Upload
independent
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
XIV Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ENANCIB 2013)
GT 9 – Museu, Patrimônio e Informação
Comunicação Oral
O COMPUTADOR CAIPIRA, O FATO MUSEOLÓGICO E A IDENTIDADE
MARAJOARA
Karla Cristina Damasceno de Oliveira – UNIRIO/MAST
Luiz Carlos Borges – UNIRIO/MAST
Resumo Nossa proposta, nesta comunicação, é discutir o patrimônio cultural como uma subcategoria
do fato museal, tendo como objeto específico de análise o aparato denominado “computador
caipira”, que integra a exposição de longa duração do Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo
(MdM). A escolha deste aparato, dentre um conjunto de outros que fazem parte do acervo do
MdM, reside principalmente em sua especificidade formal e didática, no fato de ter sido
projetado pelo criador do MdM e, finalmente, por ser um típico aparato hands-on, feito com
recursos tecnológicos rústicos. No que tange a questões de ordem teórica, falar em fato
museal remete, em primeiro lugar, ao conceito de fato social total, formulado por Marcel
Mauss e, em segundo, aos estudos de Waldisa Rússio Camargo Guarnieri que, na teoria
museológica brasileira, foi uma das pioneiras no uso desse conceito, o qual resulta de uma
transposição, para o campo da museologia, do conceito maussiano. Ao analisar o
“computador caipira” como um fato museal, objetivamos mostrar, não apenas a
operacionalidade desse conceito-chave para compreendermos o museu e sua função, mas
principalmente remontarmos ao contexto histórico e cultural em que Giovanni Gallo concebeu
e elaborou o MdM e sua exposição.
Palavras-chave: Museu. Patrimônio. Marajó. Computador Caipira. Fato Museal.
THE HILLBILLY COMPUTER, THE MUSEUM FACT AND THE MARAJOARA
IDENTITY
Abstract We propose, in this paper, to discuss the cultural heritage as subcategory of the museum fact,
as we focus on a particular apparatus so-called “hillbilly computer”, that is part of the long-
term exhibition of the Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo (MdM). We chose this
particular apparatus, among others that are part of the MdM’s collection, especially because
its specificity both formal and didactics, because it was designed by the MdM’s creator and,
finally, for being a typical hand-on apparatus which was made with homely technological
resources. As for questions of theoretical order, to deal with museum fact implies, in the first
place, some references to the concept of total social fact, as it was developed by Marcel
Mauss, and, secondly, to the museological studies of Waldisia Russio Camargo Guarnieri
who was a pioneer, in the history of the museum theories, to use Mauss’ concept. When
analyzing the “hillbilly computer” as a museum fact, our aim is to demonstrate not only the
operability of the key concept to help us understand museum and its function, but mainly to
trace back the sociocultural context in which Giovanni Gallo had conceived and designed the
MdM and its exhibition.
Keywords: Museum. Heritage. Marajo. Hillbilly Computer. Museum Fact.
1 INTRODUÇÃO
A cidade de Cachoeira do Arari, localizada na Microrregião dos Campos da Ilha do
Marajó (Estado do Pará), abriga o Museu do Marajó Pe. Giovanni Gallo (MdM). A
participação dos moradores locais foi e continua sendo fundamental tanto para a existência do
Museu, como para sua manutenção. Desde o falecimento de seu fundador, o Pe. Giovanni
Gallo, em 2003, a gestão da Instituição vem sendo feita por uma diretoria formada por
cidadãos de Cachoeira do Arari. A situação atual do MdM não é das melhores, em face das
muitas dificuldades financeiras que os gestores enfrentam para conseguir manter aberta a
Instituição.
