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1 OS MULTILETRAMENTOS 1 E A CONSTRUÇÃO MULTIMODAL DE SENTIDO 2 Themis Rondão Barbosa (UEMS) 3 [email protected] 4 5 RESUMO 6 As novas formas de comunicação em função da digitalidade e as diversidades cul- 7 turais e linguísticas implicam mudanças tanto no contexto da vida pessoal e pública 8 quanto no âmbito do trabalho. Segundo Cope e Kalantzis (2000), os reflexos da cone- 9 xão global por meio da internet e o aumento da diversidade local são fatores que tor- 10 nam imprescindível saber negociar diferenças nas diversas comunidades, sejam reais 11 ou virtuais, das quais participamos. Para tanto, propuseram uma pedagogia que con- 12 sidera os efeitos cognitivos, culturais e sociais decorrentes dos variados contextos e 13 culturas, a pedagogia dos multiletramentos. Nesse sentido, o presente trabalho visa a 14 discutir, por meio de um breve relato de experiência, o que e como seria necessário en- 15 sinar neste contexto em que os modos de significação são múltiplos e integrados e exi- 16 gem uma construção de sentido cada vez mais multimodal. 17 Palavras-chave: Multiletramentos. Construção de sentido. Multimodalidade. 18 19 As mudanças na sociedade e nas formas de comunicação apontam 20 novos caminhos para o ensino, uma vez que as necessidades de aprendi- 21 zagem já não são as mesmas. Trata-se de um cenário de novos hábitos e 22 valores e principalmente de novas formas de interação (real e virtual). É 23 com base nessas transformações que surge a teoria dos multiliteracies ou 24 multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2000). 25 A escolha do termo multiletramentos é motivada pela multiplici- 26 dade de canais de comunicação e a grande diversidade cultural e linguís- 27 tica. O termo envolve modos de representação que variam de acordo com 28 a cultura e o contexto, sendo mais amplos que apenas a língua (COPE; 29 KALANTZIS, 2000). 30 De acordo com Cope & Kalantzis (2000), os novos meios de co- 31 municação estão remodelando a maneira como usamos a linguagem, 32 sendo o significado construído de modo cada vez mais multimodal. Dis- 33 cutem, também, o aumento da diversidade local e da conectividade glo- 34 bal, que nos traz a necessidade de “negociar diferenças todos os dias, em 35 nossas comunidades locais e em nossas vidas profissionais e comunitá- 36 rias cada vez mais globalmente interconectadas” (Idem, p. 6). 37

os multiletramentos - e a construção multimodal de sentido

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OS MULTILETRAMENTOS 1 E A CONSTRUÇÃO MULTIMODAL DE SENTIDO 2

Themis Rondão Barbosa (UEMS) 3 [email protected] 4

5

RESUMO 6

As novas formas de comunicação em função da digitalidade e as diversidades cul-7 turais e linguísticas implicam mudanças tanto no contexto da vida pessoal e pública 8 quanto no âmbito do trabalho. Segundo Cope e Kalantzis (2000), os reflexos da cone-9 xão global por meio da internet e o aumento da diversidade local são fatores que tor-10 nam imprescindível saber negociar diferenças nas diversas comunidades, sejam reais 11 ou virtuais, das quais participamos. Para tanto, propuseram uma pedagogia que con-12 sidera os efeitos cognitivos, culturais e sociais decorrentes dos variados contextos e 13 culturas, a pedagogia dos multiletramentos. Nesse sentido, o presente trabalho visa a 14 discutir, por meio de um breve relato de experiência, o que e como seria necessário en-15 sinar neste contexto em que os modos de significação são múltiplos e integrados e exi-16 gem uma construção de sentido cada vez mais multimodal. 17

Palavras-chave: Multiletramentos. Construção de sentido. Multimodalidade. 18

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As mudanças na sociedade e nas formas de comunicação apontam 20 novos caminhos para o ensino, uma vez que as necessidades de aprendi-21 zagem já não são as mesmas. Trata-se de um cenário de novos hábitos e 22 valores e principalmente de novas formas de interação (real e virtual). É 23 com base nessas transformações que surge a teoria dos multiliteracies ou 24 multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2000). 25

