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UNIVERSIDADE FEEVALE
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
DISCIPLINA DE MONOGRAFIA II
EVERTON RICARDO BOOTZ
O DECÁLOGO
Características Políticas e Jurídicas
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Everton Ricardo Bootz
O DECÁLOGO
Características Políticas e Jurídicas
Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado como
requisito parcial à obtenção do
grau de Bacharel em Direito
pela Universidade Feevale.
Orientador: Prof. Dr. Henrique Keske
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Everton Ricardo Bootz
Trabalho de Conclusão de Curso de Direito, com título O
DECÁLOGO - Características Políticas e Jurídicas, submetido ao
corpo docente da Universidade Feevale, como requisito
necessário para a obtenção do Grau de Bacharel em Direito.
Aprovado por:
__________________________________________
Prof. Dr. Henrique Keske
Orientador
__________________________________________
Prof.
Banca Examinadora
__________________________________________
Prof.
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
À minha esposa: Lírian Becker
Ferreira, pelo apoio afetivo,
incentivo acadêmico e confiança na
capacidade intelectual; e à minha
filha: Luiza Bootz, pelo afeto
desmedido.
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AGRADECIMENTOS
Ao professor orientador, Dr. Henrique Keske pelos encontros de orientações
acadêmicas, além da amizade mediada por conversas jurídico-teológicas.
A todos os professores da FEEVALE que aportaram conhecimento e
valoraram a querência pelo estudo do Direito.
À Comunidade Evangélica de Confissão Luterana da Ascensão, pelo apoio
eclesiástico ao estudo de Direito.
A todas as pessoas que, ao longo do curso, estiveram comigo e aportaram
amizade, vida e apreço ao Direito.
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RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso de Direitoobjetiva recuperar o valor político e jurídico do Decálogo,mormente reconhecido como máximas morais e meramentereligiosas. Através da hermenêutica de GADAMER e da sua teoriada fusão de horizontes, a recuperação é realizada mediante umaanálise sociológica do contexto existencial do Decálogo,procurando encontrar aspectos políticos e jurídicos inerentenos primeiros três Mandamentos. O 1º Mandamento desvela opoder de um Estado virtual, racional, forjado nos primórdiosda história humana. O 2º Mandamento revela o meio jurídicopelo qual aquele poder pôde se manifestar e se articular. O 3ºMandamento manifesta aportes ao Direito Trabalhista, aoDireito Civil, ao Direito Econômico e ao Direito Ambiental. Aanálise hermenêutica demonstra que o Decálogo emerge de umexperimento sociopolítico sui generis no período compreendidoentre 1.250 e 1.050 a.C., fomentando o surgimento de umaorganização distinta das demais de sua época, medianteprincípios basilares: a busca por uma sociedade promotora deliberdade, justiça e igualdade. Este experimento socialresultou na formação de leis pertinentes a estes princípiosque mais tarde se decantaram sinteticamente no Decálogo. Estecódice legal, com forte ênfase política, foi recepcionado pelahistória, sendo preservado e repassado entre horizontessuperpostos até chegar à idade da razão, norteando osiluministas na formulação do Contrato Social, uma propostasimilar à encontrada na Aliança mosaica, pacto feito entre umaassociação de igualmente despossuídos, desejosos por liberdadee justiça, e sua divindade.
Palavras Chave: Decálogo. Mandamento. Hermenêutica.
Aliança Mosaica. Contrato Social.
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ABSTRACT
The present paper of conclusion of Law’s Course aims torecuperate the politic and juristic values of Decalogue, normallyrecognized as moral norms and manly religious. Through theGADAMER`s hermeneutic and his theory oh fusion of horizons,recuperation realized through a sociological analysis of theDecalogue`s existential context, searching politic andjuristic aspects inside the three commandments. The firstcommandant reveals the power of a rational and virtual State,created at the of beginning of mankind`s history. The secondcommandment reveals the juristic means through what that powerwas able to manifest and to articulate itself. The thirdCommandment manifests contribution to Labor`s Law, to CivilLaw, to Economics Law and to Environment Law. The hermeneuticanalysis shows that the Decalogue emerges from a peculiarsociopolitical experiment in between 1.250 and 1.050 b.C.promoting the development of a distinctive organization,through fundamental principles: a search for a society whichpromoted freedom, justice and equality. This social experimentfomented the formation of laws pertinent to those principleswhich were later shaped synthetically as the Decalogue. Thislegal law, with strong political emphasis, was introduced inhistory, being preserved and passed on to overlapping horizonsuntil reaching the Age of Enlightenment, helping the thinkersin this age writing about the Social Contract, a similarproposal to the mosaic alliance, covenant firmed betweenequally dispossessed people, desiring freedom and justice, andtheir god.
Key-Words: Decalogue. Commandment. Hermeneutic. Mosaic
Alliance. Social Contract.
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LISTA DE IMAGENS
Imagem 01 - Estrutura de uma sociedade do tipo reinado......54
Imagem 02 - Estrutura de uma sociedade do tipo teocrática. . .54
Imagem 03 - Estrutura do Pacto Social em Hobbes.............98
Imagem 04 - Estrutura do Pacto Social em Rousseau...........99
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................12
1 CONTEXTO SOCIOLÓGICO DO ISRAEL LIBERTO 1250-1050 A.C......141.1 EMBASAMENTO TEÓRICO.....................................141.1.1 Crítica hermenêutica de Gadamer.......................141.1.2 Método histórico-crítico..............................171.1.3 Opção pelos pobres....................................191.2 O CONTEXTO HISTÓRICO....................................211.3 OS HAPIRUS...............................................251.4 A FORMAÇÃO DAS TRIBOS DE ISRAEL.........................301.4.1 Solidariedade econômica...............................321.4.2 Poder partilhado......................................331.4.3 Leis a serviço da vida................................341.4.4 Fé no Deus libertador.................................361.4.5 Culto descentralizado.................................391.4.6 Exército popular de defesa............................411.5 A FORMAÇÃO DO DECÁLOGO..................................431.5.1 Declínio do sistema tribal e surgimento do reinado emIsrael......................................................441.5.2 O Decálogo como compêndio das leis originárias........47
2 OS PRIMEIROS TRÊS MANDAMENTOS.............................502.1 EU SOU O SENHOR TEU DEUS, NÃO TERÁS OUTROS DEUSES DIANTEDE MIM......................................................50
Imagem 01 - Estrutura de uma sociedade do tipo reinado......54
Imagem 02 - Estrutura de uma sociedade do tipo teocrática. . .55
2.2 NÃO ABUSE DO NOME DO SENHOR, SEU DEUS...................592.3 SANTIFIQUE O DIA DE DESCANSO............................642.3.1 A dimensão laboral....................................65
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2.3.2 A dimensão social.....................................692.3.3 A dimensão econômica..................................732.3.4 A dimensão ecológica..................................78
3 AS TRIBOS DE YAHWEH COMO HORIZONTE HISTÓRICO..............863.1 TEORIA DOS HORIZONTES DE GADAMER........................873.1.1 O horizonte hapiru.....................................913.1.2 O horizonte hodierno..................................933.2 A FUSÃO DOS HORIZONTES..................................953.2.1 O Contrato Social em Hobbes...........................96
Imagem 03 - Estrutura do Pacto Social em Hobbes.............98
3.2.2 O Contrato Social em Rousseau.........................98
Imagem 04 - Estrutura do Pacto Social em Rousseau...........99
CONCLUSÃO..................................................108
REFERÊNCIAS................................................112
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INTRODUÇÃO
Este trabalho objetiva descortinar as características
políticas e jurídicas do Decálogo. O Decálogo é conhecidíssimo
na atualidade, mas o entendimento que se tem dele parte quase
que exclusivamente da religião. O Decálogo é tido como um
receituário moral e pertencente ao universo religioso.
Contudo, sua origem é legal; são leis. Assim, este Trabalho de
Conclusão de Curso de Bacharelado em Direito quer perscrutar a
possibilidade de desvelar aspectos essencialmente legais do
Decálogo. Esta presunção parte do fato de que se assim for, se
o Decálogo realmente possuir fundamento político e jurídico, a
recuperação desta característica jurídica interessa ao estudo
do Direito, como elemento histórico relevante.
Para tanto, o trabalho precisará de um instrumental de
pesquisa para se aproximar historicamente do Decálogo. Sendo um
texto antigo, faz-se mister um instrumental hermenêutico. Este
é o conteúdo do primeiro capítulo. Nele é apresentado o
embasamento teórico, que legitima o uso de uma hermenêutica
textual, para a aproximação do texto do Decálogo. A
hermenêutica de GADAMER indica que a aproximação pode ser a
sociológica, através da qual a história originária pode ser
recuperada até certo ponto, pelo menos até o ponto de uma
compreensão mais acurada do Decálogo, com o fito de vislumbrar
a existência de um sentido político e jurídico primários em seu
bojo. O instrumental sociológico é usado e a aproximação
textual é exercitada no restante do primeiro capítulo,
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desvelando o contexto sociopolítico a partir do qual o Decálogo
foi constituído.
Uma vez desvelada a origem sociológica do Decálogo, o
conteúdo do segundo capítulo implicará em uma aproximação do
aspecto jurídico dos três primeiros Mandamentos. Enquanto o
primeiro mandamento denota indícios de um poder supraestatal, o
segundo mandamento pode ser entendido como o meio jurídico
(juramento) pelo qual acordos jurídicos eram contratados. Um
meio jurídico de contratar através do qual o próprio “contrato
social”, vigente no período entre 1250 e 1050 a.C., é firmado.
Este período histórico é conhecido como o período das Tribos de
Yahweh, retratado no primeiro capítulo. No terceiro mandamento,
procurar-se-á desvelar aspectos jurídicos na área trabalhista
(sétimo dia para o descanso), na área política (ano do
jubileu), área econômica (ano da remissão) e na área ecológica
(ano sabático); buscar-se-á no contexto das Tribos de Yahweh,
os elementos históricos relevantes para esta aproximação mais
originária aos primeiros mandamentos do Decálogo.
O conteúdo do terceiro capítulo vai tratar da hipótese de
trabalho de que o Decálogo pode ser vislumbrado como um
“contrato social” entre o povo hebreu e sua entidade divina.
Procurar-se-á identificar traços paralelos entre os mandamentos
analisados (a partir de seu contexto social) e os ideais que
constituíram o contrato social na cultura ocidental europeia do
século XVIII. Com isto, a ideia de que os Mandamentos são de
ordem jurídica e política pode ser reforçada. Far-se-á uso do
pensamento de GADAMER, para este intento, mediante sua teoria
dos horizontes (histórico e hermenêutico).
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Por fim, na conclusão, procurar-se-á responder se as
hipóteses deste trabalho são justificadas ou não. Procurar-se-á
também resgatar aqueles aspectos importantíssimos para o estudo
do Direito, ou seja, um resumo dos aspectos jurídicos do
Decálogo, insinuando-os como basilares para outras legislações
que o sucederam e, deste modo, influenciando as constituições
atuais.
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1 CONTEXTO SOCIOLÓGICO DO ISRAEL LIBERTO 1250-1050 A.C.
1.1 EMBASAMENTO TEÓRICO
1.1.1 Crítica hermenêutica de Gadamer
Nosso objetivo básico é demonstrar a natureza política e
jurídica do Decálogo. Esta natureza política e jurídica não nos
está tão clara, pelo motivo dele estar revestido por uma aura
teológica. Tal revestimento que encobre os Mandamentos os
destitui de seu verdadeiro e primordial sentido: o de legislar
uma sociedade alternativa de justiça em meio a sociedades que
estabeleciam uma distribuição desproporcional das riquezas. A
Hermenêutica de Hans-Georg GADAMER pode nos auxiliar neste
sentido. Através de sua hermenêutica crítica é possível
constatar como o processo de revestimento teológico paulatino
acabou por encobrir o sentido político e jurídico original do
Decálogo.
GADAMER, em seu célebre escrito hermenêutico, Verdade e
Método, descreve como textos antigos passam por uma
resignificação, a ponto de perderem seu sentido primário.
Textos politicamente carregados podem ser despolitizados,
privando-os de seu verdadeiro significado crítico1. Parte deste
processo se desenvolve pelo mecanismo psicológico dos
sentimentos das partes envolvidas: autor ou autores, leitores e
contexto local em que a obra está inserida. O sentimento do
1 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 57.
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leitor interfere na interpretação de determinado texto,
projetando sobre este uma significação distinta da
originalmente pretendida pelo autor. Com a morte do autor e com
o distanciamento no tempo, um texto passa a ser reinterpretado
sistematicamente até perder por completo seu sentido original2.
É uma lógica estética, não objetiva3. Uma comunidade pode projetar
sobre um texto uma lógica estética (ex.: teológica) a tal
ponto, que leitores subsequentes passam a vislumbrar apenas
este viés ao lê-lo, viés perpetrado pela tradição. O
revestimento estético resignificante altera substancialmente o
sentido original do texto.
Essa resignificação não ocorre sem um norte. Há
interesses que orientam a lógica estética. Um aspecto dessa
resignificação pode ser considerada no desejo de estatuir tais
regras a partir de um caráter normativo absoluto, colocando-as,
assim, como de origem divina4. Este reforço coercitivo de
caráter divino permitiu à Igreja Medieval, por exemplo,
justificar suas pretensões de domínio absoluto sobre a
intermediação entre Deus e o mundo das nações. Isto consolidou
a Igreja da Idade Média como a única intérprete da vontade
2 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 65.3 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 72.4 A ideia de que Deus forja as leis para os povos não era novidade na épocada formação dos Dez Mandamentos. O Código de Hamurabi contém leis impressasnuma estela em diorito, cujo ápice mostra de forma esculpida, o Deus Mardukentregando tais leis para o Rei Khammu-rabi (Hamurabi), rei da Babilônia no18º século a.c., que devia assim segui-las como ordenanças divinas. Cf.PINSKY, Jaime. Código de Hamurabi. Cultura Brasileira. [S.l.], [S.d.]. [Online].Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/zip/hamurabi.pdf>. Acesso em:24 nov. 2011.
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divina, baseada no constructo do Deus único, respaldada pelas
normas judaicas, de que se dizia herdeira natural.
Este fenômeno da resignificação de um texto se dá com
maior desenvoltura quando um texto traz em seu conteúdo
símbolos e imagens (ex.: Deus, imagens, descanso, pai). GADAMER
lembra que um símbolo é polissêmico, podendo receber distintas
interpretações, já que aponta para além de seu significado
inicial5. “Como la consciencia estética se sabe libre frente a
lo mítico-religioso, también el simbolismo que ella confiere a
todo es ‘libre’”6. Esta liberdade de interpretar símbolos
facilita a resignificação teológica de textos originalmente
distintos deste viés. O símbolo proporciona esta transformação
à medida que permite representação de algo que está ausente. O
símbolo possibilita fazer presente algo que está ausente7.
Destarte, um sentido semântico original pode receber uma
representação distinta, forçando sobre o texto um novo sentido
que originalmente não estava aí.
Para tanto, é mister, segundo GADAMER, uma hermenêutica
capaz de restituir o sentido original de um texto esteticamente
alterado, se se quiser realizar uma aproximação da intenção
primária do autor.
Sólo porque en las narraciones de laBiblia aparecen cosas inconcebibles (resimperceptibles), su comprensión depende de quelogremos elucidar el sentido del autor a partirdel conjunto de su obra (ut mentem auctoris
5 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 115.6 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 119.7 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 205.
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percipiamus). Y aquí sí que es efectivamenteindiferente el que su intención responda anuestra perspectiva; pues nosotros intentamosconocer únicamente el sentido de las frases (elsensus orationum), no su verdad (veritas). Para estohay que desconectar cualquier clase de actitudprevia, incluso la de nuestra razón (y porsupuesto, tanto más la de nuestrosprejuicios).8
Por prejuízo, GADAMER se refere a estas significações
projetadas posteriormente sobre um texto bíblico, por exemplo,
que estão fixas em nossa mente, em nossa maneira de ver e ler o
texto a nossa frente. É um juízo (sentido) preconcebido, pré-
formatado, que interfere na leitura, não nos possibilitando
entendê-la objetivamente. A pergunta que GADAMER faz então é
sobre o método hermenêutico capaz de fazer justiça à
historicidade da compreensão original de um texto9. Afinal,
como superar o prejuízo que nos priva do sentido original de um
texto? Como transcender a história das tradições que fomentaram
estes prejuízos?10 GADAMER vai responder que a história não
necessariamente deve ser superada, posto que auxilia na
aproximação do sentido original ao conectar os horizontes
existenciais: o do passado e do presente, através do fio
histórico das tradições.11 “Comprender es siempre el proceso de
fusión de estos presuntos ‘horizontes para sí mismos’”12. Isto
8 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 234.9 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 331ss.10 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 360ss.11 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 360-370.12 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 377.
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é, tais horizontes são sempre presumidos: podemos nos aproximar
deles, mas não recuperá-los em sua integralidade objetiva.
Portanto, cabe-nos fazer uso da hermenêutica de GADAMER
para desmitificar o sentido religioso do Decálogo. GADAMER nos
presenteia com a ideia de que tampouco há grande distância
entre a hermenêutica jurídica e a teológica13. A diferença
básica está entre a visão do historiador e a do jurista frente
a um texto legal:
El jurista toma el sentido de la ley apartir de y en virtud de un determinado casodado. El historiador, en cambio, no tieneningún caso del que partir, sino que intentadeterminar el sentido de la ley representándoseconstructivamente la totalidad del ámbito deaplicación de ésta; pues sólo en el conjunto desus aplicaciones se hace concreto el sentido deuna ley.14
Nosso trabalho é jurídico, mas com uma visão de
historiador. Queremos perceber como os Mandamentos, em seu
horizonte histórico, determinaram o surgimento de uma
sociedade alternativa sui generis. Mas antes precisamos apresentar
com maior proximidade o método que nos auxiliará a
desmitificar a aura religiosa (moral).
13 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 396.14 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 397.
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1.1.2 Método histórico-crítico
Pelo fato deste trabalho acadêmico ser da área jurídica, é
importante considerar que o texto no qual os Mandamentos estão
inseridos situa-se num contexto teológico. Portanto, a partir
do amparo de GADAMER, precisaremos de um método capaz de nos
auxiliar no processo de desmistificação do Decálogo. O método
usado no ambiente teológico para interpretar textos bíblicos é
o Método Histórico-Crítico: “A teologia, como ensinada nas
universidades ao redor do mundo hoje, tanto no Ocidente e no
Oriente, quanto no Norte e no Sul, é baseada no método
histórico-crítico”15. Isto significa que a Bíblia é tomada como
um livro como outro qualquer, ou seja, como um texto. O
estudioso da bíblia a tem objetivamente, sem projetar sobre a
mesma uma estética religiosa, sagrada. Os livros bíblicos,
suas narrações e leis são tidos como textos históricos e
manejados cientificamente. São hermeneuticamente perscrutadas
assim como um romance de Homero.
Na historiografia crítica, o remanescente antigo e as
evidências linguísticas são usados como fontes de informação
sobre uma era passada para a qual o próprio pesquisador data o
remanescente e as evidências.16 Por linguística, se quer dizer o
estudo semântico presente no texto, ou seja, sua gramática,
sintaxe e seu pano de fundo histórico e cultural. O estudo
destas características textuais faz emergir o sentido anterior
à formatação estética. OSBORNE trata com mais detalhe destas15 LINNEMANN, Eta. Crítica Histórica da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.95.16 LINNEMANN, Eta. Crítica Histórica da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.107.
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características hermenêuticas em sua obra hermenêutica A Espiral
Hermenêutica, uma nova abordagem à interpretação bíblica17. Em
nosso estudo, pelo espaço e tempo reduzidos, faremos uso tão
somente da terceira característica: o pano de fundo histórico
e cultural do texto legal do Decálogo. O autor faz uma análise
própria das leis, com especial atenção aos Dez Mandamentos,
como exemplo de uma interpretação hermenêutica18.
A partir deste pano de fundo histórico e cultural, nosso trabalho
vai procurar auscultar os elementos geográficos, políticos,
econômicos, militares, de práticas culturais e religiosas,
assim como as relações destes elementos com outras alusões
legais em outros textos do Antigo Testamento19. É uma forma de
aproximação hermenêutica mediante a sociologia20: “O desejo é
reproduzir não apenas os pensamentos, mas o mundo do pensamento
do texto bíblico”21, pois a “sociologia estuda as relações
humanas e as mudanças sociais que formam uma sociedade”22.
Daí a importância do livro “As Tribos de YAHWEH”, de
Norman K. GOTTWALD. Na introdução de seu calhamaço, ele expõe
suas pressuposições:
Minha abordagem é influenciada, na sua
totalidade, pelas seguintes suposições
17 OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretaçãobíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 198ss.18 OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretaçãobíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 233-240.19 OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretaçãobíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 198-210.20 OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretaçãobíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 217ss.21 OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretaçãobíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 217.22 OSBORME. Grant R. A Espiral Hermenêutica – uma nova abordagem à interpretaçãobíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 217.
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fundamentais: 1) os métodos humanísticos e
sociológicos são métodos igualmente valiosos e
complementares para reconstruir a transformação
do antigo Israel; 2) a religião é da melhor
maneira encarada como aspecto de mais vasta
rede de relações sociais, nas quais ela tem
funções compreensíveis a desempenhar; 3) as
mudanças no comportamento religioso e no
pensamento são otimamente investigadas como
aspectos de mudança na rede mais ampla das
relações sociais e econômicas; e 4) a religião
é inteligível na medida em que ela apresenta
comportamento legal e formas simbólicas
predizíveis e retrodizíveis dentro dos
parâmetros fixados pelas combinações totais
variáveis das relações sociais e econômicas.23
Nossa pesquisa fará, destarte, uso de um estudo
sociológico como uma ferramenta hermenêutica para, como GADAMER
defende, procurar um sentido mais aproximado do Decálogo, com o
fito de desvelar seu sentido originário, que segundo nossa
hipótese de trabalho, é político e jurídico, mais do que
religioso ou moral.
23 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 13.
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1.1.3 Opção pelos pobres
Para esta hermenêutica sociológica é mister declararmos o
uso de um outro ponto de partida, de um outro marco teórico
(teológico) que completa os dois pontos acima. Este marco é
oferecido pela Teologia da Libertação: a opção pelos pobres, ou
seja, a percepção do texto bíblico, no qual estão inseridos os
Dez Mandamentos, a partir de uma perspectiva do oprimido. Esta
perspectiva hermenêutica é apresentada aqui, pois no
transcorrer da análise sociológica se perceberá que os autores
últimos do Decálogo são os hapirus24 (hebreus): os sem identidade
jurídica, os sem direitos sociais, os descartados
economicamente, os escravos (os destituídos da liberdade).
Jorge PIXLEY e Clodovis BOFF, teólogos expoentes da Teologia da
Libertação, descrevem estes pobres como um fenômeno coletivo25,
resultado de um processo conflituoso26, e que por isto reclamam
um projeto social alternativo27.
Quando os refugiados do Egito (hapirus), por exemplo,
chegaram à terra prometida (Canaã), esta já se encontrava
24 Hapiru é uma translação de uma palavra hebraica para o alfabeto português,significando: aquele que não tem direito jurídico algum, o espoliado. Estetermo posteriormente redundará no termo Hebreu, pois serão estas pessoas(hapirus) que darão formatação ao povo de Israel; conferir PIXLEY, Jorge;BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986, p. 19ss. SegundoAlbrecht ALT, “Na linguagem jurídica, ela aparece sobretudo como designaçãopara a pessoa que se vende como escrava para pagar uma dívida”; cf. ALT,Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel. SãoLeopoldo: Sinodal, 1986, p. 193s.25 PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986,p. 19ss.26 PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986,p. 21ss.27 PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986,p. 23ss.
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ocupada pelos Cananeus. Foi nesta terra, entretanto, que os
hapirus forjaram uma identidade a partir de sua história, em
meio aos cananeus e às cidades-estado que não dividiam a mesma
história e os mesmos valores de vida. Em Canaã havia cidades-
estado estruturadas a partir de reis, propriedades, cercas,
escravidão, endividamento, exército e trabalho quase escravo.
Quando os hapirus chegaram e se confrontaram com este panorama
social, aguçaram-se as diferenças.
A chegada do grupo hebreu (hapiru) deu aomovimento uma consciência política e socialcujo eixo era a confissão de que Javé era seuúnico rei. As leis do Sinai (Decálogo) foramdando coerência ao movimento israelita e umaconsciência de sua diferença dos “cananeus” quehabitavam as cidades do país, que viviamsujeitos a reis humanos e que tinham Baal porDeus. [...] O relato do êxodo e sua confissãode fé em Javé foi dando solidez à suaconsciência de diferenciação dos habitantes dosvales e das cidades. Eles eram o povo de Javé enão tinham reis “como todas as nações”.28
(grifou-se)No processo de desmistificação do texto bíblico, veremos
que Deus não escreveu os Mandamentos, como mostra as
espetaculares imagens cinematográficas de Hollywood, no
premiado filme “Os Dez Mandamentos” (The Ten Commandments), com
Charlton Heston, de 1956. Tanto no texto bíblico quanto no
filme, Deus escreve com fogo, sobre a Montanha do Sinai, os Dez
Mandamentos, forjando-os na pedra, e os entrega ao povo como
legislativo divino. Mas numa análise hermenêutica sociológica,
percebe-se que os Dez Mandamentos foram surgindo
paulatinamente, a partir de experiências sofridas. Seus autores28 PIXLEY, Jorge; BOFF, Clodovis. Opção pelos pobres. Petrópolis: VOZES, 1986,p. 44.
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são vários, mas sua condição existencial era a mesma: a da
pobreza e marginalização.
Por isto, apresentar a opção pelos pobres como uma base
teórica complementar não é um prejuízo por parte do autor deste
trabalho de conclusão, mas uma necessidade hermenêutica para
entendermos o sentido primordial do códice bíblico. Para nos
aproximarmos o mais possível da origem intencional dos
mandamentos é pressuposto conhecer o autor (ou autores) e sua
realidade socioeconômica, pois é este horizonte existencial que
vai auxiliar nosso entendimento em torno dos Dez Mandamentos e
seu significado político e jurídico.
A opção pelos pobres também encontra seu fundamento
jurídico nas formulações posteriores do Direito Romano, que
serve de base para as construções jurídicas contemporâneas.
Referimo-nos ao princípio "in dubio pro misero"29. Este aporte pode
oferecer um vislumbre sobre uma forma de influência do Decálogo
sobre a história jurídica ocidental: uma sociedade que
desenvolve uma percepção em favor do pobre, tingindo suas leis
com este valor e repassando-as subsequentemente a outras
culturas com quem mantém relações comerciais e diplomáticas; e
mesmo constitutivas de seu status quo, ao nos referirmos a
posterior referência do Direito Romano na formação ocidental
como um todo.
Concluindo, o marco teórico deste trabalho vai fazer uso
1) da hermenêutica de GADAMER, para explicar o processo de
acobertamento moral sobre o texto jurídico do Decálogo, além de
29 DIREITO do trabalho no Brasil. Wikipédia. [S.l.], 6 de novembro de 2012.[Online]. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_do_trabalho_no_Brasil>. Acesso em: 11nov. 2012.
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aportar elementos básicos de uma hermenêutica capaz de
destituí-los deste manto religioso, ressaltando suas
características políticas; 2) do método histórico-crítico como
instrumento hermenêutico sociológico mor no que se refere à
interpretação de textos religiosos; 3) da opção dos pobres,
como perspectiva existencial, a partir do fato da autoria dos
mandamentos ter como sujeitos, os hapirus (hebreus).
1.2 O CONTEXTO HISTÓRICO
Para realizar esta tarefa de desmitificar o Decálogo de
sua roupagem religiosa moral, escrita pela própria divindade
hebraica, pretende-se neste ponto, apresentar dados de
pesquisas veterotestamentárias que apontam que a formação dos
Dez Mandamentos se deu após a formação paulatina das 12 tribos
de Israel, pelo fim do segundo milênio a.C. Como veremos no
ponto 1.5.2, o Decálogo foi confeccionado somente no século VII
a.C., mas sua existência se deve ao surgimento social das 12
tribos de Israel. Por isto, a seguir, será tratado sobre o
surgimento deste sistema tribal. Para entender a formação
dessas tribos é importante conhecer a história que antecede sua
formação. É uma história de interesses econômicos, políticos e
de subjugação humana.
Segundo estudos da história antiga, o Império Egípcio
mantinha baixo seu domínio, a região de Canaã até o século XII
a.C., hoje conhecida como Palestina. A importância desta região
reside na sua localização estratégica: a terra da palestina era
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uma passagem comercial. Por ela se intermediava o comércio
internacional. Canaã era a intersecção entre três grandes
continentes: Ásia, Europa e África. Quem dominasse este pedaço
estreito de terra teria a oportunidade de cobrar os impostos
aduaneiros. Portanto, Canaã, mesmo sendo pequeno e desértico,
representava ser um território econômico e estrategicamente
importante para os povos da região. Por esta razão, muitas
nações como os Huritas, os Egípcios, os Assírios, os
Babilônios, os Persas, os Gregos e os Romanos procuravam manter
aí seu domínio. As rotas comerciais da região proporcionavam
muitas riquezas.30
Na época do domínio egípcio, Canaã era povoada por
cananeus. Sua organização socioeconômica era estruturada por
cidades-estado. Estas cidades-estado eram autônomas entre si,
mas dependentes do Império Egípcio. Os egípcios permitiam que
as cidades-estado dominassem a região em troca de altos
tributos. As cidades-estado logravam pagar estes tributos por
que tinham duas fontes de dinheiro: primeiramente, controle e
exploração das rotas comercais internacionais; a segunda fonte
provinha da produção agrícola. As cidades-estado tinham
controle de grandes extensões de terra ao redor de seus muros,
as quais eram habitadas por campesinos que trabalhavam a terra,
tirando dela os produtos agrícolas. Os campesinos não possuíam
as terras. Os proprietários eram os reis das cidades-estado. Os
campesinos arrendavam as terras, pagando tributos (parte das
colheitas) pelo uso das mesmas. Era um tipo de feudalismo
cananeu, uma relação de trabalho conhecida como corveia. Assim, o
30 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 25-34.
