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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Dafne Di Sevo Rosa Paris: sempre um mito ou talvez... São Paulo 2019

Paris: sempre um mito ou talvez... - Mackenzie

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Dafne Di Sevo Rosa

Paris: sempre um mito ou talvez...

São Paulo

2019

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DAFNE DI SEVO ROSA

Paris: sempre um mito ou talvez...

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie como

requisito parcial para obtenção do

título de Doutora em Letras.

Orientação: Profª. Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik

São Paulo

2019

R788p Rosa, Dafne Di Sevo.

Paris : sempre um mito ou talvez-- / Dafne Di Sevo Rosa. 211 f. : il. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana

Mackenzie, São Paulo, 2019.

Orientadora: Maria Luiza Guarnieri Atik. Referências bibliográficas: f. 204-211.

1. Paris. 2. Mito. 3. Imaginário coletivo. 4. Vênus. I. Atik,

Maria Luiza Guarnieri, orientadora. II. Título. CDD 808.8015

Bibliotecária Responsável: Eliana Barboza de Oliveira Silva - CRB 8/8925

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A meus pais, por me ensinarem a sonhar.

AGRADECIMENTOS

A Deus por todos os privilégios a mim concedidos, por sempre me dar a

sua mão e dar indícios de sua presença em minha vida.

À Maria do Carmo Di Sevo, minha mãe, por dividir comigo o amor por

Paris e a admiração pelas obras de Woody Allen. Mãe, uma vez me disseram

que meu pior defeito era querer ser como você, porém se eu não tivesse você

como minha inspiração e modelo, certamente, eu não teria chegado até aqui.

A meu pai, José Joaquim Rosa, por me formar como leitora e por sua

erudição tão impulsionadora e estimulante. Pai, sua sabedoria e avidez cultural

me influenciaram a vida toda e me fazem ser uma professora melhor, todos os

dias.

À Profª Drª Maria Luiza Guarnieri Atik, pela confiança depositada em mim

desde a época do Mestrado. Professora, tive o privilégio de concluir um ciclo

importantíssimo em minha vida ao lado da senhora. Seu apoio e seus muitos

conselhos foram fundamentais para minha formação acadêmica e profissional.

Agradeço pelo carinho, pelas risadas e pela cumplicidade sempre presentes nas

minhas orientações.

À Profª Drª Elaine Cristina Prado dos Santos, minha eterna Magistra, por

me apresentar à Antiguidade Clássica de uma maneira tão contagiante.

Aos demais membros da Banca Examinadora: Profª Drª Aurora Gedra

Ruiz Alvarez, Profª Drª Renata Philippov e Profª Drª Sandra Margarida Nitrini.

Agradeço a leitura atenta das minhas análises e as valiosas sugestões para

desenvolvimento da minha pesquisa.

A meu irmão, Guilherme Di Sevo Rosa, por ser testemunha de cada um

dos meus passos e das minhas conquistas. Por dividir comigo tantas lembranças

e memórias da infância e adolescência e por estar sempre ao meu lado.

A meu namorado, Rafael Alexandre Chirstino Cabral, pela admiração e

pelo incentivo incondicionais. Rafael, obrigada por todo amor e companheirismo

dedicados a mim diariamente.

À Universidade Presbiteriana Mackenzie e ao Mackpesquisa por todo

incentivo dado a mim ao longo da minha formação acadêmica e a bolsa de

estudos que me permitiu concluir meu Doutorado.

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Nunca vemos Paris pela primeira vez;

sempre a vemos novamente.

Edmondo de Amicis

RESUMO

Sinônimo de Cidade-Luz, Paris é uma das capitais mais conhecidas pela

humanidade. Muito antes da globalização, que eliminou fronteiras, a cidade já

era considerada um paradigma social, econômico, cultural, político e da moda

por diversas civilizações. Entretanto, no século XIX, Balzac, em a Comédia

Humana, apresenta ao leitor sua visão realista e sarcástica da cidade,

contrariando a concepção idealizada do público. No enredo de uma das suas

novelas, A menina dos olhos de ouro, o romancista caracteriza a cidade não só

apontando sua corrupção de valores morais e éticos, mas também salientando

as inúmeras possibilidades oferecidas por ela a seus habitantes. Vivenciando a

duplicidade de Paris exposta por Balzac, aproximadamente um século depois,

Ernest Hemingway transformou suas experiências na cidade no romance

autobiográfico Paris é uma festa, no qual apresenta de maneira enaltecida e

glorificada a cidade, a partir de suas memórias de quando era jovem. Paris é,

aos olhos do romancista, a capital que reconstrói a confiança de inúmeros

artistas americanos impactados de variadas formas pelas consequências

ocasionadas pela Primeira Guerra Mundial. Mais recentemente (em 2011), o

público pode ficar extasiado com os anos 1920 de Hemingway e toda a Geração

Perdida, ao contemplar o longa-metragem de Woody Allen Meia-noite em Paris.

Apesar de sua estética aparentemente realista, o protagonista do filme, Gil, é

surpreendido com o privilégio de poder voltar no tempo e compartilhar alguns

momentos junto com personalidades como Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e o

próprio Hemingway em uma Paris tanto insólita quanto real, na mesma

proporção fruto de um devaneio e concretizada por suas ruas e avenidas

movimentadas e iluminadas. É por meio de obras com perspectivas dispares

sobre a cidade, como as três analisadas nesta tese, que Paris habita o

inconsciente coletivo se tornando mais do que uma capital europeia. Pretende-

se no decorrer das análises apresentar a transfiguração de Paris em um mito

moderno. Para isso, as teorias desenvolvidas por Carl Jung, Roland Barthes,

Joseph Campbell sobre mito e aquelas referentes ao cinema elaboradas por

Edgar Morin e André Bazin, assim como as contribuições de Sartre, David Roas,

Walter Benjamin, entre tantos outros estudiosos da literatura e outras áreas do

conhecimento serão fundamentais para o aprofundamento das análises, para a

comparação entre os textos e, consequentemente, para a interpretação de cada

um deles.

Palavras-chave: Paris. Mito. Imaginário coletivo. Vênus.

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RÉSUMÉ

Synonyme de Ville-Lumière, Paris est une des capitales les plus connues de

l´humanité. Bien avant la mondialisation qui élimina les frontières, la ville était

déjà considérée comme un paradigme social, économique, culturel, poilitique et

de la mode par plusieurs civilisations. Cependant, au XIXème siècle, Balzac,

dans la Comédie humaine, présente au lecteur sa vision réaliste et sarcastique

de la ville, contredisant la conception idéalisée du public. Dans l´intrigue d´un de

ses romans, La fille aux yeux d´or, le romancier caractérise la ville non seulement

en pointant du doigt la corruption des valeurs morales et éthiques mais aussi en

nous faisant remarquer les innombrables opportunités qu´offre la ville à ses

habitants. En vivant la duplicité de Paris exposée par Balzac, approximativement

un siècle plus tard, Ernest Hemingway transforma ses expériences de la ville

dans le roman autobiographique Paris est une fête dans lequel il la présente de

manière exaltée et glorifiée à partir de ses souvenirs de jeunesse. Paris est aux

yeux du romancier la capitale qui reconstruit la confiance d´innombrables artistes

américains impactés sous diverses formes par les conséquences de la Première

Guerre Mondiale. Plus récemment (en 2011) le public peut être extasié par les

années 20 d´Hemingway et toute la Génération Perdue, en contemplant le long

métrage de Woody Allen, Minuit à Paris. Malgré son esthétique apparemment

réaliste, le protagoniste du film, Gil, est surpis par le privilège de pouvoir retourner

dans le temps et partager quelques moments avec des personnalités comme

Gertrude Stein, Scott Fitzgerald et le propre Hemingway dans un Paris tout autant

insolite que réel, dans la même proportion résultante d´une rêverie et concrétisée

par ses rues et avenues mouvementées et illuminées. C´est par le biais

d´oeuvres aux perspectives focalisées sur la ville comme les trois analysées dans

cette thèse que Paris habite l´inconscient collectif en devenant plus qu´une

capitale européenne. Au long de ces analyses, nous présenterons la

transfiguration de Paris en un mythe moderne. Pour cela, les théories

développées par Carl Jung, Roland Barthes et Joseph Campbell sur le mythe,

les références au cinema élaborées par Edgar Morin et André Bazin, ainsi que

les contributions de Sartre, David Roas et Walter Benjamin, entre autres études

de littérature et autres champs de connaissances seront fondamentaux pour

l´approfondissement des analyses pour la comparaison de textes et, par

conséquent, pour l´interprétation de chacun d´entre eux.

Mots Clés: Paris, Mythe, Imaginaire collectif, Vénus.

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Lista de Ilustrações

Figura 1 – Boulevard Sébastopol..................................................................... 29

Figura 2 – Vênus de Milo………………………………………………………...... 40

Figura 3 – Afrodite de Cnido............................................................................ 41

Figura 4 – Hefesto na Forja............................................................................. 42

Figura 5 – Rue Montmartre. Saint-Claude …………………………………....... 47

Figura 6 – Tournelle, Ponte Louis-Philippe…………………………………...... 52

Figura 7 – Arco do Triunfo ……………………………………………………….. 55

Figura 8 – Palácio do Senado. Jardim de Luxembourg.................................. 62

Figura 9 – La Concorde …………………………………................................... 63

Figura 10 – Construção da Torre Eiffel………………….………………...……. 67

Figura 11 – Louvre.......................................................................................... 68

Figura 12 – Colonne Vendôme....................................................................... 73

Figura 13 – Café des Amateurs ..................................................................... 83

Figura 14 – Le viaduct à L’ Estaque................................................................ 85

Figura 15 – Maisons à L’ Estaque................................................................... 85

Figura 16 – Closier des Lilas........................................................................... 86

Figura 17 – Gare du Nord............................................................................... 88

Figura 18 – Wyndham Lewis........................................................................... 89

Figura 19 – Ernest Hemingway ……………………………………………........ 99

Figura 20 – Voyer........................................................................................... 102

Figura 21 – Jardin de Luxemburg.................................................................. 104

Figura 22 – Os jogadores de cartas............................................................... 105

Figura 23 – Vélodrome d’Hiver...................................................................... 106

Figura 24 – Arc du Triomphe......................................................................... 108

Figura 25 – Neve no Jardim de Luxemburg................................................... 112

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Figura 26 – Hemingway e seu filho Bamby, 1924.......................................... 114

Figura 27 – Hemingway e Bamby.................................................................. 115

Figura 28 – Rio Sena e Ponte Neuf............................................................... 118

Figura 29 – Gertrude Stein com Alice em seu estúdio.................................. 120

Figura 30 – Gertrude Stein e Alice................................................................ 123

Figura 31 – Hemingway................................................................................ 134

Figura 32 – Cartaz europeu.......................................................................... 136

Figura 33 – Noite estrelada........................................................................... 137

Figura 34 – Cartaz brasileiro......................................................................... 140

Figura 35 – Gil e Allen................................................................................... 142

Figura 36 – Cole Porter................................................................................. 144

Figura 37 – Adriana e Gil.............................................................................. 150

Figura 38 – Hemingway de Woody Allen...................................................... 153

Figura 39 – Versalhes………………………………………………………….... 174

Figura 40 – O pensador…………………………………………………………. 176

Figura 41 – Musée Rodin……………………………………………………….. 177

Figura 42 – Rue Montagne St. Geneviève .…………………………………... 177

Figura 43 – Rue Montagne St. Geneviève: início do século XX................... 178

Figura 44 – Waltter Lilies.............................................................................. 179

Figura 45 – Obra de Picasso........................................................................ 181

Figura 46 – Gil.............................................................................................. 182

Figura 47 – Gil e Adriana.............................................................................. 185

Figura 48 – Gil em close............................................................................... 186

Figura 49 – Gil conhece Hemingway............................................................ 188

Figura 50 – Exposição Gustav Klimt............................................................. 197

Figura 51 – Exposição van Gogh.................................................................. 198

Figura 52 – Paradoxo temporal..................................................................... 198

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Figura 53 – Liberdade, Igualdade e Fraternidade I....................................... 199

Figura 54 – Liberdade, Igualdade e Fraternidade II...................................... 199

Figura 55 – Gilets Jaunes.............................................................................. 200

Figura 56 – Inferno parisiense....................................................................... 200

Figura 57 – Caos parisiense.......................................................................... 201

Figura 58 – Paris of my dreams………………………………………………… 202

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Sumário

Introdução ....................................................................................................... 14

Capítulo 1: A Paris de A menina dos olhos de ouro ................................... 22

I. A alma da cidade-chama.................................................................................. 28

II. As classes sociais de Paris.............................................................................. 38

III. Paris no imaginário coletivo.............................................................................. 57

IV. Distopia parisiense........................................................................................... 61

V. Arquétipo de metrópole.................................................................................... 63

Capítulo 2: A festa de Hemingway ................................................................ 74

I. Autobiografia e memória................................................................................... 75

II. A visão de Paris e a degradação enaltecida da cidade.................................... 81

III. A pobreza parisiense........................................................................................ 90

IV. A fome parisiense............................................................................................. 95

V. A juventude de Paris......................................................................................... 98

VI. O flâneur e o voyeur ........................................................................................ 100

VII. O clima da cidade........................................................................................... 111

VIII. Homossexualismo........................................................................................... 118

IX. Dialogismo...................................................................................................... 124

X. Mito de Paris................................................................................................... 128

XI. Utopia.............................................................................................................. 131

Capítulo 3: Paris: multitemporalidade......................................................... 135

I. Paratextos................................................................................................. 136

II. Os personagens e a trilha sonora............................................................. 142

1. Hemingway de Woody Allen..................................................................... 153

III. O insólito em Meia-noite em Paris e a construção da utopia parisiense.. 158

IV. Paris cidade mítica.................................................................................... 170

V. Dialogismo................................................................................................ 187

Considerações Finais................................................................................... 193

Referencial Bibliográfico ............................................................................ 204

Filmografia..................................................................................................... 211

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Introdução

Nós sempre teremos Paris.

Casablanca

Nos aclamados clássicos do cinema Casablanca (1942) e Bonequinha de

Luxo (1961), os personagens de Humphrey Bogart e Audrey Hepburn exclamam

suas paixões por Paris com as emblemáticas frases “Nós sempre teremos Paris”

e “Paris é sempre uma boa ideia”. Em ambos os filmes, a cidade é vista como

um espaço de encontros e reencontros, um lugar onde todos os amores e as

ambições são realizáveis, um ambiente idealizado, que se perpetua no

imaginário coletivo desde muito antes da invenção do cinema.

Paris é referência cultural, artística, política e da moda anteriormente à

Revolução Francesa. No século XVII, Luis XIV era conhecido como Rei Sol, forte

indício de que aquela sociedade era considerada (principalmente pelo seu

monarca) como o centro universal. Entretanto, foi com os ideais de Liberdade,

Igualdade e Fraternidade que a França, no século XVIII, se consolidou como

parâmetro social. As reivindicações dos revolucionários franceses repercutiam o

descontentamento de todo proletariado ocidental, o que contribuiu para que

Paris passasse da capital francesa para a capital dos sonhos de todos aqueles

que desejavam uma melhor qualidade de vida.

Quando Balzac, já no século XIX, escreveu A comédia humana e

caracterizou seus principais protagonistas, Eugène de Rastignac e Lucien de

Rubempré, como interioranos que sonham em fazer sucesso em Paris e

conquistar o respeito dos parisienses, ele duplicou a cidade. Por um lado, há a

Paris real, capital suja, corrompida pelos valores questionáveis de seus

habitantes, e por outro lado, há a Paris idealizada, onde a possibilidade de

ascensão econômica e social é uma promessa.

Apesar de a dualidade da cidade ser apresentada em vários romances

balzaquianos, é no prólogo de A menina dos olhos de ouro, graças ao

vocabulário simbólico e mordaz, que se encontra uma das caracterizações mais

contundentes da cidade. Na novela, Balzac narra o processo de conquistas que

Henri de Marsay elabora para alcançar Paquita Valdez, amante da Marquesa de

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San-Réal. Todavia, o triângulo amoroso é tão somente o argumento que

comprova a corrupção da cidade e a degradação moral dos seus cidadãos.

Por meio da enunciação, construída ora para se dirigir diretamente ao

leitor, ora para apresentar Paris como um espaço longínquo, o narrador

balzaquiano - em um constante movimento de aproximação e distanciamento

dos fatos - conduz o leitor por todas as camadas sociais parisienses mostrando

como cada uma delas busca pelo ouro e pelo prazer, fundamentais para o

sucesso econômico e social na capital.

Balzac inaugura com seu realismo sarcástico uma visão contrária ao

idealismo construído sobre Paris. Se até o início do século XIX a capital francesa

era modelo a ser seguido pelas outras metrópoles ocidentais, o autor opta por

caracterizá-la a partir dos adjetivos que a fazem uma cidade infernal e longe

daquela imaginada, tanto por seus protagonistas como pelos leitores, com o

objetivo claro de fazer um panorama geral da sociedade parisiense sem as

ilusões causadas pelo discurso revolucionário.

Enquanto a Revolução discutia o que deveria ser a verdadeira igualdade

- “por igualdade deveria entender-se a ausência de privilégios e a extensão da

cidadania a todos os membros da República, ou a distribuição equitativa da

propriedade e da renda?” (GRESPAN, 2008, p.93) - Balzac denuncia que quase

um século depois, em 1835 (ano da publicação da novela), a sociedade ainda

não tinha chegado a uma conclusão sobre esse e outros embates.

Para o autor, os ideais de 1789 são inalcançáveis como metas concretas

para um modelo social e, por isso, se tornariam uma ilusão inatingível. No

processo de caracterização da cidade, Balzac aparenta estar colocando diante

dos olhos do leitor os verdadeiros valores ideológicos daquela sociedade.

Entretanto, o autor não afasta a cidade do imaginário coletivo, pois mesmo

não sendo o ambiente perfeito, onde hoje os chamados direitos humanos

prosperariam, ele apresenta Paris como o lugar das possibilidades, pois apesar

de sua degradação moral, ela é a única capital que naquele contexto histórico

permitiria tanto a existência de um triângulo amoroso quanto a publicação de um

enredo em que duas mulheres se relacionam afetivamente.

Paulo Rónai comenta a influência gerada pelo romancista em seus

sucessores, confirmando a singularidade de suas descrições e a importância

delas para a consolidação de Paris como paradigma ideológico e social.

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Nenhum escritor fez inventário tão completo dos atrativos

de Paris como Balzac. Mostra antes de tudo, na atmosfera

da cidade, certo mistério que não existe em nenhum outro

lugar do mundo. Evidentemente, havia nisso algum

exagero; mas essa visão do romancista influenciou seus

leitores e seus sucessores, reforçando a sensação única

de vida tumultuosa e intensa, cheia de virtualidade e

surpresas, que nos inspira uma permanência em Paris

(2012, p. 143).

Essa permanência em Paris está na narrativa de Ernest Hemingway, Paris

é uma festa. No romance autobiográfico, o narrador-personagem conta seus

anos de vivência na Paris do pós-Primeira Guerra. Vista de maneira enaltecida,

– como o próprio título já demonstra – a cidade do romancista do século XX é o

espaço de encontro com as esperanças perdidas durante a Guerra.

No decorrer de todo o enredo, o narrador-protagonista, o jovem

Hemingway, tem ambições semelhantes àquelas demonstradas pelos

personagens arrivistas balzaquianos: ele busca o sucesso artístico e econômico

na única capital capaz de concretizar suas aspirações, independentemente dos

problemas sociais e políticos do contexto histórico da época. A Paris dos anos

1920, como afirma Luiz Antonio Guiar, na apresentação de Paris é uma festa,

era vista pelos intelectuais e artistas que lá viviam como o centro do mundo, a

cidade onde eram “estimulados a produzir suas obras” (2013, p. 11).

A atração estimulante exercida por Paris levou Hemingway a descrever a

cidade com detalhes precisos sobre os encontros entre os artistas reconhecidos

pela crítica da época e a nova geração de escritores da segunda década do

século XX, mais conhecida como Geração Perdida.

Para Otto Maria Carpeaux (2011), essa Geração apresenta ironia,

cinismo, desilusão, sentimento de perdição universal, o niilismo absoluto, os

quais são, aos olhos de Hemingway, renunciados em Paris. Para Carpeaux,

Hemingway pretende falar a língua direta, sincera, dos americanos, retratando

os acontecimentos mais extraordinários em palavras rápidas e abreviadas, que,

no entanto, não deixam de caracterizar a capital francesa, salientando sua

importância para o processo criativo dos inúmeros artistas que viveram na cidade

durante aquela época.

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Se Balzac, por meio de uma linguagem metafórica, apresenta Paris como

o lugar que degrada e corrompe os valores morais dos jovens, Hemingway, ao

contrário, com uma linguagem clara e objetiva caracteriza a cidade como o

ambiente capaz de dissolver as desilusões causadas pela Primeira Guerra e

transformá-las em arte. Apesar do pessimismo próprio dos modernistas do

começo do século passado, o cenário parisiense do romance autobiográfico de

Ernest Hemingway é idílico.

Desse ponto de vista, a cidade anteriormente associada à semântica das

possibilidades – por permitir que seus moradores encontrem meios para

realizarem seus desejos mais íntimos, mesmo a custo de seus valores morais e

éticos –, passa a ser a terra prometida daqueles jovens que buscam as soluções

de seus problemas – sociais, pessoais, existenciais, econômicos – e que podem

assim encontrar a inspiração artística perdida durante a Guerra.

Tanto A menina dos olhos de ouro quanto Paris é uma festa, apesar das

suas diferenças ideológicas importantíssimas e manifestadas discursivamente,

enfatizam o aspecto duplo que a capital francesa terá em ambas as obras.

Híbrida de deterioração e plenitude, Paris é como o Centauro ou o Minotauro –

criaturas mitológicas metade humanas, metade animais –: os três são

impossíveis de serem separados de seus próprios paradoxos.

O maravilhamento criado por Hemingway em torno da vida cultural de

Paris, a plenitude e a degradação da cidade são retomados – no ano de 2011 -

por Woody Allen em seu roteiro inspirado no romance em Meia-noite em Paris.

Neste filme, o protagonista Gil Pender (interpretado por Owen Wilson) é o alter

ego de Allen. Sonhador e saudosista, Gil superestima os anos 1920 vivenciados

por Hemingway, um dos inúmeros personagens históricos encontrados por ele

durante a fantástica viagem ao passado que ele tem o privilégio de experimentar.

Com a inspiração em Paris é uma festa, o filme materializa a ideia abstrata

presente no inconsciente coletivo das inúmeras possibilidades ofertadas

somente pela capital francesa. Como afirma Marcos César de Paula Soares no

seu artigo A figura do escritor em Meia-noite em Paris de Woody Allen

Persiste no imaginário contemporâneo o mito de uma cultura europeia mais receptiva, mais aberta ao experimentalismo, em contraposição com a vulgaridade da indústria cultural americana, mais francamente comercial,

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onde, além disso, reina um espírito declarado de anti-intelectualismo (Revista Itinerários, Araraquara, n. 36, jan./jun. 2013, p.83).

É nesse contraponto entre cultura europeia e cultura norte-americana que

o filme não só trabalha com as questões relativas à busca pelo sucesso artístico

e não simplesmente pelo êxito comercial, como também é a partir dessa

diferença, então, que a narrativa retoma a atmosfera parisiense dos séculos XIX

e XX, criando uma nostalgia importante para a interpretação dos elementos

sobrenaturais e insólitos metafóricos que contribuem para o tom de comédia e

para a verossimilhança do relato do filme.

Exatamente porque a metáfora apresentada nas cenas já habita o

subconsciente de quem assiste ao filme que a sobreposição dos tempos (anos

1920 e 2011) da narrativa se torna factível e a surpresa causada no espectador

e no personagem é fascinante. Nas palavras de Soares

a surpresa é de Gil, mas também do espectador, que não esperava ver surgir, sem marcas de transição explicitas, esse tipo de fantasia num filme que parecia aderir aos moldes do cinema realista, com suas regras de continuidade e manutenção ilusionista de mise-en-scène fundada na ideia do recorte da realidade (Idem, p. 87).

Os elementos sobrenaturais e insólitos, apresentados por David Roas em

Tras los límites de lo real: una definición de lo fantástico (2011), - principalmente,

o tema do noturno já expresso no título da obra, a presença do mundo dos mortos

e o sentimento de hesitação constante no personagem - empregados no enredo

de Meia-noite em Paris, são fundamentais para o desenvolvimento das reflexões

propostas pelo diretor do filme ao longo da narrativa. Allen contrapõe os

devaneios saudosistas e apaixonados à concretude da vida real com seus

benefícios e malefícios, possibilitando que o público se identifique ainda mais

com os desejos e momentos vivenciados pelo protagonista Gil.

Mais uma vez, no decorrer do longa-metragem, assim como foi salientado

por Balzac e Hemingway, Paris é tanto a cidade das possibilidades – pois é lá

que a viagem no tempo ocorre –, como é dupla na sua caracterização: ora

moderna, ora antiga; primeiramente materializada no mundo concreto e, em um

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segundo momento, idealizada nas fantasias de Gil. Assim, Woody Allen, por

meio do discurso fílmico, faz de Paris um arquétipo.

Dessa forma, o que se pretende analisar no decorrer dos três capítulos

desta tese, por meio das leituras simbólicas e ideológicas dos discursos

apresentados pelos três autores e por meio da comparação entre as obras é a

transfiguração de Paris em um mito moderno.

O objetivo principal deste trabalho, portanto, é relacionar as descrições

feitas de Paris em cada uma das obras selecionadas como corpus de análise

com a construção da imagem da capital francesa no inconsciente coletivo. Ao

longo dos capítulos serão apresentados o diálogo entre A menina dos olhos de

ouro e Paris é uma festa e o processo de referência midiática do romance de

Ernest Hemingway para o filme Meia-noite em Paris, com o propósito de salientar

que a glorificação de Paris e a sua perpetuação como cidade dos sonhos de

muitos até os dias de hoje só se tornou possível a partir dos relatos dos três

autores, pois cada um deles, ao observar a cidade de um modo particular, agrega

a ela mais uma característica que contribui para sua mitificação.

Além disso, buscar-se-á analisar ideologicamente os discursos

empregados nas obras, aplicando a cada um deles as teorias desenvolvidas por

Joseph Campbell (2008 e 2009), Roland Barthes (2009) e Carl Jung (1977 e

2000), responsáveis pelas reflexões sobre mito e inconsciente coletivo, pois ao

longo dos capítulos desta tese tem-se a intenção de explicar por qual motivo

Paris – mesmo em um mundo globalizado, onde todas as metrópoles tendem a

ser semelhantes – se destaca e habita os sonhos dos mais variados tipos

humanos, sejam eles reais ou fictícios, estejam eles em quaisquer tempo e

espaço.

Dessa forma, o primeiro capítulo apresentará a análise da enunciação e

a análise simbólica do prefácio da novela A menina dos olhos de ouro, buscando

evidenciar para o leitor que, a partir da visão balzaquiana de Paris, a cidade se

transfigurou em mito. Para tanto, serão fundamentais os estudos de Walter

Benjamin (Baudelaire e a modernidade e Charles Baudelaire um lírico no auge

do capitalismo), Paulo Rónai (Balzac e a comédia humana), Carl Jung (O homem

e seus símbolos e Os arquétipos e o inconsciente coletivo), Roland Barthes

(Mitologias), entre outros teóricos cujas obras versam tanto sobre a importância

20

de Balzac e seu estilo de época quanto sobre o mito e sua relação com o discurso

ideológico de uma determinada época.

No segundo capítulo, analisar-se-ão os aspectos dialógicos entre a novela

e o romance Paris é uma festa de Ernest Hemingway, por meio de seus traços

ideológicos e por meio do princípio da enunciação. Os estudos desenvolvidos

por autores como Antonio Candido (Poesia e ficção na autobiografia e A

personagem de ficção), Bakhtin (A autobiografia e a biografia, Marxismo e

filosofia da linguagem, Questões de literatura e de estética) e Campbell (Mito e

Transformação e O poder do mito) serão indispensáveis, pois, além de refletirem

sobre temas significativos para a interpretação do romance – como as

particularidades das autobiografias e a relevância dos personagens

protagonistas nesses relatos –, também conceituam o mito enfatizando a sua

retomada e atualização na sociedade.

Já no terceiro capítulo, dedicado à narrativa fílmica de Wood Allen,

buscar-se-á analisar Meia-noite em Paris por meio não só da perspectiva da

linguagem cinematográfica embasada por críticos como André Bazin (2017 e

2018), Edgar Morin (2014) e Jean-Claude Carrière (2015), como também das

teorias e discussões desenvolvidas por David Roas (2011), Remo Ceserani

(2006) e Irène Bessière (2012) sobre a presença do sobrenatural e do insólito

em narrativas.

Faz-se mister salientar que além dos teóricos já mencionados, outros

serão fundamentais para o desenvolvimento da hipótese aqui apresentada, Paris

é um mito moderno, tais como: Sartre (2006), Ítalo Calvino (1990 e 2007), Pamuk

(2011), Baudelaire (1996), entre outros que dedicaram seus estudos tanto aos

textos literários e cinematográficos como à teoria da cor, à psicologia social, à

filosofia, à sociologia, entre outras áreas do conhecimento que contribuem

substancialmente para as análises expostas nesta tese.

Não obstante as obras selecionadas como corpus já tenham sido

interpretadas e exploradas por outros estudiosos, seus objetivos e sua hipótese

divergem daqueles apresentados, por exemplo, por Leyla Perrone-Moisés que

em Flores de escrivaninha dedicou um ensaio sobre A menina dos olhos de ouro,

Balzac e a figurabilidade: cenas de figuração e desfiguração humana tese de

21

Paula Caldas Frattini, USP e Imagens de Paris nos trópicos livro de Angela

Perricone Pastura1.

Dentre as dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas

sobre Paris é uma festa e Meia-noite em Paris se destacam A Revolução

Francesa de Ernest Hemingway (de Luís Roberto Souza Júnior, PUC-RS), A

Paris de Woody Allen: narrações sobre a cidade e suas apropriações midiáticas

pelo turismo, A nostálgica viagem no tempo em Meia-noite em Paris (Woody

Allen, 2011) e Woody Allen cineasta-historiador: ironia e identidade judaica em

filmes sobre o período entreguerras (de autoria de Lucas Gamonal Barra de

Almeida, UFJF, Luciana Angelice Biffi, UFU e Roberta do Carmo Ribeiro, UFG,

respectivamente) são aquelas cujos propósitos acadêmicos mais se aproximam

daqueles que serão expostos nas próximas páginas.

1 Os títulos dos trabalhos acadêmicos aqui mencionados foram pesquisados no Catálogo de

Teses e Dissertações da CAPES.

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Capítulo 1: A Paris de A menina dos olhos de ouro

Respirar Paris, isso conserva a alma!

Victor Hugo

Quando escreveu A Menina dos olhos de ouro, em meados dos anos

1830, Balzac inovou ao contar de maneira surpreendente o romance entre

Paquita Valdez e a marquesa de San-Réal. Entretanto, apesar de o tema do

lesbianismo ser o ponto principal de discussão na obra, Balzac aborda outros

aspectos da sociedade francesa importantes para a constituição das Cenas da

vida parisiense, série à qual pertence a novela.

Logo no início do relato, o leitor é apresentado a Henri de Marsay, um dos

protagonistas de A Comédia Humana, que, como todo dândi, tem

comportamento questionável e métodos de conquista controversos, os quais

serão, ao longo da narrativa, usados para atrair Paquita. Tal comportamento será

apresentado como definidor do caráter do jovem apaixonado, rico e pedante que

habita Paris. Acostumado a ter tudo que deseja sem grande esforço, Henri de

Marsay é a personificação da soberba e da arrogância que se contrapõe à

ingenuidade e inocência de Paquita.

Enquanto ele, depois de todas as investidas e artimanhas usadas para

conquistar Paquita, se mostra frio e indiferente ao destino trágico da moça, ela é

vítima do ciúme da marquesa de San-Réal, sua amante, opressora e assassina.

Se por um lado de Marsay é livre para arquitetar todos os seus planos e circular

pela cidade, Paquita é vigiada de perto pelos criados da marquesa e não pode

sair de casa sem autorização e companhia adequada. Ou seja, na mesma

proporção em que Henri tem os privilégios garantidos aos homens ricos de Paris,

Paquita sofre por viver em uma prisão.

Entretanto, todos esses elementos, como salienta Leyla Perrone-Moisés

(1990), são antecipados ao leitor atento na descrição de Paris feita na introdução

da novela. Nas primeiras páginas do relato, Balzac se dedica a fazer um percurso

por Paris do século XIX apontando, em um movimento de cima para baixo, os

parisienses e seus diferentes níveis sociais.

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Nas palavras de Leyla Perrone-Moisés:

O que ele (Balzac) pretendia dizer está claramente exposto no Prólogo. A nouvelle tem uma composição hierárquica e autoritária: ela se compõe de uma exposição professoral, contendo uma tese sócio-econômica (o Prólogo), seguida de um exemplo ilustrativo (a narrativa). A enunciação do Prólogo é persuasiva e não admite réplica. [...] [...] Ora, a narrativa que se segue escapa, de modo surpreendente, ao papel passivo de ilustração das “verdades” do Prólogo. No Prólogo, o que é proposto como remédio para os males sociais é uma distribuição mais razoável do ouro (metaforizado como o sangue do corpo social), uma busca menos desenfreada do prazer pelas elites (que devem assumir seu papel de cabeça desse corpo). Ora, o que a história nos mostra é que esse corpo social está mortalmente doente, que o “ouro” o corrompeu de alto a baixo. As “fantasias” dos aristocratas aí aparecem inteiramente submissas aos proletários e aos colonizados, de quem eles precisam comprar o corpo e o silêncio, e que se vendem a quem der mais (1990, p. 40, 41).

Dada a importância do prólogo de A menina dos olhos de ouro, objetiva-

se neste capítulo analisar as características da cidade e em que medida a

descrição de Paris feita por Balzac permitiu que a capital francesa se

consolidasse no imaginário coletivo como a cidade das possibilidades e das

degradações humanas. Por meio não só da análise simbólica, mas também da

análise dos elementos da enunciação, pretende-se verificar em que medida

Paris se tornou um mito moderno, a partir da visão balzaquiana. Para tanto, usar-

se-á a tradução de Ernesto Pelanda2 como orientação para a análise do texto

em francês.

A seguinte descrição abre a novela:

Un des spectacles où se rencontre le plus d’épouvantement est certes l’aspect général de la population parisienne, peuple horrible à voir, hâve, jaune, tanné. Paris n’est-il pas un vaste champ incessamment remué par une tempête d’intérêts sous laquelle tourbillonne une moisson d’hommes que la mort fauche plus souvent qu’ailleurs et qui renaissent toujours aussi serrés, dont les visages contournés, tordus, rendent par tous les pores

2 Optou-se pela tradução de A menina dos olhos de ouro elaborada por Ernesto Pelanda, pois

ela faz parte das oitenta e oito obras da Comédia Humana contempladas pela edição da Globo, selo Biblioteca Azul, para a qual a professora doutora Glória Carneiro do Amaral contribuiu como revisora técnica.

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l’esprit, les désirs, les poisons dont sont engrossés leurs cerveaux; non pas des visages, mais bien des masques: masques de faiblesse, masques de force, masques de misère, masques de joie, masques d’hypocrisie; tous exténués, tous empreints des signes ineffaçables d’une haletante avidité ? Que veulent-ils? De l’or, ou du plaisir? (BALZAC, 1968, p.6).3

O enredo inicia com a voz, aparentemente onisciente, do narrador que

apresenta Paris por meio das “fisionomias parisienses”, relacionando os

aspectos da cidade com o comportamento social dos seus habitantes. Durante

o processo de comparação, a carga semântica dos vocábulos utilizados é muito

contundente, principalmente ao caracterizar os rostos dos cidadãos como

amarelados e mascarados

O amarelo é, segundo René-Lucien Rousseau: “Cor do movimento, ele

une o pensamento ao movimento. É ainda a Ação, mas uma Ação que se torna

conceito. É o verbo.” (1993, p. 99). Sendo a cor do verbo, o amarelo acarreta na

obra um valor imperativo, pois ao longo de todo o enredo – como será possível

observar mais adiante na análise – o narrador afirma, categoricamente, que o

ouro e o prazer, incessantemente buscados pelos parisienses, são a fonte dos

males da cidade.

A constante retomada da imagem do ouro, inclusive no principal traço

característico de Paquita, a menina dos olhos do ouro, torna o metal e a cor

amarela “símbolos do orgulho, da separação do Homem com Deus”

(ROUSSEAU, 1993, p. 104). O distanciamento do humano com o divino antecipa

o desfecho da novela, pois “do mesmo modo, o ouro que simboliza a riqueza

espiritual pode se desgastar e tomar um sentido diabólico se não exprimir nada

além da riqueza material” (Idem, p.105). Outro aspecto do amarelo que antecipa

o fim trágico de Paquita é o fato de a cor se relacionar com a “nossa pele que

3 Espetáculos que reúne todos os assombros é, sem dúvida, o aspecto geral da população parisiense, gente horrível de ver-se, lívida, amarelada, tanada. Pois não é Paris um vasto campo incessantemente revolvido pela tempestade dos interesses sob a qual turbilhona uma seara de homens que a morte ceifa mais frequentemente que alhures, e que renascem sempre do mesmo modo comprimidos, de rostos conturbados, fisionomias retorcidas, a extravasarem por todos os poros o espírito, os desejos, os venenos que lhe enchem os cérebros? Mas, não; não são rostos; são antes máscaras – máscaras de fraqueza, máscara de força, máscara de miséria, máscara de alegria, máscara de hipocrisia; todas extenuadas, marcadas todas pelos sinais indeléveis de uma ofegante avidez. Que quer essa gente? Dinheiro ou prazer? (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 335).

25

fica amarelada com a aproximação da morte” e “ao fim, se tornar um substituto

do negro” (CHEVALIER, 2009, p. 40), simbolizando o luto.

Não é sem propósito, assim, que a protagonista da história tenha os olhos

dourados. Se por um lado, Paquita é o alvo de conquista de Henri de Marsay e,

por isso, será o prêmio alcançado por ele ao final de suas investidas, por outro

lado, a própria coloração dos seus olhos já anuncia a morte que a encontrará

brutalmente no desfecho da narrativa.

O amarelo ainda é a “cor da inveja, da inconsciência, do adultério e da

traição [...]” (ROUSSEAU, 1993, p. 105), podendo ser “símbolo do desespero,

por ser intenso, violento e agudo até a estridência” (PEDROSA, 2010, p. 123).

Entretanto, a cor também é, dentre todas, a mais quente e se relaciona com a

eternidade, da mesma forma que o ouro é o metal da eternidade. (CHEVALIER,

2009, p. 41).

Essa amplitude dos significados do amarelo é extremamente coerente

com todos os acontecimentos vividos pelos personagens da obra, pois, enquanto

é relativo à ideia de energia e calor, o amarelo se torna o espetáculo parisiense

(termo que inicia a novela). Quando passa a ser o tom da pele dos cidadãos é a

monotonia e o tédio, ao ser a cor da infidelidade; transforma-se no triângulo

amoroso formado pelos protagonistas. Já quando se funde ao ouro converte-se

no poder e na riqueza tão almejados por aqueles que habitam Paris.

As máscaras apresentadas pelo narrador indicam, por sua vez, a tentativa

de disfarce dos cidadãos. O narrador salienta a necessidade social de esconder

a verdadeira identidade para conseguir conviver e sobreviver às relações por

interesse, que norteiam todo o corpo social parisiense. Para Park, sociólogo da

Escola de Chicago

Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra “pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos

conhecemos a nós mesmo (apud GOFFMAN, 2003, p. 27).

As relações sociais, dessa perspectiva, são estabelecidas a partir de

representações individuais coerentes com cada situação vivenciada pelo sujeito

26

em seu cotidiano. Goffman comenta que “esperamos que as diferenças de

situações sociais entre os participantes sejam expressas de algum modo por

diferenças congruentes nas indicações dadas de um papel de interação social”

(2003, p. 31), assim, as máscaras usadas pelos parisienses se adequam aos

mais variados convívios sociais.

O psicólogo ainda afirma em seu estudo que esses papéis sociais se

estabelecem por meio de uma fachada produzida pelo indivíduo para uma

audiência e “isto constitui um dos modos pelos quais uma representação é

‘socializada’, moldada e modificada para se ajustar à compreensão e às

expectativas da sociedade em que é apresentada” (idem, p. 40)

Dessa forma, o disfarce social propiciado pelo uso das máscaras é

inerente a qualquer sujeito socialmente constituído. O que Balzac salienta em

seu discurso é o caráter inescrupuloso da manipulação envolvendo essas

funções exercidas pelos sujeitos, principalmente por aqueles que desejam

ascender social e economicamente em Paris, o que para Goffman cria uma

idealização das máscaras sociais adequadas para cada uma dessas situações.

Uma das fontes mais ricas de dados sobre a representação de desempenhos idealizados é a literatura sobre mobilidade social. Na maioria das sociedades parece haver um sistema principal ou geral de estratificação e em muitas sociedades estratificadas existe a idealização dos estratos superiores e uma certa aspiração, por parte dos que ocupam posições inferiores, de ascender às mais elevadas. (Deve-se ter cuidado de compreender que isto implica não apenas no desejo de uma posição de prestígio, mas também no desejo de uma posição junto ao centro sagrado dos valores comuns da sociedade). Verificamos habitualmente que a mobilidade ascendente implica na representação de desempenhos adequados e que os esforços para subir e para evitar descer exprimem-se em termos dos sacrifícios feitos para a manutenção da fachada. Uma vez obtido o equipamento conveniente de sinais e adquirida a familiaridade na sua manipulação, este equipamento pode ser usado para embelezar e iluminar com estilo social favorável as representações diárias do indivíduo. Talvez a peça mais importante do equipamento de sinais associados à classe social consista nos símbolos do status, mediante os quais se exprime a riqueza material (GOFFMAN, 2003, p. 41 e 42).

Ao enumerar cinco modelos diferentes de máscaras utilizadas pelos

parisienses (a da fraqueza, a da força, a da miséria, a da alegria e da hipocrisia),

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o narrador da novela reforça a ideia da imposição que é dentro daquela

sociedade a dissimulação, pois é somente por meio do uso da ‘máscara de

hipocrisia’ que a ascensão social se torna uma possibilidade e a busca pelo ouro

e pelo prazer concretizada.

Walter Benjamin diz que:

Uma das primeiras reações que a formação das multidões nas grandes cidades fez nascer foi a moda do que àquela altura se chamava ‘fisiologias’. Tratava-se de pequenos fascículos de alguns centésimos, em que o autor se divertia em classificar certos tipos sociais segundo sua fisionomia, captando de relance tanto o caráter como as ocupações e o estatuto social de um qualquer transeunte. A obra de Balzac contém milhares de amostras dessa mania. Dirão que se trata de uma perspicácia muito ilusória. De fato, é ilusória. Mas há um pesadelo que lhe corresponde e que, por seu lado, parece ser bem mais substancial. Esse pesadelo seria o de constatar que os traços distintivos captados de relance, que parecem garantir a unicidade, a individualidade estrita de uma personagem, revelam ao mesmo tempo os elementos constitutivos de um tipo novo que iria, por sua vez, estabelecer uma divisão social (2015, p. 200).

É, exatamente, o estabelecimento dessa divisão social que é salientado

pelo narrador quando ele afirma que os mascarados parisienses estão

extenuados. A fragilidade dos disfarces ressalta o aspecto deformado dos rostos

dos cidadãos. É interessante notar a carga semântica das palavras empregadas

para qualificar os rostos antes do uso das máscaras. Eles são: comprimidos,

conturbados, retorcidos e extravasam por todos os poros o espírito, os desejos

e os venenos. Ou seja, são rostos doentes, desfigurados, perturbadores e

incomuns.

Diante do que foi afirmado por Benjamin, se a fisionomia demonstra tanto

os estatutos sociais, como o caráter dos personagens, tal descrição aponta para

a decadência da sociedade parisiense, pois as relações naquele contexto se dão

por meio de máscaras para que a degradação social não seja manifestada.

Além dos símbolos mencionados, nesse primeiro fragmento da novela são

feitas ao leitor perguntas que marcam o processo de enunciação. Por meio da

interlocução entre narrador e narratário fica evidente que não se trata de um

relato em terceira pessoa, como aparentava. O relator dos fatos é uma

testemunha que, por meio do constante processo de distanciamento e

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aproximação do leitor (analisado no decorrer deste capítulo), tenta apagar as

marcas de subjetividade da narração, para, assim, conferir maior credibilidade

ao discurso.

I. A alma da cidade-chama

As perguntas que se encontram no interior do fragmento são projeções do

estranhamento que o discurso do narrador possivelmente causa nos leitores ao

descrever Paris de uma maneira oposta à imagem da cidade que habita o

imaginário coletivo. Ou seja, o narrador balzaquiano não a caracteriza como

Cidade-Luz e sim, como uma Cidade-Chama, como salienta Rónai:

[...] mais que Cidade-Luz, a Paris de Balzac é a Cidade-Chama. Atrai de longe os moços de toda a França, de toda a Europa, do mundo inteiro, ricos e pobres, ávidos de amor, de êxito, de riqueza. Muitos deles ‘diariamente jogam tudo numa cartada, sacrificando ao deus mais cortejado nesta régia cidade, o Acaso’. A maioria consome-se inteiramente no fogo: esgota-se na luta, adoece e morre; cai na miséria e se estiola longamente; ou foge da chama, espavorida, e resigna-se a uma existência mesquinha (2012, p. 142).

O possível estranhamento causado nos leitores pelas descrições e a

imagem de cidade-chama são mencionados pelo narrador:

Quelques observations sur l’âme de Paris peuvent expliquer les causes de sa physionomie cadavéreuse qui n’a que deux âges, ou la jeunesse ou la caducité : jeunesse blafarde et sans couleur, caducité fardée qui veut paraître jeune. En voyant ce peuple exhumé, les étrangers qui ne sont pas tenus de réfléchir, éprouvent tout d’abord un mouvement de dégoût pour cette capitale, vaste atelier de jouissances, d’où bientôt eux-mêmes ils ne peuvent sortir, et restent à s’y déformer volontiers. Peu de mots suffiront pour justifier physiologiquement la teinte presque infernale des figures parisiennes, car ce n’est pas seulement par plaisanterie que Paris a été nommé un enfer. Tenez ce mot pour vrai. Là, tout fume, tout brûle, tout brille, tout bouillonne, tout flambe, s’évapore, s’éteint, se rallume, étincelle, pétille et se consume. Jamais vie en aucun pays ne fut plus ardente, ni plus cuisante. Cette nature sociale toujours en fusion semble se dire après chaque oeuvre finie : – À une autre ! comme se le dit la nature elle-même. Comme la nature, cette nature sociale s’occupe d’insectes, de fleurs d’un jour, de bagatelles,

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d’éphémères, et jette aussi feu et flamme par son éternel cratère [...] (BALZAC, 1968, p. 6 e 7).4

(Boulevard Sébastopol)5

Figura 1: Léon et Levy, Roger-Viollet. [Sem título]. Fotografia. Disponível em :

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/search/Paris%201860/page/1. Acesso em :

6 nov 2017.

A explicação oferecida pelo narrador a respeito do estranhamento

causado nos estrangeiros que chegam à cidade (sejam eles leitores ou viajantes)

é construída por meio da imagem da alma de Paris. O termo “alma” faz surgir a

ideia de princípio vital. Usada como sinônimo de espírito, a alma, segundo Jung,

é uma “substância imaterial como a que é portadora do fenômeno psíquico, ou

até mesmo da própria vida” (2000, p. 206).

Ao atribuir à cidade essa essência humana, o narrador transforma Paris

em um organismo vivo dotado de sentimentos, pois a atividade subjetiva humana

4 Algumas observações sobre a alma de Paris poderão explicar as causas de sua fisionomia

cadavérica, que só tem duas idades: a juventude ou a senilidade; juventude desbotada e sem cor; senilidade dissimulada que quer parecer jovem. Ao ver esse povo exumado, os estrangeiros, não habituados a refletir, experimentam à primeira vista um movimento de repugnância pela capital, vasto laboratório de gozos, do qual eles próprios não conseguirão em breve sair, nele permanecendo prazenteiramente a se deformar. Poucas palavras serão suficientes para justificar fisiologicamente a cor de tez quase infernal das criaturas parisienses, pois não seria apenas por brincadeira que Paris foi chamada de um inferno. Considere-se verdadeira a palavra. Ali tudo queima, tudo é fumaça, tudo brilha, tudo ferve, tudo arde, se evapora, se extingue, se reacende, faísca, cintila e se consome. Jamais a vida em qualquer outro lugar foi mais ardente ou mais abrasadora. Essa natureza social sempre em fusão, parece dizer ao cabo de cada obra: “Vamos a outra!” tal como o faz a própria natureza. Como a natureza, essa natureza social ocupa-se com insetos, flores de um dia, bagatelas, coisas efêmeras, e lança também fogo e cinza por sua cratera eterna. [...] (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 336). 5 As datas de todas as fotografias presentes neste capítulo variam entre 1860 e 1890.

