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Ângela de Alencar Araripe Pinheiro Verônica Salgueiro do Nascimento Domingos Arthur Feitosa Petrola DIREITOS HUMANOS EIVI MOVIMENTO Wm l I;;Í:-..

Os direitos humanos e os problemas do ensino jurídico formal

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Acircngela de Alencar Araripe Pinheiro Verocircnica Salgueiro do Nascimento Domingos Arthur Feitosa Petrola

DIREITOS HUMANOS EIVI MOVIMENTO

Wm

l

I Iacute -

Copyright copy 2014 Arthur Feitosa Petrola

Editoraccedilatildeo Eletrocircnica Faacutebio Soares

Capa Marcos Carvalho

Revisatildeo Rejane Nascimento

Impressatildeo e Acabamento

(S mmm

Rua Antocircnio Pompeu 1705 - Centro CEP 60040-001 - Fortaleza-CE

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Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo da fonte (CIP)

D597 Direitos humanos em movimento praacuteticas e saberesorganizado por Acircngela de Alencar Araripe Pinheiro Verocircnica Salgueiro do Nasshy

cimento e Domingos Arthur Feitosa Petrola - Fortaleza Premius 2014

360p

ISBN 978-85-7564-751-6

lDireitos humanos IPinheiro Acircngela de Alencar Araripe II NascimentoVerocircnica Salgueiro IHPetrola Domingos Arthur Feitosa

CDU 34123114

Apresentaccedilatildeo dos organizadores

Neste espaccedilo gostariacuteamos de compartilhar com o leitor o processo de construccedilatildeo do presente livro Esta obra representa o produto de muitas outras accedilotildees anteriores Poderiacuteamos situar o ponto inicial desta construccedilatildeo em outubro de 2010 data de um evento realizado em Sobral Cearaacute O I Coloacutequio de Psicologia Juriacuteshydica promovido pelo curso de Psicologia da Universidade Federal do Cearaacute Campus daquela cidade organizado por um conjunto de estudantes e sua professora como extensatildeo dos debates desenvolvishydos em sala de aula A partir disto pensamos em registrar algumas experiecircncias entatildeo compartilhadas

No primeiro encontro com os organizadores desta publicashyccedilatildeo buscamos redefinir a sua temaacutetica para tornaacute-la mais abranshygente e proacutexima a todos os que estavam assumindo a tarefa de levar adiante sua concretizaccedilatildeo

Haacute uma histoacuteria anterior que precisa ser relatada pois ao teshycecirc-la encontramos os fios que nos ligam

Um fio sem duacutevida atravessa toda esta histoacuteria a sensibishylidade frente agraves dificuldades cotidianas da imensa maioria da poshypulaccedilatildeo brasileira de ver garantidos seus direitos todos eles Ao serem violados ou ameaccedilados de violaccedilatildeo impedem o usufruto da felicidade norte (ou sul) a orientar o sentido da vida

Nossa trajetoacuteria inclui um outro fio a construccedilatildeo do NU-CEPECUFC (Nuacutecleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Crianccedila) comprometido desde 1984 com a promoccedilatildeo e a defesa de direitos humanos de crianccedilas e adolescentes

Novo fio se faz presente a partir de 1989 uma estudante de psicologia comeccedila um novo semestre letivo a disciplina eacute Psicologia Social II O encontro desta aprendiz com a professora seria um aconshytecimento marcante em toda sua trajetoacuteria pessoal e profissional

Outro fio dessa teia eacute tecido em sala de aula contribuindo para que este livro fosse concebido O ano eacute 2005 aquela aluna de 1989 tornou-se tambeacutem professora a disciplina eacute Psicologia Social I Um novo encontro acontece e um aluno mediado pelo desejo de conhecer o mundo de forma mais criacutetica encontra nessa professora a possibilidade de fazecirc-lo

Dessa forma satildeo trecircs geraccedilotildees que se atravessaram mutuashymente e que hoje se representam na tessitura deste livro

Recordar eacute passar pelo coraccedilatildeo e sabemos que o componenshyte afetivo nos uniu E atraveacutes dele nossa teia foi ficando cada vez maior e mais forte Portanto eacute imperioso acrescentar que este livro eacute fruto de uma amizade Sobretudo eacute um presente que nos demos uns aos outros o prazer de compartilhar as experiecircncias e os camishynhos que foram percorridos para compreendermos e aceitarmos a incompletude e historicidade das nossas teorias e praacuteticas

Nesse processo nem sempre tranquumlilo ouvimos uns aos oushytros em nossas expectativas motivaccedilotildees e aprendizagens Mutuashymente nos desafiamos na praacutetica de construir coletivamente um livro sobre Direitos Humanos para aleacutem das dificuldades do camshypo de trabalho e das limitaccedilotildees da vida cotidiana Das ansiedades divididas agraves convicccedilotildees que a militacircncia nos proporcionava fomos vagarosamente costurando as pontas desse tecido uacutenico mas que possui um bordado com vaacuterios tons e inspiraccedilotildees

A energia que nos move eacute a esperanccedila Esperanccedilamos que esta publicaccedilatildeo possa fortalecer iniciativas atraveacutes do registro e doshycumentaccedilatildeo de experiecircncias em consolidaccedilatildeo na defesa e promoccedilatildeo dos Direitos Humanos e que possa contribuir para o fomento de accedilotildees voltadas agrave execuccedilatildeo de poliacuteticas relacionadas agrave temaacutetica

Na medida em que ampliamos a temaacutetica para os Direitos 11 umanos entendiacuteamos de forma muito orgacircnica que poderia ser lei Ia uma aproximaccedilatildeo entre a Academia os Movimentos Sociais e a Militacircncia pois sabiacuteamos muito claramente que na praacutetica estas instacircncias estatildeo profundamente entrelaccediladas

Ela se justifica pois o respeito aos Direitos Humanos em sua historicidade universalidade indivisibilidade e interdependecircncia constitui sem duacutevida base indispensaacutevel para pensar uma sociedade com justiccedila social calcada na igualdade e no respeito agrave diversidade

Por sua amplitude a temaacutetica central desta publicaccedilatildeo permishyte abordagens as mais variadas quer pelas concepccedilotildees teoacutericas que as fundamentam quer pelas concretizaccedilotildees que assumem na vida social Satildeo exemplos os direitos que aludem agraves geraccedilotildees a gecircnero ao acesso e tratamento da Justiccedila agrave justiccedila juvenil agrave moradia digna ao meio ambiente saudaacutevel agrave participaccedilatildeo agrave democracia Pensar e atuar na aacuterea tambeacutem requer a presenccedila da interdisciplinaridade premissa necessaacuteria a qualquer aacuterea do saber que se comprometa a dar conta de tamanha complexidade

Procuramos portanto fortalecer iniciativas atraveacutes do regisshytro e documentaccedilatildeo de experiecircncias em consolidaccedilatildeo na defesa e promoccedilatildeo dos Direitos Humanos compartilhar praacuteticas e saberes atraveacutes da construccedilatildeo dialoacutegica de um espaccedilo coletivo e interdisci-plinar e contribuir para o fomento de accedilotildees voltadas agrave execuccedilatildeo de poliacuteticas relacionadas aos Direitos Humanos E animarmos um diaacuteshylogo entre organizadores autores e leitores alicerccedilado na abertura ao aprendizado agrave criacutetica e agrave autocriacutetica e agrave reinvenccedilatildeo de nossas praacuteticas e saberes sempre

Fortaleza (CE) abril de 2014

Acircngela de Alencar Araripe Pinheiro

Domingos Arthur Feitosa Petrola

Verocircnica Salgueiro do Nascimento

Organizadores

Sumaacuterio

Prefaacutecio 13

Direitos Humanos e Educaccedilatildeo Ambiental Dialoacutegica O direito

de ser humano em uma eacutetica ambiental - Deyseane Maria Arauacutejo

Lima e Joatildeo Batista de Albuquerque Figueiredo 21

Direito agrave Moradia em Movimento - accedilotildees de educaccedilatildeo em direitos

humanos no campo da moradia - Rodrigo Faria G Iacovini 37

Debate poliacutetico e formaccedilatildeo em direitos humanos de crianccedilas e adolescentes uma reflexatildeo sobre uma experiecircncia desenvolvida

pelo Cedeca Cearaacute - Margarida Marques 89

As imagens de infacircncias os discursos instituiacutedosinstituintes e as experiecircncias participativas das crianccedilas - Lis Albuquershy

que Melo 107

Autoridade Parental e os Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes Impasses - Maria Ignez Costa Moreira e Luacutecia

Rabello de Castro 129

Brincar um direito inalienaacutevel - o que dizem os sem-terrinha - Ana Maria Monte Coelho Frota Acircngela de Alencar Araripe

Pinheiro Adriana Abreu de Sousa Andreacute Luiacutes Nogueira de

Sousa Bruna Gurgel Barreto de Oliveira Talita Feitosa de Moiseacutes

Queiroz 155

A estigmatizaccedilatildeo do jovem em conflito com a lei e a manutenccedilatildeo da cultura de violecircncia em centros educacionais - Joatildeo Paulo

Lopes Coelho 181

Poliacutetica criminal e justiccedila juvenil apontamentos sobre o processo

histoacuterico de criminalizaccedilatildeo de adolescentes pobres no Brasil -

Ana Vlaacutedia Holanda Cruz e Nelson Gomes de SantAna e Silva

Juacutenior 207

Reflexotildees sobre direitos a partir da juventude organizada em Sobral - Benedito Gomes Rodrigues Maria de Nazareacute Carvalho

Renata Kerlane de Pinho Rodrigues Samara Fernandes da Silva

Profa Ms Nara Maria Forte Diogo Rocha e Profa Dra Verocircnica

Salgueiro do Nascimento 223

Passivos e impassiacuteveis diante da telinha - o nosso imobilismo

frente aos programas policiais - Raimundo Madeira 247

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formal - Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves Joseacute Antocircnio Albuquerque

Filho e Eacuterika de Saacute Marinho 273

A praacutexis com Direitos Humanos na execuccedilatildeo de penas alternativas o que temos a falar sobre o Projeto Cidadania e Cultura de Paz em

lortaleza-CE - Domingos Arthur Feitosa Petrola Janna Bezerra

Braga Ferreira Maria Edilacircnia Matos Ferreira Furtado Niara Farias

Torres Larissa Torres Campos Helioneida Souza Martins e Raiacutesa

Nogueira Loureiro 299

No Brasil de Lula e Dilma o estado e o capital de matildeos dadas no ataque agrave floresta a seus povos e a seus direitos ou a (in)sustentaacutevel

poliacutetica climaacutetica e de desenvolvimento do governo brasileiro e as

respostas da sociedade civil e dos movimentos sociais - Joatildeo Alfredo

Telles Melo e Davi Aragatildeo Rocha 321

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formai

Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves37

Joseacute Antocircnio Albuquerque Filho38

Eacuterika de Saacute Marinho39

Consideraccedilotildees primeiras

O presente trabalho tem um objetivo tatildeo difiacutecil quanto neshycessaacuterio refletir sobre as dificuldades que satildeo enfrentadas na aborshydagem dos direitos humanos dentro do ensino juriacutedico formal Nossa preocupaccedilatildeo portanto estaacute voltada agrave educaccedilatildeo em direitos humanos e aos obstaacuteculos especiacuteficos que afetam o conteuacutedo dishyreitos humanos dentro dos problemas mais amplos que afetam os cursos de Direito

O que vamos apresentar nas linhas que se seguem decorre de nossa vivecircncia discente e docente e natildeo de uma pesquisa cientiacutefica rigorosamente realizada Com isso queremos dizer que embora o contato com meacutetodos e procedimentos cientiacuteficos mdash eg etnogra-fia e etnometodologia mdash permeie a forma como apreendemos os dados os debates que realizamos e ao final a proacutepria escrita do

37 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Professor da Faculdade de Ciecircncias Humanas do Sertatildeo Central - FACHUSC feitosagoncalvesgmailcom

38 Bacharel em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE da Faculdade Joaquim Nabuco -FJN e da Faculdade Nova Roma - FNR joseantonioalbuquerquefilhogmailcom

39 Bacharela em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestra em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professora da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE erika_marinhohotmailcom

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presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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Copyright copy 2014 Arthur Feitosa Petrola

Editoraccedilatildeo Eletrocircnica Faacutebio Soares

Capa Marcos Carvalho

Revisatildeo Rejane Nascimento

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Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo da fonte (CIP)

D597 Direitos humanos em movimento praacuteticas e saberesorganizado por Acircngela de Alencar Araripe Pinheiro Verocircnica Salgueiro do Nasshy

cimento e Domingos Arthur Feitosa Petrola - Fortaleza Premius 2014

360p

ISBN 978-85-7564-751-6

lDireitos humanos IPinheiro Acircngela de Alencar Araripe II NascimentoVerocircnica Salgueiro IHPetrola Domingos Arthur Feitosa