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campesino trabalhava para pagar o faraó e o rei da cidade-
estado.31
Esta descrição geral da política econômica da região
oferece uma ideia de como os tributos eram sempre altos e de
como estes tributos fomentavam um processo de paupérie da
população campesina e, por consequência, constantes revoltas.
Muitos campesinos se encontravam endividados a ponto de se
tornarem escravos, trabalhando sem pagamento e sem direitos. A
escravidão era uma forma de saldar as dívidas. Primeiro os
filhos eram entregues à escravidão para saldar as dívidas;
depois a esposa, caso a situação econômica não se reverte-se;
por fim, o próprio campesino. A outra forma de resolução da
dívida era mediante a revolta. Muitos decidiam por esta forma
de resistência, fugindo das terras agrícolas e refugiando-se
nas montanhas, onde formavam bandos marginais que vez ou outra
enfrentavam os exércitos das cidades-estado, guerreando contra
seu domínio.32
Para manter a paz na região, os egípcios esperavam que os
pequenos exércitos cananeus, dos reis das cidades-estado,
lograssem abafar qualquer revolta campesina. Isto fazia parte
do acordo entre os reis das cidades-estado cananeus e o Faraó.
Se, porém, os exércitos regionais não conseguissem realizar a
vitória sobre determinada revolta campesina, então o Faraó
mesmo intervinha, enviando algumas tropas egípcias para
assegurar a soberania e a exploração do território cananeu.
Claro que os reis das pequenas cidades-estado gostavam de tal
31 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 40-50.32 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 51-54.
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intervenção. A resistência não vinha deles, mas sim do campo.
Os únicos que saiam perdendo eram os campesinos que
necessitavam pagar dois tipos de impostos, sendo explorados
(corvéia), escravizados e, por fim, levados a revoltas e a
lutar contra exércitos bem preparados, sem lograr, contudo,
sucesso significativos neste período anterior ao século XII
a.C.33
A política e a economia deste período estabeleciam uma
distribuição desproporcional das riquezas, destituindo os
direitos da população campesina, fazendo-lhes nascer o sentido
de que se tratavam de disposições injustas. Os egípcios
ganhavam muita riqueza de toda esta situação; a corte das
cidades-estado também lucrava outra parte considerável. Os
únicos que penavam eram os campesinos que procuravam uma
solução final para toda esta forma de exploração. Como
mencionado anteriormente, havia duas alternativas não muito
seguras: i. a escravatura como forma de pagamento da dívida;
ii. e a fuga das terras agrícolas, controladas pelas cidades-
estado, lutando mediante grupos organizados de fugitivos, que
ocasionalmente faziam incursões rápidas e locais, roubando as
colheitas (para auto sustento), trazendo prejuízos para a
economia das cidades-estado. Como as cidades-estado se
localizavam nas planícies de Canaã, na sua parte costeira,
estes grupos organizados se refugiavam nas montanhas, local de
difícil acesso ao exército dos reis cananeus, pelo fato do
cavalo e da biga do rei, força bélica da época, não lograrem
subir encosta acima. A biga era um instrumento de guerra da
33 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 40-46, 57.
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planície, não da montanha. As montanhas não eram habitadas na
época anterior ao século XII a.C. pela dificuldade de se
plantar sobre as mesmas. Por isto, não eram do interesse das
cidades-estado.34
Ao final do XIII a.C., o poder egípcio decresce na
região, e os cananeus se veem livres dele. Isto trouxe
esperança para os reis das cidades-estado de se tornarem os
novos donos de toda a Canaã. Cada qual começa a se armar contra
os reis vizinhos. Com a retirada do poder egípcio, Canaã se
transforma num campo de lutas, agora entre os pequenos reis que
rivalizavam pelo poder sobre toda a Palestina. Isto implicou
num aumento dos impostos sobre o campesinato para manter os
exércitos, aumentando a proliferação de fugitivos às montanhas
da região, incrementando os bandos de guerrilheiros já
existentes.35
Estas pessoas espalhadas por toda região de Canaã e
derredores eram conhecidas como hapirus. O termo hapiru nomeia um
grupo político, social e econômico extenso e diversificado em
toda esta região anterior ao século X a.C. A investigação
sociológica identifica a partir deste termo grupos sociais ou
pessoas que perderam seu status socioeconômico e decidiram viver
à margem da sociedade vigente36. Encontram-se grupos sociais
denominados hapirus tais como prisioneiros de guerra37, como
34 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 59, 63-67.35 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 59-62. 36 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 410.37 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 410s.
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proscritos38 (ladrões, rebeldes), como organização de bandos
armados39. Como se nota, o termo hapiru não designa exatamente
um grupo étnico, senão um grupo social heterogêneo, mas com um
estado jurídico-social peculiar: são pessoas consideradas
apartadas da sociedade civilmente organizada da época. É um
termo pejorativo, pois ser considerado um hapiru era ofensivo em
alguns círculos sociais. Eram os economicamente empobrecidos,
os sem privilégios, os destituídos de quaisquer direitos
políticos.40
1.3 OS HAPIRUS
Contudo, são exatamente estes hapirus os responsáveis pela
formação de uma sociedade alternativa, sobre as montanhas de
Canaã. Procurando solucionar seu dilema sócio jurídico, estes
hapirus lograram criar, à parte da sociedade de reis e impérios,
uma sociedade que satisfizesse suas ansiedades e que fizesse
frente às injustiças presentes nos poderes de então. São os
hapirus, enfim, que, para esta criação societária, desenvolveram
leis que erigiram e deram forma a esta sociedade personificada
por doze tribos. Estas leis, em sua maioria existente na
tradição oral, vão fomentar mais tarde o surgimento do
38 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 223,412s, 482s.39 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 412s,426s, 428-432, 489s.40 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 223,402, 415s.
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Decálogo. A seguir, queremos desenvolver esta ideia mediante
dados históricos e sociológicos, demonstrando como se deu a
formação do povo hebreu41, nome etimologicamente oriundo da
terminologia hapiru, como nação (Israel - termo teológico) e
como esta formação social sui generis deu origem à constituição
política e jurídica do Decálogo.
Com a queda do domínio egípcio sobre os territórios de
Canaã, depois do século XII a.C., as cidades-estado começaram,
como mencionado acima, a lutar pela supremacia da região. Com a
ausência dos egípcios e de qualquer outra potência que
reclamasse sua vez, os reis cananeus aumentaram o processo de
pauperização, devido à demanda de mais impostos para alimentar
suas guerras particulares. Nunca o número de hapirus foi tão
grande quanto neste período. Tal contingente de foragidos e
escravos fugitivos se dirigia diretamente para as montanhas,
aumentando consequentemente os grupos de refugiados aí
presentes. Nas montanhas, neste período, havia matas. Isto
trazia uma nova possibilidade de vida, além dos ataques
incursionados nas planícies, assaltando as colheitas dos reis.
Contudo, foi neste meio montanhês que surgiu pouco a pouco uma
organização social que, com a ausência de uma potência
estrangeira controlando a região, inicia a ensaiar uma forma
alternativa de organização política socioeconômica: os hebreus
(hapiru) ou posteriormente, os israelitas.42
Nestas circunstâncias, as montanhasviabilizaram algo verdadeiramente novo a partir
41 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 409,415.42 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 68-80.
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do final do 13º século. O assentamentogradativo de camponeses, foragidos dofeudalismo cananeu das planícies, nas novasterras da montanha desencadeou um novo processona palestina, sob novas condições do início daera do ferro, da fuga maciça de camponeses daplanície devido à desintegração do sistema dascidades-estado em guerra fratricida após aretirada dos egípcios, e da difusão do uso dacisterna. A ocupação das montanhas a partir dofinal do 13º século determinou, duranteséculos, a história da Terra de Canaã.43
A tradição bíblica relata que a formação do povo
israelita se deu a partir da tradição mosaica, ou seja, que os
hebreus (hapirus) que fugiram da escravidão do Egito, depois de
uma travessia do deserto do Sinai, invadiram as terras dos
cananeus e filisteus, conquistando mediante guerras a “terra
que mana leite e mel”. É a teoria da “invasão”44. Há, contudo,
uma segunda teoria que defende que os grupos que vieram do
Egito conquistaram a terra de Canaã não tanto mediante guerras,
senão por infiltração gradual45. Hoje em dia, a investigação
veterotestamentária já logra perceber uma terceira teoria a
respeito da formação do povo de Israel. Ela propõe que a
formação de Israel se deu a partir de diferentes grupos de
hapirus (foragidos, bandos de ladrões, escravos fugitivos, etc),
de diferentes tradições (abraâmica, cananeia, mosaica,
sinaítica). Nesta teoria, todas estas tradições que fomentaram
o surgimento de Israel eram formadas por contingentes de
43 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 57.44 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 202ss. 45 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 214ss.
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hapirus46. Na realidade, a história que se encontra nas páginas
da Bíblia é uma compilação posterior, elaborada pelos
sacerdotes israelitas (durante o período do reinado de Israel –
século X a.C.), responsáveis por oferecer uma história passada
de sua nação com coesão e linearidade47.
A pesquisa sociológica pode identificar quatro grupos
sociais diversos, com tradições (teológicas) distintas, com
experiências de sofrimento díspares, mas todos com um mesmo
status jurídico: eram considerados hapirus.
A) Grupo Abrâmico – O primeiro grupo que fomentou a
formação das 12 tribos e posteriormente o povo de Israel é o
grupo denominado abrâmico, que desde o século XV a.C.,
provenientes das terras babilônicas, fugindo da opressão deste
povo, acabou se infiltrando nas montanhas de Canaã pela parte
norte. Eles não viviam nas cercanias das cidades-estado, mas
distantes, nas montanhas: “A cidade era vista basicamente de
modo negativo”48. Portanto, não são nem cidadãos de cidades,
nem camponeses que se fixam em determinado lugar. Eram
seminômades, criadores de animais de pequeno porte (cabras,
ovelhas, etc), marcados tanto pela transmigração, quanto por
transumância constante49. Sua constituição social é a da
46 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 220ss.47 BEATO, Joaquim. O Pacto de Moisés e o Pacto de Davi – os dois círculos detradição do Antigo Testamento. In: SCHWANTES, Milton. Tradição Mosaica. Traí:Cadernos do Povo – PU, 1981, p. 5ss. Conferir também SCHWANTES, Milton.História de Israel – local e origens. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984, p. 80.GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião de Israelliberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 13. 48 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 86.49 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 81ss, 89.
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família ou o clã, uma grandeza social auto-suficiente e
autárquica50. Eles são econômica e juridicamente autônomos51.
Estas duas últimas características são importantes, pois
influenciará particularmente a formação estatal das 12 tribos,
tendo como base legal, o Primeiro e Quarto Mandamentos.
B) Grupo Cananeu – São os camponeses sedentários, vivendo
nas cercanias das cidades-estado, trabalhando sob o regime da
corveia, explorados a ponto de fugirem para as montanhas, como
já relatado anteriormente. Sua experiência de sofrimento no
trabalho, sem tempo para descanso, onde a terra não lhes
pertencia e onde os reis dominavam mediante leis consideradas
por eles como injustas, é semelhante à experiência das pessoas
que se infiltraram pelo sul, vindos das terras do Egito.
C) Grupo Mosaico – Por mais que a história bíblica nos
relate que Moisés tenha trazido um grupo de foragidos do Egito,
a pesquisa mais recente indica que a infiltração dos grupos
oriundos do Egito não foi única, mas inúmeras, durante um
período de duzentos anos. Várias levas de hapirus insatisfeitos
fugiam, através de pequenos grupos, do Egito para outras
oportunidades de trabalho e de vida mais dignos52.
Estas pessoas são camponeses que viviam e trabalhavam nas
margens do rio Nilo, terra fértil, mas que foram cooptados pelo
Faraó para a construção da nova capital de Ramsés II (1290-
1224) no delta. A partir das condições inumanas, o conflito
eclode, fomentado pelo sistema familiar destas pessoas. O50 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 93.51 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 94.52 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 121.
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conflito fez surgir uma organização como força oposta ao Faraó.
Moisés, por exemplo, é um exemplo de líder que nasce a partir
destas resistências organizadas junto às obras. Como as
reivindicações destes grupos organizados não eram aceitas pelo
Faraó, uma das soluções encontradas era a fuga.53
A insatisfação generalizada pode ser apurada nos relatos
bíblicos, onde é dito que trabalhavam forçosamente nas
construções faraônicas, cabendo-lhes construir e fazer tijolos:
São “oprimidos” (Êx 1.11s; 3.7; Dt 26.6s),“escravizados” (Êx 1.13s; 2.23; 5.9; 6.5; Dt6.21; 26.6), “tiranizados” (Êx 1.13s),“sobrecarregados” (Êx 6.6s), “amargurados emsua vida” (Êx 1.14). Realizam “trabalhosforçados” (Êx 1.11), são “carregadores” (Êx1.11, 6.6s); trabalham sob o comando defeitores (Êx 1.11) e capatazes (Êx 5). Porisso, “gemem” e “gritam” (Êx 2.23s; 3.7-9; 6.5;Dt 26.7) Em Êx 1.11-14 há um verdadeirocatálogo da opressão faraônica.54
É daqui que surge o termo hapiru, pois sua origem é
egípcia, “‘hebreu’ não designa uma raça, mas aqueles setores
sociais que, no feudalismo da época, haviam sido espoliados,
explorados e marginalizados”55. Desta tradição surge a
característica da divindade que liberta da opressão! É o
estigma de um Deus libertador, promovendo libertação política,
social e econômica, assim como aquele que promove igualmente o
surgimento de um novo status ao grupo socialmente designado de
Hebreu. Tanto que a divindade desses hapirus egípcios é denominado
53 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p.138ss.54 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 118.55 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 121.
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Deus dos Hebreus, aqui no sentido de hapiru, ou seja, como o Deus
dos espoliados e daqueles considerados não pertencentes ao
estado político e civil da época56.
D) Grupo Sinaítico – Este grupo é muito importante para
nosso trabalho, pois são dele algumas características que
usaremos para fundamentar os aspectos jurídicos dos capítulos
subsequentes. Uma dessas características é a de que o nome da
divindade é a de Javé. Javé é o nome da divindade da montanha,
onde o altar é erigido e onde os cultos são realizados. Uma
divindade que preza pela exclusividade, não admitindo qualquer
outra concorrente57. Esta montanha é conhecida como a do Sinai,
onde a historiografia ainda tem problemas para determinar sua
localização e até sua estrutura (alguns dizem poder ser um
vulcão58). Outra característica é o aspecto jurídico deste
grupo. Essas pessoas vão levar seu cabedal legal para a
formação das 12 Tribos. É daqui que as leis e instruções vão
formar a Torá, o livro das leis, a partir das quais a
sociedade alternativa das 12 Tribos vai se estruturar
juridicamente59. Este grupo social é oriundo do sul das terras
de Canaã. Não são cananeus, nem campesinos, mas criadores de
gado pequeno, a exemplo dos da tradição abrâmica. Mas a
divindade do Sinai é localizada, ao contrário das divindades
dos pais, no grupo abrâmico, que caminha junto com seu povo,
56 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 123ss.57 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 158.58 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 148ss.59 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 145s.
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onde quer que se dirijam, em suas migrações sazonais60. Daí o
surgimento do Primeiro Mandamento, não admitindo outros deuses
diante dele. Nem o deus dos cananeu, nem o paterno (abrâmico)
apresentam tal característica.61
Este grupo é composto por pessoas também consideradas
como hapirus, que viviam nas cercanias do Monte Horebe, segundo
algumas tradições, mas que perderam suas terras de pastoreio
para latifundiários da região ao sul da Península do Sinai. São
beduínos, pequenos pastores, que precisam procurar por novos
pastos. Sua peregrinação os leva para o norte, para as terras
de Canaã, assim como o foi com o grupo mosaico.62
Em conclusão, estes diferentes grupos sociais (cananeu,
abrâmico, mosaico e sinaíticos), além de outros que não foram
preservados pela memória israelita, se fundiram num determinado
momento da história da formação de Israel ocorrido entre os
séculos XV e XI a.C. Destes diferentes grupos de hapirus
surgiram as 12 Tribos de Israel. A partir das diferentes
histórias e tradições, surge uma única tradição e história,
mediante o amálgama das características representativas de cada
tradição. GOTTWALD escreve: “Todos os [...] grupos tinham
interesses básicos em conservar sua autonomia que os punha em
conflito com a cidade-estado, criando com isso as condições
objetivas para ação cooperativa episódica ou mais duradoura de
uns com os outros”.63
60 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 156.61 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 158.62 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 160s.63 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 482.
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1.4 A FORMAÇÃO DAS TRIBOS DE ISRAEL
Este ponto é importante para a nossa pesquisa, pois
desvela as características desta organização social, da qual
nascerá o Decálogo. Ao contrário do que descreve o Pentateuco,
a formação do Decálogo surge trezentos anos depois deste evento
histórico, ou seja, o da organização social das 12 Tribos de
Israel. Veremos isto no ponto subsequente (1.5). Por ora, basta
que voltemos nosso olhar para as características desta
sociedade sui generis, com o objetivo de entender, a posteriori, em
que contexto nasceu o Decálogo, e a partir de quê necessidades.
O sistema tribal de Israel surgiu como uma organização social
identificável historicamente ao redor de 1.250 a.C. e se
manteve assim por 200 anos, ou seja, até 1.050 a.C. Como
mencionado anteriormente, as migrações sucessivas de hapirus
para as montanhas de Canaã fomentaram o surgimento de uma nação
cultural própria e singular. Neste amalgama de diferentes
culturas (abrâmica, sinaítica, cananeu, mosaico e outros) surge
uma organização social estruturadas em 12 Tribos, que perdura
por duzentos anos.64
Essa união foi possível, pois todos esses diferentes
grupos tinham alguns pontos em comum: 1º) Todos eram hapirus, ou
seja, todos possuíam uma mesma condição socioeconômica, por
serem os excluídos; 2º) Todos lutaram contra cidades-estado;
3º) todos realizaram uma fuga de libertação (peregrinação),
concluindo-a nas montanhas de Canaã; 4º) todos tinham uma forte
cultura religiosa, a partir de uma divindade que liberta da64 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 496ss.
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opressão.65 Assim, a despeito de suas diferentes origens e
tradições, estes pontos fizeram com que desenvolvessem
objetivos comuns: “viver livre da opressão, na fraternidade,
respeitando-se nas diferenças que não comprometiam a unidade do
novo projeto, mas também optando conjuntamente por aspectos
essenciais para a sobrevivência da experiência alternativa que
estava nascendo”.66
Esta união de diferentes grupos, mas com experiências
semelhantes de vida, gestou a formação de uma sociedade tribal.
Cada tribo tinha uma origem histórica, cultural e religiosa
própria e desconexa uma das outras; contudo, elas eram
articuladas entre si a partir de alianças para a
autopreservação. Estes pactos eram ratificados e fortalecidos
em reuniões periódicas chamadas de assembleias (ex.: Assembleia
de Siquém), as quais reuniam representantes das diferentes
tribos. Cada tribo realizava, contudo, suas próprias
assembleias, pois cada tribo era composta por vários clãs
(associações protetoras de famílias) e estes, por sua vez, eram
compostos por aproximadamente 50 famílias. A própria família
também era composta por um número de mais ou menos 50 pessoas,
desde esposos, filhos e parentes próximos.67 Ou seja, várias
famílias formavam um clã, vários clãs formavam uma tribo e a
união final de todas as tribos era conhecida como confederação.68
65 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 63s.66 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 64.67 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 67.68 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 336ss.
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Nos subcapítulos a seguir, pontuar-se-á as características
principais que constituíram a união desses grupos, união a
princípio aleatória, mas que redundou na formação de uma forma
de governo sui generis, sociedade tribal, e na elaboração de leis
igualmente peculiares, que redundaram a posteriori, na elaboração
do Decálogo.
1.4.1 Solidariedade econômica
A experiência que os hapirus obtiveram durante o período
de opressão lhes ensinou que os reis, tanto egípcios, quanto
cananeus, e os latifundiários da península do Sinai e da
Babilônia, desenvolviam um sistema econômico baseado na
acumulação de riquezas nas mãos de poucos. Como na corveia, os
tributos eram exorbitantes, levando o camponês à escravidão. A
partir destas experiências, a nova sociedade tribal desenvolveu
outro sistema econômico. A terra, que antes era de propriedade
do rei ou do latifundiário, agora é declarada propriedade de
Deus, não podendo ser vendida, nem comprada. Podia ser usada.
Se pertence a Deus, todos podem partilhá-la. Leis específicas
foram elaboradas para assegurar que cada tribo tivesse direito
a uma cota de terra para plantar e colher o suficiente para os
seus, sem, entretanto, almejar o acúmulo. Quando isto ocorria,
se proporcionavam festas para que fosse eliminado o
excedente.69
69 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 70s.
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O modo de produção tribal ou comunitáriocaracteriza-se pela ausência de propriedadeparticular. O meio de produção é coletivo. Aterra na sociedade campesina, as pastagens e osrebanhos na sociedade pastoril, sãopropriedades do clã ou da tribo, em suma detoda a comunidade. A única condição para o usodos meios de produção e para o acesso aoproduto social é que se pertença à comunidade.A apropriação do produto se dá em baseigualitária. Em havendo excesso de produção,este é consumido em festas. Tenta-se, assim,evitar a possibilidade de seu acúmulo por partede indivíduos ou grupos. Intercâmbioscomerciais são absolutamente inexistentes; háapenas um sistema de troca interno; a divisãodo trabalho acontece por idade e sexo. Asquestões político-jurídicas são decididas emassembleias, nas quais a autoridade cabe aosanciãos do grupo em questão. As lideranças têmcaráter emergencial. Não se apresenta ainda umaestrutura de classe.70
Esta experiência tribal posteriormente influenciará a
releitura do êxodo mosaico, na qual o maná que cai do céu no
deserto não podia ser acumulado para o dia seguinte (Êxodo
16.16-19). O acúmulo de bens é proibido, fomentando destarte
uma sociedade economicamente igualitária, na sua forma de
produção. Ao invés do acúmulo, a partilha é a característica
básica na economia desta sociedade tribal insipiente. Para
evitar um desequilíbrio social, havia também o ano sabático e o
ano jubilar, quando então todas as dívidas eram perdoadas,
eliminando que alguns lograssem acumular mais que outros. O
objetivo deste ideal era evitar que houvesse pobres em seu meio
70 DREHER, Carlos A. A Formação Social do Israel Pré-Estatal. 3. ed. São Leopoldo:CEBI, 2002, p. 33.
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(Deuteronômio 15.4).71 Esta última característica será
importante quando tratarmos sobre o Terceiro Mandamento.
1.4.2 Poder partilhado
Na experiência que antecedeu à fuga de seus locais
originários, os diferentes hapirus conheceram a forma de poder
centralizado nas mãos do rei. Esta centralização tornava-se
absoluta e tirânica. A religião do palácio legitimava o rei e
sua autoridade exclusiva. Esta experiência forjou, na mente e
na alma deste povo, a necessidade de criar uma forma de poder
completamente distinta, uma que não legitimasse, nem
oportunizasse uma mesma tirania. A forma encontrada pela
sociedade tribal é a da subsidiariedade: o q ue pode ser
decidido na base não deve ser levado para uma instância
superior. Os chefes de família tinham autonomia de decisão
dentro de suas respectivas famílias ou comunidades. O que podia
ser decidido no espaço do clã, não devia ser levado para o
representante da tribo. E o que podia ser decidido dentro da
tribo, não subia para a confederação. Por outro lado, havia o
princípio da solidariedade, que evitava o monopólio e
isolamento das famílias ou clãs em si mesmos. As famílias
tinham obrigação com o clã e os clãs tinham obrigações com a
tribo. Tudo regulado por leis.72
71 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 71s.72 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 333ss.
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Para este processo funcionar, houve uma forte ruptura com
a estrutura cananéia, predominante na região. Na sociedade
tribal não existia rei (Deus é o rei), nem palácio, nem
burocratização hierarquizada. Era um sistema patriarcal e
estava nas mãos dos anciões, líderes com bastante experiência
de vida, presentes nos espaços decisórios nas famílias, clãs e
tribos (por mais que algumas mulheres obtivessem espaço de
liderança). Havia leis que balizavam a autoridade destes
líderes, impedindo-os de se tornarem opressores. Por exemplo, o
líder devia ser irmão do povo (Dt 17.15); não devia ter
exército grande, nem levar o povo de volta à escravidão, como
no Egito (Dt 17.16); não podia ter harém com muitas mulheres,
nem seguir outros deuses (Dt 17.17a); não podia ter muitas
riquezas (Dt 17.17b); e, devia seguir a lei de Deus (Dt
17.18ss).73
As decisões eram tomadas em assembleias populares e não
por grupos seletos. Esta característica de poder
descentralizado vai influenciar a releitura do êxodo mosaico,
ao escrever a história da descentralização das tarefas de
Moisés, em Êxodo 18.1-27. O projeto igualitário não surge do
nada, mas a partir de uma prática estruturalmente social, a
ponto de até estrangeiros poderem dar sua opinião. Este poder
partilhado será perdido quando o reinado de Davi e de Salomão
lograrem trazer para uma só família o poder decisório, dando
origem a palácios, exércitos e impostos para manter toda esta
estrutura de reinado (ponto 1.5.1).74 Regressaremos a esta
73 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 72s.74 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 358ss.
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característica do poder partilhado, tendo Deus como rei, em
nosso segundo capítulo, quando tratarmos do Primeiro
Mandamento.
1.4.3 Leis a serviço da vida
Como mencionado nas características anteriores, a lei se
fez presente para estabelecer a estrutura da sociedade tribal,
segundo parâmetros próprios, contrários às leis existentes nas
cidades-estado. Nestas, a lei estava centrada no desejo do rei
e de sua corte. O suborno era praxe no meio da corte,
favorecendo quem mais possuía bens e/ou poder político. As leis
que defendem o novo sistema tribal, ao contrário, procuravam
proporcionar um sistema mais igualitário. Por exemplo, havia
leis que impediam a alienação de terras de uma família por
outra; assim se procurava defender as comunidades mais débeis
contra a cobiça de outras. Era uma lei que se baseava não na
força do exército que coíbe, mas no compromisso de cada um, de
cada família, clã e tribo com o novo projeto social nascente
nas montanhas de Canaã.75 Este compromisso era sustentado e
alimentado pela fé num Deus (aliança/contrato), que com o tempo
se consolidou na figura de Yahweh (Javé), dentre as tantas
divindades trazidas pelos diferentes grupos de hapirus.76
A panóplia de domínios, dos quais são extraídos títulose imagens da divindade por todo o antigo Oriente
75 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 74ss.76 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 681ss.
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Próximo, é o mesmo repertório básico de que Israel seutiliza. Em Israel, no entanto, há uma diminuiçãodecidida de analogias a começar da natureza e também umaconcentração enfática de analogias nos domínioshistórico e social, com especial focalização nadivindade líder, governante e defensor de seu povo.Yahweh, enquanto o nome próprio do Deus de Israel,acentua o papel ativo da divindade como guerreiro-líderem trazer à existência uma sociedade intertribalcaracterística e em defendê-la contra ataque externo.Porém, o fato de este Yahweh ser equiparado a El, comefeito, é comumente intitulado Yahweh ’Elohe Yisra’el (Yahweh,o Deus de Israel), coloca a ação iniciadora histórico-social do Deus contra o fundo do seu papel primordialgeral como o poderoso, o criador de tudo quanto existe,o líder e governante paternal das comunidades humanas.77
Esta fé religiosa era igualmente uma característica dos
diferentes grupos de hapirus. Uma fé numa divindade que liberta
de sistemas sociais com um modo de opressão escravocrata. A
despeito da existência de diferentes divindades, duas se
mantiveram por longa data: Yahweh (Javé) e El (Elohim).
Posteriormente, vigou apenas a figura de Javé. Independente
desta filtragem paulatina na esfera teológica, o importante é
apontar que as leis durante este período tribal eram seguidas a
partir de uma aliança entre o povo (tribos, clãs e famílias)
com esta divindade paraestatal. Ela se tornou o poder agregador
e normativo da sociedade tribal.78
Na época das 12 Tribos não havia lei escrita. As leis
presentes no Pentateuco foram escritas durante a época do
primeiro reinado (século X a.C.), assim como antes e depois do
exílio babilônico (século V a.C.). O próprio Decálogo também se
constituiu posteriormente, como veremos no ponto 1.5.2. O que
77 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 684.78 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 689s.
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importa aqui é verificarmos que as leis tribais estavam a
serviço da vida igualitária e libertária, não permitindo que a
sociedade promovesse a escravidão, por exemplo.79 Para tanto,
havia juízes, não como os concebemos atualmente, segundo o
sistema jurídico brasileiro. Eram pessoas que “julgavam as
questões do povo, zelando pela observância das leis tribais.