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é associada ao espírito-alma (JUNG, 2000, p. 208). No entanto, na visão

balzaquiana, a personificação de Paris se dá a partir das características mais

funestas de seus habitantes, pois a juventude e a senilidade descritas são como

espectros, cadáveres sem cor, que se aproveitam das oportunidades que a

capital pode oferecer. Na imagem anterior, é possível observar a alma parisiense

por meio da efervescência das ruas da cidade. A movimentação de veículos e

pessoas seguindo na mesma direção, ambos com a mesma tonalidade negra,

confirma o aspecto infernal descrito no fragmento. Além de o clarão ao fundo,

ser assemelhado ao sol e à força de sua luz, que arde e queima, como fogo.

Além disso, as imagens relacionadas ao fogo são incisivas, pois não

relacionam a cidade com o símbolo da chama purificadora, mas com a

capacidade destrutiva do fogo, sua função diabólica. O inferno, mencionado

duas vezes no trecho supracitado, evoca, no imaginário coletivo a ideia

anteriormente descrita na literatura por poetas como Vergílio e Dante.

Em Eneida, Enéias deseja, mesmo vivo, descer aos infernos para

encontrar seu pai. Antes da descida, a sacerdotisa de Febo o alerta sobre a

dificuldade existente não em realizar a sua vontade, mas em deixar o Tártaro:

[...] sate sanguine divum, Tros Anchisiade, facilis descensos Averno: noctes atque dies patet atri ianua Ditis, sed revocare gradum superasque evadere ad auras, hoc opus, hic labor este. […] (VERGÍLIO, Aeneid, Liber Sextvs. Disponível em: www.thelatinlibrary.com/verg.html. Acesso em 01 jul 2019).6

As palavras ditas pela personagem fazem o mesmo alerta que o narrador

balzaquiano sobre a ingenuidade dos estrangeiros ao chegarem em Paris. Tal

qual Sibila, o narrador orienta o caminho percorrido nos infernos e serve como

vigilante não só do percurso transposto por quem se submete a adentrar as

terras parisienses infernais, como também das futuras consequências dessa

passagem, já que anuncia todos os percalços encontrados durante o tempo

passado no lugar.

6 Ó troiano, filho de Anquises, gerado do sangue dos deuses, fácil é a descida para o Averno:

noite e dia está aberta a porta do sombrio Dite. Mas retornar sobre seus passos e sair para as brisas do alto, aí está a dificuldade, aí está o trabalho! (VERGÍLIO, 1996, p. 114).

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A caracterização do inferno também é semelhante; os dois autores optam

por elementos relativos à inquietude do ambiente:

[...] pallentesque habitant Morbi tristisque Senectus, et Metus es malesuada Fame ac turpis Egestas, terribiles visu formae, Letumque Labosque; tum consanguineus Leti Sopor et mala mentis Gaudia, mortiferumque adverso in limine Bellum, ferreique Eumenidum thalami et Discordia demens vipereum crinem vittis innexa cruentis. [...] (VERGÍLIO, Aeneid, Liber Sextvs. Disponível em: www.thelatinlibrary.com/verg.html. Acesso em 01 jul 2019).7

Os vocábulos “queima”, “fumaça”, “brilha”, “ferve”, “arde”, “evapora”,

“extingue”, “reacende” “faísca”, “cintila”, “consome”, “ardente” e “abrasadora”

utilizados por Balzac consolidam a imagem de um inferno habitado e populoso,

exatamente da mesma forma que os substantivos aplicados como

personificações por Vergílio. É precisamente a ebulição social de Paris que

transforma, como afirma Rónai, a cidade de luz em chama, pois ao invés de criar

possibilidades de crescimento e de progresso, ela atraia os homens por sua

agitação, a devassidão e depravação infernais.

A mesma imagem superpopulosa do inferno é reafirmada por Dante, em

vários momentos da primeira parte de A divina comédia, como por exemplo:

[…] Quivi sospiri, pianti e alti guai risonavan per l'aere sanza stelle, per ch'io al cominciar ne lagrimai. Diverse lingue, orribili favelle, parole di dolore, accenti d'ira, voci alte e fioche, e suon di man con ele

7 [...] lá habitam as pálidas Doenças, e as triste Velhice, e o Temor, e a Fome, má conselheira, e

a espantosa Pobreza, formas terríveis de se ver, e a Morte, e o Sofrimento; depois, o Sono, irmão da Morte, e as Alegrias perversas do espírito, e, no vestíbulo fronteiro, a Guerra mortífera, e os férreos tálamos das Eumênides, e a Discórdia insensata, com sua cabeleira de víboras atada com fitas sangrentas. [...] (VERGÍLIO, 1996, p. 114).

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facevano un tumulto, il qual s'aggira sempre in quell' aura sanza tempo tinta, come la rena quando turbo spira. [...] (ALIGHIERI, La divina commedia. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/ladivinacommedia.pdf. Acesso em: 01 jul 2019).8

A constante reincidência do inferno ocupado por almas agitadas aparenta

ser uma condição sine qua non do ambiente que, não por acaso, tem as mesmas

premissas de uma metrópole como Paris, movimentada, barulhenta e em

constante circulação.

Sendo assim, o termo “vasto laboratório de gozos” antecipa a

caracterização desordenada de Paris, local onde todos os deleites serão

permitidos e incentivados. A personificação da cidade, desse modo, a torna

ambiciosa e insatisfeita, pois “parece dizer ao cabo de cada obra: ‘Vamos a

outra!’” e maléfica, por aprisionar os estrangeiros que, apesar de repudiarem a

cidade em um primeiro momento, logo se rendem e não conseguem mais deixá-

la.

A catábase feita por aqueles que buscam por Paris é, portanto,

indissociável da descrição da cidade no prólogo da novela. Entendida como o

processo de descida ao mundo inferior com o objetivo de adquirir conhecimento,

a catábase é dolorosa e árdua, porém, quando concluída leva à autognose por

meio do retorno ao mundo dos vivos (anábase). Do caos ao cosmos, a catábase

modifica profundamente aqueles que a efetuam, deixando marcas eternas muito

presentes nos personagens de Balzac que escolhem viver em Paris. Esse

processo de autoconhecimento será melhor demonstrado nos capítulos

posteriores por meio das histórias de Ernest Hemingway e Gil Pender, dois

artistas intimamente afetados por suas experiências no inferno parisiense.

Rónai afirma que

[...] Paris é a protagonista de toda A comédia humana. A afirmação nada tem de arbitrária para quem, na leitura dessa epopeia em prosa, recolhe algumas das muitas expressões e

8 [...] suspiros, choros, gritos altos e desesperados cruzam aquele espaço escuro. Ouvindo-os,

meu pranto também corria. Diversos idiomas, frases despropositadas, lamentos, vozes roucas, gritos de dor e cólera, rumor de mãos a flagelarem o corpo que as sustinha, tudo isso formava um turbilhão a girar perenemente naqueles ares conturbados, qual areia por tufão levantada. [...] (ALIGHIERI, 2009, p. 15).

33

comparações antropomórficas de que o autor se serve para fixar a fisionomia fluida e múltipla da grande aglomeração humana. “Essa cidade coroada”, afirma num trecho, “é uma rainha que, sempre grávida, tem desejos irresistivelmente furiosos.”. [...] Muito provavelmente o nosso romancista foi quem apontou primeiro a existência, naquela metrópole, de uma alma coletiva, da qual cada habitante é tributário, mas que é algo mais do que a soma das almas individuais que encerra. Mais do que em qualquer outro lugar, o elemento humano mistura-se ali numa fusão completa com uma multidão de outros fatores, como sejam a traição, a história, a paisagem natural e artificial (2012, p. 136 e 137).

Na congruência entre cidade e habitante, espaço e personagem, é

estabelecido na obra um conceito espacial que foge do simples cenário onde se

passa a história. A Paris apresentada por Balzac na novela é um estudo que

comprova a influência dos atos humanos sobre a cidade, ou seja, o

comportamento social determina a concepção espacial, tornando Paris em um

espaço social, que nas palavras de Luis Alberto Brandão é “tomado como

sinônimo de conjuntura histórica, econômica, cultural e ideológica, noções

compreendidas de acordo com balizas mais ou menos determinadas” (2013, p.

59).

Entretanto, ao ser o palco das aspirações de tantos personagens como

Henri de Marsay, Paris se configura também como espaço psicológico, definido

por Brandão como aquele que “abarca as ‘atmosferas’, isto é, projeções, sobre

o entorno, de sensações, expectativas, vontades, afetos de personagens e

narradores, segundo linhagens variadas de abordagens da subjetividade [...]”

(Idem, p. 59).

Pode-se afirmar, desse modo, que Paris é a junção dos acontecimentos

histórico-sociais e das projeções idealizadas dos personagens, o que a configura

não só como um lugar real, como também um ambiente imaginado pelos

personagens e, consequentemente, pelo leitor da obra.

Toda essa concepção subjetiva e ambígua do espaço (ora como

realidade, ora como idealização) se instaura no fragmento (e em outros

momentos da obra analisados mais adiante) por meio da visão do narrador que

conversa com o leitor, apontando as características da cidade com

conhecimento de um nativo. Se por um lado, ao se dirigir ao leitor, dizendo

“Tenez ce mot pour vrai”, o narrador apela para a crença de que tudo que está

34

sendo dito sobre Paris e seus cidadãos é verdadeiro, o uso do advérbio “ali”, por

outro lado, refere-se a um espaço enuncivo, aquele que está distante do local da

produção da enunciação e, consequentemente, do narrador e do narratário. A

escolha por caracterizar Paris como um espaço afastado cria automaticamente

a sensação de credibilidade no leitor, pois transfigura a cidade em um território

abstrato.

O processo de aproximação entre narrador e narratário e o

distanciamento entre eles e a cidade de Paris são retomados, por sua vez, no

seguinte fragmento da novela:

À force de s’intéresser à tout, le Parisien finit par ne s’intéresser à rien. Aucun sentiment ne dominant sur sa face usée par le frottement, elle devient grise comme le plâtre des maisons qui a reçu toute espèce de poussière et de fumée. En effet, indifférent la veille à ce dont il s’enivrera le lendemain, le Parisien vit en enfant quel que soit son âge.[…] À Paris, aucun sentiment ne résiste au jet des choses, et leur courant oblige à une lutte qui détend les passions […]. Tout y est toléré, le gouvernement et la guillotine, la religion et le choléra. Vous convenez toujours à ce monde vous n’y manquez jamais. Qui donc domine en ce pays sans moeurs, sans croyance, sans aucun sentiment; mais d’où partent et où aboutissent tous les sentiments, toutes les croyances et toutes les moeurs? L’or et le plaisir. Prenez ces deux mots comme une lumière et parcourez cette grande cage de plâtre, cette ruche à ruisseaux noirs, et suivez-y les serpenteaux de cette pensée qui l’agite, la soulève, la travaille? Voyez. Examinez d’abord le monde qui n’a rien? (BALZAC, 1968, p. 8 e 9).9

9 À força de se interessar por tudo, o parisiense acaba não se interessando por nada. Não

dominando sentimento algum em sua face gasta pelo atrito, ela torna-se acinzentada como as fachadas dos prédios que recebem toda espécie de poeiras e fuligens. Com efeito, indiferente, na véspera, àquilo que o vai apaixonar no dia seguinte, o parisiense, seja qual for sua idade, vive como uma criança. [...] Em Paris, sentimento algum resiste ao fluxo dos acontecimentos, cuja corrente obriga a uma luta que desarma as paixões [...].Tudo ali se tolera: o governo e a guilhotina, a religião e a cólera. Em tal sociedade todos cabem sempre e ninguém jamais faz falta. Quem então domina nessas paragens sem costumes, sem crenças, sem sentimento algum, mas de onde partem e aonde vão ter todos os sentimentos, todas as crenças e todos os costumes? O prazer e o ouro. Tomem-se estas duas palavras como uma lanterna e percorra-se essa grande jaula de estuque, essa colmeia de valetas negras, e siga-se o serpentear do pensamento que a agita, que a conduz, que a trabalha. Que se vê? Examinemos em primeiro lugar o mundo dos que nada têm (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 336 e 337).

35

O marcador temporal “À Paris” retoma a ideia do espaço afastado, pois se

refere ao “lá” enuncivo que torna a cidade um campo impalpável e intangível,

reforçado pelo uso do pronome “nela”.

Outra afirmação importante é o fato de tudo ser tolerado em Paris. O termo

“tudo” é o resumo da totalidade, da universalidade que engloba todo e qualquer

comportamento, seja qual for a característica, manifestação, objetivo ou

propósito do indivíduo que os detêm. Sendo assim, Paris é o espaço da

exposição pública livre de preconceitos e críticas, como o próprio narrador afirma

“personne n’ y est absolument utile, ni absolument nuisible”, o que aponta para

a irrelevância daqueles que circulam pela cidade.

A menção ao tom acinzentado das fachadas dos prédios e das faces dos

parisienses é significativo, também, pois, nesse fragmento, há a incorporação da

população com a cidade, as duas têm a mesma coloração que “tem, como o

preto, um significado nefasto. [...] Essa tonalidade simboliza ainda o

obscurecimento da razão. ” (ROUSSEAU, 1993, p. 122). Dessa forma, como o

próprio narrador afirma, a perda da racionalidade faz com que a cidade seja

dominada pela busca incessante por prazer.

É interessante notar que as duas colorações usadas para caracterizar os

cidadãos – amarelo e cinza – em contraste, enriquecem em qualidade cromática

e beleza do tom amarelado (PEDROSA, 2010, p.122), ou seja, o cinza

potencializa toda a abrangência de significação do amarelo, retomando-a e

intensificando-a de maneira indireta.

Além disso, duas imagens são empregadas no fragmento acima para se

referir aos parisienses, são elas: a criança e a colmeia. Para o senso comum a

criança é a representação da inocência, da bondade e da verdade. Sem deter

as malícias sócias, ela é espontânea e não dissimulada, porém, em seu uso mais

comum ela é oposta ao sentido empregado por Balzac.

A imagem infantil construída pelo narrador não mostra inocência, mas,

sobretudo, um infante cheio de vontades, insatisfeito, inquieto e inconformado.

A criança apontada por Balzac é um prelúdio do comportamento ruidoso dos

adultos parisienses.

Já a colmeia é uma sociedade sistematicamente organizada, onde cada

indivíduo desempenha sua função como rainha, zangões ou operários. Essa

sistematização garante o bom convívio coletivo entre os insetos, podendo ser

36

comparada em uma proporção menor com a sociedade parisiense. Assim como

na colmeia, Paris é hierarquicamente constituída - sendo a maioria dos cidadãos

pertencentes a classe operária – sem questionamento da população a respeito

da ordem interna estabelecida, que assegura a harmonia pacífica entre todos.

Paz não é, porém, uma sensação transmitida no trecho transcrito da

novela, pois apesar de descrever uma colmeia, o narrador se refere às valetas

negras (inseto da família das libélulas), que, na descrição, aparece como um

local barulhento, movimentado e desordenado.

A cor negra da população da colmeia é tradicional símbolo da negação

de vida, “sinal de morte, do luto e de todas as tristezas” (RAUSSEAU, 1993, p.

115), “ ligado à condenação e à danação da alma” (PEDROSA, 2010, p. 133). O

negro é por definição a ausência de luz, que, aplicada nesse contexto da novela,

indica os traços peçonhento e sorrateiro de Paris e, por isso, em uma visão

menos corrente é o símbolo da serpente, segundo Rausseau (2010, p. 117).

O zumbido da colmeia também se relaciona com a imagem sensorial da

serpente, quando o narrador usa a metáfora “serpentear dos pensamentos”. O

mesmo verbo é usado por Dante para descrever um dos ciclos do inferno.

[…] più amaro; ché tra li avelli fiamme erano sparte, per le quali eran sì del tutto accesi, che ferro più non chiede verun' arte. Tutti li lor coperchi eran sospesi, e fuor n'uscivan sì duri lamenti, che ben parean di miseri e d'offesi (ALIGHIERI, La divina commedia. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/ladivinacommedia.pdf. Acesso em: 01 jul 2019).10

Os três símbolos (criança, colmeia e serpente) colaboram para a

construção dos significados de caracterizações de Paris e seus cidadãos e

completam os sentidos uns dos outros. Se o espaço social e o espaço

psicológico são construídos a partir da congruência entre Paris e seus

10 [...] Mais triste porém, dado que entre os sepulcros serpenteavam chamas dedicadas a manter

as tumbas inda mais esbraseadas do que a arte de amoldar exige do ferro. Estavam abertos os túmulos e deixavam escapar gemidos intérminos, denunciadores de profundo sofrimento. [...] (ALIGHIERI, 2009, p. 37).

37

habitantes, pois um determina o outro, então, o processo de personificação da

cidade e de reificação dos cidadãos é extremamente importante para

compreensão e interpretação da obra.

Se em Dante o serpentear é constitutivo do inferno, em Balzac ele reifica

os homens. Os parisienses são vistos pelo narrador como seres desprezíveis e,

por meio da sinestesia causada pelos sons produzidos por eles, indica o quanto

as suas atitudes são asquerosas e repulsivas. O pensamento que serpenteia

reduz o homem ao aspecto ardiloso, sorrateiro e engenhoso da cobra, que, por

esse motivo se torna frio e frigido como ela. O símbolo da cobra como um réptil

enganador já era evocado na Bíblia:

[...] Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. [...] O Senhor Deus perguntou então à mulher: “Que foi que você fez?” Respondeu a mulher: “A serpente me enganou, e eu comi”. Então o Senhor Deus declarou à serpente: “Uma vez que você fez isso, maldita é você entre todos os rebanhos domésticos e entre todos os animais selvagens! Sobre o seu ventre você rastejará, e pó comerá todos os dias da sua vida. Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela; este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar” (Gênesis, 3:1, 13, 15).

Assim, o verbo serpentear é um indicativo da redução ideológica (moral e

ética) dos parisienses, consequentemente, refletindo na cidade, que passa a

exercer um poder de sedução e atração nos personagens. Paris, por um lado, é

vista como cidade-chama, com alma e com capacidade de influenciar os

comportamentos humanos, e, por outro lado, é uma alegoria da Paris capital

francesa, pertencente ao mundo real e concreto do leitor. Umberto Eco afirma

que

Temos que admitir que, para nos impressionar, nos perturbar, nos assustar, ou nos comover até com os mais impossíveis dos mundos, contamos com nosso conhecimento do mundo real. Isso significa que os mundos ficcionais são parasitas do mundo real [...]. No entanto, devemos entender que tudo aquilo que o texto não diferencia explicitamente do que existe no mundo real corresponde às leis e condições do mundo real (1994, p. 89).

Essa verossimilhança empregada nas descrições do espaço permite que

o leitor, mesmo distante temporalmente da Paris do século XIX, reflita sobre a

38

importância da cidade para os personagens balzaquianos, pois inúmeros

protagonistas de A comédia humana, como aponta Rónai, serão seduzidos pelos

atrativos da capital francesa, da mesma forma que incontáveis homens são

fascinados pela cidade até a contemporaneidade.

Além disso, o romance realista oferece pistas sobre o espaço que

contribuem para a trajetória dos personagens. Ou seja, o prólogo de A menina

dos olhos de ouro, apesar de aparentemente não apresentar ações primordiais

para o desenvolvimento do enredo, registra elementos da vida na sociedade

parisiense que, do ponto de vista determinista, une todos os acontecimentos

posteriormente causadores do conflito. Em outras palavras, o enredo da novela

só acontece porque é situado em Paris, cidade em que todos os comportamentos

são aceitáveis.

As marcas da enunciação, ainda no trecho anterior da novela, são

significativas, pois encaminham o leitor para a diferenciação entre as classes

sociais parisienses. As perguntas feitas pelo narrador, como um reflexo do

possível questionamento do leitor diante dos fatos, têm sempre como resposta

“o ouro e o prazer”.

Ao dizer “Qui donc domine en ce pays sans moeurs, sans croyance, sans

aucun sentiment; mais d’où partent et où aboutissent tous les sentiments, toutes

les croyances et toutes les moeurs? L’or et le plaisir.”, o narrador aponta a

incredulidade do leitor diante da desvalorização humana na cidade. O mesmo

ocorre no trecho em que o narrador convida o leitor a transitar atenciosamente

pela cidade para conhecer seus tipos sociais (“Voyez. Examinez d’abord le

monde qui n’a rien?”), e, em seguida, introduzir a apresentação das classes

sociais de Paris.

II. As classes sociais de Paris

Em um dos trechos sobre o proletariado, primeira classe apresentada por

Balzac, ele diz:

[...] Puis, insouciants de l’avenir, avides de jouissances, comptant sur leurs bras comme le peintre sur sa palette, ils jettent, grands seigneurs d’un jour, leur argent le lundi dans les cabarets, qui font une enceinte de boue à la ville; ceinture de la

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plus impudique des Vénus, incessamment pliée et dépliée, où se perd comme au jeu la fortune périodique de ce peuple, aussi féroce au plaisir qu’il est tranquille au travail. [...] (BALZAC, 1968, p.10).11

A menção à Vênus (Afrodite Pandêmia, no panteão grego) é significativa,

pois ela é o símbolo do prazer, aspecto tão apontado pelo narrador. Segundo

Junito Brandão, a deusa é venerada por todos os povos antigos:

Platão, no Banquete, estabelece uma distinção rígida entre a Pandêmia, a inspiradora dos amores comuns, vulgares, carnais, e a Urânia, a Celeste, a inspiradora de um amor etéreo, superior, imaterial, através do qual se atinge o amor supremo, como Diotima revelou a Sócrates. Este "amor urânico", desligando-se da beleza do corpo, eleva-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que é partícipe do eterno (1986, p. 216).

Por ser a deusa da beleza, da sedução e dos prazeres, Vênus pode ser

vista nesse contexto como a concretização de Paris em mulher. Nas palavras de

Jean-Louis Backés (BRUNEL, 2005, p. 20), a complexidade da evocação do

nome de Vênus ou Afrodite está nos inúmeros relatos míticos em que ela tem

importância fundamental, principalmente por sua eficiência em causar conflitos

e atrair a paixão.

11[...] E, descuidados do futuro, ávidos de prazeres, constando com os braços como os pintores com suas palhetas, atiram, grandes senhores de um dia, seu dinheiro às segundas-feiras nas tabernas, que cercam a cidade de um cinto de lama, cinto da mais impudica das Vênus, incessantemente afivelado e desafivelado, onde se perde, como no jogo, a fortuna periódica dessa gente tão feroz no prazer como resignada no trabalho. [...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 338).

40

(Vênus de Milo)

Figura 2: Alexandre de Antioquia, Vênus de Milo. Escultura. Museu do Louvre. Disponível em:

https://br.pinterest.com/pin/556757572656207954/?lp=true. Acesso em: 9 jun 2018.

Dessa forma, ela é reconhecida prontamente como a deusa do amor, mas

essa condecoração a reduz a uma forma abstrata e aparentemente inofensiva,

quando a deusa é “uma figura da fraqueza e dos desejos desenfreados”

(BRUNEL, 2005, p. 21) muitas vezes alusiva do amor carnal, na tradição

Ocidental cristã correlacionado com os pecados mortais, tornando Vênus

símbolo da mulher demoníaca.

Ao longo de sua análise sobre Afrodite (Vênus), Jean-Louis Backés afirma

que ela

[...] não é somente uma mulher maravilhosamente bela: sua beleza, antes de tudo, revela-se de repente mais luminosa, mais imponente ainda. [...] Ela é uma luz que fulmina. [...] [...] Ela tem pouco peso diante da palavra “furor”, com tudo o que essa palavra acarreta. A cólera desvairada da deusa e a insuportável paixão que devora sua vítima têm o mesmo nome (IN: BRUNEL, 2005, p. 23).

Tanto Vênus como Paris são sinônimos de luminosidade, a qual expõe

todo o esplendor das duas. É por esse motivo, que no contexto da novela as

duas são o espelho uma da outra. Enquanto, no imaginário coletivo, Paris é a

cidade-luz (ou cidade-chama), Afrodite é reconhecida por sua beleza

deslumbrante, ambas sendo desejadas e idealizadas graças ao fascínio

arrebatador causado nos homens. Sempre usando o amor e a sedução como

41

arma para atrair seus amantes, as duas figuras femininas são sensuais e

vingativas em grandezas proporcionais. Nas palavras de Junito Brandão

“quando se tratava de satisfazer os seus caprichos ou vingar-se de uma ofensa,

(Vênus/Afrodite) fazia do amor uma arma e um veneno mortal” (1986, p.221),

assim como Paris que degrada a moral dos seus amantes. É por esse motivo,

que a imagem esculpida de Vênus (Afrodite) embeleza o Louvre, permitindo que

a deusa seja uma habitante emblemática de Paris, visitada e admirada por

inúmeros turistas.

(Afrodite de Cnido - Primeira representação da deusa eroticamente

nua)

Figura 3: Praxíteles. Afrodite de Cnido. Escultura. Museu do Louvre. Disponível em:

https://i.pinimg.com/originals/00/38/ec/0038ec2fd11eddd09e2ef23ebadffa5e.jpg. Acesso em: 9

jun 2018.

A cidade, portanto, tem suas estratégias e meios para tornar os homens

seus amantes, da mesma forma como Hefesto (Vulcano, mitologia romana)

amou Vênus.

Ces hommes, nés sans doute pour être beaux, car toute créature a sa beauté relative, se sont enrégimentés, dès l’enfance, sous le commandement de la force, sous le règne du marteau, des cisailles, de la filature, et se sont promptement vulcanisées. Vulcain, avec sa laideur et sa force, n’est-il pas l’emblème de cette laide et forte nation, sublime d’intelligence mécanique, patiente à ses heures, terrible un jour par siècle, inflammable comme la poudre, et préparée à l’incendie révolutionnaire par l’eaude- vie, enfin assez spirituelle pour prendre feu sur un mot captieux qui signifie toujours pour elle: or et plaisir! (BALZAC, 1968, p. 11).12

12 Esses homens, nascidos, sem dúvida, para serem belos, pois que toda criatura tem sua beleza relativa, arregimentaram-se desde a infância sob o comando da força, sob o império do martelo,

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Se Paris é representada por Vênus (Afrodite), os operários, como salienta

o próprio Balzac, têm como símbolo Vulcano, o deus coxo e fragilizado por sua

deficiência, esposo de Afrodite e traído por ela com seu irmão Ares, deus da

guerra e da perfeita constituição física. Vulcano, deus do fogo, dos metais, dos

ferreiros, dos artesãos e dos escultores, é aquele que apesar de sua aparência

disforme, domina a arte de modelar as mais belas e ricas joias.

(Hefesto na Forja)

Figura 4: Guillaume Coustou, o Jovem. Hefesto na Forja. Escultura. Museu do Louvre. Disponível

em: https://br.pinterest.com/pin/664914332456078834/. Acesso em: 9 jun 2018.

Dedicado à criação da beleza com as próprias mãos, Vulcano (Hefesto),

o deus trabalhador, se opõem à Vênus (Afrodite) em algumas características: se

a deusa é a imagem da beleza, ele é reconhecido por sua deformidade. Se

Vênus é a perfeição física, Vulcano é a mácula. Se Vênus é a deusa da

espontaneidade, da vida alegre, entusiasmada e jovial, Vulcano é aquele que

passa os dias em sua forja e que sofre com infidelidade de sua esposa. A mesma

relação é mantida entre os operários e Paris, que aspiram a vivência na cidade.

Brandão descreve os atributos de Hefesto (Vulcano):

das tesouras ou da fiação, e prontamente se vulcanizaram... Vulcano, com a sua deformidade e a sua força, não é acaso o símbolo desta nação disforme e forte, sublime de inteligência mecânica, paciente todo o tempo, terrível um dia por século, inflamável como a pólvora e preparada para o incêndio revolucionário pelo álcool, bastante espiritual enfim para prender fogo a um monte capcioso que para ela significa sempre: ouro e prazer?! (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 338 e 339).

43

[..] trabalhava o ferro, o bronze e os metais preciosos, tornando-se "o mais engenhoso de todos os filhos do céu". Em sua longa carreira de ferreiro e ourives divino, Hefesto multiplicou suas criações, forjando e confeccionando os mais preciosos, belos e "surpreendentes" objetos de arte que já se viram. [...] Para Tétis, a quem era imensamente grato, fabricou joias preciosíssimas e forjou, a pedido desta, novas armas para Aquiles. [...] tendo envolvido seu próprio leito numa rede invisível, surpreendeu sua esposa Afrodite em flagrante adultério com Ares. A obra prima do coxo genial, porém, foi a "criação" da primeira mulher. Por solicitação de Zeus, Hefesto modelou em argila uma mulher ideal, fascinante, irresistível, Pandora. Não a modelou apenas, foi além do artista: animou-a com um sopro divino [...] (1987, p. 45).

No entanto, as amarras amorosas colocadas em Hefesto por Afrodite

criam um paradoxo intrigante, pois se por um lado ele é o deus capaz de atar e

desatar nós, por outro lado é preso nas artimanhas da beleza e da sedução de

Vênus.

Brandão comenta a esse respeito que Hefesto (Vulcano),

É o xamã dos nós, o deus enfeixador. E graças a seus trabalhos artísticos e mágicos, como tronos, redes, correntes, é capaz não só de atar deuses e deusas e até o Titã Prometeu, mas ainda sabe, quando solicitado, desatar com maestria, conforme demonstrou, assistindo Zeus como parteiro, por ocasião do nascimento de Atená, e libertando sua mãe do trono e sua esposa e o amante Ares da corrente invisível. "Em parte alguma, aliás, a equivalência da magia e da perfeição tecnológica é mais bem valorizada do que na mitologia de Hefesto [...]. Os nós, as redes, os cordões, as cordas, os barbantes alinham-se entre as expressões ilustradas da força mágico-religiosa indispensável para poder comandar, governar, punir, paralisar, ferir mortalmente; em suma, expressões 'sutis', paradoxalmente delicadas, de um poder terrível, desmedido, sobrenatural", diz com maestria Mircea Eliade (1987, p. 48).

Mantendo o paralelo, dessa forma, Hefesto se rende às armadilhas

apaixonantes de Afrodite por elas serem irresistíveis do mesmo modo que as

promessas de ascensão social feitas por Paris ao proletariado.

A ideia de Hefesto como o deus responsável pela criação das armas e

joias dos deuses também se associa ao desejo por ouro dos operários, uma vez

que, mesmo sendo os produtores do dinheiro, por meio do trabalho, são aqueles

que menos o tem. A ambição do proletariado em possuir tanto o dinheiro como

a cidade é a mesma do deus que é fundamental para os outros deuses e heróis

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nas guerras e no esbanjo das deusas com seus adornos, mas esquecido e

rejeitado por sua composição física disforme.

Ironicamente o reconhecimento tão desejado pelo proletário é concedido

a ele por Balzac quando diz:

Et, d’abord, saluez ce roi du mouvement parisien, qui s’est soumis le temps et l’espace. Oui, saluez cette créature composée de salpêtre et de gaz qui donne des enfants à la France pendant ses nuits laborieuses, et remultiplie pendant le jour son individu pour le service, la gloire et le plaisir de ses concitoyens. Cet homme résout le problème de suffire, à la fois, à une femme aimable, à son ménage, au Constitutionnel, à son bureau, à la Garde nationale, à l’Opéra, à Dieu; mais pour transformer en écus le Constitutionnel, le Bureau, l’Opéra, la Garde nationale, la femme et Dieu. Enfin, saluez un irréprochable cumular (BALZAC, 1968, p. 13).13

Além do tom irônico, a enunciação, neste fragmento, também é relevante,

pois, o verbo saudar é colocado na segunda pessoa do plural em francês,

orientando que o reconhecimento aos operários seja concedido pelos leitores da

novela.

Há, portanto, um desacordo entre o que o narrador afirma e o que o

enunciado manifesta, pois o reconhecimento da classe operária é dado de

maneira parcial, já que o uso da ironia aponta para uma reverência falsa,

evidenciando que não importa o esforço dessa classe para ser reconhecida, isso

não acontecerá.

Os recursos da enunciação são modificados quando o narrador passa a

falar a respeito da segunda camada parisiense:

13 Mas, antes de tudo, saudemos esse rei do movimento parisiense, que submeteu a si o tempo

e o espaço. Sim, saudemos essa criatura composta de azougue e de gás, que dá filhos à França durante suas noites laboriosas e multiplica durante o dia a sua pessoa para o serviço, a glória e o prazer dos seus concidadãos. Tal homem resolveu o problema de satisfazer, ao mesmo tempo, a uma mulher amável, ao lar, a Le Constitutionnel, à repartição, à Guarda Nacional, à Ópera e a Deus; mas para transformar em escudos Le Constitutionnel, a repartição, a Ópera, à Guarda Nacional, a mulher e a Deus. Saudemos, enfim, o irrepreensível acumulador. (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 339 e 340).

45

Cette ambition introduit la pensée dans la seconde des sphères parisiennes. Montez donc un étage et allez à l’entresol ou descendez du grenier et restez au quatrième ; enfin pénétrez dans le monde qui a quelque chose : là, même résultat. [...] (BALZAC, 1968, p. 17).14

Quando emprega os verbos no modo imperativo, há o que Fiorin

denomina como função de comunicação, uma das cinco desempenhadas pelo

narrador, que consiste em orientar o leitor. Nas palavras do autor “a função de

comunicação reside numa orientação para o narratário, quando o narrador

conversa com ele, imagina suas reações etc.” (2016, p. 93).

Como o imperativo francês indica, de maneira modalizada, que o leitor

percorra o ambiente descrito pelo narrador em busca dos acontecimentos, ele

fortalece o efeito de realidade produzido pelo discurso, uma vez que por meio da

escolha do modo e da pessoa verbais o narrador enfatiza o caráter de verdade

que está presente nos relatos. Pode-se dizer, então, que o narrador desafia

indiretamente o narratário a ir até Paris, verificar a descrição feita e contestá-la

caso esteja equivocada ou exagerada. Mais uma vez, dessa forma, o narrador

funde em Paris a construção do espaço social e do espaço psicológico. Nesse

trecho, a Paris concreta, como local real, e a Paris abstrata, existem apenas no

imaginário do leitor e dos personagens, uma vez que se tornam apenas uma.

Mais uma vez o emprego do advérbio “lá” cria o distanciamento entre

narrador, o narratário e as cenas relatas, como constamos no fragmento abaixo:

Là donc aussi, pour obéir à ce maître universel, le plaisir ou l’or, il faut dévorer le temps, presser le temps, trouver plus de vingtquatre heures dans le jour et la nuit, s’énerver, se tuer, vendre trente ans de vieillesse pour deux ans d’un repos maladif. Seulement l’ouvrier meurt à l’hôpital, quand son dernier terme de rabougrissement s’est opéré, tandis que le petit bourgeois persiste à vivre et vit, mais crétinisé: vous le rencontrez la face usée, plate, vieille, sans lueur aux yeux, sans fermeté dans la jambe, se traînant d’un air hébété sur le boulevard, la ceinture de sa Vénus, de sa ville chérie. [...] (BALZAC, 1968, p. 18).15

14 Essa ambição leva a considerar a segunda camada parisiense. Subi, pois um andar de chegai ao sótão ou descei do sótão e permanecei no quarto piso. Penetrai, enfim, na sociedade que possui algo: lá, o resultado é o mesmo. [...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 342). 15 Lá, também, para obedecer a esse senhor universal, o prazer ou o ouro, é preciso devorar o tempo, apressar o tempo, arranjar mais de vinte e quatro horas no dia e na noite, enervar-se, matar-se, vender trinta anos de velhice por dois anos de repouso doentio. Apenas o operário morre no hospital ao se operar a último termo do seu definhamento, enquanto o pequeno-burguês persiste em viver e vive, mas cretinizado; encontrá-lo-eis com a face gasta, aplastada, velha, sem brilho nos olhos, sem firmeza nas pernas, arrastando-se com ar idiota pelos

46

Se quando discorreu a respeito do operário, Balzac o representou a partir

da imagem de Vulcano, ao abordar a burguesia, a associação é feita com o

tempo.

Mais prepotente do que o proletariado que queria ser aceito e

reconhecido, o burguês busca habilidades divinas quando objetiva burlar o

tempo, buscando meios de devorar o próprio devorador de tudo e de todos.

Nesse momento da narrativa, é evocado, indiretamente, o símbolo de Crono,

deus representativo da temporalidade.

Crono, em grego KrÒno$ (Krónos), sem etimologia certa até o momento. Por um simples jogo de palavras, por uma espécie de homonímia forçada, Crono foi identificado muitas vezes com o Tempo personificado, já que, em grego XrÒno$ (Khrónos) é o tempo. Se, na realidade, Krónos, Crono, nada tem a ver etimologicamente com Khrónos, o Tempo, semanticamente a identificação, de certa forma, é válida: Crono devora, ao mesmo tempo que gera; mutilando a Urano, estanca as fontes da vida, mas torna-se ele próprio uma fonte, fecundando Réia (BRANDÃO, 1986, p. 198).

Mesmo se tornando uma nova fonte de vida, Crono é aquele que teme o

dia de sua sucessão e por isso nunca descansa da tarefa de impedir que um dos

seus filhos se apodere de seu lugar. Tirano e faminto, ele engole os próprios

descendentes, demonstrando seu desejo insaciável de deter sua posição

hierárquica e seu poder. Crono é, então, representativo daqueles que não se

adaptam à evolução constante que a sociedade impõe e o pequeno-burguês,

sendo assim, se assemelha a ele por ter os mesmos desejos. Dessa maneira,

pode-se afirmar que, na visão balzaquiana, o maior medo da burguesia é perder

sua posição social, portanto, não se adaptando, da mesma forma de Crono às

mudanças e evoluções sociais.

No entanto, independentemente de se sentir superior ao operário, ele é

submetido aos caprichos da Vênus, da mesma maneira. Assim, enquanto o

proletariado busca o dinheiro para alcançar o prazer, o pequeno-burguês possui

o ouro, mas não consegue manter o padrão sem trabalhar demasiadamente e

não tem acesso aos mesmos ciclos sociais da alta burguesia, como indica o

próximo fragmento:

bulevares, o cinto de sua Vênus, de sua querida cidade (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 343).

47

Que voulait le bourgeois ? le briquet du garde national, un immuable pot-au-feu, une place décente au Père-Lachaise, et pour sa vieillesse un peu d’or légitimement gagné. Son lundi, à lui, est le dimanche; son repos est la promenade en voiture de remise, la partie de campagne, pendant laquelle femme et enfants avalent joyeusement de la poussière ou se rôtissent au soleil ; sa barrière est le restaurateur dont le vénéneux dîner a du renom, ou quelque bal de famille où l’on étouffe jusqu’à minuit (BALZAC, 1968, p. 19).16

(Rue Montmartre. Saint-Claude –

Representação do comércio parisiense do final do século XIX)

Figura 5: Charles Marville. [Sem título]. Fotografia. Musée Carnavalet. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/boutique/filtered/1. Acesso

em: 11 nov 2017.

A alta burguesia, mesmo sendo uma classe superior, é relacionada a

Crono da mesma maneira, para Balzac

[...] Le temps est leur tyran, il leur manque, il leur échappe ; ils ne peuvent ni l’étendre, ni le resserrer. Quelle âme peut rester grande, pure, morale, généreuse, et conséquemment quelle figure demeure belle dans le dépravant exercice d’un métier qui force à supporter le poids des misères publiques, à les analyser, les peser, les estimer, les mettre en coupe réglée ? Ces gens-là

16 Que deseja o burguês? O sabre da Guarda Nacional, um cozido, invariável, um lugar decente no Pére-Lachaise, e, para a velhice, um pouco de ouro, legitimamente ganho. A segunda-feira dele é o domingo, seu repouso é o passeio ao campo, num carro de aluguel, passeio durante o qual a mulher e os filhos engolem alegremente a poeira ou se assam no sol; sua barreira é o restaurante, cujo venenoso jantar possui renome, ou algum baile familiar onde se sufoca até meia-noite (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 343).

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déposent leur coeur, où ?... je ne sais ; mais ils le laissent quelque part, quand ils en ont un, avant de descendre tous les matins au fond des peines qui poignent les familles. [...] (BALZAC, 1968, p.19).17

O que aproxima o pequeno-burguês do proletariado e afasta-o da alta

burguesia é a honestidade. Se as duas primeiras classes lutam e trabalham para

se encaixarem nos padrões parisienses, a alta burguesia extorque as demais

classes.

Na sequência encontra-se a classe dos artistas parisienses, a qual é de

suma importância para as análises comparativas com as demais obras – Paris é

uma festa e Meia-noite em Paris, nos próximos capítulos. O narrador apresenta

os artistas brevemente:

Au-dessus de cette sphère, vit le monde artiste. […] Excédés par un besoin de produire, dépassés par leurs coûteuses fantaisies, lassés par un génie dévoreur, affamés de plaisir, les artistes de Paris veulent tous regagner par d’excessifs travaux les lacunes laissées par la paresse, et cherchent vainement à concilier le monde et la gloire, l’argent et l’art. En commençant, l’artiste est sans cesse haletant sous le créancier, ses besoins enfantent les dettes, et ses dettes lui demandent ses nuits. Après le travail, le plaisir. […] La concurrence, les rivalités, les calomnies assassinent ces talents. Les uns, désespérés, roulent dans les abîmes du vice, les autres meurent jeunes et ignorés pour s’être escompté trop tôt leur avenir. Peu de ces figures, primitivement sublimes, restent belles. D’ailleurs la beauté flamboyante de leurs têtes demeure incomprise. Un visage d’artiste est toujours exorbitant, il se trouve toujours en dessus ou en dessous des lignes convenues pour ce que les imbéciles nomment le beau idéal. Quelle puissance les détruit? La passion. Toute passion à Paris se résout par deux termes: or et plaisir (BALZAC, 1968, p. 26 e 27).18

17 [...] O tempo é o seu tirano; falta-lhe e foge-lhe; não o podem aumentar nem diminuir. Que alma pode conservar-se grande, pura, moral e generosa, e, consequentemente, que rosto permanecerá belo no degradante exercício de uma profissão que força a suportar o peso das misérias públicas, a analisá-las, pesá-las, avaliá-las e explorá-las? Onde coloca essa gente o coração? ... Não sei; mas deixa-o em algum lugar, quando o tem, antes de descer todas as manhãs ao fundo das angústias que torturam as famílias. [...] ( Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 345). 18 Acima dessa esfera vive o mundo artístico. [...] Esgotados pela necessidade de produzir, fatigados pelas suas árduas fantasias, cansados por um gênio devorador, esfomeados de prazeres, os artistas de Paris querem reparar com penosos trabalhos as lacunas deixadas pela preguiça, e visam em vão conciliar a sociedade e a glória, o dinheiro e a arte. No começo, o artista vive incessantemente a ofegar sob o acicate dos credores; suas necessidades geram as dívidas e as dívidas exigem-lhe as noites. Depois do trabalho vem o prazer. [...] A concorrência, as rivalidades e as calúnias assassinam os talentos. Uns, despreparados, rolam no abismo dos vícios, outros morrem jovens e ignorados por haverem descontado muito cedo sobre o futuro. Poucas dessas figuras, originalmente sublimes, continuam belas. De resto, a beleza flamejante

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Percebe-se que essa classe social destoa das demais, pois apesar de

precisar de dinheiro, não se rende a ele em busca do prazer. O discurso indireto

livre “Après le travail, le plaisir”, mostra a consciência tanto do narrador, como

dos próprios artistas de que o trabalho é mantido apenas como um meio para

sobreviver, não um caminho para ascender socialmente. Em outras palavras, o

artista parisiense sabe que é incompreendido por estar à frente de seu tempo,

em descompasso com o presente. Paris, todavia é a cidade onde há espaço para

seu ofício.

É impossível não relacionar os artistas com seu deus símbolo, Apolo que,

segundo Françoise Graziani, tem quatro atribuições: a medicina, a divinação, a

música e a arte do tiro. (BRUNEL, 2005, p. 66). Em sua análise do mito de Apolo,

a autora salienta:

Devido a sua posição central no Universo, ele é chamado “coração do céu”, por analogia a função vital “pulsativa” do coração no corpo humano: o sol, fonte da vida, comunica aos astros seus movimentos. Por isso ele se senta no meio das nove Musas, alegorias das nove esferas celestes, pois representa com elas a Harmonia e o Universo, signo de “simetria e concordância”. Assim, a Música das Esferas está na origem da atribuição da Música e da Poesia ao deus solar (Idem, p. 67).

O artista, dessa forma, é aquele cuja ascensão em Paris não ocorre por

meio do poder garantido pelo ouro, mas pelo reconhecimento de sua obra. Paris

para o artista não é a Vênus que seduz e encanta, mas a musa que inspira e

estimula, contudo, o desejo, quase impossível, de ser reconhecido pelos críticos

da sociedade, torna o fracasso dessa classe inevitável.

A razão tão característica de Apolo – por ser o deus sol, a clarividência é

prontamente atribuída a ele - é destruída no cenário parisiense pela paixão que

norteia todo o trabalho do artista – a inspiração artística e a produção cultural o

distinguem dos demais. O artista, assim como acontece com as outras classes,

é dependente da cidade para alcançar seus ideais, pois somente quando seu

talento é aplaudido por Paris que suas ambições são concretizadas.

de suas cabeças permanece incompreendida. Uma fisionomia de artista é sempre exorbitante, encontra-se sempre aquém ou além das linhas convencionais daquilo que os imbecis denominam de belo ideal. Que poder os destrói? A paixão. Toda paixão em Paris resume-se em dois termos: ouro e prazer (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 348).

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Na sequência do relato, o narrador passa a descrever a última classe, a

aristocracia parisiense. Diz ele:

Maintenant, ne respirez-vous pas? Ne sentezvous pas l’air et l’espace purifiés? Ici, ni travaux ni peines. La tournoyante volute de l’or a gagné les sommités. Du fond des soupiraux où commencent ses rigoles, du fond des boutiques où l’arrêtent de chétifs batardeaux, du sein des comptoirs et des grandes officines où il se laisse mettre en barres, l’or, sous forme de dots ou de successions, amené par la main des jeunes filles ou par les mains ossues du vieillard, jaillit vers la gent aristocratique où il va reluire, s’étaler, ruisseler. [...] (BALZAC, 1968, p. 27 e 28).19

Se o ouro e o prazer são, ao longo da narrativa, apresentados sempre

associados, por meio da detenção do dinheiro, a aristocracia detém também o

prazer e assim é o modelo social almejado por todas as outras classes. Faz-se

mister ressaltar que contemporaneamente à publicação de A menina dos olhos

de ouro, a França tinha acabado de passar pela Revolução de Julho de 1830 ou,

como também ficou conhecida Três Gloriosas, na qual houve a derrubada do

trono de Carlos X, após o período da Restauração Bourbon (entre 1814, ano da

queda de Napoleão, e 1830).

A novela balzaquiana teve sua primeira publicação em 1835, período em

que a acessão da burguesia é incontestável, já que Luís Felipe de Orléans, que

subiu ao trono ficou conhecido como o “Rei Burguês” por tomar decisões

favoráveis à nova classe. Entretanto, Balzac evidencia ao longo de todo o relato

que o padrão social francês ainda era ditado pela aristocracia e a busca

incessante por ouro e prazer praticada pela burguesia e pelo proletariado

simboliza a constante luta de classes do período histórico e o desejo dos novos

ricos de alcançarem a nobreza.

A aristocracia determina o padrão social, ela é a classe que, seguindo o

paralelo de representação pelos deuses gregos, pode ser relacionada a Zeus,

pois, segundo Junito Brandão (1986), ele é quem derrota Crono e estabelece

19 Agora, respiremos. Não sentis o ar e o espaço purificados? Aqui não há trabalho nem penas. A turbilhonante voluta do ouro atingiu as alturas. Do fundo dos respiradouros onde começam as suas torrentes, do fundo das lojas onde a detêm mesquinhas ensecadeiras de dentro dos balcões ou dos grandes laboratórios onde se deixa fundir em barras, o ouro, sob a forma de dotes ou de sucessões, trazido por mãos de mocinhas ou por mãos ossudas de velhos, flui para a gente aristocrática em cujas mãos vai reluzir, ostentar-se, jorrar. [...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 349).

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uma nova ordem social, sendo líder nato do mundo. Além de filho de Crono com

Réia, Zeus foi amamentado pela cabra Amaltéia e colocado em antro profundo

para se preparar para as batalhas que enfrentaria, sendo, desse modo, o

sucessor profético de seu pai e o chefe da nova família do Olimpo e, por

consequência, o legislador das novas regras sociais.

“O fato é que o deus dos raios e dos trovões se preparou iniciaticamente

para assumir o governo do mundo.” (BRANDÃO, 1986, p. 334) o que permite

aproximar da aristocracia, pois os indivíduos dessa classe social o são por

nascimento. O privilégio de nascer aristocrata e por isso determinar a ordem

social não impede, contudo, a participação das outras classes na sociedade,

para a manutenção da economia.

