agressões com faca, umas três ou quatro por semana! Depois colocaram umpolícia e um militar a fazer rondas... Agora baixou um pouco. URHREB68
Estes resultados são comuns na literatura internacional dedicada ao tema, como atestam os
trabalhos de Nicholls (1976) e Cohen (1988). Numa nota final, resta apontar para o facto do
216
VII – Impactos Percecionados em Análise
aumento da criminalidade estar intimamente associado ao aparecimento e expansão das chamadas
barracas, o bairro da Farinação e o bairro da Boa Esperança, daí que, na perceção dos entrevistados,
este impacto negativo esteja correlacionado com o próximo, o crescimento descontrolado, e com
outros neste capítulo:
(...) temos o bairro da Boa Esperança por motivos óbvios não é!? (...) essas pessoas com um índice deescolaridade baixo acabam por trazer para a ilha da Boa Vista coisas que são escusas (...) não havia naBoa Vista. O vandalismo, o caçobody, os assaltos! (...) Eu nunca imaginaria isso na Boa Vista! Fui criadocom uma educação diferente! (...) Hoje até temos casas de prostituição nas barracas... bordéis. Asnigerianas e assim... URHRNB27
Evidentemente que a mesma perceção se arrasta para a população emigrante que lá habita:
As pessoas que emigram para cá não são as melhores! (...) Qualquer coisa serve, roubo, assalto!URFRNB33
Agora o pessoal está com mais medo! Porque desde que chegou turismo, entrou muita gente a procurartrabalho e nesse grupo de muita gente vieram os que não querem trabalhar, os que querem roubar, atacar!URHRNB31
Apesar de pontualmente ocorrerem alguns roubos a habitações de locais na cidade de Sal-
Rei, relata-se que estes já chegaram às zonas agrícolas do interior e mesmo às áreas de pasto.
Durante o curto período fértil, após as chuvas, algumas planícies localizadas em zonas remotas e
desabitadas são usadas para pastorear o gado, nomeadamente cabras e vacas. Estes animais eram
deixados sozinhos por largos períodos de tempo, o seu isolamento e a relativa segurança não exigia
controlo rigoroso.
Tal situação permitiu que algumas cabeças de gado fossem roubadas e vendidas para
consumo dentro e fora da ilha, inclusivamente conta-se repetidamente um episódio em que um
habitante de Santiago tentou roubar um boi sem sucesso:
(...) antigamente as pessoas tinham a sua horta ou campo ali com melancia, feijão, batata... fica ali, podiapassar uma semana ou duas. Depois o dono vinha e tirava, mas hoje em dia, se deixa passar isso já nãoencontra! Antigamente tinha muita cabra! (...) os badios eles começaram a apanhar cabra e a meter emtanque de água, sete e oito para mandar para a Praia para vender. Teve até um homem da Praia que teve acoragem de apanhar um boi! Pintou-o de castanho e felizmente eles viram aquilo no cais, se não, levavamo boi pintado de castanho. Hoje todo o mundo o chama de "pinta-boi"! URHRNB31b
Divisão Desigual dos Benefícios entre a Comunidade Local
Entre os impactos positivos mais referidos encontravam-se tanto o crescimento económico
como a entrada de divisas, dois bons exemplos da injeção de capital na economia nacional e
também local. No entanto, esse capital adicional que circula na comunidade é muitas vezes
considerado como pertencente a um circuito fechado do qual apenas uma marginal percentagem dos
217
VII – Impactos Percecionados em Análise
benefícios chega aos membros autóctones. Por benefícios entenda-se, não apenas uma
redistribuição equitativa dos rendimentos que provêm do turismo, mas sobretudo as oportunidades
de negócio que esse mesmo turismo permite criar.
Com isto, pretendem afirmar que o dinheiro circula em grandes quantias, mas apenas entre
aqueles que têm capacidade de investimento e de retenção das principais oportunidades de negócio,
inclusivamente acusando algumas empresas estrangeiras de monopolizar algumas dessas
oportunidades. Ora, assim, entendemos que é percecionada uma divisão desigual dos benefícios
entre a comunidade local, nomeadamente, entre os residentes nativos da Boa Vista e aqueles novos
residentes estrangeiros.
O turismo ainda não é aquele que os cabo-verdianos desejavam em termos de benefícios que é desejadoné!? Para mim ainda está incipiente porque há muitos turistas mas os cabo-verdianos estão a colher poucoem termos laboral, nas instituições, nos hotéis, ainda o cabo-verdiano não tá muito… URHRNB48
Nos aspetos negativos, tem a ver com facto de que os turistas quase não usufruem fora do hotel. Raro é oturista que vai ao restaurante, a um bar ou então…URHRNB36
Neste momento surge tudo por todos os lados, novos operadores, novos restaurantes e novos negócios emtorno do turismo, mas é bom de salientar que a maior parte são estrangeiros! URMREB34
Mas o povo daqui não tem recebido muito em troca, por exemplo, não tem tirado proveito desse turismo.Verifica-se esse turismo de tudo incluído, tudo fica pago no hotel e quando o turista sai é só para ver, nãocompra nada, pouco compram. Assim fica difícil para a população tirar algum proveito. BFHRNB29
Acho que não! Este é um dos pontos negativos do turismo aqui! Um turismo all-inclusive, onde osturistas vêm para cá já com tudo incluído no pacote que têm. Praticamente nos hotéis onde vão já temtudo e não precisam de sair para procurar nada fora do hotel, isso acaba um pouco por prejudicar oturismo na ilha! URHRNB30
Apesar dos problemas, a população tem vindo a reclamar porque não tem vindo a tirar proveito comodeveria. De ano para ano o turismo tem aumentado. Número de hotéis, de turistas. A população tem aceitede maneira positiva o turismo na ilha mas com algumas reclamações. URHRNB30
Para mim foi a maior desilusão é ver mesmo os filhos da Boa Vista que nunca viveram assim! (...) Temuma injustiça social muito maior! (…) Foi injusto, como não há controlo, não há uma exigência para quepossam distribuir melhor a riqueza ela ficou na mão de duas ou três pessoas e eles dominam a ilha.URHRNB62
Esta distribuição desigual prende-se, na perspetiva dos entrevistados, com o facto dos
investidores estrangeiros retirarem maiores dividendos do turismo que os nativos do país e da ilha.
Sem dúvida que a maioria da insatisfação se prende com o facto dos hotéis serem do tipo “tudo-
incluído”, retirando inúmeras oportunidades de negócio aos locais, que por sua vez, possuem
pequenos negócios ligados ao comércio e serviços. Essa é de longe uma das maiores queixas ao
turismo massificado que se pode ouvir nas conversas em espaços públicos, cafés, praças... o tema
218
VII – Impactos Percecionados em Análise
do dia é “todos os dias”, o facto da empresa A ou B, em particular as estrangeiras, quase
monopolizarem certo serviço, ou controlarem o valor de certo produto.
É inegável a influência e supremacia destas grandes empresas hoteleiras e seus parceiros
operadores que estão presentes no terreno. Diga-se, supremacia, e não monopólio, porque ainda
assim alguns nichos são aproveitados por pequenas empresas. Mesmo assim, é sem dúvida acertado
afirmar que os turistas têm acesso a tudo o que possam necessitar no hotel, inclusivamente serviços
disponíveis em Sal-Rei, como escolas de surf ou lojas de artesanato com alguns produtos locais.
O “único motivo” que à partida poderá motivar os turistas a sair é a sua curiosidade em
conhecer alguns lugares de reconhecida beleza natural ou interesse histórico-cultural. Curiosidade
essa que é satisfeita, em larga medida, pelos operadores turísticos representados em todos os hotéis
por elementos das mesmas que procuram vender esses pacotes “de experiências”, como por vezes
são denominados.
Certas empresas têm seus carros, seus transportes… dizem que fazem controlo do estrangeiro (…) e vemtudo, tudo vem aqui e o hotel favorece tudo, as suas contas estão todas feitas! As pessoas daqui têm tiradopouco proveito… no princípio sim mas agora as coisas baixaram! BFHRNB44
As pessoas que vêm não é por se interessarem pela ilha. Vêm por uma ou duas semanas e fazem a vida depraia. Tenho a certeza que cerca de 80% das pessoas não saem do hotel! Alguns são um pouco curiosos efazem algumas excursões, mas os outros não saem do hotel. Isto é um bocado de lamentar, este turismo demassa. Há tantos turistas como caboverdianos na ilha. Há mais ou menos 10 mil turistas e 10 milcaboverdianos. URHREB68
Para além disso, os caboverdianos da ilha não beneficiam diretamente deste turismo porque as viagens sãocompradas na Europa e o dinheiro fica na Europa! (...) E é tudo incluído o que faz com que as pessoas nãogastem dinheiro na ilha, ou muito pouco. Claro, dá emprego a uma centena de pessoas, mulheres quefazem limpeza, homens que fazem manutenção dos edifícios, mas é só! Não há realmente retornofinanceiro para a ilha. URHREB68
Os turistas que chegam vão para os hotéis, ficam nos hotéis e depois fazem a voltinha e passam aqui evão! O turismo resume-se basicamente a isso! JGHRNB31
São as tour operadores que mandam na lei aqui! (...) O Governo não consegue impor por que os hotéistêm a faca e o queijo na mão! JGHRNB31
O turismo não oferece nada! Vou dar um exemplo, neste momento disseram que os hotéis estão cheios!6000 pessoas! Agora a Boa Vista só precisa de 600! Você nem vê 6! (...) 6000 mil fechados, trancados nohotel! URHRNOI61
Mas não são apenas as grandes empresas estrangeiras que são aqui apontadas, mesmo os
pequenos trabalhadores ou proprietários de lojas de artesanato, na sua maioria nativos da costa
africana, também são alvo de críticas, tal como os comerciantes chineses, ou proprietários de cafés e
restaurantes italianos.219
VII – Impactos Percecionados em Análise
Isso, por acaso, é um ponto negativo do turismo. Eles fazem publicidade para que os turistas sófrequentem os lugares dos estrangeiros! (...) Quem vem mais [aos dos locais] são mais os portugueses, porexemplo, um ou outro italiano (...). Um dia chateei-me com um guia inglês que dizia "Olha vão aoMorabeza, Social Club, mas não recomendo os restaurantes caboverdianos porque não sabemos de ondevem a comida..." não sei quê. Eu às vezes ouço cada absurdo que eu... (...). Vêm cá, dão as informaçõeserradas e os turistas ficam com uma ideia errada do que é! (...). URHRNB36
Uma coisa que eu critico é que os guias não sejam caboverdianos, nem digo da Boa Vista, mas, pelomenos, caboverdianos! CTMRNB20
Hotel, pensões e tinham que tinham tendas na praia ou com as suas mochilas nas costas. Havia um grupode franceses que vinham sempre para a praia de Cruz! (...) Não eram turistas davam consultas, mas osturistas ficam nos hotéis ou pensões. Era só o Dunas, aquele Luka Kalema. (...) Depois os italianos. Ositalianos vieram depois de construir o Marine Club. Eu conheço os italianos porque eu trabalhava comodançarino, fazia espetáculos assim. Vieram como animadores e agora são empresários! URHRNB37
O Marine Club foi o principal para atrair novos hotéis! (...) O senhor veio para trabalhar no Marine Club enão era se quer o dono de nada e hoje é dono do comércio aqui. Eu acredito que haja muita coisa sujaaqui. URHRNB46
O turismo na Boa Vista ainda não está tão desenvolvido como pensamos, porque o turismo queoferecemos é turismo de praia, devíamos oferecer outro tipo de turismo como o cultural. Temos umacultura vasta e temos de aproveitar e oferecer outras coisas, mas não. Antes havia lojas de artesanato de pessoas de Cabo Verde, locais, só que com a concorrência dosSenegaleses houve uma baixa de preço dos produtos e as pessoas da Boa Vista sentiram-se desvalorizadose disseram que "não vale a pena a fazer objetos e apanhar objetos por um preço que depois não vale apena!". Penso que isso incentivou muito a não ter produtos, mesmo de Cabo Verde ou da Boa Vista!URHRNB29b
A maior parte dos negócios são de italianos, e eles não têm essa ligação ao caboverdiano! URMOP33
(…) o comércio tradicional está comprometido pela ferocidade dos mercados chineses que vendem osmesmo produtos que os cabo-verdianos mas a uma preço mais reduzido. Sentem que estão a perder opulso à sua ilha. URMREB34
Do mesmo modo, entre os nativos da Boa Vista a crítica arrasta-se ainda aos outros
compatriotas. Ora, são os pescadores, as peixeiras, os vendedores de mercado e de rua, os taxistas,
os técnicos de nível médio nas empresas locais, ninguém escapa à crítica.
Quer dizer, por exemplo, no mercado do peixe já não há pessoas da Boa Vista! Eles tomaram conta dopeixe! URHRNB36
Boa Vista não tem pescadores agora! São todos de Santiago. (…) Uma das melhores fábricas de atum eraaqui na Boa Vista. URHRNB80
A análise cruzada entre a faixa etária e os indivíduos que a destacaram revela que, apesar do
subgrupo com idades compreendidas entre os 60 e 69 anos de idade (83%) estar mais preocupado
com este impacto do que qualquer outro, nos subgrupos anteriores todos se circunscrevem entre os
57% (50-59 anos) e os 65% (40-49 anos), com exceção do nulo dos mais velhos. É possível
220
VII – Impactos Percecionados em Análise
desenhar uma curva decrescente nesta variável: quanto maior a idade dos entrevistados menor é a
tendência de apontar para o impacto negativo em causa.
O mesmo preocupa mais os homens (66%) que as mulheres (55%), mais os estrangeiros
(71%) que os nativos (59%), mas apenas ligeiramente mais os que habitam em espaço urbano
(62%) do que os habitantes rurais (59%).
Em termos de nível de escolaridade, a percentagem mais acentuada é entre os indivíduos
com ensino secundário (88%), por larga margem, sem ainda assim perturbar a tendência geral que
sugere que quanto maior o nível escolar mais atenção é atribuída à divisão desigual dos benefícios
entre a comunidade local.
Com as exceções de tanto reformados como da doméstica, este impacto negativo é
preocupante para todos os entrevistados, em particular os que trabalham por conta própria (73%),
mas também para empregados (63%) e desempregados (50%).
Na análise por grupo podemos ver que apenas um terço dos nativos de outras ilhas e 45%
dos operadores consideram este impacto como importante, ao passo que a grande maioria dos
nativos (66%) e dos estrangeiros residentes (79%) estão alerta para o mesmo. A distribuição
desigual encontra eco em vários outros estudos como os de Getz (1994), Lindberg et al (2001),
Monterrubio et al (2012).
Este ponto teve extrema importância nesta investigação, uma vez que a persistência dos
residentes em salientar esta questão era enorme. Por esse motivo, uma das questões do inquérito aos
turistas procurava precisamente determinar os seus hábitos de consumo fora do hotel de forma a
determinar se as preocupações e queixas dos residentes se confirmavam.
Os resultados mostraram que 79% dos inquiridos saíram do hotel onde estavam hospedados;
no entanto, 60% destes não o fez sem recorrer aos serviços de operadores turísticos. Na verdade,
28% dos que saíram livremente fizeram-no apenas por uma vez, 6% por duas vezes, e 3% por três
vezes (0% mais do que isso). Por outro lado, entre os que usaram os serviços dos operadores, 40%
fê-lo apenas por uma vez, 25% por duas vezes, 3% por três vezes e 1% mais do que três vezes.
Estes dados devem ser enquadrados de duas formas: em primeiro lugar, os inquiridos eram
de nacionalidade francesa e portuguesa, dois grupos que, a par dos italianos, estão entre os que mais
saem do hotel, e ainda os que mais o fazem sem usar os serviços de operadores, em particular os
italianos e portugueses.
Se a recolha dos questionários tivesse seguido o plano original na sua aplicação às221
VII – Impactos Percecionados em Análise
nacionalidades que mais visitam a ilha (Reino Unido, Alemanha, Itália, Portugal e França) os
resultados poderiam ser diferentes. Durante a permanência do investigador no terreno, era quase
impercetível a presença dos turistas do Reino Unido e Alemanha fora dos serviços prestados pelos
operadores. Ainda que se reconheça que a grande maioria dos turistas que usava estes serviços eram
destes países, dado o volume total dos mesmos no destino, a percentagem real por nacionalidade
revelaria a baixa assiduidade destes na exploração do destino de forma livre e espontânea.
Em segundo lugar, alguns dos inquiridos afirmaram realizar caminhadas pela praia até aos
arredores da cidade Sal-Rei, contabilizando estas como saídas, quando o objetivo da questão era
determinar os que consumiam, por exemplo, os serviços prestados pelos taxistas locais em
detrimento do dos operadores.
Assim, os dados são claros quanto à perceção de divisão desigual das oportunidades dentro
da comunidade local, e estes dados também confirmam que a maioria dos turistas recorre aos
serviços de operadores estrangeiros, aumentando a saída de capital para o estrangeiro e diminuindo
as oportunidades para a economia local.
Crescimento Descontrolado
Uma consequência de isto tudo é que o crescimento é descontrolado, no sentido que Cabo Verde se está adesenvolver muito rapidamente para as suas capacidades! (...) Desenvolveu-se em 10 anos aquilo que nãodesenvolveu em 100 anos! URHREB37
Por crescimento descontrolado entendemos um crescimento da população residente e
visitante acima da capacidade de carga do espaço, nomeadamente ao nível de infraestruturas,
serviços básicos e outros garantidos pela constituição de Cabo Verde aos seus cidadãos e residentes
legais. O exemplo icónico deste tipo de descontrolo é o da malha urbana, mormente o surgimento e
expansão exponencial dos bairros de lata ilegais da cidade de Sal-Rei, concretamente o bairro da
Boa Esperança e o bairro da Farinação.
O bairro antigamente era ali no terreno da Shell. Tinha mais ou menos cinco barracas. A CM tentou acabarcom aquilo e não consegui. E depois pediu para mudar para ali em cima porque era na entrada da vila enão ficava bem. Depois de um mês, começaram a crescer, crescer, e quando eram umas vinte aquilo pegoufogo! Na altura morreram umas duas pessoas, entre eles uma prima minha que vivia ali também! Depois, (...) foram esquecendo e tornaram aquilo como... não sei te explicar. Todos os barcos que vinhamaquilo enchia de gente. Depois voltou a pegar fogo. A CM foi, marcou o chão e que não era para continuara construir. E aquilo cresceu de uma forma que se tornou uma cidadela de barraca! URHRNB31b
Antes não havia necessidade de mão de obra só havia quatro barraquinhas, de madeira e de plástico.Depois de um par de incêndios deixaram de construir com materiais combustíveis e começaram combloco! (...) A barraca tem a sua própria gestão, seus restaurantes, seus mercados, seus alimentos. (...)
222
VII – Impactos Percecionados em Análise
Agora há muito desemprego, as grandes obras acabaram, as pequenas são poucas. A maioria estãodesempregados. É uma bomba social! Em condições um pouco infra-humanas! (...) Muita genteconcentrada num espaço muito pequeno. Se acontece uma epidemia pode ser um desastre! URHREB36
Antes na Boa Vista quando chegava uma pessoa, toda a gente ficava a saber que era uma pessoa estranha àilha! Hoje por exemplo nem estamos.. porque é tantas pessoas... e portanto aumentou a população até apopulação estudantil. Veio trazer outras necessidades e a ilha passou a ser diferente! [ficheiro2] (...) trouxenecessidades em termos de habitação. As pessoas que vieram para cá e não havia habitação para todas as pessoas. Depois o turismo veio para cáe não é um turismo planeado, não é nada planeada, e veio trazer esses problemas. As pessoas começam aconstruir barracas. Na ilha antes dessa altura não havia barracas! Vivia-se muito da emigração, das remessas que osemigrantes mandavam! (...) Não havia mão de obra suficiente e tiveram de recrutar pessoal! (...) Hápessoas, por exemplo, (...) é como se fosse, vieram mais pessoas de Santiago, primeiramente é como sefosse um bairro que veio de outra ilha, como se fosse outra ilha! Começou a importar outras coisas,importação entre aspas. Primeiro vieram os de Santiago e depois da costa de África, e agora de todas asilhas. Então há uma separação, penso, embora as pessoas estejam a tratá-las normalmente, há sempre...somos todos de Cabo Verde! URMRNB43b
Evidentemente que este crescimento descontrolado implica outros efeitos multiplicadores
negativos, diretos e indiretos, como o aumento da criminalidade e a especulação imobiliária,
contemplados anteriormente, e outros que serão aqui também abordados. Por crescimento
descontrolado incluímos também o investimento em infraestruturas dedicadas ao turismo por parte
de privados, aprovado seja pelo Governo ou pelos poderes camarários, e que povoa a periferia e o
centro de Sal-Rei de forma legal.
Como são os casos dos prédios para aluguer de habitação para o turismo que, devido à crise
internacional, ficam inacabados e/ou são construídos sem acesso a saneamento, eletricidade ou em
lugares por lei, teoricamente protegidos por questões ambientais. Ou ainda, o caso de grandes
empreendimentos hoteleiros do tipo resort ou residências em condomínio fechado que ficam por
terminar devido a questões de litígio legal, retração de investidores, entre outros fatores que os
tornam insustentáveis económica e ambientalmente.
Todavia, o grande foco de crítica são, sem dúvida, os bairros degradados sem acesso a
serviços básicos como água potável canalizada e saneamento canalizado, na sua maioria sem acesso
à rede elétrica (de forma legal ou ilegal), recheado de habitações e pequenos negócios situados em
condições precárias de segurança e higiene. Lugares que dependem de cisternas públicas onde todos
os dias dezenas de pessoas fazem fila para a obtenção de água potável para consumo e higiene
pessoal, e onde a presença das forças policiais públicas é, apesar de gradualmente mais presente,
ainda reduzida.
A ilha entrou num crescimento, eu não digo desenvolvimento digo crescimento descontrolado em todos os
223
VII – Impactos Percecionados em Análise
aspetos. URHRNB36
(...) temos bairros degradados como é o caso da Boa Esperança... é inadmissível! Todos somos culpados,os privados também são culpados... O Governo sabia que não havia mão de obra necessária para aconstrução. A Boa Vista vai crescer de forma descontrolada... já é tarde e é muito complicado resolver asituação desse bairro. BFHRNB25
Boa Vista era talvez a única ilha que não tinha Barracas! Isso tudo são consequências do mal dodesenvolvimento. URHRNB48
O salário que os hotéis pagam, não há salário mínimo [em Cabo Verde], eles pagam 200… 100, 150€…Por isso é que nasceram as barracas! O vencimento é baixo o custo dos preços subiram e o pessoal nãotem dinheiro para alugar uma casa, porque se alugar não tem o que comer. URHRNB31
Entretanto com o fenómeno do turismo, e com a necessidade de ter mão de obra para construir os hotéis,os apartamentos turísticos, e a nova habitação aqui na ilha da Boa Vista veio gente para cá de todo omundo e portanto temos ali cerca de seis mil habitantes só dentro daquele bairro. (…) ali vivem naquelebairro precário sem água, sem luz… é o patinho feio do desenvolvimento turístico na ilha da Boa Vista.URMREB34
A problemática mais evidente das condições precárias em que as pessoas habitam nestes
espaços é o elevado risco de problemas de saúde que pode advir, não só para o resto da população,
como para os turistas da ilha. Um problema de saúde pública poderia comprometer por vários anos
o turismo na ilha e afundar dramaticamente a economia nacional e local:
A maior parte das pessoas que estão lá são trabalhadoras! A maior parte das pessoas empregadas noshotéis vivem nas barracas! URHRNB36
Isso é um problema que pode ser bastante grave. As pessoas não têm condições de vida, as pessoas quetrabalham nos hotéis vivem nas barracas! Se um dia acontece uma epidemia, os turistas são os primeiros asofrer! (...) Basta surgir nas barracas, que vai surgir nos hotéis! As pessoas teriam de ter condições devida! URHOP47
Do outro lado da balança houve um impacto extremamente negativo que foi o surgimento das barracas! Asbarracas... é um bairro ilegal... foi... construído por barracas, casas de papelão e agora já tem de cimento ebetão. Mas é um bairro onde as condições de vida, saúde, sanitárias são precárias. Existe uma classeoperária. Trabalhadores da classe dos hotéis e outros serviços. Muito não têm grande poder de compra!URMRNOI30
Então, com cinquenta e seis referências, presente em 58% dos entrevistados, o crescimento
descontrolado é um importante impacto negativo tanto para os homens (59%) como para as
mulheres (58%), mas sobretudo para os habitantes urbanos (64%), onde as pressões da malha
urbana estão presentes, ainda que no espaço rural (44%) seja também bastante referido.
Sendo mais preponderante para os subgrupos de população mais jovem, não deixa de ser
interessante a nulidade de referências dos mais idosos e a maior percentagem individual desta
categoria entre os indivíduos com idades compreendidas entre os 60 e 69 anos de idade (67%), logo
224
VII – Impactos Percecionados em Análise
atrás pelos 30-39 anos (68%), e dos restantes (com 60%), sendo que também o subgrupo com 50-59
anos de idade se fica pelos 29%, ainda assim mantendo a tendência geral decrescente.
Também são os estrangeiros (76%) que mais apontam este impacto, bem acima dos nativos
(53%), tal como ocorre com os indivíduos com o ensino secundário (88%) cuja percentagem interna
é muito superior às demais, em particular à dos indivíduos com o ensino primário (21%). Isto
insinua que, quanto maior o nível de escolaridade, maior atenção é dada à questão do crescimento
descontrolado.
Longe de relevância de nota ficam os reformados e os desempregados (ambos nos 17%),
deixando os empregados (65%) e trabalhadores por conta própria (59%) a atribuir mais atenção a
este impacto.
Por fim, em termos da análise por grupo, são os operadores (82%) e os residentes
estrangeiros (79%) aqueles que mais consideram este impacto negativo, com alguma distância quer
dos nativos (53%) quer dos imigrantes (42%). Enquanto impacto social destacado, não existe nos
trabalhos internacionais uma categoria idêntica, já que este se assemelha aos impactos “ambiental”
e “inadequação de infraestruturas”; no entanto, já que aqui se refere especificamente ao crescimento
exponencial dos bairros degradados, optámos por criar uma outra categoria diferenciadora.
Antes ainda da análise do próximo impacto negativo percecionado, deixamos aqui um
excerto do diário de campo do investigador que relata a sua primeira experiência no bairro da Boa
Esperança durante o trabalho de campo:
Ontem fui finalmente às barracas e era tudo o que imaginava e um pouco mais! Alugam-se quartos porquatro mil a seis mil ECV e a eletricidade custa à volta de três mil, mas depende da quantidade delâmpadas, televisões e aparelhos porque se paga ao objeto e não à unidade de consumo! O esquema degeradores enriquece alguns estrangeiros do continente. As casas têm um aspeto exterior que muitas vezescamufla o interior mais cuidado. A rua está cheia de gente, de crianças a adultos e praticamente nenhumidoso à vista. Vi de tudo à venda, de comida e bebida a drogas e prostituição. A violência existe e os moradores falam nela com preocupação: 'Muitos jovens preferem a vida debandido a trabalhar!', afirmava um nativo de Santiago. A comida é racionada dada a ausência deequipamentos como congeladores ou por causa do inconstante fornecimento elétrico, e 'nada vai paradesperdício!'. Apesar das ruas estarem tão limpas como as de outras partes da cidade, os odores são intensos. Não existesaneamento e as casas de banho são as valas dos acessos ao bairro. O odor, o lixo, as águas estagnadassão um risco presente para toda a saúde pública.Sentei-me com todos [grupo recém apresentado de residentes do bairro] numa pequena tasca com bancose cadeiras de plástico, música em alto volume e na televisão sem som o canal de música. Um dospresentes estava claramente alcoolizado antes de pedirmos a primeira rodada de cervejas. O barulhoimpedia uma conversa fluída. Do nada, o indivíduo alcoolizado pergunta-me: 'Já estiveste com uma caboverdiana?'. Ao respondernegativamente ele chama a empregada do bar e diz-lhe algumas palavras ao ouvido. Ela olha-me de alto abaixo e responde-lhe regressando ao bar manifestando algum desagrado pela proposta. Ele volta a chamá-
225
VII – Impactos Percecionados em Análise
la em pleno pulmão e agarrando-a nas nádegas diz: 'Queres [esta]?'. Com alguma atrapalhação o [informante] interrompe a situação ao olhar para o meu desconforto e recordaa viva voz o indivíduo de que eu era casado e não queria que ele o importunasse com tais convites ao queo homem responde: 'Casado?! E depois, é só sexo!'.Quando eventualmente regressámos a casa, já pelas 21 horas, a noite há muito tinha caído e as ruasestavam mais vivas que nunca. Os diferentes sons das várias tascas e habitações particulares. As gentesem corrupio a circular nas ruas... (DC 4/9/2012)
Aumento dos Preços
Estamos perante um outro impacto negativo bastante taxativo. O aumento de preços é um
impacto comum em espaços turísticos, dada a inflação a que esses lugares estão sujeitos, em
particular os espaços de maior sucesso. Deve-se, no entanto, notar que no caso da ilha da Boa Vista,
desde há muito padece de uma periferização face aos principais centros de produção, sobretudo
agrícola, o que inflaciona os preços dos produtos, em particular os básicos.
Se noutros espaços turísticos, por exemplo, um produto fresco num restaurante ou café é
substancialmente mais elevado do que no mercado público mais próximo, aqui poucas vezes esse é
o caso. Depende, sobretudo, se o produto é localmente produzido ou se é importado em grandes
quantidades pelos fornecedores das grandes cadeias hoteleiras, ficando assim a um preço mais
acessível que nos mini-mercados locais.
Será justo ainda fazer referência ao facto de que mesmo em muitos produtos produzidos
localmente por nativos, o seu custo é frequentemente o mesmo ou muito ligeiramente inferior ao
que chega de barco, importado da capital ou de outras ilhas por parte de pequenos comerciantes
dessas outras ilhas. É dizer, uma porção da pressão sobre os preços persiste também, em parte, pela
procura de lucro elevado por parte dos produtores locais.
A construção de vários diques para retenção de águas das chuvas no interior promete
aumentar a produção agrícola e a sua variedade e, assim, possivelmente, reduzir os preços destes
produtos e o custo de vida geral da população. Até então, os pequenos comércios em Sal-Rei, na sua
maioria lojas de nacionais da China, vai reforçando a sua montra de víveres e retirando o espaço a
outros produtos que comummente podemos encontrar em Portugal em qualquer das lojas deste tipo.
Isso é uma outra prova de que na Boa Vista mercado alimentar é aparentemente altamente
lucrativas dadas as margens dos comerciantes:
O custo de vida na Boa Vista é excessivo e tem a ver com vários fatores. Um dos fatores é que tudo éimportado… (…) Também há o fator de que a ilha não produz quase nada. A nível hortícola produz-semuito pouco. URHRNB36
226
VII – Impactos Percecionados em Análise
Esse é o ponto negativo que o turismo trouxe. Desde que chegou o turismo, o preço de tudo subiu.URHRNB31
Não! Aí é que está a diferença, era muito barato! (…) Viver na Boa Vista era muito barato mesmo! Alagosta que se comia em 1998, quando cheguei aqui, vendia-se a menos de mil escudos, você nãoencontra por menos de não sei por quantos [2500]! Antes na Boa Vista falava-se que se comia carne compedaços de batata agora é pedaços de porco com batata! (…) O Natal está a chegar e não sei como voufazer para ter lagosta! JGHRNB41
Tudo é caro e tem de ser importado e os impostos são muito altos, e depois para o cliente também é caro!Devem encontrar outro sistema de taxar. Penaliza a todos, o caboverdiano e o turista. URHREB51
A construção do aeroporto internacional foi muito ligado a estes projetos, esses investimentos grandes.Em dois anos as coisas mudaram totalmente. Por exemplo, já os produtos locais são menos, o peixe, hámenos e é mais caro. Os hotéis para garantir os peixes para os turistas querem comprar até preços que aspessoas não querem investir. Mas eles podem e mandam no preço. URHREB35
Pensava-se que com o aumento das pessoas as coisas baixassem mas continua muito caro! OPFREB41
Uma ilha turística onde as coisas são elevadas, o produto é caro e se tu consegues manter a sua famíliacom o que ganha! É uma das coisas, fatores que implicam muito da situação da vida do turismo! (...)Deriva tudo do turismo! Onde há turismo sabemos que as coisas não são fáceis! O Governo devia de verbem essa situação! (...) Para os outros que não têm família, aqui é difícil! URMRNB46
Não dá para fazer uma poupança se não tens casa própria! Os produtos são caros! Nos chineses ou domercado... há muita procura! (...) se um não compra outro compra! Não há alternativa! Põem os preçosque quiserem! Todos somos turistas! URMRNB32
Há uns anos que a Boa Vista se tornou uma ilha muito cara por causa do turismo. Há essa ideia erradaque o turista vem cheio de dinheiro e vai comprar tudo o que tem na loja! URMRNOI32
Muito caro, antes comprava um quilo de atum por 80 cêntimos, agora custa 6 euros, portanto não secompara! (...) Vou-te dar um exemplo. Antes da chegada desses hotéis não havia uma pessoa na BoaVista que não tivesse casa para morar e comida para comer! URHOP31
Sendo praticamente o mesmo número de entrevistados, que o anterior, a mencionar este
impacto, 57% dos indivíduos que o fizeram são tanto caboverdianos (59%) como estrangeiros
(52%), embora mais homens (62%) que mulheres (50%). Se os indivíduos com 60 a 69 anos de
idades apresentam a percentagem interna mais elevada, com 67%, isso não invalida a tendência de
quanto maior a faixa etária menos preponderância atribuída a este impacto; já os restantes
subgrupos vão dos 65% dos mais jovens aos 20% dos mais velhos.
Outro sinal claro é de que, em meio rural (48%), este impacto passa mais despercebido que
em meio urbano (64%). Também o nível escolar sugere que à medida que este avança, maior
atenção é dada ao aumento dos preços, isto apesar do valor mais elevado se encontrar nos
indivíduos com o ensino preparatório (67%). Os restantes variam dos 42% do ensino primário aos
61% do ensino superior.227
VII – Impactos Percecionados em Análise
O aumento dos preços apenas preocupa um terço dos reformados, mas os desempregados
(50%), os empregados (55%), e os trabalhadores por conta própria (64%) revelam uma preocupação
bastante superior. Por fim, é visível ainda que o grupo dos operadores se destaca na atenção ao
aumento dos preços com 73%, bastante acima dos restantes que vão dos 50% dos residentes
estrangeiros aos 58% dos oriundos de outras ilhas (ainda que apenas com mais 2% que os nativos
da Boa Vista).