CDU 34123114

Apresentaccedilatildeo dos organizadores

Neste espaccedilo gostariacuteamos de compartilhar com o leitor o processo de construccedilatildeo do presente livro Esta obra representa o produto de muitas outras accedilotildees anteriores Poderiacuteamos situar o ponto inicial desta construccedilatildeo em outubro de 2010 data de um evento realizado em Sobral Cearaacute O I Coloacutequio de Psicologia Juriacuteshydica promovido pelo curso de Psicologia da Universidade Federal do Cearaacute Campus daquela cidade organizado por um conjunto de estudantes e sua professora como extensatildeo dos debates desenvolvishydos em sala de aula A partir disto pensamos em registrar algumas experiecircncias entatildeo compartilhadas

No primeiro encontro com os organizadores desta publicashyccedilatildeo buscamos redefinir a sua temaacutetica para tornaacute-la mais abranshygente e proacutexima a todos os que estavam assumindo a tarefa de levar adiante sua concretizaccedilatildeo

Haacute uma histoacuteria anterior que precisa ser relatada pois ao teshycecirc-la encontramos os fios que nos ligam

Um fio sem duacutevida atravessa toda esta histoacuteria a sensibishylidade frente agraves dificuldades cotidianas da imensa maioria da poshypulaccedilatildeo brasileira de ver garantidos seus direitos todos eles Ao serem violados ou ameaccedilados de violaccedilatildeo impedem o usufruto da felicidade norte (ou sul) a orientar o sentido da vida

Nossa trajetoacuteria inclui um outro fio a construccedilatildeo do NU-CEPECUFC (Nuacutecleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Crianccedila) comprometido desde 1984 com a promoccedilatildeo e a defesa de direitos humanos de crianccedilas e adolescentes

Novo fio se faz presente a partir de 1989 uma estudante de psicologia comeccedila um novo semestre letivo a disciplina eacute Psicologia Social II O encontro desta aprendiz com a professora seria um aconshytecimento marcante em toda sua trajetoacuteria pessoal e profissional

Outro fio dessa teia eacute tecido em sala de aula contribuindo para que este livro fosse concebido O ano eacute 2005 aquela aluna de 1989 tornou-se tambeacutem professora a disciplina eacute Psicologia Social I Um novo encontro acontece e um aluno mediado pelo desejo de conhecer o mundo de forma mais criacutetica encontra nessa professora a possibilidade de fazecirc-lo

Dessa forma satildeo trecircs geraccedilotildees que se atravessaram mutuashymente e que hoje se representam na tessitura deste livro

Recordar eacute passar pelo coraccedilatildeo e sabemos que o componenshyte afetivo nos uniu E atraveacutes dele nossa teia foi ficando cada vez maior e mais forte Portanto eacute imperioso acrescentar que este livro eacute fruto de uma amizade Sobretudo eacute um presente que nos demos uns aos outros o prazer de compartilhar as experiecircncias e os camishynhos que foram percorridos para compreendermos e aceitarmos a incompletude e historicidade das nossas teorias e praacuteticas

Nesse processo nem sempre tranquumlilo ouvimos uns aos oushytros em nossas expectativas motivaccedilotildees e aprendizagens Mutuashymente nos desafiamos na praacutetica de construir coletivamente um livro sobre Direitos Humanos para aleacutem das dificuldades do camshypo de trabalho e das limitaccedilotildees da vida cotidiana Das ansiedades divididas agraves convicccedilotildees que a militacircncia nos proporcionava fomos vagarosamente costurando as pontas desse tecido uacutenico mas que possui um bordado com vaacuterios tons e inspiraccedilotildees

A energia que nos move eacute a esperanccedila Esperanccedilamos que esta publicaccedilatildeo possa fortalecer iniciativas atraveacutes do registro e doshycumentaccedilatildeo de experiecircncias em consolidaccedilatildeo na defesa e promoccedilatildeo dos Direitos Humanos e que possa contribuir para o fomento de accedilotildees voltadas agrave execuccedilatildeo de poliacuteticas relacionadas agrave temaacutetica

Na medida em que ampliamos a temaacutetica para os Direitos 11 umanos entendiacuteamos de forma muito orgacircnica que poderia ser lei Ia uma aproximaccedilatildeo entre a Academia os Movimentos Sociais e a Militacircncia pois sabiacuteamos muito claramente que na praacutetica estas instacircncias estatildeo profundamente entrelaccediladas

Ela se justifica pois o respeito aos Direitos Humanos em sua historicidade universalidade indivisibilidade e interdependecircncia constitui sem duacutevida base indispensaacutevel para pensar uma sociedade com justiccedila social calcada na igualdade e no respeito agrave diversidade

Por sua amplitude a temaacutetica central desta publicaccedilatildeo permishyte abordagens as mais variadas quer pelas concepccedilotildees teoacutericas que as fundamentam quer pelas concretizaccedilotildees que assumem na vida social Satildeo exemplos os direitos que aludem agraves geraccedilotildees a gecircnero ao acesso e tratamento da Justiccedila agrave justiccedila juvenil agrave moradia digna ao meio ambiente saudaacutevel agrave participaccedilatildeo agrave democracia Pensar e atuar na aacuterea tambeacutem requer a presenccedila da interdisciplinaridade premissa necessaacuteria a qualquer aacuterea do saber que se comprometa a dar conta de tamanha complexidade

Procuramos portanto fortalecer iniciativas atraveacutes do regisshytro e documentaccedilatildeo de experiecircncias em consolidaccedilatildeo na defesa e promoccedilatildeo dos Direitos Humanos compartilhar praacuteticas e saberes atraveacutes da construccedilatildeo dialoacutegica de um espaccedilo coletivo e interdisci-plinar e contribuir para o fomento de accedilotildees voltadas agrave execuccedilatildeo de poliacuteticas relacionadas aos Direitos Humanos E animarmos um diaacuteshylogo entre organizadores autores e leitores alicerccedilado na abertura ao aprendizado agrave criacutetica e agrave autocriacutetica e agrave reinvenccedilatildeo de nossas praacuteticas e saberes sempre

Fortaleza (CE) abril de 2014

Acircngela de Alencar Araripe Pinheiro

Domingos Arthur Feitosa Petrola

Verocircnica Salgueiro do Nascimento

Organizadores

Sumaacuterio

Prefaacutecio 13

Direitos Humanos e Educaccedilatildeo Ambiental Dialoacutegica O direito

de ser humano em uma eacutetica ambiental - Deyseane Maria Arauacutejo

Lima e Joatildeo Batista de Albuquerque Figueiredo 21

Direito agrave Moradia em Movimento - accedilotildees de educaccedilatildeo em direitos

humanos no campo da moradia - Rodrigo Faria G Iacovini 37

Debate poliacutetico e formaccedilatildeo em direitos humanos de crianccedilas e adolescentes uma reflexatildeo sobre uma experiecircncia desenvolvida

pelo Cedeca Cearaacute - Margarida Marques 89

As imagens de infacircncias os discursos instituiacutedosinstituintes e as experiecircncias participativas das crianccedilas - Lis Albuquershy

que Melo 107

Autoridade Parental e os Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes Impasses - Maria Ignez Costa Moreira e Luacutecia

Rabello de Castro 129

Brincar um direito inalienaacutevel - o que dizem os sem-terrinha - Ana Maria Monte Coelho Frota Acircngela de Alencar Araripe

Pinheiro Adriana Abreu de Sousa Andreacute Luiacutes Nogueira de

Sousa Bruna Gurgel Barreto de Oliveira Talita Feitosa de Moiseacutes

Queiroz 155

A estigmatizaccedilatildeo do jovem em conflito com a lei e a manutenccedilatildeo da cultura de violecircncia em centros educacionais - Joatildeo Paulo

Lopes Coelho 181

Poliacutetica criminal e justiccedila juvenil apontamentos sobre o processo

histoacuterico de criminalizaccedilatildeo de adolescentes pobres no Brasil -

Ana Vlaacutedia Holanda Cruz e Nelson Gomes de SantAna e Silva

Juacutenior 207

Reflexotildees sobre direitos a partir da juventude organizada em Sobral - Benedito Gomes Rodrigues Maria de Nazareacute Carvalho

Renata Kerlane de Pinho Rodrigues Samara Fernandes da Silva

Profa Ms Nara Maria Forte Diogo Rocha e Profa Dra Verocircnica

Salgueiro do Nascimento 223

Passivos e impassiacuteveis diante da telinha - o nosso imobilismo

frente aos programas policiais - Raimundo Madeira 247

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formal - Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves Joseacute Antocircnio Albuquerque

Filho e Eacuterika de Saacute Marinho 273

A praacutexis com Direitos Humanos na execuccedilatildeo de penas alternativas o que temos a falar sobre o Projeto Cidadania e Cultura de Paz em

lortaleza-CE - Domingos Arthur Feitosa Petrola Janna Bezerra

Braga Ferreira Maria Edilacircnia Matos Ferreira Furtado Niara Farias

Torres Larissa Torres Campos Helioneida Souza Martins e Raiacutesa

Nogueira Loureiro 299

No Brasil de Lula e Dilma o estado e o capital de matildeos dadas no ataque agrave floresta a seus povos e a seus direitos ou a (in)sustentaacutevel

poliacutetica climaacutetica e de desenvolvimento do governo brasileiro e as

respostas da sociedade civil e dos movimentos sociais - Joatildeo Alfredo

Telles Melo e Davi Aragatildeo Rocha 321

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formai

Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves37

Joseacute Antocircnio Albuquerque Filho38

Eacuterika de Saacute Marinho39

Consideraccedilotildees primeiras

O presente trabalho tem um objetivo tatildeo difiacutecil quanto neshycessaacuterio refletir sobre as dificuldades que satildeo enfrentadas na aborshydagem dos direitos humanos dentro do ensino juriacutedico formal Nossa preocupaccedilatildeo portanto estaacute voltada agrave educaccedilatildeo em direitos humanos e aos obstaacuteculos especiacuteficos que afetam o conteuacutedo dishyreitos humanos dentro dos problemas mais amplos que afetam os cursos de Direito

O que vamos apresentar nas linhas que se seguem decorre de nossa vivecircncia discente e docente e natildeo de uma pesquisa cientiacutefica rigorosamente realizada Com isso queremos dizer que embora o contato com meacutetodos e procedimentos cientiacuteficos mdash eg etnogra-fia e etnometodologia mdash permeie a forma como apreendemos os dados os debates que realizamos e ao final a proacutepria escrita do

37 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Professor da Faculdade de Ciecircncias Humanas do Sertatildeo Central - FACHUSC feitosagoncalvesgmailcom

38 Bacharel em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE da Faculdade Joaquim Nabuco -FJN e da Faculdade Nova Roma - FNR joseantonioalbuquerquefilhogmailcom

39 Bacharela em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestra em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professora da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE erika_marinhohotmailcom

273

presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

275

A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

276

O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

27

eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

278

indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

295

teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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298

Novo fio se faz presente a partir de 1989 uma estudante de psicologia comeccedila um novo semestre letivo a disciplina eacute Psicologia Social II O encontro desta aprendiz com a professora seria um aconshytecimento marcante em toda sua trajetoacuteria pessoal e profissional

Outro fio dessa teia eacute tecido em sala de aula contribuindo para que este livro fosse concebido O ano eacute 2005 aquela aluna de 1989 tornou-se tambeacutem professora a disciplina eacute Psicologia Social I Um novo encontro acontece e um aluno mediado pelo desejo de conhecer o mundo de forma mais criacutetica encontra nessa professora a possibilidade de fazecirc-lo

Dessa forma satildeo trecircs geraccedilotildees que se atravessaram mutuashymente e que hoje se representam na tessitura deste livro

Recordar eacute passar pelo coraccedilatildeo e sabemos que o componenshyte afetivo nos uniu E atraveacutes dele nossa teia foi ficando cada vez maior e mais forte Portanto eacute imperioso acrescentar que este livro eacute fruto de uma amizade Sobretudo eacute um presente que nos demos uns aos outros o prazer de compartilhar as experiecircncias e os camishynhos que foram percorridos para compreendermos e aceitarmos a incompletude e historicidade das nossas teorias e praacuteticas

Nesse processo nem sempre tranquumlilo ouvimos uns aos oushytros em nossas expectativas motivaccedilotildees e aprendizagens Mutuashymente nos desafiamos na praacutetica de construir coletivamente um livro sobre Direitos Humanos para aleacutem das dificuldades do camshypo de trabalho e das limitaccedilotildees da vida cotidiana Das ansiedades divididas agraves convicccedilotildees que a militacircncia nos proporcionava fomos vagarosamente costurando as pontas desse tecido uacutenico mas que possui um bordado com vaacuterios tons e inspiraccedilotildees

A energia que nos move eacute a esperanccedila Esperanccedilamos que esta publicaccedilatildeo possa fortalecer iniciativas atraveacutes do registro e doshycumentaccedilatildeo de experiecircncias em consolidaccedilatildeo na defesa e promoccedilatildeo dos Direitos Humanos e que possa contribuir para o fomento de accedilotildees voltadas agrave execuccedilatildeo de poliacuteticas relacionadas agrave temaacutetica

