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Hist6ria Econ6mica de Portugal 1700-2000 , Volume I 0 Seculo XVIII Organ iza<;ao Pedro Lains Alvaro Ferreira da Silva lmprensa de Ciencias Sociais

Moeda e Crédito

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Hist6ria Econ6mica de Portugal

1700-2000

,

Volume I 0 Seculo XVIII

Organ iza<;ao

Pedro Lains Alvaro Ferreira da Silva

lmprensa de Ciencias Sociais

Maria Manuela Rocha Rita Martins de Sousa

Capitulo 7

Moeda e credito

As moedas de ouro cunhadas na epoca de D. Joao V e de D. Jose I marcaram um seculo que, na traduc;ao de alguns autores coevos e nas interpretac;oes historiograticas posteriores, pode ser considerado um secu­lo perdido!. Teria sido perdida a oportunidade de desenvolver uma eco­nomia semiperiferica no contexto europeu, apesar do enorme fluxo do ouro transportado do Brasil. Mas, se o crescimento nao ocorreu a Iongo prazo, as vagas de ouro chegadas ao reino explicarao a conjuntura da cen­turia, que se teria invertido na sua segunda metade, momento em que se regista uma diminuic;ao das remessas origimirias do subsolo brasileiro2.

Estas sao questoes com que deparamos ao apresentar uma perspectiva da moeda neste seculo. 0 seu aprofundamento implica a necessidade de des­dobrar series ate aqui tratadas em conjunto, sob a designacyao global de «chegadas de ouro». Aferir algumas das conclusoes tradicionalmente apre­sentadas na nossa historiografia implicani a divisao dessas chegadas em remessas de ouro, emissoes monetarias no Brasil, emissoes monetarias no reino, destinatarios das emissoes.

1 Melo (1861); Cortesao (1950-1956), t. III; Pinto (1979); Azevedo (1988). 2 V. Sideri (1978), Mauro (1991), Macedo (1989b), Godinho (1990), pp. 477-495 e

Serrao ( 1993 b).

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Hist6ria Econ6mica de Portugal (1700-2000), val. 1

Este urn dos vectores que orientarao a nossa analise da moeda no secu­lo XVIII. Afirmar que Portugal nao foi urn mero ponto de passagem do ouro brasileiro, ainda que grandes quantidades do metal chegado ao reino tenham tido por destino em particular a Europa e, sobretudo, a Inglaterra, implica compreender os efeitos que as remessas de ouro produziram na oferta e na circula9ao monetaria nacionais. Urn segundo aspecto incide sabre a polftica monetaria definida pelo Estado, apresentando-se a centu­ria de Setecentos como urn perfodo de viragem estrutural, uma vez que se assiste a uma mudan9a face a experiencia preterita. 0 recurso as desvalo­riza96es foi abandonado perante novas fontes de arrecada9ao fiscal e novas entendimentos sabre a forma de suprir o crescimento da despesa pt1blica.

Seculo de aumento das chegadas de ouro, este foi tambem urn periodo marcado pelo dinamismo das transac96es de credito entre particulares. 0 desconhecimento sabre a dimensao global da oferta de capitais e a sua evolu9ao ao Iongo do seculo XVIII impede uma articula9ao entre o aumen­to das emissoes monetarias e a actividade crediticia. Os efeitos desta para o desempenho da economia portuguesa durante este seculo permanecem tambem como tema a investigar. Restri96es por enquanto impossiveis de superar, a analise sabre o credito privado que se fara neste texto orienta-se para a compreensao dos instrumentos de credito predominantes, a evolu-91io verificada a este nivel e para as caracterfsticas do sistema de empres­timos privados. Surpreendem-se os contornos de uma mudan9a no merca­do fiduciario que se prepara no final do seculo e detecta-se a dispersao na concessao de capitais. A ausencia de especialistas na intermedia9ao entre a oferta e a procura de dinheiro revela os sinais, como veremos, de uma actividade crediticia em que muitos estavam interessados em participar, mas em que poucos se predispunham a concentrar uma importante fatia dos seus recursos financeiros.

0 contexto monetario

Algumas das caracterfsticas do quadro monetario setecentista proce­dem de seculos anteriores: o regime monetario bimetalista ouro-prata, que datava de 1253, seguiu o seu curso secular (Valerio, 1991); a exclusivida­de da coroa em mandar bater moeda, expressa nas Ordena96es Afonsinas, continuou no seculo XVIII; o real e ainda a unidade monetaria que vinha vigorando desde 1435. Mas o seculo XVIII monetario nao registou apenas

2IO

Maeda e credito

continuidades em rela9ao a seculos anteriores. Uma parte do trafico atlan­tica foi alimentado por fluxos de chegadas de ouro que, para alem de terem contribuido para a manuten9ao de urn Estado patrimonialista3, imprimiram tambem caracterfsticas pr6prias a este seculo ao nivel, sobretudo, da poli­tica, oferta e circula9ao monetarias.

0 regime monetario caracterizou-se pela manuterwao do bimetalismo ouro-prata ate 1797, data a partir da qual a circula9ao das moedas de me­tais preciosos se juntou o papel-moeda. Apesar de em 1687 (decreta de 22 de Mar9o) terem sido instituidos os designados escritos da Casa da Maeda e entre 1766 (alvara de 21 de Junho) e 1771 (alvara de 23 de Fevereiro) o Estado ter concedido poder liberat6rio e curso for9ado aos bilhetes dos institutos privados, assim como as ac96es das grandes companhias comer­ciais, apenas em 1797 o papel-moeda passou a ser aceite em todas as transac96es e se tornou uma moeda fiduciaria inconvertivel4 . Estas emis­soes de moeda fiduciaria estiveram associadas as dificuldades financeiras do Estado5, tendo sido o emprestimo de 13 de Julho de 1797, no montante de 12 milhoes de cruzados, que deu origem ao papel-moeda. De facto, ao estabelecer que 25% do montante total do emprestimo - 1200 cantos -fossem emitidos em ap6lices de valor inferior a 50 000 reis deu-se inicio a circula9ao de mais um meio de pagamento (Cardoso, 1989). Proibida a sua emissao em 1800 (31 de Maio)6, a circula9ao destas ap6lices prolan­gau-se durante, pelo menos, os tres primeiros decenios do seculo XIX nos dois principais centros urbanos, Lisboa e Porto (Reis, 1996). Aceite com desconto, que chegou a atingir os 95% em 1834, desacreditou o Estado, que­brou as regras do bimetalismo.

Ao Iongo do seculo XVIII a politica monetaria em rela9ao a moeda metalica caracterizou-se pela estabilidade legaF. 0 pre9o do ouro mante-

1 V. Alvaro Ferreira da Silva, capitulo 8 deste volume.

4 Em 1687 decretou-se a recolha de toda a moeda cerceada, determinando-se que os re­

cibos dados em troca na Casa da Moeda tivessem curso obrigat6rio. Neste sentido alguns autores consideram aqueles recibos como a primeira forma especffica de papel-moeda existente em Portugal (Pereira e Silva, 1985).

5 V. Alvaro Ferreira da Silva, capitulo 8, e Jose Luis Cardoso, capitulo 12 deste volu­

me. 6

Apesar da proibiyao decretada em 1800, foram realizadas ainda duas emissoes de pe­quenos montantes em 1805 e 1807 (Pinto, 1839).

7 Recordamos que o regime monetario inclui todo o corpo legislativo que determina o

funcionamento e as caracteristicas dos instrumentos monetarios num determinado espayo Politico-econ6mico. Consideramos que existe politica monetaria em seculos anteriores a epoca contemporiinea, apesar de as manipulayoes monetttrias serem os (micos instrumentos

2 I I

II

Hist6ria Econ6mica de Portugal (1700-2000), val. 1

ve-se igual ao definido em 1688, enquanto o prec;o da prata se modificou duas vezes, em 1734 e em 1747. Assim, a relac;ao ouro/prata foi de 1:15,5 entre 1688 e 1 734, alterando-se nesta data para 1: 14,6, ocorrendo em 17 4 7 uma nova valorizac;ao da prata, passando a relac;ao legal a ser de 1:13,7.

Este quadro de estabilidade legal traduz alterac;oes nos objectives secu­larmente presentes ao nivel das politicas monetarias. Aumentar as receitas da coroa atraves de manipulac;oes monetarias e de receitas de senhoriagem deixou de ser o principal prop6sito (Macedo, Silva e Sousa, 2001) e, por conseguinte, tal estabilidade representa uma viragem estrutural. Se uma das linhas explicativas para esta politica monetaria se justifica pelo aumento da oferta de ouro, decorrente do aumento dos fluxos provenientes do Brasil, outra explicac;ao podera ser encontrada. Trata-se da coincidencia de interesses entre o Estado e o grupo mercantil a quem o primeiro solici­tou, por via do Conselho da Fazenda, varios pareceres sabre questoes mo­netarias ao Iongo do seculo XVIII.

