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O ORNARE BARROCO
ORNAMENTAÇÃO, RETÓRICA E AS VIRTUDES DE ESTILO E
O BOM GOSTO
Cesar Marino Villavicencio Grossmann Universidade de São Paulo, USP
Universidade Estadual Paulista, UNESP
Resumo: Trata-se do ornare barroco como parte inerente das virtudes de estilo da retórica e das preocupações com o bom gosto, apontando para a influência do pensamento humanista na radical mudança na música proposta na Itália no século XVI. Maneiras de executar ornamentos são apresentadas fazendo prevalecer o princípio fundamental da variação e pluralidade intrínseca na sua execução. Palavras-chave: Música barroca, retórica, ornamentação. Abstract: Ornare is dealt as intrinsic in the rhetorical virtues of style and the issues involving good-taste, pointing out to the influence of humanistic thought in the radical change in music proposed in Italy in the sixteenth century. Manners of playing the ornaments are presented, underlining the importance of the idea of variation and the fundamental pluralism of their performance. Keywords: Baroque music, rhetoric, ornamentation.
1. Introdução
A ornamentação ocupou um papel preponderante em todas as artes
barrocas, seja na arquitetura, escultura ou pintura. Em essência, a ideia de ornamentar
a música barroca tem por objetivo ressaltar e fortalecer o conteúdo intencional
implícito na música. Para um discernimento que aborde intencionalidades na música
barroca deve ser usada uma aproximação que utilize um pensamento retórico, desde
que seu uso na música significou uma das características mais marcantes desse
período.
Inicialmente, este artigo irá explicar o tipo de foco retórico que irá ser
usado, apresentando um panorama histórico sobre a Camerata fiorentina e o
surgimento do stile recitativo em Florença, Itália, no século XVI, apontando para as
características plurais nas artes sonoras da época e as consequências do
desenvolvimento de uma retórica propriamente instrumental. Após uma explicação
sobre o ornatus e seu papel ativo dentro das virtudes do estilo na retórica, discute-se
maneiras de ensinar a execução de ornamentos e apresenta-se exemplos práticos
característicos dos estilos predominantes da música barroca.
2. Itália no Século XV e a Camerata Fiorentina
Quando falamos em retórica precisamos, hoje, explicar com clareza o que
isto significa. Isto por que na atualidade retórica pode ser vista como um sinônimo
pejorativo de falta de conteúdo, “pura retórica”, ou tem-se por muitas vezes a ideia de
que se refere a um compêndio de regras sólidas e específicas, como se fosse um
manual. Retórica também e vista pelo ponto de vista moral, do adequado, do
comportamento decoroso. No caso da música, a retórica é a adaptação de uma área de
conhecimento originária da oratória na música. A aplicação da retórica na música veio
como consequência das reformas resultantes do movimento humanista. Guiados pela
crença de que no teatro da Grécia Antiga era usada uma prática entre a declamação e
o canto, a Camerata Fiorentina (1577) desenvolveu experimentos que levaram à
criação do stile recitativo. Entre os membros da Camerata estão Giulio Caccini,
Pietro Strozzi e Vicenzo Galilei (pai de Galileo Galilei). A ideia humanista era a de
lutar pela inteligibilidade dos textos, acreditando que a elaborada polifonia se
demonstrava uma técnica musical que não favorecia a transparência e eloquência da
mensagem escrita. Com o tempo, o uso da retórica se transforma na Alemanha na
Musica Poetica que abriga a teoria dos afetos conhecida por Affectenlehre e que
interpreta a música como um meio para a comunicação de sentimentos ao público.