A escolha do termo multiletramentos é motivada pela multiplici-26 dade de canais de comunicação e a grande diversidade cultural e linguís-27 tica. O termo envolve modos de representação que variam de acordo com 28 a cultura e o contexto, sendo mais amplos que apenas a língua (COPE; 29 KALANTZIS, 2000). 30

De acordo com Cope & Kalantzis (2000), os novos meios de co-31 municação estão remodelando a maneira como usamos a linguagem, 32 sendo o significado construído de modo cada vez mais multimodal. Dis-33 cutem, também, o aumento da diversidade local e da conectividade glo-34 bal, que nos traz a necessidade de “negociar diferenças todos os dias, em 35 nossas comunidades locais e em nossas vidas profissionais e comunitá-36 rias cada vez mais globalmente interconectadas” (Idem, p. 6). 37

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A digitalidade, de acordo com Kress (2000), fez com que a lin-1 guagem escrita perdesse a posição central ocupada até então na comuni-2 cação, dando espaço para outros modos de comunicação. Nesse contexto, 3 surge o termo multimodalidade, que diz respeito às diferentes maneiras 4 de expressar e formatar mensagens através de complexas combinações 5 entre mídias (um livro, uma tela), modos (fala, escrita, imagem, música) 6 e recursos semióticos (fontes, entonação, cores). Essas mídias, modos e 7 recursos semióticos a partir dos quais os sentidos são construídos mudam 8 constantemente de acordo com o contexto e são socioculturalmente defi-9 nidos (KRESS, 2003). 10

Cada modo de transmitir uma informação a representa de uma 11 maneira diferente, e dentre as múltiplas opções disponíveis, a escolha é 12 feita pelo usuário de acordo com o que considera adequado ao que deseja 13 comunicar a seu destinatário em um contexto específico. Em se tratando 14 do contexto escolar, mais especificamente, as salas de aula são “espaços 15 multimodais, locais onde os significados são construídos por muitos 16 meios diferentes, e onde recursos como gestos, olhares postura, e a dis-17 posição de objetos visuais são de importância crucial para a construção 18 de significados” (KRESS, 2005, p.13-14). 19

Ao tratar das mudanças nas formas de representação e dissemina-20 ção, Kress (2003) enfatiza as diferenças entre a escrita na página de um 21 livro e as imagens na tela do computador. O autor entende que a leitura 22 do texto impresso obedece a uma sequência pré-fixada que aponta para 23 uma leitura linear, numa ordem culturalmente determinada em que se de-24 ve ler de cima para baixo, da esquerda para a direita seguindo as linhas, e 25 através dessa leitura o leitor busca compreender o que o autor pretendia 26 ao escrever este texto. Em contrapartida, ao ler uma página da internet, o 27 leitor pode traçar seu próprio caminho de leitura e o designer da página 28 não é considerado um autor, mas um fornecedor de materiais que são es-29 colhidos visando a corresponder ao interesse desse leitor (KRESS, 2003). 30

Nesse sentido, apresento a seguir um breve relato de uma experi-31 ência em que busquei investigar como um grupo de alunos constrói sen-32 tidos de um texto multimodal. As interações se deram em aulas inglês 33 que foram preparadas segundo uma abordagem metodológica que busca 34 desenvolver o senso crítico nos alunos. 35

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Na primeira aula os alunos assistiram a um filme curta-metragem 1 chamado “Strangers – short film1” (2004), dirigido, escrito e produzido 2 por Erez Tadmor e Guy Nattiv. Antes de dar prosseguimento ao relato, 3 resumo-o brevemente, sob minha perspectiva, na tentativa de contextua-4 lizar a análise caso haja um interlocutor que não o tenha assistido. 5