Fundado em 1972 na cidade vizinha de Santa Cruz do Arari1, o MdM dispõe de um
representativo acervo do patrimônio cultural do Marajó, composto por peças arqueológicas e
etnográficas: urnas, vasilhas diversas; instrumentos de ferro remanescentes do período da
escravidão negra; objetos utilizados em rituais de pajelança cabocla. Dentre outros temas
referentes ao universo marajoara, há também espécimes representantes da fauna local,
taxidermizados. O acervo do MdM, cuja origem análoga à própria existência do Museu, uma
vez que ambos são voltados e dependem prioritariamente dos moradores locais, iniciou-se a
partir da doação que um morador da cidade de Sta. Cruz do Arari fez ao Pe. Gallo de
fragmentos de artefatos arqueológicos. Esse fato, por sua vez, despertou em Gallo o interesse
pela criação da instituição museológica. Desse modo, Gallo - um jesuíta nascido em Turim no
ano de 1927 e que escolheu como missão trabalhar na Amazônia –, com a criação do MdM,
opera no Marajó um processo de musealização que tem no homem marajoara, do passado e do
presente, o seu ponto de partida e seu ponto de chegada, uma vez que para ele o homem era a
peça mais valiosa e que o museu deveria ser, através da cultura, um polo de desenvolvimento.
Gallo (Figura 1), que também era museólogo2, tinha, entre as suas matrizes teóricas,
no que tange ao museu e à sua função social, pensadores como Rivière, de quem
compartilhava a concepção de que o objeto etnográfico e arqueológico, enquanto documento e
arquivo, desempenhava um importante papel como testemunha histórico-sócio-cultural; ou
como Paulo Freyre, com quem se identificava quando se tratava de tomar o homem como
1 Embora tenha sido fundado em Santa Cruz do Arari, o Museu do Marajó teve de ser transferido para a cidade
vizinha de Cachoeira do Arari, em 1984, devido a problemas políticos e religiosos que Giovanni Gallo enfrentou
naquela cidade 2 Giovanni Gallo era museólogo e possuía o registro nº 20 no COREM – Conselho Regional de Museologia – 6ª
Região. Gallo também desempenhou a função de Secretário de Cultura do município de Cachoeira entre os anos
de 1989-1992.
principal agente e a educação como a força-matriz do desenvolvimento social; ou, ainda,
como Mayrand, com quem se aproximava no que tange à concepção do homem como o
protagonista de sua história e das mudanças sociais. Não é, portanto, à-toa, que o tratamento
museográfico dado ao MdM o configura como um museu, efetivamente, construído pela e
para a comunidade local. Além do mais, o MdM também se destaca por seu projeto
expográfico, caracterizado pelo “pode tocar” e, particularmente, pelo que Gallo denominou de
“computador caipira”.
Figura 1: O jovem Gallo, quando ainda estava no seminário.
Fonte: Acervo Museu do Marajó.
Neste trabalho, a partir do foco analítico no “computador caipira”, discutiremos acerca
do patrimônio cultural, tomando-o como fato museal. Trata-se de um recorte, tanto tempo-
espacial, quanto teórico, que nos remete à contribuição de Waldisa Rússio Camargo
Guarnieri, cujos estudos, de matriz sociológica – ou melhor, em que conceitos da Sociologia
foram deslocados para a Museologia -, estavam, de certo modo, decalcados no conceito de
fato social total, elaborado por Marcel Mauss.
2 PATRIMÔNIO, OBJETO E ARTEFATO
O campo de estudos do patrimônio, bem como as suas categorias e subcategorias
(material/imaterial; tangível/intangível; histórico; cultural; ambiental, documental, científico,
integral etc.), em seu desenvolvimento histórico e teórico-metodológico, remete à noção-
matriz moderna de monumento histórico e não à noção jurídica de bem patrimonial, tal qual
como consagrada no Direito Romano e, vigorando até hoje, na gestão e administração (quer
pública, quer privada). A moderna noção de patrimônio tem relação com a capacidade
simbólica de mobilizar a memória de determinado grupo, através da afetividade,
possibilitando um certo tipo de vinculação com o passado (rememorado) e com a preservação
da identidade (CHOAY, 2001; GONÇALVES, 2007). A categoria de monumento histórico
refere-se a um objeto que, mediante procedimentos de avaliação, em geral associados a um
recorte político, histórico e cultural, passa a ser instituído como histórico, após sua criação.