Na medida em que ampliamos a temaacutetica para os Direitos 11 umanos entendiacuteamos de forma muito orgacircnica que poderia ser lei Ia uma aproximaccedilatildeo entre a Academia os Movimentos Sociais e a Militacircncia pois sabiacuteamos muito claramente que na praacutetica estas instacircncias estatildeo profundamente entrelaccediladas

Ela se justifica pois o respeito aos Direitos Humanos em sua historicidade universalidade indivisibilidade e interdependecircncia constitui sem duacutevida base indispensaacutevel para pensar uma sociedade com justiccedila social calcada na igualdade e no respeito agrave diversidade

Por sua amplitude a temaacutetica central desta publicaccedilatildeo permishyte abordagens as mais variadas quer pelas concepccedilotildees teoacutericas que as fundamentam quer pelas concretizaccedilotildees que assumem na vida social Satildeo exemplos os direitos que aludem agraves geraccedilotildees a gecircnero ao acesso e tratamento da Justiccedila agrave justiccedila juvenil agrave moradia digna ao meio ambiente saudaacutevel agrave participaccedilatildeo agrave democracia Pensar e atuar na aacuterea tambeacutem requer a presenccedila da interdisciplinaridade premissa necessaacuteria a qualquer aacuterea do saber que se comprometa a dar conta de tamanha complexidade

Procuramos portanto fortalecer iniciativas atraveacutes do regisshytro e documentaccedilatildeo de experiecircncias em consolidaccedilatildeo na defesa e promoccedilatildeo dos Direitos Humanos compartilhar praacuteticas e saberes atraveacutes da construccedilatildeo dialoacutegica de um espaccedilo coletivo e interdisci-plinar e contribuir para o fomento de accedilotildees voltadas agrave execuccedilatildeo de poliacuteticas relacionadas aos Direitos Humanos E animarmos um diaacuteshylogo entre organizadores autores e leitores alicerccedilado na abertura ao aprendizado agrave criacutetica e agrave autocriacutetica e agrave reinvenccedilatildeo de nossas praacuteticas e saberes sempre

Fortaleza (CE) abril de 2014

Acircngela de Alencar Araripe Pinheiro

Domingos Arthur Feitosa Petrola

Verocircnica Salgueiro do Nascimento

Organizadores

Sumaacuterio

Prefaacutecio 13

Direitos Humanos e Educaccedilatildeo Ambiental Dialoacutegica O direito

de ser humano em uma eacutetica ambiental - Deyseane Maria Arauacutejo

Lima e Joatildeo Batista de Albuquerque Figueiredo 21

Direito agrave Moradia em Movimento - accedilotildees de educaccedilatildeo em direitos

humanos no campo da moradia - Rodrigo Faria G Iacovini 37

Debate poliacutetico e formaccedilatildeo em direitos humanos de crianccedilas e adolescentes uma reflexatildeo sobre uma experiecircncia desenvolvida

pelo Cedeca Cearaacute - Margarida Marques 89

As imagens de infacircncias os discursos instituiacutedosinstituintes e as experiecircncias participativas das crianccedilas - Lis Albuquershy

que Melo 107

Autoridade Parental e os Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes Impasses - Maria Ignez Costa Moreira e Luacutecia

Rabello de Castro 129

Brincar um direito inalienaacutevel - o que dizem os sem-terrinha - Ana Maria Monte Coelho Frota Acircngela de Alencar Araripe

Pinheiro Adriana Abreu de Sousa Andreacute Luiacutes Nogueira de

Sousa Bruna Gurgel Barreto de Oliveira Talita Feitosa de Moiseacutes

Queiroz 155

A estigmatizaccedilatildeo do jovem em conflito com a lei e a manutenccedilatildeo da cultura de violecircncia em centros educacionais - Joatildeo Paulo

Lopes Coelho 181

Poliacutetica criminal e justiccedila juvenil apontamentos sobre o processo

histoacuterico de criminalizaccedilatildeo de adolescentes pobres no Brasil -

Ana Vlaacutedia Holanda Cruz e Nelson Gomes de SantAna e Silva

Juacutenior 207

Reflexotildees sobre direitos a partir da juventude organizada em Sobral - Benedito Gomes Rodrigues Maria de Nazareacute Carvalho

Renata Kerlane de Pinho Rodrigues Samara Fernandes da Silva

Profa Ms Nara Maria Forte Diogo Rocha e Profa Dra Verocircnica

Salgueiro do Nascimento 223

Passivos e impassiacuteveis diante da telinha - o nosso imobilismo

frente aos programas policiais - Raimundo Madeira 247

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formal - Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves Joseacute Antocircnio Albuquerque

Filho e Eacuterika de Saacute Marinho 273

A praacutexis com Direitos Humanos na execuccedilatildeo de penas alternativas o que temos a falar sobre o Projeto Cidadania e Cultura de Paz em

lortaleza-CE - Domingos Arthur Feitosa Petrola Janna Bezerra

Braga Ferreira Maria Edilacircnia Matos Ferreira Furtado Niara Farias

Torres Larissa Torres Campos Helioneida Souza Martins e Raiacutesa

Nogueira Loureiro 299

No Brasil de Lula e Dilma o estado e o capital de matildeos dadas no ataque agrave floresta a seus povos e a seus direitos ou a (in)sustentaacutevel

poliacutetica climaacutetica e de desenvolvimento do governo brasileiro e as

respostas da sociedade civil e dos movimentos sociais - Joatildeo Alfredo

Telles Melo e Davi Aragatildeo Rocha 321

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formai

Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves37

Joseacute Antocircnio Albuquerque Filho38

Eacuterika de Saacute Marinho39

Consideraccedilotildees primeiras

O presente trabalho tem um objetivo tatildeo difiacutecil quanto neshycessaacuterio refletir sobre as dificuldades que satildeo enfrentadas na aborshydagem dos direitos humanos dentro do ensino juriacutedico formal Nossa preocupaccedilatildeo portanto estaacute voltada agrave educaccedilatildeo em direitos humanos e aos obstaacuteculos especiacuteficos que afetam o conteuacutedo dishyreitos humanos dentro dos problemas mais amplos que afetam os cursos de Direito

O que vamos apresentar nas linhas que se seguem decorre de nossa vivecircncia discente e docente e natildeo de uma pesquisa cientiacutefica rigorosamente realizada Com isso queremos dizer que embora o contato com meacutetodos e procedimentos cientiacuteficos mdash eg etnogra-fia e etnometodologia mdash permeie a forma como apreendemos os dados os debates que realizamos e ao final a proacutepria escrita do

37 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Professor da Faculdade de Ciecircncias Humanas do Sertatildeo Central - FACHUSC feitosagoncalvesgmailcom

38 Bacharel em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE da Faculdade Joaquim Nabuco -FJN e da Faculdade Nova Roma - FNR joseantonioalbuquerquefilhogmailcom

39 Bacharela em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestra em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professora da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE erika_marinhohotmailcom

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presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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Sumaacuterio

Prefaacutecio 13

Direitos Humanos e Educaccedilatildeo Ambiental Dialoacutegica O direito

de ser humano em uma eacutetica ambiental - Deyseane Maria Arauacutejo

Lima e Joatildeo Batista de Albuquerque Figueiredo 21

Direito agrave Moradia em Movimento - accedilotildees de educaccedilatildeo em direitos

humanos no campo da moradia - Rodrigo Faria G Iacovini 37

Debate poliacutetico e formaccedilatildeo em direitos humanos de crianccedilas e adolescentes uma reflexatildeo sobre uma experiecircncia desenvolvida

pelo Cedeca Cearaacute - Margarida Marques 89

As imagens de infacircncias os discursos instituiacutedosinstituintes e as experiecircncias participativas das crianccedilas - Lis Albuquershy

que Melo 107

Autoridade Parental e os Direitos das Crianccedilas e dos Adolescentes Impasses - Maria Ignez Costa Moreira e Luacutecia

Rabello de Castro 129

Brincar um direito inalienaacutevel - o que dizem os sem-terrinha - Ana Maria Monte Coelho Frota Acircngela de Alencar Araripe

Pinheiro Adriana Abreu de Sousa Andreacute Luiacutes Nogueira de

Sousa Bruna Gurgel Barreto de Oliveira Talita Feitosa de Moiseacutes

Queiroz 155

A estigmatizaccedilatildeo do jovem em conflito com a lei e a manutenccedilatildeo da cultura de violecircncia em centros educacionais - Joatildeo Paulo

Lopes Coelho 181

Poliacutetica criminal e justiccedila juvenil apontamentos sobre o processo

histoacuterico de criminalizaccedilatildeo de adolescentes pobres no Brasil -

Ana Vlaacutedia Holanda Cruz e Nelson Gomes de SantAna e Silva

Juacutenior 207

Reflexotildees sobre direitos a partir da juventude organizada em Sobral - Benedito Gomes Rodrigues Maria de Nazareacute Carvalho

Renata Kerlane de Pinho Rodrigues Samara Fernandes da Silva

Profa Ms Nara Maria Forte Diogo Rocha e Profa Dra Verocircnica

Salgueiro do Nascimento 223

Passivos e impassiacuteveis diante da telinha - o nosso imobilismo

frente aos programas policiais - Raimundo Madeira 247

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formal - Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves Joseacute Antocircnio Albuquerque

Filho e Eacuterika de Saacute Marinho 273

A praacutexis com Direitos Humanos na execuccedilatildeo de penas alternativas o que temos a falar sobre o Projeto Cidadania e Cultura de Paz em

lortaleza-CE - Domingos Arthur Feitosa Petrola Janna Bezerra

Braga Ferreira Maria Edilacircnia Matos Ferreira Furtado Niara Farias

Torres Larissa Torres Campos Helioneida Souza Martins e Raiacutesa

Nogueira Loureiro 299

No Brasil de Lula e Dilma o estado e o capital de matildeos dadas no ataque agrave floresta a seus povos e a seus direitos ou a (in)sustentaacutevel

poliacutetica climaacutetica e de desenvolvimento do governo brasileiro e as

respostas da sociedade civil e dos movimentos sociais - Joatildeo Alfredo

Telles Melo e Davi Aragatildeo Rocha 321

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formai

Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves37

Joseacute Antocircnio Albuquerque Filho38

Eacuterika de Saacute Marinho39

Consideraccedilotildees primeiras

O presente trabalho tem um objetivo tatildeo difiacutecil quanto neshycessaacuterio refletir sobre as dificuldades que satildeo enfrentadas na aborshydagem dos direitos humanos dentro do ensino juriacutedico formal Nossa preocupaccedilatildeo portanto estaacute voltada agrave educaccedilatildeo em direitos humanos e aos obstaacuteculos especiacuteficos que afetam o conteuacutedo dishyreitos humanos dentro dos problemas mais amplos que afetam os cursos de Direito

O que vamos apresentar nas linhas que se seguem decorre de nossa vivecircncia discente e docente e natildeo de uma pesquisa cientiacutefica rigorosamente realizada Com isso queremos dizer que embora o contato com meacutetodos e procedimentos cientiacuteficos mdash eg etnogra-fia e etnometodologia mdash permeie a forma como apreendemos os dados os debates que realizamos e ao final a proacutepria escrita do

37 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Professor da Faculdade de Ciecircncias Humanas do Sertatildeo Central - FACHUSC feitosagoncalvesgmailcom

38 Bacharel em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE da Faculdade Joaquim Nabuco -FJN e da Faculdade Nova Roma - FNR joseantonioalbuquerquefilhogmailcom

39 Bacharela em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestra em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professora da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE erika_marinhohotmailcom

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presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

Referecircncias

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Pinheiro Adriana Abreu de Sousa Andreacute Luiacutes Nogueira de

Sousa Bruna Gurgel Barreto de Oliveira Talita Feitosa de Moiseacutes

Queiroz 155

A estigmatizaccedilatildeo do jovem em conflito com a lei e a manutenccedilatildeo da cultura de violecircncia em centros educacionais - Joatildeo Paulo

Lopes Coelho 181

Poliacutetica criminal e justiccedila juvenil apontamentos sobre o processo

histoacuterico de criminalizaccedilatildeo de adolescentes pobres no Brasil -

Ana Vlaacutedia Holanda Cruz e Nelson Gomes de SantAna e Silva

Juacutenior 207

Reflexotildees sobre direitos a partir da juventude organizada em Sobral - Benedito Gomes Rodrigues Maria de Nazareacute Carvalho

Renata Kerlane de Pinho Rodrigues Samara Fernandes da Silva

Profa Ms Nara Maria Forte Diogo Rocha e Profa Dra Verocircnica

Salgueiro do Nascimento 223

Passivos e impassiacuteveis diante da telinha - o nosso imobilismo

frente aos programas policiais - Raimundo Madeira 247

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formal - Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves Joseacute Antocircnio Albuquerque