Strangers conta a estória de dois jovens, um mulçumano e um ju-6 deu, que tiveram que superar o preconceito racial para escaparem de uma 7 situação conflituosa quando confrontados por uma gangue de skinheads. 8 É um texto sem diálogos, cuja mensagem é expressa através de recursos 9 como trilha sonora, expressão corporal e facial, objetos, sinais e símbo-10 los. Trata-se de um filme produzido profissionalmente com estória, em-11 bora simples, muito impactante. O filme começa com um homem entran-12 do num trem em que havia poucas pessoas e se dirigindo a um banco per-13 to de outro homem. Na cena seguinte, já se pode inferir a que grupo étni-14 co cada um dos personagens pertence; neste momento os dois se encaram 15 com ódio. O homem que entrou no trem e se sentou é judeu, o que pode 16 ser percebido no momento em que ele mostra sua corrente que tem como 17 pingente uma estrela de Davi, símbolo de Israel. O outro homem é mul-18 çumano e o que evidencia isso é o jornal que está lendo. De repente, apa-19 rece no trem um grupo de quatro skinheads o que ficou claro quando um 20 deles desenhou um símbolo nazista no jornal do mulçumano usando tinta 21 em “spray”. Outro skinhead tinha uma tatuagem na parte de trás da cabe-22 ça que também identificou o grupo. Os skinheads começaram a perturbar 23 o mulçumano, e só pararam quando o telefone do judeu começou a tocar. 24 O toque judeu do celular o identificou, e percebendo que também seria 25 ameaçado, se comunicou por olhares com o mulçumano para que fugis-26 sem. Levantaram-se rapidamente, saíram correndo e conseguiram esca-27 par. 28

Por se tratar de uma sala de alunos em diferentes níveis de profi-29 ciência linguística, as discussões orais sobre o filme foram em língua ma-30 terna. Duboc (2007) defende que as discussões em língua materna possi-31 bilitam avaliar não apenas conteúdos acabados, mas também o posicio-32 namento dos alunos, a maneira como negociam sentidos e reconstroem 33 significados. 34

Ao término do vídeo, as discussões foram iniciadas da seguinte 35 maneira: 36

1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=RpjHSiQLPmA>.

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A3: Qual a moral? 1

A4: Não entendi. 2

A2: Não entendi. 3

A1: Eles são gays. Eles vão se ver lá em cima. 4

P2: Essa é uma leitura que você fez, tá? 5

A3: Homofobia reina aí, hein? 6

A5: Eu gostei, eu gostei. O que eu entendi foi o seguinte um era mulçumano e 7 o outro era judeu, atualmente eles vivem em conflitos e chegou os skinhe-8 ads e eles tiveram que se unir pra não tomar uma surra nem acabar mor-9 rendo, então no final eles ainda são amigos. 10

P: Eles são amigos? 11

A2: Naquele momento. 12

A7: Naquele momento eles tiveram que se unir. 13

A11: Os dois são inimigos, mas eles têm um inimigo comum pra isso que eles 14 se uniram para tentar fugir, o inimigo do meu inimigo é meu amigo. 15

A12: Eu não entendi nada. 16

A13: Ahh não sei. Dá pra perceber que eles se uniram num momento de difi-17 culdade para tentar fugir dos caras que iam bater neles. 18

A14: Eu acho q eles eram gay daí veio o skinhead que não gosta de gay e que-19 ria bater nele, eles eram gays, eles estavam se olhando! 20

Observando os excertos acima, percebe-se que os alunos fizeram 21 diferentes leituras do filme, ou seja, construíram sentidos diferentes, o 22 que está ligado justamente ao que cada um traz para o ato de ler e cons-23 truir significados. Na visão de A1 e A14, os homens que primeiro apare-24 cem no vídeo “são gays”, enquanto para A11 e A5, “os dois são inimi-25 gos” e “vivem em conflitos”. Já A4 e A12, declararam não ter compre-26 endido. Confirmando que o significado não está no texto, mas no leitor 27 (MENEZES DE SOUZA, 2011). 28

P: E quem não compreendeu por que será q você não compreendeu? 29

A17: Conhecimento de mundo. 30

A20: O vídeo foi uma excelente maneira de aprender mais sobre outros povos e 31 religiões, sobre o conflito de dois diferentes grupos. O interessante foi a 32 capacidade de cada um poder enxergar diferente o que estava sendo rela-33

2 As aulas selecionadas para investigação foram ministradas pela autora da pesquisa, denominada aqui professora-pesquisadora (P), logo, as descrições e análises serão feitas em primeira pessoa.