Após a derrocada do estado monárquico, como resultado da Revolução Francesa
(1789-1799), os novos governantes viram-se diante da tarefa de (re)criar o estado francês em
bases republicanas e, com isso, reformatar a sociedade. É justamente nesse período que a
expressão “monumento histórico” passou a ser utilizada objetivando ressignificar a herança
cultural no contexto histórico e político de uma nova nação. Assim, esses monumentos foram
institucionalizados. Esse movimento fez surgir os primeiros instrumentos de preservação, bem
como a noção de monumento nacional. O objetivo claro dessas medidas, ou antes, dessa
ressignificação, era salvaguardar da destruição os imóveis e obras de arte – em certo sentido,
uma parte importante da história e da memória da França -, que antes pertenciam ao clero e à
nobreza, convertendo-os em propriedades do Estado e, por conseguinte, do povo francês. É
significativo, desse movimento de tornar público o que antes era privilégio da nobreza e do
clero, a transformação, em 1793, do antigo palácio do Louvre em museu de arte, o qual, ao
longo do tempo, se tornou um modelo de museu de arte, reproduzido em diversos países.
Ao longo dos novecentos, países europeus criaram instituições e mecanismos para a
salvaguarda e conservação de seus patrimônios nacionais, construções e objetos tidos como
modelos de arte, representantes da beleza, grandeza e da excepcionalidade, norteados pelas
ideias de autenticidade e permanência (SANT’ANNA, 2009). Após a II Grande Guerra, o
conceito de patrimônio cultural amplia-se. Nas novas condições históricas – a reestruturação
da Europa; o deslocamento do centro do poder para os Estados Unidos e o que isso significa
de alteração no padrão cultural até então vigente – o termo patrimônio cultural passa a
abranger uma diversidade de processos e práticas culturais de um povo ou de uma sociedade,
ultrapassando os bens culturais tradicionalmente considerados e que se limitavam aos prédios,
à estatuária e às obras de arte. De acordo com Borges, o termo patrimônio cultural refere-se,
resumidamente, a um conjunto aberto composto por “aspectos e feitos essenciais da vida
cotidiana, portadores de referências à identidade e à memória de grupos formadores de uma
sociedade e que representam, valorizam, difundem e preservam a diversidade cultural de uma
nação” (BORGES, 2009, p. 366). Assim, em virtude de ser um fato histórico-social cujo
reconhecimento depende de sua relação a alguma coisa, para poder ser efetivamente tido
como patrimônio, um objeto cultural precisa ser significativo, tanto para a sociedade quanto
para outros patrimônios correspondentes (BORGES; CAMPOS, 2012).
Guarnieri faz uma clara distinção entre objeto e artefato. Para ela, “objeto é tudo o que
existe fora do Homem, aqui considerado um ser inacabado, um processo” (GUARNIERI,
2010a, p. 204). Para essa autora, ainda,
a paisagem modificada pelo Homem, o Cenário no qual se desloca e realiza sua
trajetória, são também artefatos. São objetos, enquanto percebidos como elementos
da realidade, existentes fora do Homem e a partir de sua consciência. São artefatos
enquanto modificados ou construídos pelo Homem, que lhes dá função, valor e
significado (GUARNIERI, 2010a, p. 205).
Assim, podemos dizer que o objeto é percebido, enquanto o artefato é criado,
produzido ou funcionalizado. Dito de modo mais abrangente, o artefato constitui uma
subcategoria do objeto.