Eram eles os administradores da justiça.”80 Uma lista de nomes
deste juízes pode ser encontrada no texto bíblico de Juízes,
tanto no capítulo 10.1-5, quanto no 12.8-15.
1.4.4 Fé no Deus libertador
Como já aludido no ponto anterior, a união de diferentes
linhas teológicas fundiu várias destas tradições religiosas
numa só teologia, resultando num só Deus. Isto foi possível, já
que as diferentes divindades compartilhavam de uma mesma
característica: eram forças libertadoras e comprometidas com
grupos sociais tidos como hapirus. A religião se torna o esteio
da sociedade tribal; a crença num único Deus, doador de vida e
liberdade (Êxodo 3). Claro que o amálgama teológico não se deu
facilmente. Houve um esforço para a superação do politeísmo. Há
textos bíblicos que ressaltam constantemente esta resistência
dos grupos minoritários diante das propostas dos grupos mais
fortes (Ex 20.2-11; Josué 24.1-15). Neste texto de Josué, que
retrata a Assembleia de Siquém, é possível perceber a menção79 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 75.80 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 75.
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das diferentes tradições (mosaica [v. 5-7], patriarcais [v. 3-
4], cananéia [v. 9-13] e sinaítica [v. 7c]), às quais é
exortado que abandonem suas antigas tradições (ex.: deuses dos
pais) para serem fiéis apenas à Yahweh ’Elohe Yisra’el (Yahweh, o
Deus de Israel), título (v. 2) que representaria, a partir
daquela data, todas as outras divindades. A despeito deste
esforço, o politeísmo continuou a se fazer presente no meio
israelita por séculos.81
No panteão das divindades das cidades-estado, a
hierarquia dos deuses espelhava a hierarquia do poder do
reinado. Havia o deus que mandava nos deuses menores e mais
fracos, assim como o rei detinha o poder sobre os demais
componentes da sociedade, estruturada em hierarquia. A religião
da cidade-estado legitimava o poder do rei. A religião nascente
israelita desestrutura a hierarquia dos deuses ao insistir na
devoção a um único Deus, levando, consequentemente, à
desconstrução da estratificação do poder social em classes,
entregando-o nas mãos do povo tribal. Se Deus é um só, então
todos são iguais entre si, e ninguém pode se arrojar ser mais
do que o outro. Por isto, a fé num único Deus carrega em seu
bojo este princípio libertador de toda forma de discriminação
social e racial. Se o projeto social tribal é solidário, então
basta a existência de um só Deus. Caso contrário, o mais rico
insistirá em ter deuses que o representem de melhor maneira do
que o deus do pobre. É necessária a distinção teológica para
que o rico seja considerado especial, distinto do hapiru.82
81 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 84.82 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 702s.
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Por todas as partes no antigo Oriente Próximo, as cartasreligioso-políticas cósmicas da vida social refletiam elegitimavam submissão ao mundo estratificado dedesigualdade de classe, à dependência dos muitos aospoucos quanto à manutenção física e à identidade humana.A carta da aliança do primitivo Israel espelhava elegitimava compromisso na luta rumo à“desestratificação” propositada do mundo humano, àelevação de todos os israelitas ao status de produtoreslivres – tanto das suas vidas físicas como das suasidentidades religioso-culturais. Israel não só “recebeude volta” um mundo como também “encheu novamente” ummundo com as realidades e os significados de sereshumanos livres e iguais.83
Esta declaração de GOTTWALD vai ao encontro deste
trabalho acadêmico, pois evidencia a importância deste evento
histórico para a formação de uma consciência social mais
democrática, igualitária e livre. Um ideal que nasce a partir
de experiências bem concretas sob o domínio de sistemas com um
modo de produção não igualitário e não livre. Traços destas
experiências, por exemplo, podem ser encontrados em Êxodo 15.1-
21, Samuel 2.1-10 e Josué 5.1-32. Estes três textos contam três
cânticos de vitória, alcançadas pela ajuda de Deus. Mostram o
alcance da fé em um único Deus para a derrubada de sistemas
escravocratas dos reis de Canaã; mostram também que esta mesma
fé deu origem à criação de uma sociedade igualitária.84
Quando a Bíblia expressa a existência de um só Deus não
está transmitindo a ideia da unicidade numérica, senão na
83 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 702.84 Outros textos retratam o mesmo ideal: Isaías 40 a 55, escrito no tempo docativeiro babilônico, faz uma crítica ao sistema hierárquico babilônico,fazendo o povo exilado lembrar dos valores igualitários e libertadores deDeus; Deuteronômio 1-11 traz uma apaixonada exortação para que o povo voltea se comprometer com o único Deus e com sua lei. 1 Reis 18.1-46, onde édescrito uma luta entre o único Deus e os falsos ídolos, entre Elias e osfalsos profetas, os quais legitimavam um sistema opressor dos reis deCanaã.
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exclusividade deste Deus. Este Deus (Yahweh ’Elohe Yisra’el) é
distinto dos demais deuses, pois ele não legitima a opressão e
a exploração do trabalhador (campesino ou pastoril); pelo
contrário, sua distinção está no fato dele organizar uma
sociedade liberta, desenvolvendo entre os hapirus uma
convivência fraterna e igualitária. Este Deus se compromete com
o projeto social igualitário e o garante.85 Esta ideia é muito
importante para este trabalho, pois será a base para o segundo
capítulo, ou seja, um único Deus que garante a forma do sistema
organizacional igualitário, assim como um Estado é garantidor
dos direitos de seus cidadãos.
E é com este Deus que os hapirus fazem uma aliança
(contrato), se comprometendo com o projeto libertário. Assim,
ao se comprometerem com Yahweh ’Elohe Yisra’el, a família, clã e/ou
tribo não teriam vida fácil, pois estariam lutando contra
outras formas de organização social que apoiavam modos de
produção não igualitários e libertários. Esta exclusividade de
Deus para com seu povo, mediante a aliança mosaica é descrita
como uma relação entre noivos, onde Deus é tido como o noivo e
o povo dos hapirus, como a noiva. Com isto, Deus quer ser
exclusivo e aceita ser fiel a seu povo.86 Esta aliança mosaica
será melhor trabalhada no segundo capítulo, onde se pretende
desvelar o sentido jurídico de um poder supra tribal,
garantidor do sistema organizacional, gestado nas montanhas de
Canaã, entre 1.250 e 1.050 a.C.
85 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 78s.86 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 619.
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1.4.5 Culto descentralizado
A religião, nas cidades-estado, estava sob o controle dos
sacerdotes. Estes pertenciam à corte do rei e, portanto,
legitimavam-no. A religião mantinha e solidificava o sistema
feudal, escravocrata e hierárquico. Os cultos dos reis de Canaã
e do Egito eram dedicados aos ídolos, cultos nos quais eram
narrados os mitos da criação do mundo, possibilitando o acesso
das pessoas aos deuses, símbolos da estabilidade do status
mantido pelos reis, alguns chamados filho de deus (Ex.: Egito). Os
mitos religiosos originários colocavam vassalos, súditos e os
reis em seus devidos lugares, ordenando assim a estratificação
social e solidificando-a.87 O mesmo ocorria no sistema tribal,
mediante a religião insipiente no único Deus, Yahweh, mas
legitimando outras histórias, outro modo de produção e de
organização social. O culto em Israel seguia um ritual
radicalmente distinto. Quando o povo (hapiru/hebreu) se colocava
diante do altar, de Yahweh, para celebrar sua presença, as
pessoas narravam histórias de libertação, fatos que provocaram
a mudança da escravidão para a liberdade de vida e de outro
modo de produção (Josué 24.17s). Assim, a religião também
servia a este novo modo de produção tribal, oportunizando
acesso a Yahweh e ao ideário político nascente.88
O rito era responsabilidade de um grupo de sacerdotes
chamados levitas, da Tribo de Levi. Mas para que estes não
87 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 57: “O templo não só é sede do rito, também é centraltributária”.88 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 570.
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pudessem sentir a tentação de dominar pela ideologia religiosa
os hapirus, havia uma lei que proibia que estes possuíssem
terras. Na distribuição das terras entre as tribos, a única que
fica sem é a tribo dos levitas, ou seja, a tribo sacerdotal.
Com isto se evitava que esta tribo acumulasse bens e terras; o
sacerdócio deve servir ao povo em nome do único Deus. Em
contrapartida, as tribos restantes se comprometem a manter as
famílias destes sacerdotes através do sistema do dízimo e
através de uma parte dos sacrifícios, como se pode verificar em
alguns dos textos históricos. Em Números 18.20, é dito que: “Na
sua terra, herança nenhuma terás e, no meio deles, nenhuma
porção terás. Eu sou a tua porção e a tua herança no meio dos
filhos de Israel”. No texto subsequente é apregoada a obrigação
do dízimo por parte das outras tribos. Números 35.1-8 narra a
possibilidade dos levitas morarem em algumas cidades, mas as
terras ao derredor das mesmas pertencem ao gado. Deuteronômio
18 igualmente faz tal proibição da posse de terra por parte dos
sacerdotes, com a promessa de viverem apenas de dízimos e de
sacrifícios. Assim, a legislação bíblica sobre os levitas é
complexa, confusa e até meio contraditória, pois a princípio
não recebem terras, mas depois podem possuir cidades.89
O importante nesta concepção de organização sacerdotal é
que a terra pertence a Deus e para que os teólogos não a
usurpem, é traçada uma medida legislativa para evitar tal
processo de dominação ideológica. Como dito, no sistema dos
reinados de Canaã e do Egito, os sacerdotes eram ricos e
latifundiários. Em Israel, os levitas não podem possuir terras
89 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 85.
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e são pobres. Esta concepção sobre a tribo dos sacerdotes
reflete a ordem do culto e do templo. O templo, por exemplo,
não se situava num único lugar, como na cidade, por exemplo,
perto do palácio, para onde todos deviam se dirigir. Assim
ocorria nas cidades-estado. Em Israel, cada tribo tinha um
lugar de adoração, ou seja, na vizinhança de qualquer hapiru.
Tampouco estava o culto sob o poder dos sacerdotes (levitas), e
sim sob o controle dos chefes de famílias, clãs e/ou tribos. A
famosa Arca da Aliança era o símbolo da presença de Yahweh, no
meio do povo. Um Deus que caminha com o povo e não exige que o
povo vá até ele. A Arca, assim diz a tradição hebraica,
continha as tábuas com os Dez Mandamentos, a Norma
Constitucional, o contrato social entre o povo dos hapirus e seu
Deus, Yahweh, o Deus que liberta da opressão do Egito e que
caminha com o povo pelo deserto. A cada mês, o templo (uma
grande tenda) era desmontado e transportado pelos levitas até a
próxima tribo. Assim, a presença de Deus se fazia presente em
cada tribo, mediante o trabalho abnegado dos levitas, que
continuamente narravam a história da libertação, não permitindo
que os hapirus se esquecessem de suas origens, de sua tradição,
de suas leis, da aliança mosaica (contrato social), de seu novo
modo de produção.90
90 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 84s.
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1.4.6 Exército popular de defesa
A experiência dos hapirus com as cidades-estado, assim
como no Egito, na Mesopotâmia e na península do Sinai,
demonstrou que os reis e grandes donos de terras possuíam
exércitos para manter a posse das terras e, quando desejado,
para conquistar mais terras. Para se manter estes exércitos era
necessário impostos, pois os soldados não trabalhavam. Eles
viviam exercitando-se para tempos de guerra e de defesa. Além
disso, tinha que se manter e comprar constantemente toda uma
parafernália de instrumentos de guerra, como o carro de guerra
(biga), roupas adequadas para a luta, boas espadas, escudos,
assim como gastos com a cavalaria. O exército situava-se dentro
da fortaleza da cidade-estado, onde possuía um espaço apenas
para a conservação do poder e do modo de produção da corveia e
escravidão. Em tempo de paz, havia pouco cavalo, mas o harém do
rei estava cheio das filhas de hapirus que foram paulatinamente
entregues ao rei como pagamento de dívidas. Em tempo de guerra,
o rei trocava mulheres de seu harém por cavalos. As mulheres
bonitas eram moeda corrente e serviam como mercadoria de
troca.91
Tudo isto foi experimentado pelos hapirus que, quando da
oportunidade de criarem algo diferente, decidiram por não
possuir exército, pelo menos não da forma que os reis das
cidades-estado mantinham. Em Israel havia o compromisso da
solidariedade e da ajuda mútua. Em época de crise, de ameaça
externa, todos os campesinos e pastores, de todas as tribos,91 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 52ss.
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capazes de manejar armas, se organizavam para a luta contra o
inimigo comum, que era o exército dos reis das cidades-estado,
desejando ampliar suas terras. O livro de Juízes descreve estas
lutas. Mas o exército de Israel lutava apenas para a defesa de
suas terras, não pelo aumento de terras. Portanto, não havia
exército profissional em Israel. “De vossas relhas forjai
espadas e de vossas podadeiras, lanças” (Jl 4.10). Terminada a
guerra, a instrução era inversa: “Das espadas forjarão arados e
das lanças, podadeiras” (Mq 4.3; Is 2.4).92 “Os juízes libertadores
articulavam a resistência. Sua ação era movida pela força do
espírito (confira Jz 6.3; 11.29; 13.25; 14.6!)”93.
A base destas narrativas era a luta dos subgrupos emIsrael a fim de garantir o controle firme sobre a suaterra diante de repetidas ameaças dos cananeus nativos edos inimigos extracananeus que pressionavam desde odeserto ou desde a Transjordânia, e mais tarde, no casodos filisteus, desde a planície litorânea.94
Como rei supremo (único) de Israel, Deus não podia ficar
fora destas guerras. A guerra era a defesa da terra livre de
proprietários, de um modo de produção socialmente mais justo e
estratificado com maior igualdade, e da liberdade conquistada
pelos antepassados e relembrada nos cultos. Yahweh era assim um
Deus dos Exércitos (1 Sm 17.45; 2 Sm 5.10), que vai a frente, sendo
carregado pelos levitas, mediante o símbolo da Arca da Aliança.
Sua presença fazia diferença no desenvolvimento da guerra
(Josué 10.12-14). Havia lei também para tempo de guerra; quando
um exército era vencido, tudo deveria ser queimado e destruído.92 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 86ss.93 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 87.94 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 194ss.
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Era a lei do extermínio conhecida como lei do anátema (Dt 13.13-
19; 20.10ss; Js 6.17-21). Através desta lei se procurava: i.
evitar a idolatria, pois muitos ídolos de prata e ouro eram
encontrados entre os mortos; ii. “manter a igualdade entre os
membros das tribos, [ao] impedir que combatentes se
apropriassem das riquezas, enriquecendo a uns em detrimento de
outros. Podiam apenas saquear para matar a fome.”95 [colchetes
nosso]
Em conclusão a este 1.4, pode-se perceber, mediante estas
seis características, que os hapirus constituíram uma sociedade
sui generis, uma crítica social às experiências anteriormente
sofridas. Para cada circunstância de sofrimento e para cada
situação qualificada de injusta, os hapirus forjaram
contrapartidas políticas para sanar o desequilíbrio
sociológico, fazendo florescer durante duzentos anos uma
organização tribal atípica para sua época. De uma sociedade
desigual, surge uma sociedade igualitária; da exploração da
força de trabalho, emerge a autonomia produtiva; do poder
centralizado no rei, brota o poder participado; das leis que
defendiam os interesses do rei, constitui-se leis que defendem
a igualdade; do politeísmo que estratifica, amalgama-se a fé
unicamente em Yahweh, Deus que liberta; do culto centralizado
para celebrar mitos reais, floresce o culto descentralizado
para celebrar a vida e as histórias dos antepassados; dos
sacerdotes a serviço do sistema, organiza-se sacerdotes a
serviço do povo; do exército estável e profissional, insurge-se
o exército ocasional improvisado.
95 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 89.
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Contudo, esta nova organização florescente nas montanhas
de Canaã não se deu sem uma estruturação mediada por leis.
Foram necessárias normas que fixassem e estabelecessem as
balizas desta nova forma tribal, comunitária e tida como mais
justa. Como mencionado anteriormente, estas leis pertenciam à
tradição oral, sendo repassadas de família a família, de clã
para clã, de tribo para tribo, de juiz para juiz, relembradas e
preservadas pelos levitas. O Decálogo, sumo de todas estas leis
originárias, ainda não existia, ao contrário do que testifica o
Pentateuco. Os Dez Mandamentos surgem trezentos anos depois da
desestruturação das 12 Tribos, como uma forma de relembrar a
aliança uma vez feita entre o povo hapiru e seu Deus libertador.
É disso que se trata o próximo bloco.
1.5 A FORMAÇÃO DO DECÁLOGO
A proposta deste trabalho é identificar os aspectos
políticos e jurídicos do Decálogo. Para tanto, verificou-se nos
pontos anteriores, através de uma hermenêutica sociológica, o
surgimento do povo hebreu (hapirus), sua história de
peregrinação e estabilização nas montanhas de Canaã e
consequente estruturação em um sistema tribal com
características totalmente contrárias às experimentadas quando
força de trabalho sob o jugo de outros modos de produção.
Entretanto, o estudo sociológico compartilhado nos pontos
antecedentes transmite uma percepção um pouco idealizada do
processo de sedimentação deste sistema tribal. Em verdade,
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pelos estudos sociológicos e arqueológicos, houve muita
confusão e resistências por parte dos próprios hapirus diante
das novas leis que se propunham a estratificar uma sociedade
segundo as características apontadas no ponto anterior (1.4).
Os dois pontos a seguir procuram concluir este primeiro
capítulo, apontando, num primeiro momento, o declínio do
sistema tribal, para então, no segundo segmento, mostrar o
surgimento do Decálogo como uma tentativa de recuperar o ideal
primordial hebreu, em contraposição à realidade de reinado que
se estabeleceu novamente em Israel.
1.5.1 Declínio do sistema tribal e surgimento do reinado em Israel
Segundo a pesquisa sociológica e histórica, o declínio do
sistema tribal das 12 Tribos de Israel não logrou se sustentar
além dos duzentos anos pelo surgimento de um novo inimigo: os
filisteus. Este povo veio pelo mar e se instalou nas planícies,
conquistando as cidades-estado uma após outra. Israel sempre
teve forças, mesmo que deficientes, para defender suas terras
dos reis das planícies, pois estes não formavam uma só
coligação de reinado para fazer frente às 12 tribos, sobre as
montanhas de Canaã. Eles se digladiavam vez ou outra entre si,
enfraquecendo-se. A confederação das tribos de Israel logrou
alguns sucessos diante destes exércitos divididos, mantendo
satisfatoriamente seu sistema tribal.96
96 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 112.
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Mas com o surgimento dos filisteus, a situação mudou.
Estes conquistaram os pequenos reinados da costa de Canaã,
dominando as planícies e estendendo suas forças sobre as
montanhas. Diante deste exército, unido e forte, o sistema
tribal não tinha como se defender.97 Era necessária a formação
de um exército profissional, de cavalos e de bigas. “Os
filisteus chegaram à Palestina não muito depois de Israel, e
viveram lado a lado com Israel, em conflito intermitente mas
cada vez mais intenso, durante quase todo o período dos juízes.
Finalmente, eles lançaram-se à conquista que levou Israel à
ruína total.”98
Com esta nova situação política, surgiram pessoas que
começaram a alardear a necessidade de se formar um Estado, como
os filisteus e, de uma organização militar capaz de fazer
frente ao inimigo declaradamente mais forte e poderoso. Estes
pensamentos de reivindicação de um reinado de Israel provocaram
reações fortes no seio do sistema tribal.99 Ecos destas reações
podem ser encontrados em Juízes 9.8-15, onde é narrada a
alegoria das árvores que fazem uma assembleia para escolher um
rei. A oliveira rejeitou o convite, assim como a figueira e a
videira; mas o espinheiro aceitou e, ao se tornar rei, machucou
deveras seus súditos. O profeta que narra tal alegoria defende
que aqueles que desejam o reinado só lograrão ter dor e
sofrimento. Em 1 Samuel 8, os israelitas pedem por um rei e
97 DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 2. ed. São Paulo: Vozes,2000, v. 1, p. 201ss.98 BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 238.99 DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 2. ed. São Paulo: Vozes,2000, v. 1, p. 197ss.
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ouvem estas palavras de Yahweh, por intermédio de Samuel, um
líder carismático (juiz):
Então todos os anciãos de Israel se congregaram, evieram ter com Samuel, a Ramá, e lhe disseram: Eis quejá estás velho, e teus filhos não andam nos teuscaminhos. Constitui-nos, pois, agora um rei para nosjulgar, como o têm todas as nações. Mas pareceu mal aosolhos de Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei para nosjulgar. Então Samuel orou ao Senhor. Disse o Senhor aSamuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, poisnão é a ti que têm rejeitado, porém a mim, para que eunão reine sobre eles. Conforme todas as obras quefizeram desde o dia em que os tirei do Egito até o diade hoje, deixando-me a mim e servindo a outros deuses,assim também fazem a ti. Agora, pois, ouve a sua voz,contudo lhes protestarás solenemente, e lhes declararásqual será o modo de agir do rei que houver de reinarsobre eles. Referiu, pois, Samuel todas as palavras doSenhor ao povo, que lhe havia pedido um rei, e disse:Este será o modo de agir do rei que houver de reinar sobre vós: tomará osvossos filhos, e os porá sobre os seus carros, e para serem seus cavaleiros, epara correrem adiante dos seus carros; e os porá por chefes de mil e chefesde cinquenta, para lavrarem os seus campos, fazerem as suas colheitas efabricarem as suas armas de guerra e os petrechos de seus carros. Tomaráas vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará o melhordas vossas terras, das vossas vinhas e dos vossos olivais, e o dará aos seusservos. Tomará o dízimo das vossas sementes e das vossas vinhas, para daraos seus oficiais e aos seus servos. Também os vossos servos e as vossasservas, e os vossos melhores mancebos, e os vossos jumentos tomará, e osempregará no seu trabalho. Tomará o dízimo do vosso rebanho; e vós lheservireis de escravos. Então naquele dia clamareis por causa devosso rei, que vós mesmos houverdes escolhido; mas oSenhor não vos ouvira. O povo, porém, não quis ouvir avoz de Samuel; e disseram: Não, mas haverá sobre nós umrei, para que nós também sejamos como todas as outrasnações, e para que o nosso rei nos julgue, e saiaadiante de nós, e peleje as nossas batalhas. Ouviu,pois, Samuel todas as palavras do povo, e as repetiu aosouvidos do Senhor. Disse o Senhor a Samuel: Dá ouvidos àsua voz, e constitui-lhes rei. Então Samuel disse aoshomens de Israel: Volte cada um para a sua cidade.(grifou-se)
Assim surge Saul, Davi e finalmente Salomão que constroem
um reinado forte capaz de fazer frente aos filisteus e dominar
a região do Oriente Próximo. Para esta nova forma de
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organização social, foi necessário, contudo, uma nova aliança
entre a monarquia e Yahweh. O Salmo 72 é um exemplo desta nova
concepção ideológica, na qual Deus apoia o reinado e sua
estrutura. Davi e Salomão, entretanto, tiveram que lutar
internamente, pois a resistência era forte pelos mantenedores
do sistema tribal; para tanto, tiveram que desfazer o esteio da
cultura hebraica: a religião. Elegeram Jerusalém, uma
fortaleza, como a capital do novo Estado de Israel e a
consagraram santa. Construíram um grande templo de pedra e
esconderam a Arca da Aliança nos porões e obrigaram todas as
tribos a virem até Jerusalém anualmente para prestar culto a
Yahweh. Os sacerdotes levitas foram educados na arte da escrita
e vieram a se tornar os idealizadores dos primeiros escritos do
Pentateuco. Textos que acabaram por reunir todas as diferentes
tradições e histórias de libertação numa só, culminando na
eleição de Davi e de sua casa como os únicos capazes de reinar
sobre Israel. Somente seus descendentes poderiam ser reis sobre
Israel, segundo a nova Aliança, chamada Davídica.100 Mas logo
após Salomão, o reinado foi dividido e os sucessores de Salomão
se tornaram reis tão prepotentes como os reis das antigas
cidades-estado. Já durante o reinado de Salomão houve a volta
da escravatura: hapiru escravizando hapiru. O Estado de Israel,
nos trezentos anos que se seguiram à derrocada do sistema
tribal, esquece da aliança originária com seu Deus, Yahweh,
idolatrando outras divindades, a partir do comércio
internacional.101
100 BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 258ss.101 BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 356.
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É dentro deste escopo histórico que surgem os profetas,
com a incumbência de relembrar os reis da antiga aliança, sendo
a voz de Yahweh diante de ouvidos surdos. Os profetas
criticavam os reis quando estes promoviam exatamente o
contrário daquilo que a aliança mosaica havia acordado manter
como balizas básicas para manter a justiça de Deus no meio da
sociedade hebraica. Os profetas eram a memória teológica,
criticando não apenas os reis, como também o povo hapiru, quando
estes se esqueciam de suas origens, entregando-se a outros
deuses.102
1.5.2 O Decálogo como compêndio das leis originárias
É neste cadinho de desespero e de luta por manter a chama
da antiga aliança mosaica acessa que surgem os Dez Mandamentos,
como uma forma de manter viva a memória legal que estruturou o
sistema tribal e que logrou mantê-lo viável por duzentos anos,
como uma forma de legitimar a voz daqueles que gritavam para
Israel olhar para trás e reafirmar a antiga aliança com Yahweh.
Para compreender o decálogo é necessário perceber, emprimeiro lugar, que ele já representa uma reação àprofunda crise religiosa, teológica, política e socialnão somente do século 9, mas também do século 8. Fazparte dessa crise, p. ex., o surgimento de fortescontradições sociais em Israel. Também o surgimento dosgrandes profetas de juízo é expressão dela. Sobretudo odesmantelamento do Reino do Norte e o choque que issodeve ter causado fazem parte dessa crise. Face a essasexperiências incisivas destacam-se as exigênciaselementares de Javé: elas são reunidas no Decálogo e
102 BRIGHT, John. História de Israel. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 386ss e447ss.
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formuladas, pela primeira vez, em tal concentração.103
[itálico do autor]
Segundo CRÜSEMANN, o Decálogo surgiu ao final do século
VII a.C., segundo estudos históricos que não encontram indícios
de sua menção antes deste período.104 Seu surgimento se deu com
o intuito de fazer com que as pessoas mantivessem na memória os
acontecimentos de cinco séculos antes. Para esta recuperação da
memória, CRÜSEMANN chama a atenção para o versículo 2 de Êxodo
20, identificando neste verso um pequeno prólogo aos
Mandamentos, mas que para o autor é significativamente
relevante para entendê-los em sua essência. O prólogo é: “Eu
sou o Senhor (Yahweh-Elohim), teu Deus, que te tirei da terra do
Egito, da casa da servidão.”105 Para a recuperação da memória, o
redator de Êxodo 20 procura recompromissar o ouvinte, o
destinatário destes Mandamentos. Deus vem novamente a seu povo
e o interpela acerca da relação que uma vez existia entre
ambos, fundada na história de libertação. Uma história que
conectava ambos numa relação, não de domínio, mas de liberdade.
CRÜSEMANN faz uso de uma terminologia de Michael Theunissen:
“liberdade comunicativa”, e o cita para explicá-la: “significa
que um não experimenta o outro como limite, mas como condição
da possibilidade de sua própria auto-realização. Assim ela pode
ser a medida da crítica tanto à indiferença quanto ao
domínio”.106 Isto significa que somente na relação com Deus o
povo pode encontrar a liberdade de outrora, através destes103 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 24.104 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 22ss.105 Parênteses nosso.106 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 35.
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Mandamentos transmitidos (comunicados) por Yahweh. Somente em
Deus a liberdade pode ser recuperada e esta relação com o
divino passa pelas leis que seguem o prólogo.107
Os destinatários destes Mandamentos não são mais os
hapirus das Tribos de Israel, mas indivíduos hebreus que durante
a dinastia dos reinados davídicos se enriqueceram, a ponto de
possuírem escravos e escravas (Êx. 20.10); são pais e mães (v.
12) e filhos (v. 10; cf. v. 5), pessoas que têm terra de
cultivo (v. 12) e gado próprio (v. 10). Segundo se depreende do
Segundo Mandamento, os destinatários do decálogo têm a
liberdade de cultuar outros deuses (v. 3 e 5), e de possuir
imagens de ídolos (v. 4s). Eles podem tomar em vão (por
juramento) o nome de Yahweh (v. 7), participando como
testemunhas ou acusados em processos jurídicos (v. 16). Vivem
em vizinhança com pessoas que também possuem mulheres, casas,
escravos e animais (v. 17). Se possuem escravos, é por que são
cidadãos livres e se possuem terras e gado é por que são
agricultores. O Decálogo não se dirige a crianças, nem às
mulheres, nem aos escravos, tampouco a pessoas assalariadas. “O
Decálogo foi formulado somente para os homens de determinada
classe social em Israel”.108
Na época anterior à monarquia, esses cidadãos plenos,como poderíamos chamá-los de modo abreviado,praticamente constituíam sozinhos o povo; em todo caso,eram o único segmento dominante. Apesar de todas asrestrições, eles continuaram sendo a camada socialdecisiva em Israel durante toda a época do reinado.
107 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 34s.108 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 25.
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Assim, a eles se dirige não somente o Decálogo, mastodas as leis de Israel da época anterior ao exílio.109
Com a derrocada do Reino do Norte (século VII a. C.),
essa camada social se sobressaiu e se tornou uma força política
respeitável. São os ricos, os latifundiários e os senhores de
escravos por dívida, denunciados por profetas como Amós, Isaías
e Miquéias; mas também são os pequenos agricultores
endividados, os pobres e humildes, os espoliados e oprimidos.