O aumento dos preços é sinónimo também de degradação da qualidade de vida,
estabelecendo desde logo um paradoxo com o impacto positivo, já analisado, que determinava
exatamente uma melhoria da mesma qualidade. Este impacto negativo está presente tanto em
Carmichael et al (1996) e em Lawson e Williams (2001), assim como em inúmeros outros trabalhos.
Alterações à Moralidade
O boavistense está em vias de extinção! Isso eu acho. URHRNOI34
Já desapareceu. Primeiramente havia gente da Boa Vista e a cultura, mas agora nem gente nem cultura!(…) Tudo fora do sentido! URHRNB80
Se é indiscutível que a cultura de qualquer sociedade é mutável, sofrendo ajustes constantes
nos seus códigos de conduta, moralidade, regras e valores, não deixa de ser justo salvaguardar que
estas mutações podem ocorrer a ritmos muito diferentes de uma sociedade para outra. São as
transformações percecionadas como aceleradas, que ocorreram na comunidade da Boa Vista, que
aqui classificamos de forma lata como “alterações à moralidade”.
Transformações forçadas, por um lado, pela interação de diferentes gentes e culturas no
mesmo espaço, mas também, pela modernização acelerada a que o espaço e as suas gentes foram
forçadas pela mão do turismo, nomeadamente o massificado. Apesar destas alterações não
ocorreram apenas entre as comunidades nativas da ilha, isto é, reconhecendo que existe uma
influência mútua de, para e entre as várias culturas, há que reconhecer que algumas exercem uma
pressão superior em relação a outras. Na Boa Vista, as perceções mostram uma clara pressão
exógena, nacional como estrangeira, sobre a comunidade nativa:
Esse aumentou populacional é positiva por um lado, (...) mas com essa mão de obra necessária muitacoisa má veio junto. Veio muita cultura diferente. A população da Boa Vista (...) se apega muitorapidamente à cultura do outro (...). A perda da identidade cultural é um dos aspetos negativos. (...) Essaaculturação em relação à cultura do outro... a prostituição, a violência... (...). URMRNOI32
Materialmente era mais pobre, mas espiritual e humanamente era muito mais rica, mais solidária… para
228
VII – Impactos Percecionados em Análise
mim já é tudo! URHRNB48
Havia uma certa dignidade na pessoa humana, mas agora são compradas mais fácil! Diz que não mas hojeou amanhã já cede, já não tem aquele vigor, caráter! URHRNB48
Sim, sim. Tornaram-se mais interesseiras! (…) Até antes era um povo fechado, mas era bom! Seconseguia a tua boa-fé abria-se e havia esse encontro. Agora o povo é desconfiado de todos! Estrangeiros,porque sempre querem enganar... dos seus políticos também, porque sempre têm interesses nos própriosbolsos. Até pelo mesmo caboverdianos das outras ilhas... sempre foi fechada e havia alguns conflitos comoutros caboverdianos. (…) Hoje, num grupo, há maior probabilidade de ter gente que não é da Boa Vistado que da Boa Vista! Eu também no lugar deles me sentiria desorientado! (…) O povo está dececionado...triste também. URHREB35
Eu acho que as pessoas da Boa Vista antes eram mais amigáveis, toda gente se conhecia. As famílias erammais harmoniosas e as pessoas eram mais solidárias e humildes! URMRNB36
Já não há esse tratamento com as pessoas como havia nesse tempo. Fomos encobertos pela população queestava a chegar e hoje em dia já somos uma minoria! URMRNB36
As pessoas estão a perder o interesse no sentimento de comunidade e o turismo tem as suasconsequências. A mobilidade geral, nós hoje em dia temos se calhar pessoas que vêm das outras ilhas, éuma população maior do que as pessoas daqui da ilha. E isso tem sido um fator desse egoísmo, de riscotambém. URHRNB27
As pessoas já têm uma educação muito diferente! Era difícil que eu encontrasse uma pessoa mais velhaque lhe faltasse ao respeito. Agora é natural, os meninos não têm respeito pelos mais velhos!URMRNB46
Grande diferença, mais calma... as pessoas eram mais unidas se posso dizer. Não havia muitodesenvolvimento, nem lugares para se divertirem muito, então as relações eram mais fortes! Maispróximas, agora é tudo diferente! (…) O interior também vai mudando! Essas coisas que eu digo, antestinham relações mais fortes! (...) Os jovens vão emigrando e os mais velhos ficam! (...) Saem maismulheres do que homens! Emigram para outras ilhas ou países! CTMRNB20
A gente não tem educação como antigamente. Antes quando chegava gente mais grande as pessoasdiziam "Boa tarde! Boa noite!" agora não! Havia essa delicadeza e hoje não existe! CTHRNB45
No antigamente nós conhecíamos todos os companheiros e ajudávamos todos os companheiros mesmoquem vivia um pouco mais razoável porque todo mundo ajudava companheiro. Quando um tinha ajudavaoutro, quem tinha tinha. Mas agora não, o tempo está a mudar e a gente pensa só na vaidade. Quem tem,tem quem não tem, não tem. Tem pouca gente que ainda ajuda companheiro! URMRNB43
Penso que há uma... cópia, não sei se é a palavra certa... de hábitos e costumes dos turistas por parte dosjovens, como por exemplo... agora há muitos jovens com tatuagens, são coisas que eles vêm nos turistas.Antes não se via na Boa Vista! (…) Os jovens estavam numa ilha fechada e agora têm mais visão domundo, porque o turista tem comportamentos e atitudes diferentes! URMRNB46
Os jovens agora não se preocupam com grande coisa... (...). Preferem estar lá fora sentados, ou a ver anovela como o senhor já sabe. Procuram estar em casa a ver novelas ou jogo de futebol e não seinteressam por anda disso! Não querem trabalho de esforço nem sujo! JGHRNB58
Na cidade em dez pessoas duas são da Boa Vista. Já estamos a perder a nossa identidade! Na rua encontramais gente a falar o crioulo da Praia do que o nosso! (...) Estamos a perder a nossa identidade e jáestamos a perder a nossa capacidade de decidir por nós! Os outros decidem por nós! CTHRNB33
229
VII – Impactos Percecionados em Análise
Cerca de 43% dos entrevistados apontaram as alterações à moralidade como um impacto
negativo, ligeiramente menos de metade dos homens (48%) e cerca de um terço das mulheres
(34%), mas sobretudo nacionais de Cabo Verde (51%) e pouquíssimos estrangeiros (14%). Sem
qualquer peso neste impacto parece ser o espaço onde habitam, dado que, urbanos (42%) como
rurais (44%) têm valores praticamente idênticos.
Os entrevistados que mencionaram este impacto não pertencem a nenhuma faixa etária em
particular, dado que os valores internos são próximos (44%), apenas com a exclusão do nulo dos
indivíduos entre os 60-69 anos, e uma percentagem ligeiramente superior que a média para aqueles
com mais de 70 anos (60%). Estes dados revelam uma muito subtil insinuação para as faixas mais
novas, em relação às mais velhas.
Já o nível de escolaridade aponta para maior atenção dada pelos entrevistados como menos
estudos (58%), muito acima dos restantes, que vão dos 31% do ensino secundário aos 41% do
ensino superior.
Também com valores muito díspares, a situação profissional sugere que os empregados
(25%, ainda que uma minoria dos mesmos), estão muito mais atentos a este impacto negativo que
os restantes subgrupos, onde com apenas 9% os trabalhadores por conta própria aparecem em
segundo plano, ainda assim, três vezes mais que os desempregados e nove vezes mais que os
reformados.
Olhando para os grupos, podemos verificar que os nativos, tanto naturais da Boa Vista
(53%) como das outras ilhas (42%), estão particularmente preocupados com este impacto
comparando tanto com estrangeiros (21%) como com operadores (18%). Esta alteração da
moralidade está presente também nos trabalhos de referência de autores como Brunt e Courtney
(1999) e Tomljenovic e Faulkner (2000) sendo uma das principais armas de arremesso teórico nas
obras que mais atacam o turismo internacional, como a obra de Turner e Ash (1975) é exemplo.
Exploração Laboral
Cerca de 30% dos entrevistados vê a exploração laboral como uma consequência do
turismo, ou seja, muitas vezes, apesar do impacto positivo principal ser a criação de emprego, existe
a crítica de que esses empregos são precários e/ou mal remunerados:
A mão de obra não qualificada não tem falta de trabalho! (…) Eles ganham 800 ECV por dia. É para
230
VII – Impactos Percecionados em Análise
chegar às sete e sair às quinze. JGHRNB41
Eu acho que há pessoas nos hotéis que trabalham muito e não deviam ser tratados como são tratados! Issoeu costumo ouvir os trabalhadores a falar muito, que não têm direitos, que pagam muito pouco aostrabalhadores, muita coisa para fazer! Reclamam muito disso. Foi bom mas há muita coisa que precisa demudar, e os trabalhadores andam a reclamar. CTMRNB53
É um emprego ou é um sub-emprego? JGHRNB31
Mas eles têm deveres, direitos praticamente quase que não existe. Por exemplo, aqui no RIU há umsistema em que uma pessoa trabalha num hotel RIU em qualquer setor. Se está a trabalhar 4 anos e noquinto pode garantir entrada no quadro da RIU, esse trabalhador é rescindido o contrato e mandam paracasa porque não necessitam dos serviços. JGHRNB31
(...) nos hotéis há muita gente, a questão de mão de obra... a questão que vem aqui trabalhar mas ganhammuito pouco! URFOP29
O turismo aqui em Cabo Verde é praticamente... é a fonte de riqueza em Cabo Verde, sem ela nãoconseguiríamos... estaria com mais problemas de desemprego e isso não foge à ilha da Boa Vista! Aspessoas têm um emprego por meio do turismo, muitas vezes são exploradas, mas penso que o turismotambém tráz as suas consequências! (…) temos exploração de mão de obra... as pessoas não têm umaforma de reclamar porque têm medo de serem despedidos! URHRNOI31
Eu sempre trabalho nos hotéis e vejo... (...). Vejo como são tratados! (...) Eles não têm consideração pelotrabalhador. Há muita coisa mal nisso. URHRNB44
Infelizmente as pessoas que trabalham aqui não valorizam muito os funcionários. Você pode fazer omesmo que eu mas você vai ganhar mais do que eu. Não sei se é por ser branco e pensam que pode termais capacidade, o que não é verdade. (...) Quem quer trabalhar num lugar onde não és valorizado e o teusalário não corresponde ao cargo que tens!? URHRNB29b
A exploração laboral preocupa sobretudo as camadas mais jovens, uma vez que os valores
internos das várias faixas etárias vai dos 40% dos entrevistados entre os 20 e 29 anos até aos 0%
dos com 70 ou mais anos. Os valores são inferiores à medida que se avança na análise às faixas
etárias mais velhas, apenas com a exceção dos 33% dos entrevistados entre os 60 e 69 anos.
O género feminino (34%) parece mais preocupado com a exploração laboral do que o
masculino (28%), assim como os nativos (35%) estão mais preocupados que os estrangeiros (14%).
Por outro lado, tanto os habitantes em espaço urbano como de espaço rural dão
aparentemente, a mesma atenção a este impacto (30%). Não fossem os 21% dos entrevistados com
o ensino primário e diríamos que o nível de escolaridade não era relevante, já que os restantes
subgrupos rondam os 32%. Ainda assim, existe uma subtil tendência para atribuir maior atenção a
este impacto à medida que o nível de escolaridade é maior.
É sem grande surpresa que a exploração laboral parece perturbar mais os desempregados
(67%) do que qualquer outro grupo, deixando a alguma distância os trabalhadores por conta própria
231
VII – Impactos Percecionados em Análise
(32%) e os empregados (29%). Já os reformados parecem ignorar esta problemática, assim como os
domésticos.
Na mesma linha, os nativos (36%) estão mais preocupados com a exploração laboral que
qualquer outro grupo, aliás bem mais que os nativos das outras ilhas (17%) ou que os estrangeiros
residentes (21%); no entanto, há que referir que os operadores (27%) estão apenas ligeiramente
atrás dos nativos. Já Kousis (1989), Brayley et al (1990) e Freitag (1994) haviam contemplado a
exploração laboral como um impacto negativo presente nas suas investigações.
Discriminação aos Migrantes
Normalmente, as pessoas da Boa Vista são mais racistas! URMRNOI50
Ninguém gosta de ser ocupado e existe no meio de Cabo Verde um racismo interno, ilhéu. Os gajos daPraia é da Praia e o de S. Vicente é de S. Vicente. São outras elites, e é óbvio que o pessoal daqui nãoachou bem. Existe um... é notório uma atenção a isso. As pessoas daqui também não querem crescer, masfalam sempre mal dos outros! Os outros estão cá para trabalhar, mal ou bem trabalham. Mas o pessoal daqui é o crítico e também não faz nada para melhorar a sua situação. A terra é deles mas aevolução é isto! Faz lembrar em Portugal em 1980, chegaram os Ingleses e os alemães ao Algarve que nóspróprios dizíamos "Epa estes gajos! Vão pa terra deles...". (...) É um deja vú! (...) Isto é um processonormal... eu agora acho que as pessoas devem participar e o caboverdiano não quer participar! URHOP47
Vinte e oito dos entrevistados apontaram uma atitude discriminatória como fruto das
alterações provocadas pela chegada do turismo massificado, ou seja, a forte migração para a ilha de
membros de comunidades de outras ilhas do arquipélago e de outros países também teve
consequências negativas, entre elas, um acentuar do discurso e atitude discriminatória da população
local face à nova população migrante.
Naturalmente que, como já foi referido no ponto dedicado à migração, a população residente
nativa da ilha é hoje uma minoria, e assim, os primeiros a serem alvo desse discurso discriminatório
foram os compatriotas que para a Boa Vista imigraram em busca de trabalho e de uma vida melhor,
isto apesar de, recorrentemente, haver uma distinção entre os imigrantes “originais” e os “atuais”.
Se, por um lado, se considera que os primeiros imigrantes tinham um propósito de labuta, os mais
recentes são tidos como imigrantes com segundas intenções, por norma associadas a atos de
criminalidade e más influências:
É verdade, vem muita gente de Santiago, antes já vinha para trabalhar mas agora... vêm só para fazerconfusão e roubar... fazer atalhos. (...) Infelizmente não temos nada que fazer, somos todoscaboverdianos... portanto... URMRNB62
A população da ilha não tem aceitado de forma pacífica a vinda de outras pessoas! A maneira de ser e
232
VII – Impactos Percecionados em Análise
pensar das pessoas de Santiago é muito diferente daqui. Isso, dia após dia, tem criado alguma tenção emesmo conflito físico. (...) tem agravado... [da costa africana não], mais das outras ilhas. Vêm paratrabalhar mas não trabalham, vêm para outros fins! URHRNB30As pessoas que emigram para cá não são as melhores! (...) Qualquer coisa serve, roubo, assalto!URFRNB33
Por causa desses vindores principalmente desses badios! (...) Gentes das outras ilhas que trabalham naRIU e em todos esses... qualquer dia não encontram gente da Boa Vista! Se fosse só gente da Boa Vistasim, agora... é mais difícil encontrar gente da Boa Vista! URFRNB83É discriminação! (...) mas não é só em relação à costa africana. (...) Em relação às pessoas da Praia,badios, da costa africana, até da S. Vicente (...) há muito isso. Eu penso que seja pelo facto da Boa Vistater estado tanto tempo isolada! Há aquela recusa....! (...) há segregação sim, mesmo na escola... (...). não éuma coisa grave, por enquanto, mas uma espécie de diferenciação! URFREB39
Bom... é assim.. a minha impressão, desde logo o início era que as pessoas da Boa Vista eram um poucomais à parte do resto da população! As pessoas oriundas de outras ilhas e não só, também de outrasnacionalidades... tenho vindo a constatar isso, as pessoas da Boa Vista não vêm com bons olhos a entradade pessoas de outras ilhas. Mas no entanto, talvez com a convivência, já mudaram a mentalidade! Masainda se pode comprovar isso! URHRNOI31
Este discurso é alvo de revolta por parte de muito imigrantes caboverdianos que, em
resposta, acusam os nativos de inveja, que advém da sua passividade na procura de trabalho. De
facto, o pivô do discurso discriminatório está assente nas questões laborais:
Os vícios da vida, o custo de vida, os salários que são pagos... a... os locais não gostam muito da presençadas outras pessoas que vieram para trabalhar... isso afeta o local de trabalho. URFREB26
Aqui isto trouxe um racismo, não o racismo do branco mas o racismo com gente de outras partes... comoo badio, o mandjaco, depois os da Guiné, que trabalham por 5 mil escudos ao mês e o caboverdiano nãoaceita, e os da Guiné (...) aceitam! URMREB60
Investigador: O que as pessoas pensam destes imigrantes africanos que vieram para cá?URHRNOI32: De modo geral tratam de forma inferior. Se eu cheguei agora numa obra, por exemplo, se opatrão faz uma proposta eu posso reclamar e reivindicar mas eles não reclamam nada e aceitam tudo. Pormais indecente que seja eles aceitam, não sei porquê. Então, isso vai influenciar na forma como eles são"Se tu não queres outros querem!". (...) Esses africanos os seus postos de trabalho são lavandaria,jardineiro, limpeza geral, mais ou menos esses, sempre os trabalhos mais duros! URHRNOI32
A génese da revolta parece ser sempre a questão em torno das oportunidades de trabalho que
parecem escapar aos nativos, em parte o que já apontámos no segundo impacto negativo. Por vezes
essa consciência está presente em algumas análises auto-críticas dos nativos da ilha. Aqui ficam
alguns exemplos:
Eu não percebo como podem sustentar o seu filho até aos trinta anos se ele passa o dia sentado no sofá. Eisto é grande problema que nós temos, e não é só em Sal-Rei, aqui também! (...) Porquê? Se tenscondições para trabalhar porque não trabalhas? (...) Enquanto tu vês pessoas de outras ilhas a virem e atrabalhar (...) e depois chega a uma altura que é o badio que é filho da puta, é o de santo Antão que nãoserve! E eles estão a trabalhar! URHRNOI34
As pessoas da Boa Vista são muito críticos! (...) Não fazem quase nada mas quando vem gente de fora
233
VII – Impactos Percecionados em Análise
eles têm tendência de criticar! Se vem se uma pessoa vem e está a desenvolver dizem "não, ele vem cánão tinha nada e veio só buscar dinheiro para levar para a terra dele!" URMRNB48
Não com bons olhos! (...) A sensação que temos (...), é que alguém nos está a roubar o trabalho! (...)Quem vem, ou vem para as obras, para algum trabalho de restauração ou bar, porque também não temosformação e pessoal que chegue para isso, e nós apontamos o dedo (...). URHRNB28
Dado que os bairros denominados de “barracas” são habitados quase exclusivamente por
estes imigrantes e por migrantes, existe uma associação direta entre os impactos negativos e estes
espaços, e a discriminação não é exceção. Comentários face às barracas:
No início houve receio, ninguém queria… houve uma certa discriminação, mas agora parece que aspessoas já estão mais acostumadas e vejo muitas pessoas de Boa Vista a dizer que as barracas é um bomsítio! Se calhar lá, neste momento circula mais dinheiro! Porque tem mais de metade da população da BoaVista está lá na barraca. BFHRNB29
A barraca era muito mal vista! Demorei muito tempo a entrar lá. Foi há muito pouco tempo que fui lá! Euprópria já estava a criar uma imagem da barraca assim, violenta, onde só tem crime... as pessoas tinhamideia de que drogas, prostituição, tudo de mal na ilha está na barraca! URHRNB36
O pessoal aqui discriminava o pessoal da barraca, muito! Não iam para a barraca mas agora vão. Antes opessoal tinha medo mesmo, porque quem ia para a barraca era para comprar drogas. Mas agora têmamigos, colegas de trabalho, e hoje em dia tens pessoas que vão daqui lá visitar amigos! Antes tinhammesmo receio de ir ali! URMRNB32
(...) só ver o exemplo das pessoas que vivem na zona da Boa Esperança. Ainda há gente de Sal-Rei que vêessas pessoas com diferença! (...) dizem que é um sítio perigoso e que as pessoas fazem mal... (...). Nãogostam muito de deslocar ali à noite sem ter a companhia de alguém! (…) De lá para cá essas pessoassentem essa diferença, como se fossem inferiores! URHRNOI31
As pessoas culpam a barraca de todas essas coisas! Há uma expressão que diz "Faças ou não faças sãosempre os badios", aqui é sempre as pessoas da barraca! URMRNB28
Este tipo de atitude é de tal forma preocupante para os residentes, que alguns dos
professores entrevistados fizeram referência à influência desta narrativa nos mais jovens, que fazem
uma clara distinção entre quem é ou não daquele espaço, construindo e reconstruindo a sua
identidade usando o seu bairro de residência como determinante:
(...) é curioso quando fazemos as apresentações nas salas de aulas e os alunos dizem "eu sou tal, meunome é tal e sou de barraca ou da Boa Esperança!", mas eu faço a correção, "Não, tu és de Sal-Rei"! Eusou da Boa Esperança e sou professor de psicologia assim como tu és o João e não deixas de ser de Sal-Rei. Já está mesmo interiorizado ao nível psicológico! URHRNB27
A impressão que eu tenho é que as pessoas da Boa Esperança se sentem discriminadas em relação à vila.Às vezes os meus alunos dizem "eu moro na Boa Esperança", mas eles moram na vila não é!? Elesmesmos já fazem aquela distinção! (...) No outro dia um aluno disse "tu moras na barraca" e o outro disse"não, eu moro no Boa Esperança", porque barraca não é uma coisa boa! (...) É uma coisa que já está nacabeça! JGMRNB35
234
VII – Impactos Percecionados em Análise
A discriminação capta a atenção de todas as faixas etárias, flutuando entre os 40% (20-29
anos) e os 17% (60-69 anos), apontando para que as faixas etárias mais jovens atribuam mais
atenção a este impacto.
São as mulheres (34%), mais que os homens (26%) os entrevistados mais preocupados com
a discriminação, e também os estrangeiros (33%) mais que os nacionais (28%), e os habitantes
urbanos (36%) mais que os rurais (11%).
A análise por nível de escolaridade revela que existe uma tendência clara para prestar maior
atenção a este impacto negativo à medida que o nível de escolaridade aumenta, confirmada pela
profunda diferença entre os entrevistados com ensino preparatório (7%) e os do ensino primário
(26%) ou superior (35%).
Por uma diferença mínima, os empregados (35%), mais que os desempregados (33%),
consideram a discriminação um impacto negativo, ainda assim muito acima dos valores
apresentados pelos reformados (17%) e dos trabalhadores por conta própria (14%).
Sem admiração de maior, são os oriundos de outras ilhas (42%) e os residentes estrangeiros
(36%) os que mais reclamam a discriminação existente na Boa Vista. Já os operadores (27%) e os
nativos (25%), parecem estar bem menos atentos a este impacto.
A forte presença da perceção de discriminação face aos migrantes é um aspeto particular da
Boa Vista, não apenas pelas suas características, mas também porque tal impacto negativo não
encontra eco na literatura de referência. Poder-se-ia agregar ao impacto “alterações à moralidade”,
no entanto, não refletiria corretamente esta tendência específica e que deriva dos fatores
anteriormente mencionados.
A recorrência de comentários discriminatórios por parte de informantes, ou presente em
conversas que o investigador auscultou e/ou participou no terreno, permitiriam apresentar aqui
vários episódios da sua experiência in loco. Apenas para efeitos de demonstração, escolhemos
colocar um curto excerto do diário de campo que exemplifica essa discriminação, uma de nativos
para com estrangeiros e outra no sentido inverso:
Certo indivíduo nativo da ilha numa rua paralela à praça de Sal-Rei, estava na esquina a falar com umconhecido com quem se cruzava e ambos falavam de umas obras que decorriam numa nova loja 'dechineses'. Alguns minutos dentro da sua conversa o primeiro aponta para as obras e com desdém pergunta'Aquele senegalês ali?!' Ao que o outro respondeu 'O preto! São pretos eles!'. (…) Na mesma linha, fez-me recordar uma outra conversa entre dois empresários estrangeiros que desta feitaao falarem sobre a capacidade profissional dos caboverdianos um deles remata toda uma argumentaçãocom a expressão: 'Realmente... não se pode contar com estes gajos para nada... é uma coisa! São pretos,pronto! (DC 23/12/2012)
235
VII – Impactos Percecionados em Análise
Especulação Imobiliária
Hoje foi dia de mudança. Já estou no apartamento (…). Faltam algumas reparações e tenho bastantescoisas para comprar. A cama é um pouco desconfortável, como uma barca em colchão... a luz bate fortenos olhos assim que o sol nasce... em África não é costume usar persianas e a cortina apenas atrasa oinevitável... de resto o calor faz-me transpirar toda a noite, há que arranjar também o motor da ventoinhade teto, caso contrário, vou passar a dormir na varanda mergulhado em repelente!Tenho ainda um inquilino no apartamento. Tenho a certeza que tenho um ninho de baratas atrás do fogãoe balcão da cozinha... é tudo em castrado, nada posso fazer se não pôr algum tipo de remédio queencontre por aí. Fui ao supermercado aqui ao lado e por dez itens essenciais gastei 22€, só a água, ogarrafão de cinco litros, custou 235 ECV, cerca de 2€ e pouco. (DC 14/5/2012)
Apesar de já termos tocado na questão do aumento dos preços, e, por arrasto, do custo de
vida, optámos por distinguir a especulação imobiliária, ou seja, o aumento dos preços dos bens
imobiliários, como habitações e terrenos, do simples aumento de preços. Esta distinção baseou-se,
em parte, pelo facto de surgir antes mesmo da implementação do turismo massificado, apesar de,
claro, com ele e depois dele se ter agravado profundamente.
Esse aumento exponencial do custo de terrenos e de habitação deveu-se a dois fatores
interligados, mas que devem ser considerados separadamente. Por um lado, os terrenos tiveram
enorme procura por parte de investidores estrangeiros, para a construção de infraestruturas
hoteleiras e de habitações de férias, como apart-hotéis e condomínios, para venda no mercado
Europeu.
Na década de 2000 e 2010 houve uma grande especulação dos terrenos onde se oferecia muito dinheiropor um pequeno pedaço de terreno. Foi agora com a crise que isso terminou. Foram os italianos que, compoder de compra (…). A partir de certo momento começaram a ir diretamente à CM, mas como a CM nãodava prioridade, eles começaram a comprar através de terceiros. Então aí começou a especulaçãoimobiliária. URHRNB36
Em 2006 estava uma fase otimista e assim de repente passou para uma fase de especulação, e na alturaestava uma febre. Parecia uma febre do ouro! As pessoas só falavam em terrenos, em turismo e vivia-semuito essa febre e os temas de conversa eram esses. URMRNB27
Do que se diz na Boa Vista, quem inflacionou isto foram os italianos! Em 2007 nós chegámos cá isto erapior que o Algarve ou qualquer parte da Europa, era extremamente inflacionado, a imobiliária era umacoisa que não se chegava lá! Obviamente que foram os italianos que fizeram isto, lá para cima, especular.Hoje devido também à crise internacional estão a chegar ao preços justos das coisas! URHOP47
Então, alguns começaram a vender terreno. Se tens 250 m2 a 1200€, vais vender por 30 mil euros! Muitosfizeram assim! Venderam o terreno e construiram no terraço da casa dos pais! URHRNB33
Na altura houve uma corrida aos terrenos porque se podia comprar facilmente um terreno por 15 milescudos e vender por 5 milhões! (...) Começou a haver uma febre dos terrenos na Boa Vista com toda agente a vender. Não houve um controlo da entidade estatal e da CM e trouxe um caos urbanístico. Euacho que tem sido um dos grandes entraves do desenvolvimento da ilha e de alguns problemas sociais
236
VII – Impactos Percecionados em Análise
também. (...) O problema na Boa Vista é que o apetite pelos terrenos acabam por levar a um preço, umainflação! URHRNB31
Por outro lado, o aumento populacional e a carência de habitações suficientes agravou a
procura interna e fez subir drasticamente o custo das habitações e respetivo aluguer, o que por
arrasto dificultou o acesso dos nativos da Boa Vista aos terrenos que anteriormente eram facilmente
adquiríveis. Esta última questão está intimamente ligada a outro impacto negativo denominado
Perda dos Direitos dos Residentes Nativos que será à frente aprofundada.
(...) para além de ter a abertura de trabalho, mas também temos a dificuldade do trabalho também, porquetemos ainda muita gente sem trabalho, muitos jovens sem trabalho. Temos também o problema dasmoradias para os jovens, têm dificuldade em construir uma casa.... se podes ficas em casa dos pais... (…)O valor do terreno cresceu de uma maneira horrível! Agora só para obter uma planta de casa tens delevantar 2000€, e não é pouco! O terreno aumentou muito. Eu, quando comprei o meu terreno, pagueicerca de 14 a 15 mil escudos, agora tens de ter 200 ou 300 contos! Seria mais 800 para uma moradia!URMRNB46
Esta escassez de habitações e elevada procura por terrenos parece até ter criado uma arma
política, já que alguns entrevistados apontaram o pedido de terrenos na Câmara Municipal como
moeda de troca. Nesta os poderes políticos locais sequestravam o voto dos munícipes, ou a sua
“voz”, em troca de consideração nos pedidos de terreno:
Muitos jovens, de acordo com o (...) não reclamam em espaços públicos porque receiam represálias daparte da Câmara Municipal. Muitos ainda aguardam pelo processo de atribuição de terreno e temem quequalquer protesto implique um “esquecimento ou negligência” nesses processos. Já tinha ouvido outrosboavistenses a falar sobre isto, estes novos comentários parecem reforçar essa ideia. (DC 4/7/2012)
Apesar dos entrevistados com 70 ou mais anos não fazerem menção a este impacto, fica
claro que as restantes faixas etárias estão atentas à especulação imobiliária, ainda que em nenhuma
desta ultrapasse os 33% dos entrevistados entre os 60 e 69 anos. No entanto, os restantes grupos
variam entre os 20% dos subgrupos 20-29 e 40-49 anos, isto resulta numa ligeira tendência de
menor importância atribuída à especulação imobiliária à medida que avançamos na idade dos
entrevistados.
Numa análise atenta às variáveis de género e de espaço de residência verificamos que, por
larga vantagem, tanto o género masculino (31%) como os habitantes em espaço urbano (26%)
superam o género feminino (11%) e o espaço rural (15%). Também a nacionalidade revela que o
impacto negativo em causa está mais presente entre os estrangeiros (33%) do que entre os nacionais
(20%).
A especulação imobiliária não preocupa os entrevistados com o ensino primário, mas, sem
237
VII – Impactos Percecionados em Análise
dúvida, está presente na mente dos restantes níveis de escolaridade, em particular entre os que
possuem o nível secundário (38%), bem acima dos entrevistados com o ensino superior (28%) e o
preparatório (20%). Isto confirma que, mais uma vez, o nível de escolaridade determina a
importância atribuída a um impacto negativo, já que quanto menor for o nível de escolaridade,
menor é também a atenção atribuída a este impacto.
Se os empregados (35%) e os desempregados (33%) revelam atribuir maior atenção a este
impacto, apenas 17% dos reformados e 14% dos trabalhadores por conta própria parecem
considerar o mesmo.
Parece que são os residentes estrangeiros (36%) quem mais estão preocupados com este
impacto, logo seguidos pelos operadores (27%), um pouco acima dos nativos, tanto da Boa Vista
(20%) como das outras ilhas (17%). Sem dúvida que o facto de estrangeiros e operadores estarem
mais preocupados com a especulação imobiliária pode ter uma dupla leitura, por lado podemos
acusá-los de procurarem margens de lucro maiores na compra e venda dos terrenos e portanto
estarem interessados em adquirir terrenos ao mais baixo custo possível.
Por outro lado, estes são os motores de investimento e o custo elevado dos terrenos apenas
dificulta a captação de investimento e aumenta também o valor das taxas municipais sobre as
propriedades sobrevalorizadas, dificultando ainda mais esse investimento ou reinvestimento que é
procurado e desejado pelo Governo e pela Câmara Municipal da Boa Vista.
A especulação imobiliária poderia estar agregada ao aumento dos preços empurrando estes
mais acima na tabela dos impactos negativos percecionados, todavia, determinou-se que o número
de menções específicas a este tipo de aumento de preços exigia o seu destaque, nessa medida não
podemos destacar este impacto como sendo necessariamente diferenciador face aos estudos
internacionais, apesar da sua demarcada presença.
Ausência ou Inadequação de Infraestruturas
Com vinte menções, a ausência e/ou inadequação de infraestruturas surge na décima posição
dos impactos negativos percecionados. Apesar de parecer contrastar com o segundo impacto
positivo, precisamente a construção de infraestruturas, estas menções referem-se às básicas, ou
serviços básicos, ao passo que as anteriores referiam-se a vias de comunicação, malha urbana,
alguns serviços, etc. Estes serviços básicos são, especificamente, a rede de esgotos ou saneamento,
água, eletricidade, recolha e gestão de lixo. 238
VII – Impactos Percecionados em Análise
As negativas são várias. São... mais que as positivas. Sobre-população da ilha, não há infraestruturassuficientes para todos. Não há água e energia, há cortes diários. URHREB35
(...) em Cabo Verde e na Boa Vista estamos a receber turistas, mas não temos infraestruturas de suporte!JGHRNB31
(...) e também há falta de saneamento! Como outros problemas! CTHRNB25
Sal-Rei é cidade não sei de quê! Não tem esgoto, saneamento, essas coisas... segurança! Não fizeramnada, só construiram os hotéis e trouxeram os turistas. URMOP29
O lixo aqui é gravíssimo, não há um lugar onde depositar os dejetos sólidos na Boa Vista. A vila de Sal-Rei precisa de uma rede de esgotos. URHRNB48
Então isso, a saneamento é um problema, não há aterro nem incinerador, e o lixo está por aí. URHRNB36
(…) como por exemplo a questão do lixo, passamos de cinco toneladas por dia para vinte e dois na ilha daBoa Vista! O que faz com que tenhamos uma lixeira gigante a céu aberto, escondida dos olhares turísticose que fica ali na zona do Rabil. URMREB34
Tem agora já locais que vivem na barraca também! Arranjaram namorada que vive na barraca, optou poralugar um quartinho. São 7 mil escudos um quartinho! Só que o problema de barraca é o saneamento!Não tem casa de banho então é tudo feito por ali! Atrás das barracas... não há água não tem nada...URHRNB33
Uma das estratégias governamentais para contrariar algumas destas carências, foi privatizar
alguns setores, e na Boa Vista existe hoje uma empresa privada que gere a água e a luz na ilha, a
AEB (Água e Energia da Boa Vista). No entanto, a pressão excessiva (para a capacidade atual) do
consumo de água e de outros recursos por parte das grandes cadeias hoteleiras, dificulta e atrasa o
abastecimento das populações residentes. Para agravar a situação, deve-se recordar que o consumo
de qualquer dos hotéis de turismo massificado da ilha é superior a toda a população residente, o que
acaba por colocar a prioridade da empresa privada nos seus principais clientes, os grandes hotéis.