A politica de desvalorizac;ao monetaria, como forma de obtenc;ao de receitas, deixou de ser ponderada pelo Estado, uma vez que a tributac;ao sabre o ouro do Brasil permitiu incrementar as receitas fiscais. De 1762 a 1776, cerca de 12% das receitas publicas foram obtidas atraves dos «quin­tos do ouro»; confrontando esta verba com a obtida nas casas da moeda, atraves das receitas de senhoriagem, concluimos que as Casas da Maeda do Brasil e de Lisboa representaram apenas 1,5% do total das receitas durante o mesmo periodo (Tomas, 1988). Se no caso portugues escas­seiam estudos sabre a evoluc;ao das receitas de senhoriagem, a considera­c;ao do que se verificou em Franc;a permite observar uma diminuic;ao secu­lar no total das receitas publicas8. Uma nova percepc;ao da relac;ao entre moeda e financ;as publicas estaria a ser moldada. 0 emprestimo pedido pelo governo portugues a Londres em 1762, que tinha como objective ultrapassar dificuldades financeiras na epoca das guerras com Castela, e disso exemplo. Este emprestimo externo, cuja garantia seria a frota do Rio

a disposiyao da coroa. Todavia, estas nao s6 vao reflectir-se em termos de taxa de ciimbio, como tambem atraves delas o Estado visa controlar a oferta monetaria e as suas pr6prias receitas fiscais, uma vez que detem a exclusividade de bater moeda (v. Sousa, 2003 e no prelo).

8 Em Franfi:a, as receitas de senhoriagem representavam 80% das receitas reais em

1420, passando para I% em 1788 (Marineau, 1987).

212

Maeda e credito

de Janeiro, era urn meio de acesso a mais recursos financeiros9. A conjun­tura era de guerra, mas a moeda nao foi potenciada como recurso fiscal.

Se estas sao as razoes perspectivadas pelo !ado do Estado, a satisfac;ao dos interesses dos homens de neg6cios setecentistas tera igualmente con­tribuido para o abandono da anterior politica de desvalorizac;ao. As altera­c;oes monetarias repercutiam-se nos prec;os dos bens importados, nao evi­tando, contudo, a saida de moeda do reino decorrente do defice comercial. Os negociantes interessavam-se pelo valor intrinseco da moeda, e nao pelo seu valor extrinsecoiO.

Melhorar a qualidade da moeda em circulac;ao foi outra das linhas orien­tadoras da politica monetaria. A preocupac;ao com a qualidade encontra-se presente desde finais do seculo XVII, o que se compreende pela circulac;ao nesse periodo de uma grande quantidade de moeda cerceada e falsificada. As guerras da Restaurac;ao tinham terminado e, com elas, uma epoca de intensas manipulac;oes monetarias e de circulac;ao de uma grande quanti­dade de moeda de prata espanhola sem o peso legal (Macedo, Silva e Sou­sa, 2001 ). Os esforc;os empreendidos para melhorar a qualidade da moeda em circulac;ao (Sousa, no prelo) visaram o aumento da credibilidade inter­na e externa da moeda, simbolo de poder e de riqueza no contexto das cor­rentes mercantilistas dominantes. No ambito da composic;ao das moedas em circulac;ao, as moedas de ouro viram a sua composic;ao alterada entre 1688 e 1732, estabilizando a partir desta data (quadro n.0 7.1). 0 cerceio foi uma das razoes evocadas para tais mudanc;as.

No caso das moedas de prata e cobre, a composic;ao das moedas em circulac;ao apresentou uma total estabilidade, como pode ser confirmado pela analise dos quadros n.05 7.2 e 7.3.

Par ultimo, no que se refere a politica monetaria do seculo XVIII, des­taque-se a orientac;ao no sentido da centralizac;ao das emissoes monetarias do reino. Se no Brasil abriram casas da moeda no Rio de Janeiro (1702), na Baia (1714) e em Vila Rica (1725), no reino, a partir de 1714, a Casa da Maeda de Lisboa desempenha o papel de unico centro emissorli.

9 Trata-se de urn emprestimo solicitado atraves de Martinho de Melo e Castro, repre­sentante portugues em Londres nesta data, cujo pedido foi recusado (IAN/TT, Ministerio do Reino, neg6cios militares, mayo 616, caixa 718).

10 BNL!fundo geral, c6dice 9860, 11.0 29.

11 A Casa da Moeda do Porto, cujo primeiro regimento data de 1429, teve como carac­teristica secular a intermitencia da sua laborayao. Reaberta em 1688 para cunhar exclusi­vamente prata, excepto no bienio de 1712-1714, em que foi autorizada a cunhar ouro, tudo indica que foi a partir de 1714 que a sua actividade cessou, apesar de a sua extinyao legal datar de 7 de Outubro de 1833.

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Hist6ria Econ6mica de Portugal (1700-2000), val. I

A abertura de casas da moeda alem-AtHintico e a centralizas;ao das emis­soes no reino foram meios encontrados pela coroa para controlar a evasao fiscal e o contrabando. Por sua vez, esta ops;ao teve consequencias no papel desempenhado pela oficina monetaria de Lisboa. Se no computo global, entre 1703 e 1797, Estado e particulares recorreram quase na mesma pro­pors;ao a Casada Moeda de Lisboa para amoedar ouro (54% e 46%, res­pectivamente), numa analise temporalmente mais detalhada encontramos diferens;as que importa destacar.

Moedas de ouro em circula~;ao (1688-1797)

(QUADRON° 7.1]

Valor Toque Tal he Peso Periodo de ' Designa~ao

(reis) (quilates) (marcos) (graos) amoeda-~ao

Dobra de oito escudos .. 12 800 22 8 576 1722-1732 Dobra de quatro escudos ......... 6 400 22 16 288 1722 Moeda .. 4 800 22 21 11, 216 1688-1732 Dobra de do is escudos ...... . ... 3 200 22 32 144 1722 Meia moeda. ......... . 2 400 22 42 21, 108 1688-1722 Escudo ............ .. . . . ... I 600 22 64 72 1722 Quartinho . . . . . . . . . . . . . I 200 22 85 11, 54 1688 Meio escudo ........... 800 22 128 36 1722 Cruzado novo .. 480 22 213 11, 18 1718

Nota: As datas inscritas na coluna relativa ao «perfodo de amoedayao» correspondem, respectivamente, a data de infcio e fim de cunhagem dessas moedas, considerando exclusi­vamente o periodo entre 1688 e 1797, pelo que s6 inscrevemos a segunda das datas quando essas moedas deixaram de ser cunhadas durante o referido perfodo.

A um primeiro periodo, entre 1703 e 1725, em que as emiss6es de ouro para os particulares atingem cerca de 90%, segue-se uma outra fase, entre 1726 e 1797, em que o Estado foi responsavel por quase 70% daquelas emiss6es (v. quadro n. 0 7.4). Explique-se entao tal comportamento.

0 ouro extrafdo em terras brasileiras era transportado para o reino em frotas comboiadas, regime de navegas;ao que vigorou ate 1765. Este ouro era descarregado obrigatoriamente na Casa da Moeda de Lisboa, onde se arrecadava o direito de 1% instaurado a partir de 172012. A composis;ao

12 V. Costa, Rocha e Sousa (2001). Note-se que a Casada Moeda de Lisboa, em 1720, passou da Rua da Calcetaria para as antigas instalayoes da Junta da Companhia Geral do

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Maeda e credito

das cargas transportadas era predominantemente em moeda para circular no reino13 . A concentras;ao espacio-temporal determinada pelo regime de frotas a partir de 1720, bem como a centralizas;ao das emiss6es em Lisboa, contribuiram para a ops;ao dos agentes econ6micos privados pelo trans­porte de ouro ja amoedado no Brasil. Assim se explica que a oficina monetaria da capital do reino se tivesse tornado a partir da segunda meta­de da decada de 1720, e ao nfvel do ouro, um importante centro de emis­s6es destinadas sobretudo a coroa.

Moedas de prata em circula~;ao (1688-1797)

(QUADRO N." 7.2]

Valor Toque

Tal he Peso Periodo de

Designa~ao (reis) (dinhei- (marcos) (graos) amoeda-

ros) ~ao

13.25 347 .77 Cruzado novo ... . . ... . .. 480 II 13.25 347.77 1688

15.625 294.90 26.5 173.88

Doze vintens ... ······ 240 II 26.5 173.88 1688 31.25 147.45

53 86.94 Seis vintens . ......... . ... . . . .... 120 II 58,33 78.99 1688

62.5 73.72 66.25 69.55

Tostao .... . ... . . . ..... . .. . . . . . .. 100 II 70 65.82 1688 75 61.44

132.25 34.77 Meio tostao ........... . ... . .. 50 II 140 32.91 1688

150 30.72 106 43.47

Tres vintens . ..... .... . ...... . .. 60 II 116.66 39.49 1688 125 36.86 265 17.38

Vintem .... . . ........ . .... . ..... 20 II 350 13.16 1688 375 12.28

Notas: As datas inscritas na coluna relativa ao «periodo de amoedayao» correspon­dem, respectivamente, a data de inicio e fim de cunhagem dessas moedas, considerando exclusivamente o perfodo entre 1688 e 1797, pelo que s6 inscrevemos a segunda das datas quando essas moedas deixaram de ser cunhadas durante o referido perfodo.

As co lunas «tal he» e «peso» apresentam diversos valores para cada moeda, correspon­dendo cad a urn deles ao estabelecido pel as leis de 1688, 1734 e 17 4 7, respectivamente.

Comercio do Brasil, Rua de Sao Paulo, aproximando-se, assim, do local de chegada das fro-tas.

13 Conclusao retirada a partir do trabalho de investigayao em curso, «0 ouro do Brasil: agen­tes e transporte ( 1720-1765)», que estamos a realizar conjuntamente com Leon or Freire Costa.