Filho e Eacuterika de Saacute Marinho 273

A praacutexis com Direitos Humanos na execuccedilatildeo de penas alternativas o que temos a falar sobre o Projeto Cidadania e Cultura de Paz em

lortaleza-CE - Domingos Arthur Feitosa Petrola Janna Bezerra

Braga Ferreira Maria Edilacircnia Matos Ferreira Furtado Niara Farias

Torres Larissa Torres Campos Helioneida Souza Martins e Raiacutesa

Nogueira Loureiro 299

No Brasil de Lula e Dilma o estado e o capital de matildeos dadas no ataque agrave floresta a seus povos e a seus direitos ou a (in)sustentaacutevel

poliacutetica climaacutetica e de desenvolvimento do governo brasileiro e as

respostas da sociedade civil e dos movimentos sociais - Joatildeo Alfredo

Telles Melo e Davi Aragatildeo Rocha 321

Os Direitos Humanos e os problemas do ensino juriacutedico formai

Francysco Pablo Feitosa Gonccedilalves37

Joseacute Antocircnio Albuquerque Filho38

Eacuterika de Saacute Marinho39

Consideraccedilotildees primeiras

O presente trabalho tem um objetivo tatildeo difiacutecil quanto neshycessaacuterio refletir sobre as dificuldades que satildeo enfrentadas na aborshydagem dos direitos humanos dentro do ensino juriacutedico formal Nossa preocupaccedilatildeo portanto estaacute voltada agrave educaccedilatildeo em direitos humanos e aos obstaacuteculos especiacuteficos que afetam o conteuacutedo dishyreitos humanos dentro dos problemas mais amplos que afetam os cursos de Direito

O que vamos apresentar nas linhas que se seguem decorre de nossa vivecircncia discente e docente e natildeo de uma pesquisa cientiacutefica rigorosamente realizada Com isso queremos dizer que embora o contato com meacutetodos e procedimentos cientiacuteficos mdash eg etnogra-fia e etnometodologia mdash permeie a forma como apreendemos os dados os debates que realizamos e ao final a proacutepria escrita do

37 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Professor da Faculdade de Ciecircncias Humanas do Sertatildeo Central - FACHUSC feitosagoncalvesgmailcom

38 Bacharel em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE da Faculdade Joaquim Nabuco -FJN e da Faculdade Nova Roma - FNR joseantonioalbuquerquefilhogmailcom

39 Bacharela em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestra em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professora da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE erika_marinhohotmailcom

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presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

Z85

formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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Eacuterika de Saacute Marinho39

Consideraccedilotildees primeiras

O presente trabalho tem um objetivo tatildeo difiacutecil quanto neshycessaacuterio refletir sobre as dificuldades que satildeo enfrentadas na aborshydagem dos direitos humanos dentro do ensino juriacutedico formal Nossa preocupaccedilatildeo portanto estaacute voltada agrave educaccedilatildeo em direitos humanos e aos obstaacuteculos especiacuteficos que afetam o conteuacutedo dishyreitos humanos dentro dos problemas mais amplos que afetam os cursos de Direito

O que vamos apresentar nas linhas que se seguem decorre de nossa vivecircncia discente e docente e natildeo de uma pesquisa cientiacutefica rigorosamente realizada Com isso queremos dizer que embora o contato com meacutetodos e procedimentos cientiacuteficos mdash eg etnogra-fia e etnometodologia mdash permeie a forma como apreendemos os dados os debates que realizamos e ao final a proacutepria escrita do

37 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Professor da Faculdade de Ciecircncias Humanas do Sertatildeo Central - FACHUSC feitosagoncalvesgmailcom

38 Bacharel em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestre em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE da Faculdade Joaquim Nabuco -FJN e da Faculdade Nova Roma - FNR joseantonioalbuquerquefilhogmailcom

39 Bacharela em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Mestra em Direito pela Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Professora da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE erika_marinhohotmailcom

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presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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presente ensaio natildeo seguimos o rigor de um meacutetodo sistematizashydo e o que o leitor tem em matildeos natildeo eacute formalmente o relatoacuterio de uma pesquisa talvez seja mais adequado dizermos que ele eacute o processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica40

Nessa perspectiva achamos vaacutelido partir de um lugar comum a afirmaccedilatildeo tanto antiga quanto consensual de que a educaccedilatildeo estaacute em crise Antiga quanto consensual sobretudo quando pensamos no ensino juriacutedico e nos vaacuterios problemas que ele apresenta alguns satildeo inerentes ao ensino em geral e outros lhe parecem ser especiacuteshyficos Um primeiro problema que diz respeito agrave tradiccedilatildeo do nosso ensino juriacutedico formal eacute o fato de ele ser baseado num modelo de ensino tipicamente bancaacuterio deposita-se uma seacuterie de informaccedilotildees no aluno41 que eacute treinado para reproduzir um discurso geralmente vinculado ao status quo e que se materializa num texto empolado e marcado pela verborragia e erudiccedilatildeo livresca

Uma acusaccedilatildeo dessas agrave pedagogia juriacutedica pode soar mal pode fazer nosso proacuteprio discurso parecer antipaacutetico aos operadoshyres do direito que venham a conhececirc-lo mas acreditamos que basta

40 Fazemos aqui uma alusatildeo agrave concepccedilatildeo de problemaacutetica sentida e problemaacutetica racional conforme compreendida por Laville e Dionne quando dizem que a operaccedilatildeo de desvendamento de uma problemaacutetica consiste em refletir sobre as origens do problema as interrogaccedilotildees iniciais a ele relacionadas sua natureza as vantagens que sua resoluccedilatildeo pode trazer e sobre o que se pode prever como soluccedilatildeo e que caminhos podem ser percorridos para solucionaacute-lo Na saiacuteda portanto acha-se uma problemaacutetica sentida imprecisa e vaga na chegada uma problemaacutetica consciente e objetivada uma problemaacutetica racional (LAVILLE DIONNE 1999 p 98 grifos do original) O presente ensaio consiste portanto muito mais no processo de racionalizaccedilatildeo de uma problemaacutetica do que propriamente no relato da sua soluccedilatildeo

41 Conhecemos as controveacutersias terminoloacutegicas sobre o emprego de palavras como professor aluno educador educando educante aprendente docente discente ensishyno aprendizagem ensinagem apreendente etc Algumas das propostas de abandono de determinados termos em funccedilatildeo de outros parecem refletir uma preocupaccedilatildeo leshygiacutetima em transformar a educaccedilatildeo outras contudo consistem apenas em tentativas acriacuteticas de criar moda agraves vezes com base em neologismos sem muito sentido De qualquer forma como as palavras natildeo possuem significados intriacutensecos elas posshysuem apenas os significados que lhes satildeo dados no presente trabalho na maior parte do tempo usamos os termos em questatildeo sem maiores preocupaccedilotildees

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que lembrem de sua eacutepoca de educandos em suas proacuteprias criacuteticas ao que o ensino juriacutedico lhes apresentava e comeccedilaratildeo a concordar conosco Aleacutem disso a criacutetica que fazemos aqui natildeo possui nenhum intuito pejorativo o que pretendemos eacute encarar os problemas que identificamos no ensino juriacutedico e na medida do possiacutevel consshytruir as alternativas e soluccedilotildees

Nossa criacutetica natildeo deve ser vista portanto como uma simples generalizaccedilatildeo ou como um discurso que natildeo acredita na mudanccedila Sabemos que existem exceccedilotildees ao modelo bancaacuterio que mencionashymos de fato noacutes mesmos nos esforccedilamos para destoar dele e eacute nessa perspectiva que nas linhas que se seguem apresentaremos os probleshymas e certamente os caminhos possiacuteveis para o seu enfrentamento

1 0 ensino juriacutedico e seus problemas

Mencionamos anteriormente que o ensino juriacutedico apresenta diversos problemas alguns satildeo inerentes ao ensino em geral outros lhe parecem ser mais especiacuteficos Um ponto que queremos abordar eacute o caraacuteter bancaacuterio que parece predominar na nossa educaccedilatildeo juriacuteshydica Falamos em educaccedilatildeo juriacutedica bancaacuteria numa clara apropriashyccedilatildeo das ideacuteias de Paulo Freire jurista de formaccedilatildeo42 pioneiro na compreensatildeo e proposta de uma pedagogia criacutetica baseada numa educaccedilatildeo verdadeiramente libertadora interessada na construccedilatildeo de uma sociedade mais justa e igualitaacuteria

A concepccedilatildeo de educaccedilatildeo bancaacuteria eacute portanto perfeitamente apropriada para o presente trabalho

42 Embora fosse jurista de formaccedilatildeo a carreira juriacutedica de Paulo Freire foi muito breve segundo ele proacuteprio revela (cf FREIRE 1992) resumiu-se a uma cobranccedila natildeo realizada Advogado do credor de um jovem dentista que natildeo podia pagar a diacutevida Paulo sensibilizado com a situaccedilatildeo devolveu a causa e abandonou a advocacia Embora tenha dedicado sua vida agrave educaccedilatildeo que eacute um direito humano e tenha advogado a causa dos condenados da terra ainda assim podemos dizer que a carreira juriacutedica de Paulo se esgota naquele breve momento

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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A narraccedilatildeo de que o educador eacute o sujeito conduz os educandos agrave memorizaccedilatildeo mecacircnica do conteuacutedo narrado Mais ainda a narraccedilatildeo os transforma em vasilhas em recipientes a serem enchidos pelo educador Quanto mais vaacute enchendo os recipienshytes com seus depoacutesitos tanto melhor educador seraacute Quanto mais se deixem documente encher tanto melhores educandos seratildeo

Desta maneira a educaccedilatildeo se torna um ato de deposhysitar em que os educandos satildeo os depositaacuterios e o educador o depositante

Em lugar de comunicar-se o educador faz comushynicados e depoacutesitos que os educandos meras inshycidecircncias recebem paciente-mente memorizam e repetem Eis aiacute a concepccedilatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo em que a uacutenica margem de accedilatildeo que se oferece aos educandos eacute a de receberem os depoacutesitos guarda -los e arquivaacute-los Margem para serem colecionadoshyres ou fichadores das coisas que arquivam No funshydo poreacutem os grandes arquivados satildeo os homens nesta (na melhor das hipoacuteteses) equivocada concepshyccedilatildeo bancaria da educaccedilatildeo Arquivados porque fora da busca fora da praacutexis os homens natildeo podem ser Educador e educandos se arquivam na medida em que nesta distorcida visatildeo da educaccedilatildeo natildeo haacute criatividade natildeo haacute transformaccedilatildeo natildeo haacute saber Soacute existe saber na invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros Busca esperanccedilosa tambeacutem

Na visatildeo bancaacuteria da educaccedilatildeo o saber eacute uma doaccedilatildeo dos que se julgam saacutebios aos que julgam nada saber Doaccedilatildeo que se funda numa das manishyfestaccedilotildees instrumentais da ideologia da opressatildeo a absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia que constitui o que chamamos de alienaccedilatildeo da ignoracircncia segundo a qual esta se encontra sempre no outro

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O educador que aliena a ignoracircncia se manteacutem em posiccedilotildees fixas invariaacuteveis Seraacute sempre o que sabe enquanto os educandos seratildeo sempre os que natildeo sashybem A rigidez destas posiccedilotildees nega a educaccedilatildeo e o conhecimento como processos de busca

O educador se potildee frente aos educandos como sua antinomia necessaacuteria Reconhece na absolutizaccedilatildeo da ignoracircncia daqueles a razatildeo de sua existecircncia Os educandos alienados por sua vez agrave maneira do escravo na dialeacutetica hegeliana reconhecem em sua ignoracircncia a razatildeo da existecircncia do educador mas natildeo chegam nem sequer ao modo do escravo naquela dialeacutetica a descobrir-se educadores do edushycador (FREIRE 2005 p 66-67)

Essas palavras de Freire embora direcionadas agrave educaccedilatildeo em geral incidem perfeitamente no ensino juriacutedico (cf MARTIacuteNEZ

2009 p 22) No Direito aliaacutes muitas vezes exige-se que a formaccedilatildeo do bacharel seja bancaacuteria o que se daacute por diversas razotildees Dentre essas razotildees uma primeira que nos parece evidente eacute o proacuteprio conteuacutedo que eacute ensinado ou melhor dizendo o que eacute o direito que o educador conhece e estaacute disposto a depositar no educando e tambeacutem que direito o educando estaacute disposto a receber

Aqui eacute interessante recorrer a outro lugar comum e lembrar o papel do Estado moderno burguecircs e ocidental reivindicando para si o monopoacutelio pretensamente legiacutetimo do uso da forccedila e da proshyduccedilatildeo do direito Eacute evidente que muito desse estado perdura ateacute hoje e apesar de ainda haver divergecircncias sobre o que exatamente eacute o fenocircmeno juriacutedico e onde estatildeo situadas suas fronteiras mdash com a moral a religiatildeo etc mdash eacute o direito que esse Estado produz que eacute predominantemente ensinado e legitimado na educaccedilatildeo formal

Natildeo podemos negar certamente a existecircncia desse direito formatado pela teoria normativista do direito mas seraacute que ele eacute o uacutenico direito que existe Seraacute que essa perspectiva monista realmente

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

Referecircncias

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eacute a melhor que temos agrave nossa disposiccedilatildeo Seraacute que ela eacute ao menos a mais condizente com a realidade ou seraacute que existem outros dishyreitos alternativos ao estatal43 Questotildees como essas satildeo constanshytemente ignoradas por um ensino juriacutedico dogmaacutetico e formalista