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tado, apenas do olhar dos personagens, dos símbolos que estavam presen-1 tes e também da música que foi produzida. 2

Pelo formato do vídeo, o conhecimento linguístico dos alunos não 3 interferiu na construção de sentidos, contudo o conhecimento de mundo e 4 o conhecimento prévio cultural definiram os níveis de compreensão. Se-5 gundo Freire e Macedo (1987, p. 29 apud JORDÃO; FOGAÇA, 2007, p. 6 99), “ler não é simplesmente decodificar a palavra escrita ou a lingua-7 gem; melhor do que isso, a leitura é precedida e entretecida pelo conhe-8 cimento de mundo. A linguagem e a realidade estão dramaticamente en-9 tretecidas”. Na leitura como prática social a interpretação é o resultado 10 da interação entre o texto e os conhecimentos que o leitor traz para a ta-11 refa de ler (BAYNHAM, 1995 apud BRAHIM, 2007). E é justamente o 12 fato de o significado do texto não estar no próprio texto, mas no leitor, 13 que leva à construção de significados múltiplos. 14

A7: Eu quero saber o significado do colar dele, eu quero saber o significado 15 do colar dele! 16

A5: A estrela de Davi, a estrela de Davi, um símbolo judeu, e a musiquinha do 17 celular também. 18

P: Ahh... Vocês conhecem a música? 19

A5: É lógico. 20

A4: Eu não entendi a música. 21

A1: Musiquinha de gay. 22

P: Música de que? 23

A1: De gay. 24

A2: Lógico que não. 25

A3: É por que não é a sua cultura. 26

Observando a construção de sentidos, no trecho acima, ao declarar 27 “eu quero saber o significado do colar dele”, A7 evidencia saber que de-28 terminado artefato tem um significado no contexto do vídeo, embora não 29 saiba o que é e simboliza. Em contrapartida, A5 é capaz de identificá-lo 30 como “a estrela de Davi”, e diz que se trata de “um símbolo judeu”. Ao 31 acrescentar “e a musiquinha do celular também”, A5 revela conhecer 32 também a música, que é mais um elemento significativo usado no vídeo 33 com o objetivo de identificar o personagem como judeu. 34

P: Sobre o vídeo, qual era o idioma do vídeo? Em que língua... 35

A5: Não tinha 36

6

A15: Nenhum. 1

P: Nenhum? 2

A15: Não tinha áudio. 3

P: Não tinha áudio? 4

A15: Não, ninguém falou nada. 5

A10: Linguagem por seres humanos. 6

P: Gente, mas se ninguém falou nada então [...] como conseguiram compre-7 ender? 8

A15: É igual desenho animado, ninguém fala nada, mas você entende o que ta 9 acontecendo. 10

P: Ah, não fala nada, mas você entende o que ta acontecendo. 11

A15: Tipo Tom e Jerry. 12

[risos] 13

P: Então, mas é verdade... 14

P: Como vocês estenderam alguma coisa então se ninguém falava nada? 15

A5: Linguagem corporal. 16

A10: A aparência deles. 17

A16: Gestos, objetos. 18

P: Isso! A gente não estava ouvindo vozes, mas tinha efeitos sonoros, tinha o 19 visual, o gestual, outras linguagens, certo? 20

A2: Isso mesmo! 21

De acordo com a teoria dos multiletramentos, os significados são 22 construídos de forma cada vez mais multimodal, pois há uma “crescente 23 multiplicidade e integração de modos significativos de construção de 24 significado, onde o textual também está relacionado com o visual, o áu-25 dio, o espacial, o comportamental e assim por diante” (COPE; KALAN-26 TZIS, 2000, p. 5). Embora não houvesse falas no vídeo, outros elemen-27 tos significativos permitiram a compreensão do que estava se passado 28 nas cenas. 29

A6: Tive a sorte de entender o contexto do filme, tinham coisa que eu não ha-30 via percebido, mas outros colegas viram e comentaram, tiveram também 31 pessoas que não entenderam nada, pois não tinham conhecimento das cul-32 turas. 33

Outro aspecto importante evidenciado ao longo das discussões, 34 diz respeito à importância das negociações entre alunos, pois à medida 35

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que cada um compartilhava suas interpretações, o grupo foi construindo 1 sentidos coletivamente e posicionando-se sobre o tema, conforme relata-2 do por A6 “tinham coisa que eu não havia percebido, mas outros colegas 3 viram e comentaram”. De acordo com Menezes de Souza (2011, p. 137), 4

a produção de significação não é um ato aleatório e voluntarioso de indivíduos 5 independentes: pelo contrário, a produção de significação é um ato complexo 6 sócio-histórico e coletivo no qual cada produtor de significação pertence si-7 multaneamente a diversas e diferentes comunidades que constituem um con-8 junto social coletivo. 9