Todos estes pertencem ao mesmo grupo social de livres
proprietários a que se dirige o decálogo. Por isto o uso do
pronome pessoal “tu”, no texto do Decálogo. O redator tem um
ideal em mente. Não dirige a palavra de Deus ao rei para que
este dirija a nação, mas Yahweh se dirige aos indivíduos do
povo hebreu (hapiru), mudando a relação até agora defendida
pelos sacerdotes do templo em Jerusalém, idealizadores da
aliança davídica. O redator deste texto aproxima Yahweh do
indivíduo que ainda pode ser reconquistado pela memória de sua
história, burlando a aliança davídica e restaurando a aliança
mosaica, orginal.110
Para CRÜSEMANN, os Dez Mandamentos existem em função do
prólogo, ou seja, o Decálogo é confeccionado para restaurar e
preservar a liberdade de outrora. Como restaurar um sistema
tribal em pleno século VII? Seguindo os Mandamentos. Como
síntese de várias leis nascidas no período tribal, o Decálogo
foi constituído com o fito de fazer emergir uma ética da
preservação da liberdade diante de uma realidade que se
109 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 26.110 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 29ss.
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esqueceu do que isso se trata; de uma ética que se contrapõe a
uma realidade de morte e escravidão. O Decálogo, segundo
CRÜSEMANN, é a bússola dada ao peregrino em meio ao deserto,
para que encontre o caminho de regresso ao lar, aos familiares,
à antiga tradição, à antiga aliança.111 Daí o sentido do título
de sua obra: Preservação da Liberdade – O Decálogo numa Perspectiva
Histórico-Social.
111 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 73s.
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2 OS PRIMEIROS TRÊS MANDAMENTOS112
O objetivo deste trabalho é recuperar os aspectos
políticos e jurídicos do Decálogo. O primeiro capítulo
apresentou uma análise sociológica que desvela um sentido bem
localizado no tempo e no espaço para o Decálogo. Foi
desmistificada a ideia de que os Dez Mandamentos tenham sido
uma produção divina sobre o monte Horeb (Sinai). O Decálogo é
fruto de um movimento social histórico, que construiu uma
sociedade tribal, com um modo de produção econômico que
procurava igualar as pessoas, que defendia a vida e a liberdade
a partir de experiências de outros modos de produção sociais
não desejados; movimento social que se estruturou a partir de
leis balizadoras, as quais promoveram e mantiveram um sistema
tribal durante duzentos anos; leis que foram recapturadas,
quando este sistema igualitário foi suplantado por um sistema
hierárquico e tributário dos reinados subsequentes, e
sintetizadas num breviário legal, conhecido como Decálogo.
Nos capítulos que se seguem, serão abordadas com maior
propriedade algumas destas leis originárias, a partir das quais
os primeiros três Mandamentos foram forjados. O objetivo é de
respaldar juridicamente os Mandamentos a partir de seu contexto
histórico, ou seja, a partir de seu contexto político,
econômico, social e legal, aproximando-se destarte de seu
sentido original o melhor possível; e com isto, com maior
nitidez, destituir o verniz moralista que recobre o Decálogo
nos dias de hoje.
112 Neste capítulo serão usados com maior frequência textos bíblicos.
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2.1 EU SOU O SENHOR TEU DEUS, NÃO TERÁS OUTROS DEUSES DIANTE DE MIM
Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em
baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as
servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos
filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E uso de misericórdia com
milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos (Ex 20.2-6).
Este primeiro Mandamento pode ser mais bem compreendido
se levado em consideração seu contexto social originário. O
contexto é aquele que antecede o surgimento do sistema
igualitário das Tribos de Yahweh, o qual já foi apresentado no
primeiro capítulo. A formação das Doze Tribos se deu a partir
de diferentes grupos sociais sem status social algum,
denominados de hapirus. Eram grupos que vendiam sua força de
trabalho a reis de cidades-estados, ao Faraó, chegando à
posição de escravos por pagamentos de dívidas promovidas pelos
altos tributos a que se viam obrigados a se submeter. Esta
experiência de escravidão e submissão a trabalhos forçados
(ex.: corveia), repetida de diferentes modos, em diferentes
contextos, mas sempre com a mesma estrutura (rei/faraó versus
hapiru), foi relembrada no surgimento gradativo do sistema
tribal (1 Samuel 25.10). Estes diferentes grupos, com suas
diferentes experiências, contavam suas histórias, as quais
eram repassadas de pai para filho, de geração em geração,
fazendo surgir um ideal comum: a organização de um Estado
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diverso daquele. Um Estado no qual não houvesse a estrutura
hierárquica de um poder autoritário e centralizador,
legitimado por leis igualmente classistas e, portanto,
injustas segundo o entendimento deste povo emergente: hebreu
(=hapiru).
A partir destas experiências dolorosas do passado, o
ideal de uma sociedade mais justa foi sendo formado. Um ideal
no qual não deveria haver rei algum, ou seja, alguém com poder
absoluto; pois, consequentemente, na ausência de tal figura
social, não haveria também hapiru algum, ou seja, alguém sem
nenhum poder. Este ideal foi, provavelmente, de difícil
solução. Como organizar uma sociedade sem a presença de reis?
Os exemplos de estrutura social estavam em toda a volta. Todos
tinham formas semelhantes de reinado. Mas estes exemplos não
eram queridos, pelo contrário: eram desconsiderados de
partida.
A alternativa organizacional da sociedade nascente se deu
pelo viés religioso; “a consciência de solidariedade de Israel
não tem causas étnicas, mas exclusivamente religiosa: Javé se
tornou o Deus dos que romperam com a ordem vigente”113. A
importância da influência religiosa na elaboração social é
perceptível quando se compara a relação entre religião e direito
nas sociedades Cananéias e a das 12 Tribos. Segundo o estudo
de Albrecht ALT114, a sociedade Cananéia mantinha um
distanciamento acentuado entre religião e direito (quanto a
gêneros legais). Contudo, “o exame de outros gêneros legais no
113 DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 2. ed. São Paulo: Vozes,2000, v. 1, p. 147.114 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 179-236.
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Hexateuco há de fornecer as evidências de que os israelitas
estavam convencidos de que os dois são diretamente ligados”115.
Quando os hapirus se instalaram nas montanhas de Canaã,
encontraram o povo cananeu e com eles se misturaram, adotando
muitas de suas tradições. Uma delas foram algumas formas
legais que, uma vez amalgamadas com a forma de pensamento
jurídico das diferentes tradições de hapirus, engendraram
paulatinamente uma forma autóctone, hebraica (israelita).116
A forma legal emprestada foi suplantada pelo espírito
religioso libertário inerente à história dos diferentes grupos
de hapirus, que tingiu estas formas legais com um sentido
próprio. Enquanto as formas legais cananéias legitimavam modos
de produção escravocrata, a formatação jurídica dos hebreus
fomentou uma organização social a partir de um modo de
produção mais igualitário, alimentado pelo ardor religioso,
caracterizado pela história de libertação daqueles modos de
produção escravocratas. O direito foi engendrado pela religião
e esta por aquele. Foi neste cadinho fervilhante, no qual se
amalgamavam religião e direito, que a ideia de se eliminar a
figura do rei e no seu lugar alocar uma figura divina, a qual
faria às vezes daquele, nasceu e foi assumida por todo o povo
hebreu na medida em que vigou viabilidade organizacional.
A comunidade jurídica que se sabe estar colocada sob suavalidade é todo o povo de Israel. Nela podemosreconhecer também as características do direitoespecificamente israelita em oposição ao direitocananeu. No conteúdo, percebe-se o contraste entre arelação direta com a vontade do Deus do povo, de um
115 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 196s.116 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 197s.
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lado, e uma separação quase completa entre direito ereligião, do lado cananeu.117
118Assim, a caracterização de Deus como um rei, tendo a
função de um rei, na ausência de uma figura real que governe o
povo hebreu é sui generis entre os povos daquele período da
história humana. Com esta formatação jurídica-religiosa, o
povo experimentou uma forma de viver mais sustentável no
quesito igualdade social. Isto não significava que a forma
retrógrada de reinado não existisse no coração de algumas
pessoas e líderes hebreus. Como vimos no primeiro capítulo, a
formação das 12 Tribos se deu também a partir de cananeus que
ali acabaram se submetendo ao novo povo emergente nas
montanhas da Palestina. Havia muitos que consideravam
fortemente a alternativa do reinado. Por isto a necessidade
premente de abafar qualquer resistência à nova proposta de
construção jurídico-social. Daí o imperativo legal do Primeiro
Mandamento: Eu (Yahweh) sou o Senhor (rei), teu Deus, não terás
outros deuses (reis) diante de mim.
A figura virtual (religiosa) de um deus-rei exigia que
outras formas de teologias fossem banidas. Este Deus Yahweh é
distinto dos outros deuses. Ele não existia para legitimar a
opressão e a exploração, senão que existia para libertar e
para criar uma convivência fraterna entre as pessoas.119 Ele se
comprometeu neste projeto social e o garantiu, como veremos
mais adiante. Os outros deuses (formas de teologias
dissociadas do direito) não tinham poder, mas delegavam este117 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 212.118 119 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 78.
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poder ao rei e serviam apenas para legitimar suas ações e
leis.120
A necessidade teológica da transformação de Deusfundamentada no 1º Mandamento não é um fim em si mesmanem algo abstrato. Tanto no Decálogo quanto em textossimilares, esse Deus é definido justamente a partir doconteúdo: é o Deus que se define a si mesmo através daliberdade concedida aos israelitas, aos quais ele sedirige. Isso é que precisa ser preservado. Ao lado dessepoder de liberdade não deve e não poder haver outrosdeuses. Todas as experiências que Israel fazia, fossemelas positivas ou negativas, feitas por indivíduo ou porpequenos grupos ou pelo povo como um todo, todas elasdeveriam ser relacionadas com esse Javé e, porconseguinte, deveriam ser medidas pela experiênciabásica da liberdade. Voltar-se para outros deusessignificava renunciar ao fundamento da próprialiberdade.121
Ter outros deuses denotava a volta a antigos modelos “não
libertários”. Exemplos deste tipo de modelo social são
retratados nos escritos veterotestamentários, como Gênesis
47.13-25. Como mencionado no primeiro capítulo, a estrutura do
reinado é a (i.) presença do rei, (ii.) servos do rei e (iii.)
seu povo, como presente em Êxodo 9.14. A imagem abaixo reflete
a estrutura de uma sociedade do tipo reinado122.
Imagem 01 - Estrutura de uma sociedade do tipo reinado
Rei Soberano
120 PIXLEY, Jorge. Historia sagrada, historia popular: historia de Israel desde lospobres, 1220 A. de C. – 135 D. de C. 2 ed. rev. São José: DEI, 1991, p.12s.121CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 40.122 PIXLEY, Jorge. Historia sagrada, historia popular: historia de Israel desde lospobres, 1220 A. de C. – 135 D. de C. 2 ed. rev. São José: DEI, 1991, p. 12.
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iExércit SacerdotAdministraç
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Servos do Rei
Aparato estatal
Povo Aldeias
Com o surgimento das Tribos de Yahweh, surge no cenário
político local, uma nova proposta de estrutura organizacional
na qual Yahweh é colocado no lugar do Rei, alterando
substancialmente o diagrama acima. Não há mais servos,
escravos, exército, tributos reais, corte e nem rei. “Yahweh
era o rei das tribos de Israel (Js 8.22-23; 1 Sm 8.7; Nm
23.22; Dt 33.4-5). Em termos práticos, isto significava que os
campesinos de Israel não pagavam tributos a ninguém”123. A
imagem 02 mostra este novo modelo de sistema teocrático:
Imagem 02 - Estrutura de uma sociedade do tipo teocrática
Povo/aldeias
Tribo A Tribo B Tribo C
Com isto temos uma autoridade virtual na posição do rei.
Uma entidade não física, não humana, que mantém a ordem, a
liberdade, a igualdade e a paz social. Um sistema teocrático123 PIXLEY, Jorge. Historia sagrada, historia popular: historia de Israel desde lospobres, 1220 A. de C. – 135 D. de C. 2 ed. rev. São José: DEI, 1991, p. 21.
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desenvolvido por pessoas desgostosas de modelos de produção
escravocratas, engendrando uma novidade social, cuja estrutura
pressupunha uma entidade estatal virtual (teológica). Este
aparato legal supraindivíduo, supragrupal e supratribal foi
articulado por grupos tribais a fim de que o fascínio pelo
poder não seduzisse quem se dispusesse a reinar, fazendo
surgir todo tipo de relação de desigualdade social, legitimado
por leis classistas. A lei teocrática era ideologicamente
instituída pela divindade Yahweh, a qual regulava a ordem
social segundo um códice legal, que mais tarde (500 anos)
gerará o Decálogo, assim como é conhecido atualmente.
Mas como esta entidade virtual lograva manter e sustentar
sua autoridade? O rei mantinha seu poder mediante o exército,
a ideologia religiosa orientada pelo viés real e pelos
tributos (que mantinham o exército e os ideólogos). Mas como
esta figura virtual, não tangível, puramente ideológica,
lograva manter coesa a sociedade em torno das leis elaboradas
pelo povo hapiru nascente? Mediante um pacto, conhecido como
Aliança Mosaica, entre Yahweh e o povo hapiru, estruturado em
tribos, clãs e famílias124.
Ligados por um pacto a um chefe supremo não humano, epela solidariedade à comunidade recém formada, esses‘habiru’ empreenderam a formação de uma ordem socialdeliberadamente alternativa, que veio a ser Israel.[...] O pacto, possibilitando o novo experimentopolítico, caracterizado por uma ruptura radical com acultura urbana é, portanto, bastante mais pertinente àsituação no antigo Israel do que se tem reconhecido. OIsrael do pacto representava não apenas uma novidadeteológica, mas também uma novidade como experimentosocial. [...] Sua visão teológica que os levava à
124 BEATO, Joaquim. O Pacto de Moisés e o Pacto de Davi – os dois círculosde tradição do Antigo Testamento. In: SCHWANTES, Milton. Tradição Mosaica.Traí: Cadernos do Povo – PU, 1981, p. 4ss.
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rejeição dos deuses do Império, resultava na rejeição domodo como estava organizada a sociedade imperial. [...]Há, portanto, uma relação íntima entre a visão teológicae organizacional sociológica. Por isso, a ordem socialisraelita, de Moisés a Davi, pode ser considerada umexperimento para determinar a viabilidade de umasociedade alternativa, sem a sanção dos deusesimperiais.125
Este pacto foi ritualizado e relembrado continuamente na
vida do povo hebreu e depois Israelita, fortalecendo a imagem
virtual como verídica e presente em todo lugar. O povo entrega
o poder a Yahweh, delegando-o a tarefa de protegê-los e mantê-
los livres de ameaças externas. Yahweh, por sua vez, entrega
leis e estatutos justos para que esta proteção e qualidade de
vida sejam viáveis. Assim, por um lado, o povo promete
obedecer a Yahweh e este, por seu turno, promete cuidar do povo
hapiru. Este pacto, esta aliança entre ambos os lados,
caracteriza o nascedouro do povo hebreu/israelita, conforme
diversos textos da época, a exemplo de Deuteronômio 4.1-20,
que expressa bem os vários detalhes até aqui ressaltados:
Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os preceitosque eu vos ensino, para os observardes, a fim de quevivais, e entreis e possuais a terra que o Senhor Deusde vossos pais vos dá. Não acrescentareis à palavra quevos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis osmandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos mando. Osvossos olhos viram o que o Senhor fez por causa de Baal-Peor; pois a todo homem que seguiu a Baal-Peor, o Senhorvosso Deus o consumiu do meio de vós. Mas vós, que vosapegastes ao Senhor vosso Deus, todos estais hoje vivos.Eis que vos ensinei estatutos e preceitos, como o Senhormeu Deus me ordenou, para que os observeis no meio daterra na qual estais entrando para a possuirdes.Guardai-os e observai-os, porque isso é a vossasabedoria e o vosso entendimento à vista dos povos, queouvirão todos estes estatutos, e dirão: Esta grande
125 BEATO, Joaquim. O Pacto de Moisés e o Pacto de Davi – os dois círculosde tradição do Antigo Testamento. In: SCHWANTES, Milton. Tradição Mosaica.Traí: Cadernos do Povo – PU, 1981, p. 5ss.
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nação é deveras povo sábio e entendido. Pois que grandenação há que tenha deuses tão chegados a si como o é anós o Senhor nosso Deus todas as vezes que o invocamos?E que grande nação há que tenha estatutos e preceitostão justos como toda esta lei que hoje ponho perantevós? Tão-somente guarda-te a ti mesmo, e guarda bem atua alma, para que não te esqueças das coisas que osteus olhos viram, e que elas não se apaguem do teucoração todos os dias da tua vida; porém as contarás ateus filhos, e aos filhos de teus filhos; o dia em queestiveste perante o Senhor teu Deus em Horebe, quando oSenhor me disse: Ajunta-me este povo, e os farei ouviras minhas palavras, e aprendê-las-ão, para me temeremtodos os dias que na terra viverem, e as ensinarão aseus filhos. Então vós vos chegastes, e vos pusestes aopé do monte; e o monte ardia em fogo até o meio do céu,e havia trevas, e nuvens e escuridão. E o Senhor vosfalou do meio do fogo; ouvistes o som de palavras, masnão vistes forma alguma; tão-somente ouvistes uma voz.Então ele vos anunciou o seu pacto, o qual vos ordenouque observásseis, isto é, os dez mandamentos; e osescreveu em duas tábuas de pedra. Também o Senhor meordenou ao mesmo tempo que vos ensinasse estatutos epreceitos, para que os cumprísseis na terra a que estaispassando para a possuirdes. Guardai, pois, comdiligência as vossas almas, porque não vistes formaalguma no dia em que o Senhor vosso Deus, em Horebe,falou convosco do meio do fogo; para que não voscorrompais, fazendo para vós alguma imagem esculpida, naforma de qualquer figura, semelhança de homem ou demulher; ou semelhança de qualquer animal que há naterra, ou de qualquer ave que voa pelo céu; ousemelhança de qualquer animal que se arrasta sobre aterra, ou de qualquer peixe que há nas águas debaixo daterra; e para que não suceda que, levantando os olhospara o céu, e vendo o sol, a lua e as estrelas, todoesse exército do céu, sejais levados a vos inclinardesperante eles, prestando culto a essas coisas que oSenhor vosso Deus repartiu a todos os povos debaixo detodo o céu. Mas o Senhor vos tomou, e vos tirou dafornalha de ferro do Egito, a fim de lhe serdes um povohereditário, como hoje o sois.
Esta fala foi imputada a Moisés, dias antes da tomada da
terra da Palestina que, como vimos no primeiro capítulo, não
se deu como narra o Hexateuco126, mas no transcurso de vários
decênios. Esse texto, historicamente, foi elaborado muito126 Os seis primeiros livros do Antigo Testamento.
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tempo depois deste evento da tomada da terra da Palestina;
posterior também ao surgimento do Decálogo. Sua elaboração
ocorreu por volta do exílio babilônico, ou seja, meados do
século VI a.C. É a forma como os ideólogos repassaram para a
escrita a história oral de seu povo, estruturando os aspectos
basilares do surgimento de sua nação num único bloco textual.127
No texto de Deuteronômio acima citado se podem perceber
alguns detalhes. Moisés relembra que as leis e estatutos foram
entregues pela entidade virtual Yahweh, num determinado
momento, ao pé do Monte Horeb. Neste local houve um pacto, no
qual o povo deveria passar a obedecer tão somente a Yahweh,
deixando os outros deuses para trás. A infração desta lei
implicava na pena capital, a exemplo do que aconteceu a Baal-
Peor128. Estas leis e estatutos devem ser ensinadas, aprendidas
e repassadas de geração a geração para pautarem a vida do povo
a partir de preceitos de justiça, em sua história. O
comprometimento de todo o povo redundaria numa sociedade tão
justa que outros povos vizinhos ficariam com inveja do modo de
produção alcançado pelos hebreus. O texto é claro e enfático
quanto à virtualidade da entidade Yahweh, ao mencionar que
apenas sua voz era audível, ou seja, sem forma alguma. Esta
entidade virtual, sem forma, não humana, propõe um pacto, no
qual é exigida do povo obediência exclusiva a sua lei. Lei não
apenas restrita ao Decálogo, que no nascimento histórico do
povo hebreu ainda não existia na forma como veio a se
constituir posteriormente, mas leis e estatutos presentes e
127 SELLIN Ernst; FOHRER, Georg. Introdução ao Antigo Testamento – Livros históricose códigos legais. São Paulo: Paulinas, 1977, v. 1, p. 240ss.128 Baal, aliás, é uma divindade da Palestina, deus das estações eplantações.
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balizadores do movimento social alternativo em sua formação
original. Leis que deveriam ser seguidas ipis litteris, sem
alteração de sequer uma letra, inibindo assim deturpações de
cunho oportunista.
Por fim, o pacto proíbe categoricamente a formação de
imagens (v. 4s). Se deuses representavam outras formas de
produção, esculpi-los era sinal de pacto com tal modo de
produção, anátema para a massa hapiru insurgente. Tampouco se
podem fazer imagens de seres encontrados na terra ou no céu.
Uma imagem é como um fetiche da própria entidade virtual. Dá-
se poder fictício a uma entidade não real, a um objeto ou
imagem, esperando-se da mesma uma proteção ou benção qualquer.
A imagem estabelece uma relação ficcional entre o fiel e sua
divindade. Isto ocorria nos modos de produção de onde os hapirus
fugiram. Imagens defensoras das elites dominantes. Ao abolir
tal prática ilusória, Yahweh (ou Estado virtual) direciona a
atenção do cidadão para a realidade do seu viver.
Nos mandamentos bíblicos, é a vida real que Yahwehdefende. Qualquer imagem de Deus que seja incompatívelcom a vida real será sempre um ídolo, um fetiche. Nosconduzirá à morte, pois todo ídolo é todo aquele queconstrói sua grandeza com os cacos de nossa miséria,colocando-se no lugar de Deus às custas da desumanizaçãodo homem.129
Proíbe-se tal ação para evitar com isto a possibilidade
de se voltar ao estágio anterior, quando se adoravam pedras,
árvores e elementos da natureza, entregando a estes o poder de
cuidá-los (fetiche). No segundo verso, os ideólogos destacam
que é a entidade teológica, Yahweh, que os havia libertado da129 SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentose seu contexto social. In: GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: váriasleituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 50.
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casa da servidão, das correntes de ferro do Egito (e de todas as
outras formas de modos de produção escravocrata), prometendo
um futuro mais justo e liberto. Ao delegar poder (fetiche) a
simples forças da natureza, a pessoa esquece-se de seu real
libertador. O poder destas entidades da natureza era de cunho
mágico. Este poder não é eficaz politicamente; não estrutura
sociedades. A magia é flexível e pode ser usada facilmente
para legitimar qualquer coisa, até estruturas injustas,
defendendo-as como justas. O poder mágico pode ser manipulado
por um indivíduo. Já Yahweh é uma entidade que tem poder real
de libertar sociedades escravocratas e de estruturar uma nova
sociedade mediante uma atuação histórica e contundente, mediante
a ação conjunta de um povo. Este foi o poder (virtual, mas sem
fetiches) que atuou na formação das 12 Tribos.130
Em conclusão a esta parte, o primeiro Mandamento
sintetiza o pacto celebrado entre o povo hapiru (hebreu) e sua
entidade divina (virtual e ideológica). A Yahweh lhe é
outorgado o poder de governar sobre o povo, cuidando-o e
protegendo-o. Para tanto, rechaça qualquer outra forma de
poder paralelo: nenhum outro rei ou divindade terá a mesma
competência e autoridade. Nem poder mágico (imagético) lhe é
páreo. Yahweh é o único rei e o povo hapiru, sua única
preocupação.
130 FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo:Paulinas, 1982, p. 85ss. O autor descreve o conflito entre a fé israelita ea magia: “Em todos os seus modos, as concepções e os usos mágicos sãosempre expressão de determinada forma de ver a existência. O homem quepratica a magia acredita poder influenciar e dirigir as grandes forças davida, para seu benefício e prejuízo dos outros. Assim, tais forças deveriamservir-lhe para dominar a vida, colocá-la a salvo de todo perigo e obterêxito. Segurança e sujeição em relação às forças do destino; eis a atitudee o modo de vida do homem que pratica artes mágicas”.
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2.2 NÃO ABUSE DO NOME DO SENHOR, SEU DEUS
Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão;
porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão (Ex 20.7).
Mas uma sociedade não vive apenas de virtualidade. A
ideologia tem sua força, mas não o suficiente para organizar
socialmente um povo. Na verdade, assim como visto no texto de
Deuteronômio 4, onde Moisés personifica a entidade virtual ao
declarar que está falando em nome de Yahweh, é mister a
existência de uma estrutura social e jurídica representativa
mínima para um Estado vingar. Esta entidade teológica se
concretiza na vida organizacional do povo, em seu dia-a-dia,
mediante leis, estatutos, como também mediante pessoas
(juízes131, ex.: Juízes 3.7-11; patriarcas; profetas132, ex.:
Jeremias 1.4-10). Também mediante festas religiosas (rituais131 FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo:Paulinas, 1982, p. 300s: “Josué e os chamados “juízes maiores” ainda sãoexpressão da vida tribal, que se ia consolidando em distritos. Eles eramheróis das tribos e só mais tarde foram considerados pela tradição comoguias de todo o povo de Israel. Com efeito, tratava-se de chefes dasmilícias das várias tribos, que se haviam colocado em evidência como homensrevestidos de força divina, em virtude de seus êxitos militares. O exemplo deJosué mostra até onde chegava a influência desses heróis tribais: depois deconquistado a vitória em nome do novo deus Yahweh (Js 10,1-15) e ter-sefeito reconhecer como chefe da tribo, Josué obrigou o clã a adorar essedeus e elevou o santuário de Siquém a santuário da tribo (Js 24)”. (grifou-se)132 FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo:Paulinas, 1982, p. 300s: “A palavra de Deus anunciada pelo profeta age comoum martelo que despedaça as pedras (Jr 23,29); alcança o fim para o qualfoi enviada, como a chuva (Is 55,10); crava fundo como escalpelo que mata(Os 6,5); cai sobre Israel, de modo que todo o povo a experimenta (Is 9,7);na boca do profeta, torna-se um fogo, que devora o povo como um montão delenha (Jr 5,14). Por isso, o país não pode suportar muito tempo as palavrasde um profeta (Am 7,10); com efeito, quando Yahweh levanta a voz, aspradarias dos pastores ficam desoladas e o cimo do Carmelo aridifica-se(sic) (Am 1,2).
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sociais) de forte cunho político: Pessach (a páscoa judaica,
celebrações de recordação da libertação do Egito); Shavuót
(celebra a revelação do livro da Lei ao povo de Israel, ao pé
do Monte Horeb); Simchat Torá (celebra a entrega dos Dez
Mandamentos a Moisés). Sucót (refere-se à peregrinação de 40
anos pelo deserto, após a libertação do cativeiro do Egito);
Chanucá (comemora o fim do domínio assírio e a restauração do
tempo de Jerusalém, por volta do VI a.C.)133.
Além destas formas sociais, Yahweh exercia seu poder
mediante ritos jurídicos igualmente concretos. O juramento é
exemplo disso. O juramento é uma forma de contrato. Através do
juramento, negócios são fechados, acordos comerciais
realizados, venda e compra pactuados, alianças sociais
firmadas, ações jurídicas e penais (testemunho) encontram o
devido desfecho. Mediante o juramento, a teia social cria
liames sociais que estruturam e mantém o ordenamento de uma
sociedade. À época, em meio aos hapirus, a escrita era um luxo.
Poucos povos tinham o know-how da escrita, a qual podia ser
considerada a ‘tecnologia de ponta’ da época. O papel não
existia; apenas o papiro (feito das fibras entrelaçadas de
juncos), o que era caro. “É uma sociedade de cultura oral, sem
especialistas na educação e na religião”134. No dia-a-dia, os
negócios eram realizados mediante a troca de mercadorias ou
pagamento pecuniário. Mas quando o pagamento ou troca não era
efetuado no momento da celebração do negócio, então havia a
133 JUDAÍSMO. Sua pesquisa.com. [S.l.], [S.d.]. [Online]. Disponível em:<http://www.suapesquisa.com/judaismo/>. Acesso em: 24 set. 2012.134 SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentose seu contexto social. In: GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: váriasleituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 41.
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possibilidade de promessa. Como não existia tabelionato, o
juramento fazia a vez do mesmo. Jurava-se em nome de Yahweh.
Assim se fazia, por exemplo, quando determinado contrato seria
finalizado em certa data. “O segundo mandamento quer evitar
que se manipule Deus, encobrindo, em seu nome, o roubo, o
suborno, a injustiça. Proíbe-se o falso juramento, o uso do
nome de Deus para fins maléficos e mentirosos”135.