De um lado temos os professores ideologicamente condicioshynados para ensinar apenas o direito estatal e para pensaacute-lo numa perspectiva acriacutetica apenas com base nos manuais do outro lado temos os proacuteprios educandos exigindo apenas o direito estatal e de uma forma simplista e reducionista apenas o que cai e da forma como cai no exame da ordem e nos concursos puacuteblicos Muitos professores aliaacutes usam o argumento de que cai na ordem para leshygitimar seu discurso e os conteuacutedos que pretendem depositar nos educandos

Essa praacutetica eacute tatildeo dominante que temos percebido que os docentes que destoam desse modelo puramente concursista pro-blematizando e suscitando o debate e a reflexatildeo via de regra satildeo rotulados nas conversas entre os discentes Esse professor eacute muito viajado dizem eles Como resposta podemos argumentar que emshybora simpatizemos com os concursos puacuteblicos natildeo podemos reshyduzir o ensino juriacutedico mdash sobretudo na graduaccedilatildeo mdash agrave preparaccedilatildeo para os referidos concursos Acreditamos que a graduaccedilatildeo deve ser o local da construccedilatildeo de um conhecimento mais amplo e profundo

Numa simples analogia e ainda na perspectiva das carreishyras juriacutedicas diriacuteamos que a graduaccedilatildeo deve ser apta a desenvolshyver ao menos bases soacutelidas para a atuaccedilatildeo dos futuros advogados e juizes e natildeo apenas um preparatoacuterio para o exame de ordem ou para a prova da magistratura Mas o que vemos eacute que numa aula que se legitima apenas com o argumento de que cai na ordem se um determinado assunto mesmo que seja superficial comporshyta muacuteltiplas interpretaccedilotildees mdash eg a questatildeo das geraccedilotildees versus a

43 Sobre pluralismo juriacutedico cf WOLKMER (2001) sobre direito alternativo cf ADEODATO (2009 p 15-39)

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indivisibilidade dos direitos humanos mdash a que eacute validada pela doushytrina majoritaacuteria e pelas bancas dos concursos eacute a uacutenica que tende a ser ministrada em sala

Talvez natildeo sejamos mais uma repuacuteblica de bachareacuteis mas nos parece claro que o ensino juriacutedico ainda permanece fortemenshyte comprometido com a formaccedilatildeo sobretudo ideoloacutegica daqueles que vatildeo compor os quadros estatais44 Essa formaccedilatildeo se relaciona a outro aspecto que queremos abordar brevemente a forma que o discurso juriacutedico assume e que nos parece ser uma heranccedila ou resshyquiacutecio do bacharelismo isto eacute o culto do saber verbal e vazio exshypressado em discursos e palavreado pomposo (SALDANHA 1980 p 176) Eacute essa a forma de discurso cultuada pelo educador perante os educandos e muitas vezes eacute no que eles estatildeo interessados talshyvez porque inconscientemente ou natildeo alimentem essa imagem do bacharel e a desejem para si

Nessa composiccedilatildeo da imagem do papel social e da proacutepria identidade do bacharel entrariam as expressotildees em latim e a vershyborragia as vestimentas pomposas o reverencialismo e as deferecircn-cias muacutetuas mdash sobretudo nas citaccedilotildees mdash e certas normas compor-tamentais tidas como ofensivas agrave justiccedila mdash como a proibiccedilatildeo ao uso de acessoacuterios de chapelaria nos Foacuteruns mdash esses dentre outros seriam os ingredientes que compotildeem um certo estereoacutetipo juriacutedishyco pinguinizado45 perseguido pelos educandos e propagado pelos professores46

44 Desde o Impeacuterio os cargos e funccedilotildees do Estado eram destinados aos bachareacuteis inicialmente formados na Metroacutepole o que propiciava um meio eficaz para assegurar o controle ideoloacutegico e para manter restrito e controlaacutevel o acesso ao capital sociocultural (cf KOZIMA 2004) Claro que sempre tivemos o aparecimento de juristas criacuteticos mas quando pensamos em como muitos deles se insurgiram com o modelo de direito que aprenderam a problemaacutetica do ensino juriacutedico parece ficar ainda mais evidente

45 Nos referimos agrave metaacutefora de Luis Alberto Warat sobre a pinguinizaccedilatildeo O pinguumlim eacute o jurista em seus trajes formais o bacharel que abandona sonhos e ideais e se torna portador e reprodutor de um discurso uacutenico (cf WARAT 2006)

46 Esse estereoacutetipo do professor de direito eacute tatildeo forte que agraves vezes leva a discursos

A J

Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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Os professores aliaacutes em sua formaccedilatildeo mdash apedagoacutegica por assim dizer mdash acabam sendo ao mesmo tempo peccedilas chave na proshypagaccedilatildeo do modelo de direito acriacutetico que viemos denunciando e emblemas desse modelo que viemos criticando

() o grande jurista Arruda Juacutenior (1989 p 26) preceitua que

Os professores de Direito aparecem somente para suas aulas com raacutepida parada na sala dos professhysores As salas estatildeo sempre vazias sendo difiacutecil ao aluno o acesso ao lente Dificilmente publicam Satildeo conservadores ao extremo transpassando aos alunos uma visatildeo legalista formalista embasada seja num feroz positivismo kelseniano ou dentro dos marcos de uma cultura juriacutedica moldada no liberalismo e nos mitos que o fundam historicamente

A situaccedilatildeo eacute bem pior quando se examina o lado didaacutetico do problema Aiacute sim bate uma sensaccedilatildeo de desespero que precisa ser controlada heroicashymente De fato poucos professores universitaacuterios tecircm noccedilotildees de didaacutetica Para muitos isso eacute apenas mais uma palavra Resultado peacutessimas aulas Consshytata-se sem maiores anaacutelises que falta um preparo para a docecircncia No caso do Curso de Direito isso eacute particularmente grave porque ser professor natildeo significa a mesma coisa que ser juiz promotor ou advogado Trata-se de trabalhos diferentes que por isso mesmo reclamam um treinamento tambeacutem dishyferente E isto eacute assim porque agraves vezes um grande advogado poderaacute ser um professor sofriacutevel enquanshyto um brilhante professor universitaacuterio poderaacute natildeo saber se desincumbir das coisas do foro

contraditoacuterios O mesmo professor que parece o avatar da moralidade quando critica a falta de compromisso dos alunos e que faz questatildeo de registrar como as coisas eram mais difiacuteceis naqueles tempos mdash idiacutelicos mdash quando ele era o aluno em outros dias quando a temaacutetica e o tom da conversa eacute mais ameno admite que se divertiu em sua mocidade na graduaccedilatildeo que negligenciava as aulas que lhe pareciam chatas e ateacute mesmo que filava nas provas difiacuteceis

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A histoacuteria mostra que os professores do curso de Direito sempre foram advogados juizes membros do Ministeacuterio Puacuteblico e procuradores autaacuterquicos Natildeo se teve mdash e natildeo se tem ainda mdash o professor puro como regra nos cursos de Direito de modo que praticamente o curso convive com professores que apresentam baixa dedicaccedilatildeo agrave docecircncia natildeo necessariamente por negligecircncia mas sim por falta de tempo disponiacutevel para a universidade A atividashyde principal eacute metadocente e para ela o maior temshypo eacute canalizado

Ateacute mesmo mestres e doutores natildeo conhecem pelo menos grande parte deles didaacutetica Satildeo neoacutefltos no campo da metodologia do ensino Ainda natildeo se pershycebeu que o conhecimento natildeo deflui automaticashymente dos tiacutetulos acadecircmicos Os tiacutetulos satildeo meros indicativos que naturalmente precisam de comshyprovaccedilatildeo factual Caberaacute ao Mestre e ao Doutor a prova de que realmente merecem tais adornos Natildeo basta assinar como professor-doutor para que se teshynha um doutor digno desse qualitativo (FIORENZE 2005 p 78-79 grifas do original)

A criacutetica eacute incisiva e embora pudeacutessemos relativizaacute-la uma vez que conhecemos excelentes docentes mdash e alguns exercem outras atividades mdash ainda assim em linhas gerais a generalizaccedilatildeo natildeo eacute arbitraacuteria Essa eacute a imagem e a identidade da maioria dos professoshyres de direito produtos e produtores de um ensino juriacutedico acriacutetico Com raras exceccedilotildees esse eacute o retrato do modelo de ensino juriacutedico brasileiro47 um modelo que evidentemente acaba tendo diversos reflexos negativos no que concerne ao ensino dos direitos humanos

47 Esse modelo que denunciamos em alguns aspectos parece ser um fenocircmeno recente e aqui temos o concursismo atestado pela proliferaccedilatildeo de cursos preparatoacuterios e obras destinadas aos concurseiros mas eacute antigo em sua estrutura acriacutetica ampla trata-se de um modelo que vem sendo reproduzido atraveacutes do ensino juriacutedico haacute tanto tempo que chega a lhe parecer inerente

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

Z85

formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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2 Dificuldades de abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico formal

Um dos enfoques do presente artigo remete as dificuldades de abordagem relativa ao ensino dos direitos humanos no curso de direito ou seja apresenta como ponto de partida uma indagaccedilatildeo haacute espaccedilo para se discutir direitos humanos no ensino juriacutedico forshymal Poderiacuteamos refazer a pergunta sob outro prisma sem mudar o contexto ou seja haacute espaccedilo na grade curricular do curso de direishyto para disciplinas ciecircncias que trabalham o direito como fenocircmeshyno juriacutedico promovendo as necessaacuterias aberturas cognitivas para os problemas humanos e sociais

Independentemente da discussatildeo se o direito eacute ou natildeo ciecircncia eacute de fundamental importacircncia questionar de que mashyneira o direito busca o conhecimento cientiacutefico Ao buscar esse conhecimento cientiacutefico o direito recebe a influecircncia de outras aacutereas do saber e de seus respectivos meacutetodos adotando a inter-disciplinaridade

Certamente buscar o conhecimento cientiacutefico no ensino juriacuteshydico eacute partir do princiacutepio que o direito deve ser estudado como um fenocircmeno em constante adaptaccedilatildeo com o contexto social Eacute necesshysaacuterio tambeacutem que o estudioso se desarme das ideacuteias preconcebidas de verdade de certeza e seguranccedila fundamentadas no estudo das leis das normas juriacutedicas como uacutenico caminho a ser trilhado tenshydo como base o dogmatismo juriacutedico

Natildeo cabem mais no ensino juriacutedico os olhares enviesados quando os assuntos satildeo os direitos humanos criminologia socioshylogia do direito histoacuteria do direito eacutetica filosofia do direito e etc Os problemas sociais jaacute indicam que as mudanccedilas satildeo necessaacuterias e o discurso formalista do direito natildeo pode mais ecoar uniacutessono desconsiderando os conteuacutedos humaniacutesticos Caso contraacuterio o dishyreito e o seu ensino formalista bem como a sociedade continuaratildeo

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sempre validando poliacuteticas de controle e transgressatildeo e o vencedor seraacute aquele que dominar as regras do jogo

21 Qual eacute o sentido do conteuacutedo DIREITOS HUMANOS no ensino Juriacutedico

Quando nos referimos ao ensino juriacutedico e aos discursos jushyriacutedicos da assim chamada poacutes-modernidade natildeo eacute difiacutecil perceber que o direito tradicionalmente tem trabalhado para dogmatizar e por que natildeo dizer constitucionalizar assuntos com conteuacutedos humaniacutesticos seja relacionado aos direitos naturais (enfoque teoacute-rico-filosoacutefico) mdash eg direito agrave vida direito agrave liberdade e etc ou aos direitos humanos (enfoque filosoacutefico mas mais concreto) mdash e ainda falamos na vida liberdade e etc Se a validaccedilatildeo do direito nashytural48 atualmente eacute a natureza humana entatildeo podemos observar que direitos naturais e humanos satildeo anteriores ao direito como o compreendemos hoje que passa a existir apenas para declarar e gashyrantir esses direitos da pessoa humana

Satildeo tantas as acepccedilotildees da palavra direito que para defini-lo eacute necessaacuterio contextualizaacute-lo historicamente Mas o direito ensinado e repassado aos educandos pelos professores pelos manuais tem uma concepccedilatildeo moderna validado pela lei em um sistema totalshymente hierarquizado Nesse sentido todas as outras concepccedilotildees da

48 Eacute interessante que apesar da estigmatizaccedilatildeo que os direitos humanos sofrem e o melhor exemplo talvez seja a acusaccedilatildeo midiaacutetica de que satildeo direitos de bandidos sempre parece ser possiacutevel trazer os direitos humanos para um debate atual e concreto mas no que concerne ao direito natural excetuando a vaga lembranccedila nos manuais e aulas de Introduccedilatildeo ao Direito e algumas menccedilotildees marginais e equivocadas em algumas obras mdash como a de Ingo Sarlet que mencionaremos abaixo mdash a ideacuteia parece ser a exclusatildeo total Dito de outra forma se em toda sociedade a produccedilatildeo do discurso eacute ao mesmo tempo controlada selecionada organizada e redistribuiacuteda por certo nuacutemero de procedimentos (FOUCAULT 2011 p 8-9) o direito natural parece estar cada vez mais fora das ordens do discurso De nossa parte acreditamos que o debate em torno do direito natural ainda natildeo estaacute exaurido e pode render bons frutos