Viver nos hotéis é viver numa prisão dourada, penso que as pessoas devem ter noção que a água é cara edevem ter cuidado com a água! (...) A mim não me choca que sou europeia, mas o caboverdiano que vemde Santiago e vê essa comida e água, o que essa pessoa deve pensar! URMOP33b
Outra é a questão da água e da luz. Foi criada uma empresa, a AEB, ao contrário do resto do país, foicriada uma nova empresa de capitais espanhóis, uma parceria público-privada (…) agora está melhormas, ainda assim, há cortes constantes, mas tempo houve em que a prioridade de abastecimento eram oshotéis. A população ficava dias a fio sem água e sem luz! URMREB34
Mas não são apenas os grandes hotéis que pressionam a capacidade da empresa. Também os
constantes puxões ilegais de eletricidade na zona da Boa Esperança, e as muitas máquinas, rede de
água e eletricidade obsoletas ou datadas a necessitar de renovação ou substituição, atrasam
gravemente a atualização da capacidade de abastecimento da energia e água.
239
VII – Impactos Percecionados em Análise
A análise às faixas etárias releva, sem dúvida, que são as camadas mais jovens que maior
atenção dão à ausência ou inadequação das infraestruturas, em parte reforçada pelos nulos dos
entrevistados entre os 50-59 anos e os com 70 ou mais.
Se, apenas por diferença mínima, o género masculino (21%) supera o feminino (18%), o
mesmo já não ocorre na análise por nacionalidade, onde, por larga vantagem são os estrangeiros
(38%) que mais importância atribuem a este impacto negativo, mais do que dobrando o valor dos
nacionais (15%). Também superior é a percentagem dos habitantes de espaço urbano (23%) face aos
de espaço rural (11%).
A análise dos dados, cruzando com o nível escolar, demonstra uma clara curva ascendente:
quanto maior o nível escolar maior é a atenção atribuída a este impacto negativo, iniciando nos 5%
dos entrevistados com ensino primário e terminando nos 28% dos entrevistados com o ensino
superior.
Em termos de situação profissional, apenas os empregados (19%) e os trabalhadores por
conta própria (32%) consideram este impacto, o que nos leva a concluir que a ausência de
infraestruturas básicas preocupa apenas os indivíduos profissionalmente ativos. Igualmente
revelador é o facto de os residentes estrangeiros (43%) e os operadores (36%) apresentarem
percentagens muito superiores aos nativos da Boa Vista (12%) e de outras ilhas do país (17%).
A inadequação das infraestruturas é resultado do consumo excessivo de recursos escassos,
que, por sua vez, deriva do aumento exponencial da população residente e visitante; daí que este
impacto é muitas vezes catalogado como consumo excessivo de recursos, estando por exemplo
presente nos trabalhos de Ferreira (2005) e de Lopes (2008) entre muitos outros.
Perda da Autenticidade Cultural
Decidi ir a Sal-Rei sozinho. Esperei que alguém pedisse um táxi e fui à boleia para meter conversa comos turistas. A vila, no centro, é confusa. Táxis demais sempre a perguntar: 'Hotel Friend?' Vemos muitosafricanos do continente a oferecer ajuda e a elogiar os turistas apenas para os conduzir às suas lojas deartesanato. Com a pulseira não tenho paz, sou assediado de todos os lados... (DC 8/5/2012)
Por exemplo, as pessoas locais, na sua maioria, não gostam de tantos africanos ilegais que afastam osturistas com a sua persistência. Ele vêm do Senegal, da Nigéria e da Costa de Marfim. Estão sempre pelasruas com discursos preparados para as várias nacionalidades de turistas e com clara tendência para sejuntarem em grupos perto da saída e chegada dos táxis no centro de Sal-Rei, muito próximos das suaslojas de artesanato. (DC 11/5/2012)
O debate em torno da autenticidade é extenso e mereceu uma visita aprofundada no segundo
240
VII – Impactos Percecionados em Análise
capítulo desta obra. Do ponto de vista dos entrevistados, a chegada de turistas trouxe uma procura
por bens de consumo, entre eles, os produtos de artesanato, sendo que estes são quase
exclusivamente produzidos e vendidos por nacionais do Senegal e de outros países do continente
africano. Cerca de dezassete entrevistados consideraram esse facto como um exemplo de perda de
autenticidade cultural, já que consideram que o artesanato oferecido não os representa:
(…) as lojas de artesanato é quase exclusivamente de senegaleses e guineenses. As receitas que os turistasdeixam não ficam na ilha. URHRNB36
Aqui encontras muitos senegaleses, lojas de produtos que não são daqui. Maioria daqueles que vendemsão produtos que trazem de Senegal. E depois dizem ‘É feito aqui em Cabo Verde!’, mas não é verdade.URHRNB31
No artesanato já tem muito artesanato de fora que não é da ilha! (...) Compram gato por lebre!FFMRNB38
O pessoal daqui parece um pouco desligado do turismo. Aproveitam o trabalho mas muitos queremexplorar as pessoas que vêm... (...) Mesmo o artesanato aqui que vendem não tem nada a ver com o país...é incrível. Os turistas vêm e querem levar recordações e compram coisas que não tem nada a ver comCabo Verde! URHRNOI30
(...) o artesanato tem vindo a despertar... normalmente quem tira proveito disso são os nossos vizinhos dacosta africana que têm várias lojas de souvenirs. URHRNB27
Eu queria abrir essa loja de artesanato que não tem nada a ver com esse Senegalês, é produto nacional!(...) Com produtos das outra ilhas. Eu trabalhava no Spinguera e os turistas reclamam porque queriamcomprar e não tinha. É triste mesmo. BFMRNB30
A perda de autenticidade obteve ainda duas menções específicas a outros exemplos da
cultura local: uma, remete para a gastronomia, e outra, para a música caboverdiana, que também se
enquadra neste mesmo impacto negativo:
Já vi músicos caboverdianos no RIU a tocar funaná vestidos de guineenses, de fulas! Para mim isso éagressão à nossa cultura! URHRNOI61
(...) se fores a ver nos restaurantes não tem assim tantos pratos típicos como devia para uma pessoa defora! Nós até gozamos a dizer que o prato típico é galinha com batata frita! URHRNB36
A perda de autenticidade relativa aos objetos artesanais preocupa menos de um quarto de
todas as faixas etárias, mas ainda assim, mais os mais novos que os mais velhos, particularmente
quando comparados com o nulo dos entrevistados com 70 ou mais anos, muito longe até dos 14%
dos que têm idades compreendidas entre os 50 e 59 anos.
Se apenas 5% de todos os estrangeiros consideram este impacto, são 21% os nacionais que o
fazem, mostrando uma preocupação largamente superior. Também com diferenças notórias, são os
entrevistados do género masculino (21%) e de espaço rural (33%) que mais importância lhe241
VII – Impactos Percecionados em Análise
atribuem, bem acima do género feminino (13%) e dos residentes em espaço urbano (12%).
Com uma clara curva descendente os dados demonstram que, quanto maior o nível de
escolaridade, menor é a atenção atribuída a este impacto negativo, onde os 16% dos entrevistados
com o ensino primário é oito vezes superior aos 2% do entrevistados com o ensino superior.
Por diferenças mínimas, tanto empregados (19%), como desempregados (17%) e
trabalhadores por conta própria (18%) consideram este impacto, ao passo que os reformados e
domésticos o ignoram por completo. Finalmente, este impacto é também ignorado pelos operadores
e profundamente marginal para os estrangeiros (7%), mas bem mais importante para os residentes
nativos, tanto locais (24%) como oriundos de outras ilhas (17%), ainda que com alguma diferença
percentual.
A autenticidade cultural é um impacto negativo presente em trabalhos como os de Brougham
e Butler, (1981) e Dogan (1989). No entanto, há que referir que, aqui, este impacto refere-se, na sua
maioria, especificamente à adulteração dos objetos culturais tradicionais da ilha da Boa Vista, e não
necessariamente a outras alterações de cariz social ou comportamental.
Aumento da Corrupção
Mais um impacto que esteve presente nas conversas entre o investigador e 15% dos
entrevistados. Com a injeção acentuada de capital na economia nacional e local, torna-se
expectável, por parte das forças políticas decisórias, a tentação de facilitar caminhos e permitir
atalhos em troca de géneros, sobretudo em dinheiro. Não obstante a corrupção implica a
participação de corruptor e de corrupto, e assim, não são apenas os elementos políticos decisores
que devem arcar com todas as atenções. No entanto, os entrevistados apenas mencionam os
políticos, em particular, os responsáveis políticos regionais:
Mesmo o poder público, a CM, que está mais próxima não faz muito para isso. (…) Quando lhe interessafala, então é porque tem o rabo preso a alguma coisa! Porque não falam nada, quer dizer. JGHRNB41
Tu queres um terreno, tu tens de fazer um pedido à CM por escrito a pedir ajuda. Tem pessoas que játentaram seis vezes e nunca tiveram terreno... agora é mais por "amizade"! Tens um vereador ou opresidente que é teu amigo e tens mais possibilidade de arranjar terreno! URHRNB33
A questão dos terrenos na Boa Vista é uma coisa que eu sinceramente já perdia a esperança! (…) É umacoisa que não é transparente e não tem justificação. Você não sabe como é que acontece, então eu já nãoestou nem ligando! (…) Outro aspeto que não entendi, sendo uma ilha turística que é o aspeto dasestradas. Tem um défice. JGHRNB41
Há um pouco de corrupção, não tanto como o resto de África, mas existe! (...) Quando cheguei a Cabo
242
VII – Impactos Percecionados em Análise
Verde há quinze anos o terreno à beira mar custava 1500€ com 500 m/2, hoje vale 200 mil €! A CMvende esses terrenos por 1500 e 2000€ a amigos, que por sua vez os venderam por 50, 80 mil etc. Eu pedium terreno e nunca consegui um terreno, se não fazes parte da máfia não consegues! URHREB68
Eu sou da Boa Vista e não tenho terreno para construir a minha casa. Porquê? Os italianos vão, têmdinheiro e vendem o terreno mais fácil para eles. (...) Sou procurador de um primo meu que está na Suíça,agora no momento de campanha deram terreno. Porque o pai dele trabalhava com ele no primeiromandato do presidente de Câmara, agora pedi e deram terreno. URHRNB37
Ponto ligado tanto à especulação imobiliária como à perda dos direitos dos residentes, esta
questão relaciona-se com a procura de terrenos por parte de locais, mas também de estrangeiros.
Estrangeiros que, por sua vez, se queixam da morosidade burocrática que por vezes se torna
suspeita para quem não está disposto ou é incapaz de “simplificar o processo através de apoios
informais a decisores”:
Há neste momento uma grande desconfiança nos governantes, tanto nacionais como locais. URHRNB36
É investimento e a autoridade fecha os olhos e vira a cara muitas vezes aos investidores, fazemos barulhomas às vezes não tem o eco porque os milhões falam mais alto na ilha. URHRNB48
Aqui é muito difícil conseguir informações, cada um procura a vida como pode. É muito, muitocomplicado. Há muita coisa para fazer mas é muito demorado e há muita corrupção também! Se tem umaideia e quer investir tem de passar pela CM, dar a ideia a eles depois eles te dizem espera, espera, depoisum dia vês que um caboverdiano já usou a tua ideia porque tem o dinheiro e passou ao largo da CM. (...)É muito específica a Boa Vista porque é uma mentalidade turista é dinheiro, só dinheiro, dinheiro,dinheiro, não se fala em mais nada, trabalho e dinheiro. URMOP47
Há aqui interesses e esses são os grandes obstáculos. Porque, falta de poder local também... (...) muitosobstáculos e interesses da própria sociedade. URHOP47
Apesar da contestação, esta questão parece ser resolvida através de um processo de maior
transparência dos processos de atribuição, venda ou legalização de terrenos e negócios por parte da
Câmara Municipal. A falta de transparência não é sinónimo de corrupção, mas é motivo mais do que
suficiente e justificado para levantar suspeitas.
A corrupção é um impacto negativo que preocupa metade dos entrevistados entre os 60 e 69
anos, mas nenhum entre os 50 e os 59 anos, ademais, as duas faixas etárias mais jovens têm apenas
percentagens residuais, muito abaixo dos 30% dos entrevistados entre os 40 e 49 anos de idade ou
dos 20% dos com 70 ou mais anos. Conclui-se que este impacto é mais preocupante para as faixas
etárias mais velhas.
Mas não só em particular para estas, como, também, sobretudo para o género masculino
(19%), os estrangeiros 24% e os residentes de espaço urbano (17%), ultrapassando largamente as
outras características.243
VII – Impactos Percecionados em Análise
Os dados referentes ao nível escolar revelam uma subtil inclinação crescente; quanto maior
o nível escolar maior a atenção atribuída ao impacto, isto apesar dos baixos 9% dos licenciados,
ainda assim acima dos 5% do ensino primário, ambos muito abaixo dos 20% do ensino preparatório
e 38% do ensino secundário.
São os reformados (33%) quem mais mencionam a corrupção crescente, logo seguidos dos
trabalhadores por conta própria (27%), ambos bem acima dos valores dos desempregados (17%) e
dos empregados (8%).
Este impacto é ainda ignorado pelos nativos de outras ilhas e apenas 12% dos nativos da
Boa Vista, sendo, assim, importante para os operadores (36%) e estrangeiros residentes (21%). Ou
seja, os detentores de capital para investir queixam-se mais do que quaisquer outros grupos da
crescente corrupção que o desenvolvimento turístico trouxe. A corrupção é sem dúvida um impacto
que vive emparelhado com o crescimento económico, ou, pelo menos, com a sua perspetiva.
Atitude dos Locais Face ao Turismo
No capítulo II, no ponto dedicado aos impactos e impactes que a literatura científica detetou
como oriundos ou agravados pela presença do turismo em certos espaços, ficou claro como a atitude
dos locais face ao turismo pode ser um importante diagnóstico para a situação de qualquer espaço
turístico. Locais satisfeitos com o turismo tendem a uma atitude mais positiva para o turismo e para
os turistas, o que por sua vez, tende a garantir maior qualidade no serviço prestado e, por arrasto,
maior satisfação por parte dos turistas que procurarão regressar ao destino garantindo a própria
sustentabilidade económica do destino.
No caso da Boa Vista, e dos residentes entrevistados, constata-se que apenas 11% dos
entrevistados manifestaram insatisfação pela presença do turismo e dos turistas. Esta insatisfação
está relacionada com a expetativa inicial que os mesmos e a comunidade em geral tinham,
sobretudo os nativos da ilha:
Nós desejámos que fosse melhor! Que as pessoas do pais ou da ilha tivessem mais bem servidos doturismo. Que houvesse mais oportunidades, principalmente para os jovens. Acompanhasse essasoportunidades... FFMRNB38
Não, a gente esperava melhor! Turismo, turismo, turismo mas a gente esperava melhor. Com o tempoisso vai mudar. CTMRNB53
Dizem que o turismo não é proporcional a todos... não conseguem tirar os dividendos necessários ouesperados do turismo... que isso porque criticam muito o sistema de turismo que fazem cá, o chamado
244
VII – Impactos Percecionados em Análise
turismo de pacto, em massa! Grande massa de pessoas que chegam cá na Boa Vista semanalmente, setemil e tal turista à semana, cento e tal mil ao ano... as pessoas acham que esses números deveriamsignificar muito mas não está! URMRNOI30
As pessoas pensaram que o futuro era o turismo mas afinal não é assim, não é tão bom para os nativos!URMRNB62
O mais óbvio em Sal-Rei é ali a zona das barracas, bairro da Boa Esperança. Criaram os hotéis e nãocriaram condições para aquilo que seria necessário. Nem é preciso dizer mais nada. As pessoas da BoaVista não veem o turismo como parte integrante da ilha... FFMRNB27
No início era o máximo. Isto era um deserto. Todos estavam contentes com o desenvolvimento. Masesperavam outra coisa! (…). No início as pessoas eram melhor recebidas, mas depois, com as grandesquantidades, as pessoas locais começaram a sentir-se intimidados estás a compreender?! As pessoascomeçaram a sentir-se ameaçadas em casa. URMRNB28
Os boavistenses em si, de forma geral, (...) nós os boavistenses não temos ganho grande coisa,sinceramente. (…) Aliás, nota-se um pouco a frustração e o descontentamento da população em relação aisso. Também podemos perguntar até que ponto estávamos preparados para isso e até que ponto podemosquerer mais se não estamos preparados. URHRNB28
Eu estou um pouco desiludido com o turismo. A única coisa que trouxe foi criar uma barraca com quatromil e setecentos habitantes, tem mais população que a Boa Vista. Não sei de quem é a culpa mas presumoque seja do Estado... que não tenha negociado bem as coisas, porque como disse às vezes é preciso serum bocadinho Chavista e um bocadinho Castrista, porque... é precisa mão de obra é preciso criarcondições para que as pessoas tenham alguma dignidade. URHRNOI61
Se considerarmos os valores globais por faixa etária, podemos concluir que a idade não é
determinante neste impacto negativo; no entanto, num olhar mais aprofundado, faixa a faixa, é
possível apartar os casos particulares dos nulos para os entrevistados entre os 40 e 49 anos e aqueles
com 70 ou mais anos de idade, assim como a elevada percentagem daqueles entre 60 e 69 anos face
às restantes faixas etárias, que rondam os 14%.
Indiferente parece ser a residência e nacionalidade dos entrevistados, que revelaram um
declínio da atitude face aos turistas e ao turismo, sendo que, em ambas as características a
percentagens rondem os 11%. Por outro lado, apenas 9% do género masculino apontam para este
impacto, ao passo que praticamente o dobro desta percentagem (16%) está presente no género
feminino, demonstrando uma maior preocupação com o dito impacto.
No que se refere ao nível escolar, os dados individuais por nível, contrastam com o resultado
global, ou seja, os valores mais altos são para os entrevistados com o ensino superior (17%), muito
acima do ensino preparatório (7%) e do nulo dos indivíduos com o ensino secundário. Todavia, os
próximos 11% do nível de escolaridade primário colocam uma tendência geral muito ligeira, onde
quanto maior a escolaridade, maior a atenção dada ao impacto.
245
VII – Impactos Percecionados em Análise
Novamente dispersos são os valores percentuais por situação profissional, que mais uma
vez, flutuam entre os 6% dos empregados, e o nulo dos reformados e domésticos, e os 33% dos
desempregados, o grupo, de longe, mais preocupado com a perda da atitude, logo seguidos pelos
trabalhadores por conta própria (23%).
A análise por grupos de residência demonstra que os operadores, de todo, não consideram
este impacto, ao passo que os restantes grupos apresentam valores muito próximos, orbitando entre
os 17% dos nativos de outras ilhas, e os 12% dos nativos da Boa Vista.
Dado que não existem elementos comparativos, não podemos falar em declínio da atitude
dos locais face ao turismo. Ainda assim, estes dados poderão servir para eventuais estudos
comparativos futuros. Este declínio, como já vimos no segundo capítulo, está presente em obras
como Doxey (1975) ou Dogan (1989).
Dependência face ao Turismo
Dada a ausência do setor secundário e a insipiência do setor primário na ilha da Boa Vista, a
aposta no setor terciário, os serviços, nomeadamente num tipo específico de serviço, o turismo,
levou a uma dependência acentuada face ao mesmo. Aliás, poder-se-ia falar em dependência
nacional uma vez que as divisas e impostos que provêem diretamente do turismo têm sido capazes
de equilibrar as contas nacionais e melhorar drasticamente o produto interno bruto de Cabo Verde.
Mas, o turismo é um tipo de serviço que conhece muitos casos de rápida saturação, que
tendem a levar os destinos à ruína ou a uma profunda depressão económica e social, agravando,
muitas vezes, a economia de um destino para níveis muito piores do que antes da chegada do
turismo. Recorde-se aqui as ferramentas teóricas como o “Ciclo de Vida de um Destino Turístico”
de Butler (1982) que se baseiam precisamente na prevenção desse tipo de situações.
Naturalmente que isto apenas pode ser o caso quando toda a economia local depende direta e
indiretamente da presença de turistas, e na Boa Vista o caso é realmente esse. Usualmente, os
efeitos da sazonalidade de um destino turístico permitem uma tangente aproximação dos efeitos da
ausência do turismo num dado espaço, mas, nesta ilha, como em todo o arquipélago, a sazonalidade
é muito subtil, dado que a ocupação média anual dos hotéis acerca-se dos 80%, isto sobretudo
devido às características climáticas e geográficas de Cabo Verde:
Cabo Verde é um país pobre, a taxa de desemprego é elevado e então o Governo terá se preocupadoexcessivamente com a taxa de desemprego e... (...). Agora estamos excessivamente dependentes doinvestimento de empresários estrangeiros. (...) Estamos dependentes do turismo, (...). BFHRNB25
246
VII – Impactos Percecionados em Análise
Nota-se quando para a construção de um hotel como o desemprego oscila na ilha. (...) O país sempreesteve dependente da ajuda ao desenvolvimento, sempre dependente das remessas dos emigrantes, eagora está também completamente dependente do turismo em si! Estamos triplamente dependentes daconjuntura internacional! URHRNB28
Penso que até agora não têm noção do impacto... pensam que é tudo por acaso. Mesmo as pessoas quetrabalham no hotel não pensam que se amanhã de manhã não chega nenhum turista, tudo acaba! Aspessoas aqui vivem dia-a-dia, não se programa grande coisa. URHREB51
A dependência face ao turismo é uma preocupação presente apenas nos entrevistados entre
os 20 e os 59 anos, sendo que as percentagens internas das faixas etárias são bastante próximas,
rondando os 13%, provando uma tendência etária neste impacto onde, quanto maior a idade, menor
a atenção atribuída. Igualmente sem qualquer referência a este impacto, o género feminino fica
muito aquém dos 19% apresentados pelo género masculino.
Já no que toca à nacionalidade, os valores são novamente próximos, entre os 12% dos
nacionais e os 10% dos estrangeiros; o mesmo ocorre entre os 10% dos residentes em espaço
urbano e os 15% dos residentes em espaço rural. Os dados revelam que todos os níveis de
escolaridade apresentam uma percentagem de 13%, com exceção dos 5% dos indivíduos com o
ensino primário, levando assim a considerar que a preocupação com a dependência face ao turismo
cresce com o nível de escolaridade.
Ora, apenas os desempregados (15%), os empregados (17%) e os trabalhadores por conta
própria (5%), estão preocupados com este impacto; no caso do último subgrupo, a diferença face
aos outros é significativa. Por outro lado, todos os grupos de residentes apontaram para este impacto
negativo, ainda que tenham sido os nativos da Boa Vista (14%) que apresentaram uma percentagem
interna um pouco mais elevada que os restantes (cuja média os leva aos 8%).
Ferreira (2005) e Lopes (2008) foram alguns dos autores que sublinharam a dependência
face ao turismo como um importante impacto negativo que deve ser abordado com a máxima
atenção, dada a fragilidade ambiental e económica dos destinos turísticos (em particular, os
balneares).
Aumento da Poluição
Chegamos ao segundo impacto negativo diretamente relacionado com a questão do ambiente
e que apenas chama a atenção de cerca de 10% dos entrevistados. O aumento da poluição é uma
247
VII – Impactos Percecionados em Análise
situação diretamente relacionada com o primeiro impacto negativo relacionado com as questões
ambientais, a ausência de infraestruturas básicas. Obviamente que não havendo, por exemplo, uma
lixeira devidamente preparada e equipada para tratar as toneladas de lixo que são despejadas
diariamente, essa poluição torna-se rapidamente um problema grave com consequências a curto, a
médio e a longo prazo.
Recorde-se que a lixeira encontra-se precisamente sobre a maior bacia hidrográfica do país
e, assim, numa posição delicada tanto para humanos como para o resto do ecossistema autóctone
que depende dessa água e terrenos férteis adjacentes. Sem surpresa, a poluição que advém da lixeira
é precisamente o principal alvo das críticas dos entrevistados:
Os negativos em termos ambientais é a ilha não ser cuidada. URHRNB31
(…) A lixeira é a vergonha. E está próxima de um lugar que é importante. A bacia do Rabil é a maior[bacia hidrográfica] de Cabo Verde! Pode ver pessoas lá a apanhar comida… uma miséria! (…) paravender e para consumo próprio. URHRNB48
Os problemas ambientais da Boa Vista estão ligados aos hotéis. Eles... tem a lixeira a céu aberto, querdizer, não há controlo! Ali há pessoas que vivem em barracas e apanham aquele alimento... aquelesalimentos que já ultrapassaram, eles levam na barraca e dão um banho e vendem! A CM não está a fazernada com o lixo! URHREB42
Se não se criam os meios para resolver o problema, vai ser ainda pior! (...) Aqui não há separação de lixosorgânicos e não orgânicos vai tudo para a lixeira. O que se pode queimar, queimam, e o resto fica lá!URHREB36
Antigamente tínhamos seis toneladas de lixo e agora temos vinte e três, e a maioria do lixo é dos hotéis!São muitos problemas, para mim... não sei! URHRNB44
Só para teres ideia, só os hotéis produzem mais lixo que a ilha inteira. JGHRNB35
O aumento da poluição é problemático apenas para os entrevistados entre os 30 e 39 anos
(11%), sobretudo para aqueles entre os 40 e 49 anos de idade (33%), sugerindo um perfil etário
muito específico. O mesmo não acontece no caso do género, onde, apesar de ligeira vantagem para
o masculino (12%) face ao feminino (8%), os valores são próximos, mais ainda no caso da
residência rural (11%) e urbana (10%) cuja diferença é mínima.
Ligeiramente maior é a variação entre os nativos de Cabo Verde (9%) e os estrangeiros
(14%), sugerindo uma preocupação acrescida dos estrangeiros face aos nativos. Se considerarmos o
nível de escolaridade, concluímos também que os entrevistados com o ensino preparatório e
superior (ambos com 13%) apresentam valores superiores aos restantes grupos (cuja média é de
6%), o que no final leva a uma ligeira tendência crescente (maior escolaridade, maior preocupação
248
VII – Impactos Percecionados em Análise
com o aumento da poluição).
Este impacto negativo preocupa apenas os indivíduos empregados (13%) e os trabalhadores
por conta própria (9%), ou seja, a poluição é uma problemática para os entrevistados
profissionalmente ativos. Uma problemática também para os residentes operadores (18%) e
estrangeiros (14%), mais do que para os nativos da ilha (10%), e totalmente indiferente para os
oriundos de outras ilhas (0%).
O aumento da poluição é, sem dúvida, um dos impactos negativos mais comuns na
literatura, como por exemplo em Jurowski e Gursoy (2004) ou Northcote e Macbeth (2005). A
fragilidade ambiental dos destinos e/ou a sobre-população dos espaços e do consumo dos recursos
acabam por acarretar esta consequência que em muitos casos, acaba por levar ao declínio de um
destino.
Perda de Direitos dos Residentes
Entramos nos últimos cinco impactos negativos detetados, todos eles abaixo dos 10% de
menções, neste caso concreto, com apenas 7%, a perda de direitos dos residentes é o próximo
impacto negativo; e remete-nos novamente quer para a questão imobiliária, quer para a questão da
privatização de algumas praias públicas por parte dos grandes hotéis.
Esta exclusão de cidadãos caboverdianos de praias anteriormente públicas, teve o seu
exemplo mais significativo aquando da construção do hotel Marine Club, junto à praia de Cruz, que,
não só bloqueou o acesso a parte da praia, anteriormente utilizada pelos locais para banhos, para
churrascos e outros eventos familiares. Agravando ainda mais a situação o dito hotel bloqueou o
acesso à antiga praia de Fátima ou de David onde estão as ruínas de uma igreja. Este percurso foi
bloqueado e consequentemente negado o acesso à igreja durante uma procissão anual, o que levou a
protestos de indignação. De forma a contornar a situação, foi criado um caminho pedestre que rasga
o hotel e permite a dita procissão e o acesso às praias localizadas do outro lado do hotel.
São estas as situações que melhor exemplificam as menções a este impacto negativo:
Houve alguns desentendimentos! O pessoal ia na zona Marine Club pescar e iam tomar banho nessa praiae depois fecharam... era só clientes, ouve desentendimentos! (...) Muitos conflitos! URMRNB32
Nas barracas deram terreno para toda gente, isso é uma revolta para toda gente da ilha. Por que eles vêmde Santiago e da África e têm terreno e nós não! Porquê? Será que também tenho de viver nas barracascom uma barraquinha para poder ter um terreno? Somos natural da ilha e deveríamos ter terreno, só que oterreno virou business! URHRNB33
249
VII – Impactos Percecionados em Análise
Quando há políticas para trazer o turismo e investir cá, tomam decisões que talvez a população não tenhagrande poder de decisão. Essas políticas são implementadas e a população só tem de cumprir e aceitar!(...) Principalmente quando foi a construção, por exemplo, do aeroporto, não houve um consenso entre apopulação e o governo, porque pessoas foram expropriadas das suas terras e não houve acordo. Foiimposição para construir. URMRNB28b
O terreno é outro problema. Tem pessoal aí com dois ou três terrenos e eu não tenho terreno. O pessoalque vem de fora... é triste para nós porquê, eu sou daqui e não tenho terreno para fazer a minha casa. Opessoal vem das outras ilhas, com três ou quatro casas na barraca! E estão a construir sem autorização!URHOP29b
A perda dos direitos dos residentes preocupa os dois grupos etários mais jovens, em
particular aqueles entre os 20 e 29 anos (15%), e os indivíduos entre os 60 e 69 anos (17%). Os
dados disponíveis são muito reduzidos para apontar com clareza uma tendência. Ainda assim,
aparenta que quanto menor a idade maior a atenção dada a este impacto negativo.
Igualmente claro é que apenas os nacionais (9%) de meio urbano (10%) apontam para a
perda de direitos, abrangendo, no entanto, os géneros feminino (5%) e masculino (9%). Ainda a
destacar são os 20% dos entrevistados com o ensino preparatório, muito acima dos 6% e 7% dos
indivíduos com o ensino secundário e superior, respetivamente, e do nulo do ensino primário.
Novamente, apenas os profissionalmente ativos apontam para este impacto, nomeadamente,
8% dos empregados e 9% dos trabalhadores por conta própria. Também com estas percentagens, os
grupos de residentes nativos, operadores e provenientes de outras ilhas, rondam os 8%, ao passo
que os residentes estrangeiros o ignoram por completo.
Northcote e Macbeth (2005) também descortinaram, no seu estudo, como os residentes
haviam perdido direitos para os operadores e/ou turistas. Estes podem tomar várias formas, entre
elas, direitos sobre território, acesso a recursos e direitos laborais.
Destruição da Natureza
Com a mesma percentagem de menções que o impacto anterior, a destruição da natureza é o
próximo impacto negativo. Como será claro, aqui considerámos referências à destruição do
ecossistema da Boa Vista, nomeadamente, as suas dunas e praia, mas também as espécies
endógenas da ilha como as tartarugas, as baleias e algumas aves. Espécies que correm risco de
extinção pelo excesso de consumo, como as lagostas, o atum ou o peixe-serra.
Sim, mas também o grande problema aqui são as moto4 sobre as dunas! É um dos problemas mais graves.URHREB42
250
VII – Impactos Percecionados em Análise
E a ilha é pequenina e frágil, ou acabamos com tudo de bom, como as tartarugas, ou então temos deproduzir essas praias... o ecossistema está completamente debilitado!URHRNB62
Eles veem as espécies protegidas como recursos turísticos, não veem que há que conservar os recursos,apenas uma visão económica de turismo e é muito complicado mudar as opiniões! (...) Cada vez temosum ambiente mais destruído com perda de espécie e biodiversidade. Há muitas atividades que destroem anatureza, como os quads e isso podia ser evitado! Muita preguiça e falta de interesse. URHREB36
Este impacto valeu a atenção de apenas 7% dos entrevistados, a maioria dos quais com idade
compreendidas entre os 20 e os 49 anos, isto apesar da maior percentagem interna pertencer aos
entrevistados entre os 60 e 69 anos de idade (17%), muito acima dos 8% de média dos anteriores.
No entanto parece claro que, quanto maior a faixa etária, menor o interesse por este impacto.
Maior interesse é também atribuído pelo género feminino (11%) e os de nacionalidade
estrangeira (19%), e habitantes de espaço urbano (9%), bem acima dos 5% do género masculino,
dos 4% dos nacionais e ainda dos 4% dos habitantes de espaço rural.
Com maior subtileza verificamos que, quanto maior o nível de escolaridade, maior a
preocupação com o aumento da poluição (ensino superior com 11%, mais que dobrando o ensino
primário com 5%), isto apesar do nulo dos indivíduos com o ensino secundário.
Apenas os empregados (8%) e os trabalhadores por conta própria (9%) mencionaram este
impacto negativo. Com igual destaque, são os operadores (18%) e os estrangeiros residentes (21%)
quem maior preocupação revela, em particular face aos nativos (3%) e os de outras ilhas(0%).
Ainda que esta possa ser reduzida, até certa medida, a simples ocupação dos espaços para
edificação de infraestruturas de suporte à atividade turística obriga à destruição da natureza. Isto
estava já presente nos trabalhos tanto de Cater (1987) como de Faulkner e Tideswell (1997).
Alterações dos Padrões de Consumo
O aumento dos preços e do custo de vida pode implicar alterações nos padrões de consumo
dos indivíduos cujos rendimentos são mais reduzidos ou mesmo precários. Para 4% dos
entrevistados, isto foi precisamente o que sucedeu na ilha, e hoje os nativos da Boa Vista veem-se
forçados a consumir outros tipos de peixe em virtude da procura e do preço de algumas das espécies
mais consumidas. Deve-se, no entanto, fazer nota que, por outro lado, hoje é também possível
consumir muitos outros tipo de alimentos, por exemplo a carne de porco, que antes era um recurso
mais raro, e agora até é mais barato que o peixe!