Musealizar, para Guarnieri, pressupõe preservar e aproximar pessoas e
objetos/artefatos, visto que “a preservação proporciona a construção de uma memória que
permite o reconhecimento de características próprias, ou seja, a identificação” (GUARNIERI,
2010a, p. 208). O processo de musealização leva em conta o valor documental e testemunhal
de que se hajam investidos determinados objetos, proporcionando distinção aos mesmos. Nos
termos de Guarnieri, “quando musealizamos objetos e artefatos com as preocupações de
documentalidade e de fidelidade, procuramos passar informações à comunidade; ora, a
informação pressupõe, conhecimento, registro e memória” (GUARNIERI, 2010a, p. 205). No
que tange à informação, ou melhor, ao seu caráter ontológico, o filósofo Cornelius Castoriadis
pondera que “o vivente não encontra no mundo exterior nenhuma informação”. O que é o
mesmo que dizer que na natureza não há informação de espécie alguma, uma vez que a ideia
de informação, para este autor, “implica a idéia de um para-si, de alguém para quem tal
ocorrência é informação” (CASTORIADIS, 2007, p.79). Mais especificamente, “só há
informação quando é dada uma ‘base’ para a qual ela faz sentido enquanto informação, sem
isso ela é nada ou apenas ruído” (CASTORIADIS, 2007, p. 80). Qual seja, para que algo
possa ser concebido como informação (e a informação museológica, em particular), é preciso
que faça sentido; o que é o mesmo que dizer que precisa ter ressonância histórica e memorial
para um determinado sujeito (individual ou coletivo).
De maneira que, além do valor e do significado atribuídos a objetos e artefatos, são
características que orientam às ações de preservação e de musealização a relação intrínseca
(relação a...) entre esses elementos e a história e a memória social da comunidade (seja esta
entendida em escala micro, isto é, local, ou em escala macro ou planetária).
Em suma, ao falarmos de patrimônio cultural é preciso levar em conta, em primeiro
lugar, o valor de objetos e artefatos (valor de uso e valor de troca, ou, em ainda, valor de
exposição e valor e culto; valor testemunhal, valor documental; valor histórico, artístico ou
científico-tecnológico), bem como sua relação com a memória (da qual não se pode excluir o
afeto3) e com a história. Em termos semiológicos, o patrimônio (qualquer que seja a sua
acepção ou categorização) opera como um dêitico que, em relação ao sujeito, aponta para um
determinado evento tempo-espacialmente determinado.
3 O FATO SOCIAL TOTAL E O FATO MUSEOLÓGICO
O antropólogo Marcel Mauss (1974) desloca e amplia o conceito de fato social total
desenvolvido por Émile Durkeim (2007), ao aplicá-lo em suas análises das trocas nas
sociedades tradicionais (ou arcaicas, na linguagem antropológica da época). Em sua acepção
mais ampla, o fato social total deve ser compreendido a partir de duas percepções de
totalidade: a primeira, no sentido de que todos os fenômenos humanos de natureza econômica,
cultural, política estão incluídos na constituição mesma da sociedade; e a segunda, no sentido
de que os bens produzidos pelos membros das comunidades têm uma dupla face, conquanto
constituam uma unidade indissociável: uma, material (seu suporte e sua utilidade); outra,
simbólica (seu significado, relação com os afetos2 e a memória, seu valor de culto). Mauss
observou, ainda, que a lógica mercantil moderna não substitui, apesar dos contatos e das
transferências culturais daí decorrentes, as antigas formas de constituição dos vínculos e
alianças entre os seres humanos, havendo constatado que tais formas ainda continuavam
presentes nas sociedades modernas. Para ele, algumas modalidades de trocas têm a função de
um fato social total. Para ele, os fatos, ou fenômeno, sociais totais
exprimem-se, de uma só vez, nas mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e
morais - estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo —; econômicas — estas
supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento
e da distribuição —;sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos
e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam (MAUSS, 1974, p.
187).
3 O termo afeto é aqui usado de modo bastante cauteloso, devido, primeiro, as suas implicações psicologizantes
do processo sócio-histórico, mas principalmente, por aquilo que “afeto” significa no campo psicanalítico. Em
termos gerais, afeto está indissociavelmente ligado às representações pulsionais e, como tal, às lembranças e a
eventos desencadeadores de uma descarga energética (o quantum de afeto), cujo escopo é variado e não
determinado a-priori, indo “desde lágrimas aos atos de vingança” (KAUFMANN, 1996, p. 11).