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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palavra direito foram marginalizadas pelo direito posto exclusivashymente estatal pela ciecircncia do direito pelo ensino juriacutedico fundashymentado em uma hermenecircutica teacutecnica em nome de uma suposta seguranccedila juriacutedica promovida por esse direito positivado49

O direito posto formal normatizado muitas vezes rejeita conteuacutedos e debates plurais abertos fundamentados no ideal de justiccedila na moral ateacute o momento de serem positivados Isso mesmo eacute necessaacuterio instrumentalizaacute-los para que o fundamento juriacutedico natildeo seja outro que natildeo o estatal Tradicionalmente todo esse pensashymento dogmaacutetico se reflete no ensino juriacutedico que mais das vezes eacute incapaz de perceber os aspectos de dominaccedilatildeo e de subalternizaccedilatildeo presentes no direito positivado

Como o nosso enfoque satildeo os direitos humanos a primeishyra dificuldade relacionada ao seu ensino eacute a proacutepria ausecircncia do conteuacutedo direitos humanos seja como disciplina autocircnoma seja nas ementas e planos de ensinos das demais disciplinas juriacutedishycas Muitas faculdades de direito natildeo contam com uma disciplishyna especiacutefica voltada aos direitos humanos ou aos direitos funshydamentais50 o conteuacutedo acaba sendo espremido nas disciplinas de Direito Internacional Puacuteblico eou Direito Constitucional e abordado de forma inadequada Nesse sentido George Marmels-tein lembra que

De que adianta uma Constituiccedilatildeo tatildeo boa se ela natildeo eacute aplicada De que vale conhecer o texto constitushycional se na praacutetica ele natildeo tem utilidade Para que estudar os direitos fundamentais se eles praticamenshyte natildeo possuem efetividade

49 O ponto de partida dessa hermenecircutica teacutecnica eacute a norma juridicamente vaacutelida muito embora nem sempre haja uma justificativa plausiacutevel sobre o que valida a norma daiacute alguns professores recorrerem ainda hoje agrave ideacuteia kelseniana de uma norma fundamental hipoteacutetica que eacute utilizada para validar todo o ordenamento juriacutedico

50 A questatildeo da possiacutevel diferenccedila entre essas duas expressotildees seraacute abordada posteriormente

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Dentro desse contexto surge o sentimento de frusshytraccedilatildeo constitucional decorrente da falta de sinceshyridade das normas constitucionais que invocam o que natildeo estaacute presente afirmam o que natildeo eacute verdade e prometem o que natildeos eraacute cumprido E junto com a frustraccedilatildeo constitucional vem um sentimento de desacircnimo que enfraquece a luta em prol da efetivashyccedilatildeo das normas constitucionais

Talvez esse sentimento explique o fato de que o ensino do direito constitucional aqui no Brasil deixe muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitu-cionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais em que o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constishytuiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos (MARMELSTEIN 2013 p xxi grifamos)51

Embora se refira ao Direito Constitucional e aos direitos fundamentais que entende serem diferentes dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais a criacutetica de Marmelstein eacute aplicaacutevel agrave abordagem dos direitos humanos no ensino juriacutedico

51 Essa passagem da Apresentaccedilatildeo do Curso de Direitos Fundamentais sofreu uma reformulaccedilatildeo a versatildeo original que nos parecia mais incisiva (se encontra disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt) dizia que O direito constitucional nos uacuteltimos vinte anos foi sem duacutevida entre todas as disciplinas juriacutedicas o ramo do direito que mais evoluiu natildeo apenas quantitativamente mas sobretudo pelo niacutevel de qualidade e de refinamento acadecircmico adquirido Isso se deu de modo natural como decorrecircncia do processo de (re)democratizaccedilatildeo do paiacutes Apesar disso infelizmente o que se nota eacute que o ensino dessa mateacuteria com raras e honrosas exceccedilotildees ainda deixa muito a desejar no que se refere aos direitos fundamentais Ou o estudo eacute muito voltado para os aspectos processuais do controle de constitucionalidade ou se volta apenas para uma anaacutelise meramente formal das normas constitucionais onde o papel do professor eacute tatildeo somente ajudar o aluno a decorar os artigos e incisos da Constituiccedilatildeo Com isso o estudante acaba lamentando a existecircncia de tantos direitos previstos na Constituiccedilatildeo brasileira (grifamos)

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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WOLKMER Antocircnio Carlos Pluralismo juriacutedico fundamentos de uma nova cultura no direito Satildeo Paulo Alfa omega 2001

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formal Uma abordagem formal das normas repeticcedilatildeo de lugares comuns desprovida de qualquer contextualizaccedilatildeo com o saber de experiecircncia feito dos educandos ou sequer vinculaccedilatildeo a casos concretos que possam remeter a um aspecto praacutetico dos direitos humanos E tudo isso a nossa revelia a baila de uma tematizaccedilatildeo dogmaacutetica

22 A tematizaccedilatildeo superficial e inadequada dos direitos humanos sob o enfoque dogmaacutetico

Existem trecircs geraccedilotildees distintas de direitos humanos de acordo com seu surgimento e positivaccedilatildeo A primeira geraccedilatildeo eacute a dos direishytos civis e poliacuteticos a segunda geraccedilatildeo eacute a dos direitos econocircmicos e sociais e a terceira geraccedilatildeo de direitos coletivos O mais correto eacute falar em dimensotildees e natildeo em geraccedilotildees de direitos Os direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a segunda guerra mundial Eacute de vital importacircncia diferenciar os direitos do homem dos direitos humanos dos direitos fundamentais

Esses satildeo alguns dos lugares comuns que satildeo reproduzidos diariamente no ensino juriacutedico eles compotildeem o discurso monoacuteshytono de muitos professores e eacute dessa forma que satildeo passados aos alunos muitas vezes desinteressados ou ateacute mesmo sonolentos Esshyses lugares comuns natildeo condizem totalmente com a realidade e a utilidade e finalidade de sua reproduccedilatildeo dogmaacutetica eacute no miacutenimo questionaacutevel

Comecemos com a questatildeo terminoloacutegica existe uma ampla mdash e em grande medida inoacutecua mdash discussatildeo sobre o uso das diversas expressotildees relacionadas aos direitos humanos52 Antocircnio Enrique Peacuterez Luno desde meados dos anos 1980 reporta-se a propensotildees doutrinaacuterias que ele teria identificado quanto ao uso de expressotildees

52 eg direitos humanos liberdades puacuteblicas direitos fundamentais direitos humanos fundamentais direitos do homem direitos naturais etc

como direitos humanos e direitos fundamentais (cf PEacuteREZ LUNO

2011 p 39-40) Aqui no Brasil no iniacutecio da deacutecada de 1990 Bonavides jaacute se

mostrava inconformado com o que ele denominava de uso proshymiacutescuo das expressotildees direitos humanos direitos do homem e direitos fundamentais e observava que os direitos fundamentais apoacutes as grandes declaraccedilotildees de direitos passam a assumir uma dimensatildeo concreta diferente da dimensatildeo abstrata dos direitos hushymanos do jusnaturalismo (cf BONAVIDES 19901991 p 3-4)

Embora tenhamos encontrado esses antecedentes segundo nos parece eacute Ingo Wolfgang Sarlet numa argumentaccedilatildeo ao mesmo tempo confusa e persuasiva53 mdash claramente inspirada em em Perez

53 Em que pese sejam ambos os termos (direitos humanos e direitos fundamentais) comumente utilizados como sinocircnimosa explicaccedilatildeo corriqueira e diga-se de passagem procedente para a distinccedilatildeo eacute de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado ao passo que a expressatildeo direitos humanos guardaria relaccedilatildeo com os documentos de direito internacional por referir-se agravequelas posiccedilotildees juriacutedicas que se reconhecem ao ser humano como tal independentemente de sua vinculaccedilatildeo constitucional e que portanto aspiram agrave validade universal para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequiacutevoco caraacuteter supranacional (internacional) A consideraccedilatildeo de que o termo direitos humanos pode se equiparado ao de direitos naturais natildeo nos parece correta uma vez que a proacutepria positivaccedilatildeo em normas de direito internacional de acordo com a luacutecida liccedilatildeo de Bobbio jaacute revelou de forma incontestaacutevel a dimensatildeo histoacuterica e relativa dos direitos humanos que assim se desprenderam mdash ao menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) mdash da ideacuteia de um direito natural Todavia natildeo devemos esquecer que na sua vertente histoacuterica os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento pelo direito positivo de uma seacuterie de direitos naturais do homem que neste sentido assumem uma dimensatildeo preacute-estatal e para alguns ateacute mesmo supra-estatal Cuida-se sem duacutevida igualmente de direitos humanos mdash considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condiccedilatildeo humana mdash mas neste caso de direitos natildeo-positivados

Assim com base no exposto cumpre traccedilar uma distinccedilatildeo ainda que de cunho predominatemente didaacutetico entre as expressotildees direitos do homem (no sentido de direitos naturais natildeo ou ainda natildeo positivados) direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos

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Luno mdash propotildee a classificaccedilatildeo que parece em voga no Brasil atualshymente denominar direitos fundamentais aqueles reconhecidos como tais no acircmbito interno de um determinado Estado direitos humanos aqueles positivados como tais no plano internacional e por fim direitos naturais ou do homem aqueles tidos como inerenshytes ao ser humano mas ainda natildeo positivados

Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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Essa classificaccedilatildeo um tanto questionaacutevel jaacute foi alvo de criacuteticas cf GALINDO 2004 p 48-49) seja porque direitos do homem e direishytos humanos querem dizer exatamente a mesma coisa seja porque tais direitos satildeo uma construccedilatildeo histoacuterico-cultural da modernidade Dissemos anteriormente que essa discussatildeo em torno dos significashydos um tanto inoacutecua na verdade as palavras mdash e as expressotildees mdash natildeo possuem significados aleacutem daqueles que lhes damos

No caso do Brasil especificamente mais interessante e mais importante do que tentar atribuir significados a essas expressotildees eacute debater questotildees referentes agrave recepccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos direitos humanos dos Tratados internacionais inclusive refletindo criticashymente sobre o compromisso do nosso judiciaacuterio e de noacutes mesmos com esses direitos (cf GONCcedilALVES ALBUQUERQUE 2012)

Dentre os lugares comuns anteriormente mencionados teshymos tambeacutem a teoria das geraccedilotildees Ela eacute criticaacutevel por diversas rashyzotildees primeiro porque essa teoria das geraccedilotildees pretende classificar os direitos humanos de acordo com sua afirmaccedilatildeo histoacuterica mas acaba fazendo isso de forma equivocada

Em primeiro lugar essa tese das geraccedilotildees de direishytos natildeo tem nenhum fundamento juriacutedico nem na realidade Essa teoria eacute fragmentadora atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividishyda o que natildeo corresponde agrave realidade Eu conversei

ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) () Neste contexto de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispacircnico Perez Luno o criteacuterio mais adequado para determinar a diferenciaccedilatildeo entre ambas as categorias eacute o da concreccedilatildeo positiva () (SARLET 2004 p 35-37)

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com Karel Vasak e perguntei Por que vocecirc formushylou essa tese em 1979 Ele respondeu Ah eu natildeo tinha tempo de preparar uma exposiccedilatildeo entatildeo me ocorreu fazer alguma reflexatildeo e eu me lembrei da bandeira francesa mdash ele nasceu na velha Tchecos-lovaacutequia Ele mesmo natildeo levou essa tese muita a seacuteshyrio mas como tudo que eacute palavra chavatildeo pegou Aiacute Norberto Bobbio comeccedilou a construir geraccedilotildees de direitos etc (CANGADO TRINDADE 2000)

Satildeo fatos negligenciados por muitos professores talvez porshyque como diz Canccedilado Trindade sendo chavatildeo acabou sendo amshyplamente aceito Passou a integrar o senso comum dos juristas A criacutetica que geralmente eacute feita ao esquema geracional de Vasak diz principalmente agrave escolha do termo geraccedilotildees e a divisihilidade dos direitos humanos em 1987 Perez Luno jaacute dizia que as geraccedilotildees de direitos humanos natildeo envolvem um processo meramente cronoshyloacutegico e linear essas geraccedilotildees natildeo implicam a substituiccedilatildeo de um cataacutelogo de direitos por outro e aleacutem disso certas necessidades hisshytoacutericas se traduzem no surgimento de novos direitos mas outras acabam supondo a redimensatildeo mdash Ia redimensioacuten mdash ou redefiniccedilatildeo de direitos anteriores aos novos contextos em que devem ser aplishycados (PEREZ LUNO 1987 p 56)