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Hist6ria Econ6mica de Portugal (1 700-2000), vol. I

Moedas de cobre em circula~ao (1688-1797)

[QUADRO N. 0 7.3]

Designa~ilo Valor (n!is) Tal he (arratel) Periodo de a moe-

da~ilo

Dez n!is ...................... 10 38 1688 Cinco n!is ........ .. .. . ... . .... 5 76 1688 Tres reis ...................... 3 126 2

/, 1688 Reale meio .. 1,5 252 '"

1688

Nota: As datas inscritas na coluna relativa ao «periodo de amoedayao» correspondem, respectivamente, a data de inicio e fim de cunhagem dessas moedas, considerando exclusi­vamente o periodo entre 1688 e 1797, pelo que s6 inscrevemos a segunda das datas quando essas moedas deixaram de ser cunhadas durante o referido periodo.

Emissoes monetarias de ouro por destinatario (1703-1797)

[QUA ORO N. 0 7.4]

Privados Privados

Estado Estado

A no (contos) (percenta- (contos) (percenta-

gem) gem)

1703-1705 ..... ... . . .. 2 338 93,0 181 7,0 1706-1710 ..... . ... . ...... 6692 97,5 172 2,5 171I-I7I5 ...... .. · ·· ·· ··· ·· · 6 84I 97,0 21I 3,0 I7I6-I720 .... .. ... . .. 3 I30 81,0 744 I9,0 I72I-I725 ............ . ... 4 644 77,0 I 385 23,0 I726-I730 .... . . ... . ...... I 547 25,0 4 677 75,0 I73I-I735 ................. 1499 28,5 3 765 71,5 I736-I740 ........ . .. . ... . . .. 3 027 33,0 6 257 67,0 I74I-I745 ............... . .. 6 475 48,0 6 959 52,0 I746-I750 .... .... . .. ........ 445I 46,0 5 137 54,0 I75I-I755 . ........... 2 048 29,0 5 004 7I,O I756-I760 ..... . ........ . .... 869 15,0 5 023 85,0 I76I-I765 . .. . 940 19,0 4101 81,0 I766-I770 ... . . . . . . . . . . 414 10,0 3 936 90,0 I77I-I775 ....... ········· I88 7,0 2 376 93,0 I776-I780 ........ ...... . .. 336 I5,5 I 830 84,5 I78I-1785 ··················· 273 18,0 I 252 82,0 I786-I790 ........ . ... . .. .. 133 19,0 552 8I,O I79I-I795 .............. 36I 72,0 I40 28,0 I796-I797 .. 80 20,0 3I4 80,0

--

Nota: Entre 1703 e 1762 a soma dos valores da amoedayao para os privados e para o Estado nao coincide com a amoedayao total, contrariamente ao que se verifica para o periodo posterior a 1763. Aquelas diferenyas, que na maior parte dos anos niio se reve1am muito significativas, justificam-se por questoes de natureza metodo16gica, cuja exp1icayiio pod en\ ser encontrada em Sousa ( 1999, 2000 e no prelo ).

Fonte: Sousa (no prelo).

216

Maeda e credito

A conclusao anterior merece ser enfatizada, pois relativiza a importan­cia dada por alguns estudos ao indicador «emissoes da Casa da Moeda de Lisboa» para avaliar a depressao da segunda fase do periodo pombalino. Remessas de ouro e amoedayaO sao duas series nao coincidentes, verifi­cando-se mesmo um diferencial significativo entre ambas (v. quadro n. 0 7.5). As emissoes de ouro em Lisboa nao sao, portanto, o indicador correcto para avaliar a·crise de meados do seculo XVIII, associada a quebra dos tluxos do ouro brasileiroi 4. Uma percentagem expressiva de metal vinha, como dissemos, ja amoedado do Brasil e nao passava assim pela Casa de Moeda de Lisboa.

Emissoes monetarias e remessas de ouro (1701-1797)

(QUADRO N. 0 7.5]

Emissiies Remessas Percentagem da

Periodo (contos) (contos) amoeda~ilo

nas remessas

I70I-I710 ................... 9 5I4 9 35I IOI,7

I7II-I720 .. ······· · ···· ·· · ·· · · ·· · II 142 3I 3I4 35,6

I72I-I730 ... ...... ...... I2 760 63 535 20, I I73I-I740 .. ······ · ····· · IS 457 69492 22,2

174I-1750 .. . . . . . . . . . . . .. . . 20 941 60 394 34,7 I75I -1760 ........... . ........ . 14 176 52 622 27,0 I76I-1770 .. .. . .. ......... . . . 9 431 34 008 27,7 I771-1780 ..... . 4 717 29 760 I5,9 178I-1790 .... 2211 13 240 16,7

Fontes: Sousa (no prelo) para as emissoes; Morineau (1985) para as remessas.

Mas qual o impacto deste ouro chegado ao reino nas emissoes e na oferta monetaria do seculo XVIII? Tera alimentado apenas as balanyas comerciais negativas do comercio bilateral luso-britanico durante a pri­meira metade de Setecentos? A resposta exige uma abordagem de series que investigay5es recentes construfram (Sousa, no prelo ), as quais recuam temporalmente em relayao a outras analisadas em trabalhos anteriores (Godinho, 1955).

14 V. Macedo (I989b), pp. 123-I25.

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I

Hist6ria Econ6mica de Portugal(/ 700-2000), vol. I

Emissoes monetarias totais e sua composi~iio (1700-1797)

[QUADRO N. 0 7.6]

Ouro Ouro Praia

Praia Cobre

Cobre Total Pcriodo

(contos) (mar-{con los)

(mar-(contos)

{ami-{con los)

cos) cos) teis)

1700-1709 .. 9 514 68 278 I 811 284 836 - - II 325 1710-1719. II 142 116 211 - - 10 30 957 II 152 1720-1729 ....... 12 760 125 903 - - 60 86 648 12 820 1730-1739 ...... . 15 457 141 224 - - 70 210 431 15 527 1740-1749 .. 20 941 223 963 473 62 602 66 184 515 21 480 1750-1759 ........ 14 176 120 251 86 II 474 35 97 693 14 297 1760-1769 ........ 9 431 105 498 694 92 343 105 283 351 10 230 1770-1779 .. 4 717 51 215 243 32 311 25 59 004 4 985 1780-1789 ... 2 211 23 549 I 265 168 652 16 44 095 3 492 1790-1797 .. I 138 II 106 I 527 203 311 15 39 524 2 680

Total.. 101 487 987 198 6 099 855 529 402 I 036 218 I 07 988 -- ---- L___ ________ ----- -- -----

Fonte: Sousa (no prelo).

As series de emiss6es monetarias de ouro, prata e cobre realizadas na Casa da Moeda de Lisboa (v. quadro n. 0 7.6) revelam, em termos compa­rativos, montantes elevados de cunhagens de ouro. Dominam as emiss6es de ouro ate a ultima decada do seculo. S6 ap6s este periodo ocorre uma inversao de posis:oes entre os dois metais preciosos amoedaveis, com a prata a aumentar as suas emiss6es, em valor e quantidade. Como explicar o predomfnio das emiss6es de ouro, assim como a diminuta cunhagem de prata durante quase todo o seculo? A evolus:ao das emiss6es de ouro foi fortemente condicionada pelas chegadas deste metal para a coroa, a qual, como ja tivemos ocasiao de assinalar, foi a principal responsavel por estas emiss6es a partir de 1726. Em relayao as reduzidas emiss6es de prata, a explicayao encontra-se quer na diferenya entre o pres:o da prata no merca­do legal e no mercado monetario, mais elevado no segundo do que no primeiro, quer na circula9ao legal de patacas, moeda de prata espanhola, ate 1785.

As emiss6es monetarias de cobre, montantes e composi9ao, foram total­mente determinadas pelo Estado. Se os particulares podiam fazer amoedar os metais monetarios que eram a base da moeda-mercadoria, mediante o paga­mento dos custos de amoedas:ao ou brassagem e do imposto de amoedas:ao ou senhoriagem, o mesmo ja nao acontecia com as moedas subsidiarias, como as de cobre, cuja emissao se encontrava reservada ao Estado. Apesar

218

Maeda e credito

do ganho decorrente, atendendo ao diferencial entre o valor intrinseco e extrinseco da moeda de cobre, nao constou das estrategias da coroa aumentar as suas emiss6es, uma vez que o poder liberat6rio do cobre era demasiado baixo. Assim se justifica a intermitencia e a escassez destas emiss6es.

0 calculo das emiss6es monetarias permite-nos estimar a oferta de moeda metalica, que, nao sendo tarefa facil, qualquer que seja Ci periodo hist6rico considerado, se revela um passo de investigas:ao ainda mais diff­cil quando trabalhamos com epocas anteriores ao seculo XIX, pela quase ausencia de dados relativos as variaveis «pagamentos externos» e «Circu­layaO de moeda estrange ira» 15.

Pela estimativa realizada16 conclufmos que a oferta monetaria em Por­tugal decuplicou num seculo, ou seja, passou de 5800 contos em 1700 para cerca de 55 000 contos em 1797 (v. quadro n. 0 7.7), sendo o acrescimo da oferta de ouro a principal componente explicativa deste aumento. No entanto, sublinhe-se que apenas 17,6% do total das emiss6es monetarias de ouro realizadas conjuntamente em Lisboa e no Brasil, em particular na Casada Moeda do Rio de Janeiro!?, terao permanecido no reino.

Leiam-se entao estes valores atendendo as rela96es entre oferta mone­taria, remessas e emiss6es.

Se compararmos a oferta de ouro com as remessas deste metal vindas do Brasil, verificamos que durante a primeira metade do seculo ocorre uma relativa sintonia de comportamentos entre ambas as variaveis, mas na segunda metade a intlexao descendente dos tluxos de chegada ja nao se traduz numa varia9ao no mesmo sentido da oferta. A conjuntura favoravel da balanya comercial portuguesa entre as decadas de 70 e 90, retlectiu-se no valor acumulado de oferta monetaria no final do seculo.

15 Para o ctdculo da oferta monetaria considera-se a seguinte equa(fao: oferta monetaria = emissoes em Lisboa + emissoes no Brasil (Rio de Janeiro)+ moeda estrangeira (moeda de prata espanhola) - (recunhagens + desgaste das moedas em circula(fao + pagamentos externos).

16 Y. os detalhes metodol6gicos em Sousa (no prelo). 17 Yerificou-se igualmente cunhagem de moeda portuguesa de ouro na Casada Moeda

da Baia. No entanto, nao existem dados sistematicos sobre essas emissoes. Apenas um documento nos informa desse valor para o periodo entre 1762 e 1767 (BNL/fundo geral, c6dice 10 632, publicado em Sousa, no prelo). No que se refere as emissoes na Casada Moeda do Rio de Janeiro, v. Morineau (1985).

219

Hist6ria Econ6mica de Portugal (1700-2000), vol. 1

Oferta monetaria (1700-1797)

[QUADRO W 7.7]

Moeda A no Ouro Prata estran- Cobre Total

geira

1700 .... . . .... .... . . .. ...... . . 3 522 2 335 5 857 1710 ...... .. .. . .. .. . .. .. .... . .... .. 12 300 3 841 I 378 17 519 1720 ............ .... ................ 18 542 3 473 I 378 13 23 406 1730 .... . . . . . . . . . . . . . . . . 22 394 3 131 I 378 65 26 967 1740 ..... . . . . . ...... .. .. . ........ 14 901 2 834 I 378 125 19 238 1750 .. . . . . . . . . . . . 29 068 3 026 I 378 176 33 648 1760 ..... .... . .. 31 070 2 727 I 378 192 35 367 1770 .. ······· ... . ... ......... 51 160 3 231 I 378 273 56 042 1780 ......................... . .. 47 602 3 317 I 138 271 52 328 1790. ..... ... . .... . .... 46 135 3 950 260 50 345 1797 ... 50 332 5 138 257 55 772

Fonte: Sousa (no prelo).

Do cruzamento da oferta de ouro com as emiss6es em Lisboa consta­tamos que estas diminuem, enquanto a oferta, depois de ter baixado ligei­ramente entre 1755 e 1761, aumenta de forma relativamente oscilante nas tres (J!timas decadas do seculo. 0 que se justifica atendendo ao facto de a diminuis;ao das emiss6es monetarias em Lisboa se encontrar relacionada com a menor amoedas;ao para o Estado, enquanto as remessas de ouro apresentam um decrescimo inferior, uma vez que continuam a chegar montantes elevados de ouro-moeda para os particulares.

As estimativas da oferta de moeda de prata e cobre reflectem a evolu­s;ao do comportamento das emiss6es em Lisboa, sendo diminuta a oferta de cobre. Uma oferta inferior a 300 contos justifica a manutens;ao da falta de moeda de troco, sobretudo num periodo de aumento de pres;os.

Perante a estimativa global da oferta de moeda metalica em 1797-55 772 contos - e pressupondo que o grau de monetarizas;ao era identico em todo o reino, hipotese pouco realista, concluimos que a oferta monetaria por habitante ors;ava os 17 135 reisl8. Se considerassemos apenas a moeda de prata portuguesa e a moeda de cobre, esse valor baixaria para cerca de

18 Consideraram-se para 0 calculo da populayiiO da metr6pole OS dados de 180 I, que apontam para Lllll total de 3 255 000 habitantes («Taboas Topographicas e estatisticas de todas as Comarcas de Portugal no Anno de 180 I», in Subsidios para a Hist6ria da Estatis­tica em Portugal, 1948).

220

Maeda e credito

1670 reis . 0 que reve1a o grande peso do ouro na oferta global, que, tudo indica, como veremos, nao circularia na sua totalidade.

Se compararmos estes valores com o grau de monetarizas;ao noutras economias, por exemplo, na economia francesa em finais de Setecentos, verificamos que este pais apresentava em 1789 uma oferta por habitante de 83 livras-tornesas ( 13 280 reis), segundo uma das estimativas (Mari­neau, 1984), e 75,27 livras-tornesas (12 043 reis), segundo outra (Riley e McCusker, 1983). Os valores encontrados para Portugal revelam-se ligei­ramente superiores, no entanto nao muito distantes dos obtidos para a economia francesa. A fiabilidade destes valores pode ser aferida atraves do grau de urbanizas;ao das duas economias, tomando a estrutura urbana como urn indicador de aproximas;ao ao nivel da monetarizas;ao. Ora, em 1800, Frans;a e Portugal apresentavam taxas de urbanizas;ao identicas (Sil­va, 1997), o que nos permite concluir que o grau de monetarizas;ao encon­trado para a economia portuguesa e verosimil.

No entanto, a oferta monetaria nao e sinonimo de circulas;ao monetaria, pois entre as duas variaveis apresenta-se o entesouramento sob a forma de moeda. Materializas;ao de poupans;a com vista a aquisis;ao de activos futu­ros ou como medida de precaus;ao sao duas das motivas;oes subjacentes ao entesouramento. Nao existe uma estimativa do entesouramento e afigura­se-nos impossivel a sua determinas;ao. Todavia, uma aproximas;ao a esta variavel pode ser obtida por via de indicadores indirectos. A analise da rubrica «dinheiro existente nos patrimonies», inscrita nos inventarios post mortem19, permite concluir a existencia de percentagens significativas de numerario nalguns dos patrimonies dos grupos estudados. Conclus6es reservadas, mas sugestivas.

Em suma, segundo os nossos calculos, e contemplando apenas as emis­soes monetarias de ouro, uma percentagem muito significativa, cerca de 82%, saiu do reino, tendo por destino principal a lnglaterra. No entanto, mesmo sendo tal percentagem elevada, a analise efectuada permite-nos concluir que o impacto do ouro chegado foi significative, pois a decupli­cas;ao da oferta monetaria entre 1688 e 1797 teve como principal causa as cunhagens de ouro. Entao o ouro brasileiro nao se limitou a liquidas;ao dos saldos negativos do comercio luso-britanico.

Na equas;ao da oferta monetaria contemplamos apenas as exportas;oes de ouro justificadas por pagamentos externos. Ora, mesmo que o saldo comercial influencie a procura de moeda no mercado cambial, os fluxos de ouro tambem podiam ter sido alimentados por mecanismos de arbitra-

19 Rocha ( 1996); Pedreira (1995).

221

Ill

Hist6ria Econ6mica de Portugal (1 700-2000), val. I

gem a escala global, isto e, pelos movimentos de oferta e procura20. Como contribuiu o ouro brasileiro para a redefiniyao da especializayao produtiva da economia portuguesa durante o seculo XVIII e uma tematica ainda por explorar.

Diferenciada a procura de ouro e de prata? A resposta afigura-se afir­mativa. 0 ouro era preferido nos pagamentos internacionais, entesourado, mas tambem utilizado em pagamentos socialmente hierarquizados. Se os soldos das tropas eram pagos em moeda de prata castelhana, ja o capitao de infantaria do Regimento da Armada e o capitao-tenente das fragatas da coroa recebiam em moedas de ouro, assim como em ouro se realizavam os pagamentos das tenyas e dos juros21. A ouro tinha direito o cardeal­-patriarca pelo pagamento do quartel e em ouro recebiam os religiosos e conventos as esmolas dadas por D. Joao V22 . Em moedas de ouro se pagou ao desembargador encarregue da troca de moeda cerceada em 1736, enquanto o escrivao e o meirinho receberam em moedas de prata23.

Quanto as moedas de prata portuguesas, OS seus destinos terao sido essencialmente as transacy5es internas. A proibiyao legal de circulayao de moeda estrangeira a partir de 1785, a recunhagem de patacas castelhanas que aflufram no infcio dos anos 80 em consequencia do crescimento do comercio com Castela e a subida do preyo do ouro no mercado dos metais, permanecendo estavel o seu valor no mercado monetario, sao factores ex­plicativos do aumento das emissoes e da circulayao de prata de cunho por­tugues. No entanto, pedidos formulados por autoridades camararias da raia para pagarem em moeda castelhana tributos e direitos reais e arrema­tayoes nas Iotas algarvias feitas em pesos, e nao em cruzados, ilustram que a moeda de prata castelhana, apesar deter perdido o seu curso legal decor­rente da determinayao de 1785, continuou a desempenhar o seu papel monetario em algumas regioes do reino, em particular nas zonas da raia e no Algarve (Sousa, no prelo ).

A moeda de prata portuguesa circulou ao Iongo do seculo em quanti­clades inferiores as necessidades sentidas nas transacyoes quotidianas: dar

20 Mathias ( 1987); Flynn ( 1996). 21 IAN/TT, Ministerio do Reina, Conselho da Fazenda, livro 167, fls. 24, 181 , 183, 186

e 199; arquivo da Casa da Maeda de Lisboa, registo geral, livro 6, fls. 207 V0 -208.

22 Diversas foram as ordens de S. Majestade ao tesoureiro da Casa da Maeda para en­tregar em ouro ao tesoureiro do Conselho Ultramarino o quartel do ouro que vinha das Minas a que o cardeal-patriarca tinha direito (IAN/TT, Ministerio do Reina, Conselho da Fazenda). A Cazeta de Lisboa noticiava com alguma frequencia a visita de el-rei D. Joao V a conventos e a entrega de esmolas em moedas de ouro.

23 IAN/TT, Ministerio do Reino, Conselho da Fazenda, livro 167, fl. 220.

222

Maeda e credito

esmola aos pobres, pagar salarios e pequenos serviyos, comprar nas tendas e lojas. A reduzida emissao de moeda miuda, isto e, de moeda com valor facial entre 20 e 100 reis, assim o confirma. Esta caracterfstica da circula­yao monetaria em Portugal nao se afigura unica na Europa de Setecentos, pois o mesmo se verificou nomeadamente em Inglaterra (O'Brien, 1994). U m preyo de mercado superior ao pre90 pago na Casa da Moeda nao atraiu os agentes econ6micos a cunharem prata. As alteray5es de preyos ocorridas em 1734 e 1747 nao foram suficientes para aproximar os dois preyos, explicando a reduzida emissao e circulayao da moeda de troco. Ajustamentos legais do preyo pago na Casada Moeda ao pre9o de merca­do teriam sido necessarios para que a circulayao de moeda de prata portu­guesa fosse superior a verificada. As emissoes de moeda de cobre, nao se revelando muito significativas, nao permitiram tambem ultrapassar o pro­blema da escassez de moeda para as pequenas transacyoes diarias. Con­clui-se, portanto, atraves do estudo da composi9ao da amoeda9ao entre 1700 e 1797, que escasseava moeda metalica para as pequenas transac­yoes, como evidenciam as queixas regularmente encontradas em docu­mentayao coeva sobre a falta de moeda de trocos.

Assim, no caso da vida econ6mica situada ao nfvel do res-do-chao, numa terminologia braudeliana, o sistematico adiamento dos pagamentos, visando acumular maiores quantias, permitia vir a receber moeda de ouro ou moeda de prata de maior valor facial e intrfnseco. 0 cobre apresentava quer um valor facial, quer um poder liberat6rio relativamente baixo, aten­dendo aos indices de preyos24. Seria tambem mais favoravel aos agentes econ6micos adiar pagamentos do que mandar cunhar moedas de baixo valor facial, em que pagariam direitos de senhoriagem.

Apesar da reduzida emissao e circula9ao de moeda de troco, nao se conclua pela existencia de uma economia pouco monetarizada, mesmo que por vezes esse numerario alimentador das trocas se concentrasse em determinadas regioes e, em particular, nas zonas dinamizadoras do comer­cio - Lisboa e Porto. A economia estava irrigada de metal, tanto quanto transpira da documentayao. Mesmo no Algarve dos seculos XVII e XVIII a troca directa nao era a regra, pois «a moeda irrigava a economia serrana apa­rentemente tao isolada»25. E, quando os pagamentos eram realizados em especie, e nao em numerario, outras variaveis terao de ser integradas na explicayao. As varia96es no nfvel de preyos e a possibilidade de obter vanta-

24 0 poder liberat6rio do cobre foi de 100 reis entre 1699 e 1800. 25 Magalhaes (1993b), p. 275.

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Hist6ria Econ6mica de Portugal (1700-2000), vol. I

gens com as suas tlutuat;6es sazonais serao uma dessas variaveis e a cobran­t;a dos impostos um bom exemplo desse funcionamento (Sousa, no prelo).

Se entre as decadas de 10 e 60 do seculo XVIII a prata tera sido ente­sourada e negociada no mercado dos metais, uma vez que o pret;o do metal em barra era superior ao pret;o do metal em moeda, como ja assina­lamos, a partir de 1770, e no jogo propiciado pelo bimetalismo, podemos afirmar que o ouro passou a ser entesourado e a prata comet;ou a atluir ao mercado monetario. Como explicar entao estes movimentos ao nivel da circulat;ao, uma vez que o periodo foi caracterizado pela estabilidade legal? A resposta e dada pela modificat;ao dos pret;os no mercado dos me­tais, que se traduziu na maior valorizat;ao do ouro face a prata depois da decada de 70. Assim, a partir desta decada aumentou a entrada de prata na Casa da Moeda de Lisboa, quer em barra, quer em patacas castelhanas, e as entregas de ouro comet;aram a diminuir. Sera significativo que entre 1773 e 1785 e depois de 1792 grande parte das emiss6es tenha por base as patacas castelhanas, enquanto no perfodo entre 1785 e 1792 atlui, sobre­tudo, prata em barra a Casada Moeda de Lisboa, indicador do desentesou­ramento deste metal. 0 seculo XVIII foi caracterizado por uma polftica de estabilidade legal, mas o comportamento no mercado dos metais intluen­ciou o funcionamento do regime monetario bimetalista ouro-prata e, nesse sentido, a circulat;ao monetaria.

0 sistema de credito

A falta de moeda para as pequenas transact;6es quotidianas suscitou a intensificat;ao do pequeno credito privado, pratica vulgarizada ao Iongo do tempo e em diversos contextos espaciais. Os elementos disponiveis mos­tram que tambem em Portugal no «deve» e «haver» de cada familia pesa­vam como motivo primordial de envolvimento no credito os pagamentos adiados de rendas, salarios, servit;os e compra de generos. Todos os estra­tos sociais observados evidenciam o mesmo sinal. Ocorrencia frequente, tocava a esmagadora maioria da populat;ao e colocava recorrentemente cada familia na posit;ao de credora e devedora em simultaneo26. Se bem

26 Nos inventarios orfanol6gicos analisados para Lisboa (I 770-1830) 94% dos taleci­clos deixavam dividas por pagar ou creditos por receber, encontrando-se simultaneamente ambas as situac;:oes em cerca de 75% dos inventarios com clividas activas e passivas. 0 motivo do debito e creclito esta registado explicitamente em aproximadamente 3500

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Maeda e credito

que dominante, nao sera, contudo, sobre este tipo de credito que aqui nos debrut;aremos. A analise que ira desenvolver-se incide sobre uma forma especffica de credito: os emprestimos privados de dinheiro e capitais.

Os instrumentos de credito existentes em Portugal nao diferiam dos utilizados noutros paises europeus que foram ja estudados27. 0 empresti­mo de dinheiro, os censos consignativos e as tetras de cambio e da terra constituiam as formas usuais de credito.

Os emprestimos estavam naturalmente sujeitos a variadas condit;6es. Formalizados ou nao atraves de escrituras notariais, eram geralmente de­signados por obrigat;6es, caso fossem objecto de registo no tabeliao, ou por escritos, bilhetes e emprestimos particulares, quando se verificava uma maior informalidade na transact;ao. Como garantia do emprestimo eram fornecidas hipotecas de bens im6veis ou eram deixados como penhor j6ias, roupas e objectos pessoais. Muitos emprestimos, contudo, eram obtidos sem que o credor exigisse uma garantia material, sinal - tambem - de maior proximidade social e confiant;a entre contratantes. Se sobre parte dos emprestimos nao pesava qualquer encargo, muitos estavam obrigados ao pagamento de juro, o qual, em termos legais, varia­va entre os 4% e os 6,25% ate a promulgat;ao do alvara de 17 de Janeiro de 1757, data a partir da qual a taxa se fixou em 5%. Os capitais aplicados no comercio maritimo eram objecto de um contrato especifico: as escrituras de dinheiro a risco Oll as letras de risco, sendo as u)timas mais frequentes, pois nao exigiam a realizat;ao de escritura publica, embora a esta estivessem legalmente equiparadas (alvara de 15 de Maio de 1776). A especificidade deste contrato residia no facto de o credor arriscar simultaneamente o ca­pital e o premio. No caso de o navio ou carga se perder em virtude dos «perigos de mar, fogo, corsarios, e piratas, inimigos e falsos amigos», o devedor ficava ilibado de qualquer reembolso. 0 ja citado alvara de Janei­ro de 1757, que fixou a taxa legal de juro dos emprestimos em 5%, esten­deu esta disposit;ao ao dinheiro dado a risco, abrindo, porem, except;ao para os capitais destinados ao comercio asiatico. Para esta regiao o valor da taxa de premio seria acordado entre as partes, nao havendo, portanto, limite legal. Pratica confirmada pelos registos deixados nos inventarios post mortem. Nas listas de dividas activas e passivas de alguns negocian-

casos. Destes, quase 47% sao relativos a compras, rendas, salarios e servic;:os (Rocha, 1996, pp. 94-95 e 21 0).

27 A titulo ilustrativo, v., para o caso frances, Hoffman et. a/. (1992 e I 995); para In­glaterra, Anderson (I 969 e I 970) e, para Espanha, Vasquez de Prada (I 984) e Castaneda i Peir6n (I 99 I).

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Hist6ria Econ6mica de Portugal (1700-2000), val. I

tes da capital figuram letras de risco sobre cargas e navios em viagem para a india com taxas de 40%, 30% ou 37% por cento, por exempJo28. Por seu turno, a limitayao do juro para o comercio nao asiatica reduziu a apetencia por este tipo de instrumento de credito29, ate que se impos a revoga9ao desta determinayao atraves do alvara de 5 de Maio de 181030.

Os censos consignativos constitufam urn outro instrumento de credito, cujas rafzes remontam ao perfodo medieval. Tratava-se de urn contrato em que o censufsta (credor) entregava uma determinada quantia ao censuario (devedor), obrigando-se este ultimo ao pagamento de um censo. 0 censo era, portanto, uma prestayao anual paga em generos ou dinheiro, estando prevista a consignayao para tal pagamento de uma propriedade rustica. Esta consignayao representava uma garantia para o credor, uma vez que o devedor confirmava, deste modo, ter acesso a um rendimento que lhe permitia cumprir o encargo anual a que se obrigava. Esta clausula do con­trato deixou, porem, de ser exigida, o que se compreende, atendendo a natureza particular deste instrumento de credito e a evoJuyaO verificada a este nfvel. Na sua origem medieval, a escritura de censo consignativo constitufa uma forma de ultrapassar os princfpios doutrinarios da Igreja, que consideravam ilicita a obtenyao de juros pelo emprestimo de dinheiro. Assim, este contrato era apresentado como uma transacyao de compra e venda de uma renda, correspondendo a quantia entregue pelo vendedor (credor) a compra de uma renda paga anualmente pelo comprador (deve­dor). Este pagamento era obtido com o resultado de uma actividade agri­cola, isto e, com uma tarefa que colhia os frutos da terra, dadiva da natu­reza, nao se traduzindo, por isso, em qualquer extoryao do semelhante, como seria o caso de um contrato que cobrasse um juro pelo uso do dinheiro. Esta perspectiva doutrinaria foi entretanto alterada, e com ela as exigencias contratuais. As instru96es e conselhos fornecidos aos tabeliaes e publicados na primeira decada do seculo XIX reflectem a mudan9a ocor-

28 IAN/TT, inventarios orfano16gicos, J-552-2421, inventario de Joao da Silva Ledo; v. tambem Pedreira (I 995), p. 352.

29 Mendes (1995), pp. 98-99. 30 A critica a imposiyao legal de uma taxa de jura nao superior a 5% merece de Ferrei­

ra Borges no Diccionario Juridico-Comercial, 1839, p. 77, o seguinte comentario: «As nossas antigas leis sabre este contracto forao verdadeiramente absurdas ate ao Alv. 5 maio 1810 [ ... ] 0 Alv. 16 janeiro 1757 [trata-se do alvara de 17 de Janeiro] chama ao cambia maritima um pretexto de usura, e ordena que se nao possa dar a risco por menos de um anno, e por mais de cinco por cento de premio! E que so possa pagar-se na praya do emprestimo! E que nao possa haver contracto de seguro sabre este contracto! Veio fina l­mente o Alv. 5 maio 1810, e colocou este contracto no seu verdadeiro pe acerca do pre­mia.»

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Maeda e credito

rida nas praticas contratuais e preocupam-se em legitima-las. No que diz respeito a consigna9ao de bens, e explicita a ausencia de qualquer «diffi­culdade em admittir Censos pessoaes, isto he, obrigayao de os pagar sem consignar fazendas a prestayao delles ( ... ] [E isto porque] Hum contrato tal he tao licito, como obrigar-se alguem a pagar juros, sem consignar hypo­theca ao pagamento delles»3 1• Do ponto de vista legal, deixara de haver obstaculos a equiparayao do censo consignativo a uma forma de empres­timo, aconselhando-se mesmo a nao «mais seguir o erro dos antigos, que reputarao este contrato de compra e venda, para deste modo cohonestarem a recepyao de interesses, que nao admittiao no mutuo»32.

As letras de cambio constitufam urn terceiro instrumento de credito, usado em particular na actividade comercial e manufactureira. Sendo uma forma de pagamento COrrente entre diferentes prayaS de comercio, apre­sentava grandes vantagens para a actividade mercantil ao evitar a transfe­rencia de dinheiro entre regioes longufnquas e facilitando, assim, a circu­layao de bens. Contudo, para alem do seu papel como equivalente a numerario nas transayoes entre negociantes, a letra de cambio foi tambem Lllll meio de credito33 . 0 facto de os seus portadores poderem recorrer ao rebate, caso tivessem necessidade de realizar o valor da letra antes do pra­zo do seu vencimento, gerou o desenvolvimento de um activo mercado financeiro em que participavam corretores, cambistas e homens de neg6-cio34. 0 adiantamento das verbas indicadas nas letras era, portanto, uma forma sempre possfvel de obter liquidez, operayao realizada naturalmente contra o pagamento da respectiva taxa de desconto.

Funcionando de maneira similar as letras de cambio - operando, porem, no contexto de um mesmo local de neg6cio -, as letras da terra difundiram-se na praya de Lisboa na decada de 8035. Recorrendo a um cfrculo mais restrito de agentes, o risco diminufa, reflectindo o encurtar da distancia geogritfica eo aumento da confianya. Daf a vantagem das letras da terra sobre as letras de cambio, a qual contribuiu para o incremento da sua utilizayao no final do seculo xvm36.

No contexto actual da investiga9ao sobre o tema do credito privado e diffcil determinar com rigor a importancia relativa dos principais instru-

31 Teles ( 1823), p. 85.

32 Teles ( 1823), p. 83.

33 Neal (1994), pp. 159-162.

34 .I ustino ( 1994 ), Pedreira ( 1995).

35 Pedreira ( 1995); pp. 354-356.

36 Madurcira ( 1994), p. 25.

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Hist6ria Econ6m ica de Portugal (1700-2000), val. 1

mentos que de forma breve acabaram de ser referidos. Tal nao exclu i, po­rem, uma aproxi mas;ao a este ass unto a partir dos estudos ja realizados.

No que diz respe ito a frequencia do uso dos censos consignativos, as informas;oes sao, contudo, praticamente inexistentes. Sabemos que em Sett1ba l a misericordia local aplicava alguns dos seus rendimentos na com­pra de censos, embora tal aplicas;ao nao fosse especialmente lucrativa e t ivesse vindo a ser progressivamente abandonada37. A analise de um con­j unto de inventarios post mortem estudados para a capita l do pais no periodo entre 1 770 e 183 0 (Rocha, 1996) revel a tambem a escassa presen­s;a deste instrumento de credito: nao se verifica nenhuma referencia a dividas activas ou passivas provenientes de censos por pagar ou receber. Indicios que sugerem a fraca disseminac;;ao deste instrumento de credito, tal situac;;ao - a comprovar-se - nao destoava da que se verificava na vizi­nha Espanha. Neste pais os censos constituiam a forma mais difundida de credito desde o seculo XVI, mas verificou-se, porem, um gradual declinio no seu uso no decurso do seculo XVIII e a sua substituic;;ao pelo empresti­mo hipotecario sob a forma de obrigac;;oes. A razao evocada para explicar este decrescimo dos censos reside na diminuic;;ao das receitas da Igreja, principal grupo vendedor de censos, pois, como ja vimos, este mecanismo crediticio adaptava-se perfeitamente a rentabilizac;;ao dos seus capitais sem ferir a doutrina sobre a usura38. 0 mesmo motivo pode ter estado na base de uma reduc;;ao do papel dos censos consignativos entre n6s. A Iegislac;;ao desamortizadora do pombalismo, que impos restric;;oes as doac;;oes, retlec­tiu-se nos bens das instituic;;oes eclesiasticas39. A contracc;;ao dos rendi­mentos da lgreja implicou, alias, uma mudanc;;a nas fontes de credito a que tradicionalmente recorria a grande aristocracia, a qual passou a servir-se do capital oferecido por negociantes a partir das ultimas decadas do seculo XVIII40. Esta conclusao, que revela uma alterac;;ao na composic;;ao dos for­necedores de credito, emerge da analise de um instrumento especifico de credito, os contratos de emprestimo de dinheiro, e nao incide, pois, sobre o mercado de censos. Contudo, nao deixa de ser possivel sugerir que a mesma diminuic;;ao ocorrida nos rendimentos eclesiasticos- que comprova­damente afectou a capacidade de intervenc;;ao da Igreja como credora de emprestimos de dinheiro - possa ter afectado tambem a sua participac;;ao

37 Abreu ( 1990), pp. 57-58. 38 Vasquez de Prada ( 1984 ); Castaneda i Peir6n ( 1991 ). 19 Monteiro ( 1998), p. 389. 40 Monteiro (1998), p. 389.

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na venda de censos consignativos. Conjecturas que pedem, porem, um aprofundamento do tema.

A frequencia na utilizac;;ao de letras de dimbio e a evo lus;ao verificada a este nivel sao mais faceis de estabelecer. Enquanto mecanismo de pa­gamento de bens entre prac;;as comerciais, o seu uso era vulgar entre os homens de neg6cio e a intensificac;;ao da sua c irculac;;ao acompanhava, portanto, os periodos de maior dinamismo comercial41 . Contudo, a expan­sao mercantil verificada em finais do seculo XVIII nao s6 implicou o in­cremento na circu lac;;ao de Ietras de cambio, como tambem suscitou uma mudans;a no mercado fiduciario. As crescentes possibil idades de neg6cio e a consequente maior procura de capitais despoletaram a difusao de letras de favor na prac;;a de Lisboa a partir da decada de 80 e a profusao de pa­peis negociaveis (letras de cambio, da terra e de favor) que acabaram por sustentar uma vaga especulativa. As Ietras de favor eram titulos identicos as letras da terra, isto e, constituiam promiss6rias passadas entre negociantes, sem que houvesse, contudo, uma transacc;;ao de bens ou valores, nisso se distinguindo de uma vulgar Ietra da terra. Mas, uma vez que as letras de favo r podiam, tal como qualquer outra tetra, ser descontadas no mercado, tornaram-se uma forma extremamente facil de obtenc;;ao de dinheiro42 . Paralelamente a este mecanismo, assistiu-se a uma diversificac;;ao das apli­cac;;oes realizadas atraves do saque de tetras. A aquisic;;ao de bens im6veis e a manutenc;;ao de actividades retalhistas, por exemplo, constam do elen­co dos investimentos realizados com capitais obtidos por via do saque de Ietras, como mostram alguns dos processos chegados a Junta do Comercio (Madureira, 1994). Por outro lado, alargou-se ainda o espectro profissio­na l dos que lidavam com este instrumento de credito. Inicialmente confi­nado ao mundo dos negociantes por grosso, alastrou a esfera dos pequenos lojistas e artesaos. Assim, o incremento na circulac;;ao das letras, a sua ex­tensao a outras camadas sociais e a diversificac;;ao dos investimentos reali­zados com o seu desconto provocaram a dinamizac;;ao de um mercado fi duciario, com taxas de desconto negociadas, consubstanciando o que pode ser considerado uma «liberalizac;;ao do mercado de capitais em Por­tugal» (Madureira, 1994). 0 prec;;o do dinheiro passou a depender das con-

4 1 V. as instruyoes dadas aos negociantes acerca «Da pratica das letras de cambio» no manual de Manoel Teixeira Cabral de Mendonya ( 1815), I, t. , pp. 255-317.

42 As letras de favor eram, pois, passadas por um negociante a favor de outro, sem que houvesse operayao comercial, recebendo o primeiro apenas um titulo de obrigayao do segundo, ou seja, uma letra de igual valor, promiss6rias que eram entao descontadas, pro­porcionand o liquidez para aplicayoes mais lucrativas (Pedreira, 1995, p. 354).

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dic;6es do mercado, situac;ao que a propria lei admitia ao sancionar a co­branc;a de valores superiores a taxa de 5% fixada em Janeiro de 1757, com o argumento de que o desconto de letras se equiparava a uma operac;ao comercial de compra e venda, e nao a uma relac;ao de m(ttuo ( carta regia de 6 de Agosto de 1802)43.

Nao obstante este incremento na utilizac;ao de letras, o instrumento de credito mais vulgarizado ao Iongo de todo o seculo - o emprestimo de dinheiro - manteve um papel econ6mico e social decisivo. Os cart6rios de tabeliaes e os inventarios post mortem mostram a persistencia das escritu­ras de obrigac;ao com e sem juro expresso. Cerca de 24% das dividas registadas nos inventarios de Lisboa entre 1770 e 1830 procediam de emprestimos de dinheiro. Nos cart6rios dos tabeliaes de Lisboa, apenas durante o ano de 1770, realizaram-se quase 600 escrituras de obrigac;ao. A esta forma de credito recorriam individuos necessitados de liquidez para, predominantemente, efectuarem compras de bens de raiz, realizarem benfeitorias, iniciarem ou manterem a sua actividade econ6mica e satisfa­zerem despesas urgentes, como as decorrentes da doenc;a e morte de fami­liares (Rocha, 1996).

Tais necessidades de liquidez eram satisfeitas atraves de emprestimos concedidos por gente de todos os estratos sociais. A presenc;a significativa de grupos profissionais de menores recursos econ6micos entre os credores constitui uma caracteristica do sistema de credito observado em Lisboa, o que contrasta com a imagem obtida para outros locais europeus (Rocha, 1998). Em Paris, por exemplo, os artesaos independentes e assalariados, que na segunda metade do seculo XVIII correspondiam a cerca de 78% da popu1ac;ao adu1ta, nao constituiam senao 10% dos credores inscritos nos notarios da cidade entre 1730 e 1788. 0 grupo dominante era o dos nobres e detentores de cargos oficiais (38,7%), seguido dos negociantes, indivi­duos designados por burgueses, notarios e homens ligados a actividade financeira (33,4%) (Hoffman et. a!., 1992 e 1995). S6 o grupo dos nobres e detentores de cargos era responsavel por cerca de 65% do volume dos creditos emprestados, o que acentua a importancia da elite econ6mica como credora.

41 Esta clifusao eta circulayao de tetras e corroborada pela analise eta amostra de inven­l<1rios post mortem que tern siclo referida neste texto. De entre as clividas cujo instrumento de obtenyao de cn:!dito se encontra identificado, existem cerca de 240 tetras de ciimbio e ri sco. Apesar de se concentrarem claramente nas maos de homens de neg6cio (142 tetras), tambem lojistas e artesaos (51) transaccionavam tetras, tal como outros grupos profissio­nai s, ainda que em menor dimensao.

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Entre n6s a configurac;ao da oferta de dinheiro e capitais era diversa. A analise dos contratos de obrigac;ao registados pelos 25 tabeliaes que serviam a cidade de Lisboa em 1770 confirma as conc1us6es retiradas em trabalhos anteriores44 (Rocha, 1996 e 1998). 0 nosso sistema de cred ito era disperso, no sentido em que nao ocorria uma acumulac;ao de empres­timos nas maos de um grupo restrito de pessoas e na medida em que nenhuma categoria social detinha um predominio claro em termos do volume de credito concedido. Acresce o facto de o papel dos individuos posicionados nos escal6es inferiores da sociedade nao ser negligenciavel no que diz respeito ao seu peso numerico no conjunto dos credores e na dimensao dos capitais emprestados.

As 590 escrituras de obrigac;ao mostram o envolvimento de 487 credo­res, dos quais 420 (86%) concederam um emprestimo, 49 (1 0%) do is emprestimos e 18 ( 4%) tres ou mais. A identificac;ao profissional e forne­cida, infelizmente, de forma nao sistematica. Apenas se encontram identi­ficados 14 7 credores. Destes, os artifices formavam o conjunto mais ele­vado (35%), seguindo-se os conventos e irmandades da cidade e membros do clero em nome individual (26%). Os negociantes, contratadores e nobres constituiam 8% dos emprestadores em relac;ao aos quais se disp6e de identificac;ao.

A analise das quantias emprestadas reforc;a a ausencia de predominio de qualquer grupo s6cio-profissional (quadro n. 0 7.8). Os 52 artifices rea­lizaram 62 escrituras, tendo emprestado a quantia total de cerca de 17 con­tos, o que representa cerca de 15% do montante de credito concedido por credores cuja ocupac;ao se conhece e 5,4% da quantia total registada nas obrigac;6es realizadas em 1770. Sensivelmente o mesmo valor foi faculta­do pelos conventos e irmandades, montante apenas ultrapassado, de forma nao significativa, pelos creditos cedidos pelos grupos «administrac;ao» e «outros», que emprestaram cada um cerca de 20% do total apurado relati­vamente aos credores com ocupac;ao. 0 restante volume de credito distri­bui-se pelas outras categorias sem grandes disparidades: membros do cle­ro, negociantes, gente dos servic;os e nobres concederam montantes entre,

44 Procedeu-se ao levantamento eta informayao constante exclusivamente dos contratos

de obrigayao. Foram afastados outros tipos de escrituras relativas a credito, como, nomea­damente, os escritos liquidos de divida, as cessoes ou quitayoes de eli vida, visto apenas nos interessarem as transacyoes que deram inicio a uma relayao de credito (IAN/IT, cart6rio do distribuidor, livro 131 ).

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aproximadamente, 9% e 5% do credito transaccionado durante este ano pelos individuos cuja ocupa~ao e designada45.

Categorias socio-profissionais dos credores (1770)

[QUADRO N.0 7.8]

Ocupa~oes Numero de Numero de Quantia credo res contra los emprestada

Artitices .. . ..... . . . . ..... . .. 52 62 16 959$936 Servivos .. .. ......... . .. . 26 28 8 107$220 lnstituiviies religiosas .. ..... . 20 26 17 180$528 Clero .. ............... ........ . ...... 18 22 9 712$866 Negociantes .. ····· · ... . . .. . ... . . . . ... .... II 17 7 633$812 Administravilo ............ . ...... ... . ...... . 7 14 22 425$591 Lojistas . .. . ········ · ·· 4 7 I 260$707 Nobres .. ········ · ...... . 2 5 6 104$648 Outros .. • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 0 • • • • • • • 7 14 22 008$732 Total com ocupavao .. .. . 147 195 Ill 394$040 Total de credores .. 487 590 315 881$798

Fonte: Escrituras de obriga<;:ao, cart6rio do distribuidor.