O livro de Levítico é um texto basicamente jurídico, no
qual se encontram as balizas de como proceder (também
juridicamente) diante dos diferentes aspectos do viver diário
da sociedade tribal. Em Levítico 19.11-18; 35-37 se lê:
Não furtareis; não enganareis, nem mentireis uns aosoutros; não jurareis falso pelo meu nome, assimprofanando o nome do vosso Deus. Eu sou o Senhor. Nãooprimirás o teu próximo, nem o roubarás; a paga dadiarista não ficará contigo até pela manhă. Nãoamaldiçoarás ao surdo, nem porás tropeço diante do cego;mas temerás a teu Deus. Eu sou o Senhor. Não farásinjustiça no juízo; não farás acepção da pessoa dopobre, nem honrarás o poderoso; mas com justiça julgaráso teu próximo. Não andarás como mexeriqueiro entre o teupovo; nem conspirarás contra o sangue do teu próximo. Eusou o Senhor. Não odiarás a teu irmão no teu coração;não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarássobre ti pecado por causa dele. Não te vingarás nemguardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás oteu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. Guardareisos meus estatutos.[...] Não cometereis injustiça nojuízo, nem na vara, nem no peso, nem na medida. Balançasjustas, pesos justos, medida justa, e justo tereis. Eusou o Senhor vosso Deus, que vos tirei da terra doEgito. Pelo que guardareis todos os meus estatutos etodos os meus preceitos, e os cumprireis. Eu sou oSenhor.
O “não jurareis falso pelo meu nome” vem logo após o não
furtar, não enganar e o não mentir aos outros, encabeçando os
135 GASS, Ildo Bohn. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Povo de Israel. 7. ed.São Leopoldo: CEBI, 2005, v. 2, p. 78.
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demais preceitos normativos. Assim, a ação de prometer
realizar um pagamento em data certa e não fazê-lo, faz com que
o mentiroso profane o nome de Yahweh, pois este nome é como um
depositário de Boa-Fé. Yahweh torna-se, ao ser mencionado num
contrato, um avalista. O não cumprimento da promessa,
consequentemente, implica em que o nome de Yahweh seja
profanado, sujo. Assim, quem usar o nome de Yahweh como
promessa de pagamento futuro, que a cumpra, caso contrário,
incorrerá na ira do supremo rei por infringir seu (segundo)
Mandamento. A possibilidade de manipulação era grande por
parte dos detentores do poder, promovendo miséria social e
morte do hipossuficiente. “Apresentar um falso testemunho
contra alguém num processo fazia parte do desvio cotidiano do
direito em Israel”136.
O temor, desta forma, faz parte do poder de Yahweh. O
texto de Levítico acima citado aconselha não se fazer o mal;
ao invés disso, aconselha temer a Yahweh. O temor é a força
coercitiva do Estado religioso, através do qual os indivíduos
são levados a seguir a lei, mesmo que ninguém os esteja
observando. A lei é ensinada e temida a ponto de ser
constitutiva dos indivíduos que compõem o Estado tribal. A
palavra de uma pessoa, ao usar o nome de Yahweh como uma
seguradora, era suficiente para uma negociação ser fechada,
pela confiança existente entre os partícipes da organização
social emergente. O segundo Mandamento, assim, cumpre esta
força de coerção, fazendo a lei ser efetiva.
136 SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentose seu contexto social. In: GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: váriasleituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 46.
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O homem do Velho Testamento não pode retirar-se para oâmbito religioso, limitando assim a soberania de Deus aotemplo, ao sacerdócio e às práticas religiosas. Pelocontrário, deve recorrer a todas as suas forças para queo direito divino seja reconhecido e plenamente realizadoem sua própria vida e em cada aspecto da vida toda.[...] todo comportamento é determinado pelas exigênciasda vontade divina, que ao mesmo tempo constituem o seufundamento e a sua norma: o homem deve ser justo e bomcomo Deus. Por isso, [...] deve estar pronto a ajudar oseu povo em qualquer perigo; deve respeitar direitos ecostumes; deve condenar toda transgressão, da mentira aohomicídio; deve evitar responder ao bem com o mal; devefazer tudo para que ninguém o impeça de fazer o bem,mesmo que para isso tenha de padecer injustiças; deveser desinteressado e hospitaleiro para com osestrangeiros; deve opor-se a toda crueldade, mesmo àscustas de seu próprio prejuízo; deve ser compassivo comos fracos e indefesos e fazer valer os direitos dosoprimidos. Essas exigências não derivam da lógica dascoisas. Por isso, a seriedade do compromisso emergeclaramente das concepções dos povos da épocaveterotestamentária. Essa situação se reflete no âmbitodo direito: pela primeira vez se reconhece o valor dohomem e se respeita o seu direito, estabelecendo penasmais suaves, abolindo a punição da mutilação e criandonormas em benefício dos escravos.137
Esta imagem ética do homem hebreu pode ser encontrada nos
textos dos salmos, como por exemplo, no Salmo 15. Nele é
expresso que a pessoa de virtude é aquele que “jura com dano
próprio e não se retrata; o que não empresta o seu dinheiro
com usura, nem aceita suborno contra inocente. Quem deste modo
procede não será jamais abalado”. Ou seja, se alguém proceder
como descrito não será abalado. Pode-se interpretar esta
promessa religiosamente, considerando que Deus o abençoará de
alguma forma, retribuindo sua obediência e comportamento
idôneo. Mas pode-se também interpretar este verso de forma
dedutiva e sistêmica, ou seja, se cada cidadão assim proceder,
137 FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo:Paulinas, 1982, p. 260s.
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consequentemente, não apenas ele, mas todos serão
fortalecidos, protegidos mutuamente. O contrário também é
correspondente: se houver pessoas que juram falsamente (Má-
Fé), se retratando a cada instante, pensando sempre em
beneficiar a si, em detrimento do concidadão, então todo o
aparato social estará em constante abalo, insegurança.138
Um dos textos mais coercitivos encontra-se em Dt 27, no
qual se procura, mediante maldições (penalidades), assegurar que
a lei toda seja respeitada. Não uma lei promulgada por um só
indivíduo, mas promulgada por um grupo representativo (v. 1:
Moisés e os anciões) e sentenciada pelo povo (v. 15-26).
Versículo 15: “Maldito o homem que fizer imagem de escultura
ou de fundição, abominável ao Senhor, obra de artífice, e a
puser em lugar oculto. E todo o povo dirá: Amém!” Deus fala de
modo imperativo (15a) com a participação do povo (15b): E todo
o povo dirá: que assim seja, que assim seja feito, que assim seja
executado. Do versículo 15 ao 26, cada verso é iniciado com
“Maldito aquele que...” e finalizado com “E todo o povo dirá:
Amém!”, desfilando um cordel de leis sociais, mantenedoras do
novo modo de produção. O versículo 25 amaldiçoa a pessoa que
perjura, mediante suborno, levando o inocente à morte. Cada
palavra, não só do cidadão, como da lei, não pode ser usada
falsamente. No caso do Decálogo, ao não cumpri-lo, se está
infringindo diretamente o segundo Mandamento. Este segundo
Mandamento é como um invólucro de todo o Decálogo, a exemplo
138 SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentose seu contexto social. In: GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: váriasleituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 45: “Pronunciar o nome de Yahweh emprejuízo do próximo era grave delito contra um Deus que se manifesta nasrelações de justiça e solidariedade em qualquer nível da existência”.
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da última maldição de Dt 27: “Maldito aquele que não confirmar
as palavras desta lei, não as cumprindo. E todo o povo dirá:
Amém!” (v.26). O povo pactua com as leis da aliança mosaica,
confirma fidelidade ao contrato social da nova sociedade dos
hapirus. Aquele que se insurge contra a mesma, se insurge contra
o todo e todos devem participar da punição.
O segundo Mandamento, destarte, auxiliou para que o
Decálogo (norma jurídica), entregue por Yahweh a Moisés, fosse
viabilizado pela palavra [v. 7a] (um modelo de nota promissória,
título de crédito); palavra através da qual todo o arcabouço
social pudesse ser constituído pelo nome de Yahweh, o avalista
final (Estado virtual), como seu garante. Para tanto, este
segundo Mandamento também foi forjado com um cunho coercitivo [v.
7b], fortalecendo a lei (Decálogo) e respaldando-a com poder
de polícia (maldições e penalidades), lastreando a
transformação paulatina de uma nova prática política e legal,
para que toda esta iniciativa original não fosse em vão.
2.3 SANTIFIQUE O DIA DE DESCANSO
Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás todo o teu
trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho
algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu
animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor
o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor
abençoou o dia do sábado e o santificou (Ex 20.8-11).
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A ética hebraica é espraiada a todas as áreas da vida. O
trabalho não poderia ficar de fora, pois foi primordialmente
em função deste que os diferentes grupos de hapirus migraram
para as montanhas da Palestina, fomentando o surgimento de um
modo de produção alternativo, fazendo emergir leis
trabalhistas diferenciadas das demais existentes. Este
terceiro Mandamento desdobra-se em quatro subgrupos: a) a
dimensão laboral; b) a dimensão social; c) a dimensão
econômica; d) a dimensão ecológica.
Este desdobramento se faz necessário, ao contrário dos
dois primeiros, pois este foi o mandamento que mais sofreu
acréscimos e explicações devido a sua importância139. Esta
importância reside no fato dele ser positivamente formulado,
ao contrário de todos os demais (com exceção do quarto
Mandamento)140. Enquanto que os dois primeiros Mandamentos
asseveram proibições e não ações propositivas, este, por sua
vez, propõe uma prática do não fazer, basilar para um modo de
produção alternativo que, em última instância, não visava a
produção pela produção, mas a produção com um fim social.
Sobre esta finalidade ético-social se constroem as quatro
dimensões a seguir.
139 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 46.140 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 50.
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2.3.1 A dimensão laboral
O surgimento do Decálogo, como visto no ponto 1.5.2, se
deu por volta do século VII a.C. Adquiriu importância depois
do século V a.C., quando então foi revestido de um cunho mais
religioso. Contudo, na formação e estabelecimento das 12
Tribos, este terceiro Mandamento tinha um sentido não
religioso. O verbo shbt141 significa apenas parar, não fazer
nada142. Em outro texto jurídico se diz: Seis dias trabalharás,
mas, ao sétimo dia, descansarás (shbt), quer na aradura, quer
na sega (Ex 34.21). No início, este Mandamento não tinha a ver
com o culto a Yahweh143. Era simplesmente um benefício de parada
depois de seis dias de trabalho. O verbo santificar,
originariamente, significava separar este dia dos outros, dos
dias de trabalho144. O trabalho do agricultor não era agradável.
O texto de Gn 3.17ss descreve o dia-a-dia laboral do
agricultor, como sendo penoso, duro, sofrido e suado145. Mais do
que uma exigência, este terceiro Mandamento é um benefício e
caracteriza todos os demais Mandamentos na mesma perspectiva.
Os Mandamentos não são propriamente obrigações, mas procuram
141 Transliteração do verbete em hebraico para a grafia ocidental, cujosentido é parar.142 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 183.143 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 184.144 OLIVEIRA, Benjamim Carreira de. O Decálogo – Palavras de uma aliança. In:GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 16. Cf. também WOLFF, Hans Walter. Antropologia do AntigoTestamento. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1983, p. 187.145 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
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isto sim libertar as pessoas de imposições. O descanso
sabático exprime a dádiva do tempo livre.
Posteriormente, no século V a.C., é que esta parada vai
receber uma interpretação cúltica, com exigências de
participações em ritos religiosos146. O sentido teológico é
incutido, comparando-se esta parada laboral com a parada do
sétimo dia da criação (texto babilônico do século VI a.C.). A
interpretação religiosa é estabelecida e o terceiro Mandamento
retificado também como de cunho religioso, não apenas social.
Ou seja, assim como Yahweh descansou no sétimo dia, o fiel
também descansará no sétimo dia, agora sim por preceito
religioso.147
Contudo, a causa deste Mandamento nada mais foi do que as
experiências negativas com outros modos de produção,
anteriores à formação das 12 Tribos148, a exemplo do grupo
mosaico, hapirus sob o reinado de Ramsés II, que teve uma amarga
experiência de trabalho forçado. Ramsés II transferiu a
capital para o Delta do Nilo, exigindo mão-de-obra para as
novas e suntuosas construções, além de Silos para a produção
agrícola. Até pastores semi-nômades foram recrutados para este
trabalho extenuante. Em momentos excepcionais, o Estado
precisa passar além dos limites para extrair o máximo dos
trabalhadores em menos tempo. Este recrutamento forçado se
146 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 47s.147 OLIVEIRA, Benjamim Carreira de. O Decálogo – Palavras de uma aliança. In:GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 17. Cf. também MESTERS, Carlos. Os Dez Mandamento (Ex 20.1-17) – Ferramenta da Comunidade. In: GARMUS, Ludovico (org.). Os DezMandamentos: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 61.148 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
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constituiu no foco de discórdia e resistência, como visto no
primeiro capítulo.149
Estas experiências ficaram registradas na memória e foram
posteriormente transcritas. O faraó não dava descanso (Ex
5.7s); não deixava o povo fazer festa (Ex 5.1-5); só queria
produção (Ex 5.18). O povo era xingado e batido (Ex 5.14,17).
Eram hapirus, não valiam como gente. Só valiam enquanto
produzissem para o faraó e para os reis, pagando tributo ou
fazendo trabalho escravo. Na fuga do Egito, os hapirus levaram
estas recordações do sofrimento laboral, como também a
experiência de um Yahweh que liberta da casa da servidão.
O Decálogo tem no seu primeiro Mandamento: Eu sou o
Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Segundo Crüsemann, esta segunda parte é como um prólogo de
todo Decálogo150. A memória popular, repassada e mantida pelas
festas de libertação, se faz aqui presente, ressaltando a
causa fomentadora de todo o Decálogo, especialmente deste
terceiro Mandamento. Neste prólogo, Yahweh faz recordar que os
hapirus eram uma vez escravos num modo de produção escravocrata,
que não os respeitava (Dt 5.15151); mas agora foram libertos e
estão livres para formar um modo de produção no qual nem o
trabalho, nem a produção deste deve orientar o sentido de ser
e de viver. O hapiru não deve mais ser definido por ser um
trabalhador, mas por ser um cidadão livre (hebreu); não mais
149 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 131ss.150 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 36ss.151 Porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que Yahweh, teuDeus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que Yahweh,teu Deus, te ordenou que guardasse o dia de sábado.
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um servo do faraó, mas a serviço de Yahweh que liberta para uma
terra que mana leite e mel. O sábado, assim, está diretamente
conectado ao trabalho, à produção152. Nele cessam as atividades.
“As pessoas podem ficar juntas, descansar, conversar, cultivar
a memória, a amizade, o prazer”153.
Por isto, quem desobedecia este mandamento por ganância é
acusado pelos profetas, porta vozes de Yahweh, e sentenciado
pelo povo (Am 5.8)154. Jeremias (17. 21ss) realça o apreço à
vida livre proposto pela legalidade deste terceiro mandamento,
que é dada a perder pela preocupação própria. Segundo Isaías
(58.13s), este mandamento é para a segurança social, para gozo
do povo. Portanto, quem infringisse esta normativa do trabalho
estava deitando por terra não apenas um direito pessoal, como
também um direito social. A constituição das 12 Tribos é
alicerçada neste direito trabalhista; era sua base
constitucional, legal. Yahweh fez uma aliança com o povo hapiru
e esta aliança era confirmada a cada sétimo dia, quando o
agriculto parava, relembrando a história de seus pais,
escravos no Egito, e de Yahweh que constituiu uma sociedade
sobre novos alicerces sociais. Guardar o sábado era
restabelecer a aliança, o pacto mosaico (social); era
constantemente confirmar a eleição de uma normatividade social
e se deixar pautar continuamente pela mesma; era um “sinal” de
fidelidade às normas constitutivas da nova sociedade em
construção. Em Ex 31.13-17 se lê:152 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 27.153 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 27.154 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 188.
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Falarás também aos filhos de Israel, dizendo: Certamenteguardareis os meus sábados; porquanto isso é um sinalentre mim e vós pelas vossas gerações; para que saibaisque eu sou o Senhor, que vos santifica. Portantoguardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele queo profanar certamente será morto; porque qualquer quenele fizer algum trabalho, aquela alma será exterminadado meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, mas o sétimodia será o sábado de descanso solene, santo ao Senhor;qualquer que no dia do sábado fizer algum trabalho,certamente será morto. Guardarão, pois, o sábado osfilhos de Israel, celebrando-o nas suas gerações comopacto perpétuo. Entre mim e os filhos de Israel será ele umsinal para sempre; porque em seis dias fez o Senhor o céue a terra, e ao sétimo dia descansou, e achourefrigério. (grifou-se)
Por isto, ao não cumprimento desta lei, rompe-se a
aliança e a consequência é a morte: “será eliminado do meio do
povo” (Ex 31.14s)155. Um exemplo é Nm 15.32-36, onde um homem é
apedrejado à morte por haver trabalhado num sábado. Esta
rigidez normativa não se baseia num desrespeito meramente
religioso; é a quebra de uma aliança feita entre os pais e
Yahweh, aliança que mantém a sociedade justa. A expressão
eliminado do meio do povo exprime que a ação de trabalhar no sétimo
dia prejudica a todos: social, econômica e ecologicamente como
se verá nos pontos posteriores. Por isto o elemento danoso
precisa ser eliminado do meio da massa, caso contrário, deteriorará
a mesma. Não é uma penalidade que visa corrigir uma mera ação
individual com consequências pessoais. A consequência pode
colocar todo o projeto do novo modo de produção em jogo. Há
uma conexão estreita entre religião, moral e direito no
155 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 191.
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nascedouro das 12 Tribos156. Daí o radicalismo penal: morte para
se eliminar o mal pela raiz.157
Segundo ALT, esta forma de direito penal não é encontrada
na sociedade Cananéia, meio no qual emerge as 12 Tribos. Para
o autor, isto implica dizer que é uma lei essencialmente
hebreia, não oriunda de outros códices jurídicos. Sua
existência exclusiva se deve exatamente pela novidade política
das 12 Tribos, sem rei, sem faraó, onde a aliança (contrato
social) é feita com Yahweh (entidade virtual e Estatal).158
Segundo ALT, “estas concepções legais de Israel ainda em fase
de formação na Palestina entram em violento conflito com o
antigo sistema legal cananeu, altamente desenvolvido e
cuidadosamente formulado”159. O radicalismo da pena de morte
quer resguardar assim o novo projeto social de qualquer
influência estranha e contrária ao novo modo de produção160. O
surgimento das 12 Tribos ocorre em meio ao povo cananeu, não
no vazio do deserto. Esta emersão de novos valores político-
sociais em meio adverso torna o modelo nascente suscetível,
necessitando de dureza contra a menor infração que se
manifestar, objetivando com isto uma implantação sem vícios.
Concluindo este subponto, o terceiro Mandamento visa
oferecer ao hapiru (operário, agricultor, pastor escravo) um
espaço de trabalho mais digno. O Mandamento, mais que uma156 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 215.157 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 191.158 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 226s.159 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 234.160 ALT, Albrecht. Terra Prometida – Ensaio sobre a História do Povo de Israel.São Leopoldo: Sinodal, 1986, p. 235.
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exigência, é um benefício. O descanso possibilita renovação
das forças, espaço para festejar libertações e momento de
reflexão sobre a vida (pessoal e social). O trabalho e seu
descanso têm uma função social; deve estar a serviço do povo,
redundando em benefício social: igualdade social, economia
justa, festa comunitária, harmonia com a terra (fonte da
produção e sentido para o descanso)! A lei do sábado, a
parada, o descanso, deve gerar vida (individual e social) e
não morte (individual e social). Ao não respeitá-la é que o
ser humano gera a morte (individual e social). Existe,
portanto, uma função social acoplado a este Mandamento, no seu
nascedouro. É sobre esta dimensão social que se tratará no
próximo subponto.
2.3.2 A dimensão social
O terceiro Mandamento tem, a partir do ponto anterior,
consequentemente, uma dimensão social, pois nele é descrito
diferentes grupos sociais; e todos eles devem descansar,
independente da hierarquia existente entre as pessoas ali
mencionadas161. Ex 20.10: “Neste dia não farás trabalho algum, nemtu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva,
nem o teu animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas
portas”. Neste verso é descrito quatro grupos sociais, existente
dentro da casa – famílias (extensas), clãs, tribos. O agricultor
livre (tu), filhos (trabalhadores igualmente braçais), servos
161 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
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(trabalhadores que vendiam sua força braçal ou escravos), os animais
(tratar-se-á no último subponto) e os estrangeiros (o último da
lista por ordem de direitos sociais, mas que também vinha do
exterior a procura de trabalho). Todos os estratos sociais são
atingidos por este terceiro Mandamento. Todos os estratos sociais
devem se beneficiar, descansando no sétimo dia, não apenas o grupo
dos libertos. A questão de gênero também é assegurada: nem teu filho
nem tua filha, nem teu servo nem tua serva.
Importante recordar que, historicamente, o Decálogo foi
constituído formalmente no VII século a.C., momento no qual os
reinados haviam se corrompido e muitos dos princípios originais das
12 Tribos já se encontravam em crise. Existem escravos entre os
próprios hebreus e abusos contra a antiga aliança. Daí a necessidade
de resgate da mesma, ressaltando aqueles pontos emergenciais para
problemas vigentes na época em questão. O terceiro Mandamento recebe
acréscimos, tais como este verso, fazendo a atenção voltar para esta
dimensão em processo de deterioração. O que era um princípio
necessário na formação das 12 Tribos, agora, no VII século a.C.,
torna-se premente.162
“Percebe-se que as contradições sociais forçaram esta
ampliação”163. Os senhores e os mais abastados estavam achando que
este Mandamento servia apenas para eles. O terceiro Mandamento quer
ressaltar, pois, que este benefício do descanso é para as crianças,
para os escravos e escravas, para os animais e para os estrangeiros.
A lembrança de que os pais um dia foram estrangeiros no Egito deve
sensibilizar os que agora estão no lugar dos mandatários, tendo
estrangeiros sob si. Com isto, “o sábado desatina, por momentos, as
desigualdades. Barra-as. Protesta contra elas. Afirma que toda a
162 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 21s.163 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 27.
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gente criada é igual diante do Criador. A prática do descanso é,
pois, um foco de contestação, contra as injustiças e
desigualdades”164.
Em Ex 23.12 se lê: “Seis dias farás os teus trabalhos, mas ao
sétimo dia descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento,
e para que tome alento o filho da tua escrava e o estrangeiro”. Aqui
é incluído o filho da serva, destacando quão alentador, necessário,
era o descanso semanal. Ou seja, o trabalho era tão penoso para
certas classes sociais (servos, escravos e estrangeiros, assim como
seus filhos) a ponto de desfalecerem. O sábado lhes dava alento, em
contrapartida. A ressalva deste verso alerta que socialmente algumas
classes se beneficiavam do terceiro Mandamento, enquanto outras não.
Contudo, a finalidade do dia de repouso é a renovação das forças, a
todos os trabalhadores. São classes sociais indefesas, tais como os
hapirus no século XIII a.C., na casa da servidão.
Com isto, o sábado relativiza as diferenças sociais. Todos são
iguais diante de Yahweh (ente virtual), assim como todos são iguais
diante do Estado, como professa a Constituição Federal (CF)
brasileira, de 1988, em seu art. 5º, caput: “Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade”. Em Dt 5.14, se lê: “para que o teu criado e a tua
criada descansem do mesmo modo como tu” (grifou-se). Não deve
haver distinção entre estas classes trabalhadoras, no que
tange este terceiro Mandamento.Tal era a necessidade de preservar este modo de produção,
defendendo-o de desfalecer diante da desobediência dos cobiçosos que
começavam a adquirir mais terras e escravos, fazendo aumentar as
164 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 27.
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diferenças entre hapirus. Isto faz surgir no desenrolar da história
israelita um desdobramento mais contundente deste Mandamento: o ANO
SABÁTICO. “Já não é mais só o dia que importa, mas também o ano. O
ritmo da semana é transposto para o dos anos. É fascinante ver quão
criativa se torna a prática do sábado”165. Em Ex 23.10-11 se lê:
“Seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos; mas no
sétimo ano a deixarás descansar e não a cultivarás, para que os
pobres do teu povo possam comer, e do que estes deixarem comam os
animais do campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival”.
Os alimentos do sétimo ano são para pobres e animais, o que não eram
poucos no sétimo século a.C., considerando que também a vinha e o
olival deviam servir de alimento.
O Ano Sabático, desdobramento do terceiro Mandamento,
portanto, visa trazer justiça e equilíbrio sociais. De sete em sete
anos a terra era deixada de mão para que qualquer um pudesse se
alimentar livremente. Isto implicava em renúncia completa à colheita
em favor dos pobres e dos animais selvagens do campo. O Ano Sabático
cumpria uma função essencialmente social, ao distribuir igualmente a
receita da produção de seis anos entre aqueles que viviam no
território hebreu, entre aqueles que não partilhavam da receita
igualitariamente. No sétimo ano, no Ano Sabático, todo trabalho
parava, tal qual hoje em dia algumas classes de trabalhadores podem
desfrutar de períodos sabáticos, depois de alguns anos de trabalho
regular166, mesmo que para fazer outras atividades, mormente
acadêmicas de capacitação.
Mas caso toda esta gama de leis não surtisse efeito em
determinadas situações, fazendo um hapiru se empobrecer a tal ponto
de se vender como escravo, prática comum na sociedade cananéia e
165 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 27.166 Lei 7.109, 13/10/1977, art. 137-142; decreto 2.794, de 1º /10/1998, art.10º, parágrafo 4º.
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vizinhança, então o outro hapiru deveria refrear aceitá-lo como
escravo. O livro de Levítico é essencialmente um códice legal. Nele
se lê, em Lv 25.39: “Também, se teu irmão empobrecer ao teu lado e
vender-se a ti, não o farás servir como escravo. Como jornaleiro,
como peregrino estará ele contigo”. Quer-se evitar a desigualdade
social, recordando-se sempre que também o rico é descendente de
hapirus, observando o empobrecido hebreu como se fosse seu pai, avô,
que um dia se vendeu escravo no Egito, ou aos reis cananeus. Lv
25.55 finaliza esta lei com esta explicação: “Porque os filhos de
Israel são meus servos; eles são os meus servos que tirei da terra
do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus”.
A despeito de todos estes esforços, a escravidão se fez
presente. Neste caso, surge outra lei, igualmente sabática, que
libertava por imposição o escravo que se vendeu em decorrência da
estratificação social, como expressa Dt 15.12-15:
Se te for vendido um teu irmão hebreu ou irmã hebréia,seis anos te servirá, mas no sétimo ano o libertarás. E,quando o libertares, não o deixarás ir de mãos vazias;liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira,e do teu lagar; conforme o Senhor teu Deus tiverabençoado te darás. Pois lembrar-te-ás de que fosteservo na terra do Egito, e de que o Senhor teu Deus teresgatou; pelo que eu hoje te ordeno isso.
Não satisfeito com a lei do terceiro Mandamento, em Ex
20, nem com o acréscimo a poteriori de Ex 23, surge o texto de
Deuteronômio com o fito de ajustar os desníveis sociais
causados pela injustiça promovida pelas classes ascendentes,
com uma interferência mais acurada. O serviço escravo era
tolerado até certo período, quando então deveria ser liberto.
Não há escravidão perpétua. Ela tem seu tempo de tolerância e
após seis anos, o escravo não apenas devia ser despedido,
liberto, como devia levar consigo parte da produção que ele
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mesmo ajudou a acumular ao longo do tempo de serviço. O
escravo não ficava desprotegido quando liberto. A lei do Ano
Sabático o protegia mesmo depois de liberto, oferecendo
condições de recomeço.
Além da escravidão, há uma lei que procurava compensar a
posse da terra: o ANO DO JUBILEU, em Levítico 25.
Inicialmente, com a formação das 12 Tribos, a terra pertencia
a Yahweh. Uma vez colonizada pelos hapirus imigrantes, foragidos
e retirantes, a terra que mana leite e mel foi dividida entre as
tribos, clãs e famílias para posse perpétua. A terra pertencia
às famílias por dádiva de Yahweh. Portanto, não podia, nem
deveria ser repassada a outrem; o que inevitavelmente veio a
ocorrer, gerando crescimento de empobrecidos (sem-terras) em
detrimento daqueles que acumulavam terra sobre terra
(latifundiários). Assim expressa Lv 25.23: “Também não se
venderá a terra em perpetuidade, porque a terra é minha; pois
vós estais comigo como estrangeiros e peregrinos”.
O Ano do Jubileu dita que a cada cinquenta anos (sete
vezes sete), todos deveriam retornar às terras de origem; um
tipo de reforma agrária167. Assim se lê em Lv 25.8-10:
Também contarás sete sábados de anos, sete vezes seteanos; de maneira que os dias dos sete sábados de anosserão quarenta e nove anos. Então, no décimo dia dosétimo mês, farás soar fortemente a trombeta; no dia daexpiação fareis soar a trombeta por toda a vossa terra.E santificareis o ano quinquagésimo, e apregoareisliberdade na terra a todos os seus habitantes; ano dejubileu será para vós; pois tornareis, cada um à suapossessão, e cada um à sua família.
167 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 29.
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A proposta é de total restauração da igualdade social
após cada 50 anos; um mecanismo legal para compensar os
desajustes de crescimento estratificado das camadas, a partir
da posse ou perda da terra. Neste Ano do Jubileu, cada qual
pode retornar às terras de seus antepassados e reassumir suas
posses. A terra não pertence aos acumuladores de terras, mas a
Yahweh (entidade virtual, Estado) que a redistribui a cada
cinquenta anos com o fito de aparar as arestas que surgem a
partir da desobediência do Decálogo. Caso a lei jurídica do
Decálogo fosse seguida fielmente, ou seja, se a aliança
(contrato social) fosse acatada por todos os cidadãos hebreus,
não teriam surgido acréscimos, nem o Ano Sabático, nem o do
Jubileu. A existência deles denuncia que a legalidade do
Decálogo era, em certa medida, utópica.168
2.3.3 A dimensão econômica
Trabalhar seis dias e parar no sétimo tem efeitos diretos
na economia de qualquer modo de produção, ainda mais que os
Estados vizinhos forçavam seus trabalhadores a trabalhar os
sete dias na semana. A tentação de lucrar está na base deste
terceiro Mandamento, assim como o de fomentar um modo de
produção alternativo, não baseado no trabalho extenuante que
alimenta minorias em detrimentos da maioria (memória da casa
da servidão), mas num projeto de uma sociedade igualitária,
dignificante e justa.