Acreditamos que a criacutetica de Perez Luno foi uma das princishypais influecircncias para os autores nacionais mdash dentre outros Bonavi-des (cf 1999) e Sarlet (cf 2004) mdash que criticam a terminologia gerashyccedilotildees de direitos e falam em dimensotildees de direitos De qualquer forshyma essa suposta afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos receba o nome que receber mdash dimensotildees ou geraccedilotildees mdash natildeo nos parece toshytalmente condizente com a realidade embora ela possa ateacute ser adeshyquada quando se pensa na perspectiva do reconhecimento desses direitos no texto das constituiccedilotildees mdash uma perspectiva tipicamenshyte estatal portanto mdash quando deslocamos o foco da questatildeo para o direito internacional essa teoria natildeo possui qualquer respaldo

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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O Caraacuteter Expansivo dos Direitos Humanos na Afirmashyccedilatildeo de sua Indivisibuumlidade e Exigibilidade In Jayme Benvenuto (Org) Direitos Humanos Internacionais Avanccedilos e desafios no iniacutecio do seacuteculo XXI Recife GAJOPMNDH-NE 2001b

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Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005

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histoacuterico Na perspectiva internacional a primeira geraccedilatildeo natildeo foi a dos direitos civis e poliacuteticos mas dos direitos sociais como nos lemshybra Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade em seu pronunciamento agrave Assembleacuteia Constituinte de 198788

Eacute claro que natildeo cabe um paralelismo absoluto entre os desenvolvimentos no plano do Direito Interno e no plano do Direito Internacional mesmo porque haacute um certo descompasso entre o pensamento de constitucionalistas e internacionalistas nessa aacuterea Por exemplo para dar uma ilustraccedilatildeo no Direito Interno a consagraccedilatildeo dos direitos civis e poliacuteticos precedeu aos chamados direitos sociais Mas no plashyno internacional deu-se o contraacuterio os direitos soshyciais foram os primeiros a ser consagrados atraveacutes das convenccedilotildees internacionais da OIT a partir de 1919 Somente depois houve a consagraccedilatildeo dos deshymais direitos (BRASIL 19871988 p 97)

Com isso percebemos tambeacutem o equiacutevoco que eacute pensar que 05 direitos humanos surgiram no plano internacional apoacutes a Segunda Guerra Mundial desde o seu surgimento a Organizaccedilatildeo Internacioshynal do Trabalho (OIT) estaacute comprometida com a afirmaccedilatildeo e reashylizaccedilatildeo dos direitos sociais Como vemos a classificaccedilatildeo geracional dimensional dos direitos humanos eacute insuficiente tanto pela falta de finalidade dos criteacuterios que usualmente satildeo empregados na distinshyccedilatildeo como pelo fato de que independentemente dos criteacuterios um determinado direito pode se apresentar em mais de uma dimensatildeo54

54 Essa classificaccedilatildeo geracionaldimensional foi empregada muito tempo para justificar a ausecircncia do Estado no que concerne aos direitos sociais que demandariam uma prestaccedilatildeo estatal Uma falaacutecia As liberdades puacuteblicas a rigor tambeacutem possuem um custo Protection against government is therefore unthinkable without protection by government (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 55)

A more adequate approach to rights has a disarmingly simple premise private liberties have public costs This is true not only of rights to Social Security Medicare and food stamps but also of rights to private property freedom of speech immunity from police abuse contractual liberty free exercise of religion and indeed of the full panoply of

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Temos um oacutetimo exemplo disso no direito agrave vida que se apresenta numa primeira geraccedilatildeo a sua inviolabilidade mas que tambeacutem se projeta na segunda geraccedilatildeo mdash e demais geraccedilotildees mdash quando pensamos nas condiccedilotildees de vida no direito de viver com dignidade (cf BENVENUTO 2001a p 79) Mesmo quando refletishymos sobre as classificaccedilotildees natildeo como certas ou erradas mas uacuteteis ou inuacuteteis questionamos a utilidade da classificaccedilatildeo geracional soshybretudo porque ela pode levar agrave relativizaccedilatildeo dos direitos humanos A forma mais adequada e uacutetil de compreender os direitos humanos eacute como eles satildeo na realidade indivisiacuteveis A esse respeito Benvenushyto apresenta os argumentos que consideramos mais coerentes para a compreensatildeo dos direitos humanos

A afirmaccedilatildeo da indivisibilidade dos direitos humashynos estaacute ligada ao fim da segunda guerra mundial periacuteodo que marcou o surgimento da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) e dos sistemas intershynacionais de proteccedilatildeo dos direitos humanos no marco da elaboraccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Enquanto a Declaraccedilatildeo Univershysal promulgada em 1948 procurou contemplar dishyreitos humanos civis poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais sem marcar uma distinccedilatildeo geracional os anos seguintes mostraram um mundo profunshydamente dividido em dois blocos econocircmicos e ideoloacutegicos mdash o capitalismo e o socialismo mdash o que deixou sequumlelas a uma compreensatildeo integral dos direitos humanos Como afirma Canccedilado Trindashyde a ideacuteia inicial no acircmbito das Naccedilotildees Unidas era incluir em um uacutenico Pacto os direitos civis poliacutetishycos econocircmicos sociais e culturais dotados para implementaccedilatildeo dos sistemas de relatoacuterios e peticcedilotildees (este uacuteltimo em Protocolo separado) No entanto

rights characteristic of the American tradition (HOLMES SUNSTEIN 1999 p 220) Da mesma forma os direitos sociais eventualmente podem impor uma abstenccedilatildeo por parte do Estado mdash apenas a tiacutetulo de exemplo a sauacutede de uma determinada comunidade pode tornar uma obra estatal indesejaacutevel

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

Referecircncias

ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Eacutetica e retoacuterica Para uma teoria da dogmaacutetica juriacutedica Satildeo Paulo Saraiva 2009

ALBUQUERQUE FILHO Joseacute Antocircnio GONCcedilALVES Francys-co Pablo Feitosa A vitimologia e sua interface com os direitos hushymanos In Arnaldo Fonseca de Albuquerque Maranhatildeo Neto Joatildeo Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Correcirca de Arauacutejo (orgs) Direitos Humanos e Fundamentais Temas contemporacircneos led Recife Bagaccedilo 2012 p 373-392

BENVENUTO Jayme Os direitos humanos econocircmicos sociais e culturais Rio de janeiro Renovar 2001a

O Caraacuteter Expansivo dos Direitos Humanos na Afirmashyccedilatildeo de sua Indivisibuumlidade e Exigibilidade In Jayme Benvenuto (Org) Direitos Humanos Internacionais Avanccedilos e desafios no iniacutecio do seacuteculo XXI Recife GAJOPMNDH-NE 2001b

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BONAVIDES Paulo A nova universalidade dos direitos fundamenshytais Nomos Vols 910 jandez Fortaleza 19901991 p 1-13

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BRASIL Anais da Assembleacuteia Nacional Constituinte de 19871988 Disponiacutevel em lthttpwwwsenadogovbrpublicacoesanaiscons-tituintelconstituintezipgt Acesso em 07 jun 2011

CANCcedilADO TRINDADE Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade Questiona a Tese de Geraccedilotildees de Direitos Humanos de Norberto Bobbio Disponiacutevel em lthttpwwwdhnetorg brdireitosmilitantes lcancadotrindadelcancado_bobhtmgt Acesso em 21102010

DOWDNEY Luke Crianccedilas do Traacutefico Um estudo de caso de crianccedilas em violecircncia armada organizada no Rio de Janeiro Rio de Janeiro 7Letras 2003

DOUZINAS Costas O Fim dos Direitos Humanos Satildeo Leopoldo Unisinos 2009

LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do saber Porto AlegreBelo Horizonte ArtmedEditoraUFMG 1999

FREIRE Paulo Pedagogia da Esperanccedila Rio de Janeiro Paz e Terra 1992

Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005

FIOREZE Juliana A crise no ensino juriacutedico brasileiro Revista de Ciecircncias Juriacutedicas e Sociais da UNIPAR v 8 p 69-86 2005

FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Loyola 2011

297

r GALINDO Bruno Ceacutesar Machado Torres Direitos Fundamentais Anaacutelise de sua concretizaccedilatildeo constitucional Curitiba Juruaacute 2004

HOLMES Stephen SUNSTEIN Cass R The Cost of Rights Cambridge Harvard University Press 1999

KOZIMA Joseacute Wanderley Instituiccedilotildees retoacuterica e o bacharelismo no Brasil In Antocircnio Carlos Wolkmer (org) Fundamentos de Histoacuteria do Direito Belo Horizonte Del Rey 2004 p 349-371

MARMELSTEIN George Curso de Direitos Fundamentais Satildeo Paulo Atlas 2013

Curso de Direitos Fundamentais Disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt acesso em 22052013

MARTIacuteNEZ Seacutergio Rodrigo Pedagogia Juriacutedica Curitiba Juruaacute 2009

MIGNONE Ricardo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT Folha de Satildeo Paulo 01032002 Disponiacutevel em lthttpbitlyNj24dUgt Acesso em 05082012

PEacuteREZ LUNO Antonio-Enrique Los derechos fundamentales Madrid Tecnos 2011

SARLET Ingo Wolfgang A Eficaacutecia dos Direitos Fundamentais Porto Alegre Livraria do Advogado 2004

SALDANHA Nelson Sociologia da Educaccedilatildeo Rio de Janeiro Aurora 1980

WARAT Luis Alberto Conferecircncia de Encerramento 2o Seminaacuterio Internacional Direito e Cinema Visotildees sobre o direito e a ditadura 04 e 05 de outubro de 2006 04102006 Transcriccedilatildeo disponiacutevel em lthttptinyurlcomwarat2006gt acesso em 18032013

WOLKMER Antocircnio Carlos Pluralismo juriacutedico fundamentos de uma nova cultura no direito Satildeo Paulo Alfa omega 2001

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a ocorrecircncia de conflitos ideoloacutegicos proacuteprios do periacuteodo da guerra fria e tambeacutem marcados pelo processo de descolonizaccedilatildeo conseguiu estabelecer as bases dos dois Pactos de Direitos Humanos (BENVENUTO 2001b p 77 no mesmo sentido cf BENVENUTO 2001a p 77 etseq)

Como vemos o autor demonstra como eacute adequado afirshymar a indivisibilidade dos direitos humanos e demonstra o quatildeo questionaacutevel satildeo os criteacuterios da classificaccedilatildeo geracional Conveacutem lembrar ainda em conformidade com Benvenuto que apesar da divisatildeo ideoloacutegica caracteriacutestica da guerra fria em 1968 a I Confeshyrecircncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teeratilde afirmou a indivisibilidade dos direitos humanos (cf BENVENUTO 2001a p 78-79 BRASIL 198788 p 95) anos antes portanto da criaccedilatildeo da classificaccedilatildeo geracional de Karel Vasak

Com isso esperamos ter demonstrado que aqueles lugares comuns a que nos referimos anteriormente natildeo satildeo inteiramente corretos e mdash numa perspectiva autocriacutetica mdash indiretamente acabashymos demonstrando como o discurso juriacutedico acaba sendo acriacutetico e desprovido de uma finalidade verdadeiramente emancipatoacuteria Enshyquanto professores tentam incutir bancariamente nos educandos foacutermulas geracionais que supostamente podem ser cobradas em concursos puacuteblicos questotildees verdadeiramente emergenciais refeshyrentes aos direitos humanos acabam sendo negligenciadas

Eacute ateacute com uma certa amargura que percebemos que enquanto noacutes juristas perdemos tempo discutindo teorias geracionais acabashymos deixando agrave margem as questotildees mais emergenciais referentes aos direitos humanos Deveriacuteamos estar mais preocupados na em debater e realizar os direitos humanos das pessoas em condiccedilatildeo de vulnerabilidade social Enquanto debatemos com nosso palavreashydo pomposo se expressotildees como direitos do homem e direitos hushymanos querem dizer a mesma coisa ou quantas geraccedilotildees de direitos

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existem esquecemos que vivemos num paiacutes em que os direitos hushymanos satildeo constantemente violados

Em nosso debate marcado pelas questotildees teoacutericas mais comshyplexas anda nos sentimos desconfortaacuteveis quando algueacutem acusa os direitos humanos de serem direitos de bandido55 ou de serem um mero instrumento de dominaccedilatildeo cultural Mantemos nosso entenshydimento de que essas acusaccedilotildees podem muito bem ser procedenshytes compreendemos que o discurso dos direitos humanos pode ser apropriado de diversas formas para justificar diversos atos e posishycionamentos diversos

Concordamos com Costas Douzinas (cf 2009) o discurso dos direitos humanos triunfou mas seu triunfo eacute repleto de contradishyccedilotildees esse discurso hoje eacute apropriado pelos mais variados posicioshynamentos conservadores e reacionaacuterios nos discursos mais elaboshyrados e enquanto isso vaacuterias pessoas ficam agrave margem desse debate e desses direitos Sempre eacute vaacutelido lembrar que vivemos num paiacutes onde crianccedilas de oito anos estatildeo envolvidas com traacutefico de drogas56

pessoas morrem de fome e as viacutetimas da criminalidade convivem com a ineficiecircncia do Estado em responsabilizar seus agressores