Mudou muito. Antes havia muitos peixes que não eram comidos. Faziam isca e diziam que se comer fazia
251
VII – Impactos Percecionados em Análise
mal... hoje em dia todo tipo de peixe é comido. Já não consegue comprar atum, tem de comprar umacavala, salmonete, aqueles peixinhos que o pessoal não comia aqui! URMRNB32
Mesmo antes tinha muita quantidade e o preço mínimo e isso influencia e muito na dieta alimentar,porque antes poderíamos ter um peixe de graça e agora tudo é comprado. URMRNB28b
Não, é, é tudo muito caro... (...) um kg de atum custava 150 escudos há volta de dez anos. E pouca gentecomia serra. Era garopa, charéu... (…), antigamente a gente não comia serra. URMRNB62
As alterações nos padrões de consumo são um problema que merece menção, sobretudo nos
entrevistados entre os 60 e 69 anos de idade (17%), com valores bem acima dos 5% de média das
outras faixas etárias com valores positivos, nomeadamente as dos 20 aos 49 anos de idade,
sugerindo que este impacto merece, por diferença mínima, maior atenção por parte dos mais velhos.
Maior atenção é também dada pelo género feminino (8%), mais do que o masculino (3%), e apenas
por nacionais de Cabo Verde (5%), tanto do espaço urbano como rural (ambos com 4%).
A alteração dos padrões de consumo é uma problemática apenas para os entrevistados com o
ensino primário (5%) e superior (7%), assim como para os empregados (5%), os desempregados
(17%) e nativos da Boa Vista (5%) e operadores (9%). Mathieson e Wall (1982) foram os primeiros
autores a constatar como o turismo poderia promover alterações nos padrões de consumo das
comunidades anfitriãs seja esta promovida pelo aumento dos preços, pela escassez de recursos ou
pelo efeito demonstrativo que De Kadt (1979) salientou.
Perda da Língua Local
Para 3% dos entrevistados, a multidão de residentes e visitantes de outras paragens, tem
promovido uma perda do uso e importância da língua local para as suas respetivas línguas ou
dialetos:
Nós nativos somos poucos, mais de metade já se ouve muita língua de outras ilhas, sem contar com aslínguas estrangeiras! URHRNB48
Todo mundo aqui já reclama porque todo mundo é italiano, cumprimento sempre "Ciao comé stai!". Nãotêm aquela coisa de falar na sua língua, em português! (...) Turistas são tidos como todos iguais!URMRNB32
Apenas os entrevistados entre os 30 e 49 anos de idade (5%) chamaram a atenção para a
perda da língua local face às estrangeiras ou outras variações nacionais, sendo todos homens (5%),
nativos de Cabo Verde (4%) e da Boa Vista (5%), e residentes em espaço urbano (3%). Todos
tinham também pelo menos o ensino preparatório (7%) e eram profissionalmente ativos, sejam
252
VII – Impactos Percecionados em Análise
empregados (3%) ou trabalhadores por conta própria (5%).
Apesar de neste trabalho haver uma percentagem reduzida dos entrevistados a mencionar a
perda da língua local, e do facto do próprio investigador considerar este impacto como virtualmente
inexistente, o mesmo está destacado nos trabalhos de White (1974) e Coppock (1977).
Abandono das Práticas Tradicionais
Por fim, o último impacto negativo mencionado por 2% dos entrevistados, que contraria
diretamente o impacto positivo da revitalização das práticas tradicionais; falamos do abandono das
práticas tradicionais:
A pesca… havia muito pescador aqui da vila da Boa Vista, já há pouco, a maioria já está virado parahotéis ou para outros mas não quer saber do mar, o mar dá dinheiro… URHRNB48
Entretanto, um setor que ficou para trás foi o da agricultura e pecuária! Os hotéis até agora importam tudoo que consumem, tudo, tudo, tudo! (…) Muitas discussões houve, muita fricção houve, especialmente daparte nordeste, a parte mais vocacionada para a agricultura… porque os agricultores não se conseguiamassociar para ter uma produção à altura das demandas dos hotéis, e ao mesmo tempo não conseguiamentrar porque não estavam certificados! Não tinham as exigências de qualidade que os hotéis têm.URMREB34
Sem dúvida contraditório e até, diríamos, estranho, pois, como vimos, aumentou tanto o
número de pescadores como o de agricultores da ilha. Claro está que a questão é levantada
sobretudo por nativos da ilha, que consideram erroneamente a ausência de jovens autóctones nestas
práticas como sinónimo da sua perda ou abandono.
Esta preocupação com o abandono das práticas tradicionais afeta os entrevistados entre os
30 e os 49 anos de idade (4% de média), com nacionalidade cabo-verdiana, que habitam em espaço
urbano, tanto homens como mulheres (2% de variação), com o ensino primário (5%) e preparatório
(7%), empregados (2%) ou a trabalhar por conta própria (5%). Curiosamente, afeta mais os
operadores (9%) que os nativos da ilha (2%).
Curiosa pode parecer a percentagem de operadores que apontam para esta perda. Mas
recordamos que os indivíduos desta categoria que mencionaram este impacto negativo são nativos
da Boa Vista. Quem também alertou para este impacto negativo foram os trabalhos, já várias vezes
referenciados, de Ferreira (2005) e de Lopes (2008).
4. Perceção dos Impactos Negativos por Variável Sócio-demográfica
Olhando para os impactos negativos na relação com as faixas etárias, verificamos que a
253
VII – Impactos Percecionados em Análise
faixa etária mais nova, dos 20 aos 29 anos de idade, ignora por completo três impactos, entre eles,
os dois menos mencionados, e, por outro lado, apresenta as percentagens internas mais elevadas
noutros tantos impactos. Entre os mais jovens, a oscilação é elevada entre os vários impactos, não
sendo possível encontrar algum tipo de tendência transversal, mesmo se olharmos os impactos de
cariz económico, ambiental ou social separadamente. Isto, com a exceção de que aparenta haver
uma gradual representatividade desta faixa à medida que avançamos dos impactos mais
mencionados para os menos mencionados.
Na faixa etária seguinte, 30-39 anos, verificamos que tem representatividade em todos os
impactos mencionados, sendo mesmo a única nesta situação. Em duas das três que lidera, são
impactos de cariz ambiental e, grosso modo, encontra-se na maioria dos casos entre as faixas com
percentagens internas mais elevadas por impacto negativo. Também tem representatividade
percentual elevada na maioria dos casos, a faixa etária dos 40 aos 49 anos de idade acaba por liderar
em quatro impactos negativos e a não estar representada em apenas um (nas alterações da atitude
dos locais face ao turismo).
Entrando na segunda metade das faixas etárias, recordamos como os entrevistados entre os
50 e os 59 anos de idade não mencionam sete dos dezanove impactos negativos; na verdade não
mencionam qualquer impacto de cariz ambiental e na maioria dos restantes apresenta das
percentagens internas mais baixas, não chegando a liderar em nenhum dos casos.
Na penúltima faixa etária a analisar, dos 60 aos 69 anos de idade, encontramos os maiores
contrastes percentuais de todas as faixas. Isto porque, na maioria dos impactos, ora lidera as
percentagens internas, ora não faz qualquer menção, é dizer, em sete impactos negativo lidera e
noutros cinco, não faz qualquer referência. Ainda entre as que lidera, há que recordar as
elevadíssimas percentagens face aos restantes em cinco dos impactos, nomeadamente, na divisão
desigual dos benefícios entre a comunidade local, aumento da corrupção, atitude face ao turismo,
destruição da natureza, e alterações ao consumo. Estas oscilações cobrem todo o tipo de impactos
negativos, dos económicos, aos sociais e até ambientais.
Finalmente, entre os entrevistados mais velhos, 70 ou mais anos, verificamos que ignoram a
maioria dos impactos negativos mencionados, já que treze dos dezanove impactos não mereceram
qualquer referência por parte destes. Entre os que mencionam, apenas no caso das alterações à
moralidade lideram, com particular destaque, refira-se. Adicionalmente encontramos uma tendência
desta faixa etária em mencionar impactos de cariz social, já que apenas um dos cinco mencionados254
VII – Impactos Percecionados em Análise
é de cariz económico (aumento dos preços) e nenhum é de cariz ambiental.
Esta análise revelou que foram as faixas etárias intermédias, 40-49 e 50-59 anos de idade,
quem mais impactos mencionaram e maiores percentagens internas apresentaram na maioria dos
impactos negativos identificados, assim como são as faixas etárias mais velhas, 60-69 e 70 ou mais
anos de idade, as que menos representatividade têm e menos impactos são capazes de identificar.
Em termos de género, existe uma clara tendência para o género masculino apresentar
percentagens internas superiores ao feminino, já que em treze dos dezanove impactos negativos
apresenta valores mais elevados, sendo que em sete destes se destaca em cinco ou mais por cento
face ao feminino que acaba por ignorar dois impactos, perda da língua local e dependência face ao
255
Aumento da Criminalidade
Divisão Desigual dos Benefícios
Crescimento Descontrolado
Aumento dos Preços
Alterações à Moralidade
Exploração Laboral
Discriminação aos Migrantes
Especulação Imobiliária
Ausência de Infraestruturas
Perda da Autenticidade
Aumento da Corrupção
Atitude dos Locais face Turismo
Dependência face ao Turismo
Aumento da Poluição
Perda de Direitos dos Residentes
Destruição da Natureza
Alteração Padrões Consumo
Perda da Língua Local
Abandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Impactos Negativos Percecionados por Faixa Etária
20-29
30-39
40-49
50-59
60-69
70
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.9: Impactos Negativos Percecionados por Faixa Etária
VII – Impactos Percecionados em Análise
turismo. O género feminino lidera, então, em apenas seis impactos negativos, no entanto, em cinco
destes com destaque, o que revela que nas que lidera, fá-lo com diferença significativa.
Uma análise transversal aos impactos negativos cruzada com a nacionalidade apresenta
dados curiosos, pois em nenhum dos impactos os entrevistados de nacionalidade estrangeira lideram
face aos de nacionalidade cabo-verdiana, no que se refere às percentagens internas.
Esta diferença agrava-se se nos recordarmos que em quatro casos dos cinco menos
mencionados, os estrangeiros não fazem qualquer menção. Estes dados parecem indicar que os
entrevistados de nacionalidade estrangeira são menos capazes de identificar impactos negativos, e
mesmo quando o fazem, não lhe atribuem uma importância tão grande quanto os de nacionalidade
caboverdiana.
256
Aumento da CriminalidadeDivisão Desigual dos Benefícios
Crescimento DescontroladoAumento dos Preços
Alterações à MoralidadeExploração Laboral
Discriminação aos MigrantesEspeculação Imobiliária
Ausência de InfraestruturasPerda da AutenticidadeAumento da Corrupção
Atitude dos Locais face TurismoDependência face ao Turismo
Aumento da PoluiçãoPerda de Direitos dos Residentes
Destruição da NaturezaAlteração Padrões Consumo
Perda da Língua LocalAbandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70
Impactos Negativos Percecionados por Género
Feminino
Masculino
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.10: Impactos Negativos Percecionados por Género
VII – Impactos Percecionados em Análise
Aumento da CriminalidadeDivisão Desigual dos Benefícios
Crescimento DescontroladoAumento dos Preços
Alterações à MoralidadeExploração Laboral
Discriminação aos MigrantesEspeculação Imobiliária
Ausência de InfraestruturasPerda da AutenticidadeAumento da Corrupção
Atitude dos Locais face TurismoDependência face ao Turismo
Aumento da PoluiçãoPerda de Direitos dos Residentes
Destruição da NaturezaAlteração Padrões Consumo
Perda da Língua LocalAbandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Impactos Negativos Percecionados por Nacionalidade
Caboverdianos
Estrangeiros
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.11: Impactos Negativos Percecionados por Nacionalidade
A área de residência também revelou que os entrevistados que residiam em meio rural
apenas ultrapassaram os de meio urbano em quatro impactos, alterações à moralidade, perda da
autenticidade, dependência face ao turismo e aumento da poluição, sendo que, no caso da questão
da autenticidade, a diferença é substancial face ao meio urbano. Por outro lado, não foram capazes
de identificar os dois impactos menos mencionados.
Se consideramos que em apenas dois impactos, exploração laboral e alterações ao consumo,
se verificou um empate, isto é, uma igualdade na preocupação com estes impactos negativos,
confirmamos o domínio avassalados dos entrevistados que residem em meio urbano. Domínio, tanto
na capacidade de identificar impactos negativos, como neles apresentar maior incidência. Em onze
dos dezanove, lideram com destaque e, noutros dois, lideram por menos de 5% do que os de meio
rural.
257
VII – Impactos Percecionados em Análise
Aumento da CriminalidadeDivisão Desigual dos Benefícios
Crescimento DescontroladoAumento dos Preços
Alterações à MoralidadeExploração Laboral
Discriminação aos MigrantesEspeculação Imobiliária
Ausência de InfraestruturasPerda da AutenticidadeAumento da Corrupção
Atitude dos Locais face TurismoDependência face ao Turismo
Aumento da PoluiçãoPerda de Direitos dos Residentes
Destruição da NaturezaAlteração Padrões Consumo
Perda da Língua LocalAbandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Impactos Negativos Percecionados por Área de Residência
Urbano
Rural
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.12: Impactos Negativos Percecionados por Área de Residência
O nível de escolaridade também nos revela dados interessantes. Entre os entrevistados com
o ensino primário (ou inferior), apenas a perda da língua local e a especulação imobiliária não
foram mencionadas; por outro lado, as alterações à moralidade e a perda da autenticidade foram as
que acabaram por liderar. Na maioria dos restantes impactos apresentaram as percentagens internas
baixas. No caso do ensino preparatório, só a perda da língua local não foi mencionada e noutros sete
impactos atingem a liderança, ainda que, em três destes seja partilhada com outros níveis de
escolaridade.
Também os entrevistados com o ensino secundário lideraram em sete impactos, sendo que
desta vez, apenas num dos casos é uma liderança partilhada. Estes ignoram as alterações à atitude
face ao turismo e outros três impactos negativos (estes de cariz económico). Por outro lado
destacam-se nos tais impactos que lideram, em particular na atenção dada ao aumento da corrupção,
crescimento descontrolado e divisão desigual dos benefícios entre a comunidade local.
Já os licenciados também ignoram o abandono das práticas tradicionais e lideram mais uma
vez em sete impactos negativos sendo que em três casos numa circunstância de partilha. Este
subgrupo é o mais consistente já que na maioria dos impactos apresenta percentagens elevadas. Isto
em conjunto com os resultados dos entrevistados com o ensino secundário, confirmam a tendência
258
VII – Impactos Percecionados em Análise
de que quanto maior for o nível escolar maior atenção é atribuída aos impactos. As únicas exceções
claras residem nos impactos negativos “alterações à moralidade” e a “perda de autenticidade”, que
contrariam essa tendência.
Aumento da Criminalidade
Divisão Desigual dos Benefícios
Crescimento Descontrolado
Aumento dos PreçosAlterações à Moralidade
Exploração Laboral
Discriminação aos Migrantes
Especulação ImobiliáriaAusência de Infraestruturas
Perda da Autenticidade
Aumento da CorrupçãoAtitude dos Locais face Turismo
Dependência face ao Turismo
Aumento da Poluição
Perda de Direitos dos ResidentesDestruição da Natureza
Alteração Padrões ConsumoPerda da Língua Local
Abandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Impactos Negativos Percecionados por Escolaridade
Primário
Preparatório
Secundário
Superior
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.13: Impactos Negativos Percecionados por Escolaridade
Quanto à situação profissional, os entrevistados empregados foram os que mais impactos
negativos mencionaram, já que estão representados em todos, sendo que em cinco destes lideram,
quase todos os impactos negativos de cariz social. Por outro lado, os desempregados ignoram seis
impactos negativos e lideram outros quatro, entre eles destacamos a exploração laboral, onde reúne
maior percentagem que os restantes subgrupos juntos.
Os trabalhadores por conta própria não referem apenas as alterações ao consumo e são os
que lideram em mais casos, sete em dezanove. Contrariamente, os reformados apelas lideram nos
casos do aumento da criminalidade e aumento da corrupção. Estes são os que mais impactos
negativos ignoram, onze dos dezanove! Estes dados indicam-nos claramente que são os
entrevistados profissionalmente ativos os que são capazes de apontar mais impactos negativos e259
VII – Impactos Percecionados em Análise
neles apresentar maiores percentagens internas.
Finalizamos com a análise por grupo de residentes, onde verificamos que os residentes
nativos da Boa Vista foram os que mais impactos mencionaram, liderando em cinco dos impactos
negativos. Contrariamente, os residentes nativos de outras ilhas de Cabo Verde são o subgrupo que
menos impactos lidera, apenas o aumento da descriminação face aos migrantes e alterações da
atitude face ao turismo. Na verdade, este é o subgrupo que menos impactos foi capaz de identificar
uma vez que ignorou seis.
Já os estrangeiros não mencionaram quatro impactos, especificamente quatro dos cinco
menos mencionados da tabela. Estes residentes estrangeiros lideraram em cinco impactos negativos.
O subgrupo que mais impactos dominou foram os operadores, com sete em dezanove, e apenas não
fez menção a três impactos, todos de cariz social. Estes dados são reveladores de que, se por um
260
Aumento da Criminalidade
Divisão Desigual dos Benefícios
Crescimento Descontrolado
Aumento dos Preços
Alterações à Moralidade
Exploração Laboral
Discriminação aos Migrantes
Especulação Imobiliária
Ausência de Infraestruturas
Perda da Autenticidade
Aumento da Corrupção
Atitude dos Locais face Turismo
Dependência face ao Turismo
Aumento da Poluição
Perda de Direitos dos Residentes
Destruição da Natureza
Alteração Padrões Consumo
Perda da Língua Local
Abandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Impactos Negativos Percecionados por Situação Profissional
Empregados
Desempregados
TCP
Reformados
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.14: Impactos Negativos Percecionados por Situação Profissional
VII – Impactos Percecionados em Análise
lado, os nativos são os que mais impactos negativos detetam, os migrantes caboverdianos são, de
longe, os que menos o fazem e menos representatividade têm. Revela também que os operadores
são os que maior representatividade têm nos impactos que são capazes de identificar.
261
Aumento da Criminalidade
Divisão Desigual dos Benefícios
Crescimento Descontrolado
Aumento dos Preços
Alterações à Moralidade
Exploração Laboral
Discriminação aos Migrantes
Especulação Imobiliária
Ausência de Infraestruturas
Perda da Autenticidade
Aumento da Corrupção
Atitude dos Locais face Turismo
Dependência face ao Turismo
Aumento da Poluição
Perda de Direitos dos Residentes
Destruição da Natureza
Alteração Padrões Consumo
Perda da Língua Local
Abandono das Práticas Tradicionais
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Impactos Negativos Percecionados por Grupo de Residentes
RNB
RNOI
REB
Operadoress
Percentagem Interna
Imp
act
os
Ne
ga
tivo
s
Figura 7.15: Impactos Negativos Percecionados por Grupo de Residentes
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
VIII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Dado o ênfase das perceções em torno de impactos negativos associados às infraestruturas
básicas, à gestão da atividade turística e a situações de precariedade e insegurança social,
consideramos que este conjunto de sinais transporta uma tendência clara de responsabilização da
situação atual, como um profundo declive entre as projeções e objetivos dos programadores do
turismo na Boa Vista e a realidade. Por programadores entendemos não apenas as instituições
públicas, que planearam e aplicaram a atividade, mas também as instituições privadas que
investiram e operam neste espaço.
Esta responsabilização suscita, desde logo, que nos interroguemos se estes programadores
subestimaram, de forma grosseira, os efeitos, muito deles conhecidos e comuns noutros destinos, e
até alvo de alerta por entidades como a UNWTO. Sobretudo tendo em conta a alegada meta de um
turismo sustentável apontada pelo Governo desde a abertura ao mercado internacional.
Embora não tivesse feito parte do guião original de entrevista, foram inúmeros os casos em
que os entrevistados apontaram indireta e diretamente esta subestimação dos impactos negativos
anteriormente analisados. A análise cuidada das entrevistas revelou mesmo que 40% dos casos, é
dizer, trinta e oito dos entrevistados, fizeram menção a esta subestimação e apontaram-na como
principal causador da maioria dos desequilíbrios sócio-económico-ambientais percecionados.
Se realizarmos uma análise cruzada destes com as características sócio-demográficas,
podemos verificar que, em média, 36% de todas as faixas etárias o mencionaram. O valor mais
elevado foi para os entrevistados entre os 60 e os 69 anos de idade, com 50%, logo seguidos dos
45% e 40% para as faixas 20-29 e 30-39 respetivamente, e a mais baixa para aqueles com 70 ou
mais anos de idade, com 20%, bem abaixo dos 29% e 35% restantes, para 50-59 e 40-49 anos,
respetivamente. Estas percentagens elevadas confirmaram-se tanto em termos de género (masculino
37% e feminino 41%), de nacionalidade (caboverdianos 39%, estrangeiros 43%), e, ainda com
valores elevados e aproximados, como no caso do espaço de residência (urbano 39% e rural 41%).
Por outro lado, o nível de escolaridade demonstrou que os entrevistados com o ensino
superior são os que mais referiram a subestimação (50%), seguidos pelo ensino preparatório (40%),
cuja percentagem é quase o dobro, tanto do ensino secundário (25%) como primário (21%).
Esta perceção está presente em 55% das entrevistas a trabalhadores por conta própria e
262
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
apenas em 17% dos reformados. Os empregados (37%) e desempregados (33%) apresentam valores
a rondar um terço das entrevistas de cada categoria. Finalmente, metade dos estrangeiros residentes
considera que houve uma subestimação dos impactos negativos do turismo na Boa Vista, e um
pouco menos (42%) dos nativos da ilha também, bem mais do que os operadores (27%) e residentes
de outras ilhas (25%).
Como afirmámos, a questão da subestimação não faz parte nem dos impactos negativos nem
das perceções do futuro, ou mesmo das prioridades na correção do mesmo. No entanto, demonstra
com solidez que os entrevistados responsabilizam as instituições e organismos responsáveis pelo
planeamento e implementação do turismo, e a organização da sociedade boavistense, face ao
fracasso em corresponder às expetativas.
Essas expetativas não correspondidas levam a uma perceção do futuro construída com base
na experiência do passado recente vivenciado, nos impactos positivos e negativos, e, nessa medida,
acabam por ajudar a explicar os dados referentes à perceção do futuro que apresentamos de seguida.
1. A Boa Vista das Próximas Décadas - Perceção do Futuro
As opiniões e expectativas dos boavistenses quanto ao turismo, são construídas com base em
perceções como as que até aqui analisámos, e assim, quisemos saber como pensavam que seria a
Boa Vista num futuro próximo, entre 15 a 30 anos, tendo em conta o rumo e a situação atual da ilha
e sua relação com o turismo massificado. Uma alternativa para a questão direta do nível de
satisfação face ao turismo.
Como podemos ver na tabela abaixo, o futuro é sobretudo incerto, para trinta e um dos
entrevistados, e negativo para vinte e seis. Apenas vinte e um consideram que o futuro será positivo,
e seis que será idêntico ao atual. Nesta questão, doze entrevistados optaram por não responder ou
mostraram-se incapazes de apresentar uma resposta clara.
263
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Incerto
Todos esperam o melhor mas... não sei. Na minha opinião aqui o futuro está como a tartaruga, devagar,devagar! E muitas coisas em termos de turismo desenvolve mas a ilha mão está a desenvolver! A ilha nãoestá a acompanhar o turismo, está sempre atrás. URHRNB37
Como é que eu imagino a Boa Vista daqui a 20 anos!? Difícil... se continuar assim, não sei se a BoaVista... com a crise, daqui a vinte anos acho que não vamos ter Boa Vista, mas se isso melhorar daqui avinte anos tudo vai mudar! URHRNB31b
Sinceramente é a minha preocupação, não sei se vai ser bom, se mau ou se péssimo! Mas é a minhapreocupação! O que será da Boa Vista daqui a dez ou cinco anos!? URMRNB28
Agora imaginar a Boa Vista não é tão fácil...há três anos atrás toda a gente estava a chorar aqui no Sal,não havia turistas! (...) Depois começou a guerra no Egito e encheu Cabo Verde! (...) Neste momentoainda estamos bem porque ainda não se estabilizou o Egito. (...) Arrancar o turismo foi longo e difícil masdestruir todo o trabalho feito é rapidíssimo. (...) Turismo aqui é frágil, não é sustentável. Muito cansativomanter vivo. É só diminuir o fluxo turístico e pronto, os hotéis deixam de ter capacidade de pagar as suasdespesas. URHREB51
Não sei, tenho medo daqui a vinte anos, não há como prever. Eu espero que ainda existe a natureza quetemos, e que o façam com respeito! (...) Mais limpo, sem toda esta terra... que as construções estejamterminadas que não pareçam Beirut! URFREB38
Quase um terço dos entrevistados consideraram o futuro da Boa Vista uma incerteza (32%).
Na verdade, mais de metade dos entrevistados (57%) entre os 50 e os 59 anos de idade apontaram
para essa incerteza, bem acima dos restantes, mesmo considerando os dados dos que tinham 70 ou
mais anos (40%) e os dos entre 30 e 39 (39%). Desta forma deteta-se uma subtil tendência para
considerar o futuro mais incerto à medida que a faixa etária é maior, isto, apesar dos valores
daqueles entre os 60 e 69 anos de idade (17%). Resta então referir os 20% da faixa etária mais
jovem e os 25% da restante (40-49 anos de idade).
A incerteza é maior entre o género feminino (37%) do que no masculino (29%), assim como
entre os caboverdianos (35%), em comparação com os estrangeiros (24%). Em contraste, os valores
são muito aproximados entre os que habitam e meio urbano (33%) e meio rural (30%).
Também aproximadas são as percentagens dos entrevistados com o ensino preparatório264
Quadro 7.1: Perceção do Futuro dos Residentes
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
(27%) ao superior (30%); no entanto, a elevada percentagem entre os entrevistados com o ensino
primário (47%), revela que a incerteza é condicionada pelo nível de ensino, neste caso, quanto
menor, maior é a incerteza quanto ao futuro.
Cerca de metade dos reformados também estão incertos quanto ao futuro, assim como 36%
dos trabalhadores por conta própria, e 31% dos empregados, bem mais do que os desempregados
20% (e doméstica 0%).
Com uma percentagem quase residual, apenas 9% dos operadores está incerto, ao passo que
os nativos das outras ilhas são os que maior incerteza têm (42%), logo seguidos pelos nativos da
Boa Vista (36%) e estrangeiros (29%).
Negativo
Vinte e seis entrevistados consideraram que a Boa Vista terá um futuro negativo:
Mas eu temo um pouco o futuro da Boa Vista. Não sou um pessimista, mas eu temo. URHRNB48
Eu estou pessimista que até 2026 não vamos ter melhorias! URHRNB36
No futuro vai para o fundo! URHRNB80
Eu, sinceramente não tenho uma visão muito boa da Boa Vista. Eu falo que nós não desenvolvemos, nósevoluímos em algumas coisas. Boa Vista não se desenvolveu! JGHRNB41
Se continuarmos nesta ignorância tudo vai ficar maior mas as coisas positivas mais positivas e asnegativas mais negativas ainda. Então, eu imagino tudo maior! Se há cinco hotéis grandes eu imaginoquinze! (…) As pessoas vão triplicar, a delinquência vai aumentar e espero que as questões da água e luzestejam resolvidas! Estou um pouco dececionado, foi muito rápido, as mudanças. Todos os sítios que nãoestão preparados para isso vão ter problemas graves! Estou preocupado com isso! URHREB35
Se mantiver assim os investidores vão tomar conta da Boa Vista! Já querem mandar! O RIU com todoscarros que tem, motos, já tem quase o monopólio. Já têm 60%! Agora querem entrar com agências... (...)É assim, se for continuar assim vamos estar fodido! (...) Eles não se preocupam com os locais!URHRNB33
Aqui na, em Cabeça de Tarafes não sei mas...(...) Poderá também estar em vias de extinção! Eu gostariadaqui a vinte anos tivesse sítio onde morar na minha ilha. CTHRNB25
Temo que possamos estar perdidos em trinta anos! URFREB26
O futuro não sei... um futuro feito de mais empresas estrangeiras! (...) Se continuarmos assim vamosentregar a Boa Vista a empresas estrangeiras! URMREB60
Daqui a vinte anos parece que a Boa Vista será coberta a 90% desses hotéis. Projectos de turismo e etc,etc.. CTHRNB45
Imagino uma Boa Vista... que muito sinceramente não me vou orgulhar em ver. Uma Boa Vista muitodesorganizada, com grandes problemas sociais, com um turismo descontrolado e irresponsável! E acho
265
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
que o boavistense em si daqui a quinze anos ainda vai estar à margem daquilo que são os benefícios queesta ilha tem a dar! URHRNB28
Em muitos casos os entrevistados fazem um paralelo direto com a ilha do Sal e a sua
experiência com o turismo:
Acho que segue a mesma linha do Sal, o talvez pior! (...) Daqui a 20 anos vejo um dos edifício do turismodeserto no meio da areia, talvez a ser invadido pela areia, abandonado! E a população pior ainda do queestava antes do desenvolvimento do turismo! FFMRNB27
Ah está no caminho da ilha do Sal! Acredito que desta forma não vamos aventurar muito no turismo aquina Boa Vista, porque vai sofrer fracasso de certeza! URHRNOI32
Não sei! Acho que daqui a 20 anos já será uma ilha bastante desgastada! Aquilo de bom que temos aquiestá ser mais explorado pelos estrangeiros. Vai ser uma ilha tipo S. Maria! (...) Com tempo vai ser umailha estrangeira dentro de Cabo Verde, vai ser assim, e um pouco desgastada! URHRNOI30
Há muitas discussões… se é bom, se é mau, para onde a ilha caminha… as pessoas estão muito reticentesem relação ao futuro da Boa Vista. Acham que se vai transformar num "Sal 2" muito mais rapidamente,porque tem uma área de extensão de praia muitíssimo maior. URMREB34
Ou até com outros locais nacionais e internacionais:
Daqui a quinze anos?! Olha, vai ser como as Canárias! Espero que não! Muito turista! Espero que nãoesteja assim mas por mais que se lute, e os nacionais reclamem nas suas lutas de café, não há volta a dar!(...) Os locais vão acabar por ser uma atração turística porque vão ser tão poucos! URHRNB36
Daqui a vinte anos sinceramente, imagino a Boa Vista quase como a cidade da Praia onde as pessoas vãoter medo de sair à rua, com esse desenvolvimento. É óbvio que a Boa Vista vai desenvolver e de quemaneira. Mas pronto é óbvio que são fatores que acompanham o desenvolvimento. Estou a ver uma BoaVista completamente diferente, nada a ver com a Boa Vista à dez ou quinze anos atrás. (...) Vamos vivercomo na Europa, na França, onde as pessoas nem têm tempo para dizer bom dia! URHRNB29b
Qual o perfil dos entrevistados que perspetivaram um futuro negativo? Os dados apontam
para uma ligeira tendência das faixas etárias mais velhas em considerarem o futuro dessa forma, em
parte, devido ao facto de 50% dos entrevistados com 70 ou mais anos de idade assim o idealizarem,
e mesmo considerando que ninguém entre os 60 e os 69 anos o subscreve. Entre as faixas mais
jovens, os valores rondam os 30%, nomeadamente 35% entre na faixa etária 20-29, 24% na 30-39 e
ainda 30% na faixa etária 40-49 anos de idade.
Se a incerteza era liderada pelo género feminino, a negatividade é liderada pelo masculino
(29%), que apresenta valores 5% superiores ao feminino; os residentes em espaço rural lideram
com 30%, um pouco acima dos de meio urbano (26%). Em termos da variável nacionalidade,
podemos verificar que, por larga vantagem, os caboverdianos (29%) são mais negativos que os
estrangeiros (19%).
Verificamos novamente, também, que quanto maior a escolaridade, maior a negatividade
266
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
quanto ao futuro, uma vez que os valores vão dos 16% do ensino primário aos 28% do ensino
superior, passando pelos 27% do ensino preparatório, e pelos destacados 38% dos entrevistados
com o ensino secundário.
Sem surpresa, os desempregados (40%) são os que mais apontam para um futuro negativo,
ainda que sejam seguidos com valores próximos tanto por empregados como por trabalhadores por
conta própria, ambos com 27%, e já com alguma distância pelos reformados (17%).
Mais uma vez, os operadores destacam-se como os que menos perspetivam um futuro
negativo (9%), e os restantes grupos apresentam valores relativamente aproximados, já que variam
entre os 31% dos nativos da ilha e os 25% dos oriundos de outras ilhas, passando pelos 29% dos
estrangeiros.
Positivo
Na terceira posição da tabela das respostas quanto ao futuro da Boa Vista, vinte e uma
pessoas consideraram que a Boa Vista será um lugar melhor, e assim atribuíram resposta positiva à
questão colocada. Com menos cinco respostas que o futuro negativo e dez que o incerto, o futuro
positivo reúne testemunhos que contradizem o homólogo negativo:
Será melhor! Porque tem projetos de fixar preços, colocar salário mínimo que aqui não existe… por isso éque os que chegam aqui pagam o que querem. (…) Penso que daqui a vinte anos serão tudo problemasresolvidos. A ilha vai estar muito mais melhor! URHRNB31
A continuar assim as oportunidades de negócios, os jovens vão tentando realizar sonhos... construindosuas casas e essas coisas... FFMRNB38
Mais ordenada, mais vias, com mais... equipamentos sociais, com estradas de melhor qualidade. Uma BoaVista melhor onde todos os que escolherem a Boa Vista para conhecer e visitar possam sentir-se bem!URMRNB46
Positivo, primeiro porque espero que agora que há conhecimento de toda esta situação, sejam tomadasdecisões para corrigido. Ainda há a possibilidade de o fazer! (...) o quanto antes! OPFREB41
Mas penso que a Boa Vista está no rumo certo, mas as pessoas precisam de trabalhar com mais afinco emais responsabilidade! URHRNOI31
Tem de melhorar. Eu espero que vá melhorar. Em tudo, era bom, em tudo. JGHRNB58
Está perto da Europa, o clima é agradável durante todo o ano, não me parece que tenhamos umadeterioração da situação económica. Eu acho que vamos melhorar, se perspetivarmos os investimentosque estão planeados, eu acho que vamos melhorar! URHRNB31
Contradição essa que curiosamente chega aos paralelismos anteriormente mencionados com
outros destino próximos, sobretudo as Canárias:
267
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Mais construido, mais desenvolvido. Sei que muita gente vai dizer "oh, isto vai ser como as Canáriasdaqui a 20 anos!" Eu acho que não! Muito mais suave! Não há progresso em outras coisas, agora com acrise, menos ainda... RUHOP39
Imagino com esperança num turismo sustentável, com infraestrutura e com um turismo sustentável, comoutras cadeias turísticas interessadas no país. Com mais desenvolvimento, um pouco como as ilhasCanárias, mas de forma mais controlada! URMOP40
Eu penso que vai ser um pouco como a estação balnear das Canárias! Mais moderno, é preciso um poucomais de modernismo! URMOP33b
Numa inversão da análise descritiva relativa à faixa etária dos que apontaram o futuro como
negativo, são as faixas mais novas que, neste caso, mais antecipam um futuro favorável. Essa
diferença é acentuada pelo nulo dos que têm entre 60 e 69 anos de idade e pelos 14% daqueles entre
os 50 e 59 anos. Na verdade, as restantes faixas vão dos 20% dos mais velhos aos 25% da faixa
mais nova e dos que têm entre 40 e 49 anos, passando pelos 24% da faixa dos 30-39 anos de idade.