Nas palavras de Brandão

É conveniente, no entanto, deixar claro que o triunfo de Zeus, embora patenteie a vitória da ordem sobre o Caos, como pensava Hesíodo, não redundou na eliminação pura e simples das divindades primordiais. Algumas delas, se bem que desempenhando papel secundário, permaneceram integradas no novo governo do mundo e cada uma, a seu modo, continuou a contribuir para a economia e a ordem do Universo. Até mesmo a manutenção de Zeus no poder, ele a deve, em parte, à admoestação de Géia e Urano, que lhe predisseram o nascimento de um filho que o destronaria (1986, p. 339).

Dessa forma, para a permanência da aristocracia como a classe mais

privilegiada, é necessário que as demais se mantenham com suas funções bem

determinadas, como o próprio momento histórico revela, ao depois de uma

revolta popular e burguesa manter no poder até 1848 um rei que soube ponderar

decisões satisfatórias tanto à burguesia como à monarquia.

Logo, diferentemente das outras classes, para as quais Paris era o desejo

de ascensão, para a aristocracia a cidade é o palco onde se determinam os

valores e padrões a serem seguidos pelos demais e onde seu eterno embate

com a burguesia é realizado. Se Paris é a Vênus que ora encanta os operários

e os burgueses, ora inspira os artistas, para a aristocracia ela é a deusa que

serve às suas vontades.

Não é sem propósito, então, que o parágrafo seguinte denomina Paris

como Lutèce.

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[...] Si l’air des maisons où vivent la plupart des bourgeois est infect, si l’atmosphère des rues crache des miasmes en des arrière-boutiques où l’air se raréfie ; sachez qu’outre cette pestilence, les quarante mille maisons de cette grande ville baignent leurs pieds en des immondices que le pouvoir n’a pas encore voulu sérieusement enceindre de murs en béton qui pussent empêcher la plus fétide boue de filtrer à travers le sol, d’y empoisonner les puits et de continuer souterrainement à Lutèce son nom célèbre. [...] (BALZAC, 1968, p. 28 e 29).20

(Tournelle, Ponte Louis-Philippe)

Figura 6: Léon et Levy, Roger-Viollet. [Sem título]. Fotografia. Disponível em :

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/search/Paris%201860/page/1. Acesso em :

6 nov 2017.

Lutèce, primeiro nome de Paris, cuja raiz latina lutum significa lodo,

representa, antecipa e reitera a visão de sociedade corrompida, pois

Mistura de terra e água, a lama une o princípio receptivo e material (a terra) ao princípio dinâmico da mutação e das transformações (a água). [...] Se considerarmos como ponto de partida a água com sua pureza original, a lama se apresenta como um processo involutivo, um início de degradação. Daí provém o fato de que a lama ou o lodo, através de um simbolismo ético, passe a ser identificada com a escória da sociedade (e com o seu meio ambiente), com a ralé, ou seja, com os níveis inferiores do ser: uma água contaminada, corrompida (CHEVALIER, 2009, p. 534).

20 [...] O ar das casas em que vive a maior parte dos burgueses é infecto, a atmosfera das ruas cospe miasma cruéis nas peças interiores das lojas onde o ar se rarefaz; mas, além dessa pestilência, os quarenta mil prédios dessa grande cidade mergulham seus alicerces em imundícies que o poder público não quis ainda seriamente cercar de muralhas que impeçam a lama mais fétida de filtrar-se através do solo, de envenenar os poços e de fazer perdurar subterraneamente em Lutécia seu nome célebre. [...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 349).

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Como o nome foi dado pelos romanos à cidade por conta da cheia do rio

Sena que a cobria de lodo (como a foto anterior comprova), a própria

característica geográfica da cidade já anuncia a sociedade que ali será

construída, e como o poder público é representado pela aristocracia, ela é a

responsável pelo lodo físico e moral de Paris.

O lodo está presente nas descrições tanto de Vergílio como de Dante do

inferno. O primeiro poeta diz: “daqui começa o caminho que conduz às ondas do

Aqueronte do Tártaro: é um golfo que borbulha, vasto abismo de lodo que referve

e que vomita todo seu limo no Cocito” (1996, p. 118).

Já Dante afirma:

E io, che di mirare stava inteso, vidi genti fangose in quel pantano, ignude tutte, con sembiante offeso. Queste si percotean non pur con mano, ma con la testa e col petto e coi piedi, troncandosi co' denti a brano a brano (ALIGHIERI, La divina commedia. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/ladivinacommedia.pdf. Acesso em: 01 jul 2019).21

E retoma “Este pântano, que tão horrível cheiro exala, circunda a cidade

dolorosa, onde sem luta não nos será dado entrar” (Idem, p. 35). É interessante

notar, além dos símbolos do inferno e do lodo propriamente ditos, que os círculos

infernais de Alighieri são vistos como cidades, aproximando ainda mais a sua

descrição daquela feita por Balzac. O lodo é inevitável em Paris não só por sua

posição geográfica, mas principalmente por sua face satânica.

A descrição feita mais adiante no relato aponta para os aspectos

negativos da aristocracia. Diz Balzac:

[...] Cette vie creuse, cette attente continuelle d’un plaisir qui n’arrive jamais, cet ennui permanent, cette inanité d’esprit, de

21 Eu, que em observar me concentrava, percebi sombras metidas no pântano. Estavam

desnudas, cobertas de lodo, e traziam irritado o semblante fosco. Flagelavam-se, não apenas com as mãos mas também da cabeça, do peito e dos pés fazendo azorragues. [...] (ALIGHIERI, 2009, p.31).

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coeur et de cervelle, cette lassitude du grand raout parisien se reproduisent sur les traits, et confectionnent ces visages de carton, ces rides prématurées, cette physionomie des riches où grimace l’impuissance, où se reflète l’or, et d’où l’intelligence a fui (BALZAC, 1968, p. 31).22

Fica claro no trecho final do fragmento que o lodo parisiense existe por

falta de capacidade dos aristocratas de gerenciar a cidade. Na continuação da

narrativa, a cidade é apresentada por meio da imagem de um navio:

Cette vue du Paris moral prouve que le Paris physique ne saurait être autrement qu’il n’est. Cette ville à diadème est une reine qui, toujours grosse, a des envies irrésistiblement furieuses. Paris est la tête du globe, un cerveau qui crève de génie et conduit la civilisation humaine […]. Sa physionomie sous-entend la germination du bien et du mal, le combat et la victoire ; la bataille morale de 89 dont les trompettes retentissent encore dans tous les coins du monde, et aussi l’abattement de 1814. […] Paris n’est-il pas un sublime vaisseau chargé d’intelligence ? Oui, ses armes sont un de ces oracles que se permet quelquefois la fatalité. La ville de Paris a son grand mât tout de bronze, sculpté de victoires, et pour vigie Napoléon. Cette nef a bien son tangage et son roulis; mais elle sillonne le monde, y fait feu par les cent bouches de ses tribunes, laboure les mers scientifiques, y vogue à pleines voiles, crie du haut de ses huniers par la voix de ses savants et de ses artistes: – « En avant, marchez! Suivez-moi! » [...] (BALZAC, 1968, p. 31, 32 e 33).23

22 Essa vida oca, essa contínua espera de um prazer que nunca chega, esse tédio permanente, essa inanidade de espírito, de coração e de cérebro, essa lassidão das altas-rodas parisienses reproduzem-se nos traços de seus componentes e dão lugar a essas máscaras de papelão, a essas rugas prematuras, a essas fisionomias de ricos em que se patenteia a importância, em que se reflete o ouro e de onde fugiu a inteligência (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 351). 23 Esse aspecto da Paris moral prova que a Paris física não poderia ser diferente do que é. Essa cidade coroada é uma rainha que, sempre grávida, tem desejos irresistivelmente furiosos. Paris é a cabeça do globo, um cérebro que estala de gênio e dirige a civilização humana, [...]. Na sua fisionomia transparece a germinação do bem e do mal, o combate e a vitória, a batalha moral de 89 cujas trombetas ressoam ainda por todos os recantos do mundo, e, também, o desalento de 1814. [...] Paris não é um sublime navio carregado de inteligência? Sim, suas armas são um desses oráculos que por vezes a fatalidade se permite. A Cidade de Paris tem o seu grande mastro todo de bronze, esculpido de vitórias, e Napoleão como vigia. Essa nau tem também suas arfadas e seus balouços; mas cruza o mundo, faz fogo pelas cem bocas de suas tribunas, sulca os mares científicos neles, voga de velas soltas, e grita do alto de suas gáveas pela voz de seus sábios e de seus artistas: “Avante, marchai! Segui-me!”.[...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 351 e 352).

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(Arco do Triunfo)

Figura 7: Léon et Lévy. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/Arc+de+Triomphe/filtered/1.

Acesso em : 11 nov 2017.

O navio, segundo Chevalier, “evoca a ideia de força e de segurança numa

travessia difícil” (2009, p. 632), a imagem da nau se relaciona, dessa forma, com

a liderança cultural e social de Paris. Ao mencionar o ano de 89, uma referência

à Revolução Francesa (1789), e afirmar que as consequências da batalha

ressoam pelo mundo, fica claro que o narrador conhece a importância da cidade

como norteadora de costumes não só na França como também por toda a

Europa, principalmente, mesmo em um período em que as conquistas e as

glórias não são tão frequentes.

No fragmento supracitado, as referências ao processo expansionista

praticado por Napoleão indicam a responsabilidade dele na conquista territorial

francesa e, portanto, enfatizam a associação de Paris com um navio que adentra

o oceano dominando ideologicamente todas as terras que encontra.

O Arco do Triunfo, apresentado na imagem anterior, é um monumento

esculpido em homenagem às vitórias napoleônicas que adorna Paris e não

permite o esquecimento do período glorioso pelo qual a França passou antes de

1814.

Paulo Rónai diz que

Embora a importância política da França, depois da queda do Império e no meio das dificuldades da Restauração, tivesse ficado bastante reduzida, a capital francesa tinha então chegado ao apogeu de sua glória espiritual, artística e social. A certos

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pontos de vista, seu brilho era bem maior do que hoje, devido principalmente à ausência de concorrentes. Se Londres a igualara no número de habitantes e a superava como espório comercial, fica-lhe atrás no colorido, nas atrações, no movimento de estrangeiros. Roma, centro perene do catolicismo, ainda não era capital da Itália e, na atmosfera de suas ruas, ao cheiro de incenso misturava-se o mofo das glórias passadas. Madri definhava numa lenta decadência, Berlim era apenas o centro de um pequeno Estado prussiano, a capital dos czares ficava longe, atrás do nevoeiro, no meio de um deserto. Viena, sim, que reluzia, abrilhantada pela auréola de uma esplêndida corte, ostentando uma beleza alegre e harmoniosa; mas dava a impressão artística de uma joia sem comunicar o espanto de uma metrópole gigantesca. As grandes cidades de outros continentes estavam ainda na sua infância. Paris reinava sem contestação, sem partilha (2012, p. 137 e 138).

A partir do ideal de Liberdade, Igualdade e Fraternidade incutidos pelos

revolucionários, Paris passa a ser não só a capital da França, mas também o

centro da democracia. As ideias relativas ao Iluminismo (movimento filosófico

recorrente no século XVIII) que guiaram os protestos da Revolução tornaram

Paris a cidade onde as manifestações ideológicas e as mudanças sociais eram

possíveis.

A reforma política ocorrida na época transformou o pensamento social e

modificou a organização sócio-político-econômica primeiramente da França e

depois dos grandes centros urbanos ocidentais. Por meio dessa alteração dos

valores ideológicos criou-se a imagem de Paris como espaço das possibilidades

e é exatamente essa ideia coletiva da cidade que Balzac evoca não só em A

menina dos olhos de ouro, mas também em toda A comédia humana.

Orhan Pamuk na abertura de O romancista ingênuo e o sentimental diz

que

Um romance é uma segunda vida. Como os sonhos de que fala o poeta francês Gérard de Nerval, os romances revelam cores e complexidades de vida e são cheios de pessoas, rostos e objetos que julgamos reconhecer. Assim como no sonho, quando lemos um romance, às vezes ficamos tão impressionados com a natureza extraordinária das coisas que nele encontramos que esquecemos onde estamos e nos vemos no meio dos acontecimentos e das pessoas imaginárias que contemplamos. Em tais ocasiões, achamos que o mundo fictício que descobrimos e apreciamos mais real que o mundo real. O fato de essa segunda vida nos parecer mais real que a realidade muitas vezes indica que substituímos a realidade pelo romance, ou no mínimo o confundimos com a vida real. Mas nunca

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lamentamos essa ilusão, essa ingenuidade. Ao contrário, assim como em alguns sonhos, queremos que o romance que estamos lendo prossiga e esperamos que essa segunda vida continue evocando em nós uma sensação consistente de realidade e autenticidade. Apesar do que sabemos sobre a ficção, ficamos irritados e aborrecidos se um romance deixa de sustentar a ilusão de que é, na verdade, a vida real (2011, p. 9).

Quando Balzac, por meio dos recursos da enunciação, apresenta Paris

ao leitor refutando a imagem pré-estabelecida no inconsciente coletivo, constrói

uma outra versão da cidade. Em outras palavras, o discurso balzaquiano tenta

modificar a visão romantizada que possivelmente o leitor tenha da cidade, assim

como faz com inúmeros personagens de A comédia humana.

Como salienta Rónai (2011, p. 149), o título do romance Ilusões Perdidas

já antecipa qual é a interpretação de Paris que será abordada pelo autor durante

toda a sua obra. Entretanto, é no prólogo de A menina dos olhos de ouro que a

degradação da cidade e a busca por desconstruir a imagem de Paris como

cidade-luz é evidenciada de maneira contundente e direta.

III. Paris no imaginário coletivo

A segunda vida de Paris, construída pelo autor, causa impacto no leitor a

medida que a devassidão da cidade, apesar de inesperada, não impede que o

enredo aconteça. É possível afirmar, inclusive, que o conflito central da novela

só é admissível e, portanto, verossímil, porque se passa em Paris, pois os

acontecimentos mais surpreendentes da história, desde o relacionamento

amoroso das duas personagens femininas até o final trágico para Paquita e sem

punição para sua assassina, são coerentes com toda a corrupção descrita pelo

narrador na introdução da novela.

Logo, a segunda vida de Paris ao mesmo tempo que destrói a projeção

ideal da cidade no imaginário coletivo, também arquiteta uma nova visão a

respeito dela, complementar a existente antes da leitura da obra.

Ítalo Calvino afirma:

Diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de

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abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento (1990, p. 112).

Sendo assim, a imagem construída de Paris por Balzac parte da realidade

de seu tempo, mas como os acontecimentos históricos e culturais daquela época

ainda refletem no comportamento do homem do século XXI, tal concepção da

cidade se condensa na imaginação do leitor.

A importância da Revolução Francesa e de suas consequências para a

atualidade é ressaltada por Jorge Grespan na introdução de Revolução

Francesa e Iluminismo, quando ele afirma:

Para o historiador, todos os acontecimentos, mesmo os remotos, têm atualidade e vida. Mas isso é ainda mais verdadeiro no caso da Revolução Francesa de 1789, que transformou o modo de vida até daqueles que pouco souberam ou sabem dela até hoje em dia. Não será exagero dizer que ela ajudou a dar forma ao mundo ocidental contemporâneo, moldando as instituições e os ideais que no animam e que consideramos universais. A partir dela, superou-se definitivamente a tradicional concepção de que os homens seriam distintos por natureza, alguns nascendo melhores do que os outros, numa visão hierárquica que acompanhou a humanidade por milênios, para ser substituída só tão recentemente pela de que todos somos iguais. Pode ser, então, finalmente formulada a exigência de cidadania, da participação geral dos homens na tomada política das decisões sobre seu destino coletivo. Pôde também, por outro lado, radicalizar-se tal exigência na reivindicação por justiça social, em que mesmo as diferenças de classe devem ser abrandadas ou até suprimidas. Deste acontecimento crucial, assim, brotaram tanto os ideais modernos dos direitos humanos e da igualdade de todos perante a lei, quanto os da própria ‘revolução’ enquanto mudança necessária e radical das estruturas sociais, mudanças presentes de modo crítico na própria modernidade (2008, p. 9).

Mesmo o desfecho da narrativa, e até os aspectos principais do conflito,

não sendo um exemplo concreto dos valores da Revolução, é inegável que toda

a estrutura do enredo e a própria formulação da história, só é possível graças à

liberdade criativa e de expressão garantidas pelos ideais revolucionários.

Resumidamente, uma relação amorosa entre duas mulheres só é aceita

por uma sociedade em que a liberdade e a igualdade de direitos são uma busca

constante, todavia, como não era a aspiração do autor consagrar e enaltecer a

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ideologia dessa sociedade, cria-se um prólogo e um desfecho que questionam

os méritos desses ideais e apontam a corrupção desses mesmos valores.

Walter Benjamin afirma, contudo, que a lésbica é a heroína da

modernidade. Nela um ideal erótico – a mulher que evoca dureza e virilidade –

se combina a um ideal histórico originado no socialismo utópico difundido por

Saint-Simon na França naquela época (1991, p. 88). Ao produzir um conflito

desencadeado pelo romance entre duas mulheres, Balzac enfatiza a ideologia

da época, sem deixar de criticá-la.

Umberto Eco salienta a importância do paralelo entre o mundo real, cujas

leis são conhecidas pelo leitor, e o mundo ficcional que será apresentado como

uma parcela da realidade na obra lida. Nas palavras do autor:

Os mundos ficcionais são parasitas do mundo real, porém são com efeito ‘pequenos mundos’ que delimitam a maior parte de nossa competência do mundo real e permitem que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao nosso, embora ontologicamente mais pobre (1994, p. 91).

A visão de Paris construída por Balzac mantém, de acordo como o ponto

de vista de Eco, uma relação direta com a Paris existente no mundo real. Fato

que, mais uma vez, comprova a complementaridade entre as duas versões da

cidade no imaginário coletivo do leitor.

A enunciação reportada evidente em « En avant, marchez! Suivez moi! »,

quando o narrador passa a palavra para a própria cidade por meio da voz dos

artistas e sábios, é outro recurso presente no fragmento supracitado que aponta

para a influência de Paris na sociedade ocidental, pois somente um comandante

tem a autoridade necessária para guiar os demais.

Mais adiante no relato, o narrador afirma que

[...] à l’heureuse et molle espèce des flâneurs, les seuls gens réellement heureux à Paris, et qui en dégustent à chaque heure les mouvantes poésies. [...] (BALZAC, 1968, p. 34).24

A figura do flâneur evocada pelo narrador é de fundamental importância

para a análise comparativa entre as outras duas obras, nos capítulos posteriores

24[...] À feliz e frouxa espécie de flâneurs, únicas criaturas realmente felizes de Paris, que saboreiam a todo instante suas instáveis poesias. [...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 353).

60

(onde será analisada), pois a figura do andarilho observador da cidade é

retomada posteriormente tanto por Ernest Hemingway como, mais

insistentemente, por Woody Allen.

Não obstante, na sequência, ao dizer que as mulheres são as únicas que

aproveitam verdadeiramente a cidade (talvez por serem cúmplices de Vênus na

sedução), o narrador completa a caracterização de Paris:

[...] Cependant Paris est essentiellement aussi le pays des contrastes. Si les sentiments vrais y sont rares, il se rencontre aussi, là comme ailleurs, de nobles amitiés, des dévouements sans bornes. Sur ce champ de bataille des intérêts et des passions, de même qu’au milieu de ces sociétés en marche où triomphe l’égoïsme, où chacun est obligé de se défendre lui seul, et que nous appelons des armées, il semble que les sentiments se plaisent à être complets quand ils se montrent, et sont sublimes par juxtaposition. Ainsi des figures. [...] (BALZAC, 1968, p. 35).25

A disparidade entre toda a descrição de Paris feita até então na narrativa

e aquela colocada no trecho acima evidenciam a duplicidade da cidade que,

embora seja corrupta e degradada também é o local onde se pode encontrar

amizade e fidelidade. Essa aparente divergência entre as qualidades corrobora

ainda mais para a percepção de Paris como espaço das múltiplas possibilidades,

na imaginação do leitor.

É, por acreditar nessa visão ambígua e dupla da capital francesa, que o

leitor, assim como os personagens balzaquianos, é encantado por Paris e a

busca como um ideal de metrópole. No entanto, faz-se mister salientar que

mesmo se tornando uma utopia no imaginário coletivo, a Paris de Balzac é

descrita e observada como um ambiente distópico, dada sua aproximação dos

infernos vergiliano e dantesco.

25 [...] Paris é, entretanto, essencialmente, a cidade dos contrastes. Se os sentimentos verdadeiros são nela raros, encontram-se também ali, como por toda parte, nobres amizades, dedicações sem limites. No campo de batalha dos interesses e paixões, tal como no seio dessas sociedades em marcha nas quais triunfa o egoísmo, onde cada qual é obrigado a se defender sozinho, e que chamamos de exércitos, parece que os sentimentos quando surgem é para serem completos e se tornarem sublimes por justaposição. Assim, também, as fisionomias (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 353).

61

IV. Distopia parisiense

O conceito de distopia foi elaborado somente no século XX. Contudo é

notável em todo o prólogo da novela (e em outras obras de A comédia humana)

que a apresentação da cidade se dá não pelo deslumbramento do narrador sobre

as inúmeras maravilhas parisienses, mas por meio das suas particularidades

nocivas.

Se a Revolução Francesa incutiu os ideais utópicos de construção de uma

sociedade igualitária, fraterna e livre, Balzac aborda esses ideais por meio da

visão da utopia negativa, ou distopia. Russell Jacob diz que:

[...] a utopia leva à distopia – ou, pelo menos, que há muito pouco que distinga as duas. [...] As outras palavras compostas a partir do prefixo ‘dis-’, derivadas de uma raiz grega que significa doença ou imperfeição, são formas distorcidas de algo saudável ou desejável, mas a distopia é considerada menos como uma utopia deteriorada, do que como utopia desenvolvida. As distopias são habitualmente vistas não como o oposto das utopias, mas como o seu complemento lógico (2007, p. 33).

A definição de distopia como o complemento lógico da utopia26 se

fundamenta, como salienta o próprio Jacob, no desenvolvimento prático das

ideias utópicas. O exemplo citado inúmeras vezes pelo autor é o caso de Hitler,

que ao conceber uma sociedade ariana, em que na sua percepção seria utópica,

se tornou um dos grandes genocidas da história, fazendo da Alemanha de seu

tempo uma sociedade distópica.

Salvo as devidas proporções, a narrativa de A menina dos olhos de ouro,

apresenta um processo análogo, pois é a partir da utopia da Revolução que se

estabeleceu a degradação social e os personagens arrivistas balzaquianos. Se

por um lado a França é o território da liberdade e igualdade de direitos, por outro

a corrupção de valores morais e éticos é evidente.

26 Essa definição também é abordada por outros estudiosos como, por exemplo, Edward James

em Utopias and anti-utopias, artigo publicado em The Cambridge Companion to Science Fiction, 2003.

62

(Palácio do

Senado. Jardin du Luxembourg – Representação dos diretos dos cidadãos franceses)

Figura 8: Léopold Mercier. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/Jardin+du+Luxembourg/filte

red/1. Acesso em 18 nov 2017.

Jacob, ainda, ressalta que “ideias sobre paraíso, a igualdade e a

liberdade também aparecem nas obras de radicais islâmicos” (2007, p. 13), o

que aponta para a sútil separação entre utopia e distopia desses conceitos,

dependendo da interpretação dos idealistas e, sobretudo, das consequências

geradas por seus atos.

As questões utópicas também são apresentadas por meio da estrutura

linguística do prólogo da novela, pois assim como Thomas More e Tommaso

Campanella, Balzac apresenta Paris como um espaço distante e quase exótico,

já que surpreende o interlocutor com suas características únicas.

Além disso, os autores de A Utopia e A Cidade do sol também constroem

sua narrativa como um diálogo entre personagens que questionam e comentam

os relatos utópicos. Balzac segue esse modelo, mas coloca o leitor como

interlocutor direto, uma vez que, como foi mostrado ao longo da análise, o

narrador faz questionamentos antecipando as possíveis reações e dúvidas do

leitor.

A comparação intertextual entre as obras de More e de Campanella

salienta que a construção linguística escolhida por Balzac segue uma tradição

literária, pois ambos os autores escrevem suas obras destacando não apenas

63

um conflito, mas acima de tudo um espaço onde determinados comportamentos

sociais os tornam um modelo utópico ou distópico, respectivamente.

É interessante notar também que se Thomas More, no Livro I de sua obra,

descreve primeiramente os males da sociedade inglesa na qual vivia, para

depois, no Livro II, contrastá-los com as qualidades da ilha de Utopia. Balzac cria

o processo inverso, uma vez que parte dos conceitos utópicos mentalizados pelo

leitor sobre Paris, para chegar à descrição realista da cidade degradada e

amoral.

V. Arquétipo de metrópole

Enquanto em A Utopia e A Cidade do sol os cenários utópicos são

remotos, em A menina dos olhos de ouro Paris se duplica e se segrega em duas:

uma concreta e real e outra abstrata e idealizada. A capital francesa, por meio

principalmente dos símbolos empregados no relato, mistifica-se, atingindo o

status de arquétipo de metrópole.

(La Concorde – Palco

de inúmeros acontecimentos importantes na história da França)

Figura 9: Neudein. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/La+concorde/filtered/1.

Acesso em: 18 nov 2017.

Segundo Carl Jung os arquétipos são indissociáveis do inconsciente

coletivo:

64

o conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo o tempo e em todo lugar. A psique mitológica denomina-se “motivos” ou “temas”. [...] (1977, p. 53).

Se o inconsciente coletivo é formado a partir de ideias que se multiplicam

na psique não de um indivíduo isolado, mas são herdadas por uma sociedade,

Paris é o arquétipo da metrópole onde todas as possibilidades são viáveis, pois

é somente nela que todos os comportamentos e personalidades não só são

aceitos como também são respeitados.

Nas palavras de Jung:

o inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência (1977, p. 54).

Essa herança de que fala o psicanalista é, no caso de Paris, uma mescla

do discurso balzaquiano com o discurso dos revolucionários de 1789. Os séculos

XVIII e XIX foram os responsáveis pela consolidação de Paris no inconsciente

coletivo, mesmo a cidade já sendo ponto de referência cultural antes desse

período. A cidade-luz é um mito moderno, um símbolo cultural do ocidente e um

modelo de sociedade.

O conceito de mito, tradicionalmente definido por Mircea Eliade (1992,

2004 e 2008) como uma narrativa primordial de caráter sagrado, foi, ao longo do

tempo, ganhando novas e diferentes interpretações. Levi-Strauss e Roland

Barthes talvez sejam os teóricos que mais ampliaram o significado de mito ao

abordá-lo não por meio de sua sacralidade, mas a partir do discurso que ele

veicula, pois para eles o mito é uma fala.

Naturalmente, (o mito) não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito. Mas o que deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma. [...]

65

Já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere (BARTHES, 2009, p. 199).

Visto dessa maneira, o mito deixa de estar diretamente relacionado à

mitologia (à narrativa sagrada) e passa a ser independente dos ritos religiosos.

A ampliação desse conceito permite analisar tanto os arquétipos e o inconsciente

coletivo como os símbolos presentes nos mais variados textos como

manifestações míticas. Ou seja, a partir do momento que, por meio de um

discurso, seja de qual natureza for, um objeto ou indivíduo passa a ser observado

em uma instância superior àquela naturalmente interpretada pelos leitores, esse

objeto ou indivíduo transcende, alcançando a posição de mito. É exatamente

esse processo que se passa com as utopias e as distopias.

Para um cenário ser considerado utópico ou distópico é necessário mais

do que apenas uma descrição eloquente, é preciso extrapolar os limites da

imaginação e transformá-los em uma idealização ou em uma desconstrução da

realidade coletiva. Existe, portanto, um teor ideológico nos mitos, como salienta

Barthes.

A função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma eventualidade em eternidade. Ora, este processo é o próprio processo da ideologia burguesa. Se a nossa sociedade é objetivamente o campo privilegiado das significações míticas, é porque o mito é formalmente o instrumento mais apropriado para a inversão ideológica que a define. [...] O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural desse real (2009, p. 234).

A dissociação entre o mito e a ideologia é impraticável exatamente porque

ele é manifestado por meio do discurso. Bakhtin já afirmava em Marxismo e

filosofia da linguagem a importância fundamental da ideologia para a produção

do discurso. Ele diz que

em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano. [...] É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer tal vinculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do

66

cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (2014, p. 120).

Se a enunciação é elaborada por um enunciador para atingir um

enunciatário, o enunciado é o produto de uma determinada época, realizado para

e por um homem historicamente contextualizado, e a ideologia marca as

convicções e valores desse contexto.

Joseph Campbell enfatiza a necessidade da atualização mitológica, na

mesma medida em que as ideologias também se modificam. Diz ele:

[...] eu diria que a situação típica é a de que os mitos da sociedade constituem modelos para essa sociedade em determinada época. A imagem mítica mostra a forma pela qual a energia cósmica se manifesta no tempo; à medida que mudam os tempos, mudam os modos de manifestação (2008, p. 16).

Em entrevista com Bill Moyers, Campbell completa:

[...] os mitos oferecem modelos de vida. Mas os modelos têm de ser adaptados ao tempo que você está vivendo; acontece que o nosso tempo mudou tão depressa que o que era aceitável há cinquenta anos não o é mais, hoje (1990, p. 13).

Entretanto, como são textos originalmente redigidos para transmitir os

modelos sociais, explicar os eventos naturais e esclarecer as questões

existenciais humanas, os mitos, mesmo sendo atualizados e recriados, devem

ter um componente que seja retomado. A eternidade dos mitos, sejam eles

tradicionais ou modernos, está na simbologia das mensagens, ou seja, nos

arquétipos.

Campbell também reflete sobre a atemporalidade do mito:

A eternidade não é nem futuro nem passado. A eternidade é uma dimensão do agora. É uma dimensão do espírito humano, que é eterno. Ache essa dimensão eterna em você e ela o ajudará a atravessar o tempo e todos os dias da sua vida. Os arquétipos mitológicos o ajudarão a refletir sobre o conhecimento dessa dimensão transpessoal, trans-histórica do seu ser e da sua experiência, pois são símbolos eternos que vivem em todas as mitologias do mundo, os modelos que sempre deram apoio à vida humana (2008, p. 46).

67

Como Balzac retoma, incessantemente em toda A comédia humana, a

imagem de Paris e, como foi visto no início desse capítulo, relaciona no prólogo

da novela a cidade com Vênus, é evidente que o arquetípico mitológico se

configura na capital francesa, inegavelmente. O fato de a cidade ser retomada,

também, por outros autores (como, por exemplo, Baudelaire), em outros

momentos históricos indica, ainda, uma permanência em Paris que a imortaliza.

É importante mencionar que o arquétipo da cidade não surge com Paris,

nem, muito menos, com Balzac. Na mitologia, locais como Athena, Esparta, na

Grécia Antiga, ou outros fictícios como El Dorado, Camelot e, até mesmo, Utopia,

são constantemente retratados. Paris, sendo assim, é apenas a atualização ou

modernização de um arquétipo inúmeras vezes retomado e reconstruído nas

mitologias.

(Construção da Torre Eiffel e da

Champ-de-Mars – Futuro monumento emblemático de Paris)

Figura 10: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Musée Carnavalet. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/search/construction%20de%20tour%20eiff

el/page/1. Acesso em: 11 nov 2017

Um exemplo de símbolo atualizado em forma de um novo mito,

mencionado por Campbell é o pássaro que na contemporaneidade surge na

literatura como a aeronave.

Bem, os automóveis adentraram a mitologia. Adentaram os sonhos. E as aeronaves estão muito a serviço da imaginação. O voo da aeronave, por exemplo, atua na imaginação como libertação da terra. É a mesma coisa que os pássaros

68

simbolizam, de certo modo. O pássaro é um símbolo da libertação do espírito em relação a seu aprisionamento à terra, assim como a serpente simboliza o aprisionamento à terra. A aeronave desempenha esse papel, hoje (1990, p. 19).

Da mesma forma que Tróia, por exemplo, é um símbolo na obra de

Homero, Ilíada, Paris pode ser considerada a modernização do arquetípico da

cidade. A importância das metrópoles para a elaboração dos mitos e a

consolidação delas no imaginário coletivo faz com que esses locais deixem de

ser meros municípios e passem a transcender ao tempo e às dimensões

espaciais que ocupam no mundo real.

O mito visto como linguagem, se torna, então, não uma desconstrução da

definição elaborada por Eliade, mas uma ampliação do conceito, pois ao

contrário da simples negação da sacralidade dos relatos míticos, que

enfraqueceria a constituição da mitologia tradicional, a abordagem do mito como

discurso permite a aproximação e a comparação dialógica dos mitos da

Antiguidade com aqueles produzidos na literatura moderna, fortalecendo a

relevância e as particularidades de ambos.

(Louvre – Um dos marcos históricos da

cidade)

Figura 11: Léon at Lévy, Roger-Viollet. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/Louvre/filtered/1. Acesso em

18 nov 2017.

69

O relato de Balzac continua e mais adiante ele elabora uma descrição

minuciosa sobre os jovens que vivem em Paris, imprescindível para a conclusão

da construção da cidade como mito. A descrição se inicia, dizendo:

En effet, les jeunes gens de Paris ne ressemblent aux jeunes gens d’aucune autre ville. Ils se divisent en deux classes: le jeune homme qui a quelque chose et le jeune homme qui n’a rien; ou, le jeune homme qui pense et celui qui dépense (BALZAC, 1968, p. 45).27

A divisão entre os dois tipos de jovens que circulam pela cidade é

constante em várias obras de A comédia humana, pois os rapazes que nascem

no interior da França, como em Angoulême, por exemplo, e passam a viver na

capital, se contrapõem aqueles que já são habituados às artimanhas da

metrópole. No entanto, os moços jovens de Paris são, independentemente do

tempo em que convivem na cidade, arrivistas.

Em outro fragmento da caracterização dos jovens, o narrador afirma que

[…] Tous sont également cariés jusqu’aux os par le calcul, par la dépravation, par une brutale envie de parvenir […] (BALZAC, 1968, p. 49).28

O desejo de triunfar na sociedade parisiense de qualquer maneira, mesmo

prejudicando alguém, é um sentimento permanente nos jovens balzaquianos,

pois a promessa de ascensão feita pela capital, inevitavelmente corrompe os

valores daqueles que ainda os têm. Diante de uma sociedade tão desleal e

imoral, ser um arrivista é fundamental para sobreviver e ter alguma oportunidade

de concretização dos planos.

O arrivismo é melhor apresentado no trecho em que o narrador comenta

sobre o amigo de Henri de Marsay:

27 Efetivamente, os moços de Paris não se assemelham aos de nenhuma outra cidade. Dividem-se em duas classes: o jovem que tem alguns haveres e o jovem que nada tem; ou aquele que pensa e aquele que gasta (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 360). 28 [...] São todos igualmente corrompidos, até a medula dos ossos, pelo interesse, pela depravação e por uma brutal ambição de ascender. [...] (Idem, p. 361)

70

[...] Il venait découvrir à Paris, moyennant quelques billets de mille francs, la valeur exacte des harnais, l’art de ne pas trop respecter ses gants, y entendre de savantes méditations sur les gages à donner aux gens, et chercher quel forfait était le plus avantageux à conclure avec eux. [...] (BALZAC, 1968, p. 53).29

Para aqueles que são migrantes em Paris, voltar para suas cidades

vitoriosos é uma questão de honra, a qual será retomada, assim como a trajetória

do jovem, tanto na obra de Ernest Hemingway quanto na de Woody Allen. A

imagem do jovem, pode-se dizer, está intimamente conectada com Paris, uma

vez que a cidade é um campo de vastas possibilidades; eles são aqueles

naturalmente aptos a disfrutar de cada uma delas.

É característico da juventude ser entusiasmada e feliz, o que a torna mais

preparada ainda para os desafios enfrentados em Paris, já que o próprio narrador

afirma, ao introduzir um dos personagens secundários:

[...] c’était un homme malheureux [...] L’homme malheureux de Paris est l’homme malheureux complet, car il trouve encore de la joie pour savoir combien il est malheureux [...] (BALZAC, 1968, p. 82 e 83).30

O paradoxo que compõe a felicidade do sujeito infeliz marca não só as

possibilidades de satisfação dos que alcançam sucesso na cidade, mas também

as chances de prosperar dos mais desafortunados. Logo, pode-se dizer que a

sedução parisiense é arrebatadora para qualquer um e, portanto, assim como

Henri de Marsay é seduzido por Paquita, na novela, o leitor é seduzido por todas

as promessas e expectativas parisienses.

O paralelo entre de Marsay e o leitor e entre Paquita e Paris é viável,

principalmente, pelo desejo de conquista de Henri ser semelhante ao do leitor,

pois ambos querem descobrir os mistérios que envolvem a mulher e a cidade,

respectivamente.

Se Paquita encanta Henri por meio de seus olhos dourados e do prazer

que ele projeta ter ao torná-la sua amante, Paris encanta o leitor por meio do

29 [...] Vinha descobrir em Paris, mediante algumas cédulas de mil francos, o valor exato dos seus arneses, a arte de não dar demasiada importância às suas luvas, ouvir sábias indicações sobre salários e pagar aos criados e procurar qual o melhor partido a tirar deles (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 364). 30 [...] Era um infeliz. [...] O infeliz de Paris é o infeliz completo, porque possui ainda momentos de alegria nos quais ele vê o quanto é desventurado. [...] (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 381).

71

prazer causado pela liberdade e da chance de ascensão social. Como o próprio

Balzac afirma tantas vezes ao longo da novela, tudo em Paris se resume em

ouro e prazer, sempre.

Paulo Rónai comenta na introdução de A menina dos olhos de ouro sobre

a descrição de Paris feita no prólogo:

Contribui para a complexidade da novela a patética descrição inicial de Paris, em que nos vemos arrastados pelo escritor em sua viagem pelos meandros desse novo inferno. Foram essas páginas, com muitas outras de Balzac, que fixaram para sempre a imagem mítica de Paris aos olhos do mundo inteiro, e tal imagem nos interessa profundamente, porque a Paris de 1830 era uma prefiguração de todas as metrópoles modernas, inclusive a nossa (2013, p. 25).

Se já no século XIX, Balzac conseguiu supor como seria não só as

metrópoles de seu tempo, mas também aquelas que se tornariam ícones dois

séculos depois (como Nova York, Londres, Toronto, Tóquio e tantas outras),

nota-se a relevância que a duplicidade da cidade desempenha não como

ambientação da novela, mas acima de tudo como uma tese antropológica do

comportamento social das grandes cidades.

As promessas feitas pelos grandes centros urbanos são até hoje

sedutoras, principalmente, para os indivíduos que, vivendo no interior, se iludem,

na maioria das vezes, com a falsa oportunidade de conquistar uma posição

socioeconômica superior à das cidades menores.

O mito de Paris se configura, além dos aspectos já mencionados, por meio

do paradigma estabelecido na descrição de Balzac, que inaugurou um

precedente literário. Apesar, de como foi salientado, outras cidades serem vistas

como mito, nenhuma antes da Paris balzaquiana (do século XIX) tem a sua

magnitude.

Nas palavras de Paulo Rónai:

Nenhum escritor fez inventário tão completo dos atrativos de Paris como Balzac. Mostra antes de tudo, na atmosfera da cidade, certo mistério que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Evidentemente, havia nisso algum exagero; mas essa visão do romancista influenciou seus leitores e seus sucessores, reforçando a sensação única de vida tumultuosa e intensa, cheia de virtualidade e surpresas, que nos inspira uma permanência em Paris (2012, p. 143).

72

Mesmo não sendo alvo de análise, nesse trabalho, o romance O pai

Goriot, com seu final antológico, destaca a emoção não só de Rastignac, um dos

protagonistas de A comédia humana, mas de todos os arrivistas balzaquianos e

de seus leitores, diante de Paris. Diz o trecho final do romance:

Rastignac, resté seul, fit quelques pas vers le haut du cimetière et vit Paris tortueusement couché le long des deux rives de la Seine, où commençaient à briller les lumières. Ses yeux s’attachèrent presque avidement entre la colonne de la place Vendôme et le dôme des Invalides, là où vivait ce beau monde dans lequel il avait voulu pénétrer. Il lança sur cette ruche bourdonnante un regard qui semblait par avance en pomper le miel, et dit ces mots grandioses: – À nous deux maintenan! Il revint à pied rue d’Artois, et alla dîner chez madame de Nucingen (BALZAC, 1855, p. 524).31

Esse desejo de se impor perante a capital francesa é um sentimento

reassumido e replicado por inúmeros personagens, na obra de autores diversos

que não escrevem apenas sobre Paris, mas a respeito de outras capitais que

assim como ela se tornaram um mito por habitarem os sonhos tanto dos

personagens como dos leitores.

Nos próximos capítulos, será analisado como o mito de Paris continuou

sendo construído depois de Balzac. Nos séculos XX e XXI a cidade persiste no

imaginário coletivo, mas com a visão do autor francês já incorporada e

modificada.

Novas ideologias, novos contextos históricos, outras caracterizações da

cidade, todavia o mesmo mito sendo constantemente retomado e atualizado.

Paris prossegue, nos dois séculos seguintes, sendo a grande ambição dos

rapazes jovens, principalmente dos norte-americanos.

31 [...] Rastignac ficou sozinho, deu alguns passos em direção à colina do cemitério e viu Paris

tortuosamente deitada ao longo das duas margens do Sena onde as luzes começavam a brilhar. Seus olhos se perderam quase que com avidez entre a coluna do Place Vendôme e a cúpula dos Invalides, lá onde vivia aquela bela sociedade na qual quisera penetrar. Lançou sobre essa colmeia ruidosa um olhar que parecia retirar-lhe o mel por antecedência, dizendo essas palavras grandiosas: - Agora é entre nós dois! E, na qualidade de primeira ação desse desafio que lançou à Sociedade, Rastignac foi jantar na casa da sra. de Nucingen (Trad. Celina Portocarrero e Ilana Heineberg, 2008, p. 296).

73

(Colonne Vendôme – Monumento

napoleônico em comemoração à vitória da batalha de Austerlitz)

Figura 12: Charles Marville. [Sem título]. Fotografia. Musée Carnavalet. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/Place+Vend%C3%B4me+/fi

ltered/1. Acesso em: 18 nov 2017

74

Capítulo 2 - A festa de Hemingway

Ser parisiense não significa nascer em Paris, mas ali renascer.

Sacha Guitry

“If you are lucky enough to have lived in Paris as a young man, then

wherever you go for the rest of your life, it stays with you, for Paris is a moveable

feast.32” É assim que, quase trinta anos depois do período em que viveu na

capital francesa, Ernest Hemingway define Paris para um amigo e, dessa forma,

também, é que o leitor de Paris é uma festa é imediatamente transposto para os

anos 1920 enaltecidos pelo autor em seu romance.

O livro publicado postumamente em 1964 conta, a partir do olhar do jovem

Hemingway, narrador dos acontecimentos, como foram os anos vividos pela

Geração Perdida33 no começo do século XX na Paris após a Primeira Grande

Guerra. Dividido em vinte capítulos com títulos sugestivos, a obra escrita com a

tão característica linguagem jornalística de Hemingway, apresenta Paris com

riquezas de detalhes que incorporam desde as personagens com quem o

narrador encontra nos inúmeros cafés da cidade, até as ruas e paisagens

admiradas por ele ao caminhar pela capital francesa sob o clima, muitas vezes

chuvoso, típico do lugar.

No presente capítulo, objetiva-se analisar o discurso utilizado na obra por

meio dos princípios da enunciação e da relação dialógica entre os aspectos da

vida em Paris a que Hemingway faz referência, mas já antecipados por Balzac

não só em sua novela A menina dos olhos de ouro, como também em outras

obras de A comédia humana, como apontam os críticos. Por meio dos valores

axiológicos apresentados pelo narrador, a comparação entre o romance do

século XX e a novela escrita no século XIX se torna possível, mesmo os estilos

de linguagens utilizados pelos autores sendo tão distintos.

32 Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo

resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante. 33 Nome dado por Gertrude Stein à geração de escritores e artistas que segundo Otto Maria Carpeaux (2011) apresenta ironia, cinismo, desilusão, sentimento de perdição universal, o niilismo absoluto.

75

Enquanto Balzac emprega uma linguagem carregada de metáforas e

simbologias em uma novela de ficção, Hemingway opta pela objetividade e

simplicidade que, ao contrário do que possa aparentar ao longo de uma leitura

rápida e superficial do romance, reforça alguns dos sentidos estabelecidos no

século anterior, confirmando a imagem mitológica da cidade francesa.

A partir da linguagem simples e direta usada por Hemingway, é refletido

em seu livro o que Baker (1974, p. 63) afirma ser o principal compromisso

estabelecido entre o romancista e o leitor de seus textos: “a tarefa do escritor é

dizer a verdade”. Entretanto, como o livro foi escrito tendo como motivação as

memórias do escritor já adulto sobre sua juventude, a primeira grande questão

envolvendo Paris é uma festa é a implicação que as memórias afetivas do autor

causarão no relato e consequentemente no modo como o leitor será afetado por

elas.

Para efeito de análise, este capítulo será divido em seções em que serão

explorados cada um dos temas retomados ao longo dos capítulos do romance,

fundamentais para a interpretação da obra e sua comparação dialógica com A

menina dos olhos de ouro, sendo a primeira seção sobre a discussão teórica e

particularidades do texto autobiográfico.

I. Autobiografia e memória

Para definir autobiografia, Philippe Lejeune (2008, p. 14) situou-a em

quatro aspectos: forma da linguagem, assunto tratado, situação do autor e

posição do narrador. Para o autor, um texto é considerado autobiográfico quando

é uma narrativa em prosa, cujo assunto é a vida individual de uma personalidade

a partir de uma perspectiva retrospectiva em que a identidade do autor, do

narrador e do protagonista coincida.

Analisar Paris é uma festa por meio da definição inicial de Lejeune não

deixa dúvidas a respeito do caráter autobiográfico da obra, contudo, a leitura do

romance gera questionamentos relativos ao estabelecimento do pacto

autobiográfico entre o autor e o leitor, tido por Lejeune como fundamental em

toda autobiografia.

76

Nas palavras de Philippe Lejeune (2008) o pacto autobiográfico é um

contrato de verdade que permeia toda obra, garantido, principalmente, pela

identidade entre autor-narrador-protagonista. Ele diz:

Uma autobiografia não é apenas um texto no qual alguém diz a verdade sobre si próprio, mas um texto em que alguém real diz que a diz. E este compromisso produz efeitos particulares sobre a recepção. Não se lê da mesma maneira um texto dependendo de que seja recebido como uma autobiografia ou uma ficção. O pacto autobiográfico tem efeitos excitantes (curiosidade, credulidade, compromisso direto) (2013, p. 538).

A obra de Hemingway apresenta a semelhança de identidade entre as

três vozes que enunciam: tanto o autor que elaborou o texto, como o narrador

responsável por contar a história e o protagonista que vivencia os fatos são

Hemingway e dizem “eu” ao longo de todo o relato. Na primeira página do

romance, o narrador se posiciona como o “eu”, evidenciando se tratar de um

texto enunciativo: “ It was a sad, evilly run café where the drunkards of the quarter

crowded together and I kept away from it because of the smell of dirty bodies and

the sour smell of drunkenness.” ( HEMINGWAY, 1994, p. 1).34

Entretanto, é somente algumas páginas adiante que surgem no texto as

referências ao apelido carinhoso dado pela esposa a Hemingway e o seu

verdadeiro nome dito por Gertrude Stein, respectivamente: “ I think it would be

wonderful, Tatie” (idem, p. 4)35 e “ Yes, yes, Hemingway” (idem, p. 13)36. São

esses mecanismos de projeção no enunciado da categoria de pessoa da

enunciação (debreagem de primeiro e segundo graus) que contribuem para o

efeito de verdade presente no texto, mas, como se trata de um romance

elaborado a partir da memória do autor, há fatos relativos à veracidade do relato

que são questionados.