Assim, os instrumentos a partir das mudanças trazidas pelo humanismo se
desenvolveram inicialmente dentro de um modus operandi ditado pelo serviço de
apoiar e fortalecer a inerente mensagem do texto da música. Após uma experiência
musical com a muito elaborada técnica e a preponderância da melodia na polifonia de
então, a estética apresentada pelas mudanças da Camerata devem ter chocado pela
sua contemporaneidade e forma de pensamento distinta.i Com a instauração do baixo
contínuo surge ao mesmo tempo uma proposta musical novedosa, porém, se mantém
um continuísmo com a prática da improvisação. No baixo contínuo, as harmonias
eram somente figuradas na partitura, cabendo ao intérprete realiza-las. Assim, a
improvisação do Renascimento está diretamente ligada à ornamentação do barroco
pois existe um continuísmo entre o que era chamado na Itália de Cantare
all’improvviso (por volta de 1440) e a gênese do ornamento barroco mais estilizado,
que muito frequentemente é escrito em notas na partitura, com fez J. S. Bach e G. Ph.
Telemann. Como será explicado mais adiante, é acertado afirmar que os ornamentos
barrocos possuem uma intrínseca qualidade espontânea própria da improvisação e que
podem tanto acontecer como simples decoração. Porém estes podem também assumir
o papel retórico de catalizador na comunicação dos afetos do discurso musical.
3. As Virtudes do Estilo
Ornamentar, ou ornatus, é segundo a retórica uma das virtudes do estilo.
Dentro dessas virtudes temos a) latinitas ou pureza, que se refere ao controle
instrumental e técnico propriamente dito; b) Perspicuitas ou clareza, que é
intimamente ligada à pureza e se preocupa com a inteligibilidade da mensagem (uma
preocupação ligada à lógica ou logos); c) Evidentia é a prova do impacto da recepção.
Se clareza é a qualidade do estilo que mede o quão bem a linguagem atinge o
entendimento, então "evidência" mede o quão bem a linguagem atinge as emoções
(pathos); c) o Decorum, ou decoro, que embora listado como uma qualidade de
estilo, este representa um princípio fundamental de toda a retórica desde que aponta
para uma preocupação ética em adaptar o estilo do discurso à situação (ethos); e d)
Ornatus, que está entre essas qualidades do estilo retórico e tem a função de enaltecer
o poder da mensagem, podendo claro obscurece-la se usado em demasia se
transformando em um vício.ii
Podemos quiçá pensar no paradoxo de envolver um amplo campo teórico
para a interpretação espontânea dos ornamentos do barroco. Porém, é plausível que
para nos aproximarmos do estilo musical dos séculos XVI, XVII e XVIII seja
importante sintonizar o melhor possível com o modo de pensar na música daquele
período. Obviamente, a adaptação do discurso musical de uma peça barroca
interpretada hoje terá de se alimentar das características contemporâneas para
estabelecer as virtudes de estilo, especialmente o decorum. A ideia não é a de replicar
a música como foi feita no passado mas sim a de entender o melhor possível as
margens que seu estilo define para interpretá-la. Isto é em si um estilo
contemporâneo. Inclusive, a própria preocupação em ressuscitar a música do passado
representa uma ideia anacrônica se pensada dentro do contexto musical do barroco.
4. Como Aprender Ornamentos?
Tabelas de ornamentos representam documentos muito valiosos, porém,
dada a natureza flexível e a característica improvisatória na execução destes, os
escritos estão muito longe de representar a maneira como devem ser tocados. Temos
diversos depoimentos ao respeito: Jacopo Peri, um os membros da Camerata
Fiorentina, escreve em 1600: “[têm ornamentos] que não podem ser escritos, e se nós
os escrevermos não poderemos aprende-los dos escritos.” (NEUMANN 1978:10)
Também o alaudista Jean-Baptiste Bésard diz no seu livro de instruções para o alaúde
(1603) que ele não trata de ornamentos porque
Se fosse possível descrever como tocar ornamentos e trinados docemente
no alaúde eu teria feito algumas considerações aqui; dado que eles não
podem ser explicados, nem por escrito nem oralmente, terá de ser
suficiente aprende-los imitando alguém que saiba toca-los bem ou aprende-
los por você mesmo. (Ibidem)
Temos que tomar algumas precauções antes de chegar a qualquer
conclusão com respeito à interpretação de ornamentos.iii Às vezes, por exemplo, o
alinhamento de ornamentos na partitura, embora esteja na cabeça do tempo, sua
interpretação deve ser antes do tempo. O tempo da appogiatura também pode variar
de acordo com o intervalo que esta produz, sendo geralmente mais longa se esta
provoca uma dissonância. Quando falamos ainda de ornamentação livre, quando se
ornamenta uma melodia sem que exista qualquer tipo de indicação, devemos tomar
em conta certos cuidados técnicos, como a harmonia e a condução das vozes, evitando
paralelismos indesejados e adequando o ornamento à sua função de fortalecer o afeto
de determinada passagem musical. Um trinado em um movimento carregado de
afetos, digamos, mais introspectivos, indica a realização do ornamento de uma
maneira mais lenta do que em um movimento que comunica extroversão. Também há
indicações de tipos de música que não devem ser ornamentadas. Zacconi aponta em
sua obra Prattica di musica (1596) que nem rubato nem ornamentos devem ser usados
nem na fuga nem na fantasia para não comprometer a lógica da imitação
(NEUMANN 1978: 22).