168 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 72.
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Segundo SCHWANTES, um dos textos que remonta à formação
das 12 Tribos é o de Ex 34.21, no qual é expresso que a parada
semanal deve ocorrer tanto na aradura quanto na colheita, ou
seja, nos momentos de maior atividade agrícola. Com isto,
segundo SCHWANTES, há uma indicação implícita de reduzir a
produção. Não é bom o acúmulo. É necessário saber viver sob o
conceito da proteção e sustento de Yahweh (Estado virtual), não
tanto no crescimento pessoal. O crescimento deve ser coletivo,
gradual e igualitário. Se há crescimento, todos devem se
beneficiar. O terceiro Mandamento trata de manter sob controle
a produção desordenada.169
Segundo CRÜSEMANN, este descanso asseverado para o tempo
das principais estações agrícolas da semeadura e da colheita
(Ex 34.21b) “implicava renunciar a uma parte não-desprezível
da receita familiar”170. Segundo ele, “em sua origem, este
mandamento foi concebido justamente para esses períodos
específicos”171. A cobiça e os ávidos por obterem mais riquezas
desrespeitavam esta norma, pelo menos no tempo da semeadura e
da colheita, pois este descanso poderia colocar toda a
produção em risco. Mas a ideia do terceiro Mandamento não é
outra senão esta: exatamente quando o tempo aperta é que o
trabalhador precisa parar172, não se deixando ser seduzido pelo
trabalho e pela promessa de riqueza (pessoal) presente no
mesmo. Exatamente então, o camponês precisa do dia de repouso.169 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 27.170 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 48.171 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 48.172 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 189.
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É necessário frisar o que estava em jogo: o novo modo de
produção igualitário. Se noventa por cento dos hapirus parava e
o restante não, estes tinham melhores chances de vingar em
detrimento da maioria. Por isto surgem os profetas a partir do
século IX a.C., acusando aqueles que querem enriquecer no
sétimo dia. “O profeta Amós condena os mercadores de cereais
que não podem esperar o fim do sábado, porque querem voltar a
vender trigo e lograr os compradores com artigos inferiores,
pesos falsos e preços elevados (8.5)”173. O profeta Jeremias***
escreve:
Assim me disse o Senhor: Vai, e põe-te na porta deBenjamim, pela qual entram os reis de Judá, e pela qualsaem, como também em todas as portas de Jerusalém. Edize-lhes: Ouvi a palavra do Senhor, vós, reis de Judá etodo o Judá, e todos os moradores de Jerusalém, queentrais por estas portas; assim diz o Senhor: Guardai-vos a vós mesmos, e não tragais cargas no dia de sábado,nem as introduzais pelas portas de Jerusalém; nem tireiscargas de vossas casas no dia de sábado, nem façaistrabalho algum; antes santificai o dia de sábado, comoeu ordenei a vossos pais. Mas eles não escutaram, neminclinaram os seus ouvidos; antes endureceram a suacerviz, para não ouvirem, e para não recebereminstrução. Mas se vós diligentemente me ouvirdes, diz oSenhor, não introduzindo cargas pelas portas destacidade no dia de sábado, e santificardes o dia desábado, não fazendo nele trabalho algum, então entrarãopelas portas desta cidade reis e príncipes, que seassentem sobre o trono de Davi, andando em carros emontados em cavalos, eles e seus príncipes, os homens deJudá, e os moradores de Jerusalém; e esta cidade serápara sempre habitada. E virão das cidades de Judá, e dosarredores de Jerusalém, e da terra de Benjamim, e daplanície, e da região montanhosa, e do sul, trazendo àcasa do Senhor holocaustos, e sacrifícios, e ofertas decereais, e incenso, trazendo também sacrifícios de açãode graças. Mas, se não me ouvirdes, para santificardes odia de sábado, e para não trazerdes carga alguma, quandoentrardes pelas portas de Jerusalém no dia de sábado,
173 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 188.
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então acenderei fogo nas suas portas, o qual consumirá ospalácios de Jerusalém, e não se apagará. (grifou-se)
Este texto implicitamente confirma a ideia de que a
economia do Estado israelita está justamente no respeito à lei
do sábado, enquanto mantenedora da igualdade e de crescimento
econômico gradual e constante, logrando sucesso econômico
através das relações comerciais com outros reinados vizinhos,
que reconhecem oportuno o comércio, diante de um Estado
econômica e politicamente forte. Por outro lado, a
desobediência à lei do sábado, com o dolo da prática
comercial, visando lucros através do trabalho desigual para
com os outros comerciantes, e do logro comercial com pesos e
medidas falsas, leva o Estado a ser consumido pela destruição.
Destruição do modo de produção igualitário que se está
defendendo desde a libertação da casa da servidão. Com esta norma
sabática, o interesse do Estado suplanta o interesse pessoal;
o sucesso da coletividade, do povo hapiru, suplanta o sucesso
individualizado. A lei do sábado evoca o direito social em
detrimento do direito do indivíduo. A lei do sábado embasa um
modo de produção econômico ímpar, igualitário, fugindo das
experiências negativas existentes nos outros modos de
produção. Quer-se gestar algo diferente. É uma tentativa e
precisam-se apostar todas as fichas!
A dimensão econômica fez parte intrínseca do
desdobramento do terceiro Mandamento no ANO SABÁTICO. Se
deixar de trabalhar a terra por um dia da semana já compromete
a economia familiar, pode-se imaginar por um ano inteiro. Em
Lv 25.1-7 se lê:
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Disse mais o Senhor a Moisés no monte Sinai: Fala aosfilhos de Israel e dize-lhes: Quando tiverdes entrado naterra que eu vos dou, a terra guardará um sábado aoSenhor. Seis anos semearás a tua terra, e seis anospodarás a tua vinha, e colherás os seus frutos; mas nosétimo ano haverá sábado de descanso solene para aterra, um sábado ao Senhor; não semearás o teu campo,nem podarás a tua vinha. O que nascer de si mesmo da tuasega não segarás, e as uvas da tua vide não tratada nãovindimarás; ano de descanso solene será para a terra.Mas os frutos do sábado da terra vos serão por alimento,a ti, e ao teu servo, e à tua serva, e ao teujornaleiro, e ao estrangeiro que peregrina contigo, e aoteu gado, e aos animais que estão na tua terra; todo oseu produto será por mantimento.
A ideia novamente é de barrar o crescimento econômico de
alguns, procurando amortizar as diferenças socioeconômicas com
este ano de ajuste. Ao pensar no empobrecido, dando-lhe
oportunidade de participar da produção de seis anos, está-se
comprometendo a riqueza e o acúmulo de um ano de produção.
Este ajuste social tem consequências econômicas tremendas se
observado somente pelo viés do lucro. Contudo, visto sob a
perspectiva da solidariedade, do apoio entre famílias, clãs e
tribos, este modo de produção sabático promove justiça e
igualdade, quando periodicamente (a cada sete anos) constrange
uma parada (shbt) na produção, forçando a ajuda mútua e a
recordação de que todos são iguais diante de Yahweh (Estado) e
de que devem encontrar criativamente saídas para situações
limítrofes resultantes desta lei.174
Esta percepção econômica solidaria é percebida mais
claramente no texto de Dt 15.1-11, que fala do ANO DA REMISSÃO:
Ao fim de cada sete anos farás remissão. E este é o mododa remissão: todo credor remitirá o que tiver emprestadoao seu próximo; não o exigirá do seu próximo ou do seu
174 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 28 e 38.
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irmão, pois a remissão do Senhor é apregoada. Doestrangeiro poderás exigi-lo; mas o que é teu e estiverem poder de teu irmão, a tua mão o remitirá. Para quenão haja entre ti pobre algum (pois o Senhor certamentete abençoará na terra que o Senhor teu Deus te dá porherança, para a possuíres), contanto que ouçasdiligentemente a voz do Senhor teu Deus para cuidares emcumprir todo este mandamento que eu hoje te ordeno.Porque o Senhor teu Deus te abençoará, como te prometeu;assim, emprestarás a muitas nações, mas não tomarásempréstimos; e dominarás sobre muitas nações, porém elasnão dominarão sobre ti. Quando no meio de ti houveralgum pobre, dentre teus irmãos, em qualquer das tuascidades na terra que o Senhor teu Deus te dá, nãoendurecerás o teu coração, nem fecharás a mão a teuirmão pobre; antes lhe abrirás a tua mão, e certamentelhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a suanecessidade. Guarda-te, que não haja pensamento vil noteu coração e venhas a dizer: Vai-se aproximando osétimo ano, o ano da remissão; e que o teu olho não sejamaligno para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada; eque ele clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado.Livremente lhe darás, e não fique pesaroso o teu coraçãoquando lhe deres; pois por esta causa te abençoará oSenhor teu Deus em toda a tua obra, e em tudo no quepuseres a mão. Pois nunca deixará de haver pobres naterra; pelo que eu te ordeno, dizendo: Livrementeabrirás a mão para o teu irmão, para o teu necessitado,e para o teu pobre na tua terra. Se te for vendido umteu irmão hebreu ou irmã hebréia, seis anos te servirá,mas no sétimo ano o libertarás. E, quando o libertares,não o deixarás ir de mãos vazias; liberalmente ofornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do teulagar; conforme o Senhor teu Deus tiver abençoado tedarás. Pois lembrar-te-ás de que foste servo na terra doEgito, e de que o Senhor teu Deus te resgatou; pelo queeu hoje te ordeno isso.
Dois pontos aguçam a atenção: a) o empréstimo ao irmão
hebreu (hapiru) necessitado. O empréstimo aponta para o aspecto
solidário, já que este empréstimo não era feito a juros altos,
mas com fito de auxiliar os necessitados. Até na proximidade
do Ano da Remissão dever-se-ia emprestar, pois o que estava em
jogo não era apenas a situação pessoal, mas o novo projeto
socioeconômico. Caso os endividamentos continuassem à revelia,
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a sociedade iria se estratificar a tal ponto de se igualar às
sociedades das quais os hapirus foram libertos. Estes não seriam
diferentes daquelas. Mas a memória da casa da servidão e da
aliança com Yahweh os fazia emprestar, mesmo quando o Ano da
Remissão estivesse próximo, confirmando o pacto social. Pois,
com respeito ao empobrecido, “sua necessidade está muito acima
do dinheiro”175.
b) Esta dívida por empréstimo, contudo, era
automaticamente cancelada quando o Ano da Remissão era proclamado
em todas as tribos. O cancelamento das dívidas existentes com
a chegada do Ano da Remissão (a cada sete ano) tinha como fito
a extinção da pobreza entre os hapirus, como assevera o verso 4:
Para que não haja entre ti pobre algum. O Ano da Remissão objetiva a
eliminação do empobrecido, extinguindo o mecanismo econômico
que o promove: o endividamento paulatino a ponto de se chegar
à escravidão por dívida.176 Mas mesmo que isto ocorresse então
também esta dívida deveria ser cancelada e o irmão escravizado
por dívida devia ser liberto, como visto no ponto anterior.
Neste ponto, contudo, é ressaltado o quesito econômico desta
lei, pois a perda da mão de obra também produz reflexos na
produção agrícola e na economia familiar.
Claro que este texto de Dt 15 é utópico. Mas tal utopia
logrou construir uma sociedade viável por 200 anos, na medida
em que os pobres (hapirus) se organizavam para efetivá-la,
sempre com a memória da libertação dos antigos modelos
socioeconômicos escravocratas. Também no século VIII a.C., era
175 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 28s.176 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 28s.
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“preciso pôr sob controle o dinheiro, os empréstimos, os
endividamentos! A cada sete anos estão cancelados!”177 Memória
de modelos de endividamento perpétuo, de comerciantes vis,
contra quem o pobre não encontrava defesa na legislação local;
eram hapirus, os sem direitos. Na formação das 12 Tribos,
contudo, eles puderam ser os artífices legais deste novo modo
socioeconômico, procurando criativamente resolver os desníveis
que acabavam surgindo no meio da própria sociedade que
defendia o igualitarismo e a justiça.178
Por último, o ANO DO JUBILEU (Lv 25.13-17) promove um
tipo de reforma agrária, já mencionado no ponto anterior. A
cada cinquenta anos, todas as terras vendidas deviam retornar
a seu antigo proprietário. O texto é claro ao ditar que a
compra não é do terreno em si, mas dos meses que antecedem o
Ano do Jubileu. Quanto mais distante, mais caro a compra;
quanto menos distante o Ano do Jubileu, menos caro. Um tipo de
Comodato, um contrato no qual o comodante entrega a outrem
(comodatário) coisa infungível, para ser usada temporariamente
e depois restituída. Um contrato feito oralmente, também em
nossa legislação, segundo a Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de
2002, em seus artigos 579 a 585. A diferença é que naquela
época era uma lei geral válida para toda compra e venda de
terreno. Não havia a possibilidade de aquisição de terras a
não ser por comodato. O objetivo era de cunho social: evitar o
177 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 29.178 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 29.
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acúmulo de terras por alguns, aumentando a estratificação
socioeconômica.179
Concluindo este subponto, o novo projeto social promovido
por Yahweh (ente virtual) encontrava no povo o seu bem maior;
para a nação nascente, o bem-estar do seu povo estava em
primeiro lugar, não a economia (seja individual ou social). A
riqueza estava no povo e não no seu trabalho, em sua produção,
muito menos em sua economia. Tudo isto só tinha valor se
voltado para o bem-estar do povo. A aliança com Yahweh era a
força promotora de toda esta máquina estatal e é nela que as
ações devem ser depositadas, e não na economia e no trabalho
extensivo (ao sétimo dia).
2.3.4 A dimensão ecológica
A dimensão ecológica está vinculada diretamente com a
dimensão econômica, já pelas etimologias de ambas as palavras.
O vocábulo grego comum a ambas oikos180 significa casa,
habitação; quarto, sala; templo; bens, família. Nómos181
significa uso, costume; opinião geral, máxima; lei. Também
pode ser traduzido a partir da palavra grega nomós182, que
significa parte; divisão de território, província, região;
sítio para o pasto, alimento. Eco-nomia, assim, significa a179 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 29.180 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto:Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p. 399.181 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto:Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p. 391.182 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto:Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p. 391.
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administração de uma casa, terra, ou do Estado, e pode ser
assim definida:
Ciência social que estuda como o indivíduo e a sociedadedecidem (escolhem) empregar recursos produtivos escassosna produção de bens e serviços, de modo a distribuí-losentre as várias pessoas e grupos da sociedade, a fim desatisfazer as necessidades humanas.183
Por sua vez, logós184 significa palavra; dito; revelação
divina; argumento; matéria de estudo; motivo; valor que se dá
a uma coisa; justificação. Eco-logia, assim, surge da
necessidade de um estudo da casa em que se vive com o fito de
dar sustentabilidade à mesma. A partir do valor que se dá à casa, à
terra (nomós), esta será condizente ou não para habitação.
Economia e ecologia, desta maneira, se inter-relacionam
estreitamente. Isto implica dizer que a construção de um modo
de produção passa inevitavelmente pelo estudo cuidadoso de
como aproveitar a terra para que esta possa sustentar todo o
projeto social.185
Os hapirus, na formulação inicial das 12 Tribos,
instituíram a lei do sábado. Nela a terra e os animais, tanto
os meio de produção quanto os selvagens, foram considerados.
“Nem o teu animal” trabalhará (Ex 20.10)186; Ex 23.12s: “para
que descanse o teu boi e o teu jumento”, meios de produção que
antecedem o filho da serva e o estrangeiro em ordem de
183 VASCONCELLOS, Marco Antonio S.; GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia.2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 2.184 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 5. ed. Porto:Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p. 350.185 MOSCONI, Luis. E todas as árvores baterão palmas (Is 55.12). In: GARMUS,Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis: Vozes, 1987,p. 51. 186 SILVA, Airton José da. Leis da vida e leis de morte. Os dez mandamentose seu contexto social. In: GARMUS, Ludovico (org.). Os Dez Mandamentos: váriasleituras. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 46.
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prioridade. A explicação para a inclusão dos animais pode ser
encontrada também em Ex 20. 11: “porque em seis dias, fez o
Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao
sétimo dia, descansou”. Yahweh cria a natureza e tudo o que
nela há. Ao recriar uma sociedade alternativa, o fez a partir
de um modo de produção que levasse em consideração este apreço
pela criação187.
Os legisladores, contudo, foram os hapirus que formularam
tal lei, a partir da sensibilidade que eles mesmos detinham, a
partir de sua relação com a natureza, com a terra, com os
animais. A articulação teológica/ideológica veio a posteriori.
MOSCONI considera que “um povo que, de verdade, luta por vida
e liberdade adquire uma grande sensibilidade e convivência com
a natureza. [...] a terra é tratada com dignidade”. Este
tratamento não se limita apenas aos animais, mas se estende a
terra. No ANO SABÁTICO, a terra deve descansar; a cada sete anos
não se deve trabalhar a terra. Lê-se em Lv 25.3s:
Seis anos semearás a tua terra, e seis anos podarás atua vinha, e colherás os seus frutos; mas no sétimo anohaverá sábado de descanso solene para a terra, um sábadoao Senhor; não semearás o teu campo, nem podarás a tuavinha.
A preocupação com o trabalhador hapiru, sentido original
do terceiro Mandamento, é repassada para a terra. Esta também
precisa recuperar suas energias, seus nutrientes. “O solo não
pode ser esgotado. A questão aí é ecológica. Trata-se de
preservar o ambiente.”188 Para FRIGERIO, existe uma relação187 FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In:GARMUS, Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 45.188 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990, p. 28.
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estreita entre o meio ambiente e a humanidade. Se um é
santificado (separado para uso distinto do ordinário), o outro
também deve ser santificado. “Criação, humanidade, Espírito
estão intimamente ligados na submissão, estão intimamente
ligados na gestação do Novo”189.
A lei do Ano Sabático surge por que a terra não estava
sendo respeitada. O abuso da mesma trazia esgotamento e
improdutividade agrícola. O profeta Jeremias, em 9.12b-15,
denuncia:
Por que razão pereceu a terra e se queimou como umdeserto, de sorte que ninguém passa por ela? Diz oSenhor: porque deixaram a minha lei, que lhes pusdiante, e não deram ouvidos à minha voz, nem andaramnela, antes andaram obstinadamente segundo o seu própriocoração, e após baalins, como lhes ensinaram os seuspais. Portanto, assim diz o Senhor dos exércitos, Deusde Israel: Eis que darei de comer losna a este povo, elhe darei a beber água de fel.
Isaías confirma que o uso desenfreado da terra traz
catástrofes ao próprio ser humano (Is 24.4-6):
A terra pranteia e se murcha; o mundo enfraquece e semurcha; enfraquecem os mais altos do povo da terra. Naverdade a terra está contaminada debaixo dos seushabitantes; porquanto transgridem as leis, mudam osestatutos, e quebram o pacto eterno. Por isso a maldiçãodevora a terra, e os que habitam nela sofrem por seremculpados; por isso são queimados os seus habitantes, epoucos homens restam.
A quebra do contrato social, que visa nortear o respeito
à terra, provoca desolação, solo estéril, fazendo a produção
cair. Sem produção, o comércio enfraquece e a cidade sofre. É
como uma maldição de Yahweh, por descobrir a quebra da aliança,
189 FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In:GARMUS, Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 40.
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o não seguimento da lei do Ano Sabático. Isaías continua nos
versos 7 e seguintes do mesmo capítulo:
Pranteia o mosto, enfraquece a vide, e suspiram todos osque eram alegres de coração. Cessa o folguedo dostamboris, acaba a algazarra dos jubilantes, cessa aalegria da harpa. Já não bebem vinho ao som das canções;a bebida forte é amarga para os que a bebem. Demolidaestá a cidade desordeira; todas as casas estão fechadas,de modo que ninguém pode entrar. Há lastimoso clamor nasruas por falta do vinho; toda a alegria se escureceu, jáse foi o prazer da terra. Na cidade só resta adesolação, e a porta está reduzida a ruínas.
A imagem da terra desolada como consequência do uso
inadequado continua ao final do mesmo capítulo de Isaías 24:
“A terra está de todo quebrantada, a terra está de todo
fendida, a terra está de todo abalada. A terra cambaleia como
o ébrio e balanceia como a rede de dormir; e a sua
transgressão se torna pesada sobre ela, e ela cai, e nunca
mais se levantará”. A imagem da terra é consequência da
exploração da mesma pelo ser humano: “A exploração do homem
pelo homem gera exploração da natureza e sua devastação. [...]
a terra que foi liberada para um povo liberto, se torna uma
terra cativa e desolada por causa de pessoas gananciosas que
pretendem usar e abusar de tudo e de todos”190.
Nos textos proféticos, a ideia da exploração do “homem
pelo homem” tem relação direta com a saúde da terra. Oséias
transmite, em 4.1-3, sua hermenêutica da situação da seguinte
maneira:
Ouvi a palavra do Senhor, vós, filhos de Israel; pois oSenhor tem uma contenda com os habitantes da terra;porque na terra não há verdade, nem benignidade, nem
190 FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In:GARMUS, Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 41.
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conhecimento de Deus. Só prevalecem o perjurar, omentir, o matar, o furtar, e o adulterar; há violênciase homicídios sobre homicídios. Por isso a terra selamenta, e todo o que nela mora desfalece, juntamentecom os animais do campo e com as aves do céu; e até ospeixes do mar perecem.
Neste texto a terra se ressente em função de ações
sociais que a princípio nada têm a ver com o trabalho na
terra. Contudo, a visão hebraica do ser humano perpassa o todo
da criação. O ser humano é indiviso em si e parte integrante
da natureza191. “Quando o povo vive livre, livre também é o meio
ambiente. Quando o povo é escravizado, escrava também é a
natureza”192. Oséias afirma, em 8.7: “porque semeiam ventos,
segarão tormentas; então não haverá seara: a erva não dará
farinha”. O uso da analogia vento forte como exemplo de
turbulência social também é aplicável para o vento que sopra
sobre a terra seca, erodindo-a. “A terra é estéril, os seios
são secos, humanidade-natureza definham porque estão quebrados
os laços da aliança, o compromisso com a sociedade livre”193. A
desobediência à lei ecológica transforma a terra em deserto.
Para reverter esta situação, o povo hapiru sabia que
precisava descansar a terra, deixando-a por si. No texto de Ex
23.10s, o verbo no hebraico é shmt, um verbete oriundo do shbt.
Shmt significa, largar, deixar a seu próprio cuidado194. “A
191 FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In:GARMUS, Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 40s.192 FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In:GARMUS, Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 41.193 FRIGERIO, Tea. Esboço de uma reflexão bíblica sobre meio ambiente. In:GARMUS, Ludovico (org.). BÍBLIA E ECOLOGIA: várias leituras. Petrópolis:Vozes, 1987, p. 42.194 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
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terra da qual se vive deve ser largada, deve ser entregue a
seus próprios cuidados, deve estar entregue apenas a Deus, num
ritmo regular de sete dias e sete anos”195. O profeta não faz
apenas denúncia; ele também anuncia como renascer, enquanto
sociedade justa. Isaías novamente proclama a lei de Yahweh, em
32.15-18:
Então se derramará sobre nós o espírito lá do alto e odeserto se tornará em campo fértil, e o campo fértil emum bosque. Então o juízo habitará no deserto e a justiçamorará no campo fértil. E a obra da justiça será paz; eo efeito da justiça será sossego e segurança parasempre. O meu povo habitará em morada de paz, em moradasbem seguras e em lugares quietos de descanso.
A lei do Ano Sabático quer promover uma reviravolta: onde
há corrupção humana com consequente desgaste da terra, surge
renovação das forças da terra com consequente justiça social.
No texto acima, é possível reconhecer o efeito entre as etapas
de reanimação da terra: a) chuva, transformando a terra seca
em campo fértil; b) depois de algum tempo, este campo
transforma-se em bosque, mata exuberante. c) Somente então, a
terra poderá dar sustento ao produzir vida social e
consequentemente justiça. A justiça humana vem do bom cultivo
da terra (oiko-nomós). d) Trabalhando-se a terra com cuidado e
de maneira devida, é possível retirar dela, sustentabilidade
para vilas e cidades, onde a liberdade de ir e vir é possível,
onde a paz entre os cidadãos deste modo de produção ecológico
é colhida a partir do respeito à natureza, como parceira na
produção. Isaías anuncia novamente, em 41.17-20:
195 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 49.
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Os pobres e necessitados buscam água, e não há, e a sualíngua se seca de sede; mas eu o Senhor os ouvirei, eu oDeus de Israel não os desampararei. Abrirei rios nosaltos desnudados, e fontes no meio dos vales; tornarei odeserto num lago d´água, e a terra seca em mananciais.Plantarei no deserto o cedro, a acácia, a murta, e aoliveira; e porei no ermo juntamente a faia, o olmeiro eo buxo; para que todos vejam, e saibam, e considerem, ejuntamente entendam que a mão do Senhor fez isso, e oSanto de Israel o criou.
A voz profética anuncia que a despeito da ação
destruidora humana, Yahweh pode reverter o processo de
devastação em renovação. Ele é o criador. O Estado (ente
virtual) tem poder de, através de suas leis (criação), fazer
reverter um quadro social injusto, promovendo harmonia com a
natureza e melhorando a produção econômica196. A lei do Ano
Sabático é um exemplo de normatividade que procura
restabelecer a base para uma sociedade cujo modo de produção
respeite a fonte originária da produção: a terra. Como por
196 Na vigência da elaboração deste TCC, há uma disputa política intensa emtorno da aprovação do Novo Código Florestal: “O Novo Código FlorestalBrasileiro (Projeto de Lei no 1.876/99) é uma proposta de reforma do atualCódigo Florestal Brasileiro, promulgado em 1965. Desde a década de 1990, aproposta de reforma do Código Florestal suscitou polêmica entre ruralistase ambientalistas. O projeto atual tramita há 12 anos na Câmara dosDeputados e foi elaborado pelo deputado Sérgio Carvalho (PSDB de Rondônia).Em 2009, o deputado Aldo Rebelo do PCdoB foi designado relator do projeto,tendo emitido um relatório favorável à lei em 2010. A Câmara dos Deputadosaprovou o projeto pela primeira vez no dia 25 de maio de 2011,encaminhando-o ao Senado Federal. No dia 6 de dezembro de 2011, o SenadoFederal aprovou por 59 votos contra 7 o projeto de Aldo Rebelo (no Senado,o projeto adquiriu o nome de "Lei da Câmara nº 30 de 2011"). No dia 25 deabril de 2012, a Câmara aprovou uma versão alterada da lei, ainda maisfavorável aos ruralistas, que comemoraram. Em maio de 2012, a presidenteDilma Rousseff vetou 12 pontos da lei e propôs a alteração de 32 outrosartigos." Após o Congresso aprovar o "Novo Código Florestal", ONGs,ativistas e movimentos sociais organizaram o movimento "Veta Dilma",pedindo o veto integral ao Projeto de Lei.” Cf. Novo Código FlorestalBrasileiro. Wikipédia. [S.l.], 7 de novembro de 2012. [Online]. Disponível em:http://pt.wikipedia.org/wiki/Novo_C%C3%B3digo_Florestal_Brasileiro. Acesso:18 nov. 2012.
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exemplo, este texto que anuncia a estruturação final de um
Estado que segue esta normatividade, em Is 65.21-25:
Eles edificarão casas e as habitarão; plantarão vinhas ecomerão o fruto delas. Não edificarão para que outroshabitem; nem plantarão para que outros comam. Porque osdias do meu povo serão como os dias da árvore, e os meusescolhidos gozarão por longo tempo das obras das suasmãos: Não trabalharão debalde, nem terão filhos paracalamidade, porque serão a descendência dos benditos doSenhor e os seus descendentes estarão com eles. Eacontecerá que, antes de clamarem, eu os responderei; eestando eles ainda falando, eu os ouvirei. O lobo e ocordeiro juntos se apascentarão, o leão comerá palhacomo o boi; e pó será a comida da serpente. Não farãomal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz oSenhor.
A riqueza de detalhe e de símbolos pode ser encontrada
neste texto que proclama novos céus e nova terra. Se
interpretado pelo viés político é possível verificar a
importância do respeito ecológico como sine qua non para o êxito
socioeconômico. A edificação de casas, a partir da produção,
pertence àqueles que a constroem, como lembrança do tempo da
casa da servidão, onde produziram para outros se aproveitarem do
produto do suor. Respeitando-se a natureza, mediante as leis
florestais, não há calamidades. O produto da terra devidamente
cuidada será constante e duradouro. Tudo isto pode constituir
um Estado capaz de responder a cada necessidade antes mesmo de
ser postulada em juízo: um Estado preventivo, um ouvidor stricto
sensu. Ao final do texto, uma imagem utópica: o lobo e o
cordeiro se cuidando e se alimentando como cidadãos num mesmo
pasto. Ou seja, a despeito das diferenças que porventura haja
entre os cidadãos deste novo modo de produção ecologicamente
estruturado, há um único ente virtual (Estado) que os iguala.