O género feminino volta a destacar-se (24%) face ao masculino (21%), e, pela primeira vez
nesta questão, os estrangeiros (29%) apresentam dados superiores ao nacionais (20%). Em termos
de espaço de residência, os residentes em meio rural (26%) veem um futuro mais positivo que os de
meio urbano (20%).
Por uma ténue diferença, os entrevistados tendem a considerar o futuro mais positivo à
medida que o seu nível escolar é maior. Ténue porque se apenas 16% dos entrevistados com o
ensino primário consideram o futuro positivo, os com o ensino preparatório (33%) lideram essa
análise cruzada, bem acima dos 25% do ensino secundário e 20% do superior.
São também os empregados (24%) quem um melhor futuro adivinha, seguidos de perto
pelos trabalhadores por conta própria (18%) e desempregados (20%). Curiosamente nenhum dos
reformados considerou o futuro positivo e a doméstica o consideraram.
Desta feita, são os operadores (45%) quem apresenta valores mais altos, seguidos, a alguma
distância, pelos nativos de outras ilhas (25%), e pelos nativos da Boa Vista (19%) a uma distância
ainda maior. Por fim, os que encontram um futuro menos positivo são os estrangeiros (14%).
Idêntico
O futuro menos mencionado é o da estagnação, com apenas seis menções. Estes
entrevistados perspetivam um futuro onde nada de significativamente positivo ou negativo vai
ocorrer na Boa Vista. Em certa medida será justo considerarmos que esta previsão de estagnação é
268
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
um sinal negativo dados os impactos apresentados pelos entrevistados; ainda assim, tratamos esta
resposta como as anteriores, destacando-a e analisando-a:
Vai ser um pequeno gigante adormecido, estagnamento total! URHRNB48
Igual! (risos) Tem mais lojas chinesas! (…) Nada vai para a frente. Os lotes vão continuar vazios e ascasas por acabar… URMRNB27
Não, não... Deus me livre... vai estagnar... eu tenho quatro anos aqui e não vejo nada... URFOP29
O perfil dos entrevistados que consideram o futuro idêntico parece circunscrito à faixa etária
mais velha (20%) e às faixas mais novas, nomeadamente, 20-29 (10%), 30-39 e 40-49 (5%), dado
que as restantes não têm qualquer representação. Apesar do mesmo número de homens e mulheres
considerarem o futuro desta forma, a percentagem interna por género revela que o género feminino
(8%) é o mais representativo, dado os valores do masculino (5%).
A nacionalidade não parece ser condicionante nesta resposta, pois os caboverdianos (7%) e
estrangeiros (5%) somaram valores quase idênticos, ao passo que a residência revela que os de meio
urbano (7%) têm maior propensão para esta perspetiva do que os de meio rural (4%).
A estagnação está mais presente entre os entrevistados com menor nível de escolaridade, já
que os valores vão dos 11% dos entrevistados com o ensino primário aos 4% do ensino superior,
passando pelos 7% e 6% dos ensinos preparatório e secundário, respetivamente.
Os desempregados (20%) e os reformados (17%) somam maiores percentagens que as
restantes situações profissionais, já que apenas 6% dos empregados e 5% dos trabalhadores por
conta própria partilham esta visão de futuro. O futuro idêntico está ainda presente nas respostas,
sobretudo, de operadores (18%), alguns estrangeiros (7%) e nativos da ilha (5%), por outro lado,
não tem representação entre os oriundos de outras ilhas.
2. Perceção do Futuro por Variável Sócio-demográfica
Podemos verificar, na figura seguinte, que a faixa etária mais jovem variou as suas respostas
entre um futuro positivo, logo seguido de negativo e de idêntico, ao passo que a faixa seguinte varia
entre o positivo, logo seguida de incerto e idêntico92. A faixa entre os 40 e os 49 anos apenas se
destacou no futuro positivo, com algum presença no futuro negativo ou idêntico.
Contrariamente, a faixa posterior, 50-59 anos, marcou sobretudo presença na incerteza e na
incapacidade de responder. A faixa etária 60-69 anos apresentou claramente uma postura negativa,
92 Novamente, todos os resultados encontram-se no CD-Rom em formato de Excel, no Anexo C.269
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
marcada também pela incapacidade ou opção de não responder e pelo nulo na opção positiva. Os
entrevistados com 70 ou mais anos de idade mostraram-se sempre capazes de responder, sendo que
a sua previsão de futuro era de manutenção do status quo e, depois, de incerteza, revelando-se um
dos grupos que menos negativo se mostrou.
A análise por Género mostra como o género feminino se mostrou particularmente incerto
quanto ao futuro, ao passo que os valores positivo e negativo foram idênticos, o que, a par da
liderança na opção “idêntico” revela uma clara tendência das entrevistadas em traçar um futuro
dúbio.
Por seu turno, o género masculino destacou-se na previsão do futuro quer negativo quer
incerto, assim como na incapacidade de antecipar o desfecho do atual cenário. Isto, somando ao
baixo valor na opção positivo, leva-nos a crer que os entrevistados entendem o futuro como
ligeiramente mais negativo que as entrevistadas.
270
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
10
20
30
40
50
60Perceção do Futuro por Faixa Etária
20-29
30-39
40-49
50-59
60-69
70
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.1: Perceção do Futuro por Faixa Etária
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
A previsão do futuro para estrangeiros mostrou-se relativamente aproximada nas três opções
mais destacadas, ligeiramente mais negativo que positivo, e, numa condição menos ligeira, também
entre os nacionais, a perceção foi sobretudo de incerteza e negatividade.
Por área de residência verificou-se que os habitantes em meio urbano apresentaram uma
postura que pende mais para uma previsão em queda, grande incerteza, e os entrevistados de meio
rural apresentaram-se tão incertos como negativos, mas ligeiramente mais positivos que a sua
271
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
5
10
15
20
25
30
35
40Perceção do Futuro por Género
Feminino
Masculino
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.2: Perceção do Futuro por Género
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
5
10
15
20
25
30
35
Perceção do Futuro por Nacionalidade
Caboverdianos
Estrangeiros
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.3: Perceção do Futuro por Nacionalidade
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
contraparte.
Os entrevistados com o nível de ensino primário mostraram percecionar um futuro muito
incerto, seguido, com distância, por respostas igualmente positivas e negativas. Já os de nível
preparatório demarcaram-se apenas como os mais positivos sem grande destaque em qualquer das
outras opções.
Contrariamente, foi entre os residentes com o ensino secundário que o futuro se mostrou
mais negativo, e posteriormente igualmente incerto e positivo. Por fim, os licenciados, marcaram
uma postura negativa e incerta bem mais do que positiva. Na verdade, foram o grupo que mais
mostrou hesitação em antecipar o futuro.
272
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
5
10
15
20
25
30
35Perceção do Futuro por Área de Residência
Urbano
Rural
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.4: Perceção do Futuro por Área de Residência
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
10
20
30
40
50Perceção do Futuro por Escolaridade
Primário
Preparatório
Secundário
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.5: Perceção do Futuro por Escolaridade
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Os residentes empregados mostraram-se divididos entre as várias hipóteses de futuro, apesar
de terem liderado na hipótese de um futuro positivo, assim como os trabalhadores por conta própria.
Os desempregados tiveram uma posição ligeiramente mais negativa, ao passo que os reformados
mostraram-se incapazes de perspetivar um futuro com clareza, destacando-se também por não
serem capazes de perspetivar o futuro como positivo.
No grupo de residentes, os nativos da Boa Vista demarcaram-se como os mais negativos e
um dos grupos mais incertos quanto ao futuro, onde menos de um quinto viu o futuro com bons
olhos. Entre os nacionais oriundos de outras ilhas a incerteza reina, algo reforçado pelo grande
número que viu o futuro igualmente como positivo e negativo.
Os estrangeiros residentes na ilha podem ter sido os que se revelaram mais incapazes de
responder e os que apresentaram valores positivos mais baixos, mas o destaque vai para a idêntica
previsão de um futuro incerto ou negativo, contrariando algumas ideias comuns de que tanto
operadores como estrangeiros seriam quem mais veria o futuro positivamente. Na verdade, foram
273
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
10
20
30
40
50
60 Perceção do Futuro por Situação ProfissionalEmpregados
Desempregados
TCP
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.6: Perceção do Futuro por Situação Profissional
Incerto Negativo Positivo Não Responde Idêntico0
10
20
30
40
50 Perceção do Futuro por Grupo de ResidentesRNB
RNOI
REB
Tipo de Futuro
Pe
rce
nta
ge
m In
tern
a
Figura 8.7: Perceção do Futuro por Grupo de Residentes
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
apenas os operadores que se destacaram profundamente no futuro positivo, logo seguido, a alguma
distância, pelas duas opções menos comuns.
Os estrangeiros residentes na ilha podem ter sido os que se revelaram mais incapazes de
responder e os que apresentaram valores positivos mais baixos, mas o destaque vai para a idêntica
previsão de um futuro incerto ou negativo; contrariando algumas ideias comuns de que tanto
operadores como estrangeiros seriam quem mais veria o futuro positivamente. Apenas os
operadores que se destacaram profundamente no futuro positivo.
3. Prioridades de Intervenção
Entramos agora na análise à lista de prioridades de intervenção de forma a corrigir o rumo
atual. Perguntou-se nas entrevistas quais os passos que os entrevistados dariam de forma a corrigir a
situação atual. De todas as prioridades declaradas, apenas três não são de cariz puramente político,
são antes de cariz privado ou público-privado (“Diversificação do Produto Turístico; Investimento
Privado”; e, “Envolvimento da Sociedade Civil”).
Podemos verificar no quadro abaixo que as principais prioridades mencionadas se
concentram na intervenção e investimento estatal e/ou camarário em infraestruturas básicas, logo
seguida pela necessidade de diversificar o produto turístico, e necessidade de maior investimento
em formação e educação profissional/académica. Na verdade todas as prioridades definidas se
relacionam com os impactos negativos percecionados ou deles derivam. Vejamos agora quais as
características ou o perfil dos indivíduos que as mencionaram.
274
Quadro 8.1: Prioridades de Intervenção na Boa VistaPrioridades de Intervenção na Boa Vista Percentagem
Intervenção e Investimento Estatal em Infraestruturas 53 20Intervenção e Investimento Municipal em Infraestruturas 40 15Diversificação do Produto Turístico 34 13Formação, Educação e Capacitação 28 11Investimento Privado 26 10Cooperação Política 22 8Policiamento e Fiscalização 18 7Financiamento e Apoio ao Investimento 16 6Envolvimento da Sociedade Civil 12 5Regulamentação e Legislação 12 5
Nº de Menções
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Intervenção e Investimento Estatal em Infraestruturas
Para mim, essa é a parte mais preocupante que o Governo ainda teimosamente não quer ver que tem quedar atenção à ilha, porque fora da capital é a ilha que mais contribui em percentagem para o PIB nestemomento! Mas não temos infraestruturas básicas em condições. URHRNB36
Em virtude das lacunas nos serviços básicos da Boa Vista, é sem surpresa que esta
prioridade se apresenta no primeiro lugar, com cinquenta e três menções, ainda que, como no caso
da próxima prioridade, existem confusões nos discursos dos entrevistados quanto à
responsabilização da carência ou inexistência de algumas infraestruturas, por outras palavras, é por
vezes confundida a responsabilidade da Câmara Municipal com a do Governo e vice-versa. Dessa
forma, algumas das citações em ambas as prioridades mencionadas podem refletir essa confusão.
Alguns dos exemplos de infraestruturas de que o Governo/Estado é responsável são:
hospitais, represas de água, algumas vias, aeroporto, postos de polícia e exército, abastecimento de
água e eletricidade, etc.; pese embora que, no caso deste abastecimento, a empresa estatal ter sido
substituída por uma empresa privada de capital estrangeiro.
De entre todas estas infraestruturas, o hospital é um dos mais mencionados:
Temos um centro de saúde feito recentemente mas que não está em condições de acompanhar odesenvolvimento turístico. Não temos a educação. Não temos investimentos. As escolas não tão emcondições, bem apetrechadas. URHRNB36
Para mim era um hospital! Uma ilha que é turística tem de ter hospital! (...) Bom hospital, melhoria dasestradas, YA... URHRNB33
Sem dúvida apesar de ter um hospital novo, infelizmente não e assim organizado para dar a assistêncianecessária! OPFREB41
(...) se falarmos de condição dos hotéis, das pensões isso sim, mas falando dos hospitais é umanegligência. Porque pronto, a ilha se desenvolver em dois passos, não temos uma ilha nessa vertenteturística, porque pronto, devíamos ter um hospital com melhores condições, com mais doutores, emáquinas justas para enfrentar esse trabalho. Porque trabalhar em turismo não é só fazer entrar turistasque pagam 20 ou 50€ e depois não tem as condições necessárias que tem o turismo. URMRNB46
A Boa Vista é só hotéis, só hotéis! Da outra parte, de infraestruturas quase nada. Principalmente ohospital, acho que é o principal, uma pessoa com saúde faz tudo, e sem saúde nada! URHOP29b
Este turismo tráz aproximadamente vinte e quatro mil turistas por mês, más e há falta de lógica, nãotemos hospital, de levar um ferido ou acidentado de noite! Percebes!? URMREB60
Primeiro, tratar da saúde da gente. Um hospital com equipamentos... (...). Um dia morreu um alemão enão havia câmara frigorífica (...). Cada vez que há um problema falta gente no centro e não há meios. (...)Eu penso que quando se faz uma ilha turística a saúde é um mínimo para o turista e para a gente que moraaqui! URMOP47
Não há muitas infraestruturas e falta por exemplo um hospital, existe um hospital que é muito bonito noexterior mas por dentro não tem nada. (...) É um problema, acho que foi imposto construir um hospital
275
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
porque quando há um aeroporto internacional tem de haver um hospital. O problema dos cuidados[médicos] é grave! (...) Para além disso praticamente não há ligações entre as ilhas. (...) Só há ligações deavião que para nós já são caras. Pessoas que não têm meios económicos não conseguem deslocar-se. Debarco é mais barato, são poucos e não sabemos quando eles chegam nem quando partem. URHREB68
Outras infraestruturas estão relacionadas com serviços básicos de primeira necessidade:
habitação e segurança:
Tem uma grande potencialidade para o turismo. E como disse, se o Governo souber aproveitar, souberemfazer os investimentos que são precisos eu acho que temos uma grande chance de vir a tirar grandeproveito e a ilha desenvolver ainda mais. Mas se não for feito obviamente que as coisas vão se agravar. Apopulação está a aumentar e é preciso dar resposta ao nível da habitação, da segurança, de emprego queainda né!? (...) As coisas podem correr mal! URMRNB36
Primeiro uma estrada aqui! (...) Não fazem manutenção e não está em condições! No tempo da chuvatemos muitos problemas por causa das estradas! (...) Outra coisa que devia ser feita aqui... uma forma deguardar a água de chuva! Isso é muito importante... CTHRNB25
Devem pensar num maior aeroporto, o porto que ainda está a avançar, têm de pensar em infraestruturascomo estradas, canalização, saneamento, e também todo esse conjunto de elementos ainda precisam detrabalhar na Boa Vista! URHRNB48
(...) tudo vai para os cofres do Estado e não entra na Boa Vista! Com esse dinheiro [vistos] dava umaajuda muito, muito grande aqui! A habitação que é precária, há défice de habitação muito grande, aquestão de saneamento, do lixo... (...) construção de rede viária, água canalizada, eletricidade, por aífora... com esse dinheiro dava uma ajuda muito grande! (...) Daí tanta contestação porque a ilha da BoaVista é a que mais contribui neste momento para o PIB nacional de Cabo Verde de forma direta e comuma percentagem a aumentar! Uma receita que sai daqui muito grande e não há grande retorno!URMRNOI30
Para desenvolver e trazer clientes é claro que é necessário! (...) porto, por questões logísticas, aeroportopor questões óbvias... estradas e ruas... (...) hospital. e depois, desenvolver a vila, iluminação, limpeza...mas basicamente é comunicação, porto e aeroporto, ruas e hospitais! RUHOP39
Foram os entrevistados de ambas as faixas etárias mais jovens que mais mencionaram esta
prioridade, em particular os que tinham entre 30 e 39 anos de idade (63%). Na verdade, existe uma
clara tendência para mencionar menos esta prioridade à medida que se avança na faixa etária já que
os valores vão caindo até aos 20% dos indivíduos com 70 ou mais anos de idade.
A intervenção governamental preocupa ligeiramente mais os homens (57%) do que as
mulheres (53%), um pouco mais os estrangeiros (62%) do que os caboverdianos (53%), mas
bastante mais os residentes em meio rural (63%) do que em meio urbano (52%).
Uma análise cruzada com o nível de escolaridade demonstra que quanto maior for o mesmo,
maior é a importância atribuída, já que, os dados vão dos 37% dos indivíduos com ensino primário
até aos 65% dos licenciados. A situação profissional, revela que são os empregados (60%) e os
trabalhadores por conta própria (59%) que maior destaque dão a esta prioridade, muito acima dos
276
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
desempregados (33%) e dos reformados (17%).
Finalmente, a análise por grupo de residência evidencia que são os operadores (73%) quem
mais destaca esta prioridade, bem acima dos restantes grupos, que rondam os 51% em média. É
muito provável que esta preocupação se prenda com a importância destas infraestruturas para os
serviços prestados pelos operadores aos seus clientes e para a expansão dos seus negócios na Boa
Vista.
Intervenção e Investimento Municipal em Infraestruturas
Esta prioridade obteve quarenta menções, representando cerca de 15% do total das
prioridades. Em continuidade com a prioridade anterior, as intervenções camarárias mais
reclamadas orbitam em torno de questões básicas, aqui sobretudo na habitação, mas também na
questão dos resíduos e ordenamento do território. Alguns exemplos:
Primeiro há que evitar os guetos. Segundo que o Governo junto da sociedade faça junto de cadaconstrução hoteleira uma organização da habitação dos trabalhadores, do tipo precário e não definitivo. Jáé altura de planearem os novos assentamentos populacionais. Está saturado. URHRNB36
Primeiro a marginal; segundo a segurança. Se o turista se sente seguro sai mais do hotel... e depois, apraça cheia de restaurantes e bares e sem carros! Música ao vivo no meio da rua. URHREB51
Um dos pontos está a ser feito agora que é a construção de habitação social! (...) e também a mudança daforma como o turismo é feito na ilha. Tem de ser feito de forma que a população ganhe muito mais com oturismo! URHRNB30
Para se fazer um aterro sanitário como deve de ser, para ajudar na construção das casas, das pessoas quechegam das outras ilhas às procura de emprego, (...) para ampliação e remodelação das escolas... (...) faltaeste entrosamento entre o que a ilha rende e deixa ao país e o que a ilha precisa! URMRNB46
(...) aqui na cidade de Sal-Rei está uma cidade um bocadinho desorganizada. Não é apelativa. Não temuma rua pedonal onde os turistas possam passear livremente e conhecer lojas de artesanato local...pequenos restaurantes, etc. URMRNB36
A CM podia fazer atividades culturais para fazer os turistas saírem! Eles só passam na vila, vêm e vãoembora! (…) A CM também tem culpa. Devia investir na atração turística na vila e assim. URMRNB32
Já há gente que vive na lixeira, como no Brasil... (...). A culpa desse impacto forte sobre o ambiente e apopulação é da autarquia. O Governo não pode fazer nada porque quem manda em tudo é a autarquialocal. URHREB51
Os entrevistados com idades compreendidas entre os 20 e os 59 anos de idade apresentaram
percentagens internas que oscilaram entre os 57% da última faixa e os 40% da anterior (40-49
anos), valores bem acima dos 0% e dos 20% das faixas 60-69 e 70 ou mais anos de idade,
respetivamente; o que nos leva a considerar que a prioridade é do particular interesse das faixas277
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
etárias mais novas.
Por uma diferença significativa, são as mulheres (57%) que mais mencionam esta
prioridade, bem acima dos homens (38%), e mais os habitantes em meio rural (52%) do que os de
meio urbano (39%). A nacionalidade parece ser irrelevante, já que tanto estrangeiros como
nacionais apresentam valores idênticos na casa dos 43%.
Também na mesma casa (50%), tanto licenciados como indivíduos com o ensino secundário
apresentam valores idênticos, bem acima dos 32% do ensino primário e dos 20% do preparatório;
confirmando a maior prioridade atribuída à necessidade de intervenção camarária entre os
entrevistados com maior nível escolar.
Em termos de situação profissional foram os empregados (50%) que mais mencionaram esta
prioridade, bem acima dos trabalhadores por conta própria (36%), dos desempregados e
reformados, ambos com 17%.
Desta feita, os operadores (36%) e os residentes naturais de outras ilhas (33%) são os que
menos mencionam esta prioridade, ao passo que os nativos (46%) lideram, logo seguidos pelos
residentes estrangeiros (43%).
Diversificação do Produto Turístico
A diversificação que os entrevistados mais procuram surge como complemento à simples
exploração do turismo balnear em regime de hotel, e pretende, sobretudo, utilizar o turismo
internacional como palco para a promoção das características culturais e produtos culturais da ilha
da Boa Vista, ao mesmo tempo que criam produtos e negócios que permitam à comunidade local
um rendimento direto do turismo na ilha. Esta prioridade obteve trinta e quatro menções:
Os locais tradicionais, históricos da ilha como a olaria do Rabil, ou o deserto, o único de Cabo Verde.Deserto de dunas. A zona agrícola é pouca, mas é um sítio muito bom para levar os turistas para teremuma ideia de como o pessoal aqui vive! Vais para Santa Mónica, é praia, é tudo seco, mas chegas ali e já éoutra coisa. O pessoal ali vive ainda como se vivia antigamente. (…) Esse é um ponto que tem de sermelhorado. Têm de ser criadas mais opções para os turistas. URHRNB31
A primeira coisa que tem de fazer é unir e organizar para tentar mostrar aos turistas o que há de melhor nailha, como a gastronomia, a música, tudo isso... uma promoção da cultura da terra! Além do Sol e do maro turista interessa também conhecer a realidade da ilha. Acho que a população não está da forma maiscorreta mostrar ao turista o que a ilha tem de melhor para mostrar! URHRNB30
Nós aqui... talvez podíamos estar melhor aproveitados com a comida que temos! O sistema de turismo quefazem com os pacotes incluídos, frequentam menos os restaurantes e daí provam menos o prato típico dailha! (…) podíamos aproveitar o queijo para atrair os turistas... passeios de burro... e as praias aquibonitas. E uns hotéis aqui... Aqui ainda tem esse sossego, não sabemos por quanto tempo... FFMRNB38
278
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
É isso que nós devíamos de mudar, devíamos de oferecer algo cultural mesmo da ilha! Os turistas, mesmoda modalidade de all-inclusive, procuram e têm curiosidade em conhecer a cultura dos nativos da BoaVista! Só que, temos muita procura e temos pouco para oferecer! URHRNB27
Olha, modernizar essa ilha! Não ser só destino de sol e praia e... outros atrativos, cultura, música e essascoisas que o turista quer ver... restaurantes, essas coisas... é difícil ir a um restaurante e comer comidatípica de Cabo Verde se quiser! Muito difícil! URFOP29
Boa Vista acho que é uma ilha sub-explorada, digo eu. A oferta neste momento é muito limitada, não hámuito para oferecer! A ilha é rica mas é concentrada nas praias! Se alguém for fazer um roteiro turísticoao longo das ilhas irá ter uma paisagem bastante bonita, especificamente nas praias, mas durante todo opercurso não há nada, só pedras e rochas, é seco, não é? Tendo em conta o clima do arquipélago. Mas hámuito para oferecer. A Boa Vista é uma ilha rica em cultura! Musica, é rica! Aqui nasceu a Morna, porexemplo! (...) Muito rica também na cultura, podia explorar o turismo cultural, em artesanato e por aífora! (...) neste momento, é apenas o que a natureza oferece e mais nada! URMRNOI30
Duas das frases que talvez melhor exprimam este sentimento ou desejo por um turismo que
dê a conhecer a ilha aos turistas, são as seguintes:
Acho que é pena virem com tudo incluído porque a maioria das pessoas não saí do hotel. Então veem umlugar bonito mas não vêm conhecer a Boa Vista! OPFREB41
Eu acho que o turismo poderia ser um turismo que convivia diretamente com a população, para deixaressa ilha praticamente rústica, como está; organizar e criar condições, junto dos povoados sem alterarmuito os povoados, assim, os turistas com as dunas e as tamareiras sentissem um pouco o passado!URHRNB62
Esta ideia de que a Boa Vista está a passar "ao lado" dos turistas que visitam as suas belas
praias mostra, por um lado, o desejo local em exibir as virtudes culturais locais; ao passo que, a
segunda citação transporta o desejo de ver a nostalgia saciada através do negócio do turismo e da
preservação dos espaços.
Esta diversificação é a primeira prioridade que se encontra tanto na esfera pública como na
privada, já que esta diversificação depende sobretudo da iniciativa privada de investidores ou
grupos de interesse, ainda que possa ser largamente facilitada com o apoio político, tanto local
como nacional.
Se os entrevistados entre os 50 e 59 anos de idade não consideram esta prioridade, e aqueles
com 70 ou mais anos de idade parecem não dar grande importância (20%), as restantes faixas
variam entre os 35% (40-49 anos) e os 45% (20-29 anos), o que denota, novamente, uma tendência
de menor importância atribuída à medida que a faixa etária é elevada.
O género parece ser ligeiramente determinante, uma vez que os homens (33%) apresentam
valores inferiores às mulheres (39%), do mesmo modo que os estrangeiros (29%) face aos nacionais
279
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
(37%); ao passo que ambos os tipos de residência têm valores muito próximos, já que os residentes
em meio rural têm apenas mais 2% de percentagem interna que aqueles que residem em meio
urbano (35%).
Olhando para o nível escolar, percebemos que, novamente, quanto maior a escolaridade,
maior a preponderância atribuída a esta prioridade, mesmo, os licenciados (39%) apresentam
valores inferiores aos indivíduos com o ensino secundário (50%), ainda assim, acima dos restantes
(preparatório com 33% e primário com 16%).
A análise cruzada com a situação profissional revela que os reformados (17%) são o grupo
com menor percentagem interna (se, como até aqui, ignorarmos os 0% da doméstica), já que os
restantes oscilam entre os 37% dos empregados e os 33% dos desempregados. Por fim, em
semelhança com a situação profissional, a residência por grupo indica que os estrangeiros são os
que menos mencionam esta prioridade (21%) e os restantes grupos encontram-se entre os 39% dos
nativos da ilha e os 33% dos nativos de outras ilhas do arquipélago.
Educação, Formação e Capacitação
Se falarmos de competitividade do turismo em si, na ilha ainda estamos longe daquilo que seria desejável.Daí a insustentabilidade que temos no nosso produto. Uma das coisas que se tem de fazer para tornar onosso produto turístico numa coisa mais valorizada é apostar num turismo.... ou seja, não só ao nívelestrutural de aeroporto, de hospital, de estradas, e afins, mas também, apostar na condição de quemtrabalha nos hotéis e restaurantes e serviços adjacentes. Eu acredito na formação! URHRNB28
Como esta citação dá já a entender, uma das grandes lacunas, e simultaneamente prioridades
de intervenção, é a aposta na formação e qualificação de pessoas. Com vinte e oito menções, cerca
de 11% do total das menções, o investimento em educação e formação profissional é a próxima
prioridade analisada.
Esta educação e formação é dirigida à profissionalização e especialização na atividade
turística, para que a comunidade e o país possam retirar melhores dividendos, mas também de
forma a garantir uma melhoria do serviço prestado. Outros exemplos:
Estas coisas há falta de preparação, de técnica, jovens, não fazer só coisas rudimentares que têmsignificado mas formação é uma parte importante da juventude. É uma pessoa sentir que é útil na própriailha. URHRNB48
Falta regulação, controlo turístico e mudar o esquema com investimento nas ilhas e populações. Naformação… para que os nativos se sintam por dentro do turismo sem estar no turismo. URHRNB36
Ainda vamos a tempo de corrigir alguns erros, sobretudo, investir no município, na educação, naformação profissional e nas infraestruturas. URHRNB36
280
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Deveríamos de preparar a população, deveríamos envolver e estar preparados para o turismo! Esses são ospontos principais! BFHRNB25
Formação, qualificação das pessoas... mesmo para o mercado de trabalho e para receber os turistas!URMRNB46
Eu acho que é só ter as pessoas preparadas para o turismo e podem retirar partido do turismo.URMRNB36
Profissionalismo, formação do pessoal! Eles exigem trabalho mas não têm formação! URMRNB32
Apostar na agricultura, na formação das pessoas... a... isso nunca me passou pela cabeça! Apostassemmais na agricultura, aqui os jovens! FFFRNB39
Eu vejo mais da perspetiva dos jovens. A juventude da Boa Vista (...) falta seguramente algumapreparação e capacitação das pessoas. A ilha vive de turismo mas não temos nenhum espaço de formaçãopara responder ao turismo! URHRNB31
Foram os entrevistados entre os 20 e os 29 anos de idade (40%) que mais mencionaram esta
prioridade, logo seguidos da faixa etária 30-39 anos de idade (32%), sendo que, as restantes
variaram entre os 20% (40-49 anos) e os 14% (50-59 anos), confirmando que são os mais jovens
que têm maior preocupação com a formação e educação, diríamos até, que são os mais interessados
na mesma.
Também mais interessadas parecem as mulheres (29%), os nativos de Cabo Verde (29%),
sobretudo os que habitam em meio rural (33%), ainda que em todos os casos as margens sejam
ligeiras face aos homens (26%), estrangeiros (24%) e residentes em meio urbano (26%). No caso do
espaço de residência, é particularmente interessante como aqueles que mais longe residem da
atividade turística e espaços turisticamente relevantes são quem maior interesse revelam por melhor
educação e formação profissional.
A análise ao nível escolar é desta vez uma clara curva ascendente, que vai dos 16% do
ensino primário aos 37% do ensino superior, revelando, sem margem para dúvida, que quanto maior
o nível de escolaridade, maior importância atribuída a esta prioridade.
É entre os desempregados (33%) que encontramos maior preocupação com esta prioridade,
logo seguidos pelos trabalhadores por conta própria (32%) e empregados (27%); já os reformados
ficam-se pelos 17%. Tanto desempregados como trabalhadores por conta própria parecem estar
interessados em melhor qualificação, ou apenas obter alguma qualificação, de forma a conseguir
emprego ou melhores rendimentos no emprego que têm.
O dado mais interessante, a nosso ver, é o facto dos residentes naturais de outras ilhas não
281
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
terem feito qualquer menção a esta prioridade. Algo surpreendente, já que são a maior força de
trabalho nas cadeias hoteleiras e na construção civil. Seria lógico que procurassem dar maior
prioridade à educação e formação já que poderia permitir ascender nas empresas em que trabalham
ou mesmo conseguir emprego noutras áreas, já que, por exemplo, a construção civil passa
atualmente por alguma estagnação em virtude da falta de investidores. Por outro lado, são os
operadores (45%) que maior importância deram a esta prioridade o que revela que estão
interessados em capacitar os seus empregados e futuros empregados. Seguidamente temos os
nativos com 34%, e estrangeiros com 14%.
Resta fazer a ressalva que a SDTIBM tem sido responsável por várias formações nas áreas
da hotelaria e turismo, administração, línguas e construção civil, capacitando mais de 1000
beneficiários até à data. Ainda assim, o desejo por uma maior oferta e variedade de formações é
clara.
Investimento Privado
O investimento privado é outra das prioridades reconhecidas. Desta feita, representa 10%
das menções com vinte e seis das mesmas, e orbita em torno da necessidade de maior capital
privado investido na criação e melhoria de negócios, empresas e serviços prestados dos quais não só
o turismo mas a comunidade local carecem. A maioria das citações orbitam em torno na necessidade
de investimento e empreendedorismo por parte dos privados, sem necessariamente se referirem a
capital externo ou estrangeiro:
É preciso mais garra e empreendedorismo e ter a consciência que a Boa Vista tem muito mais para dar aosboavistenses e a Cabo Verde. URMRNB46
O que temos de fazer é apelar aos emigrantes já com alguma experiência nesta matéria porque há muitopara fazer para elevar a ilha! URHRNB48
A mentalidade aqui... mas teve gente que teve emigrada e tem dinheiro mas eles não investiram nada! Sãopoucos os que podiam investir mas não fazem nada! Têm medo de arriscar. O pessoal aqui é muitopassivo! (...) Fazem sempre as mesmas coisas... restaurantes, restaurantes! (...) Uma coisa está a dar etodos fazem igual! URMRNB32
A mentalidade de muitas pessoas aqui é ficar sentadas e dizer "Que venham os turistas!". (...) Não podesesperar que seja o hotel ou a agência a fazê-lo! (...) Tu queres que o turista venha?! Que atrativo vaisfazer? URMOP40
Ao sair do hotel vão pedir serviços que não vão encontrar e então vão voltar descontentes e é por isso queacabam por ficar no hotel. Então a Boa Vista tem que investir mais e oferecer, por exemplo, serviços querealmente querem e andam a pedir. Tendo esses serviços, acho que, mesmo comprando pacote tudo
282
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
incluído, esses turistas vão sair do hotel e vão saber que no sítio tal tem um lugar onde pode sentar econsumir os serviços que quer consumir. URHRNB29b
Quer dizer, na Boa Vista há falta de empreendedorismo, as pessoas não se lançam! Então vão outraspessoas investir, então elas reclamam que outras é que estão a tirar proveito! URMRNB36
Eu não gosto de acusar as pessoas mas é que é assim, o negativo da Boa Vista é ser preguiçoso! Agora,não gostam de trabalhar, mas os que têm o seu negócio por conta própria não gostam de ter um horizontemais alargado, e então não criam condições de modo que o turista possa frequentar nesse local! Então,assim torna-se difícil porque uma pessoa quer ir a um lugar mais confortável onde não possa serincomodado, penso que é isso, criar condições primeiro para que o turista possa frequentar esses locais!URHRNOI31
Os entrevistados apontam para investimentos específicos que consideram exemplo do
investimento que a ilha precisaria, nomeadamente novos empreendimentos hoteleiros de média e
pequena dimensão, restauração típica de qualidade, maior produção agrícola, entre outros. Alguns
exemplos abaixo:
É preciso que o pequeno privado construa uma pensão de quarenta quartos. Que um restaurante façacomida interessante! Isso já é solução. URMREB34
O cliente aqui é do tipo comercial. De média, média baixa ou alta (...) O que procura é sol e praia edescansar do stress da praia! (...) Aqui para [o turista] sair tem de haver algo típico de aqui, não pizza! Emsua casa pode comer pizza todos os dias! RUHOP39
Os produtos aqui são muito bons, o problema é que não tem capacidade de responder aos hotéis! Hotéiscomo este que consomem seiscentos kg de melão em dois dias! Uma produção nas ilhas comocomunicação, e em quantidade para suprir as necessidades... claro que eu sou um fornecedor não vouimportar de Brasil, das Canárias, de Marrocos (...)! Isto está claro! RUHOP39
É preciso mais quartos, sim senhor! Não hotéis de all-inclusive como existe, mas era a única forma doturismo arrancar em Cabo Verde, porque não havia restauração, não havia infraestruturas para aguentar ofluxo que se criou! Naturalmente que os all-inclusive colmataram essa lacuna. Mas que hotéis maispequenos, com menos quartos. Tem que se apostar muito na qualidade das pessoas! URHOP47
À exceção do facto de nenhum dos entrevistados entre os 60 e os 69 anos de idade
mencionar esta prioridade, fica claro que, pelo menos 20% das outras faixas etárias a consideram,
sendo que, a faixa com maior percentagem por alguma margem é a mais nova com 35%, bem acima
dos 29% de tanto 30-39, como os 50-59 anos de idade, ou dos 25% dos entrevistados entre os 40-45
anos de idade.