5. Diminuições e ornamentações Italianas no Século XVI e XVII e XVIII
O primeiro tratado sobre diminuições é a obra de Silvestro Ganassi Opera
intitulata La Fontegara, de1535. Fundamentalmente um tratado sobre flauta doce,
este livro apresenta grande parte de seu conteúdo dedicado às diminuições. A arte de
diminuir trata de ornamentar uma melodia escrita onde esta melodia é quebrada
(diminuída) em notas de menor duração. Esta prática também era feita de maneira
improvisada no início do século XV, como o contrapunto alla mente onde uma nova
voz ornamentada era incorporada à original. Temos uma variedade de tratados
italianos como os de Bassano, Dalla Casa, Bovicelli, Rogniono, Diruta, etc. Também
cabe mencionar o Trattado de Glosas sobre clausulas de Diego de Ortiz, escrito na
Espanha em 1602.
Exemplo 1: Diminuições de Ganassi em La Fontegara (1535).
Com o passar do tempo, podemos imaginar que algumas convenções
sobre ornamentos foram se estabelecendo, como por exemplo, os trinados que
precediam as cadenzas. Também junto das transformações podemos imaginar que
alguns abusos vieram a acontecer. Em 1672, por exemplo, Giovanni Maria Bononcini
pede aos seus intérpretes que não desfigurem a música e que a deixem como ela está.
Ele diz:
Há alguns intérpretes hoje tão pouco informados com respeito à arte de se
improvisar com bom gosto que no seu cantar ou tocar querem de uma
maneira desordenada e com extravagâncias indiscretas [...] mudar, ou
melhor, deformar as composições de tal maneira que os autores não tem
outra alternativa a não ser a de rogar a aqueles cantores e instrumentistas a
se satisfazerem tocando as composições somente como elas estão
escritas.(NEUMANN 1978: 28)
A maneira italiana de ornamentar influenciou fortemente a música alemã.
Michael Praetorius em seu Syntagma Musicum (1619) já difunde essa prática,
selecionando ornamentos mais simples que envolvem até quatro notas (NEUMANN
1978:37-38). Em 1672, Corelli com dezenove anos tinha se transformado no pop-star
da época. Fazendo sucesso em Paris, viveu em diversos lugares da Europa. Corelli
ficou muito famoso com seus ciclos de 12 sonatas para violino e baixo contínuo do
Op.1 ao 5. Nelas, ele e outros editores escrevem muita ornamentação (veja exemplo
2).
Exemplo 2: Sonata Op. 5, Nr.4 de Arcangelo Corelli com ornamentações do editor Walsh (1707).
6. O Barroco Francês
Os ornamentos franceses se adaptam a uma estética musical diferente da
italiana. O estilo mais delicado da música francesa se reflete, claro, no uso dos
ornamentos. É uma música de estilo predominantemente elegante, comedido e
refinado.
Exemplo 3: Ornamentos e sua realização segundo Jacques Hotteterre (1715).
7. O Barroco Alemão
Um exemplo bastante educativo com respeito à maneira de ornamentar
são as Sonatas Metódicas de Georg Philipp Telemann (exemplo 4).