Mauss entende, em sua máxima extensão, a sociedade como um fato social total, visto
que, em sua interpretação, esta é baseada num sistema de prestações e contraprestações,
obrigações que, não necessariamente, são absolutas, na medida em que os membros da
coletividade dispõem de certa liberdade para entrar ou sair do sistema de obrigações. Afirma,
ainda, que é possível observar a presença constante de um sistema de reciprocidades de
caráter interpessoal, ao qual que ele denominou de “dom ou dádiva”, e que nada mais é do
que uma tríplice obrigação coletiva, altamente ritualizada, de dar, receber e devolver bens
culturais. Um dos cenários em que a dádiva pode ser recorrentemente realizada é o da
promessa ou, ainda, como em certas culturas orientais, as oferendas deixadas aos mortos.
O fato social total possui consequências tanto na estrutura da vida social, quanto nas
relações e especificações intra e intersociais. Ele seria a união entre coisa (o percebido) e
representação (valor atribuído). Além do mais, requer a assunção de que o observador é,
também, parte da observação. Dessa forma, o fato social total apresenta-se em forma triádica,
ao concentrar em si uma característica histórica, uma psicológica e outra sociológico-
comunicacional.
Tanto o pensamento museológico, quanto a trajetória profissional de Waldísa Rússio
Camargo Guarnieri são marcados, de acordo com Cândido (2010), pelas Ciências Sociais, em
especial pelas teorias sociológicas de Émile Durkheim, bem como pelo desenvolvimento que
essas tiveram na obra de Marcel Mauss. Sob a influência desses autores, ela desenvolveu o
conceito de “fato museológico” ou “fato museal”, o qual se caracteriza pela "relação profunda
entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, parte da realidade à qual o homem também
pertence e sobre o qual tem o poder de agir, num cenário institucionalizado, o museu"
(GUARNIERI, 2010a, p. 204). No contexto especificamente museológico e patrimonial, o
objeto deve ser compreendido como bem cultural e, este, como qualquer ato ou símbolo
produzido e compreendido pelo sujeito. Isso permite dizer, por seu turno, que, no que
concerne ao espaço comunicativo e discursivo do museu, a relação entre o sujeito e o objeto
(na maioria das vezes espacial e culturalmente deslocado) se estabelece sem outro
intermediário, além do museu e de seus aparatos tecno-ideológicos.
Para que seja possível, dentro do universo dos museus, conceituar um bem cultural
como fato museológico (ou museal), devemos considerar, dentre outras coisas, a relação em-si
(isto é, interna ao bem, o que significa contextualizá-lo histórica e culturalmente) e a relação
para-si desse objeto ou bem cultural, o que, em termos de Guarnieri, “significa ‘percepção’
(emoção, razão), envolvimento (sensação, imagem, ideia), memória (sistematização das
ideias, imagens e suas relações)” (GUARNIERI, 2010b, p.123).
4 A EXPOSIÇÃO E O “COMPUTADOR CAIPIRA”
As exposições são discursos que “falam” através dos signos. Em sua forma
materializada, esses signos são, muitas vezes, acontecimentos; outras, objetos. Com relação a
esses últimos, Meneses ressalva que os objetos, em si mesmos, só dispõem de propriedades
físico-químicas e que, por conseguinte, “os sentidos e valores não são sentidos e valores das
coisas, mas da sociedade que os produz, armazena, faz circular e consumir, recicla e descarta,
mobilizando tal ou qual atributo físico [...] segundo padrões históricos, sujeitos a permanente
transformação” (MENESES, 1994, p. 27). Essas duas noções são importantes para demarcar o
fato de que, quer discursiva, quer comunicativa, quer museograficamente, uma exposição
atinge seu télos, isto é, sua plenitude quando é, em diversos níveis e graus, apropriada pelos
visitantes. De todo modo e para todos os fins, toda exposição, em sua discursividade, será,
sempre marcada “pela opacidade e pela incompletude” (CAMPOS; BORGES, 2012, p. 126).