55 Sentimos isso na pele em 2010 na 62a reuniatildeo anual da SBPC na Mesa-Redonda intitulada Direitos Humanos no Brasil quando um dos espectadores fez essa acusaccedilatildeo causando um mal estar geral entre os presentes esse jovem anocircnimo trazia exemplos da sua comunidade relatos de violecircncia e impunidade e questionava ao nosso ver legitimamente a retoacuterica dos direitos humanos Em meio a um debate de niacutevel intelectual tatildeo alto poucos se dispuseram a dialogar com o jovem em questatildeo e noacutes mesmos sentimos alguma dificuldade em argumentar que sua justa indignaccedilatildeo era uma defesa dos direitos humanos das viacutetimas Desde entatildeo nos conscientizamos de que um debate acessiacutevel e inclusivo sobre tais direitos eacute muito mais importante do que discursos pomposos sobre expressotildees e teorias

56 Esse exemplo pode ser um lugar comum mas eacute um lugar comum tristemente real Conforme noticiado na Folha de Satildeo Paulo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT (MIGNONE 2002) Apoacutes mais de dois anos de pesquisa na qual foi investigada a realidade das favelas do Rio de Janeiro inclusive entrevistando vaacuterias pessoas ligadas ao traacutefico Luke Dowdney (cf 2003 passim esp p 126) registra que a idade meacutedia de entrada no traacutefico eacute de treze anos e que a situaccedilatildeo dessas crianccedilas eacute muito mais semelhante agrave realidade de uma guerra do que agrave de bandidos

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

Referecircncias

ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Eacutetica e retoacuterica Para uma teoria da dogmaacutetica juriacutedica Satildeo Paulo Saraiva 2009

ALBUQUERQUE FILHO Joseacute Antocircnio GONCcedilALVES Francys-co Pablo Feitosa A vitimologia e sua interface com os direitos hushymanos In Arnaldo Fonseca de Albuquerque Maranhatildeo Neto Joatildeo Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Correcirca de Arauacutejo (orgs) Direitos Humanos e Fundamentais Temas contemporacircneos led Recife Bagaccedilo 2012 p 373-392

BENVENUTO Jayme Os direitos humanos econocircmicos sociais e culturais Rio de janeiro Renovar 2001a

O Caraacuteter Expansivo dos Direitos Humanos na Afirmashyccedilatildeo de sua Indivisibuumlidade e Exigibilidade In Jayme Benvenuto (Org) Direitos Humanos Internacionais Avanccedilos e desafios no iniacutecio do seacuteculo XXI Recife GAJOPMNDH-NE 2001b

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BONAVIDES Paulo A nova universalidade dos direitos fundamenshytais Nomos Vols 910 jandez Fortaleza 19901991 p 1-13

Curso de Direito Constitucional Satildeo Paulo Malheiros 1999

BRASIL Anais da Assembleacuteia Nacional Constituinte de 19871988 Disponiacutevel em lthttpwwwsenadogovbrpublicacoesanaiscons-tituintelconstituintezipgt Acesso em 07 jun 2011

CANCcedilADO TRINDADE Antocircnio Augusto Canccedilado Trindade Questiona a Tese de Geraccedilotildees de Direitos Humanos de Norberto Bobbio Disponiacutevel em lthttpwwwdhnetorg brdireitosmilitantes lcancadotrindadelcancado_bobhtmgt Acesso em 21102010

DOWDNEY Luke Crianccedilas do Traacutefico Um estudo de caso de crianccedilas em violecircncia armada organizada no Rio de Janeiro Rio de Janeiro 7Letras 2003

DOUZINAS Costas O Fim dos Direitos Humanos Satildeo Leopoldo Unisinos 2009

LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do saber Porto AlegreBelo Horizonte ArtmedEditoraUFMG 1999

FREIRE Paulo Pedagogia da Esperanccedila Rio de Janeiro Paz e Terra 1992

Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005

FIOREZE Juliana A crise no ensino juriacutedico brasileiro Revista de Ciecircncias Juriacutedicas e Sociais da UNIPAR v 8 p 69-86 2005

FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Loyola 2011

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r GALINDO Bruno Ceacutesar Machado Torres Direitos Fundamentais Anaacutelise de sua concretizaccedilatildeo constitucional Curitiba Juruaacute 2004

HOLMES Stephen SUNSTEIN Cass R The Cost of Rights Cambridge Harvard University Press 1999

KOZIMA Joseacute Wanderley Instituiccedilotildees retoacuterica e o bacharelismo no Brasil In Antocircnio Carlos Wolkmer (org) Fundamentos de Histoacuteria do Direito Belo Horizonte Del Rey 2004 p 349-371

MARMELSTEIN George Curso de Direitos Fundamentais Satildeo Paulo Atlas 2013

Curso de Direitos Fundamentais Disponiacutevel em lthttptinyurlcommarmelsteingt acesso em 22052013

MARTIacuteNEZ Seacutergio Rodrigo Pedagogia Juriacutedica Curitiba Juruaacute 2009

MIGNONE Ricardo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT Folha de Satildeo Paulo 01032002 Disponiacutevel em lthttpbitlyNj24dUgt Acesso em 05082012

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SARLET Ingo Wolfgang A Eficaacutecia dos Direitos Fundamentais Porto Alegre Livraria do Advogado 2004

SALDANHA Nelson Sociologia da Educaccedilatildeo Rio de Janeiro Aurora 1980

WARAT Luis Alberto Conferecircncia de Encerramento 2o Seminaacuterio Internacional Direito e Cinema Visotildees sobre o direito e a ditadura 04 e 05 de outubro de 2006 04102006 Transcriccedilatildeo disponiacutevel em lthttptinyurlcomwarat2006gt acesso em 18032013

WOLKMER Antocircnio Carlos Pluralismo juriacutedico fundamentos de uma nova cultura no direito Satildeo Paulo Alfa omega 2001

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Consideraccedilotildees finais

Nas linhas anteriores mencionamos alguns dos problemas relacionados ao ensino juriacutedico e algumas dificuldades relacionashydas especificamente ao conteuacutedo direitos humanos no ensino jushyriacutedico formal Nessa perspectiva achamos oportuno deixar essas reflexotildees finais para um registro da nossa reflexatildeo constante sobre as alternativas ao dogmatismo e para algumas questotildees e hipoacuteteses que acreditamos serem merecedoras de alguma reflexatildeo e eventual amadurecmento ou ateacute refutaccedilatildeo

A primeira questatildeo eacute de que maneira as ideacuteias de um penshysamento pluralista zeteacutetico ou toacutepico poderatildeo contribuir para a modificaccedilatildeo do ensino juriacutedico cuja base estaacute fundamentada em textos essencialmente dogmaacuteticos refletindo uma hermenecircutica totalmente teacutecnica e instrumental Certamente poderiacuteamos enshysaiar vaacuterias repostas para essa pergunta uma vez que natildeo estamos vinculados apenas ao modelo juriacutedico dogmaacutetico somente a sua forma instrumentalizadora a qual vincula tanto a compreensatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do direito quanto os conteuacutedos do ensino juriacutedico mas isso natildeo muda o fato de que o dogmatismo parece permanecer hegemocircnico

Mesmo professores que adotam um discurso progressista muitas vezes acabam adotando praacuteticas tiacutepicas de uma educaccedilatildeo bancaacuteria Essa acusaccedilatildeo incide tambeacutem sobre noacutes mesmos na meshydida em que fomos formados dentro de um modelo dogmaacutetico e podemos estar ajudando a reproduzi-lo ainda que inconscienteshymente e isso nos leva a outras questotildees afinal qual eacute a metodologia do direito como ciecircncia a natildeo ser apenas a dogmaacutetica juriacutedica Como esse direito-ciecircncia pode deixar de ser tatildeo tradicional e se tornar criacutetico7 Deixar de apenas legitimar a ordem vigente e contrishybuir para a efetiva emancipaccedilatildeo dos sujeitos

Nesse sentido como uma das respostas podemos defender a hipoacutetese de que a mudanccedila passa essencialmente no educador

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A visatildeo substancial da mudanccedila natildeo estaacute atrelada mdash apenas mdash ao modelo ao sistema agraves formas mas tambeacutem agrave proacutepria postura do educador enquanto sujeito poliacutetico Eacute inicialmente uma questatildeo de consciecircncia e de estilo uma atitude de pensar atraveacutes do fenocircmeshyno juriacutedico natildeo reduzindo o direito a uma mera concepccedilatildeo legal ou seja como um mero sistema normativo de controle da conduta humana e da organizaccedilatildeo estatal e a partir daiacute promover aborshydar esse direito numa perspectiva criacutetica em diaacutelogo com o saber de experiecircncia feito dos educandos disposto a aprender com eles criando portanto as condiccedilotildees para que o conhecimento aconteccedila

Claro que essa tomada de atitude apresenta alguns riscos ser rotulado de viajado eacute um deles ser taxado de ultrapassado como se a menccedilatildeo do que cai na ordem fosse o que haacute de mais sofisticado O dogmatismo diz que o direito jaacute natildeo eacute mais ensinado dessa forma mdash como se um dia tivesse sido Isso chega a ser um circunloacutequio uma criacutetica totalmente sem fundamentos ou mal fundamentada

Observamos por outro lado e essa criacutetica eacute uma realidade que nos circunda que os discursos juriacutedicos eacute permeado por um eufemismo verdadeiramente animador como exemplo temos as expressotildees mais utilizadas nos uacuteltimos dez anos a tiacutetulo de mudanshyccedila e de inovaccedilatildeo mdash p ex em congressos livros matrizes curricushylares etc mdash toacutepica retoacuterica zeteacutetica neoconstitucionalismo interashyccedilotildees dialoacutegicas direitos humanos interdisciplinaridade visatildeo subsshytantiva fenocircmeno juriacutedico complexo ato comunicativo efetividade social mas percebemos que satildeo termos utilizados apenas no campo teoacuterico simboacutelico como resultado mdash e mascarando mdash praacuteticas e interpretaccedilotildees acriacuteticas

Os textos fala e escrita estatildeo fora de contextos situacionais e se estas realidades forem histoacutericas ou sociais para os dogmaacuteticos natildeo cabe ao direito mdash aqui em seu sentido apenas normativo mdash evidenciar os fenocircmenos e a complexidade sociais A teoria e a praacutetica juriacutedicas estatildeo em lados opostos mesmo que o discurso

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

Referecircncias

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O Caraacuteter Expansivo dos Direitos Humanos na Afirmashyccedilatildeo de sua Indivisibuumlidade e Exigibilidade In Jayme Benvenuto (Org) Direitos Humanos Internacionais Avanccedilos e desafios no iniacutecio do seacuteculo XXI Recife GAJOPMNDH-NE 2001b

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FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collegravege de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Satildeo Paulo Loyola 2011

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KOZIMA Joseacute Wanderley Instituiccedilotildees retoacuterica e o bacharelismo no Brasil In Antocircnio Carlos Wolkmer (org) Fundamentos de Histoacuteria do Direito Belo Horizonte Del Rey 2004 p 349-371

MARMELSTEIN George Curso de Direitos Fundamentais Satildeo Paulo Atlas 2013

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MARTIacuteNEZ Seacutergio Rodrigo Pedagogia Juriacutedica Curitiba Juruaacute 2009

MIGNONE Ricardo Crianccedilas entram no traacutefico de drogas a partir dos 8 anos no Rio diz OIT Folha de Satildeo Paulo 01032002 Disponiacutevel em lthttpbitlyNj24dUgt Acesso em 05082012

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SALDANHA Nelson Sociologia da Educaccedilatildeo Rio de Janeiro Aurora 1980

WARAT Luis Alberto Conferecircncia de Encerramento 2o Seminaacuterio Internacional Direito e Cinema Visotildees sobre o direito e a ditadura 04 e 05 de outubro de 2006 04102006 Transcriccedilatildeo disponiacutevel em lthttptinyurlcomwarat2006gt acesso em 18032013

WOLKMER Antocircnio Carlos Pluralismo juriacutedico fundamentos de uma nova cultura no direito Satildeo Paulo Alfa omega 2001

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teoacuterico utilize-se de estrateacutegias pedagoacutegicas para maquiar uma aproximaccedilatildeo que natildeo existe no campo praacutetico O foco da mudanccedila ainda continua apenas no discurso nos aspectos formais do ensino juriacutedico e isso eacute que precisa mudar

A mudanccedila em suma natildeo eacute formal natildeo precisamos condishycionar o nosso estilo agraves formas tradicionais do ensino Ela eacute subsshytancial eacute pessoal eacute do educando do pesquisador do professor do educador do analista da pessoa que se propotildee a aprender educar ensinar pesquisar Devemos compreender que o processo de ensishyno e aprendizagem eacute dinacircmico e necessita que os diversos sentidos sejam observados no campo da Praacutexis onde a teoria eacute executada na praacutetica contextualizada permitindo ao professor e aos alunos uma apreensatildeo interdisciplinar fundamentada na realidade vivida o que de fato natildeo ocorre qualitativamente no ensino juriacutedico

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