Sabe-se, por exemplo, por meio da própria construção do romance e de

inúmeros documentos históricos sobre a época, que Hemingway viveu em Paris

nos anos 1920 com sua primeira esposa, Hadley, e seu filho, Bumby, porém

pouco se diz no relato sobre as participações desses personagens nos

34 “ Era um café triste e mal-administrado, o Amateurs, onde os beberrões do bairro se apinhavam

e do qual eu me mantinha afastado por causa do cheiro de corpos sujos e do azedo da embriaguez” (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 17). 35 “ Acho que será maravilhoso, Tatie” (idem, p. 22). 36 “ Sim, sim, Hemingway” (idem, p. 34)

77

acontecimentos. Sobre outros episódios, o narrador atenua a linguagem

empregada para garantir a face positiva diante do leitor. Isso ocorre, por

exemplo, quando é mencionado na narração o afastamento entre Hemingway e

Gertrude Stein:

The way it ended with Gertrude Stein was strange enough. […] Then Miss Stein’s voice came pleading and begging, saying, ‘ Don’t, pussy. Don’t. Don’t, please don’t. I’ll do anything, pussy, but please don’t do it. Please don’t. Please don’t, pussy’ I swallowed the drink and put the glass down on the table and started for the door. The maidservant shook her finger at me and whispered, ‘Don’t go. She’ll be right down’ ‘I have to go’, I said and tried not to hear any more as I left but it was still going on and the only way I could not hear it was to be gone. It was bad to hear and the answers were worse. It the courtyard I said to the maidservant, ‘ Please say I came to the courtyard and met you. That I could not wait because a friend is sick. Say bon voyage for me. I will write’ ‘C’est entendu, Mousieur. What a shame you cannot wait’ ‘Yes,’ I said. ‘ What a shame.’ That was the way it finished for me, stupidly enough. […] (HEMINGWAY, 1994, p. 68). 37

Há no fragmento o emprego do princípio pragmático da polidez pelo

narrador para garantir a face positiva de Hemingway perante o leitor que julgará

inevitavelmente os acontecimentos, como afirma Lejeune

Quando você lê uma autobiografia, não se deixa simplesmente levar pelo texto como no caso de um contrato de ficção ou de uma leitura simplesmente documentária, você se envolve no

37 O modo como minhas relações com Gertrude Stein chegaram a seu fim foi bastante estranho. [...] Ouvi depois a voz própria de Miss Stein, chorosa, implorando: - Não, gatinha. Não, por favor, não. Farei o que você quiser, gatinha, mas não faça isso. Não, por favor... Não, gatinha! Engoli a bebida de uma só vez, coloquei o copo na mesa e dirigi-me para a porta. A empregada sacudiu o dedo para mim, dizendo-me baixinho: - Não vá embora, ela desce já, já. - Sinto muito, mas preciso sair imediatamente. Esforcei-me por não ouvir mais palavra alguma daquela conversa, mas o diálogo continuava e o único meio de não tomar conhecimento era mesmo dar o fora o quanto antes. Se o tom em que falava a desconhecida era desagradável, as respostas de Miss Stein eram ainda mais constrangedoras. No pátio, à saída, recomendei à criada: - Diga a Miss Stein que eu vim até aqui, mas não passei do pátio porque um amigo está muito doente e tenho que cuidar dele. Deixou-lhe um bon voyage e lhe escreverei depois. - C’est entendu, Monsieur. É uma pena que o senhor não possa esperar. - É verdade. Uma pena – retruquei. Foi assim que terminou nossa amizade, dessa forma estúpida. [...] (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 141).

78

processo: alguém pede para ser amado, para ser julgado, e é você quem deverá fazê-lo (2008, p. 73).

Dessa forma, o narrador passa a manipular o pacto autobiográfico em

benefício próprio, por meio das escolhas entre o dito e o não-dito e da maneira

de dizer, tornando verdadeiras as afirmações feitas, mesmo que elas não tenham

acontecido de fato como o narrador descreve. O testemunho dos momentos

vividos em Paris dos anos 1920, dado pelo autor-narrador-protagonista ao leitor,

passa a ser, assim, influenciado por sua memória afetiva, mas não deixa de ser

recebido pelo leitor como um registro fiel da realidade daquele tempo.

Giorgio Agamben diz que

Em latim, há dois termos para representar a testemunha. O primeiro, testis, de que deriva o nosso termo testemunha, significa etimologicamente aquele que se põe como terceiro (terstis) em um processo ou em um litígio entre dois contendores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso. [...] Mas isso também significa que o seu testemunho não tem a ver com o estabelecimento dos fatos tendo em vista um processo (ele não é suficientemente neutro para tal, não é um testis) (2008, p. 27).

A autobiografia, como gênero textual, implica, por conseguinte, não só o

estabelecimento do pacto autobiográfico, mas também a criação desse pacto

tendo em vista a subjetividade e parcialidade do seu autor, que narra a partir das

suas recordações. Hemingway, segundo o apontamento de Agamben, é um

superstes, o que simultaneamente lhe dá autoridade para ser uma testemunha

do que foi Paris em 1920, mas impossibilita a imparcialidade necessária para

que o seu romance seja a única percepção verdadeira sobre a cidade naquela

época.

Assim, como “a testemunha comumente testemunha a favor da verdade

e da justiça, e delas a sua palavra extrai consistência e plenitude” (AGAMBEN,

2008, p. 43) cria-se uma incoerência pois, se por um lado a autobiografia é tida

como verdade plena, por outro lado, essa mesma verdade é manipulada

discursivamente pelo seu autor que a elabora a partir de suas lembranças mais

caras.

O impasse envolvendo a manipulação discursiva na autobiografia é

desfeito por Antonio Candido (1989), quando ele diz que é possível no texto

79

autobiográfico haver a confusão entre a experiência pessoal e a observação do

mundo, fazendo a autobiografia se tornar heterobiografia, ou seja, “história dos

outros e da sociedade; sem sacrificar o cunho individual, filtro de tudo” (p. 55). A

história contada passa a ser então “ a verdade que é o mundo do eu, e o eu

como condição do mundo” (p. 56).

Como não abrange a vida do autor por completo, Paris é uma festa tem

por princípio ser uma recordação do tempo vivido como uma crônica que narra

o cotidiano não de um indivíduo específico, mas de todo e qualquer jovem artista

que teve a oportunidade de viver na Paris daquele momento histórico. A obra de

Hemingway generaliza o cotidiano parisiense de 1920, fortalecendo o caráter

mítico da cidade, discutido mais adiante na seção X deste capítulo.

A generalização das experiências do personagem contribui ainda para o

que Ana F. Martins (2015) denomina como movimentos da autobiografia.

Segundo a estudiosa, em uma obra autobiográfica a vida gera o texto. Isso

implica dizer que sendo baseado na vida de uma pessoa desde sua infância, ou

apenas em um fragmento de memória, ou no período de tempo mais significativo

experenciado pelo autor, a obra é autobiográfica quando a existência e a vivência

inspiram a criação textual.

O que há, incontestavelmente na autobiografia, é o desdobramento do

“eu” que enuncia, influenciando a estética da escrita. Para Bakhtin

A forma biográfica é mais “realista”, pois nela há menos elementos de isolamento e acabamento, aí o ativismo do autor é menos transformador, ele aplica com menos princípio sua posição axiológica fora da personagem, quase se limitando a sua distância exterior, espacial e temporal: não há fronteira precisas do caráter, um isolamento preciso, um enredo acabado e tenso (2003, p. 139 e 140).

A linguagem mais realista é um dos princípios artísticos de Hemingway,

comentados por Carlos Baker. Segundo o autor:

O seu padrão de falar a verdade, além do mais, manteve-se tão elevado e tão rigoroso que ele, de modo geral, jamais se mostrava disposto a reconhecer qualquer evidência secundária, fosse ela evidência literária ou evidência recolhida em outras fontes que não fizessem parte de sua própria experiência. [...]. Assim, só se mostrava interessado em contar aquilo que fizera pessoalmente ou o que fosse do seu conhecimento proferido por

80

ter vivência do fato. Isto não significa que ele se recusasse a inventar livremente. Todavia, Hemingway fez questão, quase de um modo sacrossanto, de inventar sempre em termos do que ele sabia ter realmente existido (1974, p. 63).

Esse compromisso com a verdade vista e vivida pelo autor, transparece

no texto quando, por exemplo, o narrador diz não se lembrar exatamente de

algum detalhe como o nome da faxineira de Miss Stein:

‘But Hemingway, you have the run of the place. Don’t you know that? I mean it truly. Come in any time and the maidservant’ – she used her name but I have forgotten it – ‘will look after you and you must yourself at home until I come’ (HEMINGWAY, 1994, p. 67).38

No entanto, o esquecimento cede lugar ao excesso de detalhes em

momentos em que a livre invenção é claramente empregada, já que a memória

de mais de trinta anos não seria tão clara. No capítulo inicial do romance, o

narrador afirma, por exemplo, que

A girl came in the café and sat by herself at a table near the window. She was very pretty with a face fresh as a newly minted coin if they minted coins in smooth flesh with rain freshened skin, and her hair was black as a crow’s wing and cut sharply and diagonally across her cheek. I looked at her and she disturbed me and made me very excited. […] (Idem, p. 3).39

A livre invenção funciona no texto como o “mentir-vrai” proposto por

Colonna (2004, apud Ana F. Martins, 2014), ou seja, a mentira formulada pelo

narrador está garantindo a verossimilhança do relato, também modulando a

imagem literária do escritor. O “mentir-vrai” desvela, então, traços da posição

axiológica do autor, pois preenche lacunas deixadas pela memória com

comentários que efetivamente não fazem parte da realidade dos

38 - Mas Hemingway, você é dono desta casa, não sabe disso? Meu convite foi sincero. Venha

aqui quando quiser, e a empregada (ela mencionou seu nome, mas já me esqueci dele) cuidará de você e tudo fará para que você se senti como em sua própria casa até que eu chegue (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 139). 39 Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possam cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal à face. Olhei para ela e senti-me perturbado, numa grande excitação. [...] (Idem, p. 20).

81

acontecimentos, mas que são coerentes com a imagem de si e com a relevância

dos fatos construídas ao longo do romance pelo seu autor.

Bakhtin comenta que em um texto biográfico, não há entre autor e

protagonista “contraposição de princípios, seus contextos axiológicos são

congêneres, o portador da unidade da vida – a personagem – e o portador da

unidade da forma – o autor – pertencem ambos ao mesmo universo de valores”

(2003, p. 151) e o mesmo acontece com o portador do enunciado – o narrador.

Essa posição ideológica partilhada entre autor-narrador-protagonista e a

linguagem realista empregadas no discurso autobiográfico, configuram-no como

um texto de caráter altamente referencial, pois tem por principal intenção

comunicativa informar o leitor a respeito de uma determinada realidade, que

pode ser verificada, no caso do romance de Hemingway, por meio de

documentos históricos. Entretanto, há um paradoxo na autobiografia literária,

pois “seu jogo duplo essencial, é pretender ser ao mesmo tempo um discurso

verídico e uma obra de arte” (LEJEUNE, 2008, p. 61).

As próximas seções deste capítulo pretendem analisar o discurso literário

empregado em Paris é uma festa, por meio da divisão dos principais temas e

imagens apresentados no romance e relacioná-los com a visão de Paris

anteriormente caracterizada por Balzac em A menina dos olhos de ouro.

II. A visão de Paris e a degradação enaltecida da cidade

Um dos principais aspectos responsáveis pela constatação da veracidade

do relato feito em Paris é uma festa e, consequentemente, pelo estabelecimento

do pacto autobiográfico é a descrição da cidade de Paris feita pelo narrador do

romance. O jovem Hemingway descreve as ruas e os cafés parisienses com

perfeição.

Em seu ensaio A cidade-romance em Balzac, Italo Calvino afirma que

Transformar em romance uma cidade: representar os bairros e as ruas como personagens dotadas cada uma de um caráter em oposição às outras; evocar figuras humanas e situações como uma vegetação espontânea que germina do calçamento desta ou daquela rua ou como elementos de tão dramático contraste com elas a ponto de provocar cataclismos em cadeia; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira protagonista seja a

82

cidade viva, a sua continuidade biológica, o monstro-Paris: essa é tarefa à qual Balzac se sente chamado (2007, p. 150).

As mesmas ambições balzaquianas são encontradas em Hemingway.

Além do próprio narrador, a cidade é outra grande protagonista do romance,

contemplada, descrita e enaltecida pelo narrador que, assim como inúmeros

personagens de A comédia humana, buscam por Paris para alcançar o sucesso

literário e o reconhecimento social. No entanto, mesmo engrandecendo a cidade

ao longo de todo o relato, Hemingway mostra a degradação dela.

O segundo parágrafo do romance é iniciado com a descrição putrefata da

cidade:

The Café des Amateurs was the cesspool of the rue Mouffetard, that wonderful narrow crowded Market street which led into the Place Contrescarpe. The squat toilets of the old apartment houses, one by the side of the stairs on each floor with the two cleated cement shoe-shaped elevations on each side of the aperture so a locataire would not slip, emptied into cesspools which were emptied by pumping into horse-drawn tank wagons at night. In the summer time, with all windows open, we would hear the pumping and the odor was very strong. The tank wagons were painted brown and saffron color and in the moonlight when they worked the rue Cardinal Lemoine their wheeled, horse-drawn cylinders looked like Braque paintings. No one emptied the Café des Amateurs though, and its yellowed poster stating the terms and penalties of the law against public drunkenness was as flyblown and disregarded as its clients were constant and ill-smelling (HEMINGWAY, 1994, p. 1 e 2).40

A frase de abertura do parágrafo apresenta um paradoxo significativo para

a interpretação de todo o fragmento. O nome Café des Amateurs, traduzido

livremente para o português receberia como significado “o café dos amantes”,

podendo ser relacionado, no contexto, tanto com os amantes que possivelmente

40 O Café des Amateurs era a cloaca da Rue Mouffetard, essa maravilhosa ruela comercial, sempre coalhada de gente, que desemboca na Place Contrescarpe. Os sanitários antigos das velhas casas de apartamento, um em cada andar, ao lado das escadas, com duas elevações de cimento estriado, em forma de sapato, para evitar que algum locataire escorregasse, davam para fossas que, à noite, eram esvaziadas, por meio de uma bomba, em carros-tanques puxados por cavalos. No verão, com todas as janelas abertas, podíamos ouvir o ruído da bomba, e o mau cheiro era muito forte. Os carros-tanques eram pintados de marrom e amarelo-açafrão. Quando trabalhavam na Rue Cordinal Lemoine, ao luar, aqueles cilindros com rodas, puxados pelos cavalos, traziam-nos à lembrança alguns quadros de Braque. Nenhum carro-tanque, porém, esvaziava o sanitário do Amateurs, e o cartaz amarelado que anunciava os termos e as penalidades da lei contra embriaguez pública era tão desprezado e estava tão sujo de moscas quanto os fregueses eram assíduos e mal-cheirosos (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 18).

83

se encontravam no ambiente do café, como com aqueles que apaixonados por

Paris se tornam amantes dela, quando circulam pelas ruas mencionadas no

trecho.

(Café des Amateurs)41

Figura 13: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

https://br.pinterest.com/pin/501166264775501890/ . Acesso em: 27 out 2017.

Assim, des Amateurs, indicador de posse, evoca a carga semântica do

romance. O nome sugere um lugar com atmosfera sublime de relacionamento

amoroso, O Café dos Amantes, contudo, é o extremo oposto do que seu nome

transmite ao leitor da obra, pois é qualificado como a “cloaca da Rue Mouffetard”.

A cloaca, em seu significado biológico, grosso modo, é a cavidade onde

se abre o canal fecal de alguns animais como aves e répteis. Sendo, também,

sinônimo de latrina, chiqueiro, fossa e coletor de esgoto. Definir o café como a

cloaca indica a ironia existente não só nesse ambiente, mas também em toda

Paris. Da mesma maneira que o nome do café cria uma expectativa no leitor que

será frustrada, Paris seduz e atrai seus visitantes para em seguida decepcioná-

los.

A ironia, outrora evidente na descrição balzaquiana de Paris, surge no

discurso de Hemingway de forma sutil, principalmente quando ele associa

adjetivos cujas semânticas não são compatíveis entre si. Além de “des

Amateurs” e “cloaca”, essa escolha lexical é perceptível em “maravilhosa ruela

41 As datas das fotografias apresentas neste capítulo variam entre 1917 e 1930.

84

comercial, sempre coalhada” e na referência feita ao pintor cubista Georges

Braque.

No primeiro caso, as expressões ‘maravilhosa’ e ‘coalhada’ se opõem,

pois enquanto um se correlaciona com termos que tradicionalmente

caracterizam o deslumbre, o fascínio e o esplendor de um determinado objeto, o

outro é uma referência sinestésica ao azedo que remete a podridão do lugar.

Sendo assim, enquanto maravilhosa se liga ao nome do café, coalhada

acrescenta mais um odor à cloaca.

Os aspectos sinestésicos são retomados no trecho anterior por meio da

descrição das cores dos carros-tanques e sua associação com as obras de

Braque. Considerado um dos pais do Cubismo, junto com Picasso, o artista é

autor de uma quantidade considerável de telas elaboradas a partir de formas

geométricas (próprias da estética cubista) e cores terrosas. Assim, a imagem

dos carros-tanques que recolhem o lixo das ruas é imprecisa (como os quadros

de Braque) e tal inconsistência nas suas formas pode ser causada pela náusea

originada pelo forte odor do ambiente.

Outra característica dos quadros de Braque significativa para a

interpretação do fragmento de Paris é uma festa citada na página 73, é a

sensação de aglomeração humana reproduzida por meio das muitas casas

concentradas em um espaço pequeno, como se observa nas obras reproduzidas

a seguir. A cidade de L’ Estaque, escolhida pelo pintor como inspiração para

suas obras, deixou de ser no final do século XIX uma vila de pescadores e

fabricantes de azulejos para se tornar uma cidade de trabalhadores de fábricas

e um resort à beira-mar, fator que contribuiu para sua popularização.

Em L’ Estaque há ainda um pequeno porto vizinho às fábricas e uma ponte

com grande movimentação e concentração de pessoas. A pequena cidade

localizada a oeste de Marseille é, portanto, um lugar barulhento e agitado que

remete aos ruídos e ao deslocamento dos carros-tanques descritos por

Hemingway.

85

Figura 14: Georges Braque. Le viaduct à L’ Estaque. 1908. Óleo sobre tela. 72,5 cm x 59 cm.

Centre George Pompidou, Paris. Disponível em:

https://www.flickr.com/photos/profzucker/5972542479 . Acesso em: 27 out 2017.

Os tons amarelados e terrosos dos quadros de Braque são os mesmos

dos carros-tanques e do cartaz colado na parede no café, mas, não por

coincidência, era também a cor usada para descrever o aspecto da pele dos

parisienses por Balzac. A falta de higiene dos cidadãos e a falta de saneamento

da cidade trazem em A menina dos olhos de ouro sensações provocadas pela

cor amarela e em Paris é uma festa, o forte odor é determinante para enfatizar a

falta de limpeza do lugar.

Figura 15: Georges Braque. Maisons à L’ Estaque. 1908. Óleo sobre tela. 73cm x 60cm.

Kunstmuseum, Basileia, Suiça. Disponível em:

https://br.pinterest.com/pin/413627546996553187/ . Acesso em: 27 out 2017.

86

A cor amarela, presente na descrição de Hemingway, é mais um índice

de ironia, pois se por um lado ela poderia ser reflexo da prosperidade da cidade

e de sua riqueza muito retratada nos monumentos e pontos turísticos, no

contexto apresentado é “a cor da doença e da loucura; cor da mentira e da

traição; cor do declínio” (SILVEIRA, 2011, p. 134), causadora da “sensação de

início da decadência” (idem).

Tal decadência causada pela imundice do lugar, remete ao lodaçal

descrito por Balzac que, por sua simbologia (discutida no capítulo anterior desta

tese), está presente na imagem de inferno usada na descrição da cidade feita

pelo autor francês. Logo, a cidade dos anos 1920 continua sendo o inferno do

século XIX.

A degradação da cidade ainda pode ser vista por meio do reflexo dos

frequentadores de seus cafés. Ao descrever o Closerie des Lilas, Hemingway

diz:

(Closerie des Lilas)

Figura 16: Paul Fort. [Sem título]. Fotografia. Disponível em: https://www.pariszigzag.fr/sortir-

paris/bars-cafes-terrasses-paris/closerie-des-lilas-montparnasse-annees-folles . Acesso em: 27

out 2017.

87

The Closerie des Lilas had once been a café where poets met more os less regularly and the last principal poet had been Paul Fort whom I had never read. But the only poet I ever sae there was Blaise Cendrars, with his broken boxer’s face and his pinned-up empty sleeve, rolling a cigarette with his one good hand. He was a good companion until he drank too much and, at that time, when he was lying, he was more interesting than many men telling a story truly. But he was the only poet who came to the Lilas then and I only saw him there once. Most of the clients were elderly bearded men in well worn clothes who came with their wives or their mistresses and wore or did not wear thin red Legion of Honor ribbons in their lapels. We thought of them all hopefully as scientists or savants and they sat almost as long over an aperitif as the men in shabbier clothes who sat with their wives or mistresses over a café crème and wore the purple ribbon of the Palms of the Academy, which had nothing to do with the French Academy, and meant, we thought, that they were professors or instructors (HEMINGWAY, 1994, p. 46 e 47).42

A referência feita aos anos outrora gloriosos do café e às mentiras

contadas por Blaise Cendrars são fortes índices de que Paris era, no presente

de Hemingway, uma cidade que vivia das memórias construídas sobre as glórias

do passado. As mentiras agradáveis contadas por Blaise são ilusões similares

àquelas geradas em torno da cidade: o ouro das conquistas francesas é de

tempos remotos, os triunfos e prestígios parisienses são apenas histórias

contadas por seus moradores e visitantes. A cidade é, na realidade, como os

frequentadores falidos e decadentes do Closerie des Lilas. A miragem que

transforma Paris em um oásis da Europa no pós-guerra é construída, dessa

forma, a partir da imagem presente no inconsciente coletivo a respeito do que foi

a capital francesa séculos antes.

42 O Closier des Lilas tinha sido em outros tempos um café onde os poetas se encontravam mais

ou menos regularmente, e o último poeta importante a frequentá-lo fora Paul Fort, que eu nunca tinha lido. Mas o único poeta que alguma vez vi lá foi Blaise Cendrars, com sua cara quebrada de boxeador e a manga vazia do paletó voltada para cima e presa com alfinetes. Estava enrolando um cigarro com a mão que lhe sobrava. Era uma companhia agradável enquanto não bebesse demais e, ainda assim, quando começava a mentir, era mais interessante do que muitos homens contando histórias verdadeiras. Mas era o único poeta que ainda ia ao Lilas, embora eu o tenha visto por lá apenas uma vez. A maioria dos fregueses era de homens barbados, idosos, de roupas muito surradas, que iam com as esposas ou as amantes, do tipo dos que usam na lapela a fitinha vermelha da Legião de Honra. Supúnhamos generosamente que fossem cientistas ou savants, mas faziam render seu aperitivo tanto quanto os homens de roupas ainda mais puídas, sentados com as mulheres ou amantes, faziam render seu café-crème, ostentando nas lapelas a fita cor de púrpura das Palmas da Academia, que nada tinha a ver com a Academia Francesa, e indicava, pensávamos nós, serem catedráticos ou livre-docentes (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 97 e 98).

88

A degradação parisiense aparece, ainda, em outros momentos do

romance de forma sutil, como, por exemplo, “so we went out by the train from the

Gare du Nord through the dirtiest and saddest part of town and walked from the

siding to the oasis of the track.” (HEMINGWAY, 1994, p. 29)43 ou no fragmento

em que caracteriza Wyndham Lewis “he had a face that reminded me of a frog,

not a bullfrog but just any frog, and Paris was too big a puddle for him” (idem, p.

63)44.

(Gare du Nord)

Figura 17: Charles Lansiaux. [Sem título]. Fotografia. 18 cm x 24 cm. Département Histoire de

l’Architecture e Archéologie de Paris. Disponível em: http://www.parisenimages.fr/en/collections-

gallery/80991-7-immeubles-parisiens-place-napoleon-iii-gare-du-nord-facade-paris-xeme-

photographie-charles-lansiaux-1855-1939-plaque-verre-17-aout-1920-departement-histoire-

larchitecture-archeologie-paris. Acesso em: 27 out 2017.

Wyndham Lewis foi um desafeto de Hemingway, quem em 1934 publicou

um estudo intitulado The Dumb Ox: a study of Ernest Hemingway, o qual é

considerado até os dias atuais uma das críticas mais influentes da vida e da obra

de Hemingway. Andrew Scragg, em seu artigo Wyndham Lewis and Ernest

Hemingway: Beyond the ‘Unsuccessful Rapist’ and the ‘Dumb Ox’, comenta que

a polêmica envolvendo os dois autores se concentra sobretudo na resposta dada

por Hemingway a Lewis em Paris é uma festa.

43 Dito isso, partimos de trem da Gare du Nord, atravessando a parte mais suja e mais triste da

cidade. E caminhamos a pé da linha do trem até o oásis da raia (Trad. Ênio Silveeira, 2013, p. 66). 44 Seu rosto me lembrava uma rã, não uma rã grande, mas uma rã vulgar, e Paris deveria ser como que um charco gigantesco para ele (idem, p. 131).

89

Na sua crítica Lewis se dirige a Hemingway como o “dumb ox” por

observar três questões nos escritos do autor norte-americano: a aparente falta

de consciência política nos seus romances, a forte influência de Gertrude Stein

em seus textos e o vocabulário que privilegiava a variedade americana e informal

da Língua Inglesa. Apesar de ter publicado inúmeros artigos sobre economia e

política nos jornais em que trabalhava como correspondente, em seus textos

ficcionais Hemingway, na percepção de Lewis, deixou de desenvolver conteúdos

sobre esses assuntos que seriam importantes para a contextualização histórica

dos romances e para a crítica e reflexão proporcionadas por eles aos leitores.

Por esse motivo e por seguir os padrões artísticos ditados por Gertrude Stein,

Lewis passou a considerar Hemingway um autor limitado e com pouca

personalidade.

A crítica grosseira e descortês feita por Lewis foi a responsável pelo

comentário a seu respeito em Paris é uma festa. Ao comparar seu crítico a uma

rã vulgar, Hemingway não só equipara os insultos sofridos como também usa

um traço físico de Lewis para alegorizar a degradação parisiense.

(Wyndham Lewis, 1904)

Figura 18: [Sem autor]. [Sem título]. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Wyndham-Lewis/images-videos. Acesso em: 06 mai 2018.

Além de ter os olhos protuberantes como os encontrados nos anfíbios,

Lewis é comparado a uma rã vulgar por não ter, na opinião de Hemingway,

nenhum destaque artístico. Mesmo sendo pintor, escritor e ensaísta, Lewis é

desprezado artisticamente por Hemingway e, portanto, representa os pseudos

artistas e intelectuais que sempre buscaram Paris na intenção de obterem

90

sucesso e reconhecimento e que a exemplo dos dândis balzaquianos fizeram da

capital francesa seu habitat natural.

Independentemente, contudo, do modo como a degradação da cidade é

apresentada pelo narrador, ela é consequência da pobreza dos seus habitantes.

A cidade-luz perde sua magnitude à medida que perde suas riquezas, mas

continua atraindo aqueles que querem recomeçar suas histórias e têm

esperanças em encontrar uma vida melhor nas suas ruas, por ela ser a cidade

onde os sonhos são possíveis de serem concretizados.

Wiser afirma a esse respeito que

Paris, disse Malcolm Cowley, era ainda mais digna de amor sob a ameaça da morte. [...] Desenvolveu-se em geral uma paixão por Paris, durante essa fase de instrução na cidade sitiada, o amor à primeira vista de um motorista de ambulância persistiria a vida inteira como um caso bem sólido. A Grande Guerra era a suprema aventura no horizonte, e Paris, seu posto de reconhecimento, a cidade mais bonita do mundo (1994, p. 19).

III. A pobreza parisiense

A beleza de Paris, a cidade mais bonita do mundo, se contrapõe a sua

pobreza, evidentemente, decorrente da Guerra, assim como a miséria

vivenciada pela população se opõe as corridas de cavalo oferecidas como opção

luxuosa de diversão para os habitantes da cidade.

Na primeira alusão à situação humilde em que vivia, Hemingway diz

[...] it was very cold and I knew how much it would cost for a bundler of small twigs, three wire-wrapped packets of short, half-pencil length pieces of split pine to catch fire from the twings, and then the bundle of half-dried lengths of hard wood that I must buy to make a fire that would warm the room (1994, p. 2).45

A falta de dinheiro para suprir as necessidades básicas tanto na sua

função de jornalista e escritor quanto como pai de família, salientam a busca pela

ilusão parisiense. Wiser diz que

45 Fazia um frio terrível e eu sabia quanto me custariam um feixe de gravetos, três amarrados de lascas de pinho, cortadas no tamanho de meio lápis cada uma para pegar fogo nos gravetos, e, finalmente, o feixe de madeira dura e meio seca que teria de comprar se quisesse aquecer o quarto. (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 18).

91

Os recém-chegados a Paris não sabiam que os preços tinham quadruplicado desde o começo da guerra. Alguns produtos custavam mais de dez vezes o seu valor: os cigarros subiram 100%; o sabão, 500%. O desemprego era grave, naturalmente, após a desmobilização do maior exército que a França já tinha convocado; as pensões dos idosos quase não valiam mais nada. Mas a horda de invasores pouco ligava para o preço do pão, majorado oficialmente de cinquenta para noventa cêntimos. [...] O aspecto externo de Paris mantinha-se, porém, inalterado: a cidade sorria sedutora para seus visitantes, ainda que, por trás da fachada, prevalecesse uma pobreza de recursos e espírito. Os que tinham dinheiro eram os novos peregrinos. Após a crise financeira de 1924-26 na França, o dólar dispararia para uma cotação máxima de cinquenta francos. A falta de estabilidade econômica abriu caminho para uma rica invasão da França por expatriados com dólar (1994, p. 33).

Para quem tinha situação financeira estável e uma fonte de renda, como

era o caso, por exemplo, de Scott Fitzgerald, Paris poderia até ser tudo que

aparentava, porém, para aqueles que, como Hemingway, viviam quase sempre

em escassez financeira, a cidade iludia como os cantos das sereias da Ilha de

Capri.

As corridas de cavalos são as principais fontes de ilusão. Como qualquer

outro jogo de azar, as corridas encantam pela possibilidade de enriquecimento

fácil e sem esforço. Recorrente em outras obras de Hemingway, as corridas

fascinam o narrador que, em nítida contradição entre a realidade de seus dias

financeiramente difíceis e o devaneio de viver em plena riqueza, afirma:

There was no quarter too poor to have at least one copy of a racing paper but you had to buy it early on a day like this. […] But before I started work again I looked at the paper. They were running at Enghien, the small, pretty and larcenous track that was the home of the outsider. So that day after I had finished work we would go racing. Some money had come from the Toronto paper that I did newspaper work for and we wanted a long shot if we could find one (HEMINGWAY, 1994, p. 27 e 28).46

46 [...] Não havia bairro, por mais pobre que fosse, que não tivesse no mínimo um exemplar de

um jornal de corrida, mas tinha-se de comprá-lo cedo num dia como aquele. [...] Mas, antes de recomeçar o trabalho, passei os olhos no jornal. Havia corridas em Enghien, essa pequena, bela e fraudulenta pista que era o paraíso dos forasteiros. Assim, naquele dia, decidi que depois de ter acabado o trabalho iríamos às corridas. Tinha chegado algum dinheiro do jornal de Toronto para o qual colaborava, e desejávamos ganhar muito mais se pudéssemos descobrir uma barbada (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 64).

92

O narrador diz ter recebido “algum dinheiro” como pagamento de seu

trabalho como jornalista. O emprego do pronome indefinido nesse trecho age

como atenuador, pois é sinônimo de termos como “um pouco” ou “uma pequena

quantidade”, visto que se sabe anteriormente da precariedade em que vivia o

protagonista. No entanto, o termo “algum” reconforta o enunciador por não

determinar a quantidade e, assim, não deturpar sua imagem diante do leitor.

No fragmento seguinte, há o diálogo entre Hemingway e sua esposa e

nele o narrador, mais uma vez, tentar manipular o leitor perante sua imagem.

‘Do we have enough money to really bet, Tatie?’ my wife asked. ‘No. We’ll just figure to spend what we take. Is there something else you’d rather spend it for?’ ‘Well,’ she said. ‘I know. It’s been terribly hard and I’ve been tight and mean about maney.’ ‘No,’ she said. ‘But- ‘ I know how severe I had been and how bad things had been. The one who is doing his work and getting satisfaction from it is not the one the proverty bothers. I thought of bathtubs and showers and toilets that flushed as things that inferior people to us had or that you enjoyed when you made trips, which we often made. […] (HEMINGWAY, 1994, p. 28).47

Ao se mostrar ciente dos problemas enfrentados e perguntar a opinião de

sua esposa, Hemingway não só aparenta ter consideração por ela, como

também demonstrar um certo otimismo diante da situação, sobretudo, por confiar

na dedicação que tem em seu ofício e no retorno certo que as horas de trabalho

trarão futuramente.

A imagem construída pelo narrador a respeito de si próprio, assim, não

transmite ao leitor a ideia de negligência, pois, Hemingway, mesmo querendo ter

47 - Teremos dinheiro bastante para apostar, Tatie? – perguntou minha mulher.

- Não. Calcularemos gastar apenas o que pudermos levar. Há alguma outra coisa que você preferisse gastar esse dinheiro? - Bem... – disse ela. - Eu sei. A vida está difícil e eu tenho sido terrivelmente pão-duro e mesquinho em questão de dinheiro. - Não é isso – disse ela. – Mas... Eu sabia quanto tinha sido prudente e como as coisas haviam corrido mal apesar disso. Quem se dedica a seu trabalho e nele encontra satisfação não é afetado pela pobreza. Mas sempre pensava nas banheiras, chuveiros e vasos sanitários com descarga que gente inferior a nós possuía e que gostávamos de usar quando viajávamos, coisa que fazíamos com frequência. [...] (Trad. Ênio Siqueira, 2013, p. 65).

93

o luxo de apostar nos cavalos como diversão, não deixa de ponderar sobre

quanto o desperdício e a falta de dinheiro afetam a qualidade de vida de sua

família.

Mais adiante no mesmo fragmento, a voz do narrador se altera, deixando

de ser o jovem que está em Paris de 1920 e surgindo como Hemingway mais

velho relembrando suas ações e avaliando-as. Por meio desse distanciamento

entre o narrador e os acontecimentos, construído na enunciação a partir da

colocação do advérbio “naquele tempo” e do tempo e modo verbais (pretérito

imperfeito do indicativo), ele justifica seu comportamento, dizendo:

[...] But then we did not think ever of ourselves as poor. We did not accept it. We thought we were superior people and other people that we looked down on and rightly mistrusted were rich. It had never seemed strange to me to wear sweatshirts for underwear to keep warm. It only seemed odd to the rich. We ate well and cheaply and drank well and cheaply and slept well and warm together and loved each other (HEMINGWAY, 1994, p. 28 e 29). 48

Da mesma forma que para Balzac o artista era visto como aquele que

necessita do dinheiro para sobreviver na cidade, mas não é ambicioso como as

outras classes apresentadas no prólogo de A menina dos olhos de ouro, quando

se considera superior ao demais, Hemingway se consola com a situação em que

viveu por saber que esperava, apenas, o reconhecimento artístico e social que

Paris podia lhe oferecer na época. No entanto, como se rendeu aos fascínios

das corridas (primeiramente de cavalos e, mais adiante no relato, de bicicletas),

Hemingway desfruta, como os personagens balzaquianos, do ouro e do prazer

proporcionados por Paris.

Vale ressaltar também que o pronome “nós” faz referência ao protagonista

e sua esposa, como o trecho final do fragmento esclarece, porém é possível

interpretá-lo como representativo da coletividade daqueles que almejavam Paris

da mesma forma que o casal. A geração de poetas americanos que circulava

48 [...] Mas, naquele tempo, não nos considerávamos pobres. Não admitíamos isso. Pensávamos

que éramos superiores, e as outras pessoas, que olhávamos de cima e de quem com razão desconfiávamos, eram ricas. Nunca tinha me parecido estranho usar camisetas de algodão como roupa de baixo para conservar o calor. Isso só parecia estranho aos ricos. Comíamos bem e barato, bebíamos bem e barato, dormíamos bem, aquecendo-nos e nos amando um ao outro (Trad. Ênio Siqueira, 2013, p. 64 e 65).

94

pela capital francesa nos anos 20, salvo raras exceções como Scott Fitzgerald e

Joyce, não tinham obtido sucesso suficiente para viver da renda da publicação

de suas obras.

Em fragmento posterior, o otimismo do jovem protagonista se evidencia

novamente.

But in the morning the river would be there and I must make it and the country and all that would happend. There were days ahead to be doing that each day. No other thing mattered. In my pocket was the money from Germany so there was no problem. When that was gone some other money would come in. All I must do now was stay sound and good in my head until morning when I would start to work again (HEMINGWAY, 1994, p. 45).49

A filosofia do Carpe Diem50, evidentemente expressa no trecho, marca

ideologicamente todas as ações e falas do narrador-protagonista no romance.

Como aparenta estar sempre vivenciando o dia presente com extrema

tranquilidade e confiança de que nenhum mal acometera a si e a sua família,

Hemingway experimenta Paris como um amante que tem certeza da

reciprocidade de seu sentimento.

Em outros momentos do romance há menções à pobreza daqueles

tempos em Paris, mas no último parágrafo do livro está registrada com lirismo a

voz de Hemingway já adulto, escritor de suas memórias, engrandecendo a

cidade com tom saudosista, enfatizando que a falta de recursos financeiros

somente contribuiu para que os dias passados ali quando jovens fossem únicos

e inesquecíveis.

49 Entretanto, na manhã seguinte, o rio estaria lá à minha espera, assim como os campos e tudo

o que iria acontecer. Tinha a vida pela frente, para ir fazendo isto dia após dia. Nada mais me importava. Tinha no bolso o dinheiro vindo da Alemanha, da maneira que não havia problemas. Quando acabasse, mais dinheiro viria. Tudo o que tinha de fazer, agora, era aguentar firme e estar bom da cabeça até a manhã, quando recomeçaria a trabalhar (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 94). 50 Propagada por Horácio, no Livro I de suas Odes: “[...] carpe diem, quam minimun crédula póstero [...]” (Disponível em: www.letras.ufmg.br/padrao_cms/documentos/eventos/vivavoz/OdesEcantossite. Acesso em 27 out 2018.)

95

There is never any ending to Paris and the memory of each person who has lived in it differs from that of any other. We always returned to it no matter who we were or how it was changed or with what difficulties, or ease, it could be reached. Paris was always worth it and you receiver return for whatever you brought to it. But this is how Paris was in the early days when we were very poor and very happy (HEMINGWAY, 1994, p. 126).51

A felicidade não é um alívio ou um confronto para os jovens paupérrimos

de Paris, mas uma sensação que se molda em combinação com a pobreza, pois

juntas elas elevam as experiências e as memórias ali criadas ao patamar da

singularidade. Aqueles que mesmo pobres conseguem ser felizes em Paris são

como Hemingway eternos enamorados da cidade.

IV. A fome parisiense

Uma das consequências mais imediatas da falta de recursos financeiros

é a fome, contudo, ela é classificada de duas maneiras bem distintas ao longo

dos fatos narrados: ora é a fome por alimento, ora é a fome moral, ambas

definidas por Hadley:

We were hungry again from walking and Michaud’s was an exciting and expensive restaurant for us. […] ‘I don’t know, Tatie. There are so many sorts of hunger. In the spring there are more. But that’s gone now. Memory is hunger.’ I was being stupid, and looking in the window and seeing two tournedos being served I knew I was hungry in a simple way (HEMINGWAY, 1994, p. 33).52

51 Paris não tem fim, e as recordações das pessoas que lá tenham vivido são próprias, distintas umas das outras. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela acabamos regressando. Paris vale sempre a pena e retribui tudo aquilo que você lhe dê. Mas, neste livro, quis retratar a Paris dos meus primeiros tempos, quando éramos muito pobres e muito felizes. (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 250). 52 Estávamos com fome de novo, de tanto andar, e o Michaud era um restaurante de primeira,

muito caro para nós. [...] - Não sei, Tatie. Há tantas espécies de fome. Na primavera há muitas mais, mas isso agora já passou. Ter boas recordações é uma maneira de ter fome.

96

A fome parisiense se manifesta tanto pela escassez de alimentos, como

pela ausência de experiências na cidade. Quando se observa uma geração

inteira de poetas norte-americanos migrando para a França em busca de novas

oportunidade de construção do trabalho artístico, há a manifestação da fome

metafórica, ou seja, a falta de alternativas no país natal gera a necessidade da

busca por novas e diferentes possibilidades.

Vistas por meio dessa interpretação, pode-se diferenciar os dois tipos de

fome: a primeira – por alimento, mais imediata – é causada por Paris, por ser

uma cidade cara para se viver e, na época, em crise financeira em decorrência

da guerra, e a segunda – moral, mais duradoura – saciada por Paris, por ser a

terra onde novas chances serão ofertadas aos poetas.

As duas categorias de fome são, todavia, sinônimos de desejo. O narrador

e a maioria dos personagens de Paris é uma festa, tal qual os balzaquianos, são

atraídos pela capital francesa com a pretensão de superar os obstáculos sociais

que geram a pobreza.

No prólogo de A menina dos olhos de ouro, há “ uma espécie de museu

antropológico dos parisienses divididos em classes sócias” (CALVINO, 2007, p.

153) e essa divisão sinaliza o apreço que os parisienses tem pelo dinheiro, pois

somente ele elimina simultaneamente as necessidades básicas dos habitantes

da cidade e o desejo de aprovação artística de suas obras, já que é o símbolo

do sucesso profissional dos personagens.

Vale ressaltar que, Henri de Marsay – protagonista da novela de Balzac –

assim como Joyce e Fitzgerald – coadjuvantes do romance de Hemingway –

podem ser considerados como abastados, mas continuam buscando saciar

desejos na cidade. De Marsay quer conquistar Paquita – personificação da

cidade – acima de qualquer coisa, enquanto Joyce busca pelo reconhecimento

definitivo de suas obras e Scott Fitzgerald quer a felicidade conjugal absoluta.

Em outras palavras, Paris, apesar de todas as situações adversas, é o lugar onde

os desejos mais íntimos passam a ser, ao menos, mais possíveis de serem

realizados.

Talvez estivesse sendo estúpido, mas o fato é que, olhando através da vidraça e vendo dois tournedos serem vendidos, compreendi que estava com fome num sentindo mais amplo (Trad. Ênio Silveira, 2013. P. 72).

97

Essa complexidade e multiplicidade de desejos envolvendo Paris é

ponderada pelo narrador:

[...] but when we had finished and there was no question of hunger any more the feeling that had been like hunger when we were on the bridge was still there when we caught the bus home. It was there when we came in the room and after we had gone to bed and made love in the dark, it was there. When I woke with the windows open and the moonlight on the roofs of the tall houses, it was there. I put my face away from the moonlight into the shadow but I could not sleep and lay awake thinking about it. We had both wakened twice in the night and my wife sleep sweetly now with the moonlight on her face. I had to try to think it out and I was too stupid. […] But Paris was a very old city and we were young and nothing was simple there, not even poverty, nor sudden money, nor the moonlight, nor right and wrong nor the breathing of someone who lay beside you in the moonlight (HEMINGWAY, 1994, p. 33 e 34).53

A cidade onde nada é simples, pois envolve toda a heterogeneidade e a

complicação dos sentimentos humanos, causa inquietude naqueles que buscam

saciar suas vontades, mas que inevitavelmente são eternos insatisfeitos. O

esforço para a compreensão da angústia provocada pelo descontentamento

alerta para a corrupção de valores morais e éticos inexorável, quando a ambição

é exagerada.

Nesse aspecto, o antagonismo dos termos usados no final do fragmento

(antiga/jovem, pobreza/dinheiro súbito e bem/mal) salienta que,

independentemente de qual seja a ambição ou as condições em que vivem os

personagens, o descontentamento é constante e implacável. Além disso, o fato

de Paris ser uma cidade muito antiga e os personagens serem jovens sugere um

desequilíbrio na relação entre eles, pois Paris detém uma vantagem: ela é

experiente na sedução da juventude.

53 [...] Mas quando terminamos e já não sentíamos mais fome, a sensação que nos parecera

fome, quando estávamos na ponte, ainda continuava dentro de nós, ao tomarmos o ônibus para casa. Continuava quando chegamos ao quarto e, depois de termos ido para a cama e feito amor no escuro, ainda estava lá. Quando acordei com as janelas abertas e o luar nos telhados das casas altas, ainda estava lá. Afastei o rosto para a sombra, mas não podia dormir e fiquei acordado, pensando nisso. Tínhamos ambos acordado duas vezes, nessa noite, e agora minha mulher dormia docemente com o luar no rosto. Tinha de me esforçar para compreender o que se passava conosco, mas sentia-me demasiadamente estúpido. [...] Mas Paris era uma cidade muito antiga, nós éramos jovens e nada ali era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o bem nem o mal, nem a respiração de alguém que deitada ao nosso lado dormisse ao luar (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 73).

98

V. A juventude de Paris

Desde Balzac, os jovens são aqueles que ambicionam viver em Paris,

muitos migram de cidades interioranas iludidos com o sonho de conquistar a

capital e acreditando serem capazes de obter sucesso lá. Não é, contudo, por

acaso que os jovens são os personagens escolhidos, primeiramente, por Balzac

e, mais tarde, por Hemingway para viverem os conflitos apresentados em suas

obras.

Antonio Candido (2011) afirma que

Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem esses fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino. O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam (2011, p. 53).

Se enredo e personagens estão tão intimamente relacionados, a opção

por protagonistas jovens tanto no século XIX, quanto no XX não é

despropositada, pois os personagens que vivenciam os conflitos estabelecidos

nos romances contribuem diretamente para a verossimilhança dos fatos

relatados.

Na abertura do romance de Hemingway há o trecho da carta que escreveu

a um amigo, dizendo que: “If you are lucky enough to have lived in Paris as a

young man, then wherever you go for the resto of your life, it stays with you, for

Paris is a moveable feast” (HEMINGWAY, 1994)54. Tal fragmento justifica não só

a escolha por retratar seus tempos de felicidade, juventude e pobreza na cidade

– como afirma ser seu objetivo nas linhas finais do livro – como também resume

os motivos que fazem de Paris uma cidade para a juventude.

54 Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo

resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante (Trad. Ênio Silveira, 2013).

99

(Ernest Hemingway)

Figura 19: [Sem autor]. [Sem Título]. Fotografia. Disponível em:

https://www.pinterest.fr/pin/501166264775502074/. Acesso em: 27 out 2017

Há, em um primeiro momento, a projeção nos romances de uma tradição

cultural e literária que associa à cidade francesa a figura de rapazes que a

frequentam ou como turistas ou como estudantes. Sendo comum a presença de

uma população juvenil na cidade, antes mesmo do século XIX de Balzac, a

reprodução dessa realidade é factível para o leitor que não estranha o fato de os

personagens principais serem moços vigorosos e ambiciosos.

Além disso, o título do romance de Hemingway, Paris é uma festa, dá

indícios da energia necessária para se viver na cidade. O predicativo do sujeito

utilizado na tradução do título carrega os mesmos significados de celebração,

comemoração e farra empregados no original, A moveable feast, todavia, a

ausência do termo “ambulante” exclui a característica principal da festa

parisiense: ela é itinerante.

Em outras palavras, é possível dizer que a alegria presente na folia

vivenciada na cidade só é coerente com a juventude disposta a percorrer todos

os caminhos a que a animação da festa leva.

A figura do jovem, nesse sentido, é coerente com outros aspectos do

romance: como a constante presença do flâneur. A esse respeito, Candido

comenta que

a verossimilhança propriamente dita, - que depende em princípio da possibilidade de comparar o mundo do romance com o

100

mundo real (ficção igual a vida), - acaba dependendo da organização estética do material, que apenas graças a ela se torna plenamente verossímil. Conclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente (2011, p. 75).

Essa estrutura coerente se forma no romance de Hemingway por meio do

pacto autobiográfico – garantindo a fidelidade dos acontecimentos – e da

composição das características dos personagens com os demais elementos

constitutivos do romance. Dessa forma, os jovens são coerentes com o relato

não só porque o autor faz uma referência direta a episódios reais de sua vida,

mas também por eles estarem de acordo com o que Antonio Candido chama de

“economia do livro” (2011, p. 75). Ou seja,

originada ou não da observação, baseada mais ou menos na realidade, a vida da personagem depende da economia do livro, da sua situação em face dos demais elementos que o constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, ideias. Daí a caracterização depender de uma escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência (idem).

A característica itinerante da festa valida o modo-de-ser do Hemingway,

narrador personagem do livro, que é apaixonado por caminhar na cidade,

tornando-se mais do que um simples andarilho: ele se converte em um flâneur.

VI. O flâneur e o voyeur

Segundo Walter Benjamin (2015, p. 38), o flâneur é uma espécie de

“botânico do asfalto”, que caminha pela cidade observando cada detalhe da vida

burguesa, desfilando e sendo visto por toda a sociedade.

No romance, o narrador, em diversos momentos associa o seu hábito de

flâneur com o fazer artístico. Ele diz, por exemplo: “Going down the stairs when

I had worked well, and that needed luck as well as discipline, was a wonderful

101

feeling and I was free then to walk anywhere in Paris” (HEMINGWAY, 1994, p.

7)55.

Walter Benjamin associa o hábito de caminhar característico do flâneur

com o habito de observar a paisagem e o comportamento das pessoas com as

quais ele encontra em seu caminho. Segundo o autor

a figura do flâneur prefigurou-se a do detetive. Para o flâneur, essa transformação deve assentar-se em uma legitimação social de sua aparência, convinha-lhe perfeitamente aparentar uma indolência, atrás da qual, na realidade, se oculta a intensa vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor incauto (1991, p. 219).

Por ser um atento observador não só da paisagem, mas também dos

costumes sociais, todo flâneur torna-se um investigador, pois ambos necessitam

peregrinar e testemunhar fatos para cumprir suas funções. Dessa forma, há

aproximação do flâneur com o voyeur.

Muitas vezes reduzido apenas ao voyeurismo (psicopatologia

desenvolvida por indivíduos que obtém prazer ao observar atos sexuais de

terceiros) o termo voyeur é, nesta tese, empregado com o mesmo significado

encontrado em língua francesa: aquele que vê. Assim, mesmo sem nenhuma

conotação patológica ou sexual, o voyeurismo é prática constante na rotina

daqueles que se deslumbram e doam a sua total atenção à análise da conduta

alheia.

Benjamin comenta que a cidade grande fez as relações humanas se

tornarem preponderantemente visuais, pois nos grandes centros urbanos é

comum pessoas terem de se olhar reciprocamente por minutos sem dirigir a

palavra uma a outra (1991, p. 36).

Sendo assim, as capitais são responsáveis tanto pelo surgimento do

flâneur quanto do voyeur e, inevitavelmente, o primeiro tipo humano agrega o

segundo. Entretanto, Benjamin salienta que

O flâneur como tipo o criou Paris. [...] Pois não foram os forasteiros, mas eles, os próprios parisienses, que fizeram de Paris a Terra Prometida do flâneur, “a paisagem construída

55 Descer as escadas quando tinha trabalhado bem – o que requeria um tanto de sorte quanto de disciplina – era uma sensação maravilhosa e só então me julgava livre para andar a esmo em Paris (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 27).

102

puramente de vida”, como chamou certa vez Hofmannstahl. Paisagem – eis no que se transforma a cidade para o flâneur. Melhor ainda, para ele, a cidade se cinde em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e, como quarto, cinge-o (1991, p. 186).

Se Paris é a Terra Prometida do flâneur e se ela é a principal responsável

pelo seu surgimento na sociedade, é esperado que, a modelo de seus

conterrâneos, os visitantes se tornem tanto flâneurs quanto voyeurs.

O narrador de Paris é uma festa apresenta ambas características, como

é demostrado no fragmento abaixo:

[…] But sometimes when I was starting a new story and I could not get it going, I would sit in front of the fire and squeeze the peel of the little oranges into the edge of the flame and watch the sputter of blue that they made. I would stand and look out over the roofs of Paris and think, ‘Do not worry. You have always written before and you will write now. All you have to do is write one true sentence. Write the truest sentence that you know’ (HEMINGWAY, 1994, p. 7).56

(Voyeur)

Figura 20: Pierre-Yves. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

https://br.pinterest.com/pin/320811173429131098/. Acesso em: 27 out 2017.

56 [...] Mas, às vezes, quando iniciava um novo conto e não achava jeito de continuá-lo, sentava-

me junto ao fogo, espremia nas chamas as cascas das pequenas laranjas-cravos e espiava as fagulhas azuis que se desprendiam. Levantava-me, punha-me a contemplar os telhados de Paris e pensava: “Não se aborreça. Você sempre escreveu antes e vai escrever agora. Tudo o que tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que puder” (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 26).

103

A contemplação da cidade, no fragmento, não se dá por meio da

caminhada, contudo a observação dos telhados parisienses envolve um

percurso feito com o olhar, como a fotografia do desconhecido retratada por

Pierre-Yves evidencia. Ao se dirigir à janela e admirar o topo dos edifícios da

cidade, o personagem é levado a uma reflexão sobre seus escritos da mesma

maneira que acontecerá em outros trechos, nos quais se movimenta pelas ruas

de Paris. Pode-se afirmar, então, que o voyeur – por ser um atento analista dos

costumes e hábitos presentes na cidade – não depende apenas da

perambulação para cumprir com o seu papel.

A partir do momento que a contemplação leva à autocrítica do narrador a

respeito de seus contos há a troca de olhares avaliativa tão própria da atitude

contemplativa do voyeur, pois se o seu traço característico é desfilar pela cidade

notando as pessoas e sendo notado por elas, o julgamento é decorrente. Assim,

ao apreciar os telhados a avaliação é feita antecipadamente pelo próprio

narrador, que, provavelmente, consegue mensurar as críticas feitas futuramente

pela sociedade sobre o seu trabalho.

Mais adiante, Hemingway afirma aprender com os grandes mestres do

Impressionismo a verdadeira simplicidade do fazer artístico e esse aprendizado

só foi possível por meio dos seus passeios aos museus franceses e da

observação atenta das telas.

[…] Going down the stairs when I had worked well […] was a wonderful feeling and I was free then to walk anywhere in Paris. If I walked down by different streets to the Jardin du Luxembourg in the afternoon I could walk through the gardens and then go to the Musée du Luxemboug where the great paintings were that have now mostly been transferred to the Louvre and the Jeu de Paume. I went there nearly every day for the Cézannes and to see the Manets and the Monets and the other Impressionists that I had first come to know about in the Art Institute at Chicago. I was learning something from the painting of Cézanne that made writing simple true sentences far from enough to make the stories have the dimensions that I was trying to put in them. I was learning very much from him but I was not articulate enough to explain in to anyone. Besides it was a secret. But if the light was gone in the Luxemboug I would walk up through the gardens and stop in at the studio apartment where Gertrude Stein lived at 27 rue de Fleurus (HEMINGWAY, 1994, p. 7 e 8).57

57 [...] Descer as escadas quando tinha trabalhado bem [...] era uma sensação maravilhosa e só então me julgava livre para andar a esmo em Paris.

104

(Jardin de Luxemburg)

Figura 21: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Agence Meurisse. Disponível em:

http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b90404172/f1.item. Acesso em: 27 out 2017.

A admiração de Hemingway por Cézanne, possivelmente, envolve não só

sua notável habilidade na composição de suas pinturas, mas também o fato de

o pintor ter inaugurado o modelo de arte pós-impressionista e, principalmente,

ter morrido – ao contrário de muitos de seus conterrâneos e contemporâneos -

sendo reconhecido pelo público e pela crítica como um grande artista. A ambição

de Hemingway é trazer para os seus escritos a genialidade e a inovação

demonstradas por Cézanne e atingir a valorização máxima pela sua dedicação

e pelo seu talento.

Se me encaminhava, à tarde, por qualquer rua, ao Jardin du Luxembourg, podia passear pelas alamedas e depois ir ao Musée du Luxembourg, onde se encontravam os grandes quadros que, em sua maioria, hoje estão no Louvre e no Jeu de Paume. Ia lá quase todos os dias por causa do Cézannes e para ver os Manets, os Monets e os outros impressionistas de que tinha tomado conhecimento pela primeira vez no Instituto de Arte de Chicago. Estava aprendendo com a pintura de Cézanne algo que tornava as frases simples e verdadeiras que eu escrevia coisa muito aquém das dimensões que pretendia dar a meus contos. Estava aprendendo muito com ele, mas não conseguia clareza suficiente para comunicá-lo a quem quer que fosse. Além disso, era como que um segredo entre nós dois. Quando já não havia luz no Luxembourg podia voltar pelos jardins e dar um pulo ao apartamento-estúdio onde Gertrude Stein morava, na Rue de Fleurus, 27 (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 27 e 28).

105

Figura 22: Paul Cézanne. Os jogadores de cartas. 1890-1895. Óleo sobre tela. 47cm x 57cm.

Musée d’Orsay, Paris. Disponível em: http://www.musee-orsay.fr/en/collections/works-in-

focus/search/commentaire.html?no_cache=1&zoom=1&tx_damzoom_pi1%5BshowUid%5D=19

89. Acesso em: 28 out 2017.

A valorização da obra do pintor envolve ainda o fato de Hemingway buscar

em outros estilos artísticos o exemplo de maestria para as suas obras. Ele

reconhece Cézanne como uma outra espécie de escritor que no lugar das

palavras utiliza formas e cores para transmitir a beleza e o conteúdo nas suas

criações. Sendo assim, pode-se dizer que o narrador é o flâneur e o voyeur que

aprecia a cidade, seus habitantes e, também, seus artistas.

O ato de olhar se torna constante no romance, pois é comum o narrador

indicar ter passado por ruas e direcionado sua atenção ou para a paisagem ao

seu redor, ou para algum edifício, ou para algum cidadão que se sobressai na

movimentação incessante da cidade.

Walter Benjamin afirma que no século XIX – época em que a figura do

flâneur é instaurada na literatura, conceituada por Baudelaire e eternizada por

ele e por Balzac – houve, o que Eduard Fuchs chama de a “colossal passagem

em revista da vida burguesa que então se iniciou na França” (apud BENJAMIN,

2005, p. 38), fato que contribuiu para que tudo que desfilasse nas ruas da capital,

fosse visto e registrado pelo flâneur.

O olhar, desse modo, transmite para o leitor do romance os aspectos que

envolvem a vida dos parisienses da segunda década do século XX. Quando

Hemingway transcreve o que seus olhos vêm na cidade, são construídas

passagens sinestésicas, que impressionam o leitor pela sua fidelidade. Muitos

106

mapas e roteiros turísticos elaborados a partir das descrições dos passeios feitos

em Paris é uma festa apontam para o leitor do século XXI as localizações dos

endereços mencionados por Hemingway e indicam quais locais ainda existem.

Sérgio Augusto, por exemplo, comenta em seu guia:

Vários marcos históricos não existem mais ou desapareceram, como a livraria Shakespeare and Company original, como o bistrô Michaud’s (rue des Saints-Péres, 29) [...] que virou brasserie (L’ Escorailles) e há algum tempo abriga uma galeria de arte. [...] O Vélodrome d’ Hiver, no nº 8 do boulevard de Grenelle, onde Hemingway assistia a corridas de bicicleta, vez por outra na companhia de Allen Tate, transfigurou-se em memorial dos judeus franceses deportados pelos nazistas e finalmente foi abaixo em 1959. Outros não só foram conservados como ostentam, com orgulho, em suas fachadas, o motivo de sua singularidade. Na entrada do nº 7 da rue de Fleurus, por exemplo, uma placa anuncia que Gertrude Stein e Alice B. Toklas ali residiram de 1903 a 1938. [...] (2011, p. 30).

(Vélodrome d’Hiver)

Figura 23: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://rustyknuckles.blogspot.com.br/2011/12/wall-of-death-history-and-film-by.html. Acesso em:

27 out 2017.

A todos os lugares mencionados por Sérgio Augusto no trecho

supracitado Hemingway se refere no romance, fazendo o pacto autobiográfico

ser ainda mais determinante para a leitura da obra, uma vez que o próprio leitor

se torna um flâneur, primeiramente, pois o narrador divide com ele os panoramas

107

visuais das ruas de Paris dos anos 1920 e, em um segundo momento, por se

sentir incentivado (tanto por Hemingway, como por outros autores posteriores a

ele, como Woody Allen) a ter a mesma prática pelas ruas atuais da cidade.

Muitas vezes, Hemingway tenta imprimir às suas descrições sinestésicas

características particulares de textos elaborados em mídias visuais, como o

contraste de luz e escuridão, para tentar criar ilusoriamente no leitor a sensação

de estar ao seu lado perambulando pela cidade e contemplando as paisagens

descritas, como o fragmento a seguir demonstra.

[…] We walked back through the Tuileries in the dark and stood and looked thorough the Arc du Carrousel up across the dark gardens with the lights of the Concorde behind the formal darkness and then the long rise of lights toward the Arc de Triomphe. Then we looked back toward the dark of the Louvre and I said, ‘Do you really think that the three arches are in line? These two and the Sermione in Milano? (HEMINGWAY, 1994, p. 30).58

Há, portanto, indícios nas descrições de Hemingway de princípios da

intermidialidade, definida por Irina Rajewsky como

um termo genérico para todos aqueles fenômenos que (como indica o prefixo inter-) de alguma maneira acontecem entre as mídias. “Intermidiático”, portanto, designa aquelas configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as mídias [...] (in: Diniz, 2012, p. 18)

Para a compreensão e a interpretação das descrições sinestésicas feitas

pelo narrador como um processo intermidiático, é necessário que o leitor tenha

um repertório prévio. Somente quando, na mente do leitor, são criadas imagens

com tamanha perfeição e riqueza de detalhes é que são acionadas às

referências relativas aos processos constitutivos de outras mídias (diferentes do

livro).

Claus Clüver diz que:

58 [...] Caminhamos de volta pelas Tuileries, no escuro, e paramos para contemplar os jardins escuros através do Arc du Carroussel, com a Concorde brilhando atrás da escuridão solene e, além, a longa extensão das luzes em direção ao Arc du Triomphe. Depois voltamos nossas cabeças para o escuro do Louvre e eu perguntei: - Você acha que os três arcos estão realmente em linha reta? Estes dois e o Sermione em Milão? (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 68).

108

O repertório que utilizamos no momento da construção ou da interpretação textual compõe-se de elementos textuais de diversas mídias [...]. As comunidades interpretativas, que determinam e autorizam quais códigos e convenções nós ativamos na interpretação textual, influenciam também o repertório textual e o horizonte de expectativas. Mas o repertório é, em última análise, parte dos contextos culturais nos quais se realizam a produção e a recepção textual (2006, p. 15).

Desse modo, é a partir do conhecimento sobre o contraste de luz e

sombra ou de claridade e escuridão ser peculiar à pintura que o leitor consegue

inferir que as descrições são mais do que sinestésicas, elas são quadros

elaborados por meio das palavras.

(Arc du Triomphe)

Figura 24. L’Equipe. [Sem Título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/collections-gallery/77085-13-preparatifs-defile-du-14-juillet-sont-

pousses-activement-a-paris-debut-juillet-1919-tribunes-installees-chaque-cote-lavenue-

champs-elysees-couvriront-superficie-5000-metres-carres-photographie-parue-journal-

excelsior-du. Acesso em: 28 out 2017.

Da mesma forma que Hemingway reconhece Cézanne como um

‘escritor de quadros’, o leitor passa a considerar o autor como um ‘artista plástico

das palavras’, principalmente quando reconhece referências midiáticas nas

descrições. Para Rajewsky, “as referências intermidiáticas devem ser

compreendidas como estratégias de constituição de sentido que contribuem para

a significação total do produto” (in: Diniz, 2012, p. 25).

As descrições de Hemingway, em sua maioria, são verbalizações de

uma imagem visual (como é possível comprovar com o fragmento a seguir).

109

It’s was a lovely spring day and I walked down from the Place de l’Observatoire through the little Luxembourg. The horse-chestnut trees were in blossom and there were many children playing on the graveled walks with their nurses sitting on the benches, and I saw wood pigeons in the trees and heard others that I could not

see (HEMINGWAY, 1994, p. 68).59

Entretanto, elas possibilitam àqueles ausentes no momento da cena o

testemunho dos acontecimentos. Essa verbalização sinestésica, portanto,

congela a cena descrita, eternizando instantes de extrema beleza e bucolismo

presenciados pelo narrador, na imaginação do leitor.

A visão nesse processo de construção das imagens é fundamental, pois

todas as características descritas são primeiramente capturadas e registradas

pelo olhar atento do flâneur, funcionando quase como uma câmera que retém e

reproduz ao infinito os episódios admirados pelo narrador.

Em trechos como o reproduzido abaixo o ‘olhar-câmera’ do flâneur é

evidenciado:

I walked down the street between the high, stained and streaked white houses and turned to the right at the open, sunny end and went into the sun-striped dusk of the Lilas. There was no one there I knew and I went outside onto the terrace and found Evan Shipman waiting. He was a fine poet and he knew and cared about horses, writing and painting. He rose and I saw him tall and pale and thin, his white shirt dirty and worn at the collar, his tie carefully knotted, his worn and wrinkled grey suit, his fingers stained darker than his hair, his nails dirty and his loving, deprecatory smile that he held tightly not to show his bad teeth (HEMINGWAY, 1994, p. 77).60

59 Mas, voltando ao que eu contava, era um belo dia de primavera aquele, e caminhei até a casa

de Miss Stein, vindo da Place de l’Observatoire através dos jardins do pequeno Luxembourg. Os castanheiros-da-índia estavam floridos, havia muitas crianças brincando nas aleias cobertas de saibro, suas babás se espalhavam pelos bancos do parque, vi pombos silvestres nas árvores e ouvi o canto daqueles que a folhagem escondia (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 140). 60 Desci à rua, segui por entre as casas altas e esbranquiçadas cuja pintura apresentava manchas

e riscas, virei à direita na esquina banhada de sol e entrei na penumbra raiada de luz do Lilas. Não vendo nenhuma cara conhecida, dirigi-me ao terraço e lá estava a figura de Evan Shipman, esperando por mim. Evan era um bom poeta e um homem apaixonado por cavalos, literatura e artes plásticas. Levantou-se ao me ver. Alto, pálido, magro, a camisa branca encardida e rota no colarinho, o nó de gravata bem-dado, o terno cinza todo amassado e muito surrado, os dedos com manchas mais escuras do que seus cabelos, as unhas sujas, o sorriso encantador, mas algo irônico, que ele conseguia dar com os lábios cerrados, para não mostrar os maus dentes (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 160).

110

Ao descrever sua descida pela rua e ao afirmar não reconhecer nenhum

rosto no bar onde chegara, é possível acompanhar não só os passos dados pelo

narrador até adentrar o Lilas, como também o seu olhar buscando reconhecer

alguma das fisionomias presentes no local, o que assemelha esses movimentos

do personagem a uma câmera de cinema em travelling, ou seja, se deslocando

no espaço.

Além do travelling, é possível notar, no mesmo fragmento, a mudança de

enquadramento do ‘olhar-câmera’, inicialmente em plano aberto quando o

personagem entra e observa os frequentadores do Lilas, e na sequência –

depois dos comentários do narrador sobre a personalidade de Evan – focalizado

em um plano médio, permitindo a visualização tanto do estado das vestimentas

do poeta, como as suas feições, até o close dado em suas unhas sujas.

Rajewsky salienta que

uma referência intermidiática pode apenas gerar uma ilusão de práticas específicas de outra mídia. Mas é precisamente essa ilusão que potencialmente provoca no receptor de um texto literário uma espécie de sensação das qualidades musicais, pictóricas ou cinematográficas – ou falando de uma maneira mais geral – a sensação de uma presença visual ou acústica (in: Diniz, 2012, p. 28).

Nos termos da própria estudiosa, é “como se” (in: Diniz, 2012 v.2, p. 61)

o leitor da descrição de Hemingway estivesse diante de uma câmera

cinematográfica que se movimenta com técnica para enriquecer o relato, porém

é evidente que o cinema, entendido como uma mídia específica, está apenas

indiretamente presente no fragmento. São os instrumentos típicos da descrição

verbal que se realizam de um modo tal que o observador atento recorda-se de

experiências ou de enquadramentos midiaticamente similares aos do cinema,

conducentes a uma ilusão, um “e se”, de qualidade cinematográfica (idem, p.

62).

É claro que muitas das descrições feitas pelo flâneur apenas mostram o

seu deslocamento pela cidade e servem como pretexto para os seus

comentários a respeito dos outros personagens, do seu comportamento, da

cidade em si. No entanto, é importante ressaltar que mesmo não sendo suficiente

para substituir as imagens concretas dos ambientes por onde o protagonista

111

passa e das pessoas com quem ele convive, os aspectos intermidiáticos

favorecem a concepção mitológica e utópica de Paris (analisadas na seções X e

XI, respectivamente), o diálogo entre o romance e a novela balzaquiana

(aprofundado na seção IX) e a adaptação do enredo de Paris é uma festa para

o filme de Woody Allen (discutida e interpretada no próximo capítulo).

A respeito da insuficiência das palavras perante as imagens, Michel

Foucault comenta que:

[...] Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem. [...] (2000, p. 11).

A aplicação das referências midiáticas serve de base para a construção

dos personagens e da cidade em Meia-noite em Paris. No entanto, como será

apresentado no capítulo referente ao filme, nenhuma das descrições de

Hemingway será tão impactante para o leitor como as imagens reproduzidas no

longa-metragem, pois, como comenta Foucault, por mais minuciosa que seja ou

por mais recursos intermidiáticos que apresente, as palavras não são suficientes

para fidelizar as experiências vividas pelo flâneur na cidade.

Como a transmissão das experiências do flâneur se dá por meio da visão

atenta do personagem pelos lugares em que passa, ela só pode ser completa a

partir da construção de uma nova experiência visual e, por isso, as tomadas de

cenas produzidas por Woody Allen são tão marcantes para o leitor e tão

fundamentais na consolidação de Paris como mito moderno.

O clima da cidade, por exemplo, é um dos aspectos insuficientemente

descritos pelas palavras de Hemingway e magistralmente definido pelas

imagens de Allen.

VII. O clima da cidade

Em muitos momentos do romance, o narrador comenta sobre o clima de

Paris, em um deles ele diz:

112

When we came back to Paris it was clear and cold and lovely. The city had accommodated itself to winter, there was good wood for sale at the wood and coal place across our street, and there were braziers outside of many of the good cafés so that you could keep warm on the terraces. Our own apartment was warm and cheerful. We burned boulets which were molded, egg-shaped lumps of coal dust, on the wood fire, and on the streets the winter light was beautiful. Now you were accustomed to see the bare trees against the sky and you walked on the fresh-washed gravel paths through the Luxembourg gardens in the clear sharp wind. The trees were sculpture without their leaves when you were reconciled to them, and the winter winds blew across the surfaces of the ponds and the fountains blew in the bright light. All the distance were short now since we had been in the mountains (HEMINGWAY, 1994, p. 6).61

(Neve no

Jardim de Luxemburg)

Figura 25: Albert Harlingue. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.parisenimages.fr/en/collections-gallery/13944-5-winter-paris-jardin-du-luxembourg-

snow-around-1920. Acesso em: 30 out 2017.

61 Quando regressamos a Paris, fazia um tempo claro, frio e adorável. A cidade já se acomodava

ao inverno, havia boa lenha à venda nas carvoarias de nossa rua e braseiros eram colocados na parte externa de muitos dos bons cafés, de modo que até mesmo nas terraces se estava aquecido. Nosso apartamento se mantinha quente e alegre. Queimávamos boulets no fogo de lenha – boulets eram bolos de poeira de carvão moldados em forma de ovo – e, nas ruas, a luz do inverno era linda. Já nos havíamos habituado a essa altura, com a nudez das árvores sobre o fundo do céu, e passeávamos sob claro vento cortante pelas alamedas ensaibradas dos jardins do Luxembourg que a chuva acaba de lavar. As árvores desfolhadas – quando a gente te reconciliava com elas – eram como esculturas; os ventos do inverno batiam a superfície dos lagos ornamentais, as fontes jorravam na claridade luminosa do dia. Depois da temporada nas montanhas, todas as distâncias nos pareciam curtas (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 25).

113

A beleza do inverno retratada por meios das sensações do barulho e do

toque do vento cortante, da umidade da chuva gélida, da nudez dos galhos das

árvores e do contraste entre as temperaturas frias das ruas e as temperaturas

quentes dos ambientes internos é apreciada ao longo dos passeios feitos pelo

flâneur, que na perspectiva de Benjamin

[...] sente-se em casa nesse mundo; é ele que oferece a esse lugar predileto dos transeuntes e dos fumantes, a essa arena de todas as pequenas profissões o seu cronista e o seu filósofo. Mas para ele esse lugar é o remédio infalível contra o tédio, uma doença que grassa facilmente sob o olhar mortífero de um regime reacionário saturado. “Quem consegue entediar-se no meio de uma multidão” – diz uma frase de Guys transmitida por Baudelaire – “é um idiota. Um idiota, repito, e desprezível” A rua transforma-se na casa do flâneur, que se sente em casa entre as fachadas dos prédios, como o burguês entre as suas quatro paredes. Para ele, as tabuletas esmaltadas e brilhantes das firmas são adornos, murais tão bons ou melhores que os quadros a óleo do salão burguês. [...] a vida em toda a sua diversidade, na sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolve entre as pedras cinzentas da calçada e contra o pano de fundo cinzento do despotismo (2015, p. 39 e 40).

Por ser o cronista das ruas e elas serem o seu verdadeiro lar, é muito

comum nas descrições do clima da cidade feitas pelo flâneur as influências das

suas emoções. No trecho supracitado, por exemplo, a paisagem de inverno é

bela, pois o protagonista sentia saudade de Paris quando a descreveu. Em outro

momento, porém, a estação mais fria do ano é associada à tristeza de deixar a

cidade, principalmente para proteger Bumby das baixas temperaturas.

When there were the tree of us instead of just the two, it was the cold and the weather that finally drove us out of Paris in the winter time. Alone there was no problem when you got used to it. […] But when you are poor, and we were really poor when I had given up all journalism when we came back from Canada, and could sell no stories at all, it was too rough with a baby in Paris in the winter. […] But our Paris was too cold for him (HEMINGWAY, 1994, p. 116).62

62 Já que éramos três agora, e não mais apenas dois, o frio e o mau tempo acabavam por nos

expulsar de Paris, durante o inverno. Quando se está só e disposto a tudo, não há problema que não se resolva. [...] Quando se é pobre, e éramos realmente muito pobres naquela época (eu renunciara ao jornalismo quando regressamos do Canadá e ainda não conseguira publicar meus contos em revista alguma), o inverno em Paris é um problema muito sério para quem tem uma criancinha de berço. [...] Mas Paris, a nossa Paris, era fria demais para ele durante o inverno (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 233 e 234).

114

(Hemingway e seu filho Bumby, 1924)

Figura 26: [Sem título]. [Sem autor]. Fotografia. Disponível em: https://www.jfklibrary.org/Asset-

Viewer/Archives/EHPH-003-021.aspx. Acesso em: 30 out 2017.

Não é sem desígnio, todavia, que o inverno é a estação responsável por

encerrar o período vivido pelo protagonista em Paris. Desde o Romantismo (no

século XIX de Balzac) a natureza reflete os sentimentos do herói dos romances,

portanto, o inverno – por tornar as pessoas mais reclusas e por ter mais

opacidade nas cores das paisagens naturais – é alusivo a sentimentos como

tristeza, desânimo, solidão, medo, angústia, ou seja, sensações mais intimistas

e comedidas.

Como é durante esse período do ano que o flâneur não vê outra solução

a não ser deixar às ruas de Paris, seu lar natural, o descontentamento dele diante

da situação é inevitável. Hemingway não abandona Paris por desejo, mas por

uma obrigação que o faz refletir e concluir que a sua Paris, boêmia e festiva, só

dá espaço para os jovens, sem grandes responsabilidades, que conseguem

desfrutar da diversão proporcionada por ela.

115

(Hemingway e Bumby)

Figura 27: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

https://www.pinterest.co.uk/pin/575616396105701303/. Acesso em: 30 out 2017.

A abertura do primeiro capítulo do romance, contudo, é feita pela

descrição do mau tempo de Paris.

Then there was the bad weather. It would come in one day when the fall was over. We would have to shut the windows in the night against the rain and the cold wind would strip the leaves from the trees in the Place Contrescarpe. The leaves lay sodden in the rain and the wind drove the rain againt the big green autobus at the terminal and the Café des Amateurs was crowded and the windows misted over from the heat and the smoke inside (HEMINGWAY, 1994, p. 1).63

Todas as referências ao clima da cidade são reais. É de conhecimento

geral que Paris é uma área territorial atingida por chuvas constantes e o mau

tempo é típico da região no final do outono, quase no início do inverno.

Entretanto, pode-se considerar a abertura do romance não apenas como uma

contextualização climática sublime e ingênua, mas como uma revelação das

circunstâncias históricas vividas pelos personagens durante a época retratada

no enredo.

63 Era época de mau tempo. Chegaria a qualquer momento, no fim do outono. Teríamos de fechar

as janelas à noite, por causa da chuva, e o vento frio arrancaria as folhas das árvores da Place Constrescape. As folhas ficariam no chão, encharcadas, o vento atiraria a chuva contra os grandes ônibus verdes no ponto terminal e o Café des Amateurs ficaria cheio de gente, suas janelas embaçadas pelo calor e pela fumaça lá de dentro (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 17).

116

A Primeira Guerra Mundial é o mau tempo mencionado por Hemingway.

Época de grande tensão entre os povos, principalmente da Europa e dos

Estados Unidos, que enfrentaram consequências graves decorrentes dos

conflitos armados. A depressão econômica, uma das principais sequelas

deixadas pela guerra, é retratada ao longo de todo o romance, por meio das

dificuldades financeiras enfrentadas pelo protagonista. No entanto, além dela, os

mortos – representados pelas folhas retiradas de suas árvores e caídas no chão

– e a preocupação das pessoas com possíveis bombardeios aéreos – as chuvas

que forçam os fechamentos das janelas, no fragmento – estão presentes na

descrição.

É a primavera, todavia, a responsável não só por afastar os fenômenos

climáticos relativos ao mau tempo, como também por favorecer a visão

romântica e enaltecida da cidade apesar do momento histórico conturbado.

Dessa forma, a primavera representa a esperança retomada por meio do término

da guerra, do fim das mortes em batalha, da volta à prosperidade, da volta à vida

e da volta à paz.

[...] With so many trees in the city, you could see the spring coming each day until a night of warm wind would bring it suddenly in one morning. Sometimes the heavy cold rains would beat it back so that it would seem that it would never come and that you were losing a season out of your life. This was the only truly sad time in Paris because it was unnatural. You expected to be sad in the fall. Part of you died each year when the leaves fell from the trees and their branches were bare against the wind and the cold, wintry light. But you knew there would always be the spring, as you knew the river would flow again after it was frozen. When the cold rains kept on and killed the spring, it was as though a young person had died for no reason. In those days, though, the spring always came finally but it was frightening that it had nearly failed (HEMINGWAY, 1994, p. 26).64

64 [...] Com tantas árvores na cidade podia-se ver a primavera chegando dia a dia, até que uma noite de vento quente a traria de repente na manhã seguinte. Pesadas chuvas frias poderiam retardá-la às vezes, e temíamos que nunca mais chegasse, fazendo-nos perder, assim, uma estação em nossa vida. Esse era o único tempo realmente triste em Paris porque era fora do natural. A gente já espera ficar triste no outono. Uma parte da gente morre a cada ano, quando as folhas caem das árvores e seus galhos ficam nus, batidos pelo vento e pela luz fria, invernal. Mas sabíamos que haveria sempre outra primavera, assim como sabíamos que o rio fluiria de novo depois de ter estado congelado. Quando as chuvas frias continuavam durante longo tempo e acabam matando a primavera, era como se um jovem tivesse morrido à toa. Naqueles dias, porém, a primavera sempre triunfava, mas dava-nos um frio na espinha pensar que faltara pouco para que ela tivesse falhado (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 59 e 60).

117

Como o enredo do romance trata de um período muito próximo ao final da

Primeira Guerra (ocorrido em 1918), são naturais as dúvidas a respeito do futuro

promissor trazido pela primavera. Entretanto, a descrença e o ceticismo das

pessoas diante da situação política, econômica e social do pós-guerra não é

compatível com a vitalidade e com o glamour parisienses. No trecho acima, é

quase como se Hemingway dissesse ao leitor que a infelicidade não tinha espaço

para existir em Paris, principalmente quando os dias quentes de sol se

aproximavam.

A metáfora do rio, presente no fragmento, alude à continuidade da vida.

O rio Sena presente na narrativa como um marco francês e um ponto turístico

importante para a descrição de Paris também é o representante do percurso do

artista e do flâneur, pois é ao observar as águas em constante movimento,

sempre seguindo em frente, em direção ao futuro que o narrador transforma a

esperança trazida pela primavera em otimismo – sentimento determinante para

a persistência do personagem em viver na cidade mesmo com todas as

dificuldades enfrentadas. O fragmento abaixo (parcialmente citado

anteriormente, na seção II deste capítulo) confirma a interpretação feita.

[...] When I stopped writing I did not want to leave the river where I could see the trout in the pool, its surface pushing and swelling smooth against the resistance of the log-driven piles of the bridge, the story was about coming back from the war but there was no mention of the war in it. But in the morning the river would be there and I must make it and the country and all that would happen. There were days ahead to be doing that each day. No other thing mattered. In my pocket was the money from Germany so there was no problem. When that was gone some other money would come in. All I must do now was stay sound and good in my head until morning when I would start to work again (HEMINGWAY, 1994, p. 44 e 45).65

65 [...] Quando parei de escrever, não quis afastar-me da lembrança do rio, onde podia ver trutas,

no remanso das águas, cuja superfície intumescia contra a resistência dos pilares de madeira das pontes. O conto era sobre alguém voltando da guerra, mas a guerra não entrava nele. Entretanto, na manhã seguinte, o rio estaria lá à minha espera, assim como os campos e tudo o que iria acontecer. Tinha a vida pela frente, para ir fazendo isto dia após dia. Nada mais me importava. Tinha no bolso o dinheiro vindo da Alemanha, da maneira que não havia problemas. Quando acabasse, mais dinheiro viria. Tudo o que tinha de fazer, agora, era aguentar firme e estar bom da cabeça até a manhã, quando recomeçaria a trabalhar (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 94).

118

(O rio Sena e Pont-Neuf)

Figura 28: Edouard Desprez. [Sem Título]. Fotografia. 18 cm x 24 cm. Département Histoire de

l’Architecture et Archéologie de Paris. Disponível em: http://www.parisenimages.fr/en/collections-

gallery/82387-23-eastwards-view-river-seine-and-pont-neuf-quay-and-samaritaine-department-

store-extensions-works-paris-ist-arrondissement-1926-1927-photograph-edouard-desprez-

departement-histoire-larchitecture-archeologie-paris. Acesso em: 27 out 2017.

Além de representar metaforicamente a esperança e a felicidade trazidas

pelo fim da guerra, a primavera também favorece as caminhadas do flâneur, pois

o bom tempo acompanhado das boas novas inspiram os passeios do

protagonista e as suas visitas aos amigos, mais frequentemente à Gertrude

Stein.

Miss Stein é um personagem importante na narrativa. Apesar de

coadjuvante e, por isso, não estar presente em boa parte do enredo, ela tem

singular relevância por ser a encarregada de aconselhar Hemingway não só

sobre o mundo das letras, lendo seus primeiros escritos e comentando-os, como

também sobre assuntos relativos a diferenças culturais entre os franceses e os

norte-americanos. Sendo as principais delas a liberdade sexual e o respeito aos

homossexuais.

VIII. Homossexualismo

O homossexualismo é abordado duas vezes no romance. Na primeira

abordagem há um diálogo bem desenvolvido entre Hemingway e Miss Stein

sobre o tema.

119

On this cold afternoon when I had come past the concierge’s lodge and the cold courtyard to the warmth of the studio, all that was years ahead. On this day Miss Stein was instructing me about sex. By that time we liked each other very much and I had already learned that everything I did not understand probably had something to it. Miss Stein thought that I was too uneducated about sex and I must admit that I had certain prejudices against homosexuality since I knew its more primitive aspects. […] ‘Yes, yes, Hemingway,’ she said. ‘But you were living in a milieu of criminals and perverts.’ I did not want to argue that, although I thought that I had lived in a world as it was and there were all kinds of people in it and I tried to understand them, although some of them I could not like and some I still hated. […] […] I had not started the conversation and thought it had become a little dangerous. There were almost never any pauses in a conversation with Miss Stein, but we had paused and there was something she wanted to tell me and I filled my glass. ‘You know nothing about any of this really, Hemingway’, she said. ‘You’ve met known criminals and sick people and vicious people. The main thing is that the act male homosexuals commit is ugly and repugnant and afterwards they are disgusted with themselves. They drink and take drugs, to palliate this, but they are disgusted with the act and they are always changing partners and cannot be really happy’ ‘I see’ ‘In women it is the opposite. They do nothing that they are disgusted by and nothing that is repulsive and afterwards they are happy and they can lead happy lives together’ […] ‘I understand’ ‘You’re sur you understand?’ There were so many things to understand in those days and I was glad when we talked about something else. […] (HEMINGWAY, 1994, p. 11, 12 e 13).66

66 Naquela tarde fria, quando passei pela saleta da concierge e emergi do pátio gelado para o

aquecimento do estúdio, tudo isso estava ainda anos adiante. Miss Stein tirara aquele dia para me instruir a respeito de sexo. Por essa época gostávamos muito um do outro, e eu já concluíra que tudo o que eu não entendia tinha provavelmente algo de errado em si mesmo. Miss Stein achava que eu era muito ignorante a respeito de sexo. Devo admitir que tinha de fato certos preconceitos contra a homossexualidade, pois conhecia seus aspectos mais primitivos. [...] - Sim, sim, Hemingway – disse ela –, mas você estava vivendo no meio de criminosos e pervertidos. Não quis argumentar, mas achava que vivera num mundo que era do jeito que era, no qual havia gente de toda espécie, que eu procurara entender, embora em algumas dessas pessoas não gostasse e a algumas eu, até aquele momento, odiasse. [...] [...] Não fora eu quem começara aquela conversa e achei que se tinha tornado um pouco perigosa. Numa conversa com Miss Stein não havia quase pausas, mas tínhamos feito uma agora e, como senti que havia alguma coisa que ela desejava me dizer, voltei a encher meu copo. - Você realmente não sabe nada a respeito disso, Hemingway – disse ela. – Você se deu com criminosos, pessoas doentes e depravadas. A questão principal é que o ato que os

120

(Gertrude Stein com Alice em seu

estúdio)

Figura 29: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

https://br.pinterest.com/pin/563018673697691/?lp=true. Acesso em: 06 nov 2017.

O preconceito desvelado de Hemingway indica ser aquela a realidade dos

norte-americanos sobre o tema, contudo, a cultura machista materializada na

personagem de Hemingway tem seu contraponto em Gertrude Stein, mulher

respeitada por seu conhecimento artístico e reconhecida tanto pelo seu talento

com as letras como por ser homossexual.

Há no antagonismo de opiniões dos dois personagens sobre o assunto

mais do que apenas a defesa da opção sexual de cada um deles, há a diferença

ideológica daquele que representa todos os norte-americanos em nítida

oposição à axiologia daquela que personifica os europeus, mais especificamente

os franceses.

Miss Stein era uma feminista norte-americana radicada na França e, por

ser revolucionária na luta pelos direitos da mulher na sociedade e inovadora no

homossexuais masculinos cometem é feio e repugnante, tanto que depois têm nojo de si mesmos. Bebem e usam drogas para aliviar isto, mas têm repugnância do ato em si, mudam sempre de parceiros e não podem ser realmente felizes. - Compreendo. - Com as mulheres é o oposto. Nada fazem de que tenham nojo e nada que seja repulsivo, satisfazem-se e podem levar uma vida feliz juntas. [...] - Compreendo. - Tem certeza que compreende? Havia tantas coisas para compreender naqueles dias que fiquei satisfeito quando mudamos de assunto. [...] (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 33, 34, 35 e 36).

121

que dizia respeito aos padrões estéticos das artes de vanguarda, era sem dúvida

uma referência importante em todas as questões envolvendo a mudança de

padrões e os valores artísticos e ideológicos da época.

Por ser uma formadora de opinião, Gertrude Stein influencia Hemingway

a ser mais flexível sobre o tema, mas, acima de tudo, sobre o homossexualismo

feminino. Tal manifestação ideológica favorável ao relacionamento amoroso

entre mulheres só é possível por ser este um tema livremente discutido e exposto

em território francês, muito tempo antes da conversa entre os personagens de

Paris é uma festa. Balzac, em A menina dos olhos de ouro, visionariamente já

apresentou o relacionamento homossexual feminino em Paris.

No desfecho de sua novela, Balzac revela a Henri de Marsay e ao leitor o

grande mistério envolvendo Paquita Valdez: a moça mantinha relações

amorosas com o rapaz e com a marquesa de San-Réal. Em uma cena altamente

dramática são colocados no mesmo espaço os três personagens e Henri, intruso

no ambiente, se torna a única testemunha do assassinato de Paquita.

De Marsay grimpa lestement l’escalier qu’il connaissait et reconnut le chemin du boudoir. Quand il en ouvrit la porte il eut le frissonnement involontaire que cause à l’homme le plus déterminé la vue du sang répandu. Le spectacle qui s’offrit à ses regards eut d’ailleurs pour lui plus d’une cause d’étonnement. La marquise était femme: elle avait calculé sa vengeance avec cette perfection de perfidie qui distingue les animaux faibles. Elle avait dissimulé sa colère pour s’assurer du crime avant de le punir. – Trop tard, mon bien-aimé ! dit Paquita mourante dont les yeux pâles se tournèrent vers de Marsay. [...] – Meurs sans confession ! lui disait-elle; va en enfer, monstre d’ingratitude; ne sois plus à personne qu’au démon. Pour le sang que tu lui as donné, tu me dois tout le tien! Meurs, meurs, souffre mille morts, j’ai été trop bonne, je n’ai mis qu’un moment à te tuer, j’aurais voulu te faire éprouver toutes les douleurs que tu me lègues. Je vivrai, moi! je vivrai malheureuse, je suis réduite à ne plus aimer que Dieu ! Elle la contempla. – Elle est morte! se dit-elle après une pause en faisant un violent retour sur elle-même. Morte, ah! j’en mourrai de douleur! (BALZAC, 1968, p. 147 e 150).67

67 De Marsay subiu lestamente a escada que conhecia e achou o caminho para o toucador. Ao

abrir a porta sofreu o estremecimento involuntário que causa no homem mais decidido a vista do sangue espalhado. O espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos constituía para ele, aliás, mais de um motivo de espanto. A marquesa era mulher: havia calculado sua vingança com essa perfeição de perfídia que caracteriza os animais fracos. Dissimulara sua cólera para certificar-se do crime antes de punir.

122

Apesar de não ter presenciado um assassinato, Hemingway se vê na

mesma posição de Henri de Marsay. Ele também é intruso de uma discussão

que não acaba bem entre Gertrude Stein e sua companheira, no fragmento a

seguir, já mencionado na seção I deste capítulo.

The Miss Stein’s voice came pleading and begging, saying, ‘Don’t, pussy. Don’t. Don’t, please don’t. I’ll do anything, pussy, but please don’t do it. Please don’t. Please don’t, pussy’ I swallowed the drink and put the glass down on the table and started for the door. The maidservant shook her finger at me and whispered, ‘Don’t go. She’ll be right down.’ ‘I have to go’, I said and tried not to hear any more as I left but it was still going on and the only way I could not hear it was to be gone. It was bad to hear and the answers were worse

(HEMINGWAY, 1994, p. 68).68

- Tarde demais, meu bem-amado! – disse Paquita agonizante, cujos olhos embaciados se voltaram para De Marsay. [...] - Morre sem confissão! – dizia-lhe –, vai para o inferno, monstro de ingratidão; sê do demônio e de mais ninguém. Pelo sangue que lhe deste, deves-me o teu! Morre, morre, sofre mil mortes; fui boa demais, levei só um momento a matar-te, quando desejaria fazer-te experimentar todas as dores que me legas. Eu, eu viverei! Viverei infeliz, reduzida a só amar a Deus! Contemplou-a - Ela está morta! – disse depois de uma pausa, dando violenta volta sobre si mesma. – Morta, ah! Eu morro de dor (Trad. Ernesto Pelanda, 2013, p. 416, 417 e 418). 68 Ouvi depois a voz da própria Miss Stein, chorando, implorando: - Não, gatinha. Não, por favor,

não. Farei o que você quiser, gatinha, mas não faça isso. Não, por favor...Não, gatinha! Engoli a bebida de uma só vez, coloquei o copo na mesa e dirigi-me para a porta. A empregada sacudiu o dedo para mim, dizendo-me baixinho: - Não vá embora, ela desce já, já. - Sinto muito, mas preciso sair imediatamente. Esforcei-me por não ouvir mais palavra alguma daquela conversa, mas o diálogo continuava e o único meio de não tomar conhecimento era mesmo dar o fora o quanto antes. Se o tom em que falava a desconhecida era desagradável, as respostas de Miss Stein eram ainda mais constrangedoras (Trad. Ênio Silveira, 2013, p. 141).

123

(Gertrude

Stein e Alice)

Figura 30: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

https://br.pinterest.com/eyezen/gertrude-stein-alice-b-toklas/?lp=true. Acesso em: 6 nov 2017.

As duas cenas têm finais muitos distintos, porém nos dois casos há a

posição de uma das mulheres em absoluta vantagem perante a outra, enquanto

a segunda tem seus segredos divulgados ao homem que se faz indevidamente

presente.

O homossexualismo feminino é um tema polêmico tratado com talento

pelos dois autores. Em Balzac, o caso homossexual é o gerador do mistério da

obra e do seu conflito principal. Já em Hemingway está presente mais sutilmente,

porém, mostra com nitidez a evolução ideológica do pensamento francês a

respeito desses assuntos, indicando ser uma preocupação do século XX temas

controversos ainda discutidos na sociedade do século XXI.

A França se reafirma na obra de Hemingway como o único lugar

axiologicamente apto a possibilitar o envolvimento de duas mulheres, porém um

século depois da tragédia envolvendo os personagens balzaquianos o caso

amoroso mesmo ainda sendo polêmico e alvo de preconceitos, é mais

naturalizado.

O homossexualismo feminino não é, evidentemente, o único traço

dialógico entre A menina dos olhos de ouro e Paris é uma festa. Muitas outras

questões ideológicas apresentadas por Balzac são retomadas ou modificadas

por Hemingway.

124

IX. Dialogismo

Segundo Bakhtin:

O discurso vivo e corrente está imediato e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na esfera do ‘já dito’, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso porém que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo o diálogo vivo (BAKHTIN, 1998, p. 89).

Paris é uma festa não foi elaborada por Ernest Hemingway com a intenção

de ser um discurso-resposta à obra de Balzac. No entanto, como o dialogismo,

na perspectiva bakhtiniana, é inerente a todo e qualquer discurso, a comparação

entre o romance do século XX e a novela, A menina dos olhos de ouro, do século

XIX, se torna possível.

Com objetivos díspares, Balzac e Hemingway fazem de suas obras um

retrato de Paris em suas épocas. Balzac, de maneira mais aprofundada, dedica

a maior parte de A comédia humana ao retrato da vida e do cotidiano parisiense,

enquanto o autor norte-americano, em um livro publicado postumamente,

registra seus dias na cidade durante uma fase específica de sua vida.

A primeira grande diferença entre o romance e a novela, se encontra

justamente no fato de Balzac buscar um registro fiel e realista da Paris do século

XIX e, para isso, precisou destinar inúmeras páginas de seus escritos a esse fim,

já Hemingway faz uma homenagem à cidade que o acolheu quando jovem e

reconstruiu suas esperanças perdidas durante a Primeira Guerra. Em outras

palavras, A menina dos olhos de ouro é uma fração da explanação de Balzac

sobre a cidade e o romance de Hemingway é a manifestação completa sobre o

seu ponto de vista a respeito das suas reminiscências na cidade.

O tom saudosista encontrado no livro de Hemingway está distante das

construções incisivas de Balzac, e isso se deve principalmente ao fato de

enquanto o autor francês escreveu sobre sua realidade cotidiana, o romancista

norte-americano encontrou em suas memórias a inspiração para a construção

de seu enredo.

125

A segunda diferença mais evidente entre os discursos está justamente na

construção linguística de cada um deles. A menina dos olhos de ouro tem

linguagem altamente metafórica e irônica, que induz o leitor a compreender as

críticas severas à sociedade parisiense e seus valores morais. Enquanto que em

Paris é uma festa a linguagem empregada é simples e objetiva, porém não

menos emblemática, pois Hemingway faz o leitor perceber a magnitude da

capital francesa durante os anos 1920, tanto quanto Balzac o leva à reflexão

sobre essa mesma grandeza no século anterior.

Dessa forma, pode-se afirmar que a principal oposição entre os

enunciados é ideológica. Nas palavras de Bakhtin (Volochínov)

Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre ela, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas ao mesmo tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; alimentam-se de sua seiva, pois, fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a obra literária acabada ou a ideia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica viva. Ora, essa avaliação crítica, que é a única razão de ser de toda produção ideológica, opera-se na língua da ideologia do cotidiano. Esta coloca a obra numa situação social determinada. A obra estabelece assim vínculo com o conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea. A obra é interpretada no espírito desse conteúdo da consciência (dos indivíduos receptores) e recebe dela uma nova luz. É nisso que reside a vida da obra ideológica (2014, p. 123).

A intenção comunicativa dos dois enunciados é distinta, porém há no texto

de Hemingway fortes indícios da realidade apresentada por Balzac. Na seção II

deste capítulo mostrou-se a degradação enaltecida de Paris e na seção III a

pobreza parisiense presente no romance autobiográfico: o narrador-protagonista

indica as falhas morais e éticas de alguns tipos parisienses já antecipadas por

Balzac e passa por dificuldades financeiras já alertadas por ele.

Assim, A menina dos olhos de ouro antecipa questões importantes e

determinantes para a vivência de Hemingway na cidade, comprovando que

mesmo no século seguinte os aspectos criticados por Balzac ainda são

relevantes para aquela sociedade. Além disso, a antecipação ideológica – como

já foi comentado – envolve a problemática dos relacionamentos homossexuais,

126

discutida por Balzac do ponto de vista passional, polemizada por Hemingway ao

confessar o preconceito que tinha a esse respeito e debatida até os dias de hoje.

Todos esses aspectos por um lado destacam a atemporalidade das

críticas balzaquianas, mas, por outro lado, também favorecem as mudanças

axiológicas produzidas por Hemingway.

Nas palavras de Bakhtin:

As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais. A única que pode diferençar-se é a relação de reciprocidade entre essas duas vozes. A transmissão da afirmação do outro em forma de pergunta já leva a um atrito entre duas interpretações em uma só palavra, tendo em vista que não apenas perguntamos como problematizamos a afirmação do outro (BAKHTIN, 2010, p. 223).

Se o diálogo, para Bakhtin, é entendido como um espaço de luta de vozes,

onde são manifestados os embates de ideologias, então, é a partir da oposição

de valores axiológicos entre a visão balzaquiana e de Hemingway sobre Paris

que a cidade transcende aos seus significados mais imediatos: ela deixa de ser

uma cidade europeia e a capital francesa, para se tornar a cidade das inúmeras

possibilidades.

Essa transcendência é fruto principalmente da diferença de foco narrativo

entre as obras. O narrador observador de A menina dos olhos de ouro é

estrategicamente empregado para ser apto à crítica feita ao padrão moral dos

parisienses e às atitudes dos personagens da novela. O uso da terceira pessoa

cria um falso distanciamento entre os acontecimentos e a voz do enunciador,

instigando o leitor a observar as cenas com a mesma postura do narrador, ou

seja, com uma antipatia preestabelecida. O leitor cria hostilidade a respeito do

enredo da novela antes mesmo do seu real início, pois as informações contidas

no prólogo da obra (analisado no capítulo anterior) são determinantes para a

desconfiança que ele terá sobre o desenrolar do conflito central.

Já em Paris é uma festa, o uso do narrador-personagem favorece a

simpatia do leitor. Como o protagonista narra suas próprias experiências na

cidade, rememorando com extremo afeto cada momento vivido ao lado de sua

primeira esposa e dos seus amigos, estabelece-se uma atmosfera mais otimista

sobre os acontecimentos relatados. O pacto autobiográfico e o tom saudosista

127

da narrativa – já comentados anteriormente –, sendo assim, influenciam não só

na veracidade dos fatos e na modulação do que é dito, respectivamente, mas

também juntos fazem com que o leitor tenha segurança no deleite da narrativa.

Em outras palavras, a entonação densa e intensa da novela se contrapõe com a

leveza e a amenidade do romance autobiográfico.

A influência da entonação na manifestação ideológica é explicada por

Bakhtin:

No discurso literário é imenso o valor da polêmica velada. Há propriamente em cada estilo um elemento de polêmica interna, residindo a diferença apenas no seu grau e no seu caráter. Todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crítico, cujas objeções antecipadas, apreciações e pontos de vista ele reflete. Além disso, o discurso literário sente ao seu lado outro discurso literário, outro estilo (BAKHTIN, 2010, p. 225).

Ao ler A menina dos olhos de ouro, a postura do leitor é de desconforto e

de alerta, harmonizando com a crítica convicta feita à degradação moral e

material de Paris, mas que está em oposição à atitude distraída e

descomprometida que combina com a leitura de Paris é uma festa. Há, portanto,

na comparação dialógica dos dois discursos, a partir das ideologias

manifestadas, a glorificação de Paris e o seu rebaixamento.

A polêmica velada salienta que o diálogo entre a novela e o romance não

está apenas em seus enredos ou nas suas materialidades linguísticas, mas,

principalmente, naquilo que envolve as interpretações mais amplas dos

discursos concretizados nos textos, como os efeitos provocados no leitor no

momento da leitura de cada enunciado. “Assim, as relações dialógicas são

extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo

do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto” (BAKHTIN,

2010, p. 209).

Esse embate ideológico (linguístico e extralinguístico, por meio de

polêmicas veladas e abertas) materializa em obras distintas e em séculos

diferentes aquilo que os dois autores expressam em seus discursos de maneira

não tão evidente: Paris é uma cidade dupla. Misto de corrupção moral e pobreza

com oportunidade e festividade, Paris afasta-se do epíteto da capital francesa

para se tornar a cidade onde tudo é possível, transcendendo-se, assim não só

128

nas metáforas de Balzac, mas também nas palavras simples de Hemingway, em

um mito.

X. Mito de Paris

Joseph Campbell ao definir mito afirma que ele “não é o mesmo que

história. Os mitos não são histórias inspiradoras sobre pessoas que viveram uma

vida notável. Não, o mito é o transcendente na relação com o presente” (2008,

p. 18).

A transcendência, dessa forma, é determinante para a classificação de

um mito. Por designar algo que ultrapassa os limites normais ou excede a

natureza física das coisas, o termo transcendente se aplica às narrativas míticas

por elas serem eternas e representarem um fato ou personagem que por meio

da sua perpetuação ao longo do tempo e do espaço passa a habitar o imaginário

coletivo.

Para explicar a transcendência do mito, Campbell diz:

O que o mito faz para você é apontar o transcendente além do terreno do fenômeno. Uma figura mítica é como o compasso que usávamos na escola para desenhar círculos e arcos, com uma ponta na esfera do tempo e a outra na eternidade. A imagem de um deus pode assumir uma forma humana ou animal, mas a sua referência transcende a isso. Mas, ao traduzir a ponta do compasso que se mexe, metafórica, para uma referência concreta – um fato –, o que se obtém é apenas uma alegoria, não um mito. Enquanto um mito aponta para algo indescritível que está além de si mesmo, uma alegoria é apenas uma história ou imagem que ensina uma lição prática (CAMPBELL, 2008, p. 19).

É possível situar Paris nas duas esferas comentadas pelo teórico: Paris

mito e Paris alegoria, contudo, elas são incompatíveis. A alegoria de Paris pode

ser encontrada em inúmeras obras individuais quando a cidade não significa

outra coisa a não ser uma metrópole. Ou seja, quando Paris é apenas o exemplo

de uma cidade grande, bem desenvolvida, com todos os problemas e questões

rotineiras de qualquer outra megalópole do globo ela é somente uma alegoria,

ou um espaço onde ações acontecem.

129

Entretanto, no momento em que Paris é vista como um lugar singular, pois

somente lá é possível encontrar o misto de degradação moral e reconstrução

das esperanças perdidas, ela se transfigura em mito, deixando de ser vista como

um exemplo e passando a ser exclusiva.

O que torna Paris um mito é o seu desprendimento de uma narrativa. A

Paris mitológica, ao contrário da alegórica, não precisa de uma história para se

constituir, ela extrapola a alusão a uma narrativa determinada e se fixa no

imaginário coletivo, sendo um arquétipo.

Carl Jung correlaciona o conceito de inconsciente coletivo com o conceito

de arquétipo quando explica que

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal. [...] os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. [...] o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos. O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as “motivos” ou “temas” (2000, p. 53).

Apesar de os mitos não serem necessariamente histórias, como

Campbell afirma na primeira definição aqui apresentada, eles fazem uso do

discurso para a manutenção e a perpetuação das figuras mitológicas no

imaginário coletivo.

Vistas como sinônimos de peripécias ou de aventuras, as histórias

precisam de personagens e conflitos para serem coerentemente elaboradas, o

que não implica obrigatoriamente na reprodução de uma narrativa mítica. No

entanto, os mitos existem independentemente de histórias – já que podem ser

reproduzidos por meio de rituais, por meio de costumes ou por meio de padrões

a serem seguidos – muitas vezes são manifestados em enunciados para serem

agregados a uma realidade formada ideologicamente.

Como o mito é um modelo a ser seguido, atualizado e reproduzido

constantemente, o discurso favorece a sua eternidade, uma vez que por meio de

palavras o homem se desloca no tempo e no espaço, revisitando épocas remotas

130

e longínquas onde os mitos foram construídos – mesmo se tratando de mitos

cosmogónicos. Por meio do discurso, então, é mais fácil para o homem entrar

em contato com a sacralidade mítica atemporal.

Nesse sentido, Paris é uma festa reproduz no inconsciente do leitor o mito

da cidade prometida, aquela onde todos os problemas serão solucionados e as

dificuldades superadas. Como outras cidades – a exemplo de ítaca para Ulisses,

de Canaã para os Hebreus – Paris é a terra prometida à Geração Perdida para

o reestabelecimento da criação artística.

Essa atualização do mito da cidade prometida só é aplicável, pois além

de ter acesso a todas as outras narrativas míticas elaboradas com essa temática,

Hemingway também teve contato com a imagem já consolidada por Balzac de

Paris no imaginário coletivo, como a cidade das possibilidades.

Evidentemente, Balzac não é o único autor responsável por essa

consolidação de Paris no inconsciente coletivo, mas, pela magnitude de seus

textos e pela relevância de sua obra para a literatura universal, ele é um dos

autores mais significativos a colaborar para percepção da transcendência de

Paris.

Se em A menina dos olhos de ouro há a reafirmação do arquétipo da

cidade – já apresentado em outras narrativas anteriores ao século XIX –

acrescentado a ele a característica específica de Paris – a cidade das

possibilidades –, em Paris é uma festa esse arquétipo é retomado e reatualizado

sob a forma do mito da terra prometida.

Apesar dos arrivistas balzaquianos buscarem por Paris por conta da

promessa de ascensão social atribuída a ela, eles não a veem como um destino

anunciado como está nas entrelinhas do discurso de Hemingway. Ao falar de

Paris como “nossa” (na página 234 da tradução de Ênio Silveira) e ao relatar os

acontecimentos em primeira pessoa, o narrador-protagonista demonstra a posse

que detém da cidade.

A possessão de Paris, todavia, é temporária, pois como o narrador

esclarece no trecho final do romance, aquela cidade que acolheu uma geração

inteira de poetas com suas ilusões perdidas durante a guerra e ofereceu a eles

todas as possibilidades para a reconstrução de seus ideais artísticos, só refugia

os jovens. Quando a idade avança e as condições de vida são alteradas, Paris

já não é mais o mesmo lugar que seduz e encanta seus visitantes.

131

Barthes comenta que

[...] A semiologia nos ensinou que a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma eventualidade em eternidade. Ora, este processo é o próprio processo da ideologia burguesa. Se a nossa sociedade é objetivamente o campo privilegiado das significações míticas, é porque o mito é formalmente o instrumento mais apropriado para a inversão ideológica que a define. [...] O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural desse real (2009, p. 234).

A eventualidade eternizada por Hemingway faz com que aqueles dias

historicamente vividos por ele em Paris nos anos 1920 se torne uma busca

utópica dos jovens de gerações posteriores a dele e, como um produto cultural

(mítico ou não), o discurso do romance é ideológico e transmite para seu leitor

padrões de vida e costumes historicamente datados, ambos perdidos no tempo

quando a narrativa se transfigura em mito.

Sendo assim, o mito de Paris se renova no século XX com a narrativa de

Hemingway, pois além do arquétipo da cidade das possibilidades, ela se

transfigura na cidade prenunciada para os jovens que sonham e almejam

concretizar suas ambições (artísticas ou não). Se a Paris de Balzac é distópica

e mesmo assim se prende ao imaginário coletivo como o lugar das inúmeras

possibilidades, em Hemingway a utopia da terra destinada a toda juventude,

transcende Paris na cidade mítica que receberá inúmeros peregrinos no século

XXI.

XI. Utopia

Para Lewis Mumford

Na sua utilização comum, a palavra “utopia” designa ou a completa loucura ou a esperança humana absoluta – sonhos vãos de perfeição numa Terra do Nunca ou esforços racionais para remodelar o meio humano, as suas instituições – ou até a sua própria natureza falível –, de maneira a enriquecer a vida da comunidade. Ao cunhar esta palavra Sir Thomas More estava ciente destas conotações (2007, p. 09).

132

Tida como uma eterna busca pela perfeição, a utopia está tradicionalmente

relacionada com espaços deslumbrantes e imaginários. Podendo significar em

grego eutopia – o bom lugar – ou outopia – o não-lugar – (idem) elas agem como

uma fuga da realidade, criando modelos inatingíveis que fazem o homem almejar

sociedades e lugares idealizados.

Em Paris é uma festa a utopia é apresentada seguindo os dois

significados gregos. Primeiramente como eutopia, Paris é o único lugar onde

após uma guerra a cultura, a paz, a liberdade e a democracia são praticadas,

pois o encontro dos jovens com seus amigos e mentores, favorece o

esquecimento da guerra e restabelecem a rotina da cidade perfeita e

maravilhosa. Apresentada com defeitos mínimos e superáveis, Paris é

concretamente o bom lugar encontrado pelos artistas para se manifestarem e

socializarem depois do período conturbado do qual foram testemunhas.

Em sua segunda concepção, Paris como outopia é uma lenda da mesma

forma que a Terra do Nunca. Buscada não mais pelo protagonista do romance

que a descreve, ofuscando a imaginação dos leitores com detalhes

inacreditáveis que não pertencem a realidade, a Paris de 1920 é abstrata e

teoricamente impossível de ser encontrada, apesar de desejada por todos

aqueles que tem contato com a obra.

Pelo seu significado duplo, Paris é ao mesmo tempo uma referência de

lugar onde é possível escapar dos males sociais, mas, como não se trata da

cidade que cresceu efetivamente ao redor do rio Sena, ela é um devaneio, ou,

na denominação de Foucault, uma heterotopia.

Nas palavras do autor:

Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade – que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles refletem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias (1986, p. 03).

133

Para aqueles que vivem em países subdesenvolvidos e em

desenvolvimento, há variadas opções de cidades classificadas como de primeiro

mundo que exercem o papel de heterotopia. Entre essas metrópoles, Paris – por

estar presente no imaginário coletivo e funcionar como uma busca escapista há

vários séculos – talvez seja a mais recorrente delas.

O papel de Paris é uma festa na manutenção dessa heterotopia é de

apresentar para o leitor uma cidade onde, mesmo sob todas as adversidades

possíveis, o protagonista alcançou a felicidade e no processo de contar as suas

memórias transmite a ideia de que seja impossível ser infeliz em Paris.

Sendo a felicidade uma das grandes buscas utópicas da humanidade,

Paris é quase como a Pasárgada de Manuel Bandeira: um contraponto do real,

uma cidade imaginária onde tudo é propício ao júbilo, uma ilusão escapista que

torna a realidade mais tolerável, uma vez que sempre será possível abandonar

a vida que se leva e ir ao encontro de refúgio utópico. Entretanto, ao contrário de

Pasárgada, Paris, por ser heterotópica e mítica, se torna um oásis concreto e

fácil de ser encontrado.

Mumford comenta que

[...] quando o mundo real se torna demasiado pesado e sombrio, temos forçosamente de nos refugiar, se quisermos manter o nosso equilíbrio, num outro mundo que responda de forma mais perfeita aos nossos interesses e desejos mais profundos – o mundo da literatura (2007, p. 27).

O que Hemingway faz pelo leitor é oferecer a ele, simultaneamente, uma

heterotopia – por se tratar de uma cidade localizada no globo – e uma utopia –

já que a Paris esplendida não é a contemporânea, mas aquela que existiu

apenas em 1920, na juventude do narrador-protagonista.

134

(Hemingway)

Figura 31: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em: https://www.jfklibrary.org/Asset-

Viewer/ArJmIqbxakKDKkmkEBdRyQ.aspx. Acesso em 6 nov 2017.

É esse processo de encontro com Paris utópica que será tema do filme

de Woody Allen, Meia-noite em Paris, corpus de análise do próximo capítulo

desta tese e fundamental para a consolidação da cidade no imaginário coletivo

e, portanto, na defesa da hipótese aqui levantada: Paris é um mito moderno.

135

Capítulo 3: Paris: multitemporalidade

Paris responde a tudo que um coração deseja.

Frederic Chopin.

Em 27 de janeiro de 1922, Hemingway escreveu a Katharine Foster Smith:

Não há vida nos Estados Unidos. [...] Qual o propósito de tentar viver num lugar maldito como a América quando existe Paris e Suíça e Itália. Meu Deus, a diversão que se tem aqui! Quando as pessoas mentirem para você e disserem que a América é linda ou tão divertida quanto aqui, responda com uma gargalhada. Aqui é tão lindo que chega a doer de um jeito que paralisa o tempo todo, e quando você está com alguém que você ama a beleza se torna uma espécie de felicidade tremenda. É tão lindo, Butstein, e a gente se diverte tanto (HEMINGWAY, 2015, p. 284).

Os contrastes entre América e Europa, mais precisamente entre Estados

Unidos e Paris, salientados por Hemingway são os mesmos apresentados por

Gil Pender, personagem protagonista de Meia-noite em Paris, longa escrito e

dirigido por Woody Allen.

Assim como o romancista, Gil – vivido por Owen Wilson – é um homem

apaixonado pela capital francesa que vê em suas ruas e avenidas muito mais do

que apenas uma cidade para onde viaja com sua noiva e seus sogros para

passar férias. Buscando inspiração para escrever seu primeiro livro, Gil tem os

mesmos objetivos dos poetas da Geração Perdida e pretende deixar a profissão

de roteirista em Hollywood para se dedicar exclusivamente ao ofício de escritor.

As semelhanças entre os relatos de Ernest Hemingway e o roteiro do

longa não são fruto de coincidência. Claramente inspirado pela paixão do escritor

e pelos momentos vividos por ele em Paris nos anos 1920, Woody Allen adaptou

Paris é uma festa para o cinema de modo singular.

No presente capítulo pretende-se investigar os recursos usados pelo

diretor para produção de sentido na obra – como sua linguagem própria. Além

da interpretação dos elementos presentes no filme, buscar-se-á analisar os

paratextos produzidos para divulgação da obra, na primeira seção deste

capítulo.

136

I. Paratextos

Gerard Genette definiu paratexto como

Título, subtítulo, intertítulo, prefácio, posfácio, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafe; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende (2006, p.9).

Entendido como um discurso secundário relacionado a um texto principal

ou como toda produção que o acompanha, a leitura atenta de elementos

paratextuais é essencial para orientar a compreensão de uma obra ou, ainda,

antecipar aspectos que direcionam a leitura, como, por exemplo, o gênero ao

qual a obra pertence.

Na ocasião da divulgação de Meia-noite em Paris na Europa e nos

Estados Unidos, foi elaborado um cartaz, em que Gil Pender aparece

centralizado, observando a paisagem parisiense.

(Cartaz europeu)

Figura 32: [Sem autor]. [Sem título]. Cartaz. Disponível em: http://www.lpm-

blog.com.br/?tag=meia-noite-em-paris. Acesso em: 28 jan 2018.

No banner é possível observar elementos que de forma direta ou indireta

fazem referências àquilo que o público será apresentado ao longo do desenrolar

137

do enredo. O fato de o personagem caminhar às margens do Sena é muito

recorrente no filme e evoca a imagem do flâneur, tão característica de Paris

como já indicavam Balzac e Hemingway. Entretanto, é na alusão à tela Noite

Estrelada (1889) de Vincent van Gogh que se encontra o maior prenúncio das

surpresas vividas pelo personagem e testemunhadas pelo espectador durante a

história.

Apesar de o filme não ter Vincent van Gogh como um dos seus

personagens, a tela do artista pós-impressionista antecipa magistralmente os

aspectos insólitos presentes na narrativa, sem, no entanto, causar qualquer

prejuízo para o leitor. A tela manifesta o devaneio do artista diante da imagem

do vilarejo à noite, visão que tinha do quarto do hospício onde estava internado,

e Meia-noite em Paris também aborda a temática do onírico.

Os devaneios do artista estão marcados em sua tela por meio da

coloração escolhida e dos movimentos empregados ao elaborar a obra. As cores

primárias (azul e amarelo) escolhidas por van Gogh e os movimentos circulares

atribuídos ao céu e aos astros, marcam a falta de nitidez da cena retratada,

provocada pela interferência do inconsciente do artista no momento de criação

da obra.

Figura 33: Vincent van Gogh. Noite Estrelada. 1889. Óleo sobre tela, 74 cm x 92 cm. São

Francisco, Museu de Arte Moderna. Disponível em:

https://www.google.com/culturalinstitute/beta/asset/the-starry-night/bgEuwDxel93-Pg?hl=pt-BR.

Acesso em: 28 jan 2018.

138

Segundo Cristina Azra Barrenechea

Van Gogh teve o propósito de distorcer a natureza, para comunicar um estado subjetivo, e isso foi muito, muito original naquele ponto da história da arte. Ele criou uma semiose para comunicar uma coisa diversa daquilo que estava pintando, ou seja, para comunicar uma realidade interior, além da realidade exterior que era o tema da composição. [...] (2016, p.339).

Da mesma maneira que o pintor fez uma semiose ao tentar traduzir em

sua tela não só o vilarejo idealizado, mas também sua condição interior ao

imaginar tal cenário, o cartaz do filme elabora um processo análogo de

significação, pois apresenta tanto Paris – espaço onde as ações do enredo

acontecerão – como a visão utópica que Gil tem da cidade. A partir da

sobreposição de uma cena retirada do longa e de um fragmento de Noite

Estrelada, o cartaz anuncia os sonhos e devaneios do personagem sobre Paris.

Gil é um homem sonhador e romântico que busca percorrer nas ruas da

capital francesa os mesmos caminhos trilhados por grandes escritores norte-

americanos, que considera seus ídolos. Em seus inúmeros devaneios, ele

imagina como a cidade era no início dos anos 1920 e deseja encontrar

reminiscências daquele tempo que o façam vivenciar um pouco a história

parisiense, tão admirada por ele.

A projeção de Noite Estrelada atrás do personagem no cartaz corrobora

para a caracterização de Gil, pois o seu encantamento produz uma Paris insólita.

A composição em que o cartaz foi elaborado transmite a impressão de que algo

extraordinário se aproxima do protagonista ao mesmo tempo que o seu devaneio

é o responsável pelas mudanças que acometem a cidade e a transformam em

um local fantástico.

As cores usadas por van Gogh são as mesmas escolhidas pelos

designers do cartaz. O azul é a “cor do infinito, do longínquo, do sonho” e causa

a sensação de “infinito espacial, expandindo planos e superfícies, sensação de

estar num mundo de sonho, criado de acordo com os nossos desejos, perfeito”

(PASTOREAU, apud SILVEIRA, 2011, p. 134).

A sensação de perfeição acompanha o personagem durante boa parte do

enredo. Gil se sente à vontade em Paris, ele aceita o clima chuvoso da cidade,

passeia por suas ruas e conversa com os nativos sempre com muito entusiasmo,

139

porque acredita estar na cidade mais bonita do mundo e a única capaz de

corresponder às suas expectativas. Por ser a cor do infinito, o azul reitera a

divagação do personagem. Por conta desse arranjo das cores, a impressão que

se tem é a de que Noite Estrelada é projetada na foto por meio da imaginação

do personagem e, assim, ele faz parte do quadro.

Já o amarelo, cor insistentemente utilizada por Balzac e Hemingway para

descrever a capital francesa, no cartaz recebe conotação distinta daquela

empregada pelos romancistas. Se ao longo das narrativas, Balzac e Hemingway

apontam para a degradação social da Paris por meio do tom amarelado da

cidade e da sua população, no banner, porém, a mesma coloração passa a

significar “luz e calor, cor da prosperidade e da riqueza, cor da alegria, da

energia” dando a sensação de “estímulo à busca do poder, da riqueza material”

(PASTOREAU, apud SILVEIRA, 2011, p. 134).

Apesar de não poder ser qualificado como um arrivista ganancioso, Gil

tem o desejo de se tornar escritor e no momento em que se vê diante de Gertrude

Stein, quando volta aos anos 1920, ele não perde a chance de fazer dessa

viagem uma oportunidade de aprendizagem com a grande crítica daquela época.

O amarelo, desse modo, representa a dedicação e empenho do protagonista do

filme em obter sucesso como romancista.

Já os nomes das duas obras se relacionam por fazerem referência à noite,

a qual é “a imagem do inconsciente” (CHEVALIER, 2009, p. 640), mais uma vez

associando as obras com a manifestação dos desejos revelados no plano das

ideias. Além disso, apesar de o cartaz não ser escuro como a noite, a ideia do

noturno está evidente, tornando o título do filme e a ilustração complementares.

A noite é caracterizada na tela, além da presença dos astros, como

salienta Barrenechea, por meio da textura que:

na obra de van Gogh desempenha um papel central para o envolvimento do espectador com a narrativa visual, com base no apelo para a memória sensorial do espectador, de sua experiência direta com o mundo, no uso conjugado com outros recursos semiótico tais como a cor, o ritmo, o movimento, o gesto pictórico, as associações metafóricas, por exemplo, van Gogh conseguiu produzir um poder sinestésico para a textura que confere novas possibilidades de sentidos construídos pela dissolução entre o visual e o táctil (2016, p. 290).

140

Logo, é porque a noite retratada no quadro foi apresentada de maneira

conotativa, que o leitor do cartaz é instruído a compreender que a Paris noturna

abordada no filme será tão fantástica quanto o vilarejo retratado na tela. Em

outras palavras, o leitor é levado a compreender as metáforas relativas ao

noturno por meio da simbiose entre os fragmentos da tela e do filme. A parte de

Noite Estrelada transposta para o cartaz é o céu, exatamente para salientar que

o contraste entre as experiências reais e os momentos fantásticos vivenciados

por Gil acontecem à noite.

O cartaz cinematográfico é construído, como salienta Quintana (1995),

de três partes principais: título, ilustração e créditos e, cada uma delas,

desempenha papel fundamental na caracterização do cartaz como subproduto

do filme, pois enquanto o título apresenta o conteúdo, a ilustração revela a

essência do enredo e os créditos são usados como indicador da credibilidade.

Desse ponto de vista, a transposição de Noite Estrelada para o cartaz de

Meia-noite em Paris, transmite ao leitor a ideia exata do conteúdo do filme, fato

que não se repete no cartaz brasileiro elaborado para a divulgação do longa no

país.

(Cartaz brasileiro)

Figura 34: [Sem autor]. [Sem título]. Cartaz. Disponível em: http://www.cinemista.com.br/meia-

noite-em-paris-critica/. Acesso em 02 fev 2018.

O cartaz de Meia-noite em Paris divulgado no Brasil apresenta suas três

partes constitutivas, como não poderia deixar de ser. Há a ilustração, retirada de

uma das cenas iniciais do longa-metragem: o casal formado pelo protagonista

141

Gil Pender (Owen Wilson) e, por aquela que ao longo do enredo se revelará sua

grande antagonista, sua noiva, Inez (Rachel McAdams) que está em pose

sugestiva de romance, diante do lago tão característico do Jardim de Monet. O

título da obra aparece centralizado, em letras grandes, mediando os créditos dos

atores e diretor. Há ainda, no canto esquerdo, os dizeres “Tudo pode acontecer

na Cidade Luz” e, no canto direito, a indicação de que o filme abriu o festival de

Cannes daquele ano.

A grande problemática envolvendo o cartaz brasileiro é que nele o

destaque é dado para o romance entre os dois personagens (principalmente pela

fotografia, que ao destacar em primeiro plano o perfil dos personagens, induz o

namoro entre eles), quando, na realidade, o filme não aborda o relacionamento

amoroso com tanta ênfase e destaque. O envolvimento de Gil e Inez é apenas a

contextualização da situação inicial do enredo e ao longo da narrativa vai

perdendo a relevância, até se tornar um conflito secundário e sem importância.

A expectativa criada no observador do cartaz é de que o filme é do gênero

romance, mas ele é classificado primeiramente como comédia.

No cartaz brasileiro não há, portanto, nenhum aspecto que funcione como

um prenúncio do conteúdo apresentado na narrativa. Contrariamente a função

exercida pelo cartaz estrangeiro, aquele produzido no Brasil cria uma falsa

expectativa no leitor, que passa a assistir ao longo esperando ser um romance

e é surpreendido pelos aspectos fantásticos e cômicos do enredo e,

consequentemente, pode ser decepcionado.

Além disso, o cartaz brasileiro apresenta uma inadequação ortográfica

que altera o título da obra. Em inglês, Woody Allen denominou seu filme como

Midnight in Paris, se referindo especificamente à hora exata em que a viagem no

tempo de Gil acontece, ou seja, à zero hora (ou às vinte e quatro horas). “Meia

noite” grafada sem hífen não corresponde ao sentido proposto em Língua

Inglesa, mas passa a significar literalmente “a metade da noite”, expressão que

se refere a um período noturno.

Tal período noturno, contudo não é mencionado nem no filme, nem no

cartaz. Durante o desenrolar do enredo, o espectador não é informado de quanto

tempo as viagens para o século XX duram e, da mesma forma, o cartaz brasileiro

não tem nenhum elemento que simbolize a noite, indicada no título.

142

Sendo assim, é possível afirmar que o filme tem dois paratextos, porém

apenas um – o cartaz estrangeiro – desempenha satisfatoriamente a função de

cartaz publicitário e efetivamente atrai o interesse do público para a temática da

obra.

Felizmente a má elaboração do banner brasileiro não interferiu no

sucesso do longa que, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, teve a maior

bilheteria da carreira do diretor. O tema do filme é um dos grandes responsáveis

pelo seu sucesso de público, ademais, a caracterização das inúmeras

personalidades incorporadas na história como personagens coadjuvantes

colabora muito para o triunfo da obra cinematográfica.

II. Os personagens e a trilha sonora

O primeiro personagem a chamar atenção do espectador é Gil Pender,

que não só é o protagonista do longa-metragem, como também é alter ego de

Woody Allen. A semelhança física entre Owen Wilson e o diretor pode ser

questionável, visto que o ator é, entre outros aspectos, mais alto e mais loiro do

que Allen. Entretanto, é impossível para um admirador e conhecedor da obra de

Woody Allen não reconhecer em Gil os seus trejeitos e modos de falar e

caminhar.

(Gil e Allen)

Figura 35. Joel Ryan. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://blog.syracuse.com/entertainment/2012/10/william_faulkner_estate_sues_midnight_in_pari

s.html. Acesso em: 02 fev 2018.

143

A caracterização do protagonista é tanto física como psicológica. Se por

um lado as roupas usadas por Gil e as suas expressões faciais e corporais são

semelhantes àquelas manifestações feitas por Allen em outros filmes de sua

carreira nos quais atuou, por outro lado algumas falas do personagem de Owen

Wilson são facilmente identificadas como parte do vocabulário do diretor.

Em diálogo com um dos personagens coadjuvantes, Paul, amigo de sua

noiva e seu desafeto, Gil ironiza a arrogância demonstrada por ele ao discutir

com uma guia turística a respeito da biografia de Rodin:

Gil: Actually, she's right. I recently read a two-volume biography of Rodin. Rose was the wife; Camille, the mistres. Paul: Did you read it? Where did you read that? Gil: Yes, I was surprised. I thought, erroneously like you, that it was the other way around. A common mistake. [...] Inez: When did you read biography of Rodin? Gil: Me? Why would I read a biography of Rodin? (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 2).69

O tom usado pelo personagem caracteriza muito bem o senso de humor

de Allen transposto para Gil. Para Paulo Emílio Sales Gomes há diferença

significativa entre as construções de personagens de romance e as

cinematográficas que influenciam na interpretação das obras pelo público.

Segundo ele, o cinema nega ao espectador o direito à livre imaginação sobre a

aparência das personagens, pois elas são construídas a partir da junção da sua

caracterização elaborada pelo roteirista e pelo diretor e da interpretação do ator.

Nas palavras do autor:

[...] A personagem de romance afinal é feita exclusivamente de palavras escritas, e já vimos que mesmo nos casos minoritários

69 Gil: Na verdade, ela está certa. Eu li recentemente uma biografia em dois volumes de Rodin.

Rose era a esposa; Camille, a amante. Paul: Você leu? Onde? Gil: Sim, fiquei surpreso. Eu pensava, erroneamente como você, que era o contrário. Um engano comum. [...] Inez: Quando leu a biografia de Rodin? Gil: Eu? Por que eu leria uma biografia de Rodin? (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 2).

144

e extremos em que a palavra falada no cinema tem papel preponderante na constituição de uma personagem, a cristalização definitiva desta fica condicionada a um contexto visual. Nos filmes, por sua vez, e em regra generalíssima, as personagens são encarnadas em pessoas. Essa circunstância retira do cinema, arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o romance comunica suas personagens aos leitores. [...] Essa definição física completa imposta pelo cinema reduz a quase nada a liberdade do espectador nesse terreno (CANDIDO et al, 2011, p. 111).

O fato de o cinema apresentar as personagens de forma concreta

contribui em filmes com personalidades históricas – como é o caso de Meia-noite

em Paris – para a verossimilhança do relato. Quanto mais as caracterizações

dos personagens reais presentes na história forem próximas das imagens que o

espectador tem deles, maior a credibilidade atribuída pelo público ao enredo e,

consequentemente, maior a coerência estabelecida entre os fatos

cinematográficos e os fatos históricos.

Os primeiros personagens a garantirem a verossimilhança do filme são,

respectivamente Cole Porter e o casal Fitzgerald. Enquanto Zelda e Scott são

como anfitriões do protagonista no século XX, introduzindo-o nas festas e o

apresentando às personalidades que deseja conhecer, a presença do músico na

festa visitada por Gil no seu primeiro retorno ao passado, tem dupla função. Além

de colaborar para a compreensão de Gil – e do leitor – sobre a viagem que acaba

de fazer, Porter contribui para a ambientação do filme.

(Cole Porter)

Figura 36: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografias. Disponíveis em:

http://www.blog.365filmes.com.br/2015/06/Conheca-os-personagens-historicos-de-Meia-Noite-

em-Paris.html. Acesso em 04 fev 2018.

145

O jazz, gênero musical ao qual Cole Porter se dedicou, tem um papel

de reconhecimento da obra de Woody Allen, por ser constantemente adotado

por ele para a trilha sonora de seus filmes. No entanto, no caso de Meia-noite

em Paris, a música Let´s do it apresenta um significado maior.

Em 1928, Porter criou a canção para o musical Paris, que ficaria

conhecida como seu primeiro grande sucesso para a Broadway. No trecho citado

no filme, reproduzido abaixo, a canção – por meio da sinestesia – desloca o

espectador para os anos 1920, em Paris.

[…]

Let's do it, let's fall in love

In Spain, the best upper sets do it Lithuanians and Letts do it Let's do it, let's fall in love

The Dutch in old Amsterdam do it Not to mention the Finns Folks in Siam do it; think of Siamese twins

Some Argentines, without means, do it People say in Boston even beans do it Let's do it, let's fall in love

Romantic sponges, they say, do it Oysters down in oyster bay do it Let's do it, let's fall in love.

[…] (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 3).70

70 [...]

Vamos fazer isso, vamos nos apaixonar

Na Espanha, as classes altas fazem Lituanos e Letões fazem Vamos também, vamos nos apaixonar

Os holandeses na velha Amsterdam fazem Sem mencionar os finlandeses O povo de Sião faz, pensem nos gêmeos siameses

Alguns argentinos, sem a intenção, fazem O povo de Boston diz que até feijões fazem Vamos fazer isso, vamos nos apaixonar

Esponjas românticas, dizem, fazem Ostras lá em baixo na baía das ostras fazem Vamos fazer isso, vamos nos apaixonar.

[...] (Tradução nossa)

146

Mesmo tendo conotação romântica, indicando a naturalidade da paixão

entre os humanos e, até mesmo, entre os animais mais exóticos, e incentivando

a prática do relacionamento amoroso, a canção ambienta o espectador, pois

pode ser interpretada, na sua relação com o contexto do filme, como um

encorajamento para o amor a Paris, já que a cidade atrai a todos, sem exceção.

Segundo Robert Edgar-Hunt, a música exerce função fundamental no

cinema:

Há uma forma narrativa que existe no cinema além de mostrar e contar: a música. Essa faceta do cinema pode ter um efeito dramático sobre a personagem. A música pode ter um impacto nas nossas emoções e, assim, limitar que impacto emocional uma cena tem sobre nós; e isso é diferente em cada filme. [...]. Esse uso da música tem sido tratado por teóricos como um aspecto da narração. Porém, ele não pode contar uma história, e sim apenas ajudar na focalização em relação ao que está sendo mostrado e contado, por meio da mudança no tom (2013, p. 58).

A contribuição narrativa de Let’s do it, se repete com a segunda canção

de Cole Porter usada na sequência do longa, You've got that thing.

[...]

You've got that thing, you've got that thing That thing that makes birds forget to sing Yes, you've got that thing, that certain thing. You've got that charm, that subtle charm That makes young farmers desert the farm. […] (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 3).71

Na análise da segunda canção, há a mesma relação entre o romantismo

da sua letra com o sentido atribuído no filme à Paris. Enquanto em Let’s do it há

o incentivo à entrega, a atração e ao fascínio causados por Paris em Gil e no

71 [...]

Você tem essa coisa, você tem essa coisa Aquilo que deixa os pássaros esquecerem de cantar Sim, você tem essa coisa, essa determinada coisa. Você tem esse charme, esse encanto sutil Isso faz os jovens agricultores abandonarem a fazenda. [...] (Tradução nossa).

147

espectador, em You've got that thing o pronome “you” faz referência tanto à

mulher amada que seduz e encanta o eu lírico com sua personalidade única,

quanto à Paris que de igual maneira exerce um magnetismo no público, por meio

de sua singularidade.

Vale ressaltar que no último verso da música citado no filme o eu lírico diz

“That makes young farmers desert the farm” alusão irônica – compreendida

somente no contexto do longa e na análise desenvolvida nesta tese – tanto aos

americanos que deixaram seu país para viverem em Paris, quanto aos

interioranos franceses que buscaram pela capital para se tornarem bem-

sucedidos.

Uma terceira canção de Cole Porter ainda é usada como trilha sonora do

filme – You do something to me – e nela há a mesma correlação entre a mulher

amada e Paris e o arrebatamento causado por elas no eu lírico.

You do something to me Something that simply mystifies me Tell me, why should it be You have the power to hypnotize me. […] (Meia-noite em Paris, 2011, cap.3).72

O tom empregado quando as composições de Porter são colocadas em

cena é, contudo, diferente daquele acarretado pelas outras melodias que

compõem a trilha sonora do filme. Let’s do it, You've got that thing e You do

something to me são índices da fascinação de Gil pela cidade e pela década de

1920, enquanto as músicas instrumentais sinalizam ora o gênero do filme, ora o

estado de espírito de Gil.

A música de abertura do longa – Si tu vois ma mère – apresenta ao

público, juntamente com as imagens dos pontos turísticos da cidade, Paris.

Classificada como jazz, a música tem forte influência francesa, perceptível

sobretudo pelo constante uso de instrumentos de sopro. Composta por Sidney

72 Você faz algo comigo

Algo que simplesmente me intriga Me conte, por que deveria ser Você tem o poder de me hipnotizar. [...] (Tradução nossa).

148

Bechet, a peça de jazz sintetiza um fato histórico interessante que associa a

França com o estilo musical tipicamente americano.

O ritmo jazz foi criado em Nova Orleans (cidade mais populosa do estado

da Louisiana, fundada por exploradores franceses) e após a Primeira Guerra foi

exportado para o mundo inteiro. Além de ser imediatamente relacionado com as

primeiras décadas do século XX, o jazz contribui – ao longo de todo o enredo de

Meia-noite em Paris – para indicar de forma sutil o vínculo entre norte-

americanos e franceses exposto no filme. Si tu vois ma mère causa, ainda, uma

sensação de deleite no espectador do filme que é instantaneamente transposto

para a capital francesa quando ouve a melodia simultaneamente ao assistir às

cenas.

Esse deleitamento provoca a simpatia do público por Gil, o qual nas suas primeiras falas já traduz alguns dos possíveis pensamentos que acometem o espectador.

Gil: That's unbelievable. Look this! There is no city like this in the world. There never was. Inez: It looks like you've never been here before. Gil: I do not come here enough, that's the problem. Can you visualize how beautiful this city is in the rain? Imagine this city in the 1920s. Paris in the 1920s, in the rain. The artists and the writers! Inez: Why does every city need to be in the rain? What watering is special? Gil: Can you imagine us moving here after we got married? Inez: No way! I could never live outside the United States. Gil: If I had stayed here and written novels, and not been stuck to boring movie scripts… (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 1).73

O estado de espírito de Gil também é traduzido por meio da canção Bistro

fada – de Stephane Wrembel – que indica a desorientação do personagem

causada tanto pelo seu estado alcoólico, quanto pelo fato de ter se perdido pelas

ruas da cidade no decorrer de uma caminhada. Entretanto, ao ser usada pela

segunda vez, no momento em que Gil entra no carro que o leva aos anos 1920

73 Gil: Isso é inacreditável. Olhe só! Não há cidade igual no mundo. Nunca houve. Inez: Até parece que nunca esteve aqui antes. Gil: Não venho aqui o suficiente, esse é o problema. Consegue visualizar como essa cidade é linda na chuva? Imagine esta cidade nos anos 20. Paris nos anos 20, na chuva. Os artistas e os escritores! Inez: Por que toda cidade precisa estar sob chuva? O que molhar-se tem de especial? Gil: Pode nos imaginar nos mudando para cá após nos casarmos? Inez: Nem pensar! Eu jamais poderia morar fora dos EUA. Gil: Se eu tivesse ficado aqui e escrito romances, e não ficado preso a roteiros de cinema enfadonhos... (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 1).

149

– na continuação da cena da caminhada – o tom da canção passa a designar

também a comédia, a partir daquele momento, presente no enredo.

Mais adiante o cômico se intensifica. A música é tocada quando Gil sai do

café no qual conversava com Hemingway e ao tentar regressar para combinar

um ponto de encontro posterior com o romancista nota que o lugar se

transformou atualmente em uma lavanderia.

A partir dessa cena, a música passa a ser usada no filme quase como um

marcador regular (dando uma cadência) às voltas ao passado de Gil, porém a

entonação divertida de Bistro fada se acentua ainda mais quando um detetive

passa a segui-lo, pois ao final do longa, o espectador descobre que o

investigador desaparece, voltando cada vez mais atrás no tempo.

Uma segunda viagem no tempo acontece para Gil. Dessa vez,

acompanhado de Adriana (Marion Cotillard) – uma personagem criada por

Woody Allen –, Gil visita o início de 1890, em que a música sinalizada para a

mudança de século não é a mesma. Seul ce soir apresenta tom mais intimista,

assemelhando-se ao Tango, em alguns acordes.

Essa última canção auxilia na mudança do teor da narrativa. Quando

chega à Belle Époque, Gil passa a desenvolver uma profunda reflexão sobre sua

vida, seus hábitos e o modo como a volta aos anos 1920 o fez compreender a

importância de ele conviver com os desafios e as conquistas propiciados

exclusivamente pela sua contemporaneidade.

Nesse processo reflexivo, Adriana se torna uma personagem fundamental

para o enredo, principalmente porque demonstra ter sentimentos, desejos,

sonhos e perspectiva de vida semelhantes aos de Gil, sendo, desse modo, o

paralelo do protagonista nos anos 1920.

150

(Adriana e Gil)

Figura 37. [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em:

http://www.planocritico.com/critica-meia-noite-em-paris/. Acesso em: 10 fev 2018.

Em um diálogo entre os dois, é possível observar a correspondência de

personalidade:

Adriana: The past has always had a special charm for me. Gil: For me too. A special charm. I always say that I was born too late. Adriana: Moi aussie. For me, La Belle Époque in Paris would be perfect. Gil: Really? Better than now? Adriana: All the sensitivity. The light poles, the kiosks ... horses and carriages. And Maxim's (Meia-noite em Paris, 2011, cap.5).74

74 Adriana: O passado sempre teve um charme especial para mim.

Gil: Para mim também. Um charme especial. Eu sempre digo que nasci tarde demais.

Adriana: Eu também. Para mim, La Belle Époque em Paris seria perfeito.

Gil: Sério? Melhor do que agora?

Adriana: Toda a sensibilidade. Os postes de luz, os quiosques... cavalos e carruagens. E o

Maxim’s (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 5).

151

Adriana é a única que compreende Gil, porém mesmo tendo os mesmos

anseios ela é a responsável por fazer Gil ponderar sobre sua estada nos anos

1920 e sobre o desajuste que sente em relação a sua época. Em um outro

diálogo, os dois personagens dizem:

Gil: Because life is too mysterious. Adriana: It's the time we live in. Everything happens so fast and life is so noisy and complicated. Gil: Yes, but I've always been a rational person. I've never acted very crazy. I did not stay when I first came. I did not go to great lengths to be a writer. I thought, "I'll be an employee in Hollywood," and I feel like I want to leave it behind (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 10).75

É no paralelismo entre os sentimentos de Gil pelos anos 2000 e de

Adriana pelos anos 1920 que o protagonista percebe o despautério em querer

viver em uma época já superada, pois os atrativos oferecidos pelos tempos e

espaços inatingíveis deixam de existir quando se passa a conviver com eles. Gil

percebe por meio de sua amizade com Adriana que a insatisfação com o

presente é um sentimento humano universal, percepção que o leva a sua

epifania.

Adriana: Let's not go back to the 1920s. Gil: What are you talking about? Adriana: We should stay here. It's the beginning of Belle Époque. It's the biggest and most beautiful period Paris has ever known! Gil: What about the 1920s and Charleston, the Fitzgeralds and the Hemingways? I love these guys. Adriana: It's the present. It's boring. Gil: Boring? Well, it's not my gift. I'm from 2010. Adriana: What do you mean? Gil: I visited your time, just as we are now visiting the 1890s. Adriana: Did you visit?

75 Gil: Porque a vida é misteriosa demais.

Adriana: É a época em que vivemos. Tudo acontece tão rápido e a vida é tão ruidosa e complicada. Gil: Sim, mas eu sempre fui uma pessoa racional. Nunca agi de forma muito louca. Não fiquei quando vim a primeira vez. Não me esforcei muito para ser escritor. Eu pensei: “Eu serei um empregado em Hollywood”, e eu sinto que quero deixar isso para trás. (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 10)

152

Gil: I tried to run away from my present as you try to get away from your going to a Golden Age. Adriana: You certainly do not think the 1920s are a Golden Age. Gil: Yes, they are to me. Adriana: But I'm from the 1920s and I say that the Golden Age is the Belle Époque. Gil: Look at these guys. For them, their Golden Age was the Renaissance. They would trade the Belle Époque to paint with Titian and Michelangelo. And they thought they probably thought they would be better off with Kubla Khan. See? I had an insight. It's small, but it explains anxiety in the dream I had. [...] Adriana, if you stay here and this becomes your gift, soon you will begin to imagine that another era was really the Golden Age. The present is like this. A little unsatisfying because life is a little unsatisfactory (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 10).76

O insight de Gil, alcançado por meio da interação social, sintetiza o

comentário crítico desenvolvido por Woody Allen, nos mais de cem minutos do

filme, sobre a frivolidade das utopias. Tentar encontrar tempo ou espaço

perfeitos, na visão do diretor, é, portanto, de igual forma inevitável e tolo.

76Adriana: Não vamos voltar aos anos 1920.

Gil: Do que você está falando? Adriana: Devíamos ficar aqui. É o início da Belle Époque. É o maior e mais bonito período que Paris já conheceu! Gil: E quanto aos anos 20 e o Charleston, os Fitzgerald e os Hemingway? Eu adoro esses caras. Adriana: É o presente. É...chato. Gil: Chato? Bem, não é o meu presente. Sou de 2010. Adriana: Como assim? Gil: Visitei sua época, assim como agora estamos visitando os anos 1890. Adriana: Visitou? Gil: Eu tentava fugir do meu presente como você tenta fugir do seu indo para uma Idade de Ouro. Adriana: Certamente não pensa que os anos 20 são uma Idade de Ouro. Gil: Sim, para mim eles são. Adriana: Mas eu sou dos anos 1920 e digo que a Idade de Ouro é a Belle Époque. Gil: Olhe para esses caras. Para eles, sua Idade de Ouro foi a Renascença. Eles trocariam a Belle Époque para pintar com Ticiano e Michelangelo. E eles achavam provavelmente que estariam melhor com Kubla Khan. Está vendo? Tive um insight. É pequeno, mas explica ansiedade no sonho que tive. [...] Adriana, se você ficar aqui e este se tornar o seu presente, logo você começará a imaginar que outra época era realmente a Idade de Ouro. O presente é assim. Um pouco insatisfatório porque a vida é um pouco insatisfatória (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 10).

153

1. Hemingway de Woody Allen

A busca utópica apresentada em Meia-noite em Paris – analisada mais

adiante neste capítulo, na seção IV, – se baseia quase integralmente no relato

de Hemingway sobre a cidade em Paris é uma festa.

Apesar de sua importância intelectual para a construção do conteúdo do

roteiro, Ernest Hemingway é um personagem secundário e de pouca relevância

para o enredo do filme.

(Hemingway de Woody Allen)

Figura 38: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografias. Disponíveis em:

http://www.blog.365filmes.com.br/2015/06/Conheca-os-personagens-historicos-de-Meia-Noite-

em-Paris.html. Acesso em 18 fev 2018.

Interpretado por Corey Stoll, o escritor norte-americano é caracterizado

mais aproximadamente da imagem boemia e, até certo ponto, desequilibrada de

Hemingway consagrada no imaginário coletivo e mais distante,

consequentemente, daquela apresentada por ele mesmo em seu romance

autobiográfico.

Em sua primeira aparição no filme, Hemingway dialoga com Gil, após

serem apresentados por Scott Fitzgerald:

154

Gil: Hemingway?

Hemingway: You liked my book.

Gil: Did I like it? I loved ... all his work!

Hemingway: It was a good book because it was an honest book.

It's what war does with men. To die in the mud is nothing beautiful

and noble. Unless you die gracefully. So he is not only noble but

also brave.

[...]

Hemingway: Do you like Mark Twain?

Gil: I'm a big fan of Mark Twain. It even goes so far as to say that

modern American literature was born of "Huckleberry Finn."

Hemingway: Do you fight boxing?

Gil: No. No. I mean ... No, I do not.

Hemingway: What are you writing?

Gil: A novel.

Hemingway: About what?

Gil: It's about a man who works in a retro store.

Hemingway: What the hell is a retro store?

Gil: A place where they sell old things, souvenirs. Which is?

Sound too bad?

Hemingway: No theme is bad if the story is true. And if the prose

is clean and honest. What if she confirms courage and grace

under pressure.

Gil: Can I ask you for the greatest favor in the world? No, I can

not.

Hemingway: What is it?

Gil: Could you read it?

Hemingway: Your Novel?

Gil: Yes, it's 400 pages and I would just like to have an opinion.

Hemingway: My opinion is that I hate it.

Gil: You did not even read it.

Hemingway: I hate bad writing. And if it's good, I'll be jealous

and hate it more. I did not want another writer's opinion.

[...]

Writers are competitive.

Gil: It was not competing with you.

Hemingway: You're too modest. It's not very masculine. If you're

a writer, say you're the best writer! But it will not be while I live.

Or do you want to decide that on your arm? (Meia-noite em Paris,

2011, cap. 4).77

77 Gil: Hemingway?

Hemingway: Você gostou do meu livro.

Gil: Se gostei? Eu adorei... toda a sua obra! Hemingway: Era um bom livro porque era um livro honesto. É o que a guerra faz com os homens. Morrer na lama não tem nada de bonito e nobre. A menos que morra graciosamente. Então, não é apenas nobre, mas também corajoso.

155

O primeiro aspecto sobre Hemingway que deve ser observado é sua

caracterização física de aparência muito mais velha do que a do jovem que viveu

em Paris em 1920. O bigode espesso e a vestimenta são encontrados em

retratos do escritor em 1940, época em que já havia recebido notoriedade pela

publicação de Por quem os sinos dobram, livro ao qual o diálogo acima faz

referência.

Sylvia Beach, em Shakespeare and Company, comenta que conheceu

Hemingway quando ele foi até sua livraria.

Olhei para cima e vi um jovem alto e moreno, com um pequeno bigode, e ouvi-o apresentar-se (numa voz muito, muito profunda) como Ernest Hemingway. Convidei-o a se sentar e, deixando-o falar, soube que era natural de Chicago e que passara dois anos num hospital militar, recuperando o uso da perna. O que aconteceu à sua perna? Bom, ele contou encabulado – como um menino que confessa ter se envolvido numa briga –, fora ferido no joelho, lutando na Itália. [...] Os joelhos ostentavam os piores ferimentos, mas também o pé parecia ter sido muito machucado, pela explosão de uma granada, segundo ele. No hospital,

[...] Hemingway: Gosta de Mark Twain? Gil: Sou um grande fã de Mark Twain. Dá até para dizer que a literatura americana moderna nasceu de “Huckleberry Finn”. Hemingway: Você luta boxe? Gil: Não. Não. Quero dizer...Não, não luto. Hemingway: O que está escrevendo? Gil: Um romance. Hemingway: Sobre o quê? Gil: É sobre um homem que trabalha em uma loja retrô. Hemingway: O que diabos é uma loja retrô? Gil: Um lugar onde vendem coisas antigas, recordações. E o quê? Parece muito ruim? Hemingway: Nenhum tema é ruim se a história é verdadeira. E se a prosa é limpa e honesta. E se ela confirma a coragem e a graça sob pressão. Gil: Posso lhe pedir o maior favor do mundo? Não, não posso. Hemingway: O que é? Gil: Poderia lê-lo? Hemingway: seu romance? Gil: Sim, são 400 páginas e eu só gostaria de ter uma opinião. Hemingway: Minha opinião é que detesto. Gil: Você nem leu. Hemingway: Detesto textos ruins. E se for bom, terei inveja e detestarei mais. Não queria a opinião de outro escritor. [...] Escritores são competitivos. Gil: Não vou competir com você. Hemingway: Você é modesto demais. Não é muito masculino. Se você é escritor, diga que é o

melhor escritor! Mas não será enquanto eu viver. Ou quer decidir isso no braço? (Meia-noite em

Paris, 2011, cap. 4)

156

chegaram a considerá-lo perdido; tentaram até administrar-lhe os últimos sacramentos [...] (BEACH, 2004, p. 108).

A caracterização física de Hemingway feita por Sylvia aponta para uma

cicatriz muito marcante em seu corpo que evidenciava toda a reminiscência da

guerra em que ele fora atingido. A experiência na guerra e os anos de

reabilitação foram determinantes tanto na vida pessoal de Ernest quanto na

qualidade e na originalidade de seus escritos.

No entanto, a cicatriz como um aspecto físico se tornaria algo muito difícil

de ser apresentado no filme, pois se encontrava em um dos membros inferiores

do personagem. O que se observa, nesse caso, é a transferência dessa marca

do corpo para a personalidade de Hemingway.

Independentemente de a cicatriz evidenciar não só um trauma físico, mas

sobretudo psicológico, a personalidade de Hemingway é, de certa maneira,

caricatural no filme.

Em um dos diálogos com Gil, Hemingway diz:

Hemingway: Our mission was to take the hill. We were only in four. Five if you tell Vicente, but he lost a hand when a grenade exploded and he could no longer fight like I did when I met him. He was young and brave. The hill was drenched in rainy days and collapsed toward a road. And there were several German soldiers on this road and the idea was to undermine the first group and if our aim was right, we could delay them. Gil: Were you scared? Hemingway: From what? Gil: Of being killed. Hemingway: You'll never write well if you're afraid of dying (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 5).78

78 Hemingway: Nossa missão era tomar a colina. Estávamos apenas em quatro. Cinco se você

contar o Vicente, mas ele perdeu uma mão quando uma granada explodiu e já não conseguia lutar como quando eu o conheci. Ele era jovem e corajoso. A colina estava encharcada dos dias de chuva e desmoronou em direção a uma estrada. E havia vários soldados alemães nessa estrada e a ideia era minar o primeiro grupo e se a nossa mira estivesse certa, nós poderíamos atrasá-los. Gil: Você estava com medo? Hemingway: Do quê? Gil: De ser morto. Hemingway: Você nunca escreverá bem se tem medo de morrer (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 5).

157

A associação entre os sentimentos causados pela guerra – mesmo os

mais paradoxais como o medo e a coragem diante do perigo – e as habilidades

de um bom escritor não é aprofundada no decorrer do diálogo a ponto de

justificar a comparação feita pelo personagem nem a menção à guerra nessa

cena do filme.

Exposto apenas como um boêmio e solitário, o jovem Hemingway de

Allen foge da descrição biográfica feita por outros autores sobre o romancista e

da visão que ele tinha de si mesmo nos anos 1920. Sobre o caráter do escritor,

Sylvia Beach afirma que

Hemingway era um moço de vasta cultura, que conhecia diversos países e várias línguas – e havia aprendido tudo em primeira mão, não em universidade. A impressão que me dava era de que havia ido muito mais longe e mais rápido do que qualquer outro jovem escritor que eu conhecia. Apesar de um certo ar de menino, possuía uma excepcional sabedoria e autoconfiança (2004, p. 109).

Fascinado por boxe, o Hemingway do filme é um homem mais bruto,

mais ríspido e menos culto do que os registros mostram. Em outra cena do longa,

o diálogo entre ele e outros personagens enfatiza essas qualidades.

Hemingway: Is not this a Parisian dream? A big party. Write my words, I'll rob you of that fugitive from Malaga one way or another. Between Belmonte and I, who would you choose? Adriana: You are perfect. Hemingway: But he has more courage. He faces death often and head on. If you choose it, I will be disappointed, but I will understand. Belmonte: She elected Pablo. Hemingway: I know, she chose Picasso, but Pablo thinks women are only good for sex or to paint them. Adriana: And you? Hemingway: I think the woman is equal to the man in the courage. Have you ever shot a lion? Adriana: No, never. Hemingway: Would you like to know how it is? Adriana: I do not think so. Hemingway: Have you hunted? Adriana: No. Hemingway: What about you? Gil: Only promotions. [...]

158

Hemingway: Who wants to fight? (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).79

O trecho enfatiza ainda alguns outros aspectos da biografia de

Hemingway ignorados por Allen: o fato dele ser casado com Hadley na época e

já ser pai de Bumby. Vários outros traços biográficos não só de Hemingway como

também dos outros tantos personagens históricos presentes no filme são

suprimidos das suas cenas. No entanto, as presenças – mesmo que superficiais

– desses personagens são fundamentais para garantir ao filme sua vertente

fantástica.

III. O insólito em Meia-noite em Paris e a construção da utopia

parisiense

O cinema de Woody Allen é considerado realista por muitos críticos, o

que, segundo Edgar-Hunt significa dizer que

Filmes realistas apresentam o que aparece na tela como natural. Um dos principais meios de obter essa naturalidade é fazer o filme parecer espontâneo, o que é muitas vezes alcançado por meio da narrativa e, também, pela forma. É isso que permite que o realismo tome muitas formas. [...] Para fazer um protagonista parecer uma pessoa real, em vez de uma personagem real do filme, algumas características devem ser incorporadas, de maneira que o público o veja como próximo da sua compreensão

79 Hemingway: Isso não é um sonho parisiense? Uma grande festa. Escreva minhas palavras,

vou roubar você daquele fugitivo de Málaga de um jeito ou de outro. Entre Belmonte e eu, quem você escolheria? Adriana: Vocês são perfeitos. Hemingway: Mas ele tem mais coragem. Ele encara a morte com frequência e de frente. Se você escolher ele, eu vou ficar decepcionado, mas entenderei. Belmonte: Ela elegeu Pablo. Hemingway: Eu sei, ela escolheu Picasso, mas Pablo pensa que as mulheres só servem para o sexo ou para pintá-las. Adriana: E você? Hemingway: Eu acho que a mulher é igual ao homem na coragem. Você já atirou em um leão? Adriana: Não, nunca. Hemingway: Gostaria de saber como é? Adriana: Eu acho que não. Hemingway: Já caçou? Adriana: Não. Hemingway: E você? Gil: Só promoções. [...] Hemingway: Quem quer lutar? (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7)

159

de realidade. Muitas vezes isso inclui ambiguidade moral de algum tipo. Como na vida real, as conclusões não são sempre claras em filmes realistas ou não parecem claras, mesmo quando há uma resolução na narrativa fílmica. É a capacidade que um filme tem de dizer ao espectador o que pensar, balanceada com a ilusão de liberdade de escolha, que o torna tão poderoso (2013, p. 103).

O apelo fantástico, aparentemente adverso às características do cinema

realista, é empregado por Allen anteriormente em sua carreia, em A rosa púrpura

do Cairo (1985), todavia o insólito nessa obra mais antiga não é apresentado

com a mesma relevância nem com o mesmo impacto sobre o público que em

Meia-noite em Paris.

O fantástico, segundo David Roas, se define como a tendência literária

em que há espaço para o estranho e para o sobrenatural. Nas palavras do autor:

Indivíduos desdobrados, tiempos y espacios simultâneos,

monstruos, rupturas de la causalidad, fusión de sueño y vigília,

disolución de los limites entre la realidad y la ficción, objetos

imposibles... los motivos que componen el universo fantástico

son expresiones de una voluntad subversiva que, ante tudo,

busca transgredir esa razón homogeneizadora que organiza

nuestra percepción del mundo y de nosotros mismos.

[...]

[...] lo fantástico es un camino perfecto para revelar tal extrañeza,

para contemplar la realidade desde un ángulo de visíon insólito.

Porque el relato fantástico sustituye la familiriadad por lo extraño,

nos sitúa inicialmente en un mundo cotidiano, normal (el

nuestro), que inmediatamente es asaltado por un fenómeno

imposible – y, como tal, incomprensible – que subvierte los

códigos – las certezas – que hemos diseñado para percibir y

compreender la realidade (2011, p. 14).80

80 Indivíduos desdobrados, tempo e espaços simultâneos, monstros, rupturas da causalidade,

fusão de sonho e vigília, dissolução dos limites entre a realidade e a ficção, objetos impossíveis... os motivos que compõem o universo fantástico são expressões de uma vontade subversiva que, antes de tudo, busca transgredir essa razão homogeneizadora que organiza nossa percepção do mundo e de nós mesmos. O fantástico é um cominho perfeito para revelar tal estranheza, para completar a realidade a partir de um ângulo de visão insólito. Porque o relato fantástico substitui a familiaridade pelo estranho, nos situa inicialmente em um mundo cotidiano, normal (o nosso), que imediatamente é atacado por um fenômeno impossível – e, como tal, incompreensível – que subverte os códigos – as certezas – que temos desenhado para perceber e compreender a realidade (Tradução nossa).

160

Desse ponto de vista, o fantástico se instaura no filme quando o relógio

anuncia a chegada da meia-noite e Gil entra no carro que o levará até os anos

1920, porém, as cenas iniciais do longa têm importância singular para que o

fantástico se manifeste de modo verossímil.

O filme inicia com uma sobreposição de cenas que mostram os pontos

turísticos da cidade e o cotidiano dos parisienses. Tal apresentação induz o

espectador a acreditar que ele está diante do mundo real e familiar, pois, mesmo

não conhecendo a capital francesa, é possível perceber que, aparentemente,

trata-se de Paris como é retratada nas cenas dos noticiários, por exemplo,

havendo assim a identificação do espectador com a realidade vivida pelo

personagem protagonista.

Entretanto é nesse local absolutamente reconhecido pelo público que os

eventos insólitos vão acontecer e surpreender as expectativas daqueles que

assistem ao filme e não sabem quais experiências esperam para serem

vivenciadas pelo protagonista. Três são os elementos principais usados para a

inserção do insólito no enredo: o soar do relógio, o carro antigo e a bebida

alcóolica.

O primeiro deles está relacionado com um dos sistemas temáticos

recorrentes no fantástico levantados por Remo Ceserani: o tema do noturno.

Segundo o autor:

A ambientação preferida pelo fantástico é aquela que remete ao mundo noturno [...] que, junguianamente, é a linguagem do inconsciente, enquanto a linguagem do dia é a linguagem da racionalidade. A contraposição entre o claro e o escuro, sol e escuridão noturna é bastante utilizada no fantástico (2006, p.78).

Dessa forma, a oposição entre os dois espaços e tempos, que ocorrerem

precisamente no contraste entre dia e noite, é intencional, pois como a noite é

relacionada com o inconsciente, ela pode também ser associada ao sonho e, por

tanto, ao onírico. Em outras palavras, quando o personagem está no mundo real

a luz do dia caracteriza Paris como o universo identificado pelo espectador e

pelos personagens, já durante à noite, o real é desestabilizado e problematizado

(qual tempo e qual espaço é verdadeiramente real? É possível a convergência

entre o passado e o presente?), causando desconforto (estranhamento) com a

161

nova realidade estabelecida. Além disso, o badalar do sino do relógio da igreja

deixa o espectador em estado de atenção, pois como o título do filme anuncia o

horário, já é esperado que algo importante para o relato aconteça à meia-noite.

Luís da Câmara Cascudo, em Coisas que o povo diz, afirma que há quatro

“horas abertas”: meio-dia, meia-noite, amanhecer e entardecer. Segundo ele,

essas são

as horas em que se morre, em que se piora, em que os feitiços agem fortemente, em que as pragas e as súplicas ganham expansões maiores. Horas sem defesa, liberdade para as forças malévolas, os entes ignorados pelo nosso entendimento e dedicados ao trabalho da destruição. [...] Na ambivalência natural, meia-noite e meio-dia prestam-se às rogativas benéficas (2012, p. 30).

Meia-noite passa a ser, segundo a perspectiva de Cascudo, um horário

propício para a manifestação do onírico, pois tem a função de aproximar o mundo

real do mundo sobrenatural, possibilitando, assim, a abertura da fenda no tempo

e o encontro entre Gil e os personagens que, no século XXI, já se tornaram

referência para os artistas e escritores.

O carro antigo é o elemento que, associado à “hora aberta”, desempenha

a função de máquina do tempo na narrativa. Somente quando, após dar meia-

noite, o carro chega à porta da igreja é que Gil transgride o mundo real e atinge

o insólito. No entanto, essa máquina do tempo também faz parte do cotidiano,

tanto é que Gil afirma, pouco antes de entrar no carro, “Este é um Peugeot

antigo? Um amigo meu coleciona, em Beverly Hills.” (Meia-noite em Paris, 2011,

cap.3), ou seja, até aquele momento ele não tinha como prever que um fato

singular estava prestes a acontecer, pois nada na ambientação determinava a

presença de algo inexplicável.

Já a bebida alcóolica tem o objetivo de causar a hesitação em Gil e no

espectador. A dúvida sobre a possibilidade de viajar no tempo e,

consequentemente, sobre a veracidade dos fatos se configura na possibilidade

da alucinação causada pelos efeitos da embriaguez. Tanto Gil como o

espectador se questionam não só sobre ser possível a travessia no tempo, como

também sobre a lucidez do personagem.

Ceserani diz que:

162

Várias vezes encontramos, nos contos fantásticos que lemos, exemplos de passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do inexplicável e do perturbador: passagem de limite, por exemplo, da dimensão da realidade para a do sonho, do pesadelo, ou da loucura. O personagem protagonista se encontra repentinamente como se estivesse dentro de duas dimensões diversas, com códigos diversos à sua disposição para orientar-se e compreender (2006, p. 73).

A ambiguidade causada pela hesitação ainda se confirma em outra

passagem, quando Gil, caminhando com Adriana, encontra com Zelda Fitzgerald

tentando se suicidar no Sena. No fragmento do diálogo entre eles, ele diz:

Gil: Here it is. Take it. Zelda: What is this? Gil: It's a Valium. You'll feel better. Adriana: Do you carry any medicine with you? Gil: Usually not. But since I became engaged to Inez, I have panic attacks. But they will certainly pass after the wedding. Take it. Zelda: I do not know Valium. What is? Gil: It's the ... remedy of the future (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 8).81

A leitura cética, pautada na explicação racional, nesse trecho se acentua,

pois ao contrário dos efeitos do álcool que podem ser relativizados, o Valium,

medicamento indicado para tratamento de ataques de ansiedade, altamente

viciante (principalmente se for ingerido juntamente com bebidas alcoólicas),

causa efeitos colaterais como alucinações semelhantes às sentidas por usuários

de drogas. No entanto, tais efeitos são provocados em pacientes que fazem uso

prolongado do medicamento. Por tanto, como o espectador não sabe o período

em que Gil e Inez estão noivos, a dúvida sobre os efeitos do Valium também se

instaura na narrativa.

81Gil: Aqui está. Tome. Zelda: O que é isso? Gil: É um Valium. Vai se sentir melhor. Adriana: Carrega remédios com você? Gil: Normalmente não. Mas desde que fiquei noivo de Inez, tenho ataques de pânico. Mas, na certa, vão passar após o casamento. Tome. Zelda: Não conheço Valium. O que é? Gil: É o... remédio do futuro (Meia-noite em Paris, 2011, cap.8).

163

É evidente que a hesitação do espectador é fator determinante para a

constituição do fantástico na narrativa, principalmente, por estar associada ao

tema das drogas, porém, como afirma Sartre

o leitor compartilha os assombros do herói e o segue de descoberta em descoberta. Só que ao mesmo tempo que vê o fantástico de fora, como um espetáculo, como se uma razão em vigília contemplasse placidamente as imagens de nossos sonhos (2006, p. 143).

Ainda segundo o autor “é preciso fechar o ciclo: ninguém pode penetrar

no universo dos sonhos se não está dormindo; da mesma forma, ninguém pode

entrar no mundo fantástico se não se tornar fantástico” (2006, p. 141). Implicando

dizer, em outras palavras, que apesar de uma hesitação momentânea por parte

do espectador acompanhada da tentativa breve de explicação racional dos

acontecimentos, ele, assim como Gil, passa a testemunhar o relato sem

nenhuma estranheza, de modo absolutamente natural.

Para Irène Bessière

O relato fantástico provoca a incerteza ao exame intelectual, pois coloca em ação dados contraditórios, reunidos segundo uma coerência e uma complementaridade próprias. [...] [...] [...] o relato fantástico utiliza marcos socioculturais e formas de compreensão que definem os domínios do natural e do sobrenatural, do banal e do estranho, não para concluir com alguma certeza metafísica, mas para organizar o confronto entre os elementos de uma civilização relativos ao fenômeno que escapam à economia do real e do surreal, cuja concepção varia conforme a época. Ele corresponde à colocação em forma estética dos debates intelectuais de um determinado período, relativos à relação do sujeito com o suprassensível ou com o sensível; pressupõe uma percepção essencialmente relativa das convicções e das ideologias do tempo, postas em obra pelo autor. A ficção fantástica fábrica assim outro mundo por meio de palavras, pensamentos e realidade, que são deste mundo (2012, p. 306).

Sendo assim, a viagem no tempo só é possível por haver na narrativa uma

sequência de eventos provocadores. É a convergência entre as experiências

vividas por Gil e a ambientação parisiense que causa a paralisação do tempo e

do espaço reais para, concomitantemente, propagar inexplicavelmente o tempo

e o espaço do fantástico.

164

É dentro do tempo e do espaço fantásticos que Gil encontra com os

personagens do início do século XX. O mundo dos mortos é outro tema do

fantástico que para Ceserani “tem profundas raízes antropológicas e vínculos

fortes com a vida material e as convenções sociais” (2006, p.80). Como o

fantástico surge no filme para abordar as questões existencialistas do

protagonista, que sonha com uma utopia, a essência humana é discutida por

meio do desejo de alcançar o impossível, inerente a todos os homens.

Ceserani concorda com Lucio Lugnani quando este diz que:

seja como for que se imagine o mundo, o homem habita somente a sua superfície, que é por isso considerada o lugar natural por excelência. O sobrenatural se estende infinitamente sobre e sob esta superfície, acima e abaixo, como um abismo vertiginosamente profundo. Mas o sobrenatural evocado ou narrado pelo fantástico é de fato exclusivamente uma metade do mundo, a metade de baixo, a metade aprisionada, profunda, íntima, oprimida, subterrânea, noturna; o reino dos mortos e enterrados, dos sonhos e dos pesadelos, dos demônios; o lugar das verdades indizíveis, dos encantos obscuros, dos pavores irresistíveis, das tentações inconfessáveis (LUGNANI, apud CESERANI, 2006, p. 79).

A ideia da superfície espacial e temporal se desconfigura no filme por meio

dos vários níveis de tempo e espaço encontrados pelos personagens. Em sua

segunda viagem, Gil chega até a Belle Époque, encontrando assim com outras

personalidades como Toulose-Lautrec, Gauguin e Degas.

Em um diálogo no Moulin Rouge, Paul Gauguin diz a Gil e à Adriana:

“Degas e eu estávamos falando sobre como esta geração é vazia e sem

imaginação. Melhor seria ter vivido durante...La Renaissance.” (Meia-noite em

Paris, 2011, cap.11). A ideia do encontro com um tempo ideal e utópico é

incessante entre os personagens, ou seja, não importa em que momento

histórico se vive, sempre haverá o desejo de voltar no tempo e vivenciar outra

época.

A instabilidade espaço-temporal faz com que Gil, no final do filme, reflita

sobre a questão que serve como argumento da obra: a busca incessante pela

utopia. Enquanto Adriana, que o acompanha até a Belle Époque, decide

permanecer no século XIX, ele, ao notar que o descontentamento com a

165

realidade não é exclusivo seu, retorna ao século XXI com a postura de quem

constatou a veracidade da filosofia do Carpe Diem.

Roas comenta que o objetivo primordial do fantástico:

ha sido y es reflexionar sobre la realidad y sus limites, sobre nuestro conocimiento de esta y sobre la validez de las herramientas que hemos desarrollado para comprenderla y representarla (2011, p. 31).82

Entretanto, o autor ainda afirma que:

[...] los autores de los siglos XX y XXI, una vez sustituida la idea de un nivel absoluto de realidad por una visión de esta como construcción sociocultural, escriben relatos fantásticos para desmentir los esquemas de interpretación de la realidad y el yo (Idem, p. 33).

Dessa forma, pode-se compreender que apesar de o conceito de

realidade ter se alterado ao longo dos séculos XX e XXI graças aos avanços dos

conceitos físicos sobre a relatividade, o fantástico está diretamente relacionado

com as questões existencialistas humanas, que, apesar da tecnologia e ciência,

sempre serão as mesmas (no caso do filme a busca pelo espaço e época

utópicos).

Segundo Ceserani

O procedimento narrativo da aventura ou do “transplante” de um personagem de um ambiente cultural a outro tem fortes precedentes na literatura do século XVIII: na narrativa picaresca, nos livros de viagens, nos estudos antropológicos sobre povos primitivos, nos ensaios alegóricos, nos escritos utópicos. Mas o modo fantástico utiliza essa temática de maneira nova. É típico do fantástico não se afastar muito da cultura dominante e procurar as áreas geográficas um pouco marginais, onde se entreveem bem as relações entre uma cultura dominante e uma outra que está se retirando, o lugar das culturas em confronto (2006, p. 73 e 74).

82 Tem sido refletir sobre a realidade e seus limites, sobre nossos conhecimentos desta e sobre

a validade das ferramentas que temos desenvolvido para compreendê-la e representá-la (Tradução nossa).

166

Nas aventuras vividas por Gil, as culturas conflitantes são representadas

nas oposições existentes entre Estados Unidos e França e entre séculos XXI e

XX. Cada uma dessas dicotomias enfatizam a distinção existente entre o espaço

real (conhecido e vivenciado por Gil) e o espaço utópico (desconhecido e

imaginado por Gil).

Foucault salienta em De outros espaços que

[...] As utopias são sítios sem lugar real. São sítios que têm uma relação analógica direta ou invertida com o espaço real da Sociedade. Apresentam a sociedade numa forma aperfeiçoada, ou totalmente virada ao contrário. Seja como for, as utopias são espaços fundamentalmente irreais (1986, p.3).

Dessa forma, o fantástico, à medida que relativiza os limites do real, se

torna um recurso potencializador dos aspectos utópicos no discurso fílmico.

David Roas diz que

[...] la ciencia, la filosofía y la tecnología postulan nuevas condiciones en nuestro trato con la realidad. […] La narrativa posmoderna supone una perfecta transposición de estas nuevas ideas, manifestadas en su cuestionamiento de la capacidad referencial del lenguaje y la literatura. Coincide así con la visión postestructuralista de la realidad, resumida en la idea de que esta es una construcción artificial de la razón: en lugar de explicar la realidad de un modo objetivo, la razón elabora modelos culturales ideales que superpone a un mundo que se considera indescifrable. Ello implica la asunción de que no existe una realidad que pueda validar las hipótesis. De ese modo, la realidad es vista como un compuesto de constructos tan ficcionales como la propia literatura. Lo que se traduce en la disolución de la dicotomía realidad/ficción (2011, p. 29).83

83 A ciência, a filosofia e a tecnologia demandam novas condições em nosso jeito de lidar com a

realidade. A narrativa pós-moderna supõe uma perfeita transposição destas novas ideias, manifestadas em seu questionamento da capacidade referencial da linguagem e da literatura. Coincide assim com a visão pós-estruturalista da realidade, resumida na ideia de que esta é uma construção artificial da razão: no lugar de explicar a realidade de um modo objetivo, a razão elabora modelos culturais ideais que sobrepõem um mundo que se considera indecifrável. Isso implica a suposição de que não existe uma realidade que possa validar as hipóteses. Desse modo, a realidade é vista como um composto de construções tão ficcionais como a própria literatura. O que resulta na dissolução da dicotomia realidade/ficção (Tradução nossa).

167

Assim, os modelos culturais ideais se baseiam na divergência existente

entre culturas dominantes e seus respectivos aperfeiçoamentos irreais e

inalcançáveis. Para Gil, o que faz de Paris uma utopia não é simplesmente a

possível distinção ideológica entre França e Estados Unidos, mas o que seus

conterrâneos foram capazes de realizar na capital francesa na segunda década

do século XX.

Se Paris pode ser classificada como uma heterotopia, nos termos de

Foucault, pois é visitada por milhares de turistas que tentam encontrar na cidade

a concretização de suas idealizações sobre ela – da mesma forma que acontece

com cidades nos Estados Unidos – é importante ressaltar que na narrativa

fílmica, Paris não é vista dessa maneira, pois Gil a diviniza em uma época

específica. Logo, Paris para ele é mais do que um espaço, é também um tempo,

um instante efêmero e peculiar na história da cidade.

Segundo Marceli Baldessin, em sua dissertação de mestrado, A ficção

científica como derivação da utopia: a inteligência artificial,

A utopia “é um lugar que não está aqui” na realidade concreta, portanto não se trata de um lugar inexistente. Nem tampouco projeta mundos impossíveis. As colocações populares à utopia são equivocadas, pois o gênero guarda íntima relação com a possibilidade, e a realidade (2006, p. 50).

Paris encontrada por Gil durante suas viagens no tempo é uma utopia por

se tratar de um lugar passado, distante quase um século da concretude dos dias

vivenciados por ele e o espectador, porém é a passagem pela fenda temporal

que aproxima essa realidade concreta daquela imaginada e desejada,

incompatíveis entre si, mas ambas reais.

Vale ressaltar que para Foucault “a heteretopia consegue sobrepor, num

só espaço real, vários sítios que por si só seriam incompatíveis” (2006, p. 5).

Essa incompatibilidade é constante no filme, pois no cinema, o espectador tem

contato simultâneo com a cidade na sua contemporaneidade e no passado,

enquanto Gil vivencia os acontecimentos ora no século XIX, ora no século XX,

ora no século XXI.

As transposições espaço-temporais pelas quais Gil passa podem ser

analisadas como materializações dos conflitos internos enfrentados por ele. O

personagem é visivelmente não só antagônico aos outros que fazem parte do

168

seu convívio (pois não tem as mesmas ambições nem os mesmos valores), mas

também paradoxal com os ideais capitalistas de sua época.

Dessa forma, Gil é um homem em reverso, que em descompasso com o

mundo sensível se perde em suas elucubrações sobre a realidade e sua própria

existência. Ausente da vida prática em que os outros personagens se encontram,

Gil, perdido dentro de si mesmo, se torna um microcosmo, ou seja, um universo

completo, particular e subjetivo.

O fantástico manifestado em Meia-noite em Paris vai “renunciar à

exploração das realidades transcendentes, resignar-se a transcrever a condição

humana” (SARTRE, 2006, p. 138).

Tal qual no universo de Kafka, na narrativa de Woody Allen, o mundo é

ao mesmo tempo fantástico e rigorosamente verdadeiro (idem, p. 147), pois não

nada de súcubos, nada de fantasmas, nada de fontes que choram – há apenas homens, e o criador do fantástico proclama que se identifica com o objeto fantástico. Para o homem contemporâneo, o fantástico tornou-se apenas uma maneira entre cem de fazer refletir sua própria imagem (idem, p. 139).

O fantástico se torna, desse modo, o recurso narrativo escolhido como

estratégia para a reflexão sobre o desejo inerente a qualquer ser humano de

encontrar a utópica ‘Era de Ouro’.

Segundo Lewis Mumford

Utopia é, desde há muito tempo, um nome para designar o irreal e o impossível. Habituamo-nos a ver a utopia em contraste com o mundo, quando, de fato, são as nossas utopias que tornam o mundo tolerável: as cidades e as mansões que povoam os sonhos das pessoas são, afinal, aquelas em que vivem. Quanto maior é a reação dos homens ao meio ambiente, quanto mais o remodelam à imagem da sua condição humana, mais claramente demonstram que continuam a viver na utopia. Só a ruptura entre o mundo do quotidiano e o sobremundo da utopia traz a percepção do papel que esse desejo de utopia desempenhou nas nossas vidas; só então podemos encarar a nossa utopia como uma realidade separada (2007, p. 19).

Dessa perspectiva teórica, a utopia e o fantástico são coerentes na

narrativa fílmica, já que ambos se baseiam na realidade para a criação de um

universo particular.

Na visão de Irène Bessière o fantástico se

169

alimenta inevitavelmente das realia, do cotidiano, do qual relata os desatinos, e conduz a descrição até o absurdo, ao ponto em que os próprios limites, que o homem e a cultura atribuem tradicionalmente ao universo, já não circunscrevem nenhum domínio natural ou sobrenatural, porque, invenção do homem, eles são relativos e arbitrários (2012, p. 307).

O homem do avesso, em descompasso com o seu tempo e o seu espaço,

para não sucumbir à realidade que o aflige, busca encontrar dentro de seus

próprios devaneios a solução para suas angústias. É esse processo de

autorreflexão que Gil realiza até o desfecho da narrativa.

Sendo assim, no epílogo do filme, quando Gil tem sua epifania (anábase)

e decide viver em Paris do século XXI. O desajuste que ele sentia em relação a

sua personalidade se reequilibra e reencontra o caminho para a realização de

seus projetos profissionais e pessoais.

Ainda de acordo com Mumford

Este mundo das ideias serve muitos propósitos. Dois deles são particularmente relevantes para a nossa investigação sobre a utopia. Por um lado, o pseudo-ambiente, ou idolum, é um substituto do mundo exterior, é uma espécie de abrigo onde nos refugiamos quando o nosso confronto com os “duros fatos da vida” se torna demasiado complexo ou demasiado difícil. Por outro lado, é através do idolum que os fatos do mundo quotidiano, condensados, classificados e filtrados, configuram e projetam, desta forma, uma nova realidade para o mundo exterior. Uma destas funções é a de escape ou de compensação: a procura de uma libertação imediata das dificuldades ou frustações que nos assolam. A outra é uma tentativa de proporcionar condições para a nossa libertação futura (2007, p. 23).

Tendo essa forte associação com a psique humana, a utopia é na

realidade uma válvula de escape que permite ao homem enfrentar os conflitos

rotineiros e aceitar a infelicidade de ser um indivíduo incompleto e insatisfeito. A

contribuição do filme para essa associação se dá pelo fato de a narrativa

apresentar na tela tanto a busca utópica de um personagem semelhante ao

homem comum que o assiste no cinema quanto a idealização de Paris, símbolo

de utopia para muitos ao longo da história.

Outro personagem que se assemelha ao espectador é o detetive que

mesmo sendo familiarizado com o espaço parisiense se perde nos labirintos

170

temporais da cidade descobertos e desbravados por Gil. A presença de outro

viajante no tempo, sem nenhum comportamento passional diante de Paris,

intensifica o caráter mítico da cidade, uma vez que o paradoxo temporal não é

necessariamente fruto de uma mente fantasiosa em busca de uma utopia, mas

uma projeção do imaginário coletivo que por meio do cinema reafirma e fortalece

Paris como cidade mítica.

IV. Paris cidade mítica

Em seu reconhecido livro A câmara clara, Roland Barthes afirma que a

fotografia é a responsável pelo retorno do morto. Segundo ele,

Contemporânea do recurso dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, em nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, espécie de brusco mergulho na Morte literal. A Vida / a Morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final (2015, p. 79).

A morte causada pela fotografia se deve por sua natureza estática, o que

no cinema, apesar de seu material ser fotográfico, não acontece.

Como um mundo real, o mundo fílmico é sustentado pela presunção de “que a experiência continuará constantemente a fluir no mesmo estilo constitutivo”; mas a Fotografia rompe “o estilo constitutivo” (está aí seu espanto); ela é desprovida de futuro (estão aí seu patético, sua melancolia); nela, não há qualquer protensão, ao passo que o cinema é protensivo, e por isso de modo algum melancólico (o que ele é então? – Pois bem, é simplesmente “normal”, como a vida) (2015, p. 77).

Partindo das colocações de Barthes sobre a ‘morte fotográfica’ e o

prolongamento da vida propiciado pelo cinema, Edgar Morin afirma que tanto um

quanto o outro apresentam para seus espectadores a duplicação do eu

registrado nas imagens. Segundo Morin, o cinema herda da fotografia a sua

fotogenia84, ou seja, “sua qualidade complexa e única de sombra, de reflexo e

84 Marcel Martin utiliza a definição de dois teóricos do cinema para conceituar fotogenia. Os

mesmos apresentados por Edgar Morin. “Louis Delluc definiu a fotogenia como ‘esse aspecto poético extremo dos seres e das coisas, suscetíveis de nos ser revelado exclusivamente pelo cinema. [...] Léon Moussinac escreveu que ‘a imagem cinematográfica mantém contato com o real e transfigura também o real em magia’.

171

de duplo, que permite ao poder afetivo próprio da imagem mental se fixar na

imagem resultante da produção fotográfica” (2014, p. 52).

É nesse processo afetuoso que o cinema consegue projetar na tela para

uma coletividade aquilo que é exclusividade da imaginação ou do imaginário

coletivo. A fotogenia explica não só o fascínio do cinema causado no homem

logo após sua invenção, mas também pode ser um dos fatores determinantes do

sucesso das grandes bilheterias.

Meia-noite em Paris, como já mencionado, é a maior bilheteria de Woody

Allen (151,1 milhões de dólares). Pode-se afirmar que não é por acaso que o

diretor com uma vasta carreira tenha atingido tamanha conquista com um longa

sobre a capital francesa, presente no imaginário coletivo de inúmeros

espectadores pelo mundo.

Walter Benjamin afirma que

Os gregos conheciam somente dois processos de reprodução técnica de obras de arte: a fundição e a cunhagem. Bronze, terracota e moedas eram as únicas obras de arte que podiam ser fabricadas por eles em massa. Todas as outras eram únicas e não podiam ser reproduzidas tecnicamente. Por isso, precisavam ser feitas para a eternidade. Os gregos eram obrigados, pelo estágio de sua técnica, a produzir na arte valores eternos. A essa circunstância devem seu lugar eminente na história da arte, a partir do qual os que vieram depois puderam determinar o seu lugar próprio. Não há dúvidas de que o nosso lugar se encontra no polo oposto ao dos gregos. Nunca antes as obras de artes foram tecnicamente reprodutíveis em escala tão elevada e em extensão tão ampla como hoje. No cinema temos uma forma, cujo caráter de arte, pela primeira vez, é determinado de parte a parte por sua reprodutividade. [...]. O cinema é a obra de arte mais perfectível (2014, p. 50 e 51).

Tanto a reprodutividade quanto a perfectibilidade do cinema são

fundamentais para que o filme seja capaz de levar às massas a representação

do seu imaginário coletivo. A perfectibilidade, entendida como a busca racional

da perfeição artística (estética), permite que o diretor manipule por meio de

O mais curioso é esta outra definição da fotogenia dada por Delluc: ‘Todo aspecto das coisas, dos seres e das almas que acresce sua qualidade moral pela reprodução cinematográfica’ (2013, p. 26). Ou seja, “a imagem encontra-se, pois afetada de um coeficiente sensorial e emotivo que nasce das próprias condições com que ela transcreve a realidade. Sob esse aspecto, apela ao juízo de valor e não o de fato; na verdade ela é algo mais que uma simples representação” (MARTIN, 2013, p. 25).

172

inúmeras técnicas aquilo que será apresentado ao público. A edição de vários

frames soltos que apenas após a interferência do diretor serão organizados de

maneira lógica viabiliza a produção de significado não só na obra totalizada, mas

também em cada cena e até mesmo em cada minuto de filme, o que aproxima a

arte cinematográfica da arte literária.

Diretores e escritores são artistas que conseguem manipular as massas

que atingem escolhendo racionalmente cada um dos fragmentos de suas obras.

No entanto, o fato de elaborarem composições altamente reproduzidas em

vários exemplares não é suficiente para que o discurso artístico perca sua força

e sua sensibilidade.

Vale ressaltar que o acesso das massas a trabalhos artísticos perfectíveis

e reproduzíveis alterou o comportamento do público que deixa de ser passivo e

passa a ser ativo no que se refere à análise e à crítica da obra.

A reprodutividade técnica da obra de arte altera a relação da massa com a arte. De uma atitude extremamente retrógada diante, por exemplo, de um Picasso, passa a uma relação extremamente progressista em face, por exemplo, de um Chaplin. O comportamento progressista se caracteriza aqui pelo fato de que, nele, o prazer em ver e vivenciar possui uma ligação imediata e interna com a postura do avaliador especialista. Tal ligação é um indício social importante, pois, quanto mais o significado de uma arte diminui, tanto mais se separam – como se comprova nitidamente face à pintura – a postura crítica da postura de fruição no público. O que é convencional frui-se sem crítica, e critica-se o que é realmente novo, com aversão. Não é assim na sala de cinema. E aqui a circunstância decisiva é que, na sala de cinema, mais que em qualquer outro lugar, as reações do indivíduo, cuja soma constitui a reação em massa do público, mostram-se condicionadas de antemão por sua massificação iminente (BENJAMIN, 2014, p. 91).

A aprovação do público para uma obra cinematográfica é tão importante

quanto a da crítica especializada e a sua aclamação é proporcional à quantidade

das suas reproduções. Sendo assim, Meia-noite em Paris é enaltecido não só

por sua qualidade artística, mas pela união desta com o reconhecimento da

projeção do imaginário coletivo por parte do público que assistiu ao filme

inúmeras vezes.

Walter Benjamin salienta que “a humanidade, que outrora, em Homero,

foi um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de

espetáculo para si mesma” (2014, p. 123). Em outras palavras, na pós-

173

modernidade, o homem transforma suas aspirações e seus desejos mais íntimos

em fonte de distração para si mesmo, por meio da sua própria duplicação e da

concretização imagética do seu imaginário.

O duplo no filme é trabalhado tanto na imagem de Gil – que duplica o

próprio Woody Allen e o espectador da obra – como na imagem de Paris –

duplicada em tempos distintos e projetada segundo uma utopia. Essa duplicação

somada ao movimento das cenas permite que, nas palavras de Morin, o cinema

crie “alma”, já que “os processos de projeção-identificação que estão no âmago

do cinema estão evidentemente no âmago da vida” (2014, p. 115).

Essa duplificação da vida, naturalizada pelo cinema, aproxima o homem

do seu inconsciente e faz com que o cinema seja o único a responder a certas

necessidades humanas.

Já sentimos as necessidades, que são aquelas de todo imaginário, de todo devaneio, de toda magia, de toda estética; aquela que a vida prática não pode satisfazer. Necessidade de se evadir, de se perder em outras paragens, de esquecer seus limites, de participar do mundo... e, finalmente, fugir para se encontrar consigo mesmo. Fugir para se encontrar, encontrar-se para fugir, ver-se em outro lugar fora de si mesmo e fugir para o interior de si mesmo... A “especificidade” do cinema é oferecer uma gama potencialmente infinita dessas fugas e encontros: o mundo ao alcance das mãos, com todas as fusões cósmicas... e também a exaltação do próprio duplo do espectador encarnado nos heróis românticos e aventureiros. O cinema se abriu a todas as participações: adaptou-se a todas as necessidades subjetivas. Por isso ele é a técnica ideal para a satisfação afetiva, segundo Anzieu, e assim é em todos os níveis de cultura e em todas as sociedades (MORIN, 2014, p. 139).

Ao refletir na tela o inconsciente coletivo, Meia-noite em Paris não aborda

apenas o escapismo de Gil para um tempo irreal – fato que sozinho já

corroboraria para a afinidade do público com o enredo – todavia apresenta de

maneira fotogênica e empática a imagem de Paris, a qual o público tem livre

acesso em seu inconsciente.

A empatia é causada nas cenas iniciais do longa, quando o diretor

sabiamente exibe a cidade por meio de seus pontos turísticos mais visitados e

na sequência imediata apresenta o primeiro diálogo em uma tela negra, sem

nenhuma imagem (com exceção dos créditos dos responsáveis pela elaboração

174

do filme). De olhos fechados, o espectador é levado a sonhar, a desejar Paris e

a projetar seu inconsciente desde os primeiros minutos da narrativa fílmica.

As locações onde as filmagens foram feitas são escolhidas para

evidenciar a cultura e o lirismo da cidade mais romântica do mundo, sendo

adequadas aos devaneios de Gil e ao seu fascínio por ela e opondo-se ao

materialismo e ao capitalismo norte-americanos.

O Château de Versailles, reformado para ser moradia de Luís XIV, com

sua estética barroca, por exemplo, é registrado na tela em um plano aberto, com

profundidade de campo, mostrando primeiramente seu imenso Jardim Francês,

enquanto os personagens desfrutam da beleza do lugar e conversam sobre a

arquitetura do prédio (diante deles e atrás da câmera), posteriormente

posicionado como fundo do plano-sequência.

Figura 39: Versalhes. Montagem com cenas de Meia-noite em Paris. 8’59’’ – 11’25’’

A coloração amarelada da sequência, não é somente alusiva às altas

temperaturas do verão francês, à cor das paredes externas do Palácio, à

suntuosidade dos seus objetos decorativos dourados, e ao Rei Sol – Luís XIV –

mas também é significativa para a construção da atmosfera gloriosa, sublime e

enobrecedora de Paris, já mencionadas por Hemingway em Paris é um festa e

analisadas no capítulo anterior desta tese.

Esse tom criador da sensação de grandeza e soberania da capital

francesa é reforçado pelo diálogo da cena:

175

Paul: I believe Louis moved his court here in 1682. Originally all this was swampland. In fact, if I’m not mistaken in old French, the word “Versailles” means, something like “terrain where the weeds have been pulled”. The middle section here. French classical style at its height. I believe of Louis Vau, Mansart, I think and Charles Le Brun, I believe. Carol: Yeah, that’s right. Inez: I could get used to a summer home like this. Gil: I know you could. Paul: Me, too. Except, in those days, they only had baths and I’m definitely a shower man (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 2).85

A fala se inicia com alto nível de erudição, em que Paul valoriza a história

do Palácio, e transporta o espectador para o espaço da cena, já que o

posicionamento e o ângulo da câmera iludem aqueles que assistem aos

acontecimentos de que são outros interlocutores do personagem.

O término do diálogo, com o mesmo personagem fazendo um comentário

insignificante, interrompe com a ilusão, distanciando novamente a realidade dos

espectadores daquela apresentada no longa. O desequilíbrio no conteúdo do

diálogo é fator determinante para o antagonismo entre Gil e Paul e para a

empatia entre o protagonista e o público, pois enquanto a postura do

personagem “pseudointelectual” – nas palavras do próprio Gil – é de

autopromoção por meio de seus conhecimentos sobre o palácio, sem nenhuma

verdadeira admiração por sua história, Gil é um saudosista que enaltece a

importância histórica e cultural de Paris e, assim como o público, é ávido por

desfrutar de cada instante vivido lá.

A mesma situação se repete em outro local: no Musée Rodin, diante de O

pensador.

85 Paul: Acho que Luis transferiu sua corte para cá em 1682. Antes, tudo isso era um pântano.

Aliás, se não estou engando no francês antigo a palavra “Versailles” significa algo do tipo “terreno de onde as ervas daninhas foram arrancadas”. Esta seção aqui é o estilo clássico francês no seu auge. A obra é, acredito, de Louis Vau, Mansart, creio, e Charles Le Brun, acredito. Carol: Sim, é mesmo. Inez: Até que eu gostaria de uma casa de verão assim. Gil: Eu sei. Paul: Eu também. Mas, na época, eles só tinham banheiras, e eu prefiro chuveiro. (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 2)

176

Figura 40: O pensador. Cena de Meia-noite em Paris. 12’00’’

A cena iniciada com O pensador em contra-plongée86, sugere o

movimento de cabeça feito por aqueles que diante da magnitude da estátua

necessitam erguer o pescoço para admirá-la. Esse ângulo, como afirma Marcel

Martin “dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois

faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra

o céu aureolado de nuvens” (2013, p. 43). Entretanto, além de comprovar a altura

da obra – colocada em um pedestal – a contra-plongée insere o espectador,

novamente, na cena.

Guide: This is of course, Rodin’s most famous statue. A cast of this work was placed next to his tomb. Rodin wished for it to serve as his headstone and epitaph. Paul: That would be in Meudon. He died of the flu, if I’m not mistaken. In 1917, I believe. Guide: That’s very good, sir. Inez: He’s so knowledgeable, isn’t he? Gil: Yeah (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 2).87

Durante esse episódio, Gil está – como a imagem abaixo demonstra – ao

lado da guia e levemente afastado dos seus companheiros na visita ao museu,

86 Contra-plongée: câmera posicionada de baixo para cima. 87 Guia: Está é a estátua mais famosa de Rodin. Uma cópia desta obra foi posta ao lado do seu túmulo. Rodin queria que ela servisse de lápide e epitáfio. Paul: O túmulo fica em Meudon. Ele morreu de gripe, se não estou enganado. Em 1917, creio. Guia: Muito bem, senhor. Inez: Ele é tão instruído, não? Gil: É (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 2).

177

inquieto e visivelmente desconfortável com a presença e petulância de Paul ao

conversar com Carol durante a explicação da guia e em seguida discutir com a

especialista na obra de Rodin, Gil ironiza a gafe cometida por Paul e causa o riso

satírico e cúmplice da audiência.