Tampouco as moléstias que afligem a saúde (serpente) vão se
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disseminar, pois o Estado evitará a peste mediante leis que
balizam uma relação devida com o meio ambiente. Haverá
harmonia entre o leão e o boi, entre a natureza leonina que
não perdoa e o cidadão hipossuficiente. Haverá paz na casa
(oikos).
Os Mandamentos vistos neste segundo capítulo demonstram
serem mais benefícios que exatamente sacrifícios ou exigências
morais. Os Mandamentos, uma vez seguidos livremente, libertam
o cidadão hebreu de imposições. São ofertas que mantêm a ordem
estabelecida. Não são ditames religiosos em sua origem, nem
exigem comportamento moral; são antes um catálogo mínimo dos
limites cuja transgressão extinguiria a aliança mosaica (pacto
social). O Decálogo é um desdobramento de uma ética de
solidariedade construída por pessoas de uma mesma camada
social (hapiru), que visa à constituição de um novo modo de
produção no qual vicejam harmonia entre o cidadão e o Estado,
assim como entre o trabalhador e a terra. Os Mandamentos, a
exemplos destes três primeiros, em seus primórdios, revelam-se
como leis jurídicas cujo objetivo é balizar a construção política
deste novo modo de produção alternativo, barrando a influência
de forças externas, assim com de forças internas. São como
normas constitucionais, referências norteadoras para a criação
e manutenção de uma sociedade igualitária. O Decálogo pode,
assim, ser comparado a um Contrato Social (aliança mosaica)
entre iguais (hapirus) e um novo Estado constituinte (Yahweh).
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3 AS TRIBOS DE YAHWEH COMO HORIZONTE HISTÓRICO
Nos dois últimos capítulos houve uma aproximação ao texto
do Decálogo. Para esta aproximação, se fez uso de um
instrumento hermenêutico – a sociologia – assumindo com
sinceridade a distância entre o tempo presente e o tempo do
Decálogo. Esta aproximação, contudo, tem um sentido ulterior,
o de conhecer a histórica política e jurídica do Decálogo. A
aproximação com o Decálogo não deixa de ser também uma
aproximação com a realidade atual. A dificuldade da
interpretação de um texto antigo se dá no limite entre ambas
as realidades; elas se comunicam, mas não completamente.
Contudo, ao se comunicarem, mesmo que parcialmente, há uma
troca de conhecimento. Com este conhecimento adquirido é
inevitável que quem interpreta acaba se enriquecendo. A
capacidade de conhecer o passado pressupõe, de certo modo, a
capacidade de autocrítica de quem faz hermenêutica.
Compreender significa, como se verá adiante, fusão de
horizontes: o horizonte da compreensão da realidade política e
jurídica brasileira, por exemplo, e o horizonte da compreensão
existencial do texto. Se se logra uma aproximação devida ao
texto do passado, então o estudo pode enriquecer a realidade
do Direito brasileiro de um novo modo. Hermenêutica é um
exercício de compreensão que resulta do encontro entre o texto
(Decálogo) e a realidade jurídica atual. À primeira vista,
muitas das palavras do Decálogo e demais leis correlatas podem
ser estranhas, até duras e ásperas, como por exemplo, a pena
de morte para uma simples transgressão do descanso sabático.
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Todavia, ao se aproximar com um olhar mais rigoroso, é
possível que o Decálogo conduza o hermeneuta para uma
percepção mais solidária, de liberdade e benefícios, presentes
no Decálogo, ressaltando aspectos e valores históricos de
importância formativa na história do Direito.
O Decálogo, assim, é uma fonte não apenas para a vida
espiritual, religiosa, como também para o Direito, o qual
encontra nele, vazado numa outra linguagem, o que o Direito
próprio só conseguiu elaborar a duras penas durante os últimos
séculos. A importância do Decálogo para o Direito consiste no
fato dos hapirus, através da experiência sociológica, terem
viabilizado concretizar no nascedouro jurídico da humanidade
uma sociedade alternativa, embasada em leis sui generis para sua
época. Uma sociedade a partir da qual, a despeito de sua forma
rudimentar, se podem ser encontradas características presentes
na sociedade hodierna brasileira. O Decálogo resguarda
elementos políticos e jurídicos, enquanto balizador do
experimento social das Tribos de Yahweh, paralelos ao modelo
social emergente no século XVIII, por exemplo. O Decálogo,
portanto, mais do que palavras religiosas (moralistas), é um
códice legal, originário de um experimento embrionário, cuja
herança pode ser encontrada nas formas jurídicas e políticas
das sociedades da atualidade.
Este capítulo é estruturado em dois pontos. No primeiro
(3.1), será apresentado o pensamento filosófico da fusão dos
horizontes de GADAMER. No segundo ponto (3.2), serão
apresentados traços característicos entre a proposta de Estado
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da sociedade tribal das 12 Tribos e a proposta de Estado em
Rousseau.
3.1 TEORIA DOS HORIZONTES DE GADAMER
Para verificar a hipótese de trabalho da fusão de
horizontes entre a realidade das 12 Tribos, embasadas nos
princípios norteadores do Decálogo, e a proposta de Estado em
Rousseau, o pensamento filosófico (hermenêutico) de GADAMER
servirá para nortear este primeiro ponto do terceiro capítulo.
A partir do trabalho filosófico de Husserl, GADAMER
descreve a perspectiva histórica humana, comparando-a aos
limites da visão. A história é conhecida e faz sentido até
certo ponto. Depois vai perdendo seu contorno, até
desaparecer por completo por detrás do horizonte. Depois
disso, a vista não alcança e o que resta após o horizonte fica
fora do escopo vigente. Na medida em que se anda, contudo, a
fronteira também se move, permitindo assim que o hermeneuta
possa se aproximar de determinados pontos cardeais,
perscrutando o que antes lhe estava vedado vislumbrar.197 “Um
horizonte não é uma fronteira rígida, senão algo que se
desloca com alguém e que convida a seguir entrando nele”198.
197 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 309.198 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 309.
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Consequentemente, o horizonte do passado, do qual emana a
tradição humana, encontra-se em perpétuo movimento199, sendo
assim passível de ser abarcado pela consciência histórica.
Quem tem consciência de que a história é um processo vivo e
contínuo, transcende os limites dos horizontes que o cercam,
enxergando além das cercanias, pois não há horizontes
cerrados200. Contudo, para aquele que não tem horizontes, que
não os leva em consideração, não enxerga suficientemente,
supervalorizando o que se situa próximo a si. Assim, o que é
vivo na tradição no seu nascedouro, para além dos limites do
horizonte, fica perdido; restam-lhe apenas ideias que a
tradição engessou através da história, situando-as nas
cercanias da pessoa.201
Este processo de aproximação a um texto do passado, como
apresentado no início do trabalho, implica em um processo
hermenêutico. Hermenêutica, dentro da fusão de horizontes, é
um olhar a partir do marco do horizonte que se quer vislumbrar
e não a partir da consciência que enxerga; aquele que procura
entender a tradição sem esta aproximação ao horizonte sofrerá
mal-entendidos com respeito aos significados dos conteúdos
daquela. Para a compreensão de suas reais medidas, a
consciência histórica precisa de uma aproximação do horizonte,
que vai comunicar seus dados; mas infelizmente, a consciência
histórica não pode constituir um diálogo com o horizonte. A
aproximação do horizonte não implica em diálogo com o mesmo; é199 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 375.200 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p.201 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 373.
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mais um monólogo daquele; a consciência histórica, da qual
parte o interesse de conhecer, apenas escuta, interpreta.202
Mas para esta escuta ocorrer apropriadamente, é mister
ter o próprio horizonte sempre presente, caso contrário, não
há deslocamento de horizontes. A consciência histórica, ao se
aproximar de um horizonte, carrega consigo sua própria
coordenada. Estar consciente da sua posição e de seus
preconceitos, evita uma aproximação sem vínculo com a
realidade da qual se parte, executando mais uma aproximação
especulativa do que real.203 Quem aparta a mirada de si mesmo se
priva justamente do horizonte histórico204. “Ganhar um horizonte
quer dizer sempre aprender a ver mais além das cercanias e das
coisas bem próximas, não desatendendo-as, senão precisamente
vendo-as melhor integradas num todo maior e em padrões mais
corretos”205. Desta forma, respeita-se o sentido próprio
presente no horizonte perscrutado e distante, ao ouvi-lo em
sua peculiaridade, reconhecendo sua diferença.206
Esta diferença se destaca no horizonte e ao se destacar,
o faz diante de quem o observa. Como expressa GADAMER:
“Destacar é sempre uma ação recíproca. O que deve destacar-se
tem que destacar-se frente a algo que por sua vez deverá
destacar-se daquele”207. Com isto, o presente não está isolado
do passado, mas é constituído por este. “Na realidade o202 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 373.203 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 375.204 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.205 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 375.206 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.
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horizonte do presente está em processo de constante formação
na medida em que estamos obrigados a pôr a prova
constantemente todos os nossos prejuízos. Parte desta prova é
o encontro com o passado e a compreensão da tradição da que
nós mesmos procedemos”208. O horizonte do presente, assim, não
se constitui a margem do passado. Compreender o horizonte
distante é, também, uma autocompreensão. “Compreender é sempre o
processo de fusão destes presumíveis ‘horizontes para si mesmos’”209.
Este destacar-se, óbvio, gera tensão, pois o destaque
implica na diferença e até na estraneidade do conteúdo da
tradição da qual se aproxima. “A tarefa hermenêutica consiste
em não ocultar esta tensão em uma assimilação ingênua, senão
desenvolvê-la conscientemente. [...] A consciência histórica é
consciente da sua própria alteridade e por isto destaca o
horizonte da tradição com respeito ao que lhe é próprio”210.
Uma das coisas que se destaca é a experiência. A
experiência do outro, de outra cultura, do passado, é estranha
e se destaca quando manipulamos com textos da tradição; a
distinção que destaca é fomentada pelos limites de cada
horizonte e de cada existência. Para GADAMER, a experiência
humana é sempre experiência de sua finitude211.
É experimentado no autêntico sentido da palavra aqueleque é consciente desta limitação, aquele que sabe que
207 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.208 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376.209 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 376s.210 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 377.211 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 433.
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não é senhor nem do tempo nem do futuro; pois o homemexperimentado conhece os limites de toda previsão e ainsegurança de todo projeto. Nele chega à sua plenitudeo valor de verdade da experiência. Se em cada fase doprocesso da experiência o característico é que o queexperimenta adquire uma nova abertura para novasexperiências, isto valerá muito mais para a ideia de umaexperiência consumada. [...] A experiência ensina areconhecer o que é real. Conhecer o que é, é pois, oautêntico resultado de toda experiência e de todo querersaber em geral. [...] A verdadeira experiência é aquelana qual o homem se faz consciente de sua finitude. Nelaencontram seu limite o poder fazer e a autoconsciênciade uma razão que projeta.212
Em resumo, GADAMER defende a ideia de que quando o ser
humano atinge seus limites existenciais e toma consciência dos
mesmos, tem a possibilidade de transcendê-los, ao procurar no
acervo histórico resguardado nos horizontes existenciais,
novos modelos que ampliam os limites de sua finitude. Não será
uma recuperação idêntica daqueles, mas um amalgama entre
aqueles e a estrutura finita em que o hermeneuta se encontra,
ampliando-a em novidade existencial. Esta maneira de conceber
processos históricos como um amalgama de horizontes
superpostos pode ser identificado neste trabalho hermenêutico.
3.1.1 O horizonte hapiru
Aplicando o pensamento até aqui apresentado,
principalmente com a ideia da experiência em GADAMER, ao projeto
acadêmico em desenvolvimento, tem-se que: a) o povo hapiru,
mediante suas experiências de sofrimento vivencial em meio à
sua época (1.500-1.300 a.C.), reconheceu os limites de sua212 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 433.
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finitude humana (modos de produção escravocratas). b) Esta
consciência da finitude abriu as portas para a investigação de
modelos alternativos que se faziam presentes além das
cercanias, em horizontes distantes distribuídos a partir da
coordenada tempo e espaço hapiru (1.250 a.C./Canaã). c) A
experiência hapiru ensinou-os o que não queriam: ser hapiru. d) A
proposta do projeto social das Tribos de Yahweh é resultante
desta consulta aos horizontes somada e feita a partir de sua
finitude existencial sofrida. e) Um projeto alternativo, novo,
que encerra também seus limites e inseguranças. f) O Decálogo é,
assim, um compêndio textual, resultante de todo este amalgama de
horizontes, a partir da finitude humana experimentada pelo
povo hapiru, sempre consciente de seus limites (os sem
identidade; sem direitos políticos) e, por causa desta
consciência real, consciente de que outro mundo é possível
(Yahweh que liberta da casa da escravidão para a terra que mana
leite e mel).
Se houvesse espaço, poder-se-ia estender uma análise
pormenorizada de cada um desses pontos. Apesar deste limite
acadêmico, pode-se demonstrar, a partir de pelo menos um
rápido exemplo, a validade do pensamento sobre a fusão de
horizontes de GADAMER, de dentro do horizonte hapiru. O primeiro
Mandamento declara a existência de um monoteísmo nascente. A
construção de uma teologia monoteísta hebraica, não pode,
entretanto, ser considerada originária do povo hapiru. Esta
experiência já havia sido tentada 200 anos antes da
experiência das Tribos de Yahweh. Em 1.364, o faraó Amenófis
IV, conhecido como Ecnaton, e sua esposa Nefretiti, ascendem ao
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poder, destituem todas as divindades egípcias, proclamando a
existência de apenas um deus: Aton, a personificação do disco
do sol.213
Na mesma época, a derrocada egípcia estava em andamento e
muitos hapirus evadiram das terras egípcias, dirigindo-se às
montanhas de Canaã. Canaã recebeu várias levas de hapirus das
terras egípcias, todas fugindo do modo de produção ali
vivenciado, desde o faraó Ecnaton (Amenófis IV) até o
surgimento das Tribos de Yahweh. É o modelo proposto pelo
sociólogo GOTTWALD, descrito no primeiro capítulo deste
trabalho214. A experiência monoteísta, portanto, era conhecida
pelos hapirus. Quando da formação das Tribos de Yahweh se
necessitou agrupar numa só coesão as diferentes divindades, o
povo utilizou-se da memória.
Há uma soma de horizontes entre a experiência egípcia em
1.364 a.C. e a experiência hapiru, em 1.250 a.C. O horizonte
hapiru ganha o horizonte egípcio e consolida o que Ecnaton não
logrou. Pois dois anos após sua morte, os sacerdotes das
diferentes divindades desfizeram a reforma religiosa de Ecnaton,
restituindo-as em seus altares215. A fusão de horizontes pode
ser exemplificada nestes poucos dados da seguinte forma:
enquanto Ecnaton promulga um monoteísmo a partir de um edito
imperial, o monoteísmo das Tribos da Yahweh é promulgado pelas
camadas constituintes do povo hapiru. Enquanto que no Egito a
213 SCHWANTES, Milton. História de Israel – local e origens. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1984, p. 43s. Cf. também DURANT, Will. Our Oriental Heritage. New York:Simon and Schuster, 1963, p. 205ss.214 GOTTWALD, Norman K. As Tribos de YAHWEH – Uma sociologia da Religião deIsrael liberto 1250-1050 a.C. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p.201-243.215 DURANT, Will. Our Oriental Heritage. New York: Simon and Schuster, 1963, p.213.
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experiência monoteísta não vingou, na experiência tribal dos
hapirus, vingou. Ou seja, não houve uma simples imitação do
passado egípcio, caso em que o monoteísmo também não teria
vingado em Canaã, mas um aprendizado que levou em consideração
sua própria coordenação existencial hapiru, um aprendizado
possibilitado pela fusão dos dois horizontes. Esta fusão é que
fez com que a experiência monoteísta intentada novamente,
agora pelo povo hapiru, fosse diferente da egípcia.
Ou seja, a experiência da existência é sempre uma
resultante de amalgamas de horizontes superpostos. O primeiro
Mandamento, então, não é algo forjado exclusivamente pelo povo
hapiru, mas foi este quem soube dosar a soma de experiências do
passado e da atualidade hapiru. “Pensar historicamente quer dizer em
realidade realizar a transformação que acontece aos conceitos do passado
quando intentamos pensar neles” (grifou-se). O povo hapiru
pensou historicamente, realizando a transformação de conceitos
a ponto de concretizá-los e mantê-los por séculos. O Decálogo
é prova disso.
Este desenvolvimento é importante, pois é GADAMER
novamente quem afirma: “É claro que a experiência do tu tem que ser
algo específico pelo fato do tu não ser um objeto senão que
ele mesmo se comporta com respeito a alguém”216 (grifou-se). No
momento em que o Direito brasileiro procura, mediante este
trabalho, descortinar aspectos políticos e jurídicos no
Decálogo (tu), vai perceber que este Decálogo está destacado
diante outro (tu) horizonte mais antigo: a formação das Tribos
de Yahweh; e que este, por sua vez, é destacado a partir de
216 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 434.
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outros horizontes constituintes do mesmo (ex.: experiência
monoteísta de Ecnaton).
3.1.2 O horizonte hodierno
GADAMER chama estas experiências passadas de tradição. O
Decálogo, desta forma, faz parte da tradição do passado da
humanidade, da tradição ocidental. Não é um escrito isolado,
sem comunicação com outros horizontes, mas um texto que
intermedeia horizontes tanto do seu passado quanto do seu
futuro. Isto interessa ao Direito brasileiro. Este trabalho
parte do horizonte presente, que procura uma aproximação com o
Decálogo, procurando-o compreender a partir desta fusão de
horizontes. “A compreensão da tradição não entende o texto
transmitido como a manifestação vital de um tu, senão como um
conteúdo de sentido livre de toda atadura a quem opina, seja
ao eu, seja ao tu”217. O Decálogo não é apenas fruto de sua
tradição histórica, como igualmente influencia o futuro, o
tempo presente. Não está preso em seu horizonte, cerrado. Está
livre para comunicar.
O conteúdo desta comunicação, contudo, não parte do tu
(Decálogo). “Interpretar significa justamente aportar os
próprios conceitos prévios com o fim de que a referência do
texto se faça realmente linguagem para nós”218. Para esta
comunicação ser efetiva, segundo GADAMER, é preciso saber de217 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 434.218 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 477.
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que direção ocorre a aproximação. Esta direção determina o
sentido a ser obtido do texto. É preciso saber qual a pergunta
que se faz ao texto. “Compreender um texto quer dizer
compreender esta pergunta”219. O texto é polissêmico, mas a
pergunta determina qual dos sentidos será obtido.220
Assim pois, aquele que quer compreender tem queretroceder com suas perguntas mais além do dito; tem queentendê-lo como resposta a uma pergunta para a qual é aresposta. Retrocedendo assim mais aquém do dito sepergunta necessariamente mais além do dito. Um texto só écompreendido em seu sentido quando se há ganho ohorizonte do perguntar, que como tal contémnecessariamente também outras respostas possíveis. Nestamedida o sentido de uma frase é relativo à pergunta paraa qual é resposta, e isto significa que vainecessariamente mais além do que se diz nela.221
É o horizonte do perguntar. Este horizonte se mescla com o
horizonte do hermeneuta (Direito brasileiro), que faz a
pergunta, fazendo-o se perguntar a pergunta existente no texto
da tradição. “O que há ao princípio realmente é a pergunta que
o texto nos coloca a nós, à nossa própria afeição pela palavra
da tradição, de modo que sua compreensão implica sempre na
tarefa da automediação histórica do presente com a tradição”222.
Isto faz com que a relação entre pergunta e resposta se
inverta: o Decálogo, quando aberto, coloca uma pergunta,
exigindo uma resposta. Para esta resposta, é necessário antes
compreender qual é a pergunta do texto, que se revela a partir
da própria pergunta feita pelo hermeneuta. Com a pergunta do219 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 477.220 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 477s.221 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 478.222 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 452.
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hermeneuta se começa, deste modo, um processo de reconstrução
originária do texto, que vai responder devolvendo outra
pergunta, interpelando o interpelante.223
A reconstrução da pergunta que se supõe ser a respostado texto está ela mesma dentro de um fazer perguntas como que nós mesmos intentamos buscar a resposta à perguntaque nos coloca a tradição. Pois uma perguntareconstruída não pode se encontrar nunca em seuhorizonte originário. O horizonte histórico descrito nareconstrução não é um horizonte verdadeiramenteabarcante; está ao invés abarcado pelo horizonte que nosabarca a nós, os que perguntamos e os afetados pelapalavra da tradição.224
Para GADAMER, se a palavra da tradição nos afeta é por
que já se encontra perdida além do horizonte; faz parte
residual do presente, das coisas que se encontram nas
cercanias. Não é mais compreendida. A hermenêutica, possível
pela fusão dos horizontes, permite que um texto do passado
desloque o hermeneuta de sua posição cômoda (prejuízos),
permitindo a recuperação de conceitos que podem engravidar o
presente. “Forma parte da verdadeira compreensão, o recuperar
conceitos de um passado histórico de maneira que contenham ao
mesmo tempo nosso próprio conceber. É o que temos chamado de
fusão de horizontes”225.
Finalizando este ponto, o Direito brasileiro é convidado
a reconstruir a pergunta feita pelo texto (Decálogo), ou seja,
qual a pergunta dos hapirus que culminou no Decálogo? Depois da
análise sociológica (aproximação) do primeiro e segundo
223 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 452.224 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 452.225 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una hermenéuticafilosófica. 3. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1988, v. 1, p. 453.
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capítulos, uma resposta poderia ser: “Como desenvolver um
corpo legislativo que proporcione uma sociedade politicamente
justa, fraterna (liberta) e igualitária?” A fusão de
horizontes instiga o Direito com esta pergunta da tradição do
Decálogo. Para respondê-la, quer se demonstrar, na sequência,
de maneira hipotética, mas cautelosa, que esta fusão de
horizontes, entre o horizonte presente e o horizonte hapiru,
pode ser exemplificada no Contrato Social de Rousseau (ainda
dentro do horizonte presente), identificando traços paralelos
entre as características deste com o Decálogo e seu horizonte
abarcante (hapiru).
3.2 A FUSÃO DOS HORIZONTES
A ideia a ser apresentada neste ponto é a de que a
experiência insipiente das Tribos de Yahweh, desenvolvendo uma
sociedade sem reis e com uma proposta libertária e
igualitária, foi recuperada, através da fusão de horizontes
históricos, por Hobbes e depois por Rousseau, a partir de seu
próprio contexto existencial, culminando no Contrato Social,
hodiernamente vivenciado por várias sociedades modernas,
também no Brasil. O espaço, entretanto, já está esgotado, o
que leva a uma apresentação sucinta desta hipótese de
trabalho, neste segundo ponto.
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3.2.1 O Contrato Social em Hobbes
É sintomático que Hobbes intitule sua importante obra de
“Leviatã” (em 1651), a partir da figura mítica, presente no
livro de Jó (Jo 40s), na Bíblia. A ideia deste monstro nasce
da concepção de Hobbes sobre a natureza humana, comparada a de
um lobo: naturalmente, o ser humano tende para a destruição. A
guerra é resultante desta máxima de Hobbes: “guerra de todos
contra todos”. Hobbes, contudo, acresce que ao tomar
consciência desta natureza lupina, o ser humano toma
consciência também que pode alterar a maneira de viver, pois a
guerra leva sempre à morte e à destruição. O uso da
racionalidade (Iluminismo) força o ser humano a construir uma
sociedade mais altruísta, mesmo não sendo sua inclinação
natural. O que leva o ser humano a construir uma sociedade
mais justa é o instinto (também animal) da autoconservação.226
Hobbes também assevera, a despeito de seu contexto
medieval e de castas, que as pessoas são naturalmente iguais:
“A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do
corpo e do espírito; [...] a diferença entre um e outro homem
não é suficientemente considerável para que qualquer um possa
com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não
possa também aspirar, tal como ele”227. Revertendo a ordem de
castas medieval, Hobbes propõe que o povo faça um contrato
226 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. XIV.227 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 74.
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entre si, contrato balizado por leis, depositárias num rei que
exerceria o poder de manter a ordem legal e a coesão social228.
Este poder soberano pode ser adquirido de duas maneiras.Uma delas é a força natural, como quando um homem obrigaseus filhos a submeterem-se, e a submeterem seuspróprios filhos, a sua autoridade, na medida em que écapaz de destruí-los em caso de recusa. Ou como quandoum homem sujeita através da guerra seus inimigos a suavontade, concedendo-lhes a vida com essa condição. Aoutra é quando os homens concordam entre si emsubmeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens,voluntariamente, com a esperança de serem protegidos porele contra todos os outros. Este último pode ser chamadode Estado Político, ou um Estado por instituição. Aoprimeiro pode chamar-se um Estado por aquisição.229
Para a sustentação deste Estado Político, mediado por um
Contrato Social, Hobbes postula algumas leis, das quais apenas
três são suficientes para traçar paralelos com o horizonte
hapiru. 1ª Lei: Procurar a paz e alcançá-la, defendendo-se com
todos os meios possíveis230; 2ª Lei: Renunciar ao direito sobre
tudo, quando também os outros renunciam231; 3ª Lei: Respeitar os
pactos estipulados, isto é, ser justo232.
Com este esboço resumido do Contrato Social de Hobbes, é
possível traçar alguns paralelos básicos. 1º paralelo: o povo
hapiru desenvolve uma sociedade alternativa, procurando por paz
e alcançando-a, defendem-na com todos os meios possíveis. Como
estudado no primeiro capítulo, as Tribos de Yahweh só
228 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 103s.229 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 106.230 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 78.231 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 79ss.232 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 82ss.
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guerreavam para defender o quinhão de terra plantado. 2º
paralelo: o povo hapiru faz uma aliança com Yahweh, renunciando
o poder, poder este delegado a uma divindade. 3º paralelo:
Yahweh entrega um Decálogo através do qual a aliança é
exemplificada por meio de leis que devem ser seguidas, caso o
povo deseje sobreviver, tendo Yahweh como garante. As leis de
punição (ex.: morte) servem como poder coercitivo, mantendo a
aliança respeitada.
A diferença é que, na proposta de Hobbes, o garante
continua sendo um rei (ou assembleia de homens). Na prática, a
história demonstrou que rei algum é isento de interesse
privados, subjulgando o povo a estes interesses. É um pacto
social sob o regime absolutista. O rei não ficava sob o
controle do pacto social. A diferença entre o período anterior
e posterior a Hobbes é que antes o rei era um eleito divino,
enquanto em Hobbes o seria por pacto social. Aqui a figura do
Leviatã aparece em toda a sua grandeza, contrariando a ideia
de um deus justo e reafirmando a de um deus déspota233. O
exemplo clássico é o rei Luis XIV, com sua célebre frase: “O
Estado sou eu!” A imagem 03 mostra a similitude com a Imagem
01, no capítulo dois. Em Hobbes, poder-se-ia postular de
maneira um pouco precipitada, que a humanidade logra avançar
no ideal conquistado e elaborado pelas Tribos de Yahweh,
fracassando em alguns pontos, sendo o maior deles o quesito
reinado.
Imagem 03 - Estrutura do Pacto Social em Hobbes
233 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. XVI-XVIII.
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Estado
Rei Soberano
Assembleia
Aparato estatal
Povo Aldeias
Se comparada à Imagem 01, é possível perceber as
verossimilhanças entre esta estrutura, segundo o Pacto Social
em Hobbes, e a estrutura de uma sociedade do tipo reinado,
comum entre as cidades-estados cananéias.
3.2.2 O Contrato Social em Rousseau
Cem anos após Hobbes, nasce Rousseau, no século XVIII, em
1712, publicando em 1762 sua importante obra “Do contrato
social ou princípios do direito político”234. Rousseau logra
elaborar um ideal de contrato social baseado em princípios
distintos dos princípios de Hobbes. A primeira discrepância
com Hobbes situa-se na visão de ambos acerca do ser humano.
Para Rousseau, o ser humano é naturalmente bom, naturalmente
livre e naturalmente igual aos outros seres humanos; em Hobbes o
ser humano é naturalmente egoísta, mau. A segunda discrepância
com Hobbes situa-se no modelo de pacto social. Para Rousseau,
o contrato social é a única forma de associação legítima,
manifestada através de um pacto estabelecido entre o povo e os
234 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
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Exércit Administraç
Estado
governantes, e não com um rei. Este pacto abarca também a
submissão dos governantes, assim como de todos os cidadãos, à
vontade geral; em Hobbes, o rei não era abarcado pela norma
geral. O rei não pactua, não é obrigado a se submeter ao pacto
geral.235
Quais são os paralelos entre o horizonte de Rousseau e o
horizonte hapiru? Apontar-se-á quatro grandes paralelos, com os
quais se alicerçam a ideia da fusão dos horizontes, como
também a ideia de que o Decálogo é antes um compêndio
jurídico, balizador de uma sociedade politicamente liberta,
pactuada e coletiva.
1º Paralelo: Da liberdade da casa da escravidão.
“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a
ferros”236. A partir desta afirmação Rousseau descreve o que fez
com que o ser humano se encontrasse a ferros. Descreve que a
força de alguns se impôs sobre os demais, servindo-se para
tanto de convenções legais.237 É preciso poder de dominação,
pois “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem,
aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres”238. A
escravidão imposta pela guerra tampouco é legítima.
Seja qual for o modo de encarar as coisas, nulo é odireito de escravidão não só por ser ilegítimo, mas porser absurdo e nada significar. As palavras escravidão edireito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Quer deum homem a outro, quer de um homem a um povo, serásempre igualmente insensato este discurso: “Estabeleço
235 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estadoeclesiástico e civil. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. XVI.236 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 22.237 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 26.238 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 27.