Curiosamente, também 25% dos nacionais e dos residentes em meio urbano apresentam
percentagens internas inferiores aos 33% de estrangeiros e residentes em meio rural. Quanto ao
género, os valores são 2% superiores nas mulheres face aos homens (26%).
O nível de escolaridade apresenta nova tendência claramente crescente, culminando nos
283
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
37% dos licenciados, logo seguidos pelos entrevistados com ensino secundário (31%), valores que
largamente ultrapassam as baixas percentagens, tanto dos indivíduos com ensino primário (11%)
como preparatório (13%).
Também com percentagens internas mais elevadas que os restantes grupos, estão os
empregados (29%) e trabalhadores por conta própria (27%) que apresentaram os valores mais
elevados, deixando os reformados e desempregados nos 17%. Com os mesmo 17% os residentes
nativo de outras ilhas surgem com o valor mais reduzido na análise por grupo de residência que é
liderada, sem contestação, pelos operadores (45%). Os nativos da Boa Vista (25%) e os estrangeiros
(29%) emergem a meio caminho entre ambos os valores anteriores.
Cooperação Política
Em vinte e duas entrevistas, os entrevistados apontaram como prioridade maior a
cooperação política entre o governo local e central. Há a perceção de tanto uma como a outra
instituição se atropelarem ou boicotarem institucional e politicamente, com acusações que têm
atrasado e impossibilitado avanços e reestruturações vitais para a sustentabilidade, não só do
turismo como da comunidade residente na Boa Vista. Recordem-se, entre os impactos negativos, as
carências nas infraestruturas, aumento da criminalidade, crescimento descontrolado, entre tantos
outros cuja resolução obriga a uma cooperação institucional:
Gostaria que o Governo e Câmara, oposição trabalhassem mais unidos! A população seria maisbeneficiada. As coisas não estão a correr tão bem. BFHRNB44
Não tem havido ligação… o Governo local e central são de partidos diferentes. Essa é a primeira barreira.Dificulta e muito. Não temos avançado mais por causa desse aspeto. BFHRNB29
Houve muita pressa no processo turístico da Boa Vista, e isso... (...) O Governo e a Câmara Municipalestão sempre em desacordo, sempre a discutir, a discutir... quase nunca se sentam com seriedade. ACâmara Municipal não tem um departamento de turismo, como é que não um departamento de turismo!?Não trata o turismo com a seriedade que merece!Toda a gente tem de estar envolvida no processo!BFHRNB25
É tempo para o Governo e a Câmara se juntarem e resolver alguns problemas... Se não controlam o abusode início a tendência é piorar e não melhorar! URHREB37
Para mim, foi a Câmara Municipal e o Governo. O Governo tinha que trabalhar noutro sistema assim!URHRNB33
A Câmara Municipal tem obrigação porque é chefe da ilha, e o Governo também tem a obrigação decolaborar com a Câmara Municipal. Mas não há colaboração! Cada qual na sua... FFFRNB84
284
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Maior cooperação política não é importante, de todo, para os entrevistados entre os 50 e os
69 anos de idade, nem uma prioridade determinante para 45% dos entrevistados entre os 40 e 49
anos de idade. Simultaneamente, apenas 20% dos entrevistados entre os 20-29 e 70 ou mais anos de
idade, e 21% dos restantes (30-39 anos), consideram esta prioridade.
Já 28% dos homens e apenas 14% das mulheres percecionam a cooperação política como
prioridade. Com maior diferença ainda, 27% dos caboverdianos entrevistados e apenas 10% dos
estrangeiros a mencionaram. Mas o maior desnível percentual encontra-se entre os residentes em
meio urbano (17%) e os de meio rural (37%).
Os indivíduos com o ensino preparatório (33%) foram os que maior importância atribuíram
à cooperação política, logo seguidos pelos 25% do ensino secundário e 22% do ensino superior;
ficando em 16% a percentagem dos entrevistados com o ensino primário. A situação profissional
dos entrevistados revelou que os trabalhadores por conta própria (32%) e os empregados (21%)
lideram nesta prioridade, logo seguidos por reformados e desempregados (ambos com 17%).
Quanto à análise por grupo de residência podemos afirmar que esta prioridade é bastante
importante para os residentes nativos da Boa Vista (32%), e bastante menos para operadores (17%);
ainda assim, valores bem superiores aos dos residentes estrangeiros (7%) e nativos de outras ilhas
(0%)!
Policiamento e Fiscalização
Se anteriormente se confirmou que as principais prioridades envolvem a edificação ou
melhoramento de infraestruturas, esta prioridade envolve, sobretudo, reestruturações organizativas e
aumento de efetivos no espaço. Com dezoito menções, o policiamento e a fiscalização são
prioridades importantes para 19% dos entrevistados. Sem dúvida que a fiscalização orbita sobretudo
no desejo de maior controlo e regulamentação da venda de produtos na vila de Sal-Rei e noutros
pontos turísticos por parte de emigrantes estrangeiros, ao passo que o policiamento significa
taxativamente maior contingente nas ruas da capital e povoados:
Às vezes são perturbadoras, são pessoas mesmo que... (...) aqui não há controlo, as pessoas vendem coisasna rua... abordam os turistas de qualquer maneira, a seguir os turistas! URHRNOI3
Gostava também de ver na Boa Vista (...) criar um centro de emergência infantil aqui na Boa Vista! (...)Gostava de ver reforçada a segurança. O turismo exige segurança! URHRNB27
Eu acho que devia de haver uma fiscalização, não é que seja comunista (...)! URHRNOI61
285
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Não sou ninguém para dar problemas, mas quando existem algumas leis tem de haver quem as façarespeitar! Se todos fazem o que querem vai haver problemas... exatamente. OPFREB41
A prioridade aqui é a presença dos agentes de fiscalização económica! (...) do fluxo comercial que sepratica na Boa Vista! Aqui, tem uma inflação muito disparada e não há imposição das tabelas de preço dosprodutos o que faz com que os comerciantes façam o preço que querem! URMRNOI30
Mais fiscal... os turistas vêm de férias mas os africanos que vendem não deixam em paz os turistas. Maisfiscalização de turismo, mais na praia de mar, mais segurança, falta segurança! URHRNB37
Um outro aspeto foi a vinda desses, não tenho nada contra o Senegaleses porque considero o Senegal omeu segundo país porque lá estudei, mas posso usar a expressão que andam a espantar os nossos turistasda forma agressiva como eles querem que os turistas comprem os seus produtos. Acho que isso é maupara o turismo e é mau para o país. Se o Governo não toma medidas vamos ter problemas mais graves.URHRNB29b
Primeiro, acho que é a organização. (...) Em termos de venda de produtos, tem de haver maisordenamento, mais regras. Por exemplo, as lojas africanas sempre abertas e as cabo-verdianas têm defechar (...). URMOP33
Como tem sido regra na análise dos dados relativos à idade, verificamos aqui uma tendência
clara para menor preponderância à medida que as mesmas avançam, sendo que, os valores vão dos
25% da primeira faixa etária aos 17% dos entrevistados entre os 60 e 69 anos de idade, sendo
relevante mencionar os nulos das faixas 50-59 anos e 70 ou mais anos de idade. Isto comprova uma
clara tendência que se tem confirmado ao longo de toda a investigação e que abordaremos mais
adiante neste capítulo.
A nacionalidade não é determinante nesta prioridade, já que ambos apresentam 17% de
percentagem interna. Contrariamente, tanto os homens como os residentes de meio urbano
apresentam 22% como valor interno, bem acima dos valores das mulheres (13%) e residentes de
meio rural (11%).
Apenas 11% dos entrevistados com o ensino primário mencionaram esta prioridade, 13%
daqueles com o ensino preparatório e 20% com o ensino superior também a mencionaram. No
entanto, a maior percentagem vai para o ensino secundário com 31%, ultrapassando
confortavelmente os outros valores e demarcando uma tendência de maior atenção atribuída à
prioridade policiamento e fiscalização, à medida que a escolaridade é superior.
Também a situação profissional parece não ser muito determinante no interesse por esta
prioridade, dado que 23% dos empregados a mencionou, assim como, 17% dos desempregados e
14% dos trabalhadores por conta própria, com exceção, claro, do nulo da doméstica e dos
reformados.
286
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
A merecer destaque nesta análise é o facto de 42% dos residentes naturais de outras ilhas
apontarem para a necessidade de policiamento e fiscalização. Estes habitam sobretudo no bairro da
Boa Esperança e Farinação, zonas tidas como de elevado índice de criminalidade, são também estes
os primeiros a priorizarem a mesma. De resto, 27% dos operadores e 14% de nativos e estrangeiros
também o mencionaram.
Financiamento e Apoio ao Investimento
No caso desta prioridade esta depende, em parte, também dos poderes locais e centrais. Ora,
precisamente nessa linha, a necessidade de maior financiamento e apoio ao investimento surge na
lista de prioridades na oitava posição, com dezasseis menções, presente em 17% das entrevistas. De
linhas de financiamento e agências mediadares para a facilitação na criação e expansão de negócios
e empresas, esta prioridade passa pela necessidade da criação de ferramentas económicas, mas
também de ferramentas que agilizem e tornem mais transparentes os processos de aprovação de
projetos, empresas e negócios:
Precisamos de ser mais ativos. Depois a própria autarquia tem de fornecer aquela base, aquele apoio parase avançar. Às vezes há o medo de avançar. Basta avançar, depois de iniciar… (…) Faltam apoios,financiamento… agora neste tempo de crise, ainda fica mais difícil! BFHRNB29
Mas também é preciso um impulso por parte do Governo porque há que preparar! (...) e a própriaautarquia! URMRNB46
São ideias... só que temos um problema aqui, os jovens têm projetos mas falta financiamento. Há muitaburocracia! JGHRNB31
O problema é que não tem apoio do ministério de turismo... não tem apoio. Eles tomam decisão e eles nãoquerem saber! A maioria dos espaços comerciais estão a fechar porque não tem incentivo! URFRNB33
Eu penso que há pessoas que gostam de mostrar os seus trabalhos, só que não tem muito apoio para fazerum artesanato (...). Não têm digamos um... incentivo para fazer peças que possam ter mais saída. Assim écomplicado né?! Se também houvesse mais apoio das autoridades locais e dos responsáveis dos hotéis...URHRNOI31
Acho que também Governo e autoridades locais têm uma cota parte de culpa nisso porque eles deviamincentivar os jovens a criar os seus próprios negócios, por exemplo, dar formações para aprender novasartes e oferecer aos turistas. Mas infelizmente isso não acontece na ilha. E depois temos a questãoburocrática, para criar um negócio é muito complicado! URHRNB29b
Depois tem de se criar condições para um mínimo turismo sustentável. Dar oportunidade a pessoas daquicom ideias, para criar postos de turismo e de artesanato. O problema é que se deixou andar um poucoassim... URMOP33
É entre os jovens que existe maior interesse em destacar esta prioridade, e isso comprova-se
287
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
também na análise cruzada, uma vez que apenas os entrevistados entre os 20 e os 49 anos de idade
mencionaram esta prioridade. Isto, com destaque para os 25% da faixa mais jovem, seguida de perto
pelos 21% da faixa seguinte (30-39 anos) e com alguma distância pelos 10% da terceira faixa (40-
49 anos).
Este desejo está presente sobretudo entre os nacionais de Cabo Verde (19%) e entre os que
habitam em meio rural (30%), valores bem acima das suas contra-partes (estrangeiros 5%, e meio
urbano 10%). Com valores aproximados, são os homens (19%) que mais mencionam esta
prioridade (as mulheres ficam-se pelos 11%).
Todos os níveis de escolaridade a referem, ainda que os que têm o ensino preparatório (7%)
interrompam a tendência geral crescente que vai dos 11% do ensino primário aos 20% do ensino
superior, com mais 1% que o ensino secundário.
São os empregados (21%) e os desempregados (17%) que mais se destacam nesta
prioridade, seguidos com bastante diferença pelos trabalhadores por conta própria (5%), ficando-se
as restantes categorias pelo nulo.
Com outra diferença substancial, os nativos da Boa Vista (22%) apresentam um interesse
marcado pela necessidade de financiamento e apoio ao investimento, seguidos à distância por
operadores (9%) e estrangeiros (7%), não tendo qualquer interesse nesta prioridade os nativos de
outras ilhas.
Envolvimento da Sociedade Civil
Esta prioridade tem o mesmo número de menções que a décima e última prioridade,
abrangendo cerca de 13% dos entrevistados, remetendo para a necessidade de maior envolvimento
da sociedade civil no processo de condução do turismo da Boa Vista, assim como, para a
necessidade da comunidade local em se associar e agir ativamente a favor da melhor gestão do
turismo e da própria comunidade local:
A população não está a ser envolvida nesta questão do turismo! Não foi no início e não estar a ser agora.(...) Nós da Boa Vista, não estamos a ser capazes de aproveitar as possibilidades, porque não estamosenvolvidos, nem preparados para tal! BFHRNB25
Cada pessoa aqui tenta resolver [os problemas] de uma forma isolada, e isso não serve, não conseguem terresultado com isso. URHRNB30
Cá, sentam-se, reclamam, reclamam, mas não fazem nada... para mudar algumas coisas e melhorar!URHREB37
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VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Isto, para ser sustentável tem que envolver toda a gente, não é uns a trazer gente e o resto a não querersaber disto! O interesse também é deles! Uma pessoa tem de lutar e preservar! URHOP47
Eu estou bastante preocupada com o resultado. Foram cometidos muitos erros e acho que a mentalidadedos caboverdianos é muito relaxada e as pessoas são muito relaxadas... tendem a ser muito indiferentesquanto ao que acontece e guardam as suas opiniões para si mesmos! Acho que foram poucas as pessoasque acabaram por decidir como o turismo deveria ser e eles poderiam ter feito melhor, e se vendidomelhor! URFREB26
Há alguma inércia! E depois de alguns anos depois de estar aqui acabamos por ficar na mesma! (...) euainda sinto isso ao fim de treze anos. (...) Para ter iniciativa alguns grupos e pessoas que realmenteconseguem dinamizar alguma coisa mas é muito difícil! A maneira de contornar isso é (...) juntar a essaspessoas mais ativas! URFREB39
As pessoas só veem o turismo como um produto final. Mas no turismo há várias coisas positivas quepodemos tirar mas não está a ser tirado. Há uma distância grande entre população e turismo. URHOP29b
O desejo de envolvimento da sociedade civil encontra-se disperso entre as várias faixas
etárias, sem que se possa determinar um padrão ou tendência. Isto deve-se aos 20% das faixas 20-29
e 40-49 anos de idade e os 17% da faixa 60-69 anos de idade, que são separadas por percentagens
muito inferiores, como os 5% da faixa 30-39 anos e os 0% das restantes. Igualmente inconclusiva é
a diferenciação de género, uma vez que ambos estão praticamente com a mesma percentagem (12%
para os homens e 11% para as mulheres).
Também o nível de escolaridade padece de dispersão percentual, que vai dos 5% do ensino
primário e 0% do preparatório, aos 25% do secundário e 13% do superior, perfazendo, ainda assim,
uma clara tendência de valores mais elevados à medida que o nível de escolaridade avança.
Igualmente claro, é o facto desta prioridade apenas ser mencionada por empregados (15) e
trabalhadores por conta própria (9%), e logo ignorada pelos restantes. É ainda ignorada pelos
residentes naturais de outras ilhas e apenas mencionada por 10% dos nativos da Boa Vista, mas já
por 18% dos operadores e 21% dos estrangeiros.
Regulamentação e Legislação
Com doze menções, esta última prioridade passa pela regulamentação do mercado,
concretamente, o mercado turístico e outros relacionados ou afetados por este, como o comércio
local ou o mercado imobiliário:
É uma tendência da nossa gente de que não vendem e não baixam o preço! (…) Não fazem contas aocusto de produção e de investimento para colocar o preço. Mas os poderes poderiam entrar nesse área eregular o mercado. URHRNB36
289
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
Se o Governo colocasse um preço fixo para os locais e outro preço para turistas, como no Sal (…). Assimseria justo. URHRNB31
Então esse é uma dos aspetos negativos do turismo dentro da dinâmica do político, ou da sociedade civilque não sabe regular. Não havendo uma forma de regularização, os pequenos agentes acabam por… (…)eles é que moldam o nosso estilo de vida. (…) Ensinar os políticos! Regulamentação em certos campos-chave. Em termos de transportes públicos, venda de bens alimentares, seria fundamental… em termos deágua. Nós aqui não sabemos muito bem em quem acreditar! URMREB34
Agora, regular o turismo… junto dos hotéis há estrutura de transportes, etc. (…) Junto a um grande hotelhá sempre tascas mas são dos nativos para aproveitar as saídas, as deixas, aqui são de italianos. É isso queprecisa de ser regulado! URHRNB36
Assim, é necessária uma legislação clara, que permita, de forma transparente, criar negócios
vantajosos para investidores, Governo e comunidade local:
Se o turismo é pedra de toque da economia de Cabo Verde imagina se fosse bem regulado e trabalhado,seria realmente de forma diferente. URHRNB36
O Governo deveria obrigar os hotéis a fazer casas e criar condições para os trabalhadores. Assinar acordoscom os investidores com determinadas obrigações! Tu vens criar trabalho a mil empregados tens de criarcasa para os mil empregados. O Governo dá isenções nisto e naquilo mas tem de dar condições. Estaspessoas chegam à Boa Vista e o Governo não pode dar casas! URHREB37
Outras questão para os investidores locais, estrangeiros ou não, são os impostos! Nos últimos anos pareceque as finanças estão mais interessadas em colecionar mais impostos possível do que ajudar a criarmelhores empresas! URHREB35
Para mim deveria ter sido assim, o nosso Governo quando tiver tipo uma cadeia como RIU que quercomprar terreno para hotéis, o nosso Governo devia tipo vender terreno mas na nossa lei é assim, nãoqueremos hotéis all-inclusive. Porque o dinheiro fica na Europa! URHRNB33
Era criar um contrato com esses empresários como os da RIU... não fazerem contrato sem garantiremapoio social à mão de obra que vem das outras ilhas para esta construção! (...) para alojamento dessaspessoas, para não termos as barracas, mais lixo espalhado e essas coisas! Há que haver uma contrapartidasocial, até porque se reparar as empresas que constroem esses grandes hotéis ganham muito com a BoaVista. Tem areia e inertes de graça e estava orçamentado quando fizeram o projeto! Porque não investemtambém na parte social? URMRNB46
Epá podiam fazer muito mais, só têm direitos! Eu estou a falar contra mim, é dizer, quando se construiu oRIU e outros hotéis eles deviam ser obrigados a construir habitação para os trabalhadores! (...) Esteproblema das barracas, pode mais dia menos dia aparecer barracas no TOUAREG. Não há sítio perto paraeles viverem, qualquer dia surge ali outra favela! URHOP47
(...) eles têm é de ver a forma como fazem o contrato! Tem de beneficiar todos! Eu entendo que quemquer investir não quer perder dinheiro mas também tem de ver a outra parte! URMRNOI30
Esta prioridade foi mencionada apenas pelas faixas etárias dos 20 aos 59 anos, em valores
que oscilaram entre os 13% e os 15%, tendo as restantes zero menções. A regulamentação e
legislação foi ainda mais mencionada por homens (19%) e residentes em meio urbano (19%),
290
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
deixando as mulheres (8%) e os residentes em meio rural (4%) bastante abaixo dessa percentagem.
Já em termos de nacionalidade os estrangeiros (19%) mais do que os nacionais do arquipélago
(11%), parecem dar atenção a esta prioridade.
Em termos de escolaridade, existe uma flutuação entre os 5% do ensino primário e 6% do
secundário, os 13% do ensino preparatório e os 17% do ensino superior. A análise cruzada com a
situação profissional revelou que apenas os trabalhadores por conta própria (9%) e empregados
(16%) consideraram a melhoria da regulamentação e legislação do turismo.
Por fim, todos os grupos de residência deram importância a esta prioridade, em particular, os
estrangeiros (21%) e residentes naturais de outras ilhas (17%), ficando os nativos da Boa Vista
(10%) e operadores (9%) com percentagens inferiores.
4. Perceção das Prioridades por Variável Sócio-demográfica
Se olharmos para a variável faixa etária, podemos verificar que os entrevistados mais jovens
apresentam maiores percentagens em seis prioridades e são os segundos em outras três, tendo ainda
uma terceira posição. Isto reforça, desde logo, a ideia de que são os subgrupos etários mais jovens
que mais prioridades sugerem e nelas apresentam melhores resultados. Dizemos “reforça”, pois o
cenário é muito próximo nos entrevistados entre os 30 e 39 anos de idade que apesar de apenas na
prioridade mais referida apresentarem os valores mais elevados, encontram-se sempre entre as três
faixas etárias com percentagens mais altas em todas as prioridades identificadas.
Os entrevistados entre os 40 e 49 anos de idade são o último subgrupo etário a ter presença
em todas as prioridades, ainda que essa presença seja pontualmente ultrapassada pelas faixas etárias
mais avançadas. Refira-se que a única prioridade que lideram (Cooperação Política) fazem-no com
particular destaque.
A faixa etária seguinte apresenta valores muito flutuantes, desde percentagens elevadas nas
duas prioridades mais identificadas, até à ausência noutras cinco; na verdade, apenas a prioridade
Intervenção e Investimento Camarário é liderada por esta faixa. Com elevada semelhança, a faixa
seguinte, 60 a 69 anos, está ausente em cinco prioridades e lidera apenas a “Diversificação do
Produto Turístico”. Os entrevistados de idade mais avançada, 70 ou mais, não lideram qualquer
prioridade e não estão presentes nas quatro prioridades com menor incidência. Curiosamente, em
todas as prioridades em que estão presentes a percentagem é sempre idêntica (20%). Como
havíamos feito referência, são as faixas etárias mais jovens as que mais prioridades conseguem
291
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
identificar e que maior presença nelas têm, em particular nos entrevistados com menos de 39 anos
de idade, tal como verificamos na figura seguinte.
Na variável género confirma-se a total hegemonia do género masculino que em todas
prioridades lidera com diferenças que vão dos 3% aos 13% fase ao género feminino. Desta forma,
tanto em quantidade (percentagem) como em qualidade (número de prioridades apontadas) o género
masculino destaca-se.
Já no que concerne à nacionalidade, vemos que na “intervenção camarária em
infraestruturas” e “policiamento e fiscalização” os valores são idênticos, de resto os valores oscilam
292
I. e I. Estatal em Infraestruturas
I. e I. Municipal em Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Formação, Educação e Capacitação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60 70
Perceção das Prioridades por Faixa Etária20-2930-3940-4950-5960-6970
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.8: Perceção das Prioridades por Faixa Etária
I. I. Estatal Infraestruturas
I. I. Municipal Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Invest. Formação Educação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60
Perceção das Prioridades por Género
Feminino
Masculino
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.9: Perceção das Prioridades por Género
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
tanto para nacionais como para estrangeiros. Tanto os nacionais como os estrangeiros lideram em
quatro prioridades cada; ainda assim há uma ligeira tendência para percentagens mais elevadas
entre os caboverdianos, em particular nas seis prioridades mais mencionadas.
Os entrevistados residentes em meio urbano apresentam percentagens internas em todas as
293
I. I. Estatal Infraestruturas
I. I. Municipal Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Formação, Educação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60 70
Perceção das Prioridades por Área de Residência
Urbano
Rural
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.11: Perceção das Prioridades por Área de Residência
I. I. Estatal Infraestruturas
I. I. Municipal Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Formação, Educação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60 70
Perceção das Prioridades por Nacionalidade
Caboverdianos
Estrangeiros
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.10: Perceção das Prioridades por Nacionalidade
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
prioridades apontadas, com exceção da prioridade “financiamento e apoio ao investimento”, onde
os residentes em meio urbano ultrapassam, por apenas 1%, levando-nos a concluir, sem margem
para dúvida, que a residência é determinante na identificação de prioridades de intervenção.
A escolaridade, cruzada com as prioridades, demonstra claramente que o nível de
escolaridade é determinante na identificação e acentuação das prioridades. Desde logo podemos ver
como os entrevistados com nível primário são os que apresentam valores internos mais baixos em
todas as prioridades, com exceção de duas. Igualmente, os entrevistados com o ensino preparatório
são segundo subgrupo com menor percentagem interna. As exceções de nota são uma surpreendente
liderança na prioridade “Cooperação Política”, uma segunda posição em “Regulamentação e
Legislação”, e um nulo em “Envolvimento da Sociedade Civil”.
Seguidamente, constatamos que existe um entrelaçar constante entre aqueles com o ensino
secundário e o ensino superior. À medida que as prioridades avançam a ligeira vantagem do ensino
superior é gradualmente invertida em igual medida pelo ensino secundário. Assim, temos três
lideranças destacadas do ensino secundário nas seguintes prioridades: “Diversificação do Produto
Turístico”, “Policiamento e Fiscalização” e “Envolvimento da Sociedade Civil”; também temos
quatro lideranças destacadas para o ensino superior nas prioridades: “Investimento e Intervenção
Camarária”, “Investimento em Formação e Educação”, “Investimento Privado”, e “Regulamentação
e Legislação”.
294
I. I. Estatal Infraestruturas
I. I. Municipal Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Formação, Educação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60 70
Perceção das Prioridades por Escolaridade
Primário
Preparatório
Secundário
Superior
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.12: Perceção das Prioridades por Escolaridade
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
A situação profissional, cruzada com as prioridades, sugere que a situação profissional é
determinante na capacidade de identificar prioridades. Os entrevistados em situação de reforma são
o subgrupo com menor percentagem em todas as prioridades (isto ignorando novamente o caso da
doméstica), chegando mesmo a apresentar nulos nas quatro menos mencionadas.
Os desempregados estão também ausentes nas duas propriedades menos mencionadas, mas
lideram curiosamente, na “Investimento em Formação e Educação” e apresentam valores elevados
na prioridade mais destacada e em “Diversificação do Produto Turístico”.
Os trabalhadores por conta própria, por seu turno, presentes em todas as prioridades, lideram
apenas, mas com destaque, na prioridade “Cooperação Política”, contudo, estão nas situações
profissionais com maiores percentagens em sete outras prioridades. Por fim, os empregados lideram
em oito prioridades e nunca apresentam percentagens internas inferiores aos 15%. Tudo isto
demonstra que são os entrevistados profissionalmente ativos, empregados e trabalhadores por conta
própria, os que mais prioridades identificam e que maiores percentagens internas apresentam em
comparação com os demais subgrupos.
Finalmente, a variável grupo de residência, onde os Residentes Naturais da Boa Vista (RNB)
lideram metade das prioridades, o que lhes reserva a hegemonia na identificação e na presença de
prioridades para o futuro da ilha. Já os Residentes Nativos de Outras Ilhas (RNOI) lideram apenas
na prioridade “Policiamento e Fiscalização”, mas, com enorme vantagem sobre as demais,
295
I. I. Estatal Infraestruturas
I. I. Municipal Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Formação, Educação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60
Perceção das Prioridades por Situação Profissional
Empregados
Desempregados
TCP
Reformados
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.13: Perceção das Prioridades Por Situação Profissional
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
sublinhando o seu desejo por maior segurança, dada a zona principal de habitação deste grupo de
residentes. Por outro lado, não consideram importantes quatro das prioridades identificadas pelos
demais subgrupos.
Os Residentes Estrangeiros da Boa Vista (REB) lideram nas duas prioridades menos
destacadas, “Envolvimento da Sociedade Civil” e “Regulamentação e Legislação”, e estão numa
segunda posição noutras quatro prioridades. Já os Operadores (OP) lideram nas prioridades
“Investimento e Intervenção Estatal” e “Investimento Privado”, e, à semelhança dos REB, detêm
quatro segundas posições. Este cruzamento demonstra que são os nativos da ilha quem tem maior e
melhor capacidade de identificar soluções ou, pelo menos, sugestões para tal. Os nativos de outras
ilhas são, de longe, o seu contrário.
Antes de dar por terminada esta apresentação dos dados, importa regressar uma última vez
aos questionários dos turistas. Na décima primeira pergunta do questionário perguntámos aos
turistas se ponderavam regressar à ilha da Boa Vista, sendo que pouco mais de metade afirmou
positivamente (55%). Igualmente, questionámos se ponderavam regressar ao arquipélago, sendo
que 76% afirmou também de forma positiva. Isto revela que o desejo dos turistas inquiridos em
296
I. I. Estatal Infraestruturas
I. I. Municipal Infraestruturas
Diversificação Produto Turístico
Formação, Educação
Investimento Privado
Cooperação Política
Policiamento e Fiscalização
Financiamento e Apoio Invest.
Envolvimento da Sociedade Civil
Regulamentaçao e Legislação
0 10 20 30 40 50 60 70 80
Perceção das Prioridades por Grupo de Residentes
RNB
RNOI
REB
Operadores
Percentagem Interna
Pri
ori
da
de
s
Figura 8.14: Perceção das Prioridades por Grupo de Residentes
VII – Futuro e suas Prioridades em Análise
regressar ao país é significativamente superior ao de regressar à ilha.
Ademais, há que relativizar estes resultados, não apenas pelos motivos anteriormente
referentes à questão da nacionalidade, mas sobretudo considerar que ponderar regressar e
efetivamente regressar são duas realidades distintas, em particular, se considerarmos que apenas 7%
dos turistas inquiridos já havia estado na ilha, um valor muito abaixo dos 55% recolhidos.
Estes dados motivam um interesse maior na questão dos impactos do turismo e como estes
estão, ou não, a ser considerados pelas instituições públicas e setor privado. Considerando a elevada
perceção da subestimação dos impactos do turismo como fator determinante na situação atual da
ilha, não é tão surpreendente. Por um lado, os elevados valores da perceção futuro negativo como
futuro incerto, e por outro lado, a quantidade de prioridades de intervenção no âmbito da
responsabilidade do setor público. Por seu turno, o futuro é percecionado como risonho apenas para
menos de um quarto dos entrevistados. A história do turismo massificado na Boa Vista é ainda
muito recente, com menos de uma década, ainda assim, pelos resultados obtidos, apresenta um nível
de satisfação que se aproxima mais dos destinos em declínio do que daqueles em consolidação, isto
se usarmos como referência as análises de ciclo de vida referidas no capítulo II.
297
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
IX - Turismo na Boa Vista, uma Discussão
Conhecidos os dados e a sua análise, cabe agora discutir os mesmos e enquadrar os seus
resultados no contexto. Uma mudança profunda foi implantada na Boa Vista; falamos do turismo
(massificado), esse conjunto de atividades, interações e relações temporárias entre turistas,
residentes e mediadores (públicos e privados), estabelecidas em resposta às necessidades e desejos
dos turistas e seus resultados no espaço recetor e emissor.
O espaço emissor escapou aos objetivos desta investigação, mas o espaço recetor recebeu os
holofotes do palco principal dos trabalhos desenvolvidos. Os discursos recolhidos e as perceções
definidas levaram ao desenho de um quadro geral que vamos agora recuperar e discutir. Começando
por recordar de forma sintética os resultados obtidos nas perceções motivacionais dos residentes,
verificou-se o destaque dado ao ambiente, ou seja, a Praia e o Clima, logo seguida das motivações
sociais e, por fim, as económicas.
Encontrou-se uma clara tendência na capacidade de identificar mais fatores motivacionais
nos entrevistados de género masculino, de nacionalidade estrangeira, em particular operadores,
residentes em meio urbano, com maiores níveis de escolaridade. Por outro lado, os nacionais de
Cabo Verde destacaram-se apenas nas motivações referentes aos fatores sociais, assim como os
residentes em meio rural.
Os desempregados apresentaram menos capacidade de identificar fatores motivacionais, e
pelo contrário, os profissionalmente ativos são os que mais fatores identificam, assim como, os
entrevistados mais jovens.
A enorme proximidade entre as perceções dos residentes e as motivações declaradas pelos
turistas, mormente nos fatores Hotéis, Praia, Gente e Comida, demonstrou o reconhecimento dos
interesses dos primeiros sobre os segundos.
Se recapitularmos os resultados tratados no capítulo dedicado à análise das perceções dos
impactos, verificamos que as perceções de âmbito económico dominaram os impactos positivos por
larga margem, seguidas a grande distância pelas perceções de cariz social. Já o ambiente estava
praticamente ausente dos impactos positivos.
Em termos das características sócio-demográficas, constatou-se que as faixas etárias mais
jovens, assim como, os nacionais de Cabo Verde, residentes em meio urbano e profissionalmente
298
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
ativos, tinham maior capacidade de identificar impactos positivos e maior presença nos mesmos.