0 facto de este mesmo tipo de analise realizada, porem, a partir de outros dados proporcionar percentagens diferentes imp6e que 'nao se con­siderem estes valores em termos absolutos. As listas da decima de juros de 1771 indicam que OS artifices forneceram 11% do volume de credito, OS

negociantes 26,9%, as institui~6es religiosas 6,3%, os advogados e desem­bargadores 7%, o clero em nome individual 5% (Rocha, 1998). A distin~ao mais assinalavel diz respeito a presen~a dos negociantes que surge mais esbatida nos contratos notariais. Dai a necessidade, repita-se, de olhar para estes n(nneros, nao como valores precisos, mas sim como indicadores da configura~ao do sistema de credito em termos da sua composi~ao social. Neste ambito, o quadro obtido e identico: ocorre uma dispersao dos emprestimos, a ausencia de um grupo social predominante, apesar de

45 No grupo «administra<;:am> estao inclufdos dois desembargadores, dois solicitadores, um bacharel, um lente e um escrivao; no grupo «outros», dois sargentos-mores, dois fazen­deiros, um pescador, um sol dado e do is empn!stimos concedidos pelo jufzo dos 6rfaos e pelo Tribunal da Mesa da Consciencia. Nos «servi<;:os» incluem-se cinco doutores, quatro barbei­ros, tres cirurgioes, tres criados, tres trabalhadores, tres homens ligados ao transporte mariti­mo. Lllll medico, urn livreiro, urn mestre de rneninos, urn cocheiro e urn cozinheiro.

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a lguns credores emprestarem com uma certa regularidade. Este n(Jcleo, que pode ser apelidado como o dos especialistas do credito, era composto por individuos com ocupa~6es diversas. Se negociantes, advogados e nobres eram os mais frequentes, credores com outras ocupa~6es figuram entre os que emprestavam com mais regularidade46.

A oferta de capitais em Lisboa contava ainda com uma importante par­tic ipa~ao: a misericordia da cidade, actividade comum a maior parte des­tas institui~6es eclesiasticas ja estudadas para outros locais do pais e do imperio. 0 emprestimo de dinheiro era pratica corrente das misericordias, embora variasse a importancia que estas transac~6es adquiriam nas recei­tas de cada uma delas. A tendencia era para um maior envolvimento no mercado de capitais por parte das misericordias integradas em espa<;:os mais dinamicos do ponto de vista economico e com maiores exigencias de investimento, como o atestam os casos das misericordias da Baia e de Macau. Contudo, esta caracteristica nao era exclusiva destas situa~6es, pois outras misericordias, ainda que localizadas em zonas afastadas do grande comercio, mostram o papel que estas institui<;:6es desempenhavam no credito loca(47. A presen<;:a da misericordia de Lisboa como principal prestamista da grande aristocracia do reino esta demonstrada. 0 endivi­damento cronico do grupo nobiliarquico pode manter-se gra~as aos capi­tais mutuados por esta institui~ao durante o periodo anterior a legisla<;:ao pombalina, que veio a restringir (alvara de 22 de Junho de 1768) e a proi­bir depois (31 de Janeiro de 1775) a concessao de emprestimos. Visando controlar a elevada dimensao do capital e juros em divida que a miseri­cordia acumulara, estas leis surtiram o seu efeito e simultaneamente im­plicaram uma altera<;:ao substancial nas fontes de credito a que as casas aristocraticas tinham ate entao recorrido em grande parte. Nas (Iitimas decadas do seculo XVIII a alternativa foi o recurso a negociantes e a ren­deiros das proprias casas, geralmente tambem eles negociantes da pra<;:a de Lisboa, arrematantes por grosso de rendas48.

Na impossibilidade de construir um quadro global do mercado de cre­dito que compare 0 peso relativo dos varios fornecedores, fica a certeza da importante actividade das misericordias nesta area, a par da que era exer­cida por outras institui~6es eclesiasticas e diversos particulares. Nao e, portanto, poss[vel atribuir um Iugar hegemonico a qualquer dos grupos protagonistas na concessao de creditos. 0 que nao impede que, no ambito

46 Rocha ( 1998), pp. 97-98.

47 Sa (200 I) , pp. 49-52. 48 Monteiro ( 1998), pp. 389-405.

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da acs;ao dos agentes privados, nao se destaquem alguns individuos como prestamistas regulares, como ja foi assinalado.

Quer se tratasse de transacs;oes esporadicas, quer de creditos regulares, os emprestimos eram realizados sem o recurso a intermediarios. Credores e devedores relacionavam-se entre si directamente, nao sendo vulgar a presens;a de individuos que ocupassem funs;oes de intermedias;ao entre as partes contratantes. A acs;ao desempenhada por notarios e advogados - gente que possuia uma rede alargada de conhecimentos pessoais e da situas;ao financeira de cada urn -, suficientemente demonstrada para ou­tras regioes, nao parece ter sido relevante entre n6s. Nao se vislumbra a presens;a deste tipo de agentes, cuja especializas;ao advinha da sua capaci­dade em obter informas;ao e que constituia uma forma de diminuir os cus­tos de transacs;ao das operas;oes de credito (Rocha, 1998).

Conclusao

A politica monetaria adoptada no seculo XVIII e caracterizada por uma viragem estrutural. Desvalorizas;oes com objectivos financeiros nao esti­veram presentes neste seculo. As duas (micas desvalorizas;oes da prata, em 1734 e 1747, justificam-se apenas por razoes tecnicas, visando a adapta­s;ao do pres;o da prata no mercado monetario ao pres;o no mercado dos metais.

0 aumento da oferta monetaria, sobretudo pela via da subida do peso relativo do ouro no total das emissoes, foi outra das caracteristicas deste seculo, que continuou a ser marcado pela reduzida oferta de moeda de prata e de cobre para as pequenas transacs;oes. Mas a oferta monetaria nao e independente da procura. Eo aumento das emissoes de moeda metalica justifica-se pelo aumento do rendimento (resultado, no minima, do cres­cimento populacional), pela subida dos pres;os (Sousa, no prelo ), pelo aumento do grau de monetarizas;ao da economia e pela provavel subida do entesouramento, hip6tese de trabalho que importara futuramente testar. Se o entesouramento tera provocado uma diminuis;ao da velocidade-ren­dimento da moeda, a existencia de credito tera actuado no sentido da su­bida dessa velocidade. Neste jogo de fors;as, no entanto, a falta de dados nao nos permite senao tras;ar tendencias que esperamos desafiem investi­gas;oes futuras.

Pesquisas que se terao de estender a outros problemas. Podemos suge­rir que o aumento da oferta monetaria verificado no seculo XVIII, ao pos­sibilitar um acrescimo dos recursos financeiros nas maos de particulares,

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contribuiu para a dinamizas;ao do mercado de emprestimos de dinheiro. Permanece, porem, por quantificar a exacta evolus;ao do volume de credi­to concedido ao Iongo do perfodo, bern como a dimensao explicativa das diversas variaveis subjacentes aos fluxos verificados (Hoffman et al., 2000). 0 quadro descrito mostra, contudo, de forma clara a existencia de emprestimos dispersos, ou seja, protagonizados por individuos de variados grupos sociais, essencialmente concedidos numa base nao regular e como forma de rendimento complementar. Estamos perante um mercado activo, na medida em que muitos privados, tendo acesso a pequenas quantias de numerario, aplicaram essas verbas em transacs;oes de emprestimo. Foi, contudo, urn mercado limitado, que se mostrou incapaz de atrair a partici­pas;ao de especialistas, cuja existencia teria contribuido para a diminuis;ao do custo destas operas;oes e, por conseguinte, para o incremento da activi­dade financeira. Uma explicas;ao possivel para a fraca presens;a de espe­cialistas pode residir quer na fraqueza da procura, quer nas dificuldades em garantir os direitos dos credores quando lesados pelo incumprimento de contratos. Estes sao, porem, argumentos que necessitam de comprova­s;ao. 0 que e possivel desde ja afirmar e o menor nivel dos rendimentos proporcionados por este tipo de investimento face a outras aplicas;oes, fac­to que ajuda a compreender o moderado interesse que este neg6cio des­pertou nas elites econ6micas. Outras actividades, como a importas;ao e exportas;ao de generos, a propriedade de bens de raiz ou a subscris;ao de titulos da divida ptlblica, foram mais lucrativas do que a provisao de cre­ditos a particulares (Pedreira, 1996). Elemento que tambem explica o escasso entusiasmo da classe mercantil pela introdus;ao de instituis;oes bancarias entre n6s. Os projectos que nesse sentido foram apresentados nao lograram concretizar-se (Cardoso, 1997a), o que reflecte a adaptas;ao dos mecanismos de credito existentes as necessidades geradas pela activi­dade econ6mica. A circulas;ao de bens era apoiada por adiamentos nos pagamentos entre negociantes, criando-se contas correntes saldadas de tempos a tempos, e as operas;oes de desconto de letras, ou mesmo de outros titulos, como os bilhetes de alfandega, eram realizadas essencial­mente pelo corpo mercantil, que desempenhava, assim, as funs;oes banca­rias necessarias a prossecus;ao do neg6cio.

A intensificas;ao da actividade mercantil de finais do seculo, ao provo­car Llll1 maior dinamismo das transacs;oes de letras e notas promiss6rias, suscitou o desenvolvimento de especialistas nestas operas;oes, as quais veio juntar-se o rebate do papel moeda entretanto posto em circulas;ao. Trata-se de uma mudan9a ocorrida num segmento especifico do sistema de credito que, ocorrendo nas ultimas decadas do seculo XVlll, veio a pre­parar altera96es que se consolidaram no seculo seguinte com a cria9ao da

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primeira instituiyao bancaria em Portugal. Para alem destas operay6es, a provisao de credito a particulares foi, ao Iongo do seculo XVJII, mantida sobretudo atraves das instituiyoes eclesiasticas e das poupanyas de multi­plos emprestadores que garantiram a fluidez e a descentralizayao do sis­tema de cred ito.

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