Ainda segundo esses autores, com relação ao discurso, as exposições podem ser classificadas
em duas categorias: a) exposições parafrásticas – quando os bens culturais, espaço e público
pertencem à mesma formação histórico-ideológica; b) exposições polissêmicas – quando
objeto, espaço e público pertencem a ordens ou formações histórico-ideológicas distintas e há,
entre eles, uma distância cultural irredutível.
Vemos aqui a possibilidade de distinguir, a partir desses dois tipos de exposição e
remetendo-nos ao conceito de Guarnieri quanto a objeto museal, que, quando a distância
cultural (isto é, histórica, simbólico-imaginária e memorial), entre a exposição e o visitante
haverá sempre, com relação ao tipo polissêmico, a falta de dois elementos que a autora
considera essenciais: o envolvimento e a memória. Mas, é justamente essa ausência imediata
de ressonância (GONÇALVES, 2007) - presença de baixo grau de ressonância aliada a
nenhum grau de aderência - que permite ao visitante o preenchimento, ainda que inacabado,
da falta, mediante o recurso à sua própria memória e imaginário, alargando, com isso, as
possibilidades interpretativas da exposição.
Dessa forma, no que se refere aos bens culturais, podemos inferir que a exposição
(Figura 2) de longa duração do Museu do Marajó é do tipo parafrástica, pois os objetos ali
expostos, em relação à comunidade do entorno, denotam um alto grau de ressonância e de
aderência. Numa exposição polissêmica, o nível de aderência é baixo, se considerar-se que o
bem cultural e o público não compartilham da mesma cultura (BORGES, 2011; BORGES;
OLIVEIRA, 2011; CAMPOS; BORGES, 2012). A exposição de longa duração do Museu do
Marajó, enquanto parafrástica serve como um canal para que “o mesmo” se expresse e se
evoque. Qual seja, tanto museológica, quanto museograficamente, o MdM pode ser
considerado como um museu de/em primeira pessoa (ABREU, 2012).
Figura 2: Visitante manipula "computador" na exposição de longa duração do MdM. Foto: Karla de Oliveira, 2011.
O Museu do Marajó conta, já há algum tempo, somente com a mesma exposição de
longa duração, que fora originalmente concebida e montada por Gallo. Entretanto, após o
falecimento de Gallo, foi elaborado um “computador” (Figura 3) com o objetivo de realizar
exposições itinerantes (OLIVEIRA, 2012).
Figura 3: “Computador caipira” elaborado para exposições itinerantes. Foto: Paulo de Carvalho, 2008.
Um dos grandes destaques do MdM, e que constitui um dos elementos da sua
originalidade é justamente o seu projeto expográfico. Dentre os elementos que fazem parte
dessa expografia, sobressaem os aparatos aos quais Pe. Gallo denominou de “computadores
caipiras”. Trata-se de instalações de estrutura simples, compostas por uma série de
mecanismos que podem ser manipulados pelos visitantes. De acordo com Gallo,
quanto mais o visitante mexe com os painéis, mais novidades ele descobre e isto
através de recursos que nós, numa forma não pretensiosa e sim brincalhona,
definimos como computadores de marca caipira. Com o recurso de barbantes,
tabuinhas, placas móveis, tudo é inspirado nalgum artefato de estilo popular que,
quando manipulado, desvenda os seus segredos, exatamente como computador de
verdade (GALLO, 1996, p.260)
Confeccionados com madeira e fios de algodão, “os computadores” aguçam a
curiosidade do público, graças ao seu apelo à interatividade. Talvez por isso, Gallo tenha
projetado a exposição como um brinquedo, montado a partir da utilização de materiais
facilmente encontrados na região. Os “computadores” foram idealizados por Gallo, que
elaborava os modelos em um programa de computador e os repassava para Otaci Gemaque,
que os executava: “então, quando chegava de manhã ele falava que tinha pensado num
computador assim, assim. Dá pra você fazer? Enquanto ele tava falando eu já tava pensando
em como fazer” (GEMAQUE, 2012, p.74-75). De acordo com os levantamentos realizados
sobre o MdM e seu criador, verificamos que Gallo criou várias gerações de “computadores
caipiras” (OLIVEIRA, 2012).