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contigo uma convenção ficando tudo a teu cargo e tudo emmeu proveito, convenção essa a que obedecerei enquantome aprouver e que tu observarás enquanto for do meuagrado”.239
Imagem 04 - Estrutura do Pacto Social em Rousseau
Povo/cidades
Cidade A Cidade B Cidade C
Se comparada à Imagem 02, é possível perceber as
verossimilhanças entre esta estrutura, segundo o Pacto Social
em Rousseau, e a estrutura de uma sociedade do tipo
teocrática, vigente no tempo das Tribos de Yahweh.
A sociedade das Tribos de Yahweh nasceu a partir de
experiências de escravidão. Hapiru é um termo dado a alguém que
se vendeu à escravidão para pagamento de dívidas. O povo hapiru
(hebreu) nasceu sedento por liberdade, rompendo os ferros que
os oprimiam, negando as autoridades dos reis e faraós, ao
fugirem de suas dominações, para uma terra de ninguém, onde se
propuseram construir algo diferente. Repetindo CRÜSEMANN,
acerca do primeiro Mandamento:
A necessidade teológica da transformação de Deusfundamentada no 1º Mandamento não é um fim em si mesmanem algo abstrato. Tanto no Decálogo quanto em textossimilares, esse Deus é definido justamente a partir doconteúdo: é o Deus que se define a si mesmo através da
239 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 29s.
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liberdade concedida aos israelitas, aos quais ele sedirige. Isso é que precisa ser preservado. Ao lado dessepoder de liberdade não deve e não poder haver outrosdeuses. Todas as experiências que Israel fazia, fossemelas positivas ou negativas, feitas por indivíduo ou porpequenos grupos ou pelo povo como um todo, todas elasdeveriam ser relacionadas com esse Javé e, porconseguinte, deveriam ser medidas pela experiênciabásica da liberdade. Voltar-se para outros deusessignificava renunciar ao fundamento da próprialiberdade.240
O espírito da liberdade é uma das características básicas
entre os dois horizontes, tanto no horizonte hapiru, quanto no
hodierno (em Rousseau). É esta característica bem humana que
fomenta o surgimento racional de uma organização política
livre, justa e igualitária.
2º Paralelo: O Pacto Social da Aliança Mosaica
Para a superação de sociedades despóticas, onde as
convenções elegem reis ou governantes caprichosos, Rousseau
aposta, como mencionado acima, num pacto social: “Cada um de
nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção
suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada
membro como parte indivisível do todo”241. Neste arcabouço
social não há reis: “O soberano, somente por sê-lo, é sempre
aquilo que deve ser”242. Assim nasce o Estado:
A fim de que o pacto social não represente, pois, umformulário vão, compreende ele tacitamente estecompromisso, o único que poderá dar força aos outros:aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto seráconstrangido por todo um corpo, o que não significasenão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condiçãoque, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra
240CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 40.241 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 33.242 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 35.
141
qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui oartifício e o jogo de toda a máquina política, e é aúnica a legitimar os compromissos civis, os quais, semisso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aosmaiores abusos.243
A análise sociológica do primeiro Mandamento, no ponto
2.1, aludiu em vários momentos que a divindade Yahweh não
deixava de ser um ente virtual, ideológico, ou seja, produto
da racionalidade daqueles que construíram o modo de produção
das Tribos de Yahweh. Rousseau descreve “o Estado como um ente
de razão, porquanto não é um homem”244. Se comparados, é
possível perceber esta forte semelhança de construção racional
tanto na ideologia religiosa, existente nas Tribos de Yahweh,
quanto na ideologia política de Rousseau.
Tabela 01 – Paralelos entre Estados
Tribos de Yahweh Estado em RousseauAliança Mosaica, Pacto de
Siquém
Pacto Social
Único que dá força aos hapirus Único que dá força aos outrosForça de coerção pela lei Força de constrangimentoGarante das tribos Garante da pátriaO coletivo em detrimento do
indivíduo
O coletivo em detrimento do
cidadãoCompromisso com as tribos Compromisso civis
A constituição societária das Tribos de Yahweh se dá
mediante uma elaboração sui generis para a época: uma sociedade
sem reis, nem governantes, tendo sobre si apenas um ente243 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 36.244 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 35.
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virtual que garantia a liberdade, a justiça e a igualdade,
mediante leis balizadoras (religiosas/ideológicas). Esta ideia
é de uma superação, poder-se-ia dizer, sem precedentes para
aquela época. Ideia tão inovadora quanto a construção
iluminista do contrato social, principalmente em Rousseau.
Este ente virtual (Estado) foi estabelecido mediante um pacto,
no qual diferentes grupos de hapirus se compromissavam a
obedecê-lo, ante as leis penais para quem não o obedecesse. O
texto de Josué 24.1-25 retrata este pacto social entre Yahweh,
enquanto entidade virtual, e os diferentes povos hapirus, numa
assembleia popular, em Siquém:
Depois Josué reuniu todas as tribos de Israel em Siquém,e chamou os anciãos de Israel, os seus cabeças, os seusjuízes e os seus oficiais; e eles se apresentaram diantede Deus. Disse então Josué a todo o povo: Assim diz oSenhor Deus de Israel: Além do Rio habitaram antigamentevossos pais, Tera, pai de Abraão e de Naor; e serviram aoutros deuses. Eu, porém, tomei a vosso pai Abraão dalémdo Rio, e o conduzi por toda a terra de Canaã; tambémmultipliquei a sua descendência, e dei-lhe Isaque. AIsaque; dei Jacó e Esaú; a Esaú dei em possessão o monteSeir; mas Jacó e seus filhos desceram para o Egito.Então enviei Moisés e Arão, e feri o Egito com aquiloque fiz no meio dele; e depois vos tirei de lá. Depoisque tirei a vossos pais do Egito viestes ao mar; e osegípcios perseguiram a vossos pais, com carros e comcavaleiros, até o Mar Vermelho. Quando clamaram aoSenhor, ele pôs uma escuridão entre vós e os egípcios, etrouxe o mar sobre eles e os cobriu; e os vossos olhosviram o que eu fiz no Egito. Depois habitastes nodeserto muitos dias. Então eu vos trouxe à terra dosamorreus, que habitavam além do Jordão, os quaispelejaram contra vós; porém os entreguei na vossa mão, epossuístes a sua terra; assim os destruí de diante devós. Levantou-se também Balaque, filho de Zipor, rei dosmoabitas, e pelejou contra Israel; e mandou chamar aBalaão, filho de Beor, para que vos amaldiçoasse; porémeu não quis ouvir a Balaão; pelo que ele vos abençoou; eeu vos livrei da sua mão. E quando vós, passando oJordão, viestes a Jericó, pelejaram contra vós os homensde Jericó, e os amorreus, os perizeus, os cananeus, os
143
heteus, os girgaseus, os heveus e os jebuseus; porém osentreguei na vossa mão. Pois enviei vespões adiante devós, que os expulsaram de diante de vós, como aos doisreis dos amorreus, não com a vossa espada, nem com ovosso arco. E eu vos dei uma terra em que nãotrabalhastes, e cidades que não edificastes, e habitaisnelas; e comeis de vinhas e de olivais que nãoplantastes. Agora, pois, temei ao Senhor, e servi-o comsinceridade e com verdade; deitai fora os deuses a queserviram vossos pais dalém do Rio, e no Egito, e serviao Senhor. Mas, se vos parece mal o servirdes ao Senhor,escolhei hoje a quem haveis de servir; se aos deuses aquem serviram vossos pais, que estavam além do Rio, ouaos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Porémeu e a minha casa serviremos ao Senhor. Então respondeuo povo, e disse: Longe esteja de nós o abandonarmos aoSenhor para servirmos a outros deuses: porque o Senhor éo nosso Deus; ele é quem nos fez subir, a nós e a nossospais, da terra do Egito, da casa da servidão, e quem fezestes grandes sinais aos nossos olhos, e nos preservoupor todo o caminho em que andamos, e entre todos ospovos pelo meio dos quais passamos. E o Senhor expulsoude diante de nós a todos esses povos, mesmo os amorreus,que moravam na terra. Nós também serviremos ao Senhor,porquanto ele é nosso Deus. Então Josué disse ao povo:Não podereis servir ao Senhor, porque é Deus santo, éDeus zeloso, que não perdoará a vossa transgressão nemos vossos pecados. Se abandonardes ao Senhor e servirdesa deuses estranhos, então ele se tornará, e vos fará omal, e vos consumirá, depois de vos ter feito o bem.Disse então o povo a Josué: Não! antes serviremos aoSenhor. Josué, pois, disse ao povo: Sois testemunhascontra vós mesmos e que escolhestes ao Senhor para oservir. Responderam eles: Somos testemunhas. Agora,pois, - disse Josué - deitai fora os deuses estranhosque há no meio de vós, e inclinai o vosso coração aoSenhor Deus de Israel. Disse o povo a Josué: Serviremosao Senhor nosso Deus, e obedeceremos à sua voz. Assimfez Josué naquele dia um pacto com o povo, e lhe deuleis e ordenanças em Siquém. E Josué escreveu estaspalavras no livro da lei de Deus; e, tomando uma grandepedra, a pôs ali debaixo do carvalho que estava junto aosantuário do Senhor, e disse a todo o povo: Eis que estapedra será por testemunho contra nós, pois ela ouviutodas as palavras que o Senhor nos falou; pelo que serápor testemunho contra vós, para que não negueis o vossoDeus. Então Josué despediu o povo, cada um para a suaherança.
144
Um texto longo, mas contundente em cada linha, detalhando
cada ponto do pacto, desde a quem devem obedecer (Yahweh),
porquê devem obedecê-lo (guiou os pais e os libertou da casa
da escravidão), o voto popular (Serviremos ao Senhor nosso
Deus, e obedeceremos à sua voz), as testemunhas do pacto
(Somos testemunhas), o que acontecerá em caso de transgressão
ao voto pactuado (então ele se tornará, e vos fará o mal, e
vos consumirá), local do pacto (santuário de Yahweh), data do
pacto (naquele dia em Siquém), símbolo do pacto (pedra
testemunhal). Um pacto, assim como a aliança com Moisés, a
partir do qual é escrito um códice legal, balizador do pacto
recém votado (e Josué escreveu estas palavras no livro da lei
de Deus).
Todo pacto social pressupõe um contrato social. A
novidade desta segunda característica reside no fato da
aliança social ser firmada com um ente construído
racionalmente, virtual, pacto encontrado tanto no horizonte
hapiru, quanto no horizonte hodierno.
3º Paralelo: A Terra pertence à Yahweh, ao Estado
Rousseau escreve que, na constituição do Estado:
Cada membro da comunidade dá-se a ela no momento de suaformação, tal como se encontra naquele instante; ele etodas as suas forças, das quais fazem parte os bens quepossui. O que não significa que, por esse ato, a possemude de natureza ao mudar de mão e se torne propriedadenas do soberano, mas sim que, como forças da Cidade sãoincomparavelmente maiores do que as de um particular, aposse pública é também, na realidade, mais forte eirrevogável, sem ser mais legítima, [...]. Tal coisa sedá porque o Estado, perante seus membros, é senhor detodos os seus bens pelo contrato social, contrato esseque, no Estado, serve de base a todos os direitos, masnão é senhor daqueles bens perante as outras potências
145
senão pelo direito de primeiro ocupante, que tomou dosparticulares.245
Esta foi uma grande superação de pensamento político,
pois até então a propriedade pertencia a dominantes que a
exploravam, exploração estendida a seus trabalhadores
(vassalos). Ao repassar a propriedade ao Estado virtual,
Rousseau transcende seu contexto medieval, alçando a sociedade
a novos patamares de organização política. Somente assim se
pôde manter certa coesão sociopolítica; onde há donos de
terras, há poderes paralelos ao poder do Estado.
Esta ideia já fazia parte da organização social das
Tribos de Yahweh. Em várias partes dos códices legais na
Bíblia, Yahweh é declarado o proprietário de toda a terra (Lv
25.23) e é ele quem a distribui entre as tribos (Ex 23.20-33),
como acentuado na Assembleia de Siquém, no seu término, em Js
25.28. Só assim puderam as Tribos de Yahweh manter a proposta
de igualdade socioeconômica aplicável ao novo modo de produção
tribal. Esta característica foi bem ventilada na análise do
terceiro Mandamento, no qual a venda de terrenos não era
viável, pois a terra pertence a Deus (Yahweh), título da obra
de SCHWANTES246. Isto proporcionava uma reforma agrária
periódica (Ano do Jubileu), mantendo um equilíbrio social
constante. Os animais, enquanto meio de produção, também
estavam resguardados pela lei do Estado tribal, ao terem que
descansar no sétimo dia, assim como os agricultores e
trabalhadores sem geral. Como visto na análise do segundo
245 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 37.246 SCHWANTES, Milton. A terra pertence a Deus – Lv 24.23. Belo Horizonte: CEBI,1990.
146
capítulo, na proposta das Tribos de Yahweh, o direito do
indivíduo estava em segundo plano; o direito do indivíduo só
tinha validade se estivesse pautado pelo direito da
coletividade247.
Esta terceira característica destaca-se, como expressa
GADAMER, entre os horizontes, por constituir uma peculiaridade
dos dois horizontes em questão, tanto nas Tribos de Yahweh,
como no Contrato Social de Rousseau. Neste, pela quebra
drástica com respeito à propriedade, vindo a terra pertencer
ao Estado e, consequentemente, a todos os associados; naquela,
pela mesma quebra, tornando-se a terra propriedade também do
ente virtual Yahweh, que a entrega ao povo deliberadamente,
mantendo, em última instância, o controle sobre a mesma,
promovendo uma reforma agrária incomum na história da
humanidade, a cada período de cinquenta anos.
4º Paralelo: A Lei
Por último, mas não menos importante, é apresentado o
paralelo da lei, por ser o objeto deste trabalho: o Decálogo,
a lei mor. Rousseau estrutura assim o Estado: “As leis não
são, propriamente, mais do que as condições da associação
civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só
àqueles que se associam cabe regulamentar as condições da
sociedade”248. Quanto à pena, acresce: “Pode-se considerar um
terceiro tipo de relação entre o homem e a Lei, a saber, a da
desobediência à pena, dando origem as estabelecimento das leis247 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo:Edições Loyola, 1983, p. 277: “No antigo Israel, o indivíduo vive sempreenquadrado firmemente na união da sua família e, consequentemente, do seupovo”.248 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 55.
147
criminais que, no fundo, instituem menos uma espécie
particular de leis do que a sanção de todas as outras”249.
Nas Tribos de Yahweh, o pacto da Assembleia de Siquém
introduz uma lei norteadora, que estipula obediência total à
Yahweh. Este é o garante da sociedade tribal, e garante
mediante leis religiosas, mas de cunho fortemente
socioeconômicas. São as leis constitutivas do pacto entre o
ente virtual Yahweh e seu povo. Estas leis presentes no
surgimento das Tribos de Yahweh, entre 1.250 e 1.050 a.C.,
deram coesão e sustentabilidade ao modo de produção sui generis,
por duzentos anos. Mas com a introdução do reinado davídico e
logo depois o de Salomão, a população começou a perder
vínculos com estas leis mantenedoras da liberdade e promotoras
de justiça e de igualdade social. As leis originárias
começaram a perder seu poder. Daí o surgimento do Decálogo, no
século VII a.C., com a intenção de recuperação do viço a
partir da memória do passado (já no horizonte), sistematizando
as diversas leis num só compêndio, não as substituindo, mas
recordando-as e revitalizando-as. O Decálogo foi sendo
paulatinamente aceito como a lei da Aliança Mosaica e
recepcionado como lei régia, pactual, a partir do século V
a.C., depois do exílio babilônico, sendo a referência
legislativa mais importante.250
Como visto no segundo capítulo, as leis também previam
leis penais (Ex 34.10-17 e Dt 7.1-5), até capital (Ex 35.2). O
objetivo é o mesmo defendido por Rousseau, sancionar as demais
249 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou dos princípios do direitopolítico. 4. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 69.250 CRÜSEMANN, Frank. Preservação da Liberdade – O Decálogo numa PerspectivaHistórico-Social. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 24.
148
leis, inibindo a ruptura do Contrato Social. Todo crime é uma
quebra do pacto (Ex 34.10,12), feito por todos que se associam
ao corpo político. Merece, portanto, ser punido por ferir a
própria constituição do corpo social. No Decálogo, encontram-
se sanções no: 1º Mandamento (Ex 20.5: eu sou o Senhor, teu
Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos
até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem); 2º
Mandamento (Ex 20.7: porque o Senhor não terá por inocente o
que tomar o seu nome em vão); 4º Mandamento (Ex 20.12: Honre
teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na
terra que o Senhor, teu Deus, te dá).
Todas as sociedades têm leis. Não é aqui que se encontra
o diferencial do Decálogo. Sua distinção e menção como lei
semelhante às leis do Contrato Social de Rousseau está no fato
do Decálogo fomentar e defender leis que embasam uma sociedade
a partir dos princípios da liberdade, justiça e igualdade. Não
são leis que legitimam o poder dos dominantes, como era praxe
tanto nas cercanias de Canaã, como na época absolutista de
Rousseau. Mas leis como a do sábado, como função social que
serve como benefício ao povo, assim como as leis decorrentes
desta, como a do Ano Sabático251, o Ano da Remissão252 e do Ano
do Jubileu253. Há também leis mais específicas em favor do
pobre254, do estrangeiro255, dos servos256 e dos escravos257. Todo
251 Lv 25.1-7: A cada sete anos a terra tinha que descansar, para que osanimais selvagens e os pobres da terra pudessem se alimentar livremente. 252 Dt 15.1-6, no qual todas as dívidas eram perdoadas.253 Lv 25.8-34, no qual a terra descansava, e as terras vendidas, voltavam aseus donos originários.254 Lv 25.35-38 e Dt 15.7-11.255 Ex 20.10256 Ex 21.1-11 e Dt 15.12-18.257 Lv 25.39-55
149
este cabedal de leis é escrito pelo povo para o cuidado de si
mesmo, para sua própria proteção e benefício. São leis
inovadoras, como a do primeiro Mandamento, que defendia uma
constituição embasada num ente virtual e não humano, a exemplo
do Estado em Rousseau. Esta quarta característica destaca-se
pela distinção da qualidade da lei (desenvolvida e voltada
para o povo) e pela semelhança com o pensamento político e
legislativo de Rousseau.
Em conclusão, este terceiro capítulo pretende demonstrar
que nenhuma experiência social ocorre isoladamente,
desvinculada do passado e cerrada para futuras apreensões.
Especialmente as experiências inéditas, sui generis. Óbvio que a
experiência social das Tribos de Yahweh incorreu em vários
erros e que muitas das leis permaneceram no campo utópico.
Contudo, a despeito disso, foram escritas e existiram! Este
capítulo pretende defender a ideia de que a experiência hapiru,
entre 1.250 e 1.050 a.C., período denominado como Tribos de
Yahweh, foi um experimento embrionário de um sistema social que
procurava ordenar-se a partir de princípios humanitários, tais
como o da liberdade, justiça e igualdade. Um experimento
social que, mal ou bem, surgiu e se manteve por 200 anos, ou
seja, vingou e deixou marcas na história! O Decálogo é apenas
uma dentre outras marcas. A tese proposta por este terceiro
capítulo é que este experimento insipiente, ao deitar raízes e
marcas na história, possibilitou o surgimento racional do
Contrato Social, tanto em Hobbes, mas principalmente em
Rousseau. Dito de outra forma, o desenvolvimento intelectual
do século XVII e XVIII não teria chegado aonde chegou se não
150
houvesse tido preliminares na história política da humanidade,
tal como o experimento hapiru.
Para embasar esta tese, o terceiro capítulo fez uso da
teoria da fusão dos horizontes de GADAMER, procurando
demonstrar com maior proximidade características próprias em
ambos os experimentos sociais (prático e teórico) que se
encontram em sintonia. Características descritas na Bíblia e
bem acessíveis aos intelectuais da época de Hobbes e de
Rousseau. Ambos, aliás, aportam em seus escritos temas e
textos bíblicos tanto para refutar como para embasar suas
teses. A interpretação de textos antigos, da tradição
religiosa do Antigo Testamento, pode ter influenciado
diretamente a formulação das teses de Contrato Social de ambos
os intelectuais medievais. Defender esta tese já seria objeto
de outro trabalho acadêmico. Aqui fica como suspeita. A fusão
de horizontes, contudo, oferece indícios de que o Contrato
Social, como corpo teórico, e sua aplicação nas sociedades
hodiernas, posteriores à Revolução Francesa e Iluminista, pôde
se constituir por que no passado houve preliminares dispostas
na mesma direção; esta é a hipótese de trabalho ao final deste
capítulo.
O objetivo deste capítulo dentro do todo deste Trabalho
de Conclusão de Curso de Direito é apoiar o fato de que o
Decálogo, mais que normas morais e religiosas, carrega em seu
cerne o germe em potência de uma força de libertação social
capaz de engendrar e fomentar a criação de sociedades mais
justas e igualitárias, a exemplo do pensamento teórico do
Contrato Social, tanto de Hobbes quanto de Rousseau, e a
151
exemplo da concretização deste ideal teórico nas sociedades
modernas da atualidade do século XXI.
152
CONCLUSÃO
Canaã situava-se no meio de uma das rotas internacionais
mais importantes, ao interligar três continentes, por terra.
Durante milênios, este pequeno trecho de terra foi dominado
por potências vizinhas: Assíria (ao norte), Egito (ao
sudoeste), Babilônia (ao leste), exatamente por esta posição
estratégica e de grande fonte econômica (pedágio). A derrota
de um império era fomentada por outro que herdava todas as
terras sob o domínio do derrotado. Mas num breve período de
quinhentos anos, entre 1.250 e 750 a.C., os impérios
circunvizinhos às terras de Canaã, por conflitos internos,
perderam o poder simultaneamente, permitindo que as terras de
Canaã, sempre dominadas por potências estrangeiras, respirasse
livremente pela primeira vez em milênios. Este vácuo de poder
no tabuleiro internacional no Oriente Crescente permitiu que
culturas sobrepujadas por gerações, pudessem florescer
livremente. Esta liberdade possibilitou o surgimento de
diferentes experimentos sociais, desde tentativas de pequenas
cidades-estados de ocuparem militarmente o vazio deixado pelos
impérios decadentes, como tentativas socais alternativas ao
modelo vivenciado por séculos.
Dentre estes experimentos sociais, a experiência das
Tribos de Yahweh se destaca pela sua proposta sui generis de
organização política. Organizada basicamente por escravos e
fugitivos dos diferentes modos de produção circunvizinhos – os
sem direitos, denominados de hapirus, insatisfeitos com suas
experiências de vida sub-humanas –, esta sociedade tribal é
153
gestada, no vazio existente das montanhas de Canaã, segundo os
princípios da liberdade, da justiça e da igualdade. Para esta
construção, foi necessário um paulatino, mas rigoroso processo
de amalgamas de diferentes culturas que ali se aninharam a
procura de refúgio. E para fazer frente à demanda comum de
todos os hapirus, foi necessária a criação de um modelo
alternativo, pautado pela memória da falta de liberdade, da
falta de justiça e da falta de igualdade.
Para tanto, houve busca de modelos no passado das
diferentes tradições, a procura por elementos que pudessem
auxiliar na resposta às demandas sociais que se iam formando
ao longo do processo de sedimentação das tribos de hapirus nas
montanhas de Canaã. Mesmo o modo de produção escravocrata
egípcio pôde ofertar subsídios religiosos/ideológicos para
esta nova construção social. O monoteísmo foi um exemplo
disto. O monoteísmo possibilitou aos hapirus organizadores deste
novo modo de produção libertário, justo e igualitário,
constituir uma federação tribal, cuja coesão provinha de uma
entidade divina (virtual); uma teocracia inédita, sem
sacerdotes detentores de poder (ex.: levitas); uma teocracia
monoteísta na qual um único Deus, Yahweh, uma dentre várias
divindades hapirus, foi eleita para ser o garante da federação
tribal; uma teocracia embasada numa aliança conjunta, num
contrato social feito, não entre hapirus, mas entre o povo hapiru
e sua divindade eleita. Mais tarde, esta federação tribal, sob
o controle de Yahweh, tornou-se conhecida como as Tribos de
Yahweh.
154
Durante duzentos anos este modo de produção agrícola e
pecuarista de animal de pequeno porte, libertário, justo e
igualitário vingou, apoiado por códigos legais mais rigorosos
que os cananeus, no meio dos quais as Tribos de Yahweh surgiram
e se firmaram como povo com identidade e história própria
(memória histórica). Leis que estimulavam a solidariedade e
inibiam a estratificação social. Leis que asseguravam o pacto
realizado entre o povo hapiru e seu Deus nacionalista, o
garantidor de todo o projeto social em construção. Leis que
forjaram alianças entre as diferentes culturas que nas
montanhas se instalaram, exigindo a profissão de fé (voto) ao
pacto estabelecido por todos os moradores e trabalhadores da
região, não permitindo a influência de outros modos de
produção perniciosos ao projeto inédito e insipiente.
Este projeto foi substituído pelo reinado de Davi, que
promoveu uma reestrutura ideológica, procurando extinguir o
poder teocrático das Tribos de Yahweh, e recolocando no seu
lugar o velho modelo de reinado, em 1.050 a.C. Com o vácuo
deixado pelas potências estrangeiras e com o fortalecimento
das Tribos de Yahweh, houve quem desejasse ascender e ocupar
militarmente o espaço vazio do poder na região. Esta mudança
permitiu que influências nocivas se infiltrassem na
organização, destituindo-a de seus princípios mais básicos,
como os da liberdade, justiça e igualdade.
Para fazer frente a esta derrocada do modo de produção
alternativo e querido, hapirus politicamente estabelecidos e com
a memória sempre presente da história da formação das Tribos
de Yahweh, chamados de profetas, se propuseram a defender o
155
velho modelo de teocracia, sem reis. O Decálogo nasce em meio
a esta luta ideológica e política, com o fim de resgatar os
alicerces de um modelo ímpar, que ficara registrado na memória
do povo como um período mágico, onde Yahweh era o único Senhor,
onde todos viviam em liberdade, onde todos encontravam um
aparato legal que os defendia com justiça, e onde todos eram
tidos como iguais diante de um só Senhor: Yahweh.
O Decálogo, assim, surge como um compêndio que sintetiza
magistralmente os princípios norteadores da construção deste
modelo social sui generis na história da humanidade, conhecido
como as Tribos de Yahweh. Decálogo que reúne leis
primordialmente políticas e essencialmente jurídicas, mesmo
que religiosas. Decálogo que, a despeito de sua natureza
religiosa, reúne leis que foram o motor do surgimento de uma
organização sociopolítica de dimensões históricas para toda a
humanidade. Nesta direção, poder-se-ia dizer que o Decálogo,
ao reunir todas estas leis humanitárias, transformou-se como
se numa Constituição de um Estado. Decálogo que foi registrado
em papel e introduzido num cânon sagrado hapiru (Torá) e
repassado à história humana como acerco comum a todas as
nações política e juridicamente instituídas.
Mais de dois mil anos depois, no século XVII e XVIII
d.C., surgiram experimentos teóricos similares ao experimento
hapiru. A sociedade moderna deu seus primeiros passos à
instituição de um aparato sociopolítico, estruturado sem rei
ou grupo oligárquico, mas encabeçado por um ente virtual. Uma
associação proposta por iguais, libertos e que procuraram
justiça social, e que exigia para tanto, um pacto entre o povo
156
e este ente virtual, chamado de Estado. Um Estado coercitivo,
alicerçado em códigos legais que confirmavam e mantinham o
pacto social, fomentando segurança (liberdade), justiça
judiciária (justiça), igualdade a despeito das diferenças
(igualdade); ou seja, direitos sociais tão humanos e amplos
quanto os encontrados no Decálogo, fruto de um experimento
social vivenciado por duzentos anos, três mil anos antes.
Experiências que foram sendo repassadas de horizonte histórico
a horizonte histórico, até o horizonte brasileiro do século
XXI.
O Decálogo, assim, é mais que um conjunto de máximas
morais, exigindo das pessoas um comportamento meramente
religioso, como: a) não orar para exus ou outras divindades
que não à trindade cristã (1º Mandamento); b) não exclamar
“Santo Deus!”, ou “Jesus Cristo!”, ou “Ave Maria!” em vão (2º
Mandamento); c) ir para a igreja aos domingos, comungar e/ou
se confessar (3º Mandamento). Os três primeiros Mandamentos do
Decálogo encobrem uma riqueza muito maior: a) propõem a
segurança de um ente virtual que estrutura sociedades
política, econômica e socialmente concretas; b) viabilizam o
comércio e meios seguros para contratos jurídicos; c) defendem
benefícios no trabalho, harmonizando o ser humano física,
emocional e socialmente dentro do contexto da natureza,
fomentando práticas ecológicas, de cidadania e de respeito
pelo diferente (raças, estrangeiro).
O Decálogo é fruto da história da humanidade e carrega
dentro de si a somatória de experiências sumamente importantes
para toda convivência humana. Nele pulsa em potência o germe
157
da liberdade, da justiça e da igualdade, desabrochando como
semente adormecida sempre que cair em solo fértil, pronto para
brotar e fazer surgir uma nova sociedade sui generis, a partir dos
diferentes contextos onde estes três princípios não existirem,
a exemplo da primavera árabe. A humanidade tem uma alma e...
existe um tesouro enterrado no campo (Mt 13.44).
158
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