Da mesma forma, o nível de escolaridade pareceu determinante, ainda que o ensino
preparatório apresente maiores percentagens na maioria dos impactos em que está presente. E,
ainda, os operadores foram o grupo com maior presença nos impactos positivos sem que, no
entanto, fossem capazes de identificar tantos impactos como os nativos da ilha da Boa Vista.
Entre os impactos positivos percecionados, a Migração revelou ser o único impacto que não
encontrou eco na literatura revista durante a investigação. Uma vez que não se tornou claro o
motivo desta diferenciação, sugere-se um olhar mais atento a este fenómeno em estudos futuros
dedicados a este tema. Ainda assim recorde-se que, se considerarmos o impacto negativo
“discriminação face aos migrantes”, estes são tidos como um “mal necessário”, uma postura
dicotómica onde se reconhece a preponderância da sua presença enquanto força de trabalho local, e
em simultâneo, um descontentamento generalizado pela perda de oportunidades profissionais para
os locais.
Um outro ponto que merece destaque é o facto da revitalização das práticas tradicionais,
como a pesca e a agricultura, apresentarem resultados tão baixos, dada a importância da mesma ao
nível local. Ou seja, durante o trabalho de campo, o investigador constatou como esta revitalização
era importante para a comunidade nativa, a mesma que em simultâneo não considerou o aumento do
número de pescadores e agricultores como um aspeto positivo, em grande parte, devido ao facto
destes novos trabalhadores serem oriundos de outras ilhas e países.
Igualmente surpreendente é a quase inexistente consideração de impactos ambientais
positivos, quando foram vários os esforços nesse sentido, tanto da sociedade civil (através de
associações ambientais) como das entidades governamentais. Em parte, poder-se-á justificar estes
resultados pela falta de visibilidade do trabalho destas instituições, e também pelas implicações
sociais que as imposições ambientais trouxeram à comunidade local (como a proibição do consumo
de tartarugas é exemplo).
Em larga medida, estes resultados foram ao encontro da hipótese “1”, proposta que
reconhecia a existência de variações nas perceções dos residentes consoante as características sócio-
demográficas. Igualmente, a hipótese “2” previa uma predominância de impactos positivos de cariz
económico e, no caso dos negativos, de cariz social e ambiental. Hipótese também confirmada.
Em termos de impactos negativos, os dados demonstraram que os impactos negativos de
cariz social são a maioria entre os identificados pelos entrevistados, seguidos à distância pelos299
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
ambientais, sendo os económicos residuais.
As faixas etárias intermédias, 40-49 e 50-59 anos de idade, e aqueles com nacionalidade
caboverdiana, nativos da Boa Vista, e com maior escolaridade, mencionaram mais impactos e
tiveram maiores percentagens internas na maioria dos impactos negativos identificados. As faixas
etárias mais velhas, 60-69 e 70 ou mais anos de idade, tal como os entrevistados de nacionalidade
estrangeira e nacionais de outras ilhas, tiveram menor representatividade e identificaram menos
impactos negativos.
O género feminino e os operadores identificaram menos impactos negativos, mas quando o
fizeram, atribuíram-lhes maior importância. Mais uma vez, os entrevistados profissionalmente
ativos foram capazes de apontar mais impactos negativos e neles apresentaram maiores
percentagens internas.
O grande número de impactos negativos é um sinal claro que os residentes têm uma
perceção vasta e profunda dos principais problemas da sua ilha. Entre todos estes, apenas o
“crescimento descontrolado”, a “especulação imobiliária” e a “discriminação aos migrantes” não
encontraram paralelo na literatura de referência.
Relativamente à literatura internacional de referência, esta investigação goza da
possibilidade de poder fazer menção e até uma relativa comparação com o trabalho de Lima (2012).
Esta aplicou cerca de 300 inquéritos a residentes da ilha da Boa Vista, por forma a determinar as
perceções dos residentes da ilha face aos impactos do turismo. Naturalmente que não podemos fazer
comparações diretas entre ambos os estudos, desde logo porque a metodologia é diferente; no
estudo em causa, Lima aplicou um inquérito por questionário, e no caso desta investigação aplicou-
se um guião de entrevista aberto. Ainda assim, dentro do possível, faremos uma relativização dos
resultados.
À data, os resultados de Lima (2012) demonstraram, à semelhança desta investigação, que a
criação de emprego, o aumento do investimento (aqui denominado de “construção de
infraestruturas”), o aumento do número de empresas locais e de mercado para empresas locais
(ambas coincidentes com o impacto económico “crescimento económico”) estavam entre os
impactos económicos de maior importância. A melhoria das condições de vida, embora
subentendida, não foi destacada nos resultados da presente pesquisa, assim como a questão da
despesa pública e da melhoria da imagem.
Do lado dos impactos negativos, a autora destacou: o aumento dos preços, do custo dos300
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
serviços, do custo das habitações, o aumento da criminalidade, a não valorização da tradição local, a
diminuição da tranquilidade e o aumento do tráfego. Destas, as últimas três não encontraram
paralelo no presente estudo. A não valorização da tradição poderia ser enquadrada no “abandono
das práticas tradicionais”, mas a verdade é que este impacto negativo detetado é o menos
percecionado e encontra o paradoxo nos impactos positivos onde se considerou a “revitalização das
práticas tradicionais”, a que já se fez referência anteriormente. O mais interessante, a nosso ver, é a
disparidade nos impactos ambientais, onde o aumento do tráfego, o único impacto ambiental
detetado, nem se quer foi considerado pelos residentes entrevistados.
Em termos globais, no estudo de Lima (2012) os residentes percecionaram mais impactos
positivos que negativos no caso da esfera económica e ambiental. No entanto, os impactos
negativos foram maioritariamente socioculturais e muito superiores aos positivos. Se compararmos
com a presente investigação verificamos que apenas a questão ambiental não se confirmou, uma vez
que os impactos ambientais negativos detetados são em muito superiores aos positivos.
Curiosamente, a autora já chamava a atenção para as consequências futuras da alarmante quantidade
de impactos sociais detetados:
Estes resultados evidenciam, claramente, que as entidades responsáveis pelo desenvolvimento turísticodesta ilha devem definir estratégias adequadas para minimizar os efeitos socioculturais negativos doturismo, uma vez que se os residentes começarem a ter uma atitude negativa face ao turismo isso iráinfluenciar de forma negativa o desenvolvimento turístico desta ilha e os benefícios que esta atividadepoderá proporcionar para o desenvolvimento da economia local. (Lima, 2012:71)
Como nos recordam Brunt e Courtney (1999), o turismo é apresentado muitas vezes como o
motor de mudança social quando na verdade ele apenas contribui para tal. É dizer, o turismo é uma
atividade com enorme visibilidade e, por esse motivo, é por vezes erroneamente apontado como
bode expiatório de muitas mudanças na sociedade, sobretudo mudanças sociais e culturais (Crick,
1989).
A ilha da Boa Vista, tal como todo o Cabo Verde, viveram décadas de profundas mudanças
desde a sua independência. Todavia, nesta como em outras ilhas periféricas ou de maior isolamento,
as mudanças parecem estar a ser sentidas com maior impacto nas últimas duas décadas,
precisamente as décadas onde a aposta no turismo se implementou. Dizer que no caso desta ilha o
turismo é usado como bode expiatório é, a nosso ver, errado. No entanto, o contrário também o será.
O peso da influência do turismo massificado e de fenómenos que ocorrem simultaneamente com
impactos idênticos, são de difícil diferenciação.
301
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
Por exemplo, a enorme onda migratória que chegou à Boa Vista com o turismo diversificou
e alterou as relações na comunidade local. Comportamentos, atitudes, rendimentos, níveis de
educação, traços culturais e étnicos distintos do da comunidade autóctone, invadiram-na. Tais
mudanças e influências derivam da chegada de novos membros à comunidade, membros que
atualmente representam dois terços da mesma e que invariavelmente forçam a alterações e,
sobretudo, forçam uma perceção negativa da comunidade nativa. A elevada discriminação face aos
migrantes foi um dos impactos negativos que claramente demonstraram esse sentimento.
Por outro lado, Vounatsou et al (2005) ao investigarem os impactos sociais do turismo na
ilha de Mykonos, já haviam alertado que o turismo havia alterado gradualmente o comportamento e
as atitudes dos locais, em parte devido à retração da emigração dadas as novas oportunidades de
emprego. Estas permitiram um alívio económico às famílias, independência aos jovens (em
particular das mulheres jovens), o que afetou profundamente a forma de viver e a estrutura social
local. Por arrasto, a hospitalidade diminui e o modo de vida tradicional também, à medida que os
turistas começaram a ser vistos como um recurso e não como hóspedes.
As semelhanças com o caso da Boa Vista são gritantes. A retração quase total da emigração
por parte dos jovens locais, dada a alternativa no emprego, inclusive com a possibilidade de
emprego de longa duração, moldou profundamente as estruturas familiares ao nível local. Deste
modo, a dependência das remessas de emigrantes para a sobrevivência foi reduzida. Com isto não
pretendemos afirmar que já não são recolhidas ajudas provenientes dos familiares emigrados, na
verdade, foram inúmeras as situações onde se verificou a acumulação das mesmas aos novos
rendimentos.
O turismo forçou e acelerou várias transformações, tornando-se um agente de mudança
social que afeta atitudes, crenças, valores e regras que dão sentido e significado à sociedade. O
turismo parece obrigar a interações que forçam à desconstrução do comportamento social das
pessoas, este sob a forma de cultura (Vounatsou et al, 2005).
Os exemplos recolhidos e experimentados na Boa Vista não são uma novidade, mas as
características particulares desta comunidade e da sua cultura trouxeram alguns elementos novos,
como a questão paradoxal da migração simultaneamente entendida como positiva e negativa. Estas
diferenças particulares são reforçadas e, em alguns casos, fruto de outras circunstâncias específicas.
Vejamos alguns exemplos e como estes conduziram a fenómenos que demonstraram um esforço de
resistência às consequências percecionadas do processo de turistificação da ilha.302
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
Todos os impactos até agora descritos, tanto positivos como negativos, desenharam uma
perceção geral das consequências do turismo massificado que continua a ser limitada pelas barreiras
políticas e económicas, a um turismo menos desigual e tendencialmente mais sustentável. A
responsabilização do status quo é claramente dirigida à classe política, deixando o setor privado, e
as grandes empresas estrangeiras, a alguma distância. O turismo tem sido um processo visível de
estandardização de serviços para a satisfação de turistas estrangeiros, nomeadamente, europeus. Das
agências de turismo, aos hotéis e operadores, as regras de mercado têm sido seguidas segundo as
recomendações e sugestões do plano estratégico nacional que encontra no turismo, a tal alavanca
para a modernização e enriquecimento do país.
Alavanca essa que se foca na comercialização das relações entre comunidade e turistas, onde
os residentes prestam serviços e o turistas consomem-nos, invertendo totalmente o tipo de turismo
que existia antes da sua massificação, marcado pela interação cordial e hospitaleira entre estes dois
grupos, sem mediadores externos no estabelecimento das relações entre o nativo da Boa Vista e o
turista. O novo turismo moldou profundamente os espaços públicos, em particular, a cidade e as
praias, forçando a uma rápida multiplicação da população e piorando as condições de vida.
Nessa medida, a resposta da comunidade, ou pelo menos de parte dela, tem-se sentido sob
várias formas de resistência e adaptação, sem que estas duas posturas se auto-excluam. A resistência
é a forma de resposta mais visível, e mais mediática, e tem-se circunscrito a manifestações em
espaço público por direitos dos cidadãos e residentes da ilha. Faremos uma curta exposição de
alguns desses eventos.
Começando por ordem cronológica, refira-se a manifestação que decorreu em junho de 2012
pela interrupção e proibição de construções no ilhéu da Boa Vista. Esta decorreu na Praia de Diante,
foi impulsionada pelas redes sociais, e liderada por um grupo alargado de nativos da Boa Vista. A
indignação prendia-se com a edificação de uma estrutura turística com componente comercial (café)
e de proteção ambiental.
Ainda antes de se tornar público e claro que estrutura era, e como seria o seu funcionamento,
a simples sugestão da parcial privatização e exploração do espaço galvanizou o movimento. O
espaço, tido como uma das praias mais procuradas e queridas dos locais, foi rotulado pelos mesmos
como reserva comunitária, se assim quisermos, um lugar reservado ao uso e à memória da
comunidade e sobre o qual nenhum tipo de iniciativa privada poderia encontrar lugar.
No final desse ano de 2012, uma outra manifestação tomou as ruas da cidade de Sal-Rei,303
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
desta feita em virtude das constantes anomalias, cortes e aumentos na água e luz na ilha, agora sob a
alçada da empresa privada de capital espanhol AEB. Na verdade, neste mesmo ano, esta era a
segunda manifestação sobre a mesma problemática. Os cortes constantes na luz provocam não só
incómodo e frustração aos cidadãos, como são responsáveis pela danificação de eletrodomésticos e
perda de víveres congelados, o que agrava ainda mais as condições e o custo de vida das
populações.
No ano de 2013, destacou-se a manifestação da associação de taxistas de Sal-Rei, pela lutava
contra a monopolização dos transportes de turistas do aeroporto para os hotéis e vice-versa; serviço
que passaria quase exclusivamente a ser prestado por uma empresa estrangeira, um operador de
grande dimensão, reduzindo as oportunidades de negócio dos taxistas e os rendimentos das
respetivas famílias.
Em 2014, duas outras manifestações merecem a nossa atenção. A primeira a ser destacada é
uma nova luta pela qualidade e custo da água potável e por saneamento básico. Os novos bairros e
seus moradores veem-se forçados a adquirir água transportada por tanques, o que quadruplica o seu
custo, e simultaneamente, milhares de habitantes das áreas imediatamente em torno do centro antigo
da cidade continuam sem saneamento básico e a despejar os dejetos nas imediações dos seus bairros
e ruas públicas.
A última manifestação, ou exemplo de resistência, teve lugar em Maio de 2014, quando
centenas de emigrantes da Guiné tentaram invadir a esquadra da cidade de Sal-Rei como protesto
pela incapacidade da polícia local em resolver uma tentativa de homicídio a um dos seus
compatriotas. Este episódio aproximou-se de um outro semelhante efetuado pelos mesmos
elementos em 2008 por motivos idênticos, ou seja, falta de segurança e aumento da criminalidade.
Em suma, formas de contestação que procuram melhores condições de vida, ou lutas sociais
que muitas vezes procuram condições mínimas de vida, maior distribuição das oportunidades, maior
segurança e contenção da inflação. Situações que encontram eco nos impactos negativos
identificados e cujas manifestações dão a entender a importância atribuída às mesmas por parte da
comunidade.
Todavia, foi visível no terreno que a maioria destas manifestações eram conduzidas pelos
mesmos grupos, nomeadamente as manifestações por melhores condições de vida e pelo património
local. As manifestações com um número avultado de participantes apenas tomavam forma com a
participação dos residentes dos bairros da Boa Esperança e Farinação. Tal acontecia, não apenas304
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
pelo número significativo dos seus habitantes, mas sobretudo pela capacidade dos seus líderes em
mover a sua comunidade, em particular as comunidades emigrantes da costa de África, como a
guineense.
Olhemos agora para as respostas que definimos como adaptativa. Esta é ainda menos visível
que a resistência, pois apenas um grupo muito reduzido de residentes da Boa Vista encontrou
formas de se adaptar ao turismo massificado, seja através do negócio ou de atividades para a
proteção e propagação da cultura local e património.
Do lado do negócio, apenas a olaria do Rabil tem crescido e adaptado a produção tradicional
de cerâmica à procura dos turistas, permitindo a continuidade da atividade tradicional através da
venda de objetos souvenir, ou lembranças. Isto apesar da maioria dos produtos consumidos serem
pequenos objetos de barro em forma de pratos, tartarugas, cinzeiros, etc. Todos de pequena
dimensão e baixo custo para o consumidor. Negócio já distante da venda de potes e outros produtos
para uso nas cozinhas tradicionais de outrora.
Um outro exemplo de negócio onde se procura explorar a cultura local são os tours vendidos
pelos operadores, onde se consomem paisagens, espaços, fauna e alguns objetos durante um
percurso de entre duas a seis horas, aproximadamente. Atualmente existem ofertas de tours que vão
além das ofertas típicas de operadores e encontramos tours onde se pode consumir produtos locais
diretamente no produtor local, aproximando momentaneamente o turista do nativo. Este turismo de
proximidade é serviço procurado e, apesar de representar uma magra fatia dos tours, tem agradado
tanto operadores como a locais.
A forma de negócio mais visível, e uma das mais indesejadas, é a venda de artesanato de
proveniência externa, e/ou de produção na ilha por parte de estrangeiros. Referimo-nos ao
artesanato da costa africana produzido e vendido por emigrantes, maioritariamente, do Senegal e
Guiné. Resistir pela adaptação ao contexto tem, no caso do artesanato, iniciado uma onda de luta
pela proteção do património cultural e pela autenticidade dos produtos que os turistas podem e
devem consumir.
Algumas notas merecem destaque nesta menção à questão da autenticidade. Em primeiro
lugar, discordamos com a postura realista-objetivista de McCannell, onde a autenticidade é
mensurável e estática, uma vez que ela é um produto da cultura, ela própria dinâmica e mutável. Em
segundo lugar, e igualmente falaciosa, é a autenticidade na perspetiva construtivista, que vê a
mutabilidade cultural e dos seus traços como justificação/explicação para o caos. Apesar da305
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
autenticidade ser negociada e construída contextual e ideologicamente, isso não a torna arbitrária e
suscetível de desconstrução imediata. Finalmente, embora concordemos que a autenticidade não é
relevante para todos os turistas, mesmo assim, ela não é inútil pois deve ser entendida não apenas na
perspetiva do turista, mas, sobretudo, da comunidade de onde é original. Ou seja, basta que a
autenticidade seja importante para a comunidade local para que deixe de ser um conceito inútil.
A autenticidade dos objetos tradicionais da Boa Vista, e de Cabo Verde, é algo defendido e
procurado pela comunidade local. Nessa linha, as questões que colocamos são: quais os indicadores
de autenticidade que a comunidade local deseja e exige? A quem é permitida a sua produção e
venda? Desta forma abarcamos os dois lados da moeda (produção/venda e simbolismo dos objetos),
o lado comercial e o lado cultural.
O processo de negociação da validação e autenticação dos objetos tidos como tradicionais e
genuínos da comunidade local ainda não deu resultados, em parte porque este processo exige
alguma retificação política e, por arrasto, uma complexa negociação burocrática politizada. Mas já
existem indivíduos interessados em explorar essa possibilidade, bem como, alguns projetos em fase
de planeamento e numa primeira fase de aplicação. Isto leva-nos a considerar que apesar da
hipótese “5” proposta nesta investigação não ser ainda uma realidade num formato “pleno”, existe
já um potencial para um incremento nos movimentos de salvaguarda e reinvenção das tradições
locais num futuro próximo.
Regressando à questão da autenticidade, de acordo com alguns elementos da comunidade
nativa, o problema era quem os produzia, referindo-se ao artesanato produzido quase
exclusivamente por estrangeiros. Já para outros, o problema eram os materiais não locais que eram
empregados nos mesmos. Para outros ainda, o problema principal era a falta de qualidade na técnica
da sua criação. Durante a presença no terreno, ficou claro que o problema principal não era tanto se
os objetos eram realmente validados de acordo com as tradições, mas sobretudo quem lucrava com
a venda dos objetos, fossem quadros, cinzeiros ou estátuas, etc.
Uma evidência desta postura é o facto da olaria do Rabil produzir e vender objetos cuja
pertinência cultural estava totalmente ausente; mas como eram produzidas e vendidas por nativos da
ilha a atividade era aprovada e apoiada. Naturalmente que a sua contestação é válida no sentido em
que a venda de estátuas em imitação de pau-preto ou os quadros com representações de traços
tribais da África continental nada têm de característico da cultura local ou até nacional. Mas
existiam exceções como esta, que não eram de todo coerentes com o argumento da produção306
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
artesanal culturalmente genuína.
Um outro caso era a existência de imigrantes do Senegal, que adquiriam materiais e
pintavam pequenos quadros in loco, e que ainda assim eram criticados porque não eram produtos da
terra, quando, tecnicamente de facto, eram produzido na Boa Vista com materiais adquiridos na ilha
ou no país. Mais uma vez a questão não era tão óbvia, dado que artesãos de outras ilhas de Cabo
Verde faziam o mesmo, mas como eram nacionais, já lhes era tolerada a prática, ainda que, mesmo
assim, não por todos.
Pretendemos demonstrar com esta exposição que a questão da autenticidade do artesanato
mostrou ser mais uma questão económica, produção e venda, do que uma questão de genuinidade
simbólica dos objetos e práticas. Uma reclamação local pelo direito de venda exclusiva num
mercado específico. Uma outra forma de olhar a questão da autenticidade e que merece maior
aprofundamento em estudos posteriores. Dito isto, podemos novamente perceber porque são
comuns as leituras instrumentalistas do turismo, onde os turistas e o turismo são tidos como meros
caminhos para o alívio e incremento económico, e os destinos um recurso a consumir:
Apesar das poucas pesquisas sistematizadas a respeito, as existentes demonstram que, na verdade, oshabitantes dos lugares turísticos que se beneficiam economicamente com a presença dos turistas nãoestão precisamente interessados em receber os turistas como hóspedes e realizar com eles trocas culturais,mas em receber o dinheiro trazido por eles. Os turistas passam a ser um mal necessário. Mal porque suapresença incomoda. Necessário porque seu dinheiro faz falta. Os turistas, por sua vez, veem no habitantelocal apenas um instrumento para seus fins. O grande paradoxo do turismo é que essa atividade colocaem contato pessoas que não enxergam a si mesmas como pessoas, mas como portadoras de uma funçãoprecisa e determinada: uns trazem dinheiro com o qual compram os serviços do outro. O primeiro éconsumidor, o outro, parte da mercadoria, e é essa a relação que prevalece. (Barretto, 2004:147)
Estas práticas de resistência e de adaptação produzem uma perceção geral nos residentes que
ajuda não só a explicar a sua perceção do futuro como molda a atitude destes face ao turismo, e
claro, condiciona a relação entre o residente e o turista. Se os impactos percecionados do turismo na
Boa Vista conduzem a práticas de resistência e de adaptação entre os seus residentes, importa
determinar quais as condicionantes para essa perceção.
Nessa linha, teremos em conta algumas comparações com as posições teóricas mais comuns
na análise da atitude dos residentes e os resultados obtidos nesta questão referente ao futuro. Isto,
recordando que esta análise é comummente obtida a partir da aplicação de questionários fechados, e
no caso desta investigação, a análise é realizada a partir de uma perceção do futuro, e não uma
perceção da atitude presente. Ainda assim, consideramos pertinente o estabelecimento desta leitura
para efeitos demonstrativos da perceção do estudo de caso em relação a alguns exemplos teóricos e
307
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
práticos de referência.
Verificamos que existem características sócio-demográficas que claramente condicionam a
visão do futuro dos residentes, como foi o caso da idade (quanto maior a faixa etária maior a
tendência para uma perceção mais negativa), e do género, onde o género feminino foi ligeiramente
mais incerto e positivo que o género masculino (por sua vez mais negativo).
Outra característica sócio-demográfica determinante foi a situação profissional já que, sem
surpresa, os desempregados apresentaram uma atitude mais negativa, ao passo que os
profissionalmente ativos (empregados e trabalhadores por conta própria) apresentaram a atitude
mais positiva entre os entrevistados. Sem surpresa também, são os nativos de outras ilhas os que
consideraram o futuro mais incerto; os nativos da Boa Vista consideram o futuro mais negativo e os
operadores mais positivo. Por seu turno, o nível de escolaridade demonstrou dados contraditórios já
que os entrevistados com maior nível de escolaridade apresentaram os valores mais elevados tanto
na perspetiva negativa como na positiva.
Se considerarmos a correlação entre a perceção do futuro e os fatores espaciais, verificamos
que são os entrevistados que espacialmente estão mais apartados da atividade turística que têm uma
perceção simultaneamente mais positiva e negativa, do que os que convivem e habitam mais perto
dos turistas. Por outras palavras, os resultados não confirmam os trabalhos de Pizam (1978), cujas
conclusões enunciam que onde quem reside e convive mais próximo dos turistas e da atividade
turística tem uma perceção mais negativa do turismo do que aqueles que têm menor convivência ou
contacto.
Já numa leitura que se pretenda aproximar da posição da Community Attachment de Harril
(2004), podemos referir que, uma vez que os caboverdianos são mais negativos e incertos que os
estrangeiros, e estes mais positivos que os demais, isto vai ao encontro da sua posição de, quanto
maior for o apego à comunidade, mais negativa é a atitude.
Podemos também verificar alguma proximidade com os pressupostos da teoria Growth
Machine, já que quem retira menos dividendos do turismo não o apoia na mesma medida daqueles
que daí retiram mais benefícios. Este resultado é sólido, dado que são, de facto, os nativos da Boa
Vista os que menos dividendos retiram da atividade turística, sejam eles económicos, ambientais ou
sociais.
Quanto à preposição da Teoria Excedente Altruísta, dada a reduzida incidência da perceção
positiva, não podemos falar numa ideia de bem maior que se sobreponha aos interesses das308
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
perceções particulares. Na verdade, a já referida negatividade dos nativos da ilha aponta no sentido
contrário, onde o desejo por um bem maior ao nível local se sobrepõe aos planos do bem nacional
planeados pelo Governo central.
Contrariando também a premissa da Representation Theory, a tolerância dos impactos
negativos face aos positivos não se confirmou; antes pelo contrário, uma vez que as perceções
foram claramente mais negativas, quantitativa e qualitativamente, que positivas.
Resta ainda analisar estes dados a partir da Social Exchange Theory. Desse modo,
consideremos os impactos positivos e negativos percecionados que foram apresentados. À partida,
poder-se-ia argumentar que os impactos negativos são praticamente o dobro dos positivos, e
portanto, é uma troca social desigual que justifica uma visão negativa quanto ao futuro. No entanto,
importa recordar que, por um lado, a perceção do futuro é maioritariamente incerta, e não negativa,
como seria de esperar, e a diferença entre as perceções negativa e positiva é de apenas cinco
entrevistados.
Por outro lado, a maioria dos impactos tanto positivos como negativos apenas obteve
menções num terço dos entrevistados. Isto significa que apesar da multiplicidade de impactos
percecionados, apenas quatro positivos e cinco negativos foram mencionados por mais de um terço
dos residentes; sugerindo, portanto, um equilíbrio se olharmos desde uma 'perspetiva de
preponderância'.
Nessa medida, emerge mais razoável o argumento de que, de facto, os entrevistados parecem
considerar uma avaliação próxima entre os impactos positivos e negativos, e assim, pender no
sentido do argumento da troca social. Recordamos que falamos de perceções e não de que os
impactos do turismo massificado na Boa Vista são igualmente positivos e negativos. De todo.
Estamos sim a colocar a análise das perceções destes mesmos impactos em perspetiva,
relativizando-os.
Em consonância clara com os dados de muitas investigações que procuravam comprovar a
SET, verificamos que os residentes que mais dependem do turismo toleram melhor os impactos
negativos ou sobrevalorizam os positivos. Referimo-nos ao caso dos residentes dos bairros
precários da Farinação e da Boa Esperança. A maioria dos trabalhadores dos grandes hotéis, das
empresas de construção, e de serviços dependentes do turismo, habitam nestes espaços que
padecem de profundas necessidades de infraestrutura, segurança, e higiene.
Os dados mostraram que era entre estes residentes estrangeiros e de outras ilhas de Cabo309
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
Verde que se encontravam as perceções de futuro mais positivas, depois dos operadores, e as menos
negativas na generalidade. Sendo, ainda de longe, os que apresentam maior incerteza, o que pode
ser explicado pela grande dependência destes grupos estrangeiros e oriundos de outras ilhas face à
atividade turística.
Com isto, defende-se que, dadas as condições de vida e de trabalho a que estão submetidos,
os residentes migrantes e estrangeiros da costa africana, a força de trabalho da ilha, toleram as suas
difíceis condições de vida e a incerteza quanto ao seu futuro em virtude da oportunidade laboral que
a ilha oferece. Sendo assim mais um exemplo que parece confirmar a SET e os trabalhos de Milman
e Pizam (1988), Ko e Stewart (2002), entre muitos outros.
Adicionalmente, foram os migrantes de outras ilhas os que menos impactos negativos foram
capazes de identificar, não chegando sequer a ser em nenhum deles os com maior incidência, e
foram os que mais mencionaram os três principais impactos positivos de cariz económico.
Concomitantemente, verificou-se que os residentes que mais benefícios colhem não são os
que mais impactos negativos são capazes de identificar, contrariando Lankford (1994) e Lawson et
al (1998). De facto, foram nativos da Boa Vista os que mais impactos negativos identificaram. No
entanto, os operadores são o sub grupo de residentes que maior representatividade tem nos impactos
negativos que identificou (sete dos dezanove).
Isto significa também que a hipótese “3” desta investigação, que propunha que o
crescimento da atividade turística resultaria numa perceção de que esta era uma alavanca sólida para
a economia local e nacional no futuro próximo, não se confirma. Aliás, as perceções são antes
toldadas por outras condicionantes.
De acordo com os resultados agora apresentados, é de considerar que as perceções dos
residentes são, antes de mais, condicionadas pelo proveito que estes retiram da atividade turística,
seja um proveito que resulte de uma situação de necessidade, lucro, cumprimento de calendário
político, etc.
Dadas as tamanhas alterações ao espaço, seja à estrutura da comunidade local, à economia, à
paisagem, e à preponderância da ilha da Boa Vista no âmbito nacional, a diferença entre resistência
e adaptação, ou se quisermos, aceitação ou não destas mesmas mudanças pela mão do turismo,
reside nas perceções que os seus residentes têm de como essas alterações os beneficiam ou não. Em
suma, quanto maior o proveito retirado, melhor a perceção e atitude para com o turismo e os seus
impactos.310
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
1. Da Governança na Boa Vista
A hipótese “4” deste trabalho sugeria que o não envolvimento da população local, ou mesmo
o fraco envolvimento, no planeamento e execução do desenvolvimento turístico da ilha, havia
conduzido a uma perceção de desilusão ou insatisfação generalizada face às expectativas criadas.
Em parte, sugeria parcialmente o contrário da hipótese “3”, e os resultados referentes à perceção do
futuro, assim como, a predominância dos impactos negativos e prioridades de intervenção conexas
direta e indiretamente à liderança política nacional e local, parecem confirmá-lo.
Se, com grande destaque, a necessidade de intervenção e investimento em infraestruturas
por parte do Governo e Câmara Municipal ocuparam as posições cimeiras da perceção do futuro,
não são menos importantes e válidas as restantes intervenções sugeridas. A variedade destas
contraria o discurso banalizado de como apenas os técnicos e especialistas públicos têm a
capacidade de identificar as lacunas e as prioridades para a sua correção.
Os nativos da ilha, com maior nível de escolaridade, profissionalmente ativos, residentes em
meio rural, em particular os mais jovens, tiveram maior e melhor capacidade de identificar soluções
ou, pelo menos, sugestões para tal. Em rumo contrário, os nativos de outras ilhas tiveram de longe
menos capacidade em identificar prioridades.
Todavia, resta destacar que, em resultado da presença do investigador no terreno,
consideramos que muitos dos impactos negativos apresentados poderiam ser corrigidos em termos
da ordem de importância. Desde logo, pela prioridade menos mencionada, ou seja, Regulamentação
e Legislação. É dizer, a não atualização das normas e regulamentos turísticos, e sobretudo, a
legislação que continua suspensa ou incompleta desde 1992, agem como uma barreira.
Um exemplo disto é a situação dos contratos-programa, um instrumento legal que funciona
como ferramenta para a cooperação entre poderes locais e centrais, forçando, se necessário, uma das
partes a colaborar com a outra se certas diligências legais forem cumpridas. Por outras palavras, os
desacordos entre o poder local da Boa Vista, de uma cor política, e poder central, de outra cor
política, são em grande medida umas das principais barreiras à correção de inúmeros problemas, e
nesse sentido, certos instrumentos legais como estes contratos-programa poderiam contornar as
divergências políticas e forçar a colaboração para benefício da comunidade local e do próprio
turismo.
Como já haviam alertado Allen et al. (1988), muitos Estados e governos locais, ao procurar
otimizar os benefícios económicos do turismo acabam por descurar os impactos sociais e311
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
ambientais do mesmo. A necessidade de uma monitorização contínua não é de todo uma novidade
mais ainda teima em reaparecer como um dado comum. O caso da Boa Vista é apenas mais um
exemplo gritante desta tendência.
O turismo sustentável emergiu como um objetivo paralelo ao desenvolvimento turístico
acelerado e massificado, sem que para tal tenham sido criadas as condições estruturais, tanto a nível
nacional como, em particular, local. E falamos de estrutura e não apenas de infraestruturas, ou seja,
faltam ferramentas de monitorização contínua das perceções dos impactos, da satisfação dos
residentes, operadores e turistas, e sobretudo, não existem plataformas de envolvimento e
negociação entre os intervenientes.
Estas condições acabam por agravar as perceções dos residentes e contribuir negativamente
na sua atitude face ao turismo, e a médio prazo, podem afetar a experiência dos turistas, colocando
em risco a continuidade do destino. Os passos mais importantes no sentido desta aproximação
exigem operadores e investidores cooperantes, assim como uma sociedade civil ativa e interessada,
mas acima de tudo exige a iniciativa do setor público, e depende das suas competências.
A política turística, enquanto conjunto de regras, linhas de orientação, diretrizes, leis,
objetivos e estratégias de desenvolvimento (Goeldner, Ritchie e McIntosh, 2000), deverá ser capaz
de conduzir à implementação de um destino turístico com os propósitos, expectativas e intenções
idealizadas. Atualmente, a preocupação central do turismo é que este seja sustentável. Em linhas
gerais isto significa que deve ser capaz de garantir um desenvolvimento que não ponha em causa as
gerações futuras. A sustentabilidade é reconhecida como dependente de pilares como sócio-cultural,
ambiental, económico, mas hoje reconhecem-se também outros dois igualmente preponderantes, a
política e a tecnologia (HwanSuk e Sirakaya, 2006).
A política procura renegociar constantemente os objetivos do desenvolvimento turístico
futuro, e é o principal motor de implementação de decisões que afetam um destino turístico e, por
arrasto, o seu sucesso. Isto implica um compromisso contínuo entre todos os intervenientes de modo
a que as comunidades, os Estados, os operadores, a sociedade civil e os próprios turistas vejam as
suas expetativas cumpridas sem pôr em causa a dos restantes grupos interessados e/ou afetados.