Para além de sua importância no jogo semiológico, enunciativo e comunicacional da
exposição, tal qual Gallo a concebera e realizara, a partir de uma concepção museológica e
museográfica cujas matrizes já foram anteriormente mencionadas (o homem como
protagonista, os objetos musealizados como testemunhas histórico-sócio-culturais, a educação
como força-motriz do desenvolvimento e o museu como agente educativo), os “computadores
caipiras” também merecem destaque por, de acordo com os critérios propostos por Guarnieri,
se enquadrarem na categoria de objeto museal, considerando-se que facilitam a percepção
(emoção, razão), e o envolvimento (sensação, imagem, ideia), além de estimularem a
memória (sistematização das ideias, imagens e suas relações) acerca daquilo que a exposição,
metonimicamente, representa da realidade amazônica.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao criar o Museu do Marajó, Pe. Gallo tinha por objetivo possibilitar a aproximação (e
a apropriação) dos moradores locais com uma parte importante de sua história e de seu modo
de ser. Isto é, com aquilo que, embora fosse familiar a essas pessoas, não tinha, até então, a
relevância que deveria ter. Em certo sentido, podemos dizer que enquanto agente de
mudanças, MdM propiciou o (re)encontro dos marajoaras com seu patrimônio (histórico,
etnográfico, artístico, linguístico, arqueológico). A criação do MdM e a musealização de
vários elementos representativos do patrimônio marajoara serviram de ponto de encontro
entre a comunidade e sua história. O projeto museológico de Gallo, os elementos selecionados
e musealizados contribuíram, junto à comunidade local, para o reconhecimento, a valorização
e a identificação do que é ser marajoara. A relação, proposta por Guarnieri e na qual devem
ser consideradas a emoção, o envolvimento e a memória, encontra-se posta no MdM e em sua
exposição. Dadas as suas características funcionais e semiológicas, o “computador caipira”
destaca-se com um bom exemplo de fato museal.
Como componente da exposição do MdM, o “computador” é o elemento que
possibilita, e facilita, ao mesmo tempo, a percepção do visitante (observador) sobre a
realidade museografada, e o fato de que ele é o elemento principal e fundamental da coisa
observada. E essa integração e percepção possibilitada pelo “computador” - ao mexer nos
painéis, puxar barbantes, girar manivelas, ou seja, tocar e manipular elementos tão próximos
de sua realidade, tão familiares ao grupo local -, foram, de fato, o fio condutor da obra
museológica de Gallo: o museu que foi criado por e para os marajoaras, qual seja, um museu
em primeira pessoa.
A aparente contradição dessa assertiva (de que o museu criado por Gallo foi concebido
por e para os marajoaras) pode ser esclarecida se lembrarmos que foram as doações de peças
arqueológicas e etnográficas, encontradas por moradores da região, que motivaram Gallo a
organizar não apenas um local de culto/exposição, mas um espaço que refletisse a identidade
marajoara e a partir da qual os moradores, reconhecendo-se nela, passassem a valorizar o seu
passado e, por conseguinte, sua própria formação histórico-cultural. Desse modo, podemos
dizer que Gallo, dadas as suas atividades e competência de missionário e de museólogo, atuou
como um agente organizador e emulador das potencialidades locais.
REFERÊNCIAS
ABREU, Regina. Museus indígenas no Brasil: notas sobre as experiências Ticuna, Wajãpi,
Karipuna, Galibi Marworno e Galibi Kali’na. In: FAULHABER, Priscila; DOMINGUES,
Heloisa Bertol; BORGES, Luiz C. (Orgs.). Ciência e fronteira. Rio de Janeiro: Mast, 2012.
p. 289-316.
BORGES, Luiz Carlos. Patrimônio cultural intangível, discurso e preservação. In
GRANATO, Marcus; RANGEL, Márcio (Orgs.). Cultura material e patrimônio da ciência
e tecnologia. Rio de Janeiro: MAST, 2009. p. 357-374.