Exemplo 4: Sonata Metódica Nr. 2 de Georg Philipp Telemann (1732).
Outro exemplo musical da Alemanha que ilustra uma ornamentação usada
em um contexto retórico é a aria Erbarme dich (Tenha piedade) da Mathaus Passion
de Johann Sebastian Bach. A aria segue depois de negação de Pedro onde o
Evangelista encerra o recitativo com: “und weinete bitterlich” (“e chorou
amargamente”). Esta passagem expressa desespero, culpa e incerteza, afetos que são
elevados na aria seguinte, Erbarme dich, através do uso de uma diversidade de
elementos. Cabe mencionar a escolha da tonalidade em Sí menor, referida por alguns
como melancólica.iv As cordas tocam preponderantemente notas longas seguindo uma
nota específica que revela piano sempre acompanhadas do contínuo em um constante
e persistente pizzicato organizado em linha descendente, conhecido como catabasis.v
A parte solo do violino é composta de uma variedade de: appoggiature, a figura de
exclamatio (as primeiras notas do violino), saltus duriusculusvi (e.g. compassos 3, 5,
6) e do uso de anaphoraevii (e.g. final do compasso 3 até o meio do 5) (BARTEL
1997: 214-215, 265-268, 381-382, 184-190).
Exemplo 5: Aria Erbarme dich da Paixão segundo São Mateus de J.S. Bach (1727).
8. Conclusão
Para aprendermos a executar os ornamentos na música barroca com
consistência o intérprete deve lidar com os aspectos que envolvem o desenvolvimento
não só da técnica e estilo mas também da sensibilidade retórica e do bom gosto. Bom
gosto pode variar enormemente entre intérpretes em virtude do entendimento da peça
musical a ser tocada e o treinamento musical. Como vimos, ornar é parte integrante da
preocupação retórica com o estilo, evidenciando que há uma grande responsabilidade
no ato de incorporar decorações em uma peça dada que implica, além do
compromisso com o controle instrumental técnico e da transmissão clara da
mensagem, adotar uma postura perceptiva que facilite a percepção do meio. Este meio
é composto por qualidades circunstanciais, como a acústica, a animosidade dos
eventuais colegas músicos e o público. Percebendo a situação desta maneira é
possível elaborar o decorum e adaptar o discurso da melhor maneira à situação
presente para conseguir os objetivos de eloquentemente mover, ensinar e deleitar.
Bibliografia
BARTEL, Dietrich. Musica Poetica. Musical Rhetorical Figures in German Baroque Music. University of Nebraska Press, 1997. LAWSON, Colin e STOWELL, Robin. The Historical Performance of Music. An Introduction. Cambridge University Press, 1999. McGEE, Timothy J. Improvisation in the Arts of the Middle Ages and Renaissance. Western Michigan University Press, 2003. NEUMANN, Frederik. Ornamentation in Baroque and Post-Baroque Music. Princenton University Press, 1978. i Vicenzo Galilei referia-se ao novo estilo como música Moderna já em 1582 e Monteverdi no começo do século XVII o definiu como seconda prattica. ii Mais informação sobre as virtudes e os vícios do estilo pode ser achada no site: http://humanities.byu.edu/rhetoric/silva.htm iii Lawson and Stowell indagam: “Em qual nota o ornamento deve começar? Deve este começar antes ou depois do tempo? Quão rápido este deve ser? Que implicações harmônicas existem e por quanto tempo a dissonância (se houver) deve durar? Com quanta flexibilidade deve ser executado o ornamento? Devem ser acrescentadas nuance? A introdução de acidentes é conveniente? …” LAWSON, STOWELL 1999:71-72) iv Charpentier se refere a Sí menor com melancólico carregado de sentimento de abandono enquanto Mattheson pensa que é bizarro e moroso e Rameau acha que é de caráter doce e tenor. Tarling (2004) p. 77. v Passagem musical descendente que expressa afetos negativos. vi Um salto dissonante. vii Ou repetições que ocorre, com frases que começam de maneira similar.