Numa perspectiva crítica de ensino os conhecimentos trazidos pe-10 los alunos são valorizados na negociação de sentidos, bem com os trazi-11 dos pelo professor. E o papel do professor é “mediar as discussões e pro-12 blematizar as diferentes perspectivas trazidas por si mesmo e pelos alu-13 nos” (JORDÃO; FOGAÇA, 2007, p. 96), levá-los a questionarem o que 14 estão lendo, enfatizando as leituras do texto através de várias perspecti-15 vas. 16

A8: Professora, oh! Minha conclusão foi os animal entraram [...] os dois eram 17 da mesma cidade, eram viado. Só que às vezes são da mesma cidade, mas 18 não se conheciam, mas se conheciam de vista. 19

A2: Num é viado gente para! 20

A8: Deixa eu falar? 21

A3: Ele também tem direito. 22

A8: Aí naquele dele pro outro e do outro pra ele, aí as pessoas entraram, e 23 como pelo jeito eles são nazistas, não gostaram da ideia... 24

A9: Deixa ele falar é a opinião de cada um. 25

A8: Daí eles não gostam de gay e acham que tem que bater nos gays, daí os 26 gays se uniram pra fugir dos homens. 27

[...] 28

A10: Eu acho que rolou xenofobia, os skinheads viram que eles eram de outro 29 país ali eles viram que eles eram de outro país, e os dois como o Marcos 30 falou, tinham uma discussão consigo por causa da religião, passaram por 31 cima disso e se uniram para fugir dos cara lá. 32

[...] 33

A11: Eu acho que no começo havia um desentendimento entre os dois, eles se 34 olhando ali parece que eles iam brigar, uma rixa, aí quando chegaram o 35 skinheads parece que eles se uniram para poder fugir. 36

P: Olha que interessante, enquanto vocês falaram que eles estavam paque-37 rando, o Felipe falou que eles estavam se olhando com ódio. 38

8

O momento de interação transcrito acima revela mais uma vez 1 que os alunos fizeram leituras diferentes de cenas do vídeo. Sobre os 2 primeiros personagens que aparecem no vídeo, A8 declara que “os dois 3 eram da mesma cidade, eram viado”, e segundo ele, pelo fato de serem 4 “gays” são perseguidos pelos skinheads que “não gostam de gay e acham 5 que tem que bater nos gays”. Na visão de A10, os dois estavam separa-6 dos “por causa da religião” e a gangue foi motivada a persegui-los por 7 preconceito étnico como relatado em “eu acho que rolou xenofobia, os 8 skinheads viram que eles eram de outro país”. A11, assim com A10, a 9 partir do comportamento dos dois homens, entende que “havia um desen-10 tendimento entre os dois” e que “se uniram para poder fugir”. Chamei a 11 atenção dos alunos para o fato de terem tido diferentes visões sobre o que 12 aconteceu no vídeo, como pode ser observado em “olha que interessante, 13 enquanto vocês falaram que eles estavam paquerando, o Felipe falou que 14 eles estavam se olhando com ódio”. Segundo Menezes de Souza (2011)3, 15 isso se deve ao fato de o significado não estar na “coisa”, mas na maneira 16 em que a comunidade de intérpretes lida com ela, pois se atribui signifi-17 cados diferentes de acordo com o contexto. 18

A fim de ampliar e aprofundar as reflexões sobre as diferenças fiz 19 os seguintes questionamentos. 20

P: Outra coisa, vocês acham que em qualquer parte do mundo que esse vídeo 21 fosse passado, as pessoas iam compreender da mesma maneira? 22

A3: Não. 23

A1: Não. 24

A: Negativo. 25

P: Negativo? 26

A18: Nem aqui na sala a gente viu da mesma maneira. 27

P: Olha que interessante o que o Rodrigo falou. Nem aqui na sala a gente en-28 tendeu da mesma maneira, imagina em outro país. 29

[...] 30

P: Então gente, a gente chega à seguinte conclusão, que pessoas diferentes 31 veem a mesma coisa de maneira diferente, vocês concordam com isso? 32

As: Concordo, sim. 33

3 Veja também: SOUZA, L. M. O professor de inglês e os letramentos no século XXI: métodos ou éti-ca? Palestra proferida na Uniderp em Campo Grande - MS, em 27 de maio de 2010.