Este objetivo obriga a uma gestão dos destinos turísticos de forma integrada (Timur e Getz, 2002),
transparente e continuada.
Esta integração exige uma relação entre diferentes níveis de estruturas administrativas
governativas, tanto nacionais como locais, e vários intervenientes, pois, apenas deste modo se pode312
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
garantir uma aplicação prática da conceção moderna de governação (Paskaleva, 2003). Esta
conceção vai além da cooperação integrada entre as partes numa postura teórica; ela é capaz de
produzir respostas concretas para as problemáticas que invariavelmente vão surgindo num destino,
tal como é capaz de apresentar e aplicar iniciativas que mitigam problemas e potenciam capacidades
adquiridas.
Tal como ocorre na ilha da Boa Vista, a aposta no turismo massificado produziu alterações
profundas na malha urbana e na gestão quotidiana dos serviços básicos aos seus residentes, em
particular aos novos residentes, migrantes nacionais e estrangeiros. Entre competências municipais
e estatais, são os residentes que acabam por ser afetados pelas incapacidades destas instituições
político-governativas de desenvolver o seu trabalho em prol dos seus cidadãos, seja por litígios
políticos, incapacidade orçamental ou incompetência governativa.
A integração do desenvolvimento urbano e da implementação do turismo num espaço estão
intimamente ligados e são muitas vezes indissociáveis. Assim, é determinante criar condições de
diálogo, colaboração contínua entre as várias instituições governativas e, de forma conjunta e
integrada, desenhar e aplicar um plano turístico comum e sustentável (Hall, 2000; Healy, 1997).
A sustentabilidade do turismo é um contexto altamente politizado “thus, political support in
the form of legally binding commitments at the national and regional level is a critical element in
obtaining information, funding, education and expertise” (HwanSuk e Sirakaya, 2006:1278).
Adicionalmente, envolve muitos intervenientes, cada um dos quais com um papel importante no
sucesso da implementação do processo (Jamal e Getz, 1995: Hall, 1999).
Este planeamento integrado não é mais do que uma referência à Governança. Como
considera Hall (2008), o turismo enquanto principal plataforma económica de alguns Estados (em
particular nos Estados ilhéus), é demasiado importante para que as suas rédeas sejam conduzidas
por uma abordagem económica puramente liberal.
A governança é o mecanismo que melhor garante uma condução transparente e integrada por
parte das instituições públicas e privadas, e sem ela a tendência continuará a ser a fratura entre as
elites governantes e, por arrasto, uma fraca estrutura institucional que leva a um desenvolvimento
lento e fortuito (Tornell e Lane, 1999).
Relegar ou ignorar a preponderância do papel da governação é permitir que a
sustentabilidade de um destino, de uma região, e no caso deste estudo, de um país, dependa
aleatoriamente da “(...) happy juxtaposition of the right people and the right skills and sympathetic313
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
council” (Pearce, 2001:351) e não em estruturas e processos claramente definidos (Beaumont e
Dredge, 2010:4).
Existe, portanto, uma conexão mutuamente dependente entre governação e sustentabilidade.
Doxey (1976), Butler (1980), Ritchie (1993), Cooper (2002), Breakey (2005) entre muitos outros
autores, têm procurado essa aproximação, criando modelos que demonstram o dinamismo do
turismo tanto espacial como temporalmente, e apresentam algumas sugestões que procuram almejar
essa sustentabilidade.
Tais modelos procuram desenhar uma estratégia geral para os destinos turísticos, sendo
usados como ferramentas de diagnóstico, monitorização e implementação. Cada destino exige uma
fórmula própria, uma atenção particular e distinta de outros destinos. Essa fórmula deve ser
planeada, criada e implementada em conjunto com todos os intervenientes, numa dinâmica
simultaneamente horizontal e vertical.
No entanto, a individualidade de cada destino turístico não escapa a características comuns
que invariavelmente produzem efeitos idênticos ou semelhantes. Nessa medida, uma plataforma de
base comum deve ser procurada de forma a melhor proteger os destinos às suas influências, e claro,
corrigir os impactos e impactes diagnosticados e redefinir propósitos e metas. Tal plataforma, tem
de ser desenhada e implementada por um corpo de intervenientes envolvidos, empenhados e
capazes de partilhar ideias e ações que visem a sustentabilidade do destino. Esse corpo não é mais
do que um sinónimo para a governança.
A governança, enquanto abordagem holística de planeamento e desenvolvimento que
transforma as instituições e lhes atribui uma propensão e uma busca por uma sustentabilidade, e
enquanto processo e meta (Stanhope, 2000), não é mais do que um metáfora, “(...) to speak of
shifting the conventional role of institutions and shrinking the role of state” (Alipour et al, 2011:34).
No estudo realizado pela UNWTO sobre gestão de turismo em costa, em nove países
africanos, uma das principais observações foi a ausência de planos, políticas e estratégias ao nível
sub-nacional, ou regional. Como temos vindo a reforçar, isto é contraproducente, pois: “the
establishment of effective structures for delivering and managing sustainable tourism at a local level
is very important for the sustainability of the sector and for tackling issues of planning,
development control, enterprise engagement and community benefit” (UNWTO, 2013:27).
Também na ilha da Boa Vista o caso parece ser idêntico. As barreiras à governação são
várias e começam desde o nível governativo, é dizer, uma Constituição incompleta, as divergências314
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
político-partidárias e a ausência de um organismo público para a gestão e planeamento turístico à
escala regional, boicotam, à partida, uma governação inter-governamental pública transparente,
eficiente e eficaz.
Em resultado destas barreiras ao turismo, como afirma Murphy (1980), este continuará a ser
entendido na Boa Vista como uma atividade que usa a comunidade local como um recurso e a vende
como um produto, e, enquanto produto, a comunidade continuará a ser tida como um aglomerado de
recursos apresentados e consumidos em desacordo com as suas intenções, desejos e necessidades.
Dentro da postura da sustentabilidade as alternativas são várias, aliás, como o caso da
"community tourist product" apresentada por Murphy (1985), apresentada como a melhor forma de
garantir a satisfação e regresso dos visitantes, assim como, de garantir a sustentabilidade dos
destinos. Um princípio também partilhado por Lankford (1994) que afirma que para se alcançar um
consenso na política de turismo, é essencial considerar as perceções e preferências que coabitam na
comunidade.
Na investigação levada a cabo por Andriotis (2005) em Creta, este concluiu que entre a
comunidade existia uma clara procura por um aumento do investimento público e privado, e de
procura de apoio ao investimento na atividade turística da ilha. Na verdade, entre o grupo
empresarial e a comunidade local verificou-se uma elevada capacidade de definir objetivos e
soluções para as problemáticas vividas na ilha.
Tal como no caso da Boa Vista, confirmou-se que, dada a oportunidade, ambos podem
contribuir com inputs para o processo de planeamento e desenvolvimento do turismo na ilha: "this
confirms that tourism planning does not need to remain in the realm of the public sector, as happens
in many communities, but there is a need for community participation in tourism development and
planning as many past studies suggested" (Andriotis, 2005:13).
Uma das principais barreiras, em particular em países em desenvolvimento, é que o setor
público continua a esconder ou mascarar os impactos negativos do turismo de forma a garantir o
interesse de mais investidores e o crescimento do turismo (Tosun, 2002). A literatura dedicada ao
estudo do turismo tem reforçado que, pelo contrário, o envolvimento das comunidades e de outros
intervenientes acaba por mitigar ou até eliminar muitos dos impactos negativos (Pearce, 1998;
Brunt e Courtney, 1999; Cooper et al, 2006).
Essa falta de envolvimento justificará o facto da sociedade civil da ilha apresentar um
declínio da atitude positiva face ao turismo. A solução poderá passar pela criação de uma plataforma315
IX – Turismo na Boa Vista, uma Discussão
comum que permita lutar pelos seus direitos e que seja capaz de propor medidas concretas, ou a
comunidade local fica à mercê da boa vontade de investidores e instituições políticas, perpetuando o
status quo.
Por outro lado, o setor privado está também disperso, em particular as pequenas e médias
empresas, tornando-as incapazes de travar o peso dos grandes investidores e empresas estrangeiras,
sobrevivendo apenas dos nichos de mercado que os grandes operadores e hotéis vão deixando
passar por entre os dedos.
Do lado destes pesos pesados, o agravamento dos impactos negativos da sua presença
começam a pôr em causa a sustentabilidade do destino, e por arrasto a viabilidade económica do seu
investimento, mas, ainda assim, não existe um organismo comum capaz de forçar a mão dos
poderes públicos, concretamente, na construção e melhoramento de muitos serviços essenciais,
como vias de comunicação, hospitais, etc.
Brida et al (2011) defende que o turismo sustentável exige maior entrosamento entre os
setores público e privado, bem como, uma maior aposta do setor público na educação e formação
dos intervenientes, para que estes possam tomar melhores decisões fazendo uso de uma melhor
leitura da informação, dos riscos envolvidos, e participação na resolução de problemas comuns na
gestão do destino turístico. As sugestões concretas dos autores passam pela implementação de
oficinas de formação, debates públicos e a criação de eventos que facilitem o intercâmbio cultural
entre residentes e turistas.
Esta dispersão de interesses e capacidades tem acentuado as carências do destino
boavistense, afetando a vida da comunidade local e pondo em causa as mais-valias económicas que
produz para o país. É urgente a criação de uma plataforma de governança para que tais impactos(es)
e consequências sejam mitigados e até contrariados no futuro.
316
Conclusão
Conclusão
O turismo é uma atividade que abraça a história da humanidade, pelo menos, desde os
primeiros registos escritos na antiguidade clássica. Os primeiros grandes passos vieram com a
industrialização, com a propagação dos Estados-nação pela Europa, e enormes avanços
tecnológicos. Antes e depois dos conflitos mundiais solidificaram-se os seus processos, expandiu-se
e tornou-se gradualmente mais acessível. Com a retoma económica do 'velho continente' a atividade
iniciou um período de contínuo e acelerado crescimento que se propagou à escala global e aos
valores atuais.
À medida que o turismo se cimentou enquanto atividade comum, novas formas de definição,
legislação e burocratização foram acrescentadas e o turismo foi sendo, cada vez mais, do interesse
de Estados e das suas economias. Das inúmeras tentativas de definição, a atividade enriqueceu
disciplinas científicas trazendo à luz novos objetos de estudo e novas teorias. Também nesta
investigação procurámos contribuir com definições dos conceitos de turismo e de turista. Novos
estudos dedicados ao tema podem contar com definições transversais, coerentes, mas sobretudo
objetivas do fenómeno.
Também explanámos as principais tendências na abordagem ao turismo, destacando o
predomínio e influência da economia, os avanços e os contributos de várias ciências sociais, como a
Sociologia. Os principais focos da análise ao turismo foram divididos em três grandes grupos: o
institucional, o técnico, e o científico (ou académico). No foco científico destacámos os trabalhos
em torno da autenticidade, da importância da relação entre hóspedes e anfitriões, e os impactos
positivos e negativos mais comuns do turismo.
Após o debate em torno do 'património' teórico e metodológico, questionaram-se as
perspetivas dominantes e uni-direcionadas de algumas abordagens ao tema, em particular, a origem
e as consequências das abordagens puramente economicistas de fenómenos complexos como o
turismo. Toda esta explanação pretendeu também criar um texto compacto, mas minucioso, das
teorias e estudos de referência que possa ser útil a investigadores que no futuro tomem esta
atividade como objeto de estudo.
Intimamente associado e dependente da abordagem ao turismo, alguns conceitos-chave
foram introduzidos, contextualizados e debatidos, entre eles, os princípios e as consequências da
Modernidade e do processo de modernização pela mão do Desenvolvimento. Ao procurar a318
Conclusãomodernidade, apregoou-se a decepação das tradições e dos costumes, vangloriaram-se as benesses
do crescimento económico e social sem precedentes nos carris do desenvolvimento pela mão das
sociedades ocidentais.
Dissipado o nevoeiro ideológico, as nações em vias de desenvolvimento continuavam com
profundas necessidades e novas teorias e princípios foram procurados e exigidos; nomeadamente,
conceitos como a sustentabilidade, o desenvolvimento assente na riqueza dos recursos locais e da
capacitação das populações, catapultada pelo processo de globalização e liberalização económica.
Cabo Verde, assim como inúmeros outros países nessas circunstâncias, optaram pela aposta no
turismo internacional como resposta às suas debilidades.
Daí que, após definições de objetivos, tema, e debate teórico-metodológico, se tenha
contextualizado o caso deste arquipélago. A sua história, percurso ideológico e político após a
independência, e os avanços e opções na escolha e execução do seu plano de desenvolvimento
assente no turismo.
A Boa Vista, enquanto um dos palcos principais desta aposta, tem-se gradualmente apartado
da ilha periférica e dependente, para um dos motores da economia nacional; longe dos dias em que
a comunidade local se via forçada a emigrar, e os que permaneciam a executar atividades de
subsistência. Da população decrescente para uma multiplicação do número de habitantes, toda uma
mudança social que começou com a edificação do primeiro hotel, cujo alvo eram os turistas
internacionais, em 1996.
Desde então, e particularmente desde a expansão do aeroporto local para internacional, os
hotéis de regime tudo-incluído, com capacidade para milhares de turistas, têm mudado a face da
ilha. Novas oportunidades de emprego, crescimento económico, novos serviços, entre outras
vantagens, têm coexistido com aumento da criminalidade, pressão sobre recursos e infraestruturas,
surgimento de bairros degradados, etc. Daí que se mostrava vital determinar quais os impactos
percecionados pelos residentes e procurar indícios que corroborassem ou contrariassem essas
mesmas perceções.
Igualmente, determinaram-se as motivações que turistas tinham em visitar a ilha e quais
aquelas que eram percecionadas pelos mesmo residentes. Os residentes mostraram, grosso modo,
ter discernimento quanto às motivações principais dos turistas, ainda que tenham sobrevalorizado
os seus traços culturais como motivo de particular interesse para os visitantes. Estes, por sua vez,
demonstraram pouca vontade em regressar à Boa Vista, e mesmo ao arquipélago.
319
ConclusãoCaminhando para o final deste trabalho, revelaram-se as baixas expetativas da comunidade
local para com o futuro da sua ilha. Da negatividade à incerteza, apenas uma minoria vê o futuro
como risonho. No entanto, os residentes entrevistados mostraram serem capazes de identificar
várias justificações para a situação atual e indicar as prioridades de intervenção necessárias para o
almejar de um futuro melhor.
O foco das suas sugestões centrou-se na necessidade de edificação e expansão de
infraestruturas básicas e serviços necessários para a melhoria da sua qualidade de vida; na criação
ou atualização de programas de saúde, segurança e potenciação de capital humano local; e ainda, na
necessidade de revisão das leis e regras que regem o turismo e os programas de financiamento e
apoio às empresas e seus negócios.
De toda esta informação recolhida e resultados analisados, comparámos com a literatura de
referência e estudos semelhantes, e revelámos as particularidades e os pontos comuns do caso da
Boa Vista e de outros destinos internacionais. Das várias alternativas disponíveis para abordar os
dados recolhidos nesta investigação à ilha da Boa Vista, no arquipélago de Cabo Verde, procurou-se
testar as diversas propostas. Deste esforço concluiu-se que, por um lado, existem de facto
características sócio-demográficas que condicionam a atitude dos residentes face ao futuro.
Por outro lado, algumas teorias de autores de referência encontraram eco neste estudo de
caso como a SET, a Community Attachment, e a Growth Machine. Já a Teoria Excedente Altruísta,
ou os argumentos espaciais de Pizam, não só não encontraram eco, como revelaram resultados
contrários. Tais resultados demonstram a variedade, multiplicidade, e disparidade de resultados, e
sublinham a necessidade de um acompanhamento contínuo e adaptado, e não uma estandardização
nas correções ou ajustes paliativos.
Neste sentido, sugere-se uma continuidade na recolha de dados de modo a confirmar os
dados desta investigação e um aprofundamento das suas implicações, contribuindo com ferramentas
e indicadores úteis ao planeamento contínuo deste destino turístico e da sua comunidade residente.
Enquanto veículo para a modernização e desenvolvimento do arquipélago de Cabo Verde, o
turismo massificado tem produzido impactos que moldam a perceção dos residentes, a sua relação
com a atividade e a sua atitude para com os turistas e o turismo. Dessa conexão, têm emergido
práticas que são exemplo de resistência e de adaptação. As de resistência têm contornos de
contestação pelos direitos dos residentes, em particular, os nativos da Boa Vista, têm direito à
proteção social e cultural e a um turismo de maior proximidade para com as populações, a discursos
320
Conclusãode responsabilização política dos impactos negativos, e a um posicionamento contra a aculturação
dos produtos culturais consumíveis.
As de adaptação têm passado, por exemplo, pela acentuação da estandardização dos serviços
e da sua qualidade, por um acentuar da comercialização das relações, pela criação de empresas e
negócios assentes no turismo, etc. Posições fortemente condicionadas pela perceção que os
residentes têm do proveito que retiram da atividade turística.
Um dos pontos de maior destaque nesta investigação foi também, sem dúvida, a separação
da comunidade local nos processos de planeamento e execução do destino turístico. Apesar de
largamente demonstrado em inúmeros estudos nas últimas décadas, o papel da comunidade local e a
importância do seu envolvimento e capacitação é largamente ignorado na Boa Vista, tanto pelo
Governo central como pelo Governo local.
Envolver implica associar estas comunidades nos planos e na gestão dos espaços,
procurando cruzar os seus desejos e necessidades com a viabilidade ambiental e económica dos
empreendimentos turísticos e negócios conexos. Determinar quais os desejos e necessidades exige
determinar, recolher e analisar indicadores de qualidade de vida, satisfação e atitude destas
comunidades para com o turismo.
Das lições retiradas, reconhecemos a urgência na continuidade da recolha de indicadores do
status quo do destino junto da sua comunidade e visitantes, a importância do papel dos residentes
no sucesso e sustentabilidade do destino e consequente melhoria da qualidade de vida dos
habitantes da Boa Vista, e por arrasto, de Cabo Verde. Ademais, lições que podem e devem ser
consideradas em ilhas consolidadas turisticamente, como o Sal, e, sobretudo, em ilhas apontadas
como novos destinos de impacto, como a ilha de Maio.
Contributos para uma Reflexão sobre Intervenção
(...) well conceived and well articulated but realistic tourism policy objectives; local involvement andcontrol over tourism development; forging private-public sector partnerships for tourism development;raising gender awareness to enhance women participation in the tourism sector; promoting regionaltourism co- operation and integration; availability and allocation of appropriate resources (e.g. financial,human, product); developing equity in tourism benefits-sharing; promoting community tourism awarenesscampaign; availability of appropriate legal framework for tourism; building image of a destinationthrough a marketing and promotional campaign; expanding tourism entrepreneurial initiatives/investmentopportunities. (Dieke, 2000:11)
De acordo com Adorno e Horkheimer (1947) da Escola de Frankfurt93, há que fazer uma
93 Movimento para um novo paradigma de investigação, Teoria Crítica, também influenciada por autores como WalterBenjamin e Jürgen Habernas, entre outros.
321
Conclusãocrítica ao turismo como modelo de desenvolvimento de localidades. Os autores recordam como as
sociedades contemporâneas, e as ciências, abraçaram o positivismo, e como este as tem
influenciado. Ao contrário da teoria crítica de Marx e da sua dialética, que coloca o homem no
centro, no positivismo cartesiano o homem é visto como mero meio para o lucro. Desta forma, a
razão instrumental é deturpada e torna-se razão alienada conduzida pela ciência positivista que, por
sua vez, leva a que os aspetos económicos e financeiros tomem precedência na tomada de decisões.
Em última análise, as relações sociais são pautadas pela eficiência e eficácia em detrimento dos
valores humanitários.
A influência do positivismo na relação entre turismo e desenvolvimento torna-se clara
quando consideramos como o subdesenvolvimento era considerado um mero estágio para o
desenvolvimento. Uma noção que justificava a reprodução do servilismo dos períodos anteriores
(Lopes et al, 2012:117). Se aplicada ao turismo, a crítica de Adorno e Horkheimer sugere que este
pode estimular a comercialização de formas culturais locais, impedindo a formação de indivíduos
autónomos ao conduzir os homens a uma sensação confortável de que o mundo está em ordem num
tipo de satisfação compensatória (Lopes et al, 2012:112), onde: “divertir significa sempre não ter
que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua
própria base” (Adorno e Horkheimer, 1985:119).
“As horas de lazer, portanto, proporcionam um sentimento de satisfação aos envolvidos que
contribuem para controlar as ações dos mesmos, onde para perpetuar o prazer, não devem mais
exigir esforço, reflexão” (Lopes et al, 2012:113). Estas conclusões vão ao encontro da postura de
Urry (1990) e Bacal (2003), onde a imagem é mais valorizada que a experiência turística, as provas
da experiência são destacadas em detrimento das vivências possíveis. A comprovação sobrepõe-se à
necessidade.
Recuperando os contributos de Marx, este argumenta que o trabalho é o elemento que
produz e reproduz a humanidade; ao produzir realidade material ele torna-se um agente
transformador. A produção de meios de subsistência e a determinação da sua consciência coletiva
segundo o interesse das classes, conduziu a uma história moldada pela divisão do trabalho. Nessa
linha, as várias divisões do trabalho retiraram o homem de um estágio original de igualdade e para
retomar essa rota perdida é necessária uma nova e final rutura.
O não-trabalho é entendido como uma arma para a igualdade, democracia e justiça dos
povos, já que essas atividades permitem que ricas relações culturais surjam e sejam espalhados os
322
Conclusãocostumes que marcam a força de cada população segundo o desenvolvimento das relações de
produção: “a vida lúdica que permeava o estilo das sociedades 'primitivas' torna-se novamente o
elemento básico para entender a sociedade socialista: o trabalho é colocado como benefício
coletivo, e não individual” (Filho, 2004:157).
Concordamos com o autor quando este reconhece que a luta pelo não-trabalho enquanto
benefício e direito coletivo foi parte integrante da resistência marxista à apologia do trabalho
disseminada pela sociedade burguesa, ainda que uma parte subentendida, já que o foco se prendia
mais na questão do trabalho do que com a do não-trabalho. No caso desta investigação, o direito ao
não trabalho por parte dos turistas, e o direito ao trabalho por parte dos residentes,
A aposta no turismo de massas na ilha da Boa Vista emergiu como estratégia de alívio
orçamental nacional e não tanto como uma luta pelo direito ao trabalho, ou ao não-trabalho, numa
batalha pela igualdade. O tabuleiro neoliberal é uma realidade, talvez até uma fatalidade, mas isso
não pode justificar a apatia da sociedade civil, ou o descarrilamento estratégico do planeamento,
nem a maximização dos dividendos como fim que se justifica a si próprio.
O que pretendemos não é apontar o óbvio e descrever os impactos negativos económicos,
sociais e ambientais que o turismo massificado planificado trouxe à ilha. É também verificar que,
como em vários casos internacionais e de conhecimento alargado, foram cometidos erros comuns,
sendo a fonte desses erros descurar a importância da componente social.
Não existem dúvidas quanto ao valor da atividade turística nas contas de Cabo Verde. Os
dados são claros e mostram como o turismo tem contribuído para o crescimento do país. Ao nível
nacional, a ilha da Boa Vista é um exemplo de abrandamento dos movimentos migratórios, do
aumento da criação de empresas e postos de trabalho, bem como, da melhoria dos transportes e
alguns serviços. Naturalmente, se a isto chamarmos desenvolvimento, então, a ilha, e por arrasto o
país, tem bebido do turismo em boa medida.
No entanto, a realidade é mais do que a soma dos números. Ela é muito mais complexa que
algoritmos financeiros e económicos que procuram responder às necessidades macroeconómicas de
um país, bem como, às ambições políticas de partidos e ambições económicas de empresas. O
elemento humano é o denominador e não a variável controlada que muitas vezes é adicionada a
planos e estratégias institucionais nacionais e supra-nacionais.
Como se fez menção no segundo capítulo, o turismo é uma atividade que continua
profundamente dominada pelo setor económico, condição essa largamente agravada pelas previsões
323
Conclusãoidealistas de organismos internacionais como a OMT, que "empurram" países em vias
desenvolvimento no trilho do "desenvolvimento acelerado" pela mão do turismo. É ainda comum
descurar-se que os grandes exemplos de sucesso do turismo advêm de países já desenvolvidos.
Estes conseguem aumentar a eficiência das atividades nos destinos oferecidos devido à tecnologia,
conhecimento, recursos e capital de que dispõem, escapando a boa parte das "fugas" (leakages).
Apostar no desenvolvimento turístico massificado tendo como base esses exemplos é um
esforço que leva muitas vezes ao fracasso e agravamento de precariedades. Por outro lado, esses
mesmos exemplos têm sido difundidos à escala global por todo tipo de cientistas das mais variadas
disciplinas. Não é viável o argumento de desconhecimento dos efeitos, consequências e impactos
desta atividade ao nível nacional, regional ou local.
São hoje milhares os estudos de caso e investigações sobre o turismo; estes cobrem todos os
continentes e podem, na sua maioria, ser gratuitamente acedidos. Foi da voz dos residentes que se
concluiu existir a perceção de uma subestimação dos impactos do turismo na ilha, apesar de todo
esse conhecimento disponível.
Mais uma vez, o objetivo desta investigação não era avaliar as políticas públicas e as
medidas governamentais ou municipais; assim, há que recordar também o papel do setor privado,
em particular das grandes empresas hoteleiras e operadores internacionais, que como vimos no
capítulo anterior, são o único grupo que largamente apoia a atividade e vê nela um futuro positivo.
Dada a experiência destes grupos na atividade, seria de considerar uma maior exigência na garantia
da segurança e higiene, não apenas dos seus clientes, mas em particular dos seus trabalhadores e
suas famílias.
Quando as exigências se circunscrevem a infraestruturas de comunicação, a aeroportos e à
edificação de um "hospital", e certas garantias económicas, fica claro que estas empresas encontram
em si mesmas e nos seus clientes as suas prioridades. Ainda que não seja da sua responsabilidade a
qualidade de vida dos habitantes da Boa Vista, a sua experiência e conhecimento na atividade
poderia ter valido outras condições que atenuariam os graves problemas sociais que a ilha hoje vive.
Por fim, da parte dos residentes, ou se quisermos da sociedade civil da Boa Vista, ficam
algumas notas que vale a pena recordar e sublinhar. A comunidade demonstrou ser passiva face aos
acontecimentos e consequências que derivaram do turismo na ilha, em particular após a chegada do
turismo massificado. A desorganização associativa é apenas um dos problemas que necessitam de
ser revistos. Uma comunidade unida e associada em defesa dos seus direitos e deveres é garantia de
324
Conclusãoum movimento de equilíbrio face à melhoria da sua qualidade de vida.
Com isto, pretendemos afirmar que nos vários quadrantes da sociedade existem alterações,
pese embora que as mais urgentes e necessárias partam das instituições públicas. Nessa linha,
importa agora contribuir com sugestões que contribuam para um desenvolvimento boavistense que
seja mais sustentável e desejável que o corrente. Apresentamos então dez medidas ou prioridades:
1) Da parte das instituições públicas centrais urge, sem sombra de dúvida, uma produção
legislativa e regulamentar clara e transparente, por exemplo, nos já destacados contratos programa e
ferramentas semelhantes, bem como, em particular para a atividade turística, na definição de
regulamentação costeira, áreas protegidas, concursos públicos, contratos de trabalho, proteção do
comércio local e produtos artesanais locais e nacionais;
2) Em igual medida, são necessárias infraestruturas de base que podem e devem ser
definidas e terminadas em coordenação com o poder regional. O futuro do turismo em Cabo Verde
depende do sucesso e da sustentabilidade da ilha da Boa Vista. Argumentos numéricos e
quantitativos não são válidos neste caso, dada a especificidade económica desta ilha. Uma melhor
Boa Vista conduz a um melhor turismo no país a longo prazo. Falamos de escolas, vias de
comunicação e outros serviços essenciais já mencionados;
3) Uma última medida que está intimamente dependente do Governo central é a formação e
qualificação de pessoas, que se encontra apenas disponível na universidade pública ou nas próprias
empresas hoteleiras. Nessa medida sugere-se a criação de um polo universitário, na ilha, para ensino
a distância ao nível das licenciaturas e a disponibilidade de formações técnicas em articulação com
o setor privado. Formações essas criadas a pedido das necessidades do setor privado;
4) Um outro ponto de articulação com o poder regional seria a criação de um espaço que
concentrasse todos os serviços e informações necessárias para empresas relacionadas com o
turismo, uma espécie de loja do investidor, que facilitaria o surgimento de novos investidores e
projetos, tanto nacionais como internacionais. Tal espaço poderia também criar formações na área
de empreendedorismo e gestão de empresas;
5) Já de forma independente, o poder local, antes de mais, deve criar um barómetro do
turismo independente do nacional, capaz de acompanhar os indicadores essenciais de avaliação do
turismo. Uma ferramenta que não recolha e analise apenas índices empresariais, mas também a
satisfação de turistas e residentes;
6) Adicionalmente, a presença de representantes da Câmara Municipal e forças de
325
Conclusãomanutenção de ordem pública nas ruas durante os horários de maior movimento nas ruas de Sal-
Rei, é da maior importância. Uma maior regulamentação e fiscalização garante uma perceção de
segurança e tranquilidade aos visitantes da ilha que atualmente são importunados e afugentados por
vendedores ambulantes ilegais e vendedores que “empurram” os turistas para as suas lojas de
produtos artesanais externos;
7) Nessa mesma linha, a demarcação de produtos regionais, sejam alimentares ou objetos
decorativos ou artesanais, seria uma grande mais-valia; por um lado, os turistas que procuram esses
mesmos produtos teriam uma referência clara quanto à sua “legitimidade”, e por outro lado, criaria
oportunidades de negócios ao nível local. Idealmente, outros produtos nacionais seriam também
dispostos e claramente protegidos e identificados para consumo dos visitantes;
8) Uma quarta medida sugerida especificamente à Câmara Municipal da Boa Vista será a
requalificação dos espaços públicos. A disposição dos espaços públicos e zonas comerciais da vila
de Sal-Rei não considera de forma satisfatória as necessidades e exigências dos espaços turísticos.
Não sendo a cidade de Sal-Rei apenas um destino turístico, ela é sobretudo uma montra para o
mesmo. Até à data, poucas ou nenhumas alterações ao espaço têm considerado com igual peso as
necessidades dos residentes e dos visitantes. Tais requalificações vão da urgência de casas de banho
públicas a espaços exclusivamente pedonais. Uma nota extra seria a deslocalização dos espaços de
comércio alimentar para zonas paralelas à praça principal, sendo esta reservada primordialmente
para comércio artesanal e sobretudo restauração e entretenimento;
9) Da parte da sociedade civil, a medida mais evidente seria a criação da já referida
plataforma social e associativa da Boa Vista, um organismo capaz de agregar as associações locais
com o objetivo de criar e partilhar soluções para as problemáticas sociais que as instituições
públicas e setor privado não são capazes de solucionar; assim como, garantir a existência de um
olhar apartidário sobre as problemáticas sociais da ilha, lutando pelos deveres e direitos dos
associados e cidadãos da ilha da Boa Vista;
10) Note-se a inexistência de medidas específicas para o setor privado; no entanto, as
medidas acima sugeridas afetariam positivamente estas empresas e a qualidade de vida dos seus
empregados. Sendo este o setor com “maior músculo”, é da sua competência e responsabilidade
colaborar nesse sentido.
É também do seu interesse que os residentes, assim como os turistas, tenham uma perceção
mais positiva do turismo, como sugerem Eusébio e Carneiro (2010). Só dessa forma se garante a
326
Conclusãosustentabilidade do destino. Nessa medida, sugere-se que em colaboração com a sociedade civil, ao
nível associativo, se criem condições para uma maior e melhor interação entre turistas e residentes.
Estas podem emergir pela multiplicidade de serviços aos clientes que os aproxime dos
residentes, no caso dos operadores, mas também, pelas oportunidades de trazer aos hotéis locais,
por exemplo, cidadãos seniores e menores a conhecer os espaços, e não apenas convidar elites
locais, ou através do apoio de projetos sociais e desportivos.
Poderíamos acrescentar outras propostas interessantes, mas corria-se o risco de se perder o
foco das prioridades. Por esse motivo, apresentámos apenas estas contribuições que acreditamos
conduziriam a ilha da Boa Vista, enquanto comunidade e enquanto o destino turístico, a um futuro
mais transparente, sustentável e desejável para todos os intervenientes, residentes e visitantes.
327
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Anexo A: Guião de Entrevista
Operadores1) Dados pessoais: Nacionalidade, Idade, Género;
2) Profissão (ramo profissional – se operador, político, interveniente, etc.):Tempo que desempenha essas funções e a sua relação com o turismo;
3) Motivações/Expectativas e Perceções: (Se estrangeiro - Por que motivo veio para Cabo Verde e em particular esta ilha, o que o atraiu aCabo Verde, que pensa de Cabo Verde;) Quais os pontos fortes/fraquezas/potencialidades deste país e desta ilha?
4) Perceção face ao turismo: Como classifica o turismo enquanto atividade económica, porquê?No caso concreto desta ilha e deste país, quais os pontos positivos e negativos/vantagens edesvantagens?Qual pensa ser a melhor forma de enaltecer esses pontos positivos e minorar os negativos?; O que mudou na sociedade com este investimento no turismo? Dado o presente rumo quais as consequências que o investimento/gestão do turismo terá nestepaís/ilha dentro de 20 anos? Porquê?;
Residentes1) Dados pessoais: Nacionalidade, Idade, Género, Profissão (ramo profissional e sua relação com o turismo);
2) Motivações/Expectativas: Por que motivo pensa que os turista vêm para Cabo Verde e em particular esta ilha, o que os atraí aCabo Verde? Que pensaram de Cabo Verde e dos caboverdianos, e o que esperam de Cabo Verde?;
3) Discurso retrospetivo da experiência: Como descreveria a sua experiência em Cabo Verde, quais os seus aspetos positivos/negativos/potencialidades, e porquê? Dado o presente rumo quais as consequências que o investimento/gestão do turismo terá nestepaís/ilha dentro de 20 anos? Porquê?;
4) Perceção face ao turismo: Como classifica o turismo enquanto atividade económica, porquê?No caso concreto desta ilha e deste país, quais os pontos positivos e negativos/vantagens edesvantagens?Qual pensa ser a melhor forma de enaltecer esses pontos positivos e minorar os negativos?
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