Figura 41: Musée Rodin. Cena de Meia-noite em Paris. 12’06’’

Outra locação significativa para a fotogenia, a empatia e a projeção do

imaginário coletivo é a escadaria (símbolo do ritual de passagem de Gil e de sua

catábase) da Église Saint-Étienne du Mont e a Rue Montagne St. Geneviève.

Figura 42: Rue Montagne St. Geneviève. Montagem com cenas de Meia-noite em Paris. 17’07’’

– 17’28’’.

178

A coloração sépia, muito recorrente no filme, ora empregada nos

ambientes internos para designar o aconchego e o intimismo, por exemplo, de

um restaurante ou de uma loja de decoração, ora utilizada como estratégia

técnica para demarcar a mudança de atmosfera dos anos 1920, nessa sequência

é um prenúncio da volta ao passado prestes a ser vivenciada por Gil.

No entanto, apesar de ser o local onde o retorno no tempo ocorrerá, a Rue

Montagne St. Geneviève é um respeitável berço intelectual de Paris. Situada na

margem esquerda do Rio Sena, a mais erudita e intelectual, a rua é de suma

importância para a cidade desde o Império Romano, pois servia de trajeto entre

Lutèce (Paris) e Fontainebleau e depois, já na Idade Média, se torna o endereço

da École Polytechnique, que hoje é um dos muitos prédios nela localizados

tombados pelo patrimônio histórico.

Rue Montagne St. Geneviève foi escolhida por Woody Allen como uma

das locações mais importantes do filme, dessa forma, não só por nela haver a

igreja e o badalar do sino ser substancial para a compreensão do público, mas

principalmente por seu prestígio histórico-cultural. Entretanto, a singularidade

dessa rua, nesta tese, é ainda maior, pois ela colabora para o dialogismo entre

Meia-noite em Paris, Paris é uma festa e A menina dos olhos de ouro, como será

evidenciado na próxima seção do capítulo, mas já brevemente antecipado pelas

fotos abaixo que evidenciam a perpetuação da rua e da escadaria da igreja como

pontos turísticos importantes na cidade, como acontece também com outros

locais.

(Rue Montagne St. Geneviève:

início do século XX)

Figura 43: Eugène Atget. [Sem título]. Fotografias. Musée Carnavalet. Disponível em: http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/page/1/search/Montagne-Sainte-Genevi%C3%A8ve/filtered/1. Acesso em: 13 dez 2018.

179

Posteriormente à Rue Montagne St. Geneviève, o Musée de l’Orangerie

é outras das locações que insere o espectador na cena retratada e o aproxima

de Gil.

Figura 44: Watter Lilies. Montagem com cenas de Meia-noite em Paris. 44’31’’ – 44’42’’.

Paul: The juxtaposition of color is amazing. This man was the real father of abstract expressionism. I take that back. Maybe Turner. Inez: I love Turner, but I just find this… overwhelming! Paul: If I’m not mistaken, it took him two years to complete this. And he worked out at Giverny, where he was frequently… Gil: I heard that Monet, one of the things that he used to try… Inez: Shhhh! I’m trying to hear what Paul’s saying. Paul: He was frequently visited by Caillebotte an artist who I personally feel was underrated (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).88

Na cena gravada diante do deslumbrante quadro Water Lilies de Monet,

há um breve momento – no segundo frame da imagem anterior – em que a

câmera de Woody Allen focaliza um detalhe da obra instantes antes dos

personagens passarem diante dela. Esse breve momento registra o ponto de

vista do espectador do filme, caso ele estivesse fisicamente presente no local, e

o leve travelling89, acompanhando os passos dos personagens, feito em seguida,

reafirma a posição da câmera substituindo o público.

88 Paul: A justaposição de cores é incrível. Esse homem foi o verdadeiro pai do expressionismo

abstrato. Retiro o que disse, Talvez Turner. Inez: Eu adoro Turner, mas acho isto... deslumbrante! Paul: Se não estou enganado, ele levou dois anos para completar este. E ele o pintou em Giverny, onde frequentemente... Gil: Ouvi dizer que uma das coisas que Monet costumava... Inez: Shhh! Estou tentando ouvir o Paul. Paul: Frequentemente recebia visitas de Caillebotte, um artista que eu acho que foi subestimado (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7). 89 Travelling: Movimento da câmera quando ela se desloca no espaço.

180

A interrupção abrupta da fala de Gil feita por Inez, por meio de uma

onomatopeia agressiva, é uma censura à contribuição do personagem para o

conteúdo da cena que será retomada minutos depois, diante do ‘quadro de

Picasso’ – criado exclusivamente para o filme, como um dos recursos narrativos.

Paul: Ah, now here’s a superb Picasso. If I’m not mistaken, he painted this, this marvelous portrait of his French mistress, Madeline Brissou, in the twenties. Gil: But Paul, I’m gonna have to differ with you on this one. Paul: Really? Inez: Gil, just pay attention, you might learn something. Gil: If I’m not mistaken, this was a failed attempt to capture a young French girl named Adriana from Bordeaux, if my art history serves me who came to Paris to study costume design for the theater. And I’m pretty sure she had an affair with Modigliani, then Braque, which is how Pablo met her. Picasso. Of course what you don’t get from this portrait is the subtlety in her beauty. She was just a knockout! Inez: What have you been smoking? Gil: I’d hardly call this picture marvelous. It’s more of a petit bourgeois statement on how Pablo sees her. Saw her. He’s distracted by the fact that she was an absolute volcano in the sack. (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).90

Diferentemente do fragmento anterior, neste momento Gil não aceita a

interrupção e continua, seguro de si, com sua explanação. O fato de ele

desprezar a tentativa da noiva de o calar e ainda, com um gesto despretensioso

demonstrando sua autoconfiança, sair da cena, deixando todos atônitos com sua

postura, provoca um sorriso de satisfação do público, seu duplo.

Vale ressaltar, que durante a explicação de Paul e Gil sobre a tela, a

câmera, mais uma vez, é posicionada no lugar do espectador. Primeiramente,

atrás dos personagens, e, em um segundo momento, na frente deles,

90 Paul: E agora, um Picasso soberbo. Se não me engano, ele pintou este maravilhoso retrato

de sua amante francesa, Madeline Brissou, nos anos 20. Gil: Paul, vou discordar de você neste caso. Paul: É mesmo? Inez: Gil, preste atenção. Pode aprender algo. Gil: Se não me engano, esta foi uma tentativa fracassada de retratar uma jovem francesa chamada Adriana de Bordeaux, se estiver bem lembrado da história da arte, que veio a Paris estudar figurino para teatro. E tenho certeza de que teve um caso com Modigliani, então Braque, que foi como Pablo a conheceu. Picasso. Claro que o que vocês não captam no retrato é a sutileza de sua beleza. Ela era simplesmente linda! Inez: O que você andou fumando? Gil: Eu não chamaria este quadro de maravilhoso. Retrata mais a forma de pequeno burguês como Picasso a vê. Como a via. O fato de ela ser um verdadeiro vulcão na cama tirou o foco dele (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).

181

observando o quadro nas duas oportunidades, como a imagem a seguir

esclarece.

Figura 45: Obra de Picasso. Montagem com cenas de Meia-noite em Paris. 45’10’’ e 46’00’’,

respectivamente.

Durante o enredo, Gil é insistentemente reprovado e menosprezado por

Inez. No fragmento em que ele sai de uma loja de decoração acompanhado de

Inez e de sua sogra, por exemplo, as duas abrem o guarda-chuva e correm para

o carro, enquanto ele quer caminhar:

Gil: Okay. You guys want to walk back? Inez: Walk? No! It’s starting to rain. Gil: No, it’ll be nice walking in the rain. It’s beautiful. Inez: No, there is nothing beautiful about walking in the rain (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 5).91

A cena, aparentemente banal, apresenta, assim como outros episódios,

Inez diminuindo o idealismo de Gil e provocando simultaneamente o apreço do

público pelo protagonista, pois há um reconhecimento imediato do desejo de

flanar gozando das belezas da cidade independentemente do clima e da

opressão que o personagem sofre constantemente.

Em um fragmento anterior, Gil sentado em sua cama, revela sua volta ao

passado para Inez:

Gil: If I was to tell you that I spent last night with Ernest Hemingway and Scott Fitzgerald, what are you thinking about? Inez: Is that what you were dreaming about? Your literary idols?

91 Gil: Certo. Querem caminhar até o hotel? Inez: Caminhar? Não! Está começando a chover. Gil: Vai ser legal andar na chuva. É lindo. Inez: Não. Andar na chuva não tem nada de bonito (Meia-noite em Paris, 2011, cap.5).

182

Gil: Yeah, but I wasn’t dreaming. Inez: What does that mean? Gil: If I was with Hemingway and Fitzgerald and Cole Porter… Inez: I’d be thinking brain tumor. Gil: And may I tell you Zelda Fitzgerald is exactly as we’ve come to know her through everything you’ve read in book and articles. She’s charming, but all over the map. She does not like Hemingway one bit. And Scott know Hemingway is right about her. But you can see how conflicted he is because he loves her. Inez: Come on! Get up! We should quit the idle chatter because we’re gonna be late (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 5).92

O descaso demonstrado por ela sobre o relato do noivo é enfatizado por

meio do posicionamento da câmera que deixa de ser centralizado e frontal, como

na maior parte do filme, e passa a ser colocada em uma leve plongeé93.

Figura 46: Gil. Montagem feita com cenas de Meia-noite em Paris. 29’03’ – 30’02’’.

Segundo Marcel Martin, a plongeé “tende, com efeito, a apequenar o

indivíduo, a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele

um objeto preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade”

(2013, p. 44).

92 Gil: Se eu lhe contasse que passei a noite com Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald, o que

diria? Inez: É com isso que estava sonhando? Seus ídolos literários? Gil: Sim, mas eu não estava sonhando. Inez: Como assim? Gil: Se eu estive com Hemingway, Fitzgerald e Cole Porter... Inez: Está parecendo tumor cerebral. Gil: Posso dizer que Zelda Fitzgerald é exatamente como a conhecemos através do que lemos em livro e artigos. Ela é charmosa, mas totalmente maluca. Ela não gosta nem um pouco do Hemingway. E Scott sabe que Hemingway está certo sobre ela. Mas dá para notar como está confuso, pois ele a ama. Inez: Vamos, levante-se. Chega de conversa fiada, vamos nos atrasar (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 5). 93 Plongeé: câmera posicionada de cima para baixo.

183

A humilhação de Gil é também o rebaixamento do espectador, já que

na nossa civilização mecanizada, onde o homem é devorado pela tecnicidade do seu trabalho, normalizado pelas constrições políticas e sociais, o cinema, antes de qualquer inquietação artística, existe para responder às imprescritíveis necessidades psíquicas coletivas reprimidas (BAZIN, 2017, p. 179).

Em Meia-noite em Paris, não só o cinema em si, mas sobretudo a capital

francesa, o imaginário coletivo construído a respeito dela, a projeção da cidade

e da idealização de Gil sobre ela são os motivadores da afinidade do público

para com o protagonista. A opressão causada em Gil simboliza a dicotomia entre

materialismo e idealismo, aquela que separa os homens – presos na busca pela

segurança gerada pela concretude dos bens materiais – da realização de seus

desejos mais íntimos. A luta interna do espectador é transposta para a tela do

cinema ocasionando a identificação e o desejo pelas realizações dos sonhos do

protagonista, pois, como afirma Bazin, “os homens são oprimidos sempre, nem

que seja pela vida. O sonho continuará a ser o essencial na sua espera diante

da tela de cinema” (2017, p. 164).

O desprezo de Inez e seu constante comportamento materialista não só

é um dos fatores que explica a empatia do espectador por Gil, como também

justifica o escapismo dele para o século XX.

Em um dos momentos que vive com Adriana no século XX, enquanto

caminham por Paris à noite, eles comentam:

Adriana: I can never decide whether Paris is more beautiful by day or by night. Gil: No, you can’t. You couldn’t pick one. I can give you a checkmate argument for each side. I sometimes think, how is anyone ever gonna come up with a book or a painting or a symphony or a sculpture that can complete with a great city? You can’t, because look around you every street, every boulevard is its own special art form. And when you think that in, the cold, violent, meaningless universe that Paris exists these lights..? I mean, come on, there’s nothing happening on Jupiter or Neptune. But from way out in space you can see these lights, the cafes, people drinking and singing. For all we know, Paris is the hottest spot in the universe (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).94

94 Adriana: Não consigo decidir se Paris é mais bonita de dia ou de noite.

Gil: É impossível. Não há como escolher. Posso dar um argumento definitivo para um e outro. Às vezes penso, como alguém vai criar um livro, quadro, sinfonia ou escultura que possa

184

A descrição feita por Gil sobre a cidade sintetiza a sua transcendência e

sua permanência no imaginário coletivo. Se Paris é a metrópole que, mesmo

sendo bela e artisticamente superior como tantas outras, se distingue por seu

esplendor se reproduzir além da atmosfera terrestre, ela é, inevitavelmente, não

só excepcional, mas também extraordinária e mítica, pois ela vai além do plano

terreno, atingindo o cosmo.

Segundo Morin

O cinema opera um tipo de ressureição da visão primitiva do mundo, descobrindo a superposição quase exata entre a percepção real e a visão mágica – sua conjunção sincrética. Ele atrai, permite e tolera o fantástico, inscrevendo-o no real. Ele renova, diz muito claramente Epstein, o espetáculo da natureza e “nele, o homem encontra alguma coisa de sua infância espiritual, do antigo frescor de sua sensibilidade e de seu pensamento, dos primitivos choques da surpresa que provocaram e direcionaram sua compreensão do mundo... a explicação que se impõe primeiramente aos espectador pertence à velha ordem animista e mística” (2014, p.186).

A mística envolvendo a cidade se revela, nesse fragmento do filme,

também por meio da contra-plongée em que os dois personagens são

focalizados.

competir com uma grande cidade? É impossível, porque você olha à sua volta cada rua, cada boulevard é sua própria forma de arte especial. E quando pensa que no universo frio, violento e sem sentido existe Paris, essas luzes...? Quero dizer, não tem nada acontecendo em Júpiter ou Netuno. Mas lá no espaço você pode ver estas luzes, os cafés, as pessoas bebendo e cantando. Poderíamos dizer que Paris é o lugar mais quente do universo (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).

185

Figura 47: Gil e Adriana. Cena de Meia-noite em Paris. 50’48’’.

O movimento descendente (catábase) que eles fazem em direção à

câmera é muito coerente com o devaneio de Gil e com a Paris que habita os

seus sonhos, pois a cidade divina e sublime se materializa no seu retorno ao

século XX, mesmo que por um período de tempo.

A respeito da intangibilidade da cidade utópica retratada no filme, Morin

comenta:

Em Le Cinématographe Vu de l’Etna, Epstein, por um curioso desvio, redescobre nos objetos do cinema a mesma condensação de alma que nos objetos mágicos e sagrados. ‘A vida que ele cria, tirando os objetos das sombras da indiferença, levando-os à luz do interesse dramático, essas vidas... parecem-se com a vida dos amuletos, dos patuás, dos objetos ameaçadores e tabus em certas religiões primitivas. Creio que se quisermos compreender como um animal, uma planta ou uma pedra podem inspirar respeito, temor, terror, três sentimentos sobretudo sagrados, é preciso vê-los viver numa tela de cinema.’ Essas analogias tão vivas entre o cinema e a visão de mundo primitivo, entretanto, não podem prosseguir até uma identificação. Para o primitivo, a magia é reificada. No cinema, ela é liquefeita, transmutada em emoção. Inversamente, a percepção dos primitivos é prática: ela atinge o real, passa por ele e o transforma concretamente. A percepção do filme se faz dentro de uma consciência que sabe que a imagem não é a vida prática (2014, p. 187).

186

A magia transmutada em emoção se dá ao longo de todo o enredo de

Meia-noite em Paris, porém é na duplificação dos sentimentos do espectador em

Gil que a mítica envolvendo Paris se instaura no filme.

Há dois episódios, nos primeiros instantes do seu regresso aos anos

1920, em que Woody Allen faz close95 de Gil.

Figura 48: Gil em close. Montagem com cenas de Meia-noite em Paris. 23’05’’ e 28’10’’,

respectivamente.

No primeiro deles, o personagem espelha a fisionomia do público e

sintetiza as palavras de Zelda Fitzgerald:

Zelda: You have a glazed look in your eye. Stunned. Stupefied. Anesthetized. Lobotomized (Meia-noite em Paris, 2011, cap 3).96

Já o segundo close é acompanhado do primeiro monólogo do

personagem:

Gil: Gil, ok, just, take it easy. Step it back, baby. You had a big night. Fitzgerald. Hemingway. Papa! You got to… We never said where we’re gonna meet (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 4).97

Incrédulo com os acontecimentos, o personagem tem um segundo

monólogo:

Gil: I’m Gil Pender. I was with Hemingway and Picasso. Pablo Picasso and Ernest Hemingway. I’m Gil Pender from Pasadena.

95 Close: Enquadramento fechado do plano, mostrando uma parte de um objeto ou de uma

pessoa (frequentemente o rosto). 96 Zelda: Está com um olhar vidrado. Atordoado. Estupefato. Anestesiado. Lobotomizado (Meia-

noite em Paris, 2011, cap. 3). 97 Gil: Calma ai, Gil. Relaxe. Acalma-se, cara. Você teve uma grande noite. Fitzgerald.

Hemingway. Papa! Você precisa... Não combinamos onde nos encontraríamos (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 4).

187

Cub Scouts. I failed freshman English. But Gil Pender has his novel with Gertrude Stein. Boy, that girl was so lovely (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).98

A tentativa racional de compreensão do que se passa com o personagem

é muito bem traduzida nos seus monólogos, pois, concomitantemente, ele tenta

organizar seu pensamento e manter a calma, o público percebe que a descrença

de Gil é similar àquela vivenciada por aqueles que visitam Paris pela primeira

vez. Paris é a responsável por permitir a um homem ordinário como Gil e o

espectador vivenciar eventos extraordinários.

Vale ressaltar que a oposição entre idealismo e materialismo faz com que

a cidade seja dupla não só em tempos distintos, mas também em estilos de vida

possíveis de serem encontrados lá. O que torna Gil o duplo do espectador (e não

Inez ou Paul) é a busca por uma utopia e concretização de um sonho, todavia a

cidade também pode ser apreciada por quem tem uma postura mais capitalista,

com a mesma comoção.

Se por um lado Edgar Morin afirma que o cinema não cria um mito capaz

de intervir na prática do homem, por outro lado, o mito de Paris, analisado nesta

tese, nasce da literatura e, por esse motivo, interfere na vida prática, como

Balzac e Hemingway já haviam salientado nos séculos XIX e XX.

V. Dialogismo

Ernest Hemingway, personagem construído por Woody Allen, é – como já

apresentado na seção II deste capítulo – mais próximo da imagem que o público

tem dele em 1940, porém sua presença em Meia-noite em Paris, mesmo que

deturpada, é imprescindível.

Na sua primeira aparição, quando Scott Fitzgerald o apresenta para Gil,

há um instante de suspense, pois, como a imagem abaixo retrata, a câmera

acompanha os movimentos de Scott enquanto ele se dirige a Ernest, oculto até

sua primeira fala. Assim como Gil, que distraidamente não se importa em dirigir

98 Gil: Sou Gil Pender. Eu estive com Hemingway e Picasso. Pablo Picasso e Ernest Hemingway.

Sou Gil Pender de Pasadena. Escoteiro lobinho. Reprovado em inglês no primeiro ano. Mas Gil Pender deixou seu romance com Gertrude Stein. Nossa, aquela garota era tão encantadora (Meia-noite em Paris, 2011, cap. 7).

188

o olhar para o interlocutor de Fitzgerald, o espectador se surpreende com a

presença de Hemingway no enredo.

Figura 49: Gil conhece Hemingway. Montagem com cenas de Meia-noite em Paris. 24’03’’ e 24’09’’, respectivamente.

Marcel Martin salienta que “a elipse tem por objetivo dissimular um

instante decisivo da ação para suscitar no espectador um sentimento de espera

ansiosa, o chamado suspense” (2013, p. 86). Hemingway ser o único

personagem histórico apresentado no longa por meio de uma elipse não é uma

eventualidade, já que inegavelmente Woody Allen buscou inspiração para sua

obra no romance biográfico do autor norte-americano, podendo, inclusive, ser

considerada uma adaptação.

É significativo ainda, para o público admirador da produção

cinematográfica de Woody Allen, o suspense na revelação da participação de

Hemingway no filme, uma vez que o diretor trabalhou em Manhattan com Mariel

Hemingway, neta de Ernest.

São inúmeras as aproximações possíveis entre Paris é uma festa e Meia-

noite em Paris, mesmo o filme tendo roteiro original e, portanto, não sendo uma

transposição midiática do romance. Não é objetivo desta tese analisar a

apropriação do texto de Hemingway por Woody Allen, nem a sua adaptação para

as telas de cinema, contudo, é fundamental a explanação de alguns elementos

marcantes em ambas as produções artísticas, como o flâneur e o clima chuvoso

de Paris.

A chuva tão apreciada por Gil é usada como metáfora também por

Hemingway, como já foi apresentado e analisado no capítulo anterior.

Entretanto, diferentemente do romance, em que ela é usada para caracterizar a

cidade e o momento histórico vivido pelos personagens, no filme ela é

empregada com o significado mais próximo daquele relacionado ao seu símbolo.

189

Como símbolo, a chuva representa purificação, renovação da vida, aquela

que fecunda e dá força vital. De acordo com Gaston Bachelard, “em certas horas,

o ser humano é uma planta que deseja a água do céu” (2013, p. 161), pois

a água do céu, a fina chuva, a fonte amiga e salutar dão lições mais diretas que todas as águas dos mares. Foi uma perversão que salgou os mares. O sal entrava um devaneio, o devaneio da doçura, um dos devaneios mais materiais e mais naturais que existem. O devaneio natural reservará sempre um privilégio à água doce, à água que refresca, à água que dessedenta (BACHELARD, 2013, p. 162).

É em busca dessa saciedade que Gil desenvolve o hábito de caminhar

por Paris e anseia tanto para que a chuva o acompanhe. O devaneio do

personagem é afável, uma vez que ele o leva até o caminho da inspiração

poética. A chuva, nesse contexto, é sinônimo do insight necessário para Gil se

tornar de fato um romancista como seus ídolos.

A flânerie pela qual Gil passa é sintetizada por Baudelaire em um dos seus

poemas em prosa, denominado Les Foules, quando diz:

Il n'est pas donné à chacun de prendre un bain de multitude: jouir de la foule est un art; et celui-là seul peut faire, aux dépens du genre humain, une ribote de vitalité, à qui une fée a insufflé dans son berceau le goût du travestissement et du masque, la haine du domicile et la passion du voyage.

Multitude, solitude: termes égaux et convertibles pour le poète actif et fécond. Qui ne sait pas peupler sa solitude, ne sait pas non plus être seul dans une foule affairée.

Le poète jouit de cet incomparable privilège, qu'il peut à sa guise être lui-même et autrui. Comme ces âmes errantes qui cherchent un corps, il entre, quand il veut, dans le personnage de chacun. Pour lui seul, tout est vacant; et si de certaines places paraissent lui êtres fermées, c'est qu'à ses yeux elles ne valent pas la peine d'être visitées.

Le promeneur solitaire et pensif tire une singulière ivresse de cette universelle communion. […] (BAUDELAIRE. Disponível em: https://www.poesie-francaise.fr/charles-baudelaire/poeme-les-foules.php. Acesso em: 20 dez 2018.).99

99 Não é dado a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença das massas populares é uma arte. E somente ele pode fazer, às expensas do gênero humano, uma festa de vitalidade, a quem urna fada insuflou em seu berço o gosto da fantasia e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão por viagens. Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão também não sabe estar só no meio de uma multidão ocupadíssima.

190

Somente o poeta compreende o paradoxo encontrado na solidão das

multidões e apenas ele é sensível à encantadora melancolia (spleen) emanada

por ela. O flâneur é, desse modo, um estado de espírito característico do poeta-

escritor e, por esse motivo, é que Balzac afirma ser ele o único realmente feliz

em Paris, Hemingway o associa ao fazer poético e Gil tem seu hábito de flâneur

tão incompreendido pelos demais personagens.

Sendo assim, Paris favorece a trajetória daqueles que almejam ser

poetas, não só por sua geografia facilitar a prática do flâneur, como também por

seu clima chuvoso contribuir para a inspiração poética.

Faz-se mister evidenciar que Balzac em A menina dos olhos de ouro já

apresentava o artista parisiense como o incompreendido pelos burgueses e

nobres e a cidade como a Vênus, sua musa.

Segundo Balzac, classe que busca pelo reconhecimento de Paris para

atingir o sucesso, o artista perde sua razão por sua paixão ser desmedida e

incondicional. Nas palavras do autor:

O artista é uma exceção: sua ociosidade é um trabalho, um repouso; ele é, alternadamente, elegante e desleixado; veste, a seu bel-prazer, a camisa do operário, e decide-se pelo fraque trajado pelo homem da moda; não está sujeito a leis: ele as impõe. [...] O artista é sempre grande. Ele tem uma elegância e uma vida próprias, porque nele tudo reflete a sua inteligência e a sua glória. Tanto quantos forem os artistas, tantas serão as vidas características por ideias novas. Neles, a fashion não deve ser imposta: esses seres indomáveis moldam tudo a seu gosto. Se tomam posse de um símio é para transfigurá-lo. Dessa doutrina deduz-se um aforismo europeu: um artista vive como quer, ou... como pode (2013, p. 31 e 32).

Entretanto, em Meia-noite em Paris, a jornada de Gil culmina em uma

epifania que o faz ter um desfecho diferenciado, apesar de ter os mesmos

anseios dos artistas balzaquianos.

O poeta goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de qualquer um. Só para ele tudo está vago; e se certos lugares lhe parecem fechados é que, a seu ver, não valem a pena ser visitados. O passeador solitário e pensativo goza de uma singular embriaguez desta comunhão universal. (Trad. Luís Garcia. Disponível em: https://iedamagri.files.wordpress.com/2014/07/baudelaire-spleen-de-paris.pdf. Acesso em: 20 dez 2018).

191

Durante todo o enredo de Meia-noite em Paris, a reflexão e a discussão

sobre a Idade de Ouro são apresentadas como epifânicas. Segundo Bakhtin,

uma das sensações de tempo mais influentes na história da literatura é a

“inversão histórica”.

Definindo-a de modo um tanto simplificado, pode-se dizer que aí se representa como já tendo existido no passado aquilo que em verdade pode ou deve ser realizado apenas no futuro, aquilo que, em essência, é um objetivo, um dever ser e em hipótese nenhuma uma realidade do passado. [...] Para investir de realidade esse ou aquele ideal, concebe-se tal ideia como já tendo existido outrora e em ‘estado natural’ na Idade de Ouro, ou o concebem como existente no presente num reino dos confins, além-mar, se não na terra ao menos debaixo dela, se não debaixo da terra ao menos no céu (2018, p. 92 e p. 93).

A inversão histórica é a grande responsável pelo dialogismo entre o filme

e o romance Paris é uma festa, pois tanto em um como no outro o saudosismo

pelos anos 1920 parisiense é evidente, já que assim como durante o enredo do

romance de Ernest Hemingway esse tempo e esse espaço são inseparáveis, no

longa de Woody Allen há a valorização e a busca pelo mesmo cronotopo.

Para Bakhtin, o cronotopo é a “interligação essencial das relações de

espaço e tempo como forma artisticamente assimiladas na literatura. [...] importa-

nos nesse termo a expressão de inseparabilidade do espaço e do tempo” (2018,

p. 11). Entretanto, apesar de espaço e tempo serem indissociáveis e do

cronotopo ser analisado pelo teórico russo como uma “categoria de conteúdo-

forma da literatura” (idem), na linguagem cinematográfica há o emprego da

mesma categoria narrativa.

Se, ainda nas palavras de Bakhtin, “na literatura o princípio condutor no

cronotopo é o tempo” (2018, p.12), no cinema “é o tempo, e apenas ele, que

estrutura de maneira fundamental e determinante toda a narrativa

cinematográfica” (MARTIN, 2013, p. 245).

A inversão histórica e a Idade de Ouro são, desse ponto de vista,

relevantes para a produção de sentindo das obras, pois o tempo – dominante no

cronotopo literário e cinematográfico – sugestiona a percepção do espaço. Paris

não é a mesma em épocas diferentes.

192

Em Paris é uma festa, Hemingway mais do que retratar 1920 vivido na

cidade, retrata o tempo da sua juventude. No epílogo de sua biografia, ele diz:

That was the end of the first part of Paris. Paris was never to be the same again although it was always Paris and you changed as it changed. We never went back to the Vorarlberg and neither did the rich (HEMINGWAY, 1994, p. 126).100

O paradoxo entre Paris mudar, mas continuar sendo a mesma revela a

modificação do personagem que passa a observar a cidade com outros olhos, a

vivenciá-la com outras expectativas e a transfiguração da cidade que, em um

ciclo sem fim, transparece uma nova face.

Esse paradoxo é semelhante com o notado por Gil no final do longa,

quando tem sua epifania. A fuga para a Idade de Ouro permite que ele revisite a

cidade na qual está hospedado e reveja aspectos da sua própria vida, tornando

Paris não só diferente nos anos 1920 e 2011, mas também uma no começo do

filme e outra no seu final.

É essa percepção do cronotopo que faz de Gil e também de Hemingway

amantes da cidade que não se deixam deslumbrar fulminantemente e os

diferenciam dos arrivistas balzaquianos facilmente influenciados pelos desígnios

e exigências de uma Vênus implacável.

As constantes modificações e manutenções pelas quais o cronotopo

Paris passa é o que permite a ela se perpetuar na história, não só como um

paradigma de metrópole, tanto do ponto de vista social como do ponto de vista

econômico, mas também como uma deusa que se transfigura para transcender.

É essa perpétua transfiguração de Paris que leva à conclusão desta tese.

100 Assim terminou a primeira parte da minha vida em Paris. Paris nunca mais seria a mesma

para mim, embora continuasse sendo a Paris de sempre e mudássemos de acordo com as modificações que nela se estavam operando. Jamais voltamos às montanhas do Vorarlberg, nem os tais ricos o fizeram (Tradução de Ênio Silveira, 2013, p. 250).

193

Considerações Finais

Deus sabe que, quando a primavera chega a Paris, o mais

humilde dos mortais deve sentir-se no paraíso.

Henry Miller

Dolf Oehler disse em Terrenos vulcânicos que

O mito de Paris, tal qual se constituiu a partir da Idade Média [...]

comporta grosso modo quatro aspectos principais ou, se

quisermos, quatro dimensões:

1. a dimensão urbana e demográfica: Paris, a cidade por

excelência, a “cidade fervilhante”;

2. a dimensão intelectual: Paris, centro da civilização, capital

das luzes e das artes;

3. a dimensão histórica: Paris, centro da revolução [...];

4. a dimensão hedonista: Paris, capital do prazer [...].

Por fim, já no século XIX, um quinto aspecto vem somar-se a

estes: Paris, centro da nova aristocracia financeira, capital do

Burguês, dando sequência ao mito da Paris revolucionária,

delineia-se um mito que triunfará quinze anos após a morte de

Heine, por ocasião da Comuna: a Paris operária (2004, p. 129 e

130).

Entretanto, como o próprio estudioso alerta, a dissociação das cinco

dimensões do mito parisiense não é viável, já que são estreitamente ligadas

entre si, mesmo quando recebem ênfases diferentes dependendo da época em

que são retomadas.

Desse ponto de vista e daquele desenvolvido ao longo dessa tese, é

possível afirmar que Paris é mais do que uma capital europeia ou uma

megalópole. A cidade se constitui como um mito, principalmente ao longo do

século XIX e XX, por fazer parte do imaginário coletivo e por ser a Vênus que

ora proporciona o Caos, ora o Cosmo, mas que sempre habita o inconsciente,

atraindo e seduzindo os homens.

194

Além de ser o nome da deusa do amor no panteão romano (equivalente

a Afrodite no panteão grego), Vênus também é evocada quando se refere à

astronomia. Segundo planeta do Sistema Solar em ordem de distância do Sol,

Vênus é o segundo objeto mais brilhante no céu noturno e substancialmente

mais quente do que a Terra. Brilho e ardência são características comuns tanto

entre a deusa e o planeta batizado em sua homenagem, quanto entre eles e a

capital francesa.

Se a deusa é vista como a mulher imponentemente sedutora que

conquista fulminantemente a todos com a sua beleza e majestade e o planeta é

ao mesmo tempo abrasador (por isso inabitado) e uma referência no céu

noturno, Paris é a síntese da união das duas Vênus.

Em cada uma das obras analisadas nessa tese há uma dessas visões

sobre Paris, direcionadas tanto por aspectos ideológicos quanto por estilo de

autor e de época. No século XIX, a fervilhante capital francesa espelhava em

suas ruas e por meio da sua multidão, a modernidade. Compagnon afirma que

a modernidade de Baudelaire (contemporâneo e conterrâneo de Balzac) é

desesperada, pois arrancada da catástrofe e do desastre provoca o sentido

exato do spleen (2010, p. 17). Já durante o início da segunda metade do século

XX, a mesma cidade é paradoxalmente vista como o oásis afastado dos

desastres sociais, políticos e econômicos ocasionados pela Primeira Guerra

Mundial e no século seguinte retratada como uma localidade áurea, onde o

paradoxo passa a ser temporal e onde o descompasso do eu com o mundo faz

um sonho se concretizar

Lutèce, a Paris de Balzac, analisada no primeiro capítulo por meio da

novela A menina dos olhos de ouro, é destoante daquela capital francesa pré-

concebida por seus personagens e seus leitores. O autor desestabiliza e choca

o leitor ao descrever a cidade como um inferno dantesco, por meio da sua

escolha vocabular e de seu tom cáustico desconfortável, ocasionando uma

postura de insatisfação e, até mesmo, incredulidade diante da sua distópica

novela.

Tornando-se um arquétipico de cidade e fixando-se como espaço das

possibilidades, a Paris balzaquiana se transfigura em mito por meio do discurso

do autor que aglutina em um só cenário a dualidade paradoxal inerente à cidade.

195

Na novela de Balzac, Paris apresenta não só o spleen baudelairiano como

também a dualidade da Vênus, ora Urânia, ora Pandêmia. Quando Urânia e

cidade-luz, ela é celestial e idealizada a partir do imaginário coletivo, sinônimo

do padrão ideológico a ser seguido quando se trata principalmente de aspectos

sociais, da luta pela conquista de diretos humanos e democráticos; espaço onde

todos os sonhos são possíveis de serem concretizados, local onde artistas

encontram a inspiração necessária para a criação de suas obras. Quando cidade

infernal e Pandêmia, Paris é desvirtuosa e originadora da perturbação, do

tumulto e do tormento; sinônimo de corrupção, destrói as esperanças de sucesso

e reconhecimento, arruína com as ilusões de felicidade e satisfação pessoal.

Altamente traiçoeira, imoral e indecorosa, a cidade balzaquiana

dominada pela cor amarela, que superficialmente demonstra apenas a riqueza

histórica da França, em A menina dos olhos de ouro, sinaliza a doença moral

que perverte seu patrimônio em depravação diabólica e sintetiza sobretudo a

motivação que faz tanto os parisienses quanto os estrangeiros quererem

dominar essa deusa endiabrada: a busca por ouro e prazer.

Essa busca por ouro e prazer é reapresentada por Ernest Hemingway em

Paris é uma festa, pois assim como alguns de seus compatriotas, ao final da

Primeira Guerra Mundial, o autor e jornalista se muda para a capital francesa na

tentativa de lá encontrar não só inspiração como também condições financeiras

e psicológicas para produzir seus textos.

O cenário absolutamente distópico do período pós-guerra, apesar de toda

a degradação moral e até mesmo econômica parisienses já indicadas por

Balzac, ao contrário do que ele apresenta não formam, no início do século XX,

um lodaçal, mas um lugar idílico onde o arquétipico da terra prometida será

retomado e atualizado.

Altamente contaminado por lembranças afetivas e saudosistas, o discurso

do romance autobiográfico de Hemingway revela ao leitor uma perspectiva

utópica de Paris. Em sua dupla acepção (eutopia – o bom lugar – outopia – o

não-lugar), a idealização utópica da capital francesa reanima no leitor as

esperanças de realização dos desejos daqueles que sonham em conhecer e

habitar Paris, anteriormente desfeitas por Balzac.

Enquanto eutopia, a capital francesa de Hemingway é o local onde a fome,

ocasionada pela crise econômica do pós-guerra, é suprimida pela abastança

196

cultural ofertada pela cidade. Paris é o bom lugar onde a disposição da juventude

é fundamental para a apreciação das efervescentes festas ambulantes

presentes na cidade. Espaço onde, apesar do mau tempo típicos em certos

períodos do ano, o flâneur e o voyeur podem circular livremente observando

cada detalhe do cotidiano. Em Paris é uma festa, a pobreza não é empecilho

para desfrutar do ouro e do prazer.

Como outopia, Paris dos anos 1920 é um lugar inacessível por ser um

cronotopo, ou seja, a simbiose de um tempo e de um espaço determinados. Essa

confluência entre época e localidade recria o mito da Idade de Ouro, que no

inconsciente coletivo é correspondente não só à utopia, mas também à

imortalidade e à pureza do tempo do princípio da humanidade.

É na Idade de Ouro que Gil, personagem de Meia-noite em Paris, terceira

obra analisada nessa tese, encontra um entre-tempo e um entre-lugar e, por

meio da empatia do público e da fotogenia do longa-metragem, projeta diante

dos olhos do espectador aquilo que está presente somente no inconsciente

coletivo, tornando o paradoxo espaço-temporal a concretização de um anseio ao

mesmo tempo íntimo e comunitário.

Segundo Jung (2000), o inconsciente coletivo se distingue do pessoal por

ser hereditário. Sendo assim, a imagem de Paris como local onde o homem

busca por ouro e prazer (utópicos ou distópicos) é independente da cultura,

ideologia ou época em que se vive, pois, sendo um arquétipo, Paris é um

paradigma.

A instabilidade entre o real e o delírio alcoólico de Gil ou entre o real e o

onírico presentes no filme de Woody Allen permitem que tanto o protagonista,

que de fato vivencia os acontecimentos, como o espectador que tem aspiração

de vivê-los, encontrem em Paris um refúgio sincronicamente heterotópico e

transcendental, sobrenatural.

Uma das cidades mais visitadas no mundo e uma daquelas mais

procuradas por turistas, Paris sem dúvida continua sendo na pós-modernidade

a heterotopia de muitos homens. No entanto, ao contrário do que acontecia no

período entre o século XIX e o século XX, no qual a capital francesa era um

império político-cultural e uma influência ideológica fortíssima para o Ocidente,

na contemporaneidade de elaboração desta tese, a Vênus-Paris divide sua

soberania com outros lugares ao redor do mundo que se não chegam a ser

197

transcendentais e, portanto, míticos como ela, são ao menos heterotopias e

potências político-econômicas que interferem no imaginário coletivo, como

alguns personagens de Meia-noite em Paris exemplificam.

Talvez Paris tenha que dividir a atenção dos homens com outras cidades,

porém é indubitável que a Vênus-Paris continua a exercer seu poder de sedução,

como aconteceu recentemente com a inauguração de um novo museu na cidade,

o Atelier des Lumières, inaugurado em abril de 2018.

Com proposta de exposições imersivas, o Atelier projeta por toda sua

extensão as pinturas dos artistas, permitindo ao público a sensação única de

ingressar às obras e ser totalmente envolvido pelas telas. Sua tecnologia de

projeção avançada e sofisticada é acompanhada de uma trilha sonora

cuidadosamente escolhida para intensificar a experiência visual provocada pela

explosão de luz e cores.

(Exposição Gustav Klimt)

Figura 50: [Sem título]. [Sem autor]. Fotografia. Disponível em: https://www.cntraveler.com/story/pariss-first-digital-museum-of-fine-art-latelier-des-lumieres-to-open-in-2018. Acesso em: 06 abr 2019.

A exposição de abertura do museu homenageou o centenário de morte

de Gustav Klimt e invadiu os mais de 3 mil m² do local com o amarelo

deslumbrante do ouro e do prazer parisienses desfrutados por Ernest

Hemingway e caracterizados por Balzac.

Em 2019, o mesmo Atelier, talvez fascine o visitante ao dedicar suas luzes

a Vincent van Gogh e talvez o surpreenda com sua sobreposição no mesmo

198

espaço e tempo das telas do artista e do corpo daqueles que passeiam pelo

museu.

(Exposição van Gogh)

Figura 51: [Sem título]. [Sem autor]. Fotografias. Disponíveis em: https://www.atelier-lumieres.com/en/van-gogh-starry-night e https://veja.abril.com.br/entretenimento/van-gogh-eletronico/, respectivamente.

Assim como Gil, no cartaz europeu de divulgação do filme, aqueles que

se dirigem ao museu e têm a mesma predisposição do personagem de Meia-

noite em Paris também podem habitar as telas do artista holandês e talvez as

terem como inspiração para seus próprios devaneios e divagações.

Além de em Noite estrelada, o paradoxo espaço-temporal vivido por Gil e

aparentemente irreal para os espectadores do filme, talvez possa ser constatado

por inúmeros homens ao redor do mundo por meio de uma rotineira leitura de

jornal.

(Paradoxo temporal)

Figura 52. Stéphane Mahé. [Sem título]. Figura XX: Kamil Zihnioglu. Fotografia. [Sem Título]. Fotografia. Disponíveis em: https://www.theguardian.com/world/gallery/2018/dec/03/words-on-the-street-graffiti-of-the-paris-protests-in-pictures. Acesso em: 4 fev 2019.

199

Soldados napoleônicos, Louis XVI, Liberdade guiando o povo (tela de

Eugène Delacroix de 1830), a Revolução são alguns dos exemplos divulgados

pelos mais importantes jornais do mundo que talvez comprovem o paradoxo

temporal possível de ser encontrado em Paris por qualquer cidadão que se renda

à Vênus Urânia e talvez também flagrem não só manifestações populares, mas

também as chamas da Vênus Pandêmia que por meio da mesma coloração

amarela representativa do ouro e do prazer enfatiza o emblema dos

manifestantes Gilets Jaunes, durante os protestos contra o governo de

Emmanuel Macron, em 2018.

(Liberdade, Igualdade e Fraternidade I e II)

Figura 53. Eugène Delacroix. Figura 54. Stephane Mahe. Liberdade Guiando o povo. Oléo [Sem título]. Fotografia. sobre tela. 260 x 325 cm. Museu Disponível em: http://vickielester.com/ do Louvre. 2015/01/11/liberte-egalite-freternite-paris-

photograph-by-stephane-mahe-reuters/ Acesso em: 4 fev 2019.

Durante as manifestações o alerta involuntário e imediato transmitido pela

cor amarela, passou a ser sinônimo do empenho dos franceses por mudanças

sociais urgentes. Entretanto, talvez a aproximação do Gilets Jaunes com a

função imperativa de sua cor símbolo, permita que sua mensagem seja não só

transmitida categoricamente como também, somada à postura ofensiva de seus

participantes, seja característica da instabilidade e do alvoroço tipicamente

causados pelo caos presente no inferno parisiense, principalmente quando o

200

fogo se prolifera nas imagens denunciando a violência envolvida nos

acontecimentos e revelando a face da Vênus Pandêmia.

(Gilets Jaunes)

Figura 55: Kamil Zihnjoglu. [Sem título]. Fotografia. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/11/crise-dos-coletes-amarelos-as-fases-do-protesto-inedito-na-franca.ghtml Acesso em 4/2/19

(Inferno parisiense)

Figura 56: [Sem autor]. [Sem título]. Fotografia. Disponível em: https://cdn-istoedinheiro-ssl.akamaized.net/wp-content/uploads/sites/17/2018/12/de9ff01866fb45b0f35ec7fa43bd6d66bda0868f-768x432.jpg. Acesso em: 24 mar 2019.

No entanto, independentemente do apreço que se possa ter por Paris,

quando o noticiário informa sobre os atentados ocorridos em 7 de janeiro de

2015, ao jornal satírico Charlie Hebdo e em 13 de novembro de 2015, dia dos

atentados terroristas à casa de espetáculo Bataclan, o choque e a comoção são

inevitáveis.

Vítima do totalitarismo islâmico, Paris foi invadida pelo caos não

compatível com as suas diretrizes democráticas. Diferentemente do cenário

criado por seus próprios cidadãos três anos após os ataques extremistas, o

inferno distópico de 2015 impacta por ser intolerante e, portanto, avesso à

Liberdade e Igualdade constantemente buscadas por aqueles que vivem em

Paris.

Paris sitiada por policiais e militares, rodeada por ambulâncias e

silenciada pelo alto volume das sirenes dos carros destinados ao atendimento

201

de vítimas da violência infundada dos irmãos Saïd e Chérif Kouachi e de Amedy

Coulibaly e do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, contrasta até mesmo

com a distorção de valores dos habitantes da cidade exposta por Balzac, pois,

mesmo sendo uma sociedade formada e dominada por oportunistas, a Paris

balzaquiana aceita e permite todas as possibilidades: nela há espaço para todas

as esperanças e ambições; para todas as manifestações artísticas e para todos

os discursos. Entretanto, talvez seja por ser tolerante às diferenças e às

individualidades e, concomitantemente, espaço de debates sociais e políticos

que a Vênus-Paris foi massacrada por aqueles que não conhecem a

Fraternidade proporcionada por ela.

(Caos parisiense)

Figura 57: [Sem título]. Christian Hartmann. Fotografias. Disponíveis em:

https://g1.globo.com/mundo/noticia/tiros-em-paris-deixam-feridos-diz-tv.ghtml e

https://veja.abril.com.br/mundo/paris-inicia-obras-contra-ataques-terroristas-na-torre-eiffel/,

respectivamente. Acesso em: 4 fev 2019.

Vítima ou palco do inferno, sedutora ou fulminante, Urânia ou Pandêmia,

Caos ou Cosmo, talvez mais admirada nos séculos XIX e XX, talvez ainda

preferida de muitos, presente nas páginas dos jornais ou no discurso literário,

contudo, sempre a mesma cidade, sempre a mesma deusa transfigurada,

sempre Paris.

Durante os três capítulos que compõem esta tese e por meio das três

obras escolhidas como corpora, buscou-se analisar e discutir as diferentes

visões da capital francesa apresentadas ao público por três grandes artistas

representantes tanto dos contextos históricos de suas épocas, quanto dos

padrões ideológicos difundidos em cada uma delas. O principal objetivo do

202

estudo aqui realizado foi relacionar as caracterizações de Paris feitas por Balzac,

Hemingway e Woody Allen com aquela fixada no inconsciente coletivo.

Buscou-se ainda, ao longo destas páginas, evidenciar que Paris, por meio

do discurso literário e cinematográfico deixa de ser um costumeiro espaço onde

as ações de personagens acontecem para se elevar a um arquétipo,

transfigurando-se em mito.

Além disso, procurou-se, nessas últimas páginas, esclarecer que, apesar

de nessa tese o discurso ficcional ser o fio condutor para a aproximação entre

Paris e Vênus, as versões da cidade desenvolvidas na novela, no romance e no

longa-metragem podem não estar distantes daquelas as quais se tem acesso

pelos jornais e pela mídia em geral.

Se nas obras literárias e ficcionais aqui expostas e investigadas Paris é

sempre um mito, na realidade do leitor desta tese e em outros discursos (graças

à sua consolidação no imaginário coletivo) talvez ela também seja.

Viver em Paris ou chegar em Paris, flanar por suas ruas, ser surpreendido

pela movimentação dos seus habitantes ou ser um de seus habitantes, admirar-

se com suas belezas e partilhar da adoração dessa deusa com Balzac,

Hemingway, Woody Allen e tanto outros artistas e anônimos ao redor do globo,

faz com que todos sejamos súditos da mesma deusa Vênus-Paris e tenhamos

no imaginário coletivo a Cidade-Luz registrada com a mesma intensidade e

grandiosidade daquela dos sonhos de Leonid Afremov.

Figura 58: Leonid Afremov. Paris of my dreams. Óleo sobre tela. Disponível em:

https://afremov.com/paris-of-my-dreams-palette-knife-cityscape.html. Acesso em 6 abr 2019.

203

Paris não é como Bangkok, Londres, Nova York, Tóquio, Teerã ou

qualquer outra metrópole no globo, por mais que algumas dessas sejam mais

visitadas ou mais prestigiadas no século XXI, porque ela é Vênus transfigurada

em uma megalópole. É por essa transfiguração e todos os aspectos

apresentados e analisados ao longo desta tese que todos nós sempre teremos

Paris.

204

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Filmografia

MEIA-NOITE em Paris. Direção de Woody Allen. Estados Unidos: Gravier Production, 2011. 1 DVD (94 min), son., color.

WOODY Allen: um documentário. Direção de Robert B. Weide. Estados Unidos: HanWay, 2012. 1 DVD (113 min), son., color.