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P: De repente eu mostro um determinado símbolo, uma determinada foto 1 aqui, pra maioria aqui pode não fazer sentido nenhum e pra alguns pode 2 ser um símbolo muito importante. 3

A15: Isso. 4

P: Por quê? Porque o que define o significado da coisa, não é a própria coisa, 5 o que define o significado da coisa... quem que é? 6

A11: Nós. 7

P: Nós mesmos, nós que atribuímos sentidos, nós que atribuímos os signifi-8 cados, certo? E muda de acordo com cada contexto. Como nós falamos, 9 se lá na Europa seria visto de outra maneira, né? Então assim... um país 10 do Oriente Médio, então cada pessoa dependendo do lugar onde ela está, 11 vai fazer uma leitura, vai atribuir significados diferentes pra aquela mes-12 ma coisa, tá? 13

[...] 14

A respeito do processo de significação no letramento crítico, Cer-15 vetti, Pardales e Damico (2001, p. 5) defendem que o significado “é 16 compreendido num contexto sócio-histórico e de relações de poder, não 17 somente como o produto ou a intenção de um autor”. Logo, é sempre 18 múltiplo e contestável, ou seja, pessoas de diferentes contextos podem 19 atribuir significados diferentes a uma mesma coisa. 20

As aulas ministradas foram pensadas numa perspectiva de multi-21 letramentos, sendo criado um contexto de aprendizado multimodal, in-22 corporando o uso de novas tecnologias. Abaixo, seguem alguns excertos 23 nos quais os alunos falam sobre a experiência vivenciada. 24

A4: As aulas me chamou atenção, pois o modo em que ela ocorreu é de uma 25 jeito que está no meu dia-a-dia, a internet. Trabalhar dessa forma me fez 26 ter mais interesse pelo assunto, a ideia de registrar essas aulas, que tam-27 bém foi interativa, foi bem legal, mas diferente também. 28

A7: Juntando essas aulas diferentes, os materiais que usamos foi ótimo, teve 29 uma participação geral da sala. 30

A2: A temática, foi muito bom, fizemos metade dentro de sala de aula e a ou-31 tra metade na internet, foi extremamente bom. 32

A partir desses relatos, posso inferir que o uso da tecnologia e da 33 internet está muito presente no dia-a-dia dos alunos, e o uso desses recur-34 sos durante as aulas, de acordo com A4, o “fez ter mais interesse pelo as-35 sunto” e foi avaliado por A2 como “extremamente bom”. Levando a 36 “uma participação geral da sala”, conforme relatado por A7. 37

A partir do exposto, concluo que a disseminação das tecnologias 38 de informação e comunicação gera mudanças de hábitos e valores na 39

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comunicação e nas formas de interação. Logo, as necessidades de apren-1 dizado também mudam, já que o perfil do indivíduo capaz de interagir 2 nesse contexto é diferente (COPE; KALANTZIS, 2000). A escola preci-3 sa acompanhar essas mudanças na sociedade, formando leitores críticos, 4 capazes de questionar e avaliar a variedade de informações a que são ex-5 postos no ambiente virtual. 6

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 8

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DUBOC, A. P. M. A questão da avaliação de aprendizagem de língua 18 inglesa segundo as teorias de letramentos. 2007. Dissertação (de mestra-19 do). – Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: 20 <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-06112007-21 102340>. Acesso em: 07-2014. 22

FOGAÇA, F.; JORDÃO, C. M. Ensino de inglês, letramento crítico e ci-23 dadania: um triângulo amoroso bem-sucedido. Línguas & Letras, Casca-24 vel, vol. 8, n. 14, 2007. Disponível em: 25 <http://revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/906>. 26 Acesso em: 08-2014. 27

KRESS, G. English in Urban classes. New York: Routledge, 2005. 28

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SOUZA, L. M. Para uma redefinição de letramento crítico: conflito e 1 produção de significação. In: MACIEL, R. F.; ARAÚJO, V. A. (Orgs.). 2 Formação de professores de línguas: ampliando perspectivas. Bauru: Pa-3 co, 2011, p. 130-142. 4

______. O professor de inglês e os letramentos no século XXI: métodos 5 ou ética? Palestra proferida na Uniderp em Campo Grande – MS, em 27 6 de maio de 2010. 7