______. Museu como espaço de interpretação e de disciplinarização de sentidos. Revista
Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS
Unirio / MAST, vol. 4, nº 1, 2011, p. 37-62. Disponível em <http://
revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus>. Acesso em 05. jan. 2012.
BORGES, Luiz Carlos; CAMPOS, Marcio D´Olne. Patrimônio como valor, entre ressonância
e aderência. In: ENCONTRO ANUAL DO SUBCOMITÊ REGIONAL DE MUSEOLOGIA
PARA AMÉRICA LATINA E O CARIBE – ICOFOM LAM. Termos e conceitos da
museologia: museu inclusivo, interculturalidade e patrimônio integral, 21,2012.
Petrópolis. Documentos de Trabalho... Petrópolis: Unirio/Mast, 2012. p. 1-8. (Organização:
SCHEINER, Teresa; GRANATO, Marcus, REIS, Maria Amélia).
______. OLIVEIRA, Karla Cristina Damasceno de. Pajelança Musealizada: o Museu do
Marajó e o imaginário marajoara. In: SIMEÃO, Elmira Simeão; FERNANDES, Jorge
Henrique Cabral; FREIRE, Isa Maria (Org.). Anais do XII Encontro Nacional de Pesquisa
em Ciência da Informação – ENANCIB e XII Encontro Nacional de Pesquisa em
Ciência da Informação. Brasília, DF: Thesaurus, 2011. - 1 CD-ROM. GT 9. p. 2818-2833.
CAMPOS, Marcio D´Olne; BORGES, Luiz Carlos. Percursos simbólicos de objetos culturais:
coleta, exposição e a metáfora do balcão. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi-
Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 113-130, jan./abr., 2012.
CÂNDIDO, Manuelina Maria Duarte. Teoria museológica: Waldisa Rússio e as correntes
internacionais. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Org.). Waldisa Rússio Camargo
Guarnieri – textos e contextos de uma trajetória profissional. Vol. 2. São Paulo: Pinacoteca
do Estado; Secretaria de Estado da Cultura; Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de
Museus, 2010, p. 145 – 154.
CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora
UNESP, 2001.
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
GALLO, Giovanni. O homem que implodiu. Belém: SECULT, 1996.
GEMAQUE, Otaci. Computador caipira. Entrevista concedida a Karla Cristina Damasceno de
Oliveira. In: OLIVEIRA, Karla Cristina Damasceno de. Curandeiros e pajés numa leitura
museológica. O Museu do Marajó Pe. Giovanni Gallo. 2012. Dissertação (mestrado)-
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Museologia e Patrimônio. Rio de Janeiro, Unirio, 2012. p. 74-75.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan-MinC, 2007.
GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo. Conceito de cultura e sua inter-relação com o
patrimônio cultural e a preservação. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Org.). Waldisa
Rússio Camargo Guarnieri – textos e contextos de uma trajetória profissional. Vol. 1. São
Paulo: Pinacoteca do Estado; Secretaria de Estado da Cultura; Comitê Brasileiro do Conselho
Internacional de Museus, 2010a. p. 203–210.
______. A interdisciplinaridade em museologia. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Org.).
Waldisa Rússio Camargo Guarnieri – textos e contextos de uma trajetória profissional. Vol.
1. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Secretaria de Estado da Cultura; Comitê Brasileiro do
Conselho Internacional de Museus, 2010b. p. 123–126.
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise. O legado de Freud e Lacan.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da história: a
exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: história e
cultura material. v.2. N. Ser. jan./dez. São Paulo: USP, 1994, p.9-42. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v2n1/a02v2n1.pdf>. Acesso em 15. mai. 2011.
OLIVEIRA, Karla Cristina Damasceno de. Curandeiros e pajés numa leitura museológica.
O Museu do Marajó Pe. Giovanni Gallo. 2012. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio. Rio
de Janeiro, Unirio, 2012.
SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de
reconhecimento e valorização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.). Memória e
patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009: p. 49-58.