Upload
independent
View
0
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
3
________________________
EENNSSAAIIOOSS DDEE
LLEEIITTUURRAA CCRRÍÍTTIICCAA
MMAAGGNNAA CCAAMMPPOOSS
________________________
VirtualBooks
4
© Copyright 2010, Magna Campos.
Capa:Kythão, com ideia da autora
1ª edição
1ª impressão
(2010)
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma -,
nem apropriada e estocada sem a expressa autorização de Magna Campos.
Livro preparado e editado por VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA.
Rua Benedito Valadares, 560 - centro – 35660-000- Pará de Minas - MG - Brasil
Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br
Campos, Magna
ENSAIOS DE LEITURA CRÍTICA. Magna Campos. Pará de
Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2010. 156p.14x20 cm.
ISBN 978-85-7953-227-6
1. Educação. Literatura. Jornalismo. Brasil. I. Título.
CDD- 370
5
SUMÁRIO
Apresentação
03
Ensaio 1: A representação da identidade feminina na publicidade “Um Toque de Seda”
05
Ensaio 2: A imagem da leitura, no campo do ethos enunciativo, construída pela apresentação das diretrizes do PNLL. (As vozes de dois Ministros de Estado)
35
Ensaio 3: Jornalismo popular x sensacionalismo: um estudo do papel do fait divers no Jornal Super Notícia 74
Ensaio 4: Tecnologia como mediadora de subjetividades 109
Ensaio 5: Vozes e ideologias na representação de Fóruns Mundiais: algumas considerações 138
Ensaio 6: Uma breve leitura do filme Quis Show: a verdade dos bastidores 149
6
Neste livro, reúno alguns dos textos que produzi na
época em que realizei o Mestrado em Teoria Literária e Crítica
da Cultura, afiliada que fui à linha de pesquisa, Discurso e
Representação Social, pela Universidade Federal de São João
Del-Rei, entre os anos de 2006- 2008.
Os ensaios e artigos que aqui se apresentam são
reelaborações de algumas comunicações e mesa-redonda
apresentadas em congressos científicos, constituem esforços
de uma proposta de leitura em diálogo com a complexa e
produtiva relação de áreas do conhecimento tradicionalmente
distintas – que vão desde as teorias do discurso, passando
pelas teorias da comunicação e chegam às teorias sociais.
Um diálogo que busca entremeios que possibilitem a
realização de leituras na perspectiva da crítica cultural – esse
grande cadinho que dilui fronteiras e propõe novos olhares
menos segmentados para a sociedade e para suas práticas
socioculturais.
Magna Campos
7
A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NA PUBLICIDADE “UM TOQUE DE SEDA”1
Magna Campos – UFSJ
Prof. Dr. Antônio Assunção – UFSJ
Resumo: Neste texto será analisado como é representada a
identidade feminina na campanha publicitária, um toque de Seda, veiculada na revista Claudia, em dezembro de 2006, pela Editora Abril. Considera-se neste trabalho a identidade como construída pela prática social, como uma construção também discursiva, na qual as representações sociais são o resultado da interação entre os mundos individual e social, possível no espaço discursivo criado entre ambos. Para se avaliar a questão proposta, percorreu-se a teoria buscando no conceito de identidade e de representação social. Constata-se que o tipo de identidade feminina representada pela peça publicitária em análise encaixa-se dentro do verdadeiro arquétipo mercadológico da mulher moderna: uma mulher que trabalha, que é independente, que tenta conciliar vida profissional com a vida social e que valoriza a beleza física, mas que, no entanto, dada a correria de sua “batalha” diária não tem tempo a perder com cuidados demorados em prol de alcançar a beleza. Verificada como uma representação de identidade que visa a incitar ainda mais o consumo de uma imagem do que é “ser mulher na atualidade” e, também, o consumo de produtos relativos à beleza, que prega a individualidade, o gosto e o estilo pessoal como marcas da mulher independente e realizada.
Contextualização:
A publicidade de cosméticos, de forma geral, tem
buscado, através de formas persuasivas distintas, expandir
1 Texto escrito em 2007.
8
cada vez mais o uso de tais produtos através da adesão de
novos e da confirmação de antigos consumidores. De acordo
com Lopes (2005, p.6), o ciclo de vida de um cosmético é de,
no máximo, cinco anos. Alguns produtos são retirados do
mercado meses após o lançamento, conforme informação da
autora. O que demonstra a grande rotatividade dos produtos.
A maior parte da publicidade de cosméticos é
estrategicamente dirigida às mulheres por serem elas as
grandes consumidoras destes produtos. Tais publicidades
investem na criação de um elo entre o produto e a vida
emocional da mulher e isso pode ocorrer por meio de
representações do feminino nelas engendradas. No entanto,
esta mulher representada não figura sempre do mesmo modo,
visto que é preciso aproximar-se dos arquétipos femininos de
representação instaurados na sociedade, de acordo com a
época corrente e com os desejos que a publicidade quer
alcançar ou criar nas consumidoras a fim de que comprem os
produtos anunciados.
Muitas vezes as pessoas são impelidas a consumir não
apenas os produtos anunciados pela publicidade, mas a
consumir a própria publicidade. Kellner (2001, p.324) indica
que “a publicidade está tão preocupada em vender estilos de
vida e identidades socialmente desejáveis, associadas a seus
produtos, quanto em vender o próprio produto”.
9
O termo consumismo, segundo Yúdice (2006, p.228), é
historicamente associado a movimentos de proteção ao
consumidor. No entanto, hoje, a noção de consumismo não se
refere mais predominantemente à proteção ao consumidor,
função que está perfeitamente alojada dentro do Estado, mas
à permeação de todos os aspectos da vida (lar, lazer, psiquê,
sexo, política, educação, religião) por um ethos (ou estilo de
vida) em que todas as imagens nos consomem.
De um movimento social de proteção ao consumidor, o
consumismo foi transformado em um movimento empresarial
para a instrumentação democrática do consentimento, ainda
de acordo com Yúdice. Em parte, a permeação de tudo o que
há na vida pelo consumo foi possibilitado pela mudança de
uma seleção sempre mais específica de consumidores.
A cultura de consumo define-se como o conjunto de
práticas e representações que estabelecem uma relação
estetizada e estilizada com os produtos. Bourdieu apud Souza
(2004, p.173) define o estilo de vida (estilização) como sendo
um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem,
na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos,
mobília, vestimentas, linguagem corporal, a mesma intenção
expressiva. Trata-se de um consumo no qual os atributos
simbólicos dos produtos são manipulados em função de uma
intenção expressiva. Sob este aspecto, o consumo moderno
caracteriza-se pela ênfase dos atributos simbólicos dos
10
produtos, em detrimento de suas qualidades estritamente
funcionais e pela sua manipulação na composição de estilos
de vida. O consumo foi convertido no espaço de articulação
das distinções sociais, hierarquizadas em termos de uma
distribuição diferencial de prestígio.
Apesar de os discursos publicitários legitimarem e
generalizarem as práticas de embelezamentos corporais para
todos, as maneiras e graus de acesso aos produtos em prol
da beleza revelam-se hierarquizados.
A estetização do consumo, construindo universos
imagéticos em torno dos produtos, envolve os indivíduos em
fantasias tecnologicamente produzidas. É a inserção da
mercadoria (corpo) em um mundo de sonho onde tudo é
possível. A forma como o produto é apresentado causa nos
indivíduos a sensação de estarem muito próximos do objeto
oferecido, como se bastasse estender a mão e satisfazer seus
mais íntimos anseios. Não há, então, distância entre objeto de
consumo e consumidor, mas uma estreita relação de
dependência de um para com o outro.
Ao estimular os investimentos no corpo como forma de
expressar a individualidade, o estilo de cada uma, a
manifestação da personalidade de cada mulher, na “escolha”
de cosméticos, roupas, práticas, bens de consumo, os
discursos publicitários midiáticos englobam a todas em um
discurso ideológico do gosto, num discurso legitimado,
11
impondo uma variedade de gostos, de modo naturalizado,
fazendo com que não percebam seu caráter ideológico.
No que se refere ao mercado, percebe-se a utilização de
métodos que dão ilusória impressão de que seus
consumidores são livres para escolher seus estilos de vida,
seus hábitos, que têm liberdade para definir suas formas de
vida. Contudo, essa desejada liberdade do consumidor – que
significa uma orientação da vida para as mercadorias
aprovadas pelo mercado – impede, pois, a liberdade decisiva
de seu libertar das exigências que o mercado preparou para a
escolha dentre os produtos que padronizou para o consumidor
que ele quer conquistar.
De acordo com Vestergaard e Schroder (2004) apud
Reis (2006, p.42-3), as grandes agências de publicidade,
principalmente nas últimas três décadas, têm empregado
psicólogos e sociólogos que, munidos das mais recentes
pesquisas de opinião, procuram determinar os valores e
imagens que exercem maior apelo junto ao público de uma
dada publicação. Um dos pressupostos básicos do seu
trabalho é que os anúncios devem preencher a carência de
identidade de cada leitor, a necessidade que cada pessoa tem
de aderir a valores e estilos de vida que a confirmem como
sujeito e permitam-lhe compreender o mundo e seu lugar nele.
Para os autores, ocorre um processo de significação, no qual
certo produto se torna expressão de um determinado
12
conteúdo (estilo de vida e valores). Esse processo teria como
objetivo ligar a desejada identidade a um produto específico,
de modo que a carência de uma identidade se transforme na
carência do produto.
Reis (2006, p.49), parafraseando Soulages (2001), diz
que os efeitos visados pela instância de produção não se
restringem apenas à aquisição do produto que está sendo
veiculado pela publicidade, como, também, à adesão e
assimilação dos valores que o mesmo traz subentendidos.
Apesar de cada vez mais se investir em consolidação do
nome da empresa, da marca, da agregação a ela de valores
positivos e politicamente corretos, todos estes itens
pontuados, e outros mais, convergem para o mesmo fim: a
venda do produto, que é o objetivo máximo da publicidade.
A publicidade é, para Soulages (2001), uma forma
insidiosa e mascarada de circulação das representações
sociais. Longe de refletir as identidades reais, a publicidade
participa da estereotipação das identidades sociais,
constituindo-se como um autêntico programa de construção
identitária. A publicidade cria e dissemina em suas peças,
modelos estereotipados de beleza, de saúde etc., nos quais
os consumidores possam se projetar, criando-se, assim, os
mundos possíveis, que englobam a figura e o mundo do
consumidor para que ele possa se ver através desse espelho
de representação.
13
Hodiernamente, falar sobre o sujeito moderno ou formas
como esse sujeito é interpelado por algum discurso, insira-se
aí o discurso publicitário, requer que se leve em consideração,
tal qual já expusemos, questões que versem sobre a
identidade (s) desse sujeito. No “badalado” livro de Stuart Hall,
A identidade cultural na pós-modernidade2, o autor afirma que
as identidades estão sendo descentradas devido à
fragmentação crescente nas sociedades modernas.
Hall (2004, p.10) distingue três concepções muito
diferentes de identidade, sendo elas formuladas conforme a
concepção de sujeito tomada, assim, teríamos: o sujeito do
iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.
Para o autor, sujeito Iluminista, compreendido como
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de razão,
criou uma concepção muito “individualista” do sujeito. Um
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de
capacidades de razão. Essencialmente descrito como
masculino. Mas, diante da crescente mudança do mundo
moderno e da compreensão de que a autonomia deste sujeito
não era exatamente como era concebida, pois ele também era
formado na relação com outras pessoas, desenvolve-se a
concepção do sujeito sociológico.
A concepção de sujeito sociológico caracteriza-se, para
Hall, como uma identidade em busca de uma estabilização
2 Versão usada de 2004.
14
entre o interior e o exterior, o mundo pessoal e o mundo
público, internalizando sentimentos subjetivos em lugares
objetivos (mundo social e cultural). De acordo com essa visão,
que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a
identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade.
(HALL, 2004, p.11)
Estas duas concepções demonstram a busca por uma
identidade fixa e permanente, todavia, no contexto atual, elas
se encontram em colapso, em “crise”, ou em “deslocamento”,
como prefere afirmar Hall. Desta transformação surge o
conceito de sujeito pós-moderno, pois, diferentemente dos
dois conceitos anteriores, este sujeito não é caracterizado por
uma identidade fixa ou permanente. Ainda, segundo Hall
(2004, p.12), o sujeito, previamente vivido como tendo uma
identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;
composto não de uma única, mas de várias identidades.
Sendo assim, deveríamos, em lugar de falar da
identidade como uma coisa acabada, falar de identificação, e
vê-la como um processo em andamento. Pois,
a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós enquanto indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir do nosso exterior pelas formas através das quais nós imaginamos ser visto por outros. (HALL, 2004, p.39)
15
Essa forma do sujeito se enxergar a partir do que
imagina ser a visão do outro sobre ele, leva à questão da
representação, uma vez que a identidade não é algo inato,
mas formado e transformado no interior das representações.
Assim, a identidade resulta das interações entre os grupos e
os procedimentos de diferenciação simbólica que eles utilizam
em suas relações construindo e se reconstruindo
constantemente no interior das trocas sociais, num processo
dinâmico e inacabado de (co)construção. Portanto, como
prática social.
Ao analisar uma campanha da Nova Linha Seda3,
denominada Um toque de Seda, veiculada na revista Claudia
de dezembro de 2006, corpus deste breve estudo,
concordamos com Hall e também com Moita Lopes (2002,
p.31) quando afirmam que a identidade deve ser pensada
como “um construto situado em circunstâncias sócio-históricas
particulares”. E, também, que as identidades, além de serem
construídas no discurso e pelo discurso, são fragmentadas e
fruto de todas as experiências que os sujeitos experienciam
durante toda a sua vida.
A identidade, conforme caracterizada anteriormente,
aponta também para uma noção de representação social que
3 Marca fabricante de produtos para cabelo, especificamente neste
caso, o anúncio refere-se a shampoos e condicionadores.
16
fuja ao dualismo entre o mundo individual e mundo social,
considerados como “dicotômicos”.
Nessa perspectiva, entendemos com Jodelet (2001,
p.22) que as representações sociais podem ser caracterizadas
como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e
partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social”. As
representações sociais configuram-se como sistemas de
interpretação da realidade que produzem e constituem-se de
valores, crenças e atitudes. E que ainda, de acordo com a
autora, “as representações sociais circulam nos discursos, são
trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e
imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em
organizações materiais e espaciais”. (idem, op. cit)
No entanto, posicionando-nos discursivamente,
acreditamos que o sujeito interaja com essas representações
sociais, atuando não apenas como receptáculo de
informações, mas que haja na tensão entre a aceitação e a
recusa das representações sociais. Pois, sendo
fundamentalmente dinâmicas, as representações sociais
levam os indivíduos a produzirem comportamentos e
interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam os
dois. Devido a essa condição, as representações sociais
revelam-se potencialmente capazes de orientar conceitos e
influenciar condutas. Por isso a importância de seu estudo.
17
Análise
A revista Claudia, da Editora Abril, surgiu em 1960.
Naquela época, de acordo com Jordão (2005, p.33), “a leitora
da revista era a mulher que usava bobes no cabelo, enquanto
preparava o jantar para o marido, e o esperava com um
sorriso no rosto”. Paulatinamente a revista começou a tratar
de temas mais profundos como aborto, divórcio, sexo,
profissão, entre outros. Hoje seu público-alvo, ainda de acordo
com a autora, é a mulher realizadora e ativa que buscou, em
todos esses anos, prazer, felicidade, conforto, praticidade e
principalmente a liberdade.
Segundo dados do Instituto Marplan, do 2º semestre de
2005 e 1º semestre de 2006, obtidos no site da editora Abril, a
revista Claudia tem um total de leitores de 2.397.000 e o perfil
deste leitor pode ser traçado assim:
50% têm idade entre 18 e 39 anos;
87% são mulheres
62% são pertencentes às classes A e B.
A revista é hoje a revista feminina mais vendida no país.
E denomina-se como:
Claudia é a revista que traz inspiração, reflexões e soluções para a mulher que desempenha múltiplos papéis. Claudia aborda uma grande variedade de assuntos todos os meses: serviços,
18
tendências, moda, família, carreira, qualidade de vida. É a revista feminina mais importante e mais lida do país. Claudia é completa, como a mulher tem
que ser. (site da Editora Abril4)
Só mencionamos aqui alguns dados sobre a revista por
julgarmos que o perfil de leitor da revista está em acordo com
o perfil de consumidor buscado pela publicidade em questão.
Usaremos, neste estudo, uma enumeração particular das
páginas do anúncio para efeitos de organização desta análise:
a página de apresentação será a página um, obviamente,
seguidas das páginas dois, três e quatro.
Com exceção da página um as demais seguem o
mesmo padrão:
foto, não de corpo inteiro da garota-propaganda,
suposta consumidora do produto, que, devido ao
recorte na imagem, direciona o olhar de quem olha
para o rosto da mulher e obviamente para seus
cabelos;
nome da campanha publicitária no canto superior
direito da página;
trecho selecionado da fala da consumidora em
destaque, à direita da foto, bem próxima à boca da
suposta consumidora;
4 Disponível em:
http://elle.abril.com.br/midia_kit/claudia/m_revista.html. Acesso em: 14 fev. 2007.
19
nome e sobrenome, idade e profissão das
mulheres;
texto relato da experiência que a Nova Linha Seda
operou em cada uma delas, em forma de uma
pequena entrevista;
(Esses elementos todos em segundo plano na imagem).
embaixo, em primeiro plano, e ocupando um
tamanho na página que vai até a cintura de cada
mulher fotografada, vem a imagem do produto: o
shampoo e o condicionador experimentado-
anunciado.
Fundo branco, não havendo outra coisa a não ser
a mulher, o texto e o produto.
O anúncio é introduzido por um texto “apresentativo” não
apenas da Nova Linha Seda, mas também de três
personagens que figuram como garotas-propaganda do
produto. E que, ao longo da publicidade, verifica-se serem
elas – as garotas-propaganda –, as protagonistas da história e
não os produtos anunciados, como se poderia esperar de um
anúncio, digamos, tradicional5.
O texto introdutório ocupa a primeira página e cada uma
das garotas-propaganda ocupam também uma página. Na
5 Isso não implica papel menor ao produto e sim uma representação
da identidade da mulher que deve desejar a nova linha Seda. As garotas-propaganda funcionam com uma âncora para o produto.
20
página de abertura, uma frase ganha destaque: Três mulheres
de bem com a vida, na qual a palavra bem é grafada em
tamanho muito maior que as demais. Estar de bem com a vida
é estar feliz, no entender da publicidade em questão. Em
seguida a esta frase, segue a apresentação dessas três
mulheres que estão de bem com a vida, mas ao contrário do
que se poderia esperar, não são seus nomes que as
identificam e sim suas profissões: uma designer de jóias, uma
advogada e uma relações públicas. Vejamos o texto:
Além de essas mulheres serem apresentadas pelas
profissões e não pelos nomes, o texto diz que elas irão contar
algo: ou seja, diferentemente das publicidades em que há uma
voz que fala em lugar da mulher e nas quais as mulheres
figuravam apenas como um apelo visual, aqui se diz que elas
irão contar. Tenta-se representar, portanto, a mulher como
uma profissional e como alguém que teria “voz”. E o que
essas mulheres contam? Contam sobre uma relação, mas que
não é entre elas e uma outra pessoa e, sim, de uma pessoa
6 O itálico já faz parte do texto original.
“Uma designer de jóias, uma advogada e uma relações
públicas6 contam como melhoraram sua relação com o
cabelo. Cada uma teve uma experiência diferente com a
Nova Linha Seda.”
21
com um fragmento desta pessoa, neste caso, o cabelo.
Podemos perceber que o corpo é, então, fragmentado
metonimicamente.
Após esse trecho, segue-se, ainda na página de
abertura, um outro trecho com letras em tamanho normal,
visto que os dois outros disponíveis estão em destaque nesta
página. Dividido em dois parágrafos esse trecho descreve um
pouco sobre o tipo, perfil, de mulher que precisa dessa nova
linha Seda.
Avultam-se, no primeiro parágrafo do trecho, vários
verbos no infinitivo não-flexionado que designam ações, e que
são ações das mulheres, conforme anúncio, que precisam de
Seda: trabalhar, cuidar família, abrir espaço na agenda pra
ver os amigos, correr atrás de compromissos, dar conta de
inúmeras pendências, fazer-se presente e atuante em várias
frentes, encontrar tempo para ficar bonita, aproveitar os
melhores momentos da vida.
Tudo isso representando a mulher ativa socialmente,
que trabalha fora e é capaz de tomar decisões, de se
organizar, de ter tempo para vida social, de cuidar da família e
ainda de ser bonita, elegante, sensual e atraente, enfim, uma
mulher realizada. Ou como o próprio anúncio menciona: estar
de bem com a vida. O que não seria fácil, segundo a
publicidade, pois essa mulher teria que vencer uma batalha
diária: fazer-se presente em várias frentes.
22
Todas essas atividades desenvolvidas pela mulher,
segundo o anúncio, dá muito trabalho, mas nos permite
aproveitar os melhores momentos da vida. Perceba-se que
agora aparece uma voz social que se inclui no texto e
denuncia quem fala: uma posição mulher, pois ela se inclui
quando diz: mas nos permite aproveitar... portanto, uma
simulação de discurso de mulher para mulher, uma tentativa
de estabelecer proximidade e intimidade.
O texto desse parágrafo contrapõe o lugar social da
mulher “pós-moderna” com o lugar ocupado pela mulher em
outras épocas, pois a mulher atual, segundo a publicidade, se
faz presente e atuante em várias frentes, ou seja, ela
conquista espaços que antes lhe era negado e ainda é capaz
de cuidar da família e aproveitar os melhores momentos da
vida.
O segundo parágrafo do trecho menciona o que a Nova
Linha Seda pode fazer para cooperar com essa mulher que
não tem tempo a perder, pois sua batalha diária é laboriosa.
Nesta página, o discurso da beleza se aflora, pois não ter
cabelo bonito, em conformidade com o proposto na
publicidade, impede a mulher de sair de casa. E a
representação da mulher do anúncio é de uma mulher bonita,
elegante, sensual e atraente.
O parágrafo inicia-se por uma interrogação: O cabelo
não está bom? Seguido de uma afirmação: Não tem problema.
23
É só encontrar um jeito diferente de secar, um corte mais
estiloso e produtos que realcem a forma. O texto prossegue
com um tom de aconselhamento tranquilizador: A Nova Linha
Seda é isto: um verdadeiro tratamento de beleza para cabelo
liso, ondulado ou cacheado. Você usa e sai de casa relaxada,
para cuidar do que realmente importa na vida. Finalmente,
tem-se os três tipos de cabelos diferentes com os quais a
nova linha pode ajudar as mulheres a relacionarem-se melhor.
Note-se também que aparece aqui a palavra tratamento dando
uma ideia de cabelo doente, que precisa de cuidados
verdadeiros. O imperativo deflagra o tom apelativo da
publicidade, não no tom de ordem, mas ainda sim de
aconselhamento: você usa e sai de casa relaxada. Para uma
mulher tão ativa e atuante, na perspectiva do anúncio, a
palavra relaxada é muito mais do que só uma palavra é
também um tratamento contra o stress operado pela escolha
linguística associada às qualidades do produto.
Novamente volta a ação da mulher que deve cuidar do
que realmente importa na vida. E o que importa está descrito
pelas outras ações mencionadas no primeiro parágrafo.
Encerrando o parágrafo e também a página inicial tem-se a
frase: Porque – fala sério! – foi-se o tempo em que a mulher
não saía de casa por causa do cabelo! O tom coloquial tenta
estabelecer uma ideia de proximidade com a leitora-futura-
consumidora do produto, além de caracterizar uma variação
24
linguística típica na fala de pessoas mais jovens, como é o
caso das três garotas-propaganda.
Para finalizar esta parte, menciona-se o nome da
campanha publicitária que ajuda a entender melhor a
contribuição de Seda para a mulher pós-moderna: Um toque
de Seda. Apenas um toque, o mínimo esforço, como em um
passe de mágica.
Na página dois da peça publicitária, aparece a foto da
primeira garota-propaganda, suposta consumidora do produto
anunciado e que fala, como se estivesse em uma entrevista, a
respeito dela mesma e de como foi sua experiência com a
linha Seda Liso Perfeito. Um trecho de sua fala é destacado
na parte superior do texto de sua entrevista. Vejamos:
“Sou perfeccionista, qualidade fundamental para a
minha profissão. Do desenho de um anel até o
polimento final, não deixo escapar nenhum
detalhe. Um bom acabamento faz toda a diferença
entre uma jóia de classe e uma bijuteria sem
imaginação. Tenho o mesmo nível de exigência
com o meu cabelo.”7
Nota-se a valorização da representação profissional
desta mulher. Uma mulher com um alto nível de exigência e
7 Aspas do texto original
25
que se revela perfeccionista em tudo e com tudo. A
contraposição entre uma jóia de classe e uma bijuteria ajuda,
por extensão, a formar a ideia de qualidade do produto
anunciado também, visto que uma mulher com um nível de
exigência destes, que observa cada detalhe de suas peças,
não iria usar qualquer produto em seus cabelos. Sua
identidade, portanto, é delineada por seu estilo perfeccionista
e exigente.
Só então é apresentado ao público-leitor-futuro-
consumidor (leitora-futura-consumidora) o suposto nome da
mulher da foto e entrevistada, trata-se de Mariana Bittencourt,
28 anos, designer de jóias. Atente-se para a importância dada
pela peça publicitária a questão da idade da mulher
apresentada ao lado da profissão exercida. E após segue-se
a fala inteira da suposta designer de jóias.
No texto de sua fala, ganham relevo mais uma vez a
questão profissional demonstrando ser o exercício de sua
atividade profissional a realização de um sonho de infância e
de sua autorrealização em ser competente neste quesito.
Delineia-se uma mulher empenhada naquilo que faz, que
busca novas técnicas para melhorar ainda mais suas
criações, valorizando assim a mulher criativa e capaz de
inovar. Uma analogia é traçada entre o aprimoramento de sua
atividade profissional e o aprimoramento nos cuidados com o
cabelo proporcionado à mulher pelo uso de Seda Liso
26
Perfeito. O que pode ser verificado no trecho final da
entrevista:
Seda Liso Perfeito entrou em minha vida como uma
autêntica “hair designer” para meu cabelo. Ele
ganhou novamente leveza e brilho: fica bem mais
solto, lisinho, mas com a forma que eu gosto. Ou
seja: ganhou uma finalização perfeita, assim como
as minhas jóias.
Os planos, eficiência profissional e eficiência do produto
se cruzam nesta fala, construindo uma imagem positiva do
produto, sem, no entanto, mencionar suas propriedades
químicas como era comum em anúncios anteriores de
cosméticos.
Na página três, a mesma estrutura da página anterior é
seguida e o trecho destacado da fala da suposta segunda
consumidora é o seguinte:
“Divido o dia-a-dia entre reuniões no escritório e
encontros externos com os clientes. Nesse vaivém,
meu cabelo ficava sem forma, armado. Irritada, eu
tentava domá-lo fazendo escova. Agora aposentei o
visual „liso‟: assumi o ondulado, que me dá mais
personalidade. É uma delícia ter um produto
27
específico para o meu cabelo.”
Novamente a representação da mulher profissional ativa
e atuante ganha relevo nesta segunda suposta entrevista. A
correria do dia-a-dia é frisada a fim de valorizar a necessidade
de um produto específico e prático para essas mulheres tão
sem tempo. Neste trecho também é frisada a questão da
especificidade de se ter um produto para cada tipo de mulher,
é como se o anúncio dissesse: cada mulher é única e nós
entendemos isso e desenvolvemos um produto para você!
Além disso, ocorre um apelo para que a mulher liberte-se e
mostre o seu natural, devidamente cuidado pela Nova Linha
Seda, o que pode ser notado no uso de certas expressões
como domá-lo, aposentei o visual liso, assumi o ondulado que
me dá mais personalidade. A questão da identidade aqui gira
em torno da personalidade.
Depois do trecho, mais uma vez, o nome da suposta
consumidora, Milena Barreto, 25 anos, advogada. E no
mesmo molde da anterior, a valorização do lado profissional e
da idade da consumidora.
Esta entrevistada fala um pouco menos de sua
profissão, sem, no entanto, desprender-se de ser esse o fator
responsável pela falta de tempo para ficar presa a processos
demorados de cuidados com o cabelo. Menciona a questão
do ambiente de trabalho que favoreceria à perda da beleza
28
natural de seu cabelo: o contato diário com o ar condicionado
do escritório prejudica meu cabelo: as ondas perdem o
volume, murcham. Por esse motivo vivia presa a um ritual
demorado da santa escova, que fazia até na praia. Mas isso
até sua experiência com a nova linha Seda Ondas Marcantes.
A importância do lado do bom convívio social, de ser
bem vista pelo outro(s), é representada, no texto, no trecho
em que diz:
Meus amigos dizem que estou com um ar mais jovial
e o meu namorado diz que o cabelo ondulado me
deixa mais “mulherão”. E eu me sinto mais segura
por ter assumido meu cabelo do jeito que é.
Interessantemente essa mulher, apesar de ter apenas
25 anos, valoriza muito o fato de aparentar-se mais jovem aos
olhos dos amigos. Pode ser observado ainda, que essa
mulher profissional, jovem, com intensa agenda diária, capaz
de se sair bem no lado profissional e no social é, apesar de
todas as conquistas feministas de emancipação da mulher,
pretensamente submissa ao olhar masculino que modela o
ideal de beleza e de sensualidade feminina, como pode ser
lido no trecho: meu namorado diz que o cabelo ondulado me
deixa mais mulherão. Fator que juntamente com a aceitação
da forma natural de seu cabelo – desde que tratado
29
adequadamente por Seda – faz com que essa mulher se sinta
mais segura e com personalidade mais marcada, ou
poderíamos pressupor que sua identidade estaria atrelada à
representação que “recebe” dos outros.
Na quarta e última página da peça publicitária, uma
terceira mulher, também suposta consumidora, é apresentada
nos mesmos moldes das duas anteriores:
“Passo o dia lidando com clientes, funcionários,
fornecedores e me esforço para que tudo saia
conforme o planejado. Por isso, poder contar com
uma linha de produtos que me livre da preocupação
com meus cabelos é um alívio. Troquei cachos
arrepiados e amassados por cachos bem definidos.”
Nesta terceira fala da consumidora destacada na peça
publicitária, avultam-se além do dinamismo profissional da
mulher supostamente entrevistada, a capacidade de
planejamento. A falta de tempo a perder com cuidados para
embelezamento dos cabelos é recorrente e o alívio em saber
que existe uma linha de produtos que a livre da preocupação
com isso é valorizada.
A suposta consumidora é denominada de Carol Schoof,
27 anos, relações públicas. E assim como nas demais, aqui
também a idade e a questão profissional são relevadas. No
30
texto da entrevista desta consumidora, há uma referência à
correria normal de seu dia-a-dia, expressa em:
minha vida é muito corrida [...] principalmente
nesta época do ano, em que aumenta o número
de eventos que organizo para o restaurante
onde trabalho: são almoços, confraternizações,
festas de final de ano.
Notamos, portanto, a representação da mulher como
dinâmica, vencedora de desafios que lhe são impostos.
Dinamismo que também pode ser notado em: gasto muita
energia, falo com muita gente. E é justamente desses
contatos que surgem novas amizades desse contato com
pessoas diferentes, das quais acabo me aproximando.
Algumas viram até amigas. Novamente, o sucesso no
convívio social tem lugar na publicidade.
O produto também proporciona à entrevistada maior
confiança nela mesma: a correria continua, mas agora me
sinto confiante cada vez que olho no espelho. Tenta-se,
portanto, agregar ao produto mais esse valor simbólico.
A peça parece mostrar que mais do que ter um tipo de
produto diferente para cada tipo de cabelo, tem um produto
diferente para cada tipo de mulher, para cada personalidade
ou estilo de vida. Essas mulheres, ou melhor, essas
31
representações, figuram como protagonistas das experiências
diferentes, anunciadas na abertura da publicidade, na
verdade, servem de suporte para apresentar ao público a
Nova Linha Seda.
As identidades arroladas, embora tratem todas de
mulheres atuantes no mercado de trabalho, representam cada
uma a seu jeito, fragmentações das mulheres que se
desdobram para gerir terem sucesso nos campos profissional,
pessoal e social, que não perdem a preocupação com a
beleza, vista como essencial para a boa imagem perante os
outros. Mulheres que fazem aquilo que gostam e não têm
tempo a perder. São mulheres bonitas e esbeltas, que se
encaixam dentro dos ditames dos padrões de beleza
pregados pelo mercado consumidor, que querem ficar cada
vez mais belas, sem terem que perder tempo demais com
isso.
Há na publicidade um silenciamento8 quanto ao
segmento masculino, pois a propaganda é dirigida
exclusivamente ao público feminino, denunciando o maior
apelo feito às mulheres com relação aos cuidados estéticos
com a beleza. Que encontra sustentação na formação
discursiva que preconiza os cuidados estéticos em muito
8 Orlandi diz que o silêncio pode ser compreendido não como
ausência de palavras, mas como calar o interlocutor de sustentar outro discurso. O silêncio se produz em condições específicas que constituem seu modo de significar. (2002, p.105)
32
maior grau às mulheres que aos homens. Pois a mulher se
sentiria muito mais pressionada socialmente a ser bela, o que
estimularia o crescimento cada vez maior das ofertas de
produtos dirigidos a esse filão do mercado: cuidados com a
beleza.
A mulher representada tem que enfrentar a sociedade
dia-a-dia e em várias frentes e deve se apresentar bonita,
elegante, sensual e atraente e para isso ela não deve se
preocupar porque há uma linha de produtos que pensa
exatamente nela, em sua falta de tempo, e que está ao seu
alcance. Linha que apenas com um toque é capaz de relaxá-
la, torná-la mais mulherão, mais confiante em si mesma. E por
isso aparecem todas sorridentes nas imagens, demonstrando
estarem de bem com a vida.
Resta mencionar que a publicidade se encaixa
perfeitamente no perfil de leitora da revista Claudia, o pode
significar adesão destas ao consumo do produto anunciado.
Considerações finais:
Nesta publicidade, constatamos que as mulheres têm
suas identidades representadas em forma de estilo, gosto,
personalidade. São representadas como mulheres
independentes financeiramente, atuantes no mercado de
trabalho, dinâmicas e competentes, capazes de gerir suas
33
vidas profissional e social com equilíbrio. Fazem aquilo que
gostam e não têm tempo a perder. São mulheres bonitas e
esbeltas, que se encaixam dentro dos ditames dos padrões
de beleza pregados pelo mercado consumidor, que querem
ficar cada vez mais belas, sem terem que perder tempo
demais com isso. Essas representações são filiadas às
classes média e alta, pois todas possuem curso superior
como formação profissional e podem escolher os produtos a
serem consumidos por elas. Mulheres que conseguiram um
suposto lugar de fala, ainda que o texto seja apenas uma
ilusão de realidade a fim de persuadir as leitoras-futuras-
consumidoras de que as mulheres ali apresentadas são
pessoas normais.
Essa representação visa incitar ainda mais o discurso do
gosto camuflado sobre a roupagem de estilo pessoal e
individualidade, que seria, segundo esse discurso, marcas da
personalidade.
Identificamos ainda um jogo de sedução como uma
estratégia de marketing: coloca-se nas palavras das mulheres
a construção do corpo da mulher atual e de sua identidade
para incrementar credibilidade / confiabilidade à marca
anunciada. Cria-se uma imagem de mulher esclarecida que
tem poder de discernimento quanto ao que é positivo e
negativo em suas vidas, que sabe sempre o que quer e como
quer, apenas como ilusão de valorização das individualidades,
34
de suas identidades, mas o que se tenciona, de fato, é a
adequação destas mulheres aos padrões de beleza impostos
pela sociedade e maior aproximação com a leitora-futura-
consumidora. Observamos também que, ao se colocar nas
palavras da mulher a construção do corpo e da identidade da
mulher pós-moderna, cria-se também um lugar determinado
pelo mercado para essa mulher: o lugar de consumidora.
Não se pode deixar de mencionar nesta análise a
contradição existente entre o que se diz no anúncio e o que
se mostra. Todas as supostas consumidoras, que dão seus
depoimentos, se referem à praticidade de uso oferecida pelo
produto, uma delas chega até mesmo a mencionar: eu só lavo
e deixo secar naturalmente. Fica lindo, as ondas ganham
forma e o volume está sob controle. Contudo, as três
aparecem na publicidade com cabelo produzido
artificialmente.
Referências Bibliográficas:
JODELET, Denise (org.) As representações sociais. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: estudos culturais. São Paulo: EDUSC, 2001.
35
LOPES, Marcela Teixeira. O conceito de beleza e maternidade: um estudo exploratório do comportamento feminino. 135f. Dissertação (Mestrado). Instituto COPPEAD de Administração – UFRJ, 2005.
MOITA LOPES, Luís. P. Identidades Fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula.Campinas: Mercado de Letras, 2002.
ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2002.
REIS, Alcione Aparecida Roque. Processos de construção discursiva em publicidades de produtos diet e light. 110f. Dissertação (Mestrado). Programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos – FALE – UFMG, 2006.
SOUZA, Areci de Fátima Costa Souza. O percurso dos sentidos sobre a beleza através dos séculos: uma análise discursiva. 221f. Dissertação (Mestrado). Departamento de Lingüística do IEL – UNICAMP, 2004.
UNILEVER / SEDA. Campanha um toque de Seda. Revista Claudia, n.12, ano 45, dez. 2006.
YÙDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
Site da editora Abril. www.abril.com.br.
Site da revista Claudia. www.claudia.com.br.
36
A IMAGEM DA LEITURA, NO CAMPO DO ETHOS ENUNCIATIVO, CONSTRUÍDA PELA APRESENTAÇÃO DAS DIRETRIZES DO PNLL.
(As vozes de dois Ministros de Estado) 1
Magna Campos – UFSJ Profª. Dra. Dylia Lysardo Dias – UFSJ
Resumo: Este trabalho tem por objetivo verificar a imagem da leitura (ethos) criada na cena de abertura do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), lançado em março de 2006, numa tentativa de ação coordenada entre dois ministérios: Ministério da Educação e Ministério da Cultura. Para tanto, usamos o conceito de ethos discursivo desenvolvido por Amoussy e Maingueneau, os quais consideram que sempre que enuncia, o sujeito deixa entrever uma imagem de si, não só pelo que ele diz, como também pela forma como diz. Todavia, nosso intento não é verificar a imagem discursiva criada pelos sujeitos em questão, no que diz respeito a eles mesmos, e sim, a imagem da leitura que construíram em suas enunciações. Verificamos que, embora, a proposta seja de articulação entre os dois ministérios, cada um dos textos de apresentação, assinado pelos respectivos ministros representantes de cada um dos dois ministérios envolvido, constrói um ethos diferente para a mesma questão: a leitura.
Introdução:
A proposta deste trabalho é de analisar qual é o ethos
discursivo construído para a questão da leitura naquela que
chamaremos de cena de abertura do Plano Nacional do Livro
e Leitura (PNLL), de 2006. Tal cena configura-se por dois
textos de apresentação, cada qual assinado por um dos
1 Texto escrito em 2007.
37
ministros representantes dos ministérios envolvidos na
elaboração do plano.
O PNLL traz à pauta uma situação atípica aos planos
que, de uma forma geral, pretendem servir ao fomento da
leitura e ao incentivo do livro: a tentativa de ação coordenada
entre dois ministérios. Neste caso, os Ministérios da Cultura e
da Educação.
De acordo com Maingueneau apud Amoussy (2005,
p.16),
a maneira de dizer autoriza uma construção de uma verdadeira imagem de si e, na medida que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma inter-relação entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficácia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adesão. Ao mesmo tempo, o ethos está ligado ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, ou melhor, ao processo de sua legitimação pela fala.
Pressupomos que, ao enunciar, cada um dos ministros
favorecerá à construção de uma imagem de si e do objeto de
que falam: o PNLL. Por ser este último um plano que visa
ações que sirvam ao fomento e à valorização da leitura,
acreditamos que, por via secundária, em suas falas os dois
ministros, também, acabem por criar uma imagem geral da
leitura.
38
Nesse intento, esta breve análise será estruturada em
quatro partes. A primeira versará sobre o PNLL e suas
condições de produção, a fim de que possamos ter uma ideia
mais concreta sobre o objeto apresentado pelos ministros. A
segunda tratará da teoria que utilizaremos para tentar
depreender qual a imagem da leitura construída, trata-se da
questão do ethos discursivo ligado à cena de enunciação,
proposto por Maingueneau e utilizado por Amoussy. Na
terceira parte, usaremos a teoria proposta por Maingueneau
para analisar a cena enunciativa de abertura do PNLL. E na
quarta parte, auxiliados pelas observações depreendidas das
partes anteriores, procederemos à análise da imagem da
leitura propriamente dita. Por fim, traçaremos articulações
entre as partes que compõem este trabalho em nossas
considerações finais.
2.0 – O PNLL e a cena enunciativa de abertura: a construção discursiva da imagem da leitura
2.1 – Sobre o PNLL e suas condições de produção
O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) foi lançado
oficialmente, numa tentativa de ações coordenadas entre os
Ministérios da Cultura e da Educação, em março de 2006.
Configura-se como sendo o primeiro, em toda a história do
Brasil, a priorizar a questão do Livro e da Leitura com vistas a
39
se tornar política de Estado. Apresenta ainda caráter
permanente, com edições tri-anuais, que deverão ser
avaliadas a cada ano, a entender pelo que está disposto em
seu texto.
O PNLL surgiu, segundo José Castilho Marques Neto2,
dentro dos debates que envolveram as atividades do
VivaLeitura3, cujos objetivos eram divulgar a leitura e
promover a conscientização sobre o valor social do livro,
atividades desenvolvidas em 2005.
Segundo o documento,
o objetivo central da Política de Estado aqui delineada é o de assegurar e democratizar o acesso à leitura e ao livro a toda a sociedade, com base na compreensão de que a leitura e a escrita são instrumentos indispensáveis na época contemporânea para que o ser humano possa desenvolver plenamente suas capacidades, seja no nível individual, seja no âmbito coletivo. (PNLL, 2006, p.25)
É designado como um conjunto de projetos, programas,
atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e
bibliotecas, empreendidas pelo Estado (em âmbito federal,
2 Secretário-Executivo do PNLL em entrevista concedida ao jornal do
Sindicato dos Bibliotecários do Estado de São Paulo (SinBiesp Notícias).Disponível em: < http://www.sinbiesp.org.br/detartigo.asp? cod=64.> Acesso em: 15 jul. 2007. 3 A ideia de se instituir 2005 como o ano da leitura foi gestada em
2003 num encontro de chefes de Estado acontecido na Bolívia, e aprovada pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Foi chamado de ano Ibero-americano da leitura.
40
estadual e municipal) e Sociedade (setor privado e terceiro
setor). Apresenta, conforme citação acima, como finalidade
básica assegurar a democratização do acesso ao livro, o
fomento e a valorização da leitura e o fortalecimento da cadeia
produtiva do livro, como fatores relevantes para o incremento
da produção intelectual e o desenvolvimento da economia
nacional, conforme explicitado pela Portaria Interministerial
1442 do Ministério da Cultura (MinC) e Ministério da Educação
(MEC)4.
O plano prevê atuações em quatro linhas de ações
distribuídas nos seguintes eixos:
• Eixo 1: Democratização do Acesso
• Eixo 2: Fomento à Leitura e Formação
• Eixo 3: Valorização da Leitura e da Comunicação
• Eixo 4: Apoio à Economia do Livro
O PNLL se integra ao Plano Nacional de Cultura (PNC)
corroborando com uma indicação da Organização das Nações
Unidas (ONU) de que o acesso aos equipamentos culturais
passe a figurar como Índice de Desenvolvimento Humano
4 Site do Ministério da Cultura. Disponível em: <
http://www.cultura.gov.br/noticias/noticias_do_minc/ index.php?p=23553&more=1&c=1&pb=1> . Acesso em: 15 jul.2007.
41
(IDH) juntamente com o acesso a bens e serviços5. Assim, tal
documento atende ao preceito da ONU de inclusão social,
conforme pode ser lido no seguinte trecho:
têm por base a necessidade de se formar uma sociedade leitora como condição essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de brasileiros no que diz respeito a bens, serviços e cultura, garantindo-lhes uma vida digna e a estruturação de um país economicamente viável. (PNLL, 2006, p.20)
O Plano é gerado em meio à indicação da ONU e
também da Organização das Nações Unidas para Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO6), sendo estas últimas as
seguintes: o livro deve ocupar destaque no imaginário
nacional; devem existir famílias leitoras, cujos integrantes se
interessem vivamente pelos livros e compartilhem práticas de
leitura; deve haver escolas que saibam formar leitores,
valendo-se de mediadores bem formados (professores,
bibliotecários) e de múltiplas estratégias e recursos para
alcançar essa finalidade; deve ser garantido o acesso ao livro,
com a disponibilidade de um número suficiente de bibliotecas
e livrarias, entre outros aspectos; e o preço do livro deve ser
acessível a grandes contingentes de potenciais leitores, os
5 Dado indicado na justificativa das diretrizes do PNLL, de dezembro
de 2006. 6 Idem.
42
sujeitos sociais mais recorrentes no documento em questão.
Pois, entende-se que,
a leitura e a escrita constituem elementos fundamentais para a construção de sociedades democráticas, baseadas na diversidade, na pluralidade e no exercício da cidadania; são direitos de todos, constituindo condição necessária para que possam exercer seus direitos fundamentais, viver uma vida digna e contribuir na construção de uma sociedade mais justa. (PNLL, 2006, p.20)
Dessa forma, a leitura e a escrita atuariam como
elementos capazes de construir a cidadania, da inclusão
social.
Favoreceram também para o surgimento do plano, vários
resultados negativos, quanto à competência em leitura dos
brasileiros, apontados pelas pesquisas realizadas, no país, por
iniciativas públicas e privadas, nacionais ou internacionais.
Um desses resultados foi o apontado pelo Indicador de
Alfabetismo Funcional (INAF) 20057, que evidenciava que
apenas 26% dos entrevistados brasileiros com idade entre 15
e 64 anos foram classificados como pessoas capazes de ler,
compreender e relacionar o texto lido com outros
conhecimentos. Demonstrando que três quartos da população
7 Relatório do INAF 2005. Disponível em: www.ipm.org.com.br.
Acesso em: 02 jul. 2007.
43
brasileira está à margem do efetivo letramento, tão essencial
para o avanço do país.
O resultado do Programa Internacional de Avaliação de
Alunos (PISA) 20008, também mediu o letramento em leitura
de alunos com 15 anos de idade e apontou que o Brasil
apresentou o pior índice dentre os 32 países analisados.
E para citarmos uma última pesquisa, apresentaremos
dados da primeira investigação realizada no Brasil dirigida por
setores particulares de nossa sociedade e que tinha por
objetivo demonstrar o Retrato da Leitura no Brasil9. De acordo
com o apurado pela pesquisa, que teve como referência de
investigação a população com 14 anos ou mais e mínimo de
três anos de escolaridade, o brasileiro lê em média 1,8 livro ao
ano, índice considerado muito baixo e que fica atrás de outros
países da América Latina, como é o caso da Colômbia, com
índice de 2,4 livros por ano. Esse índice se revela ainda mais
crítico quando a pesquisa demonstra que a penetração do
livro no país e o acesso a esse objeto cultural são ainda
bastante restritos, concentrando-se o mercado comprador de
livros nas mãos de 20% da população alfabetizada, na Região
8 BRASIL leva bomba no Pisa. Disponível em:
http://www.educacional.com.br/noticiacomentada/ 011207_not01.asp. Acesso em: 02 jul. 2007. 9 Realizada em 2001 pela Câmara Brasileira da Indústria do Livro
(CBL), Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e Associação Brasileira dos Editores de Livros (Abrelivros). Disponível em: < www.cbl.org.br> Acesso em: 02 jul. 2007.
44
Sudeste, nas grandes cidades e metrópoles, nos estratos de
renda mais elevados e com instrução superior.
Outro dado da pesquisa aponta que apenas 50% dos
livros de leitura corrente no país foram comprados, em
contraposição a 8% pertencentes às bibliotecas e a 4%
doados pela escola. O que demonstra a dificuldade de acesso
aos livros em escolas e bibliotecas, o que, somados à baixa
renda de grande maioria da população brasileira, contribuem
para que não se concretize a leitura no país.
Essas pesquisas ecoam no PNLL (2006) como
verdadeiras vozes motivadoras e justificadoras do intento, o
que pode ser observado nas seguintes passagens:
O Brasil chega ao século XXI, momento em que a difusão do audiovisual assume imensas proporções, ainda com enorme déficit no que diz respeito às práticas leitoras dos textos escritos. Nossos índices de alfabetização (stricto e lato sensu) e de consumo de livros são ainda muito baixos, na comparação com parâmetros de países mais ricos e desenvolvidos e mesmo com alguns dos países em desenvolvimento da América Latina e da Ásia. (PNLL, 2006, p. 14)
[No PISA] destaca-se ainda mais o péssimo desempenho dos alunos brasileiros, próximos do final da escolaridade obrigatória, revelando que não estão preparados para enfrentar os desafios do conhecimento nas complexas sociedades contemporâneas. Uma
45
performance dessa natureza acarreta prejuízos de toda ordem. A baixa competência de leitura não apenas influi no desenvolvimento pessoal e profissional dos estudantes como também, e até por isso, contribui decisivamente para ampliar o gigantesco fosso social existente em países como o Brasil, promovendo mais exclusão e menos cidadania. (PNLL, 2006, p.17)
A hipótese assumida pelo PNLL, de acordo com
ZILBERMAN (2007), é a de que uma das causas de se ler
pouco no Brasil é a circunstância de as pessoas ignorarem a
importância que o livro e a leitura podem desempenhar em
suas vidas.
A autora ainda menciona que o plano é fruto de toda
uma história da leitura e da educação no país que remonta os
primórdios da educação brasileira. Zilberman resume o
cenário evolutivo da história das tentativas de melhoria dos
índices de leitura no seguinte trecho:
Do século XVI ao XX, multiplicaram-se as proposições de melhoria dos índices de leitura e consumo de livros no País, intensificando-se sobretudo a partir dos anos 1980, quando a população brasileira, que, ao final dos anos 50, somava 60 milhões de habitantes, dobra para 120 milhões em 1980 e quase triplica para 160 milhões em 2000. Projetos de alfabetização de adultos, somados à ampliação da faixa de escolarização obrigatória (até 1970, correspondendo aos cinco anos do ensino primário; depois de 1970, correspondendo aos oito anos do
46
ensino básico), tentam atender à demanda crescente, mas as carências não diminuem, requerendo novos e mais extensos programas de leitura, de distribuição de livros (didáticos e infantis) à população de baixa renda, e de alfabetização acelerada. (ZILBERMAN, 2007, p.01)
Após essa contextualização, a autora insere o PNLL
dentro das políticas do século XXI, no âmbito da
administração federal vigente, mas que, como mencionado
anteriormente, é resultado, ainda, dessas mesmas
coordenadas citadas por ela.
Portanto, verificamos que o PNLL aparece como
resultado da confluência de várias vozes: algumas políticas,
outras econômicas, outras sociais e ainda outras culturais. E
na tentativa de atender às determinações de alguns órgãos
estrangeiros, aos apontamentos da comunidade científica, aos
clamores do setor econômico e às exigências de uma
sociedade contemporânea cada vez mais imersa nas
tecnologias de comunicação e de informação que traz à tona
uma constate exigência de um bom grau de letramento, pois a
sociedade informatizada precisa cada vez mais de pessoas
capazes de desfrutar dos bens e serviços que ela produz.
Nesse contexto, os dados das pesquisas e dos índices
sociais criam novos parâmetros, um novo discurso para a
tentativa de superação das dificuldades encontradas para se
formar uma sociedade leitora, na medida em que
47
consideramos que a linguagem e o discurso não (apenas)
descrevem uma realidade, mas a criam.
2.2 A questão do Ethos
Para Amoussy (2005, p.9),
todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto não é necessário que o locutor faça o seu auto-retrato, detalhe as suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma apresentação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si.
De acordo com a autora, o posicionamento discursivo do
sujeito é acompanhado por uma imagem desse mesmo
sujeito, não só pelo que ele diz, como também pela forma
como diz. Diz também que o ethos não seria uma
característica puramente linguageira e, nem tampouco, uma
característica exclusivamente institucional. Trata-se de uma
característica discursiva que se dá na relação entre o
linguístico e o institucional (AMOUSSY, 2005).
Nesta linha de raciocínio, Maingueneau (2005, p. 69),
relaciona o ethos à cena de enunciação. Segundo
Maingueneau (2001, p.79), o texto escrito possui, mesmo
48
quando o denega, um tom10 que dá autoridade ao que é dito.
Esse tom permite ao leitor construir uma representação do
corpo do enunciador, uma instância subjetiva encarnada que
assume o papel do fiador do discurso enunciado e não,
evidentemente, do corpo do autor efetivo (MAINGUENEAU,
2005, p. 72). A qualidade do ethos, dessa forma, está
associada à imagem do fiador que, confere a si próprio, uma
identidade compatível com o mundo que ele deverá construir
em seu enunciado.
O leitor deverá construir com base em indícios textuais
de diversas ordens, a imagem do fiador, o qual vê-se, assim,
investido de um caráter e de uma corporalidade
(MAINGUENEAU, 2005, p.72). Portanto, para Maingueneau o
caráter é o conjunto de traços psicológicos que o leitor/ouvinte
atribui à figura do enunciador, em função de seu modo de
dizer, e a corporalidade remete a uma representação do corpo
do enunciador da formação discursiva. Não se trata de traços
psicológicos ou da presença física dos enunciadores, mas do
que o leitor/ouvinte atribui a eles em função de seu modo de
dizer.
Dessa forma, o posicionamento discursivo não pode ser
dissociado da forma pela qual ele toma corpo e da cena na
qual esse corpo tem existência social e histórica. Porém, a
10
Segundo Maingueneau, o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral.
49
cena não é um quadro que exista anteriormente a constituição
do ethos. A cena de enunciação e o ethos possuem uma
relação paradoxal: o ethos não só pressupõe uma cena,
quanto à valida. (MAINGUENEAU, 2005, p.72-74)
Neste mesmo texto, Maingueneau diz que existe um
processo de incorporação que opera em três registros
indissociáveis: a) a criação de um ethos do fiador, conferido
pelo co-enunciador, a partir de indícios da própria enunciação;
b) a assimilação ou incorporação desse ethos por parte do co-
enunciador; c) a constituição de um corpo formado pela
comunidade imaginária que comunga na adesão de um
mesmo discurso.
Tendo como base a Análise do Discurso (AD),
Maingueneau afirma que o enunciador
não é um ponto de origem estável que se “expressaria” dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material em um modo de circulação para o enunciado. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)
O ethos configura-se, então, como parte constitutiva da
cena enunciativa e não apenas um meio de persuasão,
conforme pregava a retórica tradicional. Para operacionalizar a
noção em que o ethos é tanto uma característica linguageira,
50
quanto institucional, proposta por Amoussy, encontramos em
Maingueneau a pressuposição de uma análise na qual é
possível interpretar a situação de enunciação que é validada e
pressuposta por determinado ethos discursivo. Desse modo,
Maingueneau faz uma divisão da cena de enunciação em três
instâncias: cena englobante, cena genérica e cenografia. De
acordo com o autor:
A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão [...] Quanto à cenografia, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, etc. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)
Ao tratar a questão do gênero discursivo, o autor afirma
que alguns apresentam maior possibilidade de suscitar
cenografias do que outros. Como é o caso da lista telefônica
que não admite a cenografia e de gêneros que, por natureza,
exigem a escolha de uma cenografia, como os gêneros
publicitários, literários, políticos etc.. Especificamente o
discurso publicitário ou o político mobilizam cenografias
variadas, uma vez que, para persuadir seu co-enunciador,
devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade
invocando uma cena de fala valorizada. Citando o exemplo de
51
Amoussy (2005, p.16), o candidato de um partido pode falar a
seus eleitores como homem do povo, como homem
experiente, como tecnocrata etc.
Nessa cenografia, de acordo com Maingueneau, a figura
do enunciador, o fiador, e a figura correlativa do co-enunciador
são associadas a uma cronografia (um momento) e uma
topografia (um lugar) das quais supostamente o discurso
surge. (MAINGUENEAU, 2005, p.77). Assim, enquanto a cena
enunciativa corresponde ao tipo e gênero de discurso, a
cenografia, por sua vez, é estabelecida pelo discurso.
2.3 A cena enunciativa de abertura do PNLL
No documento que apresenta as diretrizes do PNLL
(2006), um fato curioso mostra-se já na abertura. Trata-se do
que no documento é nomeado de Palavra do Ministro da
Cultura e de Palavra do Ministro da Educação, uma espécie
de apresentação ou prefácio do documento redigido pelos
então ministros Gilberto Gil, do Ministério da Cultura (MinC) e
Fernando Haddad, do Ministério da Educação (Mec). Cada um
dos ministros assina uma das apresentações, numa tentativa
assumida de articulação entre os ministérios, em prol da
questão do Livro e da Leitura.
Essa tentativa de articulação já se configura como uma
circunstância atípica no cenário das políticas públicas de
52
leitura, haja vista que a própria desarticulação entre o MEC e
o MinC desde 1985 sinaliza para os desafios e dificuldades de
criar no Brasil, na escola, uma política cultural de formação de
leitores. Distinguindo-se outrora um planejamento do outro, a
relação da educação com a cultura foi seccionada e os
programas e projetos governamentais em torno do livro e da
leitura, colocados em prática nas últimas duas décadas, não
conseguiram a profundidade e consistência necessária para
serem eficientes de fato.
Tal articulação em si já apontaria para uma encenação
discursiva um pouco diferente dentro das políticas públicas e
dentro da característica usual deste tipo de documento.
Por opção metodológica, trabalharemos com as duas
apresentações separadamente, constituindo, cada uma delas,
uma cena de enunciação. No entanto, como nosso objetivo de
análise é observar e descrever a imagem da leitura construída
nessa confluência, que chamaremos de cena de abertura, não
perderemos de vista a ideia de cena de abertura, que engloba,
para nós, os dois discursos.
Apresentamos de início as condições de produção do
plano, pois como afirma Orlandi (1988, p.19), o dizer não é
apenas do domínio do locutor, pois tem a ver com as
condições em que se produz e com outros dizeres. E
aproveitaremos nesta parte para tratar brevemente sobre cada
um dos ministros em questão. Não como traços biográficos
53
apenas, mas para nos ajudar a visualizar o lugar social de
onde cada um deles enuncia e de certa forma as condições de
produção de seus discursos. Além disso, como sustentam
Charaudeau & Maingueneau (2004, p. 221), o ethos discursivo
relaciona-se estreitamente à imagem prévia que o alocutário
pode ter do locutor, ou, pelo menos, com a ideia que este faz
do modo como seus alocutários o percebem. Assim, segundo
esses mesmos autores (2004, p. 221), existe um ethos prévio
ou pré-discursivo que o locutor trabalha em seu discurso,
consolidando-o, atenuando-o ou retificando-o. O modo de
enunciar o discurso, portanto, não é aleatório: o ethos
discursivo deve autorizar e legitimar o locutor como sujeito de
seu discurso, sob pena de anular a validade, coerência e
eficácia do discurso. Ethos pré-construído (prévio), diríamos,
muito relevante no caso de representantes políticos, como é o
caso dos ministros acima.
A primeira cena enunciativa apresentada no documento
do PNLL refere-se, tal qual já dissemos, à Palavra do Ministro
da Cultura: Gilberto Gil.O ministro em questão, é
constantemente apresentado como o músico e ministro.
Apresentando uma carreira sólida na área da música, atuando
como cantor, compositor, intérprete reconhecido não apenas
no Brasil, como também de grande expressividade no exterior.
O ministro (músico) é reconhecido como um ativista social,
que usou as letras de suas músicas para “refletir” a
54
preocupação política e um inconformismo com a maneira de
viver do povo brasileiro. Preso pelo regime militar brasileiro
acusado de supostas atividades subversivas acabou sendo
exilado em Londres. Participou, juntamente com outros
artistas, do Tropicalismo11. Antes de ser nomeado Ministro de
Estado da Cultura, já havia ingressado na vida política, em
1988, ocupando as cadeiras de vereador de Salvador, na
Bahia, e de Secretário da Cultura de Salvador.
Em prefácio ao livro organizado por Leonardo Brant,
Diversidade Cultural, Gil afirma que:
hoje, como ministro da cultura do meu país, vejo no conceito de cultura a possibilidade de lidar com o ser humano brasileiro em todas as suas dimensões, mergulhado num meio ambiente Brasil
11
A Tropicália, Tropicalismo ou Movimento tropicalista foi um movimento cultural que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira; mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O movimento manifestou-se principalmente na música usando deboche, irreverência e improvisação, revoluciona a música popular brasileira, até então dominada pela estética da bossa nova. Liderado pelos músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, o tropicalismo usa as ideias do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade para aproveitar elementos estrangeiros que entram no país e, por meio de sua fusão com a cultura brasileira, criar um novo produto artístico. Também se baseia na contracultura, usando valores diferentes dos aceitos pela cultura dominante, incluindo referências consideradas cafonas, ultrapassadas ou subdesenvolvidas. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tropic%C3%A1lia. Acesso em: 17 jul. 2007.
55
que é sempre já natureza e cultura. Como artista e cidadão do mundo, vejo na cultura o espaço para o encontro de países, credos, etnias, sexualidades e valores, na cacofonia de suas diferenças, no antagonismo de suas incompatibilidades, na generosidade de um lugar-comum, algo que nunca existiu, mas sempre foi sonhado por aqueles que deixam seu olhar perder-se no horizonte. (in: BRANT, 2005, p.10) grifo nosso.
Como podemos observar, o próprio ministro define-se
como artista e cidadão do mundo e não apenas como um
brasileiro.
A cena de enunciação – Palavra do Ministro da Cultura –
, neste caso, configura-se como um dos discursos de
apresentação do PNLL, o primeiro plano, que como já
mencionado, pretende tornar-se política pública permanente,
fator bem frisado pelo ministro em seu texto, como pode ser
observado em:
[...] construir políticas duradouras12 que assegurem a ampliação do número de leitores no Brasil [...] [...] construir, portanto, uma política pública duradoura para o setor cultural constitui-se, indubitavelmente, numa daquelas grandes demandas da Sociedade [...]
12
Todos os grifos nas falas dos ministros são de nossa autoria.
56
Gilberto Gil fala, nesta cena, como ministro da Cultura,
em ação coordenada com outro ministro, e
consequentemente, com outro ministério. Enuncia, portanto,
ligando-se a uma instituição política. A cena englobante, assim
configurada, refere-se ao discurso político, mas que ao
mesmo tempo, arriscaríamos chamá-la de propaganda de
Governo e do Ministério da Cultura. O que pode ser percebido
em:
[...] É por esta razão básica que encaramos neste governo o conjunto de políticas que possibilitem a ampliação do acesso ao livro e à leitura como políticas fundamentais para a construção plena da cidadania em nosso país. [...] [...] A cultura, portanto, não apenas é assumida pela ONU como tarefa do governo, mas como uma tarefa prioritária de governo, capaz de definir o grau de desenvolvimento econômico e social de um país. [...]
A cena genérica configura-se como uma apresentação-
prefácio das diretrizes de um plano de incentivo à leitura e ao
livro. No entanto, sua filiação ao discurso político impõe-lhe
um novo nome, comum à autoridade que lhe é investida, por
isso é chamada de Palavra do Ministro da Cultura, tal qual é
57
comum ouvirmos em pronunciamentos oficiais, apresentados
inicialmente por: “com a palavra o Presidente da República”.
Quanto à cenografia, nela se deslinda o tom do artista-
ministro, Gilberto Gil. A apresentação-prefácio dá-se numa
mescla de tom poético com professoral. A começar pelo
próprio título dado à sua fala: Ler é abrir janelas. Vejamos
alguns trechos em que tais tons podem ser observados:
Poético: Caracterizado por metáforas, inversões
lexicais, pelo tom enfático de algumas proposições.
[...] Ler é transcender, é possibilitar, é ir além do nosso por vezes cruel mundo imediato – tantas e tantas vezes nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando estamos amuados e pesarosos. Ler é abrir janelas, destramelar portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler é fazer-nos expandidos. [...]
Professoral: Caracterizado pela tentativa de explicação
de processos, pelas próprias definições apresentadas para o
que seja Ler (como nos dois trechos citados no exemplo
anterior) e pela demonstração de como, segundo ele, o plano
poderá obter sucesso.
58
[...] E que convívio maravilhoso se dá numa Biblioteca, esta magnífica invenção coletiva da Humanidade: envoltos no manto do silêncio que aí reside e que nos convida à concentração e à reflexão, as Bibliotecas nos dão acesso aos infindáveis conhecimentos encontrados nos livros [...] [...] A partir do ato da leitura podemos então desenvolver um certo número de operações cognitivas, hierarquizando os argumentos, comparando os enunciados, descartando ideias [...]. Usamos essas ideias [...] para sermos melhores amigos e amigas, melhores pais e mães, melhores trabalhadores, melhores empresários ou melhores políticos. [...] [...] Quem faz cultura é a Sociedade, não é o Estado. Mas, cabe ao Estado – porque isso é do mais alto interesse público – amplificar as possibilidades para a produção cultural e para a multiplicação dos canais de difusão e das oportunidades de acesso. [...] [...] É preciso salientar que nós só teremos sucesso se conseguirmos consolidar efetivamente um pacto republicano para a atuação conjunta: não é nenhum governo, nem um setor em particular, é a Sociedade brasileira que exige a consolidação de uma ação concertada para o livro e leitura em nosso país. Todo investimento neste setor é extremamente recompensador. A sociedade reconhece e agradece.
59
Interessante salientar que o ministro justifica o
“empreendimento” e, portanto, o plano, e antecipa-se no
reconhecimento deste pela sociedade e agradece
antecipadamente, também, em nome dela.
No texto seguinte, temos a mesma configuração geral
da cena de enunciação: um dos discursos de apresentação
do PNLL – Palavra do Ministro da Educação –, desta vez,
vinculada ao Ministério da Educação, também em ação
coordenada com o Ministério da Cultura e, portanto, com
outro ministro e ligada à instituição política.
Antes de prosseguirmos, na análise, porém,
mencionemos um pouco sobre o ministro em questão:
Fernando Haddad, a exemplo do que realizamos com o
ministro Gilberto Gil e munidos do mesmo objetivo.
O referido ministro é geralmente apresentado como
professor Fernando Haddad, mesmo ocupando a cadeira de
ministro de estado. Isso porque Fernando Haddad foi
professor de Teoria Política Contemporânea da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de
São Paulo (USP). Antes de ocupar o cargo de ministro,
ocupou outros cargos políticos, dentre os quais, o de
Secretário Executivo do Mec na administração de seu
antecessor, Ministro da Educação, Tarso Genro.
60
Reconhecido por defender uma visão sistêmica13 da
educação, desde a educação infantil até o pós-doutorado, à
frente do ministério, rompeu com a ideia de que os diversos
níveis de ensino devessem competir entre si. Também
assume que a universidade deve se demonstrar como
liderança na requalificação dos outros níveis de educacionais
e ajudar a promover a inclusão social da população à
margem, no universo da cultura letrada.
Neste segundo caso, a cena englobante revela-se como
um discurso político, que ainda mais que na apresentação
anterior, propaga e promove o Ministério da Educação, os
projetos e pesquisas realizadas por este, desde longa data e,
especialmente, no atual mandato governamental. Como
exemplificaremos a seguir:
13
CUNHA, Luiz Antônio. Zigue-Zague no Ministério da Educação: uma visão da educação superior. Revista Contemporânea de Educação. Publicação online do programa de pós-graduação em educação da UFRJ. Disponível em: http://www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero1/artigos/conjuntura.php. Acesso em: 17 jul. 2007.
61
[...] Na verdade, nesse início do século XXI,
quando a sociedade brasileira conta com
mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos na
escola, o país tem a oportunidade histórica
de formar uma geração que teve acesso à
educação. [...]
[...] O MEC, por meio do INEP realizou avaliação, em matemática e português (leitura), de mais de 3 milhões de alunos de 4ª e 8ª séries em 40 mil escolas do país através do Prova Brasil. [...] [...] O MEC vem desenvolvendo, em parceria com os municípios, uma proposta de ação pública e conjunta de formação de leitores e de incentivo à leitura, que tem por princípio proporcionar melhores condições de inserção dos alunos na cultura letrada, no momento de sua escolarização. [...] [...] Nos últimos quatro anos, o MEC vem implementando uma série de ações de formação, em parceria com diversas universidades [...]
A cena genérica refere-se a uma apresentação-prefácio
não só das diretrizes do PNLL, mas uma espécie de
prestação de contas das ações do MEC em prol da livro e da
62
leitura efetuadas na atual administração. Os exemplos acima
servem também a este caso.
A cenografia aqui, diferentemente do tom poético-
professoral do ministro Gilberto Gil, ganha a seriedade e a
“contundência” de um administrador-prestador de contas. O
professor, talvez se apresente apenas na figura do articulador
que aloja o PNLL dentro de um cenário de muitas outras
políticas educacionais que dialogarão com ele e servir-lhe-ão
de subsídio para que obtenha sucesso. Por isso, talvez, o
título escolhido para seu texto tenha sido: O livro, a escola e a
leitura.
O tom do prestador de contas e articulador do tema
dentro dos outros programas do ministério pode ser verificado
em várias passagens de seu texto, destacamos algumas:
[...] Por meio da Secretaria de Educação Básica – SEB e do Fundo de Desenvolvimento da Educação – FNDE, o MEC coordena dois importantes Programas – o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD e o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE que poderiam ser chamados dos grandes portais para o acesso ao livro no Brasil, pois atendem a milhões de alunos das escolas públicas. [...] [...] Nos últimos quatro anos, o MEC vem implementando uma série de ações de formação, em parceria com diversas universidades, entre elas o Programa de Formação Continuada de Professores das
63
Séries/Anos Iniciais do Ensino Fundamental (Pró-Letramento) nas áreas de Alfabetização e Linguagem e de Matemática. [...]investindo, assim, na formação dos professores como mediadores de leitura.
[...] No acesso às novas mídias, merecem destaque as ações realizadas por meio da Secretaria de Educação a Distância – SEED, como os programas TV Escola e Mídias na Educação. [...] [...] A promoção da alfabetização de jovens e adultos através das ações do Programa Brasil Alfabetizado é complementada pela produção de material de leitura dedicado especificamente aos neo-leitores, jovens e adultos recém alfabetizados. [...] [...] O MEC também inovou com o PNLEM – Programa Nacional do Livro Didático para o ensino Médio que adquiriu e entregou 12, 5 milhões de exemplares de livros didáticos das disciplinas de português e matemática para estudantes de escolas públicas de nível médio. [...] [...] O Portal dos Periódicos da CAPES e a janela do “Domínio Público” na página do MEC também contribuem para a melhoria da qualidade na educação e para a formação de novos leitores ao facilitar o acesso a obras literárias e à produção científica. [...] [...] O incentivo à leitura, à divulgação do
64
livro e à produção de textos é outra vertente da política que busca a melhoria da qualidade da educação. Junto com o Ministério da Cultura e a OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos, o MEC lançou o Prêmio Vivaleitura, que visa reconhecer e premiar boas experiências de formação de leitores. [...]
Essa articulação é sempre feita nos moldes: o que se
fez dirigido ao para que ou quem se fez. O sujeito destas
ações é sempre o mesmo, o Ministério da Educação, portanto
um sujeito impessoal.
Podemos observar nas duas falas que, embora haja
uma condição preexistente de ação coordenada entre os
ministérios, cada ministro justifica a importância do tema e do
trabalho desenvolvido, mas poucas são as vezes que o
articulam como atribuição conjunta dos dois ministérios.
2.4 A imagem da leitura construída na cena de
abertura
Exploramos na caracterização da cena de enunciação
as três cenas que a compõem, no entanto, ainda nos resta
tentar apurar a(s) imagem(ns) que esta cena constrói para/da
leitura.
65
Pensamos que ao criar uma imagem de si, cada um de
nossos fiadores, cria também uma imagem do objeto PNLL, e,
por consequência, já que a questão do incentivo à leitura é a
desencadeadora do plano, supomos que eles acabam por
criar, por uma via secundária, uma imagem da leitura com a
qual o plano pretende trabalhar.
No texto de Gilberto Gil, encontramos várias
proposições para a leitura. Elencamos as que conseguimos
detectar:
A leitura como viagem transcendental: ler é
transcender [...] é ir além do nosso por vezes cruel mundo
imediato.
A leitura como companheira: tantas e tantas vezes
nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando
estamos amuados e pesarosos.
A leitura libertadora: ler é abrir janelas, destramelar
portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas
conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que
outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler
é fazer-nos expandidos.
A leitura como função didática presa às disciplinas:
coloca ao nosso alcance saberes tão diversos como aqueles
sobre a matemática aplicada à construção de relógios e ao
vôo dos aviões; o desenho geométrico que fará casas e
estradas; a composição molecular inscrita no cerne de nossas
66
células ou nos alimentos que nos dão uma vida mais
saudável; a história do comércio, dos transportes e também a
história daquela risonha menina a caminho. E até àquele
poema que usamos para enternecer a quem amamos.
A leitura como exercício da memória: seria um
exercício absolutamente fascinante remontar em quantas
dimensões, em quantos momentos, de quantas formas a
leitura marcou a vida de cada um, a vida de cada cidade, de
cada sociedade.
A leitura como edificação: quando falamos de livro e
leitura falamos, portanto, de expansões e de potencialidades.
A leitura como emancipação social: É por esta razão
básica que encaramos neste governo o conjunto de políticas
que possibilitam a ampliação do acesso ao livro e à leitura
como políticas fundamentais para a construção plena da
cidadania em nosso país.
O ministro ainda trata, sem que talvez se aperceba do
fato, de rituais estereotipados de leitura, fato que podemos
ilustrar na seguinte passagem:
E que convívio maravilhoso se dá numa Biblioteca, esta magnífica invenção coletiva da Humanidade: envoltos no manto do silêncio que aí reside e que nos convida à concentração e à reflexão, as Bibliotecas nos dão acesso aos infindáveis conhecimentos encontrados nos livros, dispostos em convívio pacífico, lado a lado, em suas estantes e prateleiras.
67
Melhor seria, talvez, que esses livros se encontrassem
desarrumados sobre a mesa de leitura, após terem sido
folheados e lidos pelas pessoas.
Todavia, em meio a essa proliferação de imagens de
leitura que o texto do ministro constrói, acreditamos que o
ethos construído para a leitura em sua fala, como um todo,
seja o ethos da promessa. A promessa de libertação, de
edificação, de emancipação, de companheirismo, de
extravasamento, de conhecimento. Um ethos que promete a
melhoria pessoal manifestada em:
a partir do ato da leitura podemos então desenvolver um certo número de operações cognitivas, hierarquizando os argumentos, comparando os enunciados, descartando ideias [...]. Usamos essas ideias [...] para sermos melhores amigos e amigas, melhores pais e mães, melhores trabalhadores, melhores empresários ou melhores políticos.
Ainda salientamos que no texto em questão a leitura é
tratada sempre em termos de leitura de livros apenas, daí os
espaços de bibliotecas serem tão frisados, e a leitura
apresenta sempre um caráter positivo, no discurso em
questão.
Na fala de Fernando Haddad, encontramos a leitura
como processo para o letramento escolar: uma política
68
consistente que promova o domínio da leitura e da escrita ao
longo da vida escolar/ [...] É preciso, portanto, que – da
educação infantil à pós-graduação – a criança/aluno participe
de um ambiente de forte e permanente estímulo à leitura, quer
através do livro, quer através dos demais suportes que tornam
a leitura uma atividade cada dia mais necessária a todos.
A leitura como prática social: mas sobressai a
regularidade das práticas de leitura, do estímulo às atividades
de criação de textos, da valorização das experiências e
saberes de seus alunos e das comunidades em que estão
inseridas. A leitura e a escrita têm, nessas escolas, o caráter
de uma atividade cotidiana, que vai além da função didática.
A leitura irradiada a partir da escola: a formação de
leitores se inicia na escola e deve prosseguir no ambiente
familiar e comunitário [...].
A leitura como inclusão (social e tecnológica): o
MEC vem desenvolvendo, em parceria com os municípios,
uma proposta de ação pública e conjunta de formação de
leitores e de incentivo à leitura, que tem por princípio
proporcionar melhores condições de inserção dos alunos na
cultura letrada, no momento de sua escolarização. [...] Através
das ações do programa Mídias na Educação busca-se
alcançar o objetivo de proporcionar formação continuada para
o uso pedagógico das diferentes tecnologias da informação e
da comunicação
69
Também aqui, observamos uma razoável proliferação de
imagens da leitura, mas podemos agrupá-las sobre o ethos
da esperança. Esperança de que todos os programas
políticos que envolvem a educação e consequentemente a
leitura, juntamente com este novo plano consigam incluir,
atualizar, efetivar, formar e mudar o panorama da leitura no
país, democratizar o acesso. Ethos da esperança que pode
ser observado mais nitidamente em:
Na verdade, nesse início do século XXI, quando a sociedade brasileira conta com mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos na escola, o país tem a oportunidade histórica de formar uma geração que teve acesso à educação e formá-la na valorização da leitura, no domínio da escrita, na visão crítica das informações que recebe e no exercício da produção e criação de sentido para suas práticas cotidianas.
Chamamos a atenção para o fato de que nesta cena,
considera-se a leitura não apenas do livro, mas também de
outros suportes. Apesar de considerarmos aqui o fato de que
o plano é uma proposta de fomento da leitura e do acesso ao
livro, nada impediria que os ministros mencionassem a
respeito de outros suportes. A exemplo do discurso anterior,
no texto de Fernando Haddad, a leitura também se apresenta
com caráter positivo.
70
3. Considerações finais:
Verificamos na fala do Ministro da Cultura a crença de
que o acesso ao livro leva automaticamente à formação do
leitor, por isso ele recorre corriqueiramente à necessidade de
bibliotecas e de frequentá-las, cumprir ritos de leitura, de
ampliar e melhorar a economia do livro como aquela que tem
um vasto potencial de geração de empregos, renda e
felicidade.
Ao passo, que, para o Ministro da Educação, o leitor se
constrói dentro do universo do letramento escolar, mediados
pelo professor que necessita estar preparado para exercitar
competentemente tal papel – Afinal, parafraseando o poeta14,
precisa-se do livro fechado, mas também de quem o abra,
interrogando-o – e por um sistema público que consiga
promover a inclusão das classes populares na cultura letrada.
Todavia, embora enfatizado, o ministro não restringe a leitura
ao ambiente escolar apenas, o que corroboraria para diminuir
a função social da leitura que ele enuncia e criaria uma noção
equivocada de que a escola seja a única agenciadora eficaz
da leitura. Embora reconheçamos ser a escola um local, por
excelência, capaz de impulsionar e, até mesmo, de
determinar a atividade de leitura.
14
Fernando Haddad cita João Cabral de Melo Neto em abertura a seu texto.
71
Interessante observarmos também que, especialmente
no discurso político, a questão do ethos prévio funciona como
um dispositivo que ajuda a construir o ethos discursivo, haja
vista que o tom poético do artista se manifestou na Palavra do
Ministro da Cultura e o tom do professor que defende uma
visão sistêmica da educação e a inclusão social também
aparece na Palavra do Ministro da Educação. Embora o
artista tenha assumido muito mais um tom professoral do que
o professor propriamente dito, que se demonstrou mais como
um articulador-prestador de contas.
Como já mencionamos, apesar do PNLL configurar-se
como um conjunto de ações coordenadas entre dois
ministérios, nos textos dos ministros essa articulação ocorre
muito sutilmente. Logicamente cada um fala a partir de suas
posições dentro do cenário político, e mais do que isso, no
lugar social destinado e assumido por cada um deles, mesmo
porque a própria separação dos textos da apresentação já
induz a uma possível “desarticulação” desses discursos.
Todavia, o que mais nos chamou atenção foi a
construção de ethos distintos para a leitura nas duas
apresentações. Esperávamos, de início, que as falas fossem
diferentes, mas que houvesse uma convergência quanto ao
ethos final construído. Mas a análise nos demonstrou uma
outra realidade. Enquanto no texto do Ministro Gilberto Gil o
ethos da promessa se delineou, no texto de Fernando
72
Haddad, foi o ethos da esperança que se apresentou como
construído. O que nos indica que há modos de pensar e de
problematizar a questão da leitura de forma diferente pelos
dois ministros. Todavia, avulta-se, como ponto de encontro, a
menção da leitura como capaz de expressão da diversidade
cultural e de fortalecimento dos valores democráticos e a
solução da desigualdade social, tópicos que, de uma ou outra
maneira, são recorrentes em todo o documento e frequentam
os discursos pedagógicos brasileiros mais gerais já há algum
tempo.
Certamente, tentar priorizar o livro e a leitura e
transformá-los em política permanente do Estado é um
grande avanço dentro dos incentivos e planos na área.
Concordamos com o Ministro da Educação quando deixa
entrever em sua fala que não basta um plano para que nosso
status negativo neste setor seja superado. É preciso uma
reunião de ações, em vários outros setores, que vão desde a
melhoria no acesso aos materiais de leitura, quanto na
preparação dos professores para que saibam trabalhar a
leitura de forma produtiva e eficaz em sala de aula.
É preciso entender a leitura como uma questão cultural
(já que passa pelo valor simbólico que a sociedade lhe atribui)
e econômica, mais do que uma questão de gosto ou de
querer individual. É preciso que haja condições favoráveis
para que ela se estabeleça muito mais do que, apenas, a
73
ampliação da quantidade de livros disponíveis. Pois não
existe uma relação automática entre acesso ao livro e leitura,
é preciso estabelecer-se uma cultura de promoção e de
valorização da leitura. Porque além do Estado e da Sociedade
disponibilizar informações, é preciso capacitar os indivíduos
para acessá-las.
Melhorar os índices de alfabetismo é uma dessas ações.
Pois os altos índices de analfabetismo funcional, que hoje
preocupam mais, talvez, que o analfabetismo absoluto ─ haja
vista que esse indica que o ensino nas escolas brasileiras não
tem conseguido atingir a eficácia, sequer, no processo de
alfabetização, quiçá no de letramento15 ─ atravancam o
desenvolvimento social e econômico do país.
Mas não nos cabe avaliar o PNLL e sim verificar a
imagem da leitura construída naquela que denominamos
como cena de abertura do programa. Neste caso, imagens e
ethos distintos em cada um dos textos avaliados.
Referências bibliográficas:
15
Usamos alfabetização no sentido da aprendizagem da técnica de ler e escrever (decodificar e codificar) e letramento como o uso proficiente das habilidades de leitura e escrita como funções e práticas sociais. Concordando com Soares (2003) aponta para o letramento como algo importante e que se distingue da alfabetização, porque existe uma grande diferença entre aprender o código e saber utilizá-lo. A autora defende que os conceitos estão imbricados, de forma que entre eles não existe hierarquia ou cronologia. “Pode-se letrar antes de alfabetizar ou o contrário” (SOARES, 2003).
74
AMOUSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.
BRANT, Leonardo (org.). Diversidade cultural: globalização e culturas locais – dimensões, efeitos e perspectivas. São Paulo: Instituto Pensarte, 2005.
MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. In: AMOUSSY, Ruth (org.). São Paulo: Contexto, 2005. p.69-92.
______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
MAINGUENEAU, Dominique; CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
ORLANDI, E. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
DIRETRIZES DO PLANO NACIONAL DO LIVRO E LEITURA (PNLL). Brasília: Governo Federal, 2006.
SOARES, Magda Becker. O que é letramento. Diário do Grande ABC, Santo André, ago. 2003. Disponível em: http://www.diarionaescola.com.br/29se08.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2004.
ZILBERMAN, Regina. A leitura como bem público. Disponível em: http://catalogos.bn.br/proler/Artigos/ReginaZilberman.pdf. Acesso em: 02 jul. 2007.
75
JORNALISMO POPULAR X SENSACIONALISMO:
UM ESTUDO DO PAPEL DO FAIT DIVERS NO JORNAL SUPER NOTÍCIA1
Magna Campos – UFSJ
Prof. Dr. Guilherme Rezende – UFSJ
Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer um levantamento sobre o papel que teria o fait divers no jornal mineiro Super Notícia. Para tanto foi necessário recorrer ao gênero jornalista a que tal jornal se afilia, o jornalismo popular, a fim de levantar-se sua história e suas especificidades. E ainda estudar a vinculação deste gênero ao sensacionalismo, macroestrutura que engloba a categoria escolhida para análise, ou seja, o fait divers, buscando não uma condenação, mas sim, respaldo científico que permita um posicionamento menos preconceituoso diante das possíveis ligações entre esses três aspectos: jornalismo popular – sensacionalismo – fait divers. Constatou-se, no entanto, que são necessários muito mais estudos sobre as especificidades desses novos jornais populares que têm se tornado fenômenos de venda. Optou-se, então, por levantar-se a problemática envolvida na questão e deixar maiores conclusões a cargo de estudos posteriores.
Palavras-chave: Fait divers, jornalismo popular, sensacionalismo. Introdução:
O jornal Super Notícia tem conquistado uma vendagem
de exemplares, cada vez mais significativa, trazendo algumas
1 Texto escrito em 2006.
76
características em sua apresentação composicional que o
difere dos jornais de referência no estado de Minas Gerais. E
muitas vezes, estas características são designadas por seus
concorrentes mais tradicionais e até mesmo por leitores de
outros jornais, com certo “preconceitos”. Por isso, busca-se na
análise dos fait divers a verificação do papel que tais
elementos apresentariam neste jornal, tentando verificar se
cabe ao jornal o título de sensacionalista que lhe tem sido
imputado por algumas instâncias.
De acordo com Amaral (2005), os periódicos voltados
para os públicos das classes C, D e E são identificados como
jornais populares por duas razões: pelo baixo preço e pelos
assuntos cobertos, que têm critérios de noticiabilidade
distintos dos praticados pelos jornais considerados de
referência ou aqueles que se destinam aos leitores das
classes A e B.
Reconhecemos que o termo sensacionalista, geralmente
é atribuído ao jornal que se utiliza de fait divers de uma forma
demasiadamente vaga e recorrente, e quando usado para
definir uma publicação que veicula aspectos culturais e sociais
de uma camada da população deixados de lado pelo
jornalismo de referência. Ser chamado de sensacionalista
incute ao jornal assim nomeado o peso de ser classificado
como jornalismo popular, dado o fato de que alguns veem a
ligação direta entre uma e outra classificação. É como se ao
77
falar-se em jornalismo popular aparecesse como sinônimo a
expressão, sensacionalista e vice-versa.
Assim, os jornais populares são, em grande medida,
vistos com certas reservas pelos críticos desse tipo de fazer
jornalístico em função do modo como essas publicações
constroem em suas páginas a realidade. Durante muito tempo,
as publicações que se definiam como populares foram
chamadas de sensacionalistas, tanto pela população, quanto
por profissionais de jornalismo e pesquisadores. Alguns
dessas publicações ligavam a presença sistemática de fait
divers, especialmente abarcando a questão da violência, como
traço marcante do sensacionalismo. Um dos estudos que
estabelece a relação da cobertura sistemática da violência,
sensacionalismo e jornalismo popular é Agrimani (1995).
A escolha dessa categoria de análise é justificada pela
tentativa de buscar, com tal análise, verificar se há
fundamentação comprovada por algum critério (nesse caso
uma presença significativa de fait divers) que não seja apenas
o "intuitivo2" para nomear o Super Notícias como
sensacionalista. No entanto, reconhecemos que este estudo é
breve demais para pretender dar uma resposta a essa
questão, portanto, nosso intento será apenas contribuir para a
discussão do assunto.
2 Leia-se intuitivo aqui como caracterizador da nomeação desprovida
de qualquer explicação científica.
78
Neste estudo, na tentativa de verificarmos o papel que
teria o fait divers na publicação em estudo, traçaremos um
percurso que buscará a definição deste termo por alguns
estudiosos do assunto, passando pela história do jornal Super
Notícia, com o propósito de mostrar o porquê de sua
associação ao gênero jornalismo popular e, daí então,
procederemos a uma exploração sobre os termos jornalismo
popular e sensacionalismo. Após, com base na teoria
apresentada, efetuaremos uma breve análise do fait divers na
amostragem selecionada para o trabalho.
2.0 – Fundamentação teórica
2.1 – Sobre o fait divers:
Histórias absurdas que poderiam acontecer a qualquer
um, mas que raramente acontecem, assim poderiam ser
caracterizados os fait divers. Segundo o Grande Dicionário
Universal do Século XIX de Pierre Larousse, citado por
Agrimani (1995, p.25), fait divers é uma rubrica sob a qual os
jornais publicam com ilustrações as notícias de gêneros
diversos que ocorrem no mundo. Ainda, de acordo com esse
dicionário seriam exemplos típicos de fait divers: pequenos
escândalos, acidentes de carro, crimes terríveis, suicídios de
amor, operários caindo do quinto andar, roubo a mão armada,
acontecimentos misteriosos, execuções etc.. O que há de
comum nesses fatos é que todos pertenceriam a contextos
79
populares e particulares e que, de repente, ganham evidência
em um contexto público e reconhecimento social.
De acordo com Ramos (2004, p.57) a expressão
francesa fait divers designa, em sua generalidade, a
informação sensacionalista. E engana-se quem pensa que tal
expressão é contemporânea à mídia impressa ou eletrônica,
segundo o pesquisador acima, ela existe desde a época dos
menestréis, portanto tem origens na oralidade.
Agrimani (1995, p. 27), menciona que em 1631 o
Gazette de France lançou edições extraordinárias, de grandes
tiragens, totalmente dedicadas aos fait-divers
sensacionalistas. A exemplo desse jornal, muitos outros
passaram a publicar os fait divers para alavancar suas
vendas.
Barthes (1970, p.58), ao falar da extraordinária
participação do fait divers na imprensa de hoje, propõe
inicialmente que se proceda a uma análise estrutural a fim de
diferenciar as ditas "informações gerais", nome dado
atualmente ao fait divers, dos outros tipos de informações.
Elabora também seu conceito para fait divers, o qual
significaria, segundo esse autor, fatos diversos que cobrem
escândalos, curiosidades e bizarrices, caracterizando-se como
sinônimo da imprensa popular e sensacionalista. Para ele:
O fait divers é uma notícia de ordem não classificada, dentro de um catálogo mundialmente conhecido (políticas,
80
economia, guerras, espetáculos, ciências, etc.); numa só palavra, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em suma inomináveis, que se classificam em geral pudicamente sobre a rubrica dos Varia. […] é uma informação total, ou mais exatamente, imanente, ele contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait divers; ele não remete a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, aos seus sonhos, aos seus medos [...] no nível da leitura, tudo é dado num fait divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seus desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete, pelo menos formalmente, a nada de implícito. (BARTHES, 1970, p.58-59).
O fait divers é, assim compreendido, uma narrativa total,
autossuficiente, pois o acontecimento, surgido ex nihilo , não
precisa do mundo para ser “consumido”, na expressão de
Barthes. Estrutura fechada, pura imanência, o fait divers
contém em si todo o seu saber. Daí, talvez, o gosto popular
pelos “casos sem importância num jornal”, que opõem dois
paradigmas, o da vida pública e o da esfera privada.
Barthes, ao falar da estrutura do fait divers, dá-lhe essas
duas categorias, causalidade e coincidência, ambas
direcionadas para a classificação da excepcionalidade, fixada
no conflito.
81
Outro teórico a tratar a questão do fait divers é Maffesoli, para quem
em uma sociedade de massa, mas também de comunicação, o fait divers é uma informação quente e circunstancial, localizada (...) ele emana de um lugar datado, ele é carne e sangue em sua origem(...) como o conto, o carnaval, o jogo pueril. O comentário do fait divers permite falar, sem falar, da morte, da violência , do sexo, das leis e de suas transgressões. (apud AGRIMANI, 1995, p. 25).
Posição que coincide com a de Barthes quando
menciona sobre a imanência do fait divers como informação
total, metaforizada por Maffesoli como carne e sangue.
O pesquisador francês, Edgar Morin, apud Agrimani
(1995, p.26), observa que, no fait divers, o limite do real ou do
inesperado, o bizarro, o crime, o acidente, a aventura, irrompe
na vida cotidiana. De acordo com Sommer (2004, p.03), Morin
(1997) associa o sensacionalismo ao fait divers (fatos
variados), destacando que a dramatização dos fatos (notícias)
comove o público. Por serem gratuitos e descontextualizados
da realidade, esses fatos variados reafirmam “a presença da
paixão, da morte e do destino, para o leitor que domina as
extremas virulências de suas paixões, proíbe seus instintos e
se abriga contra os perigos” (MORIN, 1997 apud SOMMER,
2004, p. 03). Ainda de acordo com Morin, o fait divers vai até o
fundo da morte e da mutilação, como lógica irreparável da
82
fatalidade. É consumido não como um rito criminal, mas na
mesa, com café e leite, no metrô.
Tal qual proposto por Barthes (1970), Morin esclarece
que o fait divers se situa fora do contexto histórico. Pode-se
dizer, então, que o fait divers nunca envelhece, já que se situa
fora do contexto histórico, porque relatos de crimes e outras
tragédias são narrativas da causalidade, do inesperado,
construídas para provocar espanto no leitor, sendo
transportadas para o presente, o imediato, a cada leitura.
De acordo com Meyer (1996, p.100),
a narrativa do fait divers visa essencialmente provocar reações subjetivas e passionais no leitor-ouvinte. Tende a abolir a distância que o separa do acontecimento e dar-lhe a ilusão de que participa, ele próprio, da ação. Funcionando como um romance, o relato desse tipo de acontecimento convida o leitor a participar por meio da imaginação das situações descritas e a se identificar com os personagens cujas aventuras acompanha (...) ele estabelece com nosso inconsciente relações que refletem nossa própria ambivalência (...) é um lugar de exercício do imaginário. (apud Lanza, [s.d], p. 5)
Partilhando de ponto de vista semelhante, Sodré (1998,
p.134) assinala que o texto noticioso encena uma causalidade,
ao por em ordem as diferentes experiências vivenciadas pelo
indivíduo no dia-a-dia. É a notícia assumindo o caráter teatral
e dramático para captar leitores e espectadores.
Fundamentando-se em Roland Barthes, ele afirma que esse
83
tipo de texto – relato de algo aberrante – torna mais evidente a
presença do romanesco na narrativa noticiosa, constituindo-se
no primeiro exemplo histórico da dramatização do
acontecimento pela imprensa. Ideia essa que vai ao encontro
do conceito dado também por Meyer, acima citado, e por
Morin (1997) para os fatos diversos.
Portanto, depreendemos que o que conta no fait divers é
a exploração da emoção e também o seu caráter de
entretenimento, de chamar atenção, tão explorado pelas
diversas mídias na atualidade.
2.2 – Um pouco da história do Jornal Super Notícias
O Super, como é chamado por seus leitores, é um
jornal3 popular em cores e em formato de tablóide4. Criado
pela Sempre Editora, empresa proprietária de outros jornais,
como O Tempo, Pampulha, O Tempo Betim e O Tempo
Contagem, o Super apresenta em geral, segundo informações
dos próprios editores5, matérias curtas, de fácil leitura, custos
3 Jornal de circulação inicial na capital mineira, Belo Horizonte, e que
depois passou a ser vendido em muitas outras cidades de Minas Gerais. 4 Jornal feito com papel A3 ou duplo ofício, menor do que os
tamanhos tradicionais. 5 Disponível em: http://www.otempo.com.br/sempre_editora/. Acesso
em: 07 jan. 2007.
84
baixos e simplicidade de conteúdo, bem ao caráter dos ditos
jornais populares.
Lançado em 1º de maio de 2002, o jornal apresenta
reportagens com ênfase em esportes, cidades e polícia, visa
ao público das classes econômicas B, C e D, e também a um
público constituído em sua grande maioria, pelo gênero
masculino. Observemos, para melhor visualização e
detalhamento do perfil de leitores, alguns dados apresentados
pela equipe responsável pela publicidade do Jornal em
questão.
85
Gráfico 1: Perfil de Leitores do Jornal Super Notícias Fonte: conforme dados do Instituto Marplan
6. .
6 Disponível em:
http://www.otempo.com.br/publicidade/perfil_leitores_super_noticias.jsp. Acesso em: 12 dez.2006.
86
Esse jornal têm em média 25 páginas e cobertura de
pautas como notícias sobre violência, vida de celebridades,
futebol, cidades, prestação de serviços e política. O Super
Notícia abrange 7 editorias, sendo elas: Opinião, Cidades,
Geral, Emprego, Variedades, Classificados e Esportes, além
de contar com colaborações de colunistas.
Apesar de ter sido lançado há quase cinco anos, foi a
partir de outubro de 2005 que o jornal conseguiu uma
vendagem mais significativa no Estado de Minas Gerais. Fato
irônico, pois foi com o lançamento de um outro tablóide, o
Aqui7, criado para concorrer diretamente com ele, e que levou
a Sempre Editora a reduzir preço do jornal à metade a fim de
igualar-se a seu novo concorrente, além de investir
"agressivamente" nas suas ações de marketing com
promoções e ampliação de canais de distribuição em todas as
regiões da capital mineira, Belo Horizonte, e de muitas outras
cidades do interior do estado.
Hoje o Super é vendido em mais de 200 cidades do
estado de Minas Gerais, conforme Silva, em matéria
publicada, em 21/06/2006, no jornal on-line da Puc Minas,
intitulada - Super notícias: o tablóide que virou fenômeno.
7 Tablóide lançado pelo Grupo Diários Associados, proprietário do
jornal Estado de Minas, em outubro de 2005 pela metade do preço do Super Notícias, R$ 0,25 e que levou o Super a baixar seu preço também a R$ 0,25.
87
Se em seus três primeiros anos o jornal não obteve tanta
expressividade nas vendas, a partir de outubro de 2005, com
a já mencionada campanha de marketing, o tablóide
conseguiu um feito histórico: aumentar imensamente a sua
vendagem e ainda ameaçar a liderança do jornal Estado de
Minas, líder de venda no gênero jornalístico no estado, nas
últimas quatro décadas.
Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação
(ICV), publicados na primeira página do jornal O Tempo, de 23
de fevereiro de 2006, em janeiro de 2005, o Super vendia uma
média diária de 7.377 exemplares contra 70.274 do Estado de
Minas. Já em janeiro de 2006, o Super atingiu a vendagem
média diária de 79.379 exemplares, que significou o
crescimento de 976% em 12 meses, contra 69.926 do Estado
de Minas, indicando queda de 0,99% na vendagem deste
último no mesmo período. O último dado auditado pelo IVC
sobre a vendagem do Super, obtido por este estudo, foi de
agosto de 2006 que indicava uma média diária aproximada de
150 mil exemplares8.
Criticado como sensacionalista e como popular, os
responsáveis pelo jornal negam que ele seja sensacionalista,
conforme as palavras do editor, Rogério Maurício Pereira: “se
8 CRESCIMENTO do "Super Notícia” estimula duplicação do Parque
Gráfico da Sempre Editora. Disponível em: http://www.abigraf.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1439&Itemid=43. Acesso em: 10 dez. 2006.
88
popular for um produto que atrai milhares de pessoas
diariamente, o Super é popular. O Super não é sensacionalista
[…] o Super é um jornal sério, recheado com informações
objetivas9” .
Segundo Agrimani (1995, p.13) “sensacionalista é a
primeira palavra que a maior parte das pessoas utiliza para
condenar uma publicação”. E ainda,
quando se enclausura um veículo nessa denominação, se faz também uma tentativa de colocá-lo à margem, de afastá-lo dos mídias "sérios". Se um jornal é tachado de sensacionalista, significa para o público que o meio não atendeu às suas expectativas. (AGRIMANI, 1995, p.13)
Verifica-se, portanto, com Agrimani o ônus de receber o
título de sensacionalista. Nomeação que o jornal em estudo
tenta negar. Ainda segundo o autor, a edição do produto
sensacionalista é pouco convencional, tendendo ao
escandaloso. O tópico escolhido para ser analisado no jornal,
o fait divers, de acordo com Agrimani, seria o principal
nutriente do sensacionalismo, embora não seja o único.
2.3 Jornalismo popular e sensacionalismo
9 SILVA; Sálua Zorkot. Super notícias: O tablóide que virou
fenômeno. Disponível em: http://www.fca.pucminas.br/ooutro/bolso/bolso12006007.htm. Acesso em: 07 jan. 2007.
89
O jornalismo popular teve início no Brasil na década de
20, do século passado, quando surgiu o jornal Folha da Noite.
Segundo Oliveira (2002, p.2), esse jornal teve o propósito de
“apresentar-se como um órgão destemido de combate, mas
de feição leve e graciosa, que contrastava com a sisudez e
austeridade dos demais jornais da época”. A Folha da Noite foi
um dos primeiros jornais que criou segmentos que visassem a
diferentes tipos de leitores, como a criação do suplemento
feminino, do suplemento esportivo e outros que atingissem a
segmentos distintos da população, capitalizando suas
insatisfações.
O jornal traz características importantes no que tange a
caracterização de um novo tipo de jornalismo: a preocupação
em atingir a um público de composição social heterogênea, a
busca de uma feição mais leve e "digestiva", a criação de uma
seção de esportes, uma seção feminina, o tratamento
novelesco de alguns fatos. Traços esses que ganhariam
relevância na imprensa com o tempo, e nem sempre nos
mesmos tipos de jornal.
Nos anos 60, surge o jornal Notícias Populares10, dito
expoente máximo de jornalismo popular no Brasil. Sua
criação, ainda de acordo com Oliveira (2002, p.3) inscrevera-
se como parte de estratégia de lutas de grupos políticos
10
Considerado por Agrimani como tipo representante do jornalismo "espreme que sai sangue".
90
antivarguistas e anticomunistas, que se viam preocupados
com o que pareceria o poder de difusão do jornal Última Hora,
por eles considerado esquerdista. Criaram-no visando a
desviar o público daquele jornal para um jornal que tivesse um
sinal político oposto, ou antes, que não falasse de política. O
Notícias Populares aproveitou algumas fórmulas do Última
Hora até a exaustão, como por exemplo, notícias sobre
violência, crimes, sexo, esporte etc..
O jornalismo popular, voltado às camadas menos
privilegiada economicamente da população, parece, desde
então, ser uma tendência da especialização a que chegaram
os meios impressos.
Todavia, foi nos anos 90 que esse tipo de jornalismo –
jornalismo popular – ganha ainda mais força e se consolida.
Surgem publicações brasileiras como: O Dia, Extra, Lance. E
do ano de 2000 para cá, surgem o Diário Gaúcho, o Agora
São Paulo, o Meia Hora, o Expresso, o Super Notícias e o
Aqui e que, em geral, têm em comum a grande vendagem de
exemplares avulsa.
Podemos citar dois conceitos para o termo
sensacionalismo que são muito utilizados nos estudos sobre o
tema: o de Agrimani (1995) e de Pedroso (2001). Segundo
Agrimani, o sensacionalismo é tornar sensacional um fato
jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais, não
mereceria esse tratamento […] sensacionalizar aquilo que não
é necessariamente sensacional, utilizando-se para isso de um
91
tom escandaloso, espalhafatoso. Para Pedroso, o
sensacionalismo é um modo de produção discursiva da
informação de atualidade, processado por critérios de
intensificação e exagero gráfico, temático, linguístico e
semântico, contendo em si valores e elementos
desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos
no contexto de representação e construção do real social.
No entanto, o surgimento de jornais ditos populares, não
configuraria para alguns teóricos a existência de uma
Imprensa Popular. Esse é o caso da pesquisadora brasileira,
Rosa Nívea Pedroso que em seu livro, A construção do
discurso de sedução em um jornal sensacionalista, propõe
que a imprensa brasileira comumente dividida pelos
estudiosos em: Imprensa de Elite e Imprensa Popular, de
acordo com as características de produção e recepção dos
produtos por elas elaborados, no fundo, a dita Imprensa
Popular não reproduziria a condição de vida das classes
populares, ou seja, não seria um veículo que carrega em si
características da cultura popular, mas apenas artifícios que
agradam ao gosto popular.
Ainda, segundo a autora, a imprensa popular vigente,
não só a brasileira, mas comumente aquela dos países latino-
americanos, é caracterizada com aspectos da Grande
Imprensa, isto é, obedece a fins mercadológicos. Leia-se a
passagem abaixo na qual tal questionamento fica mais
92
delineado e é possível explicitar a posição da autora de que a
Imprensa Popular não constituiria um tipo de jornalismo, mas
um fruto (uma espécie de ramificação) da Grande Imprensa:
Se não consegue explicá-lo como algo autônomo, com determinantes próprios de realização, é porque ela não existe como um tipo de imprensa que se opõe a outro, mas é uma divisão aparente, ou seja, um segmento que pertence a grande imprensa e a reproduz. (PEDROSO, 2001, p. 46)
Todavia, tomando-se por referência a Crítica Cultural é
possível pensar essa questão e propor que no processo
midiático, percebe-se uma tendência ao condicionamento da
atividade criativa, o que não significa dizer que a cultura sofre
de uma dependência dos fatores econômicos. No entanto, tem
“influência e sofre consequências das relações político-
econômicas” (ESCOSTEGUY, 2001, p.156).
Não podemos, ao estudar-se a questão do jornalismo
popular, eximirmos de pensar a questão acima lançada e da
consideração de que os jornais populares sofreram
modificações e cresceram muito desde suas origens até hoje.
Os jornais destinados às classes B, C e D integram um novo
mercado a ser analisado, e que carecem de maiores estudos
científicos, pois são, em muitas ocasiões, excluídos como
objeto de estudo dos meios acadêmicos por serem
considerados "desvirtuantes" da referência: os jornais
destinados às classes A e B, a "elite cultural".
93
De acordo com Amaral (2005, p.01), diz-se,
normalmente, que “os produtos jornalísticos populares
distorcem os fatos”. Segundo ela, se é possível distorcê-los,
pressupõe-se que haja uma maneira certa de narrá-los,
concepção muito ligada “à noção da notícia como espelho dos
fatos”. E muitas vezes, cobra-se que as notícias tenham
exatamente o mesmo formato das publicadas em um jornal de
referência. Para ela,
muitas críticas aos exageros e às distorções da imprensa popular, pertinentes do ponto de vista ético, caem no extremo de imaginar possível uma notícia límpida que faça os fatos transparecerem tal como aconteceram. Ora, as notícias não emergem naturalmente do mundo real para o papel, não são simplesmente o reflexo do que acontece. São redigidas a partir de formas narrativas, pautadas em símbolos, estereótipos, frases feitas, metáforas e imagens. (idem, op.cit.)
Expressões como "degradação cultural", "lixo" e
"antijornalismo" são usadas para desqualificar os produtos
informativos populares comerciais, o que os exclui do rol de
objetos dignos de serem estudados e pesquisados. Dessa
forma, os produtos jornalísticos populares, frequentemente
nomeados como sensacionalistas, veem na amplitude desse
conceito a sua condenação.
94
O sensacionalismo é um modo de caracterizar o
segmento popular da Grande Imprensa, uma percepção do
fenômeno localizada historicamente e não do próprio
fenômeno, de acordo com Amaral (2005), pois ele
corresponderia mais à perplexidade com o desenvolvimento
da indústria cultural11 no âmbito da imprensa, do que um
conceito capaz de traduzir os produtos midiáticos populares
mais recentes.
Uma importante relativização a ser feita refere-se à
ampliação do conceito de cultura, ou seja, ao questionamento
da divisão hierárquica entre cultura elitista (tida como superior)
e cultura das classes populares (tida como inferior). No cerne
da cultura, transitam os mais variados modos de vida
perpassados por relações de poder. Existem distinções
decorrentes de classe, raça, poder, linguagem etc., e isso está
expresso no campo da cultura, que reflete, assim, as
diferenças sociais, e não só as diferenças entre classes
sociais.
11
A definição de indústria cultural surgiu no final da década de 40 quando Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, pensadores da Escola de Frankfurt, refugiados nos EUA em decorrência da Segunda Guerra Mundial, publicam em 1947, o clássico - Dialética do Esclarecimento. O uso do termo indústria cultural foi adotado a partir da publicação para substituir a expressão até então utilizada - cultura de massa [...] Segundo Adorno e Horkheimer, a indústria cultural é a integração deliberada a partir do alto de seus consumidores, ou seja, a vulgarização da arte superior e inferior e sua distribuição através de veículos de comunicação de massa manipuladores e aniquiladores da consciência e do pensamento crítico humano.
95
É preciso considerar também que um jornal destinado ao
público popular não se utiliza dos mesmos recursos do jornal
de referência. Ainda, de acordo com Hall et al (1999) apud
Amaral (2005, p.2), a construção do discurso informativo parte
de mapas culturais. Cada tipo de publicação legitima-se por
intermédio do uso maior ou menor dos recursos narrativos,
desenhados culturalmente. O discurso informativo pode se
inspirar em determinadas formas narrativas e, no segmento
popular, formas narrativas com características
melodramáticas, grotescas e folhetinescas.
Não se faz aqui uma apologia ao gênero popular,
apenas tenta-se evidenciar a necessidade de considerá-lo
relevante para estudos, visto seu grande crescimento e a
capacidade de tornar não-leitores de jornais, em leitores, de
tornar não-consumidores de jornais, em consumidores. E que
o estudo destes jornais não sejam apenas objeto de
comparação com os jornais de referência, não se
negligenciando a necessidade de uma postura crítica em
relação a esse tipo de jornalismo, assim como com relação a
qualquer outro.
No prefácio do livro Jornalismo Popular, Márcia Amaral,
escreve que os jornais destinados às classes B, C e D, hoje,
integram um novo mercado caracterizado por um público que
não quer apenas histórias incríveis e inverossímeis, mas
compra jornais em busca também de prestação de serviço e
96
de entretenimento. Os suportes usam como estratégia de
sedução do público-leitor a cobertura da inoperância do poder
público, a vida das celebridades e do cotidiano das pessoas.
Os assuntos que interessam são prioritariamente os que
mexem de imediato com a vida da população. Na pauta, o
atendimento do SUS e do INSS, a segurança pública, o
mercado de trabalho, o futebol e a televisão.
Vendidos nas bancas ou em sinais de trânsito por
ambulantes12, tais jornais seguem com capas chamativas e a
violência permanece como assunto, mas agora em um nível
que se poderia chamar de menos escatológico a despeito dos
jornais populares de outras décadas. Tais jornais publicam, ao
contrário do que muitos preconceituosamente acreditam,
matérias exclusivas, dão "furos" e ganham prêmios13.
Portanto, os jornais desse segmento têm assumido
maior importância social. Evidentemente, essa mudança de
rumo não significa que os jornais populares agora sejam de
qualidade ou não mereçam uma crítica, mas indica que
precisam ser vistos com um novo olhar.
12
Em Minas Gerais, o Jornal Super Notícia ressuscitou essa forma de venda por ambulantes. 13
Por exemplo, no Prêmio Esso 2004, o O Dia venceu na categoria Fotografia e ficou finalista, juntamente com o Extra, nas categorias Reportagem, Criação Gráfica e Primeira Página. Em 2005, Fábio Gusmão, do Extra, ganhou o prêmio Esso de Reportagem pelo trabalho Janela Indiscreta. Também em 2005, O Dia venceu a categoria Fotografia do XXII prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.
97
Afinal, é preciso ampliar a noção de cultura como sendo
“uma região de sérias disputas e de conflitos acerca do
sentido; cultura diz respeito aos enfrentamentos entre modos
de vida diferentes devido à existência de relações de poder”
(ESCOSTEGUY, 2003, p. 68).
Também é importante frisar que o leitor popular não é
passivo em relação às notícias veiculadas. Nem o segmento
popular da imprensa é simplesmente fruto de interesses
empresariais e nem seu público responde cegamente aos
chamados do produto. Isso seria considerar que todos de uma
classe social efetuassem a leitura de um único segmento
jornalístico a ela destinado. Esse endereçamento, embora
exista, não é garantia de exclusividade, pois o sujeito-leitor,
mesmo em épocas em que a leitura era muito menos popular,
transitava entre os materiais e práticas de leitura de classes
sociais distintas (Cf. CAVALLO; CHARTIER, 1998). Seria
desconsiderar a capacidade de interação social do sujeito-
leitor.
Cabe salientar, aqui, que não se trata de subestimar a
inteligência do receptor. Muito menos afirmar que as notícias
transmitidas são consumidas uniforme e passivamente. É
evidente que o modo de interlocução com as informações
varia de pessoa para pessoa, tudo depende do contexto
sociocultural de cada indivíduo. De acordo com Champagne
(1998, p 18) “a capacidade para produzir uma opinião está
98
partilhada de forma desigual e, em particular, varia em função
do capital cultural de cada indivíduo”.
Se os jornais fazem sucesso, é porque há recompensas
para esse leitor. Assim, existe uma complexa relação entre a
produção e o consumo dos produtos populares.
3.0 – O fait divers no Jornal Super Notícias: uma análise
Como mencionamos anteriormente, o fait divers
configura-se em uma importante manifestação do
sensacionalismo jornalístico. Tentaremos esboçar por meio
desta análise o "peso" que teria o fait divers na publicação do
jornal em estudo, verificando a utilização em maior ou menor
número desse recurso tão caro ao sensacionalismo.
Para fins de análise, serão consideradas apenas as
primeiras páginas das edições do Jornal Super Notícias
(doravante Super), publicadas entre os dias 18 e 24 de
dezembro, de 2006. Esta amostra constitui-se, portanto, de
um exemplar publicado em cada dia da semana, iniciando-se
na segunda, dia 18 de dezembro e indo até o domingo, 24 de
dezembro. A opção pela primeira página das edições, deu-se
em função de ser ela a responsável por chamar a atenção dos
possíveis compradores-leitores do jornal, já que sua venda se
dá nas bancas e nas ruas e não por assinatura, como é
característico aos jornais dirigidos à classe A e B. Portanto,
99
toma-se a primeira página como uma amostra significativa do
todo, ainda que tal critério possa vir a ser questionado.
No quadro abaixo, classificamos os faits divers
encontrados em três áreas distintas, sendo elas: polícia,
esporte e cidade, visto que são essas as grandes áreas que a
editoria do jornal afirma serem seu "carro-chefe".
Quadro 01: Relação de fait divers por área de ocorrência
Edição do Super Polícia Esporte Cidade
18/12/2006
nº1685
1. Tragédia e mortes em duas horas
19/12/2006
nº1686
2. Padre na cadeia.
3. Jornalista da Globo em quadrilha de caça-níquel.
4. Deputado esfaqueado por eleitora na Bahia.
5. Corpo de mulher fica 24 horas no sofá.
20/12/2006
nº1687
6. Presidente do Galo denunciado pelo mensalão
7. Agressão a funcionária fecha posto de saúde no bairro Glória.
8. Menina entra em coma após extrair dente.
9. Menina
100
atropelada no Anel e motorista foge.
21/12/2006
nº1688
22/12/2006
nº1689
10. Barraco na Vida Real.*
11. Acaba Hoje novela do novo técnico do América.
23/12/2006
nº1690
12. Continua a novela Suzana Vieira.*
13. Samu demora a chegar e idosa morre em Santa Luzia.
14. Fuga em massa
24/12/2006
nº1691
15. Papai Noel sem trenó.
16. Menino morre esmagado no portão de sua casa.
Como pode ser observado no quadro acima, foram 16
ocorrências de fait divers, nestes sete exemplares do jornal.
Sendo seis deles assuntos policiais, embora o caso Suzana
Vieira (presente em 10 e 12) esteja mais ligado à questão das
celebridades do que policial propriamente dito. No entanto,
como configurou uma questão na qual estiveram envolvidos
policiais e advogados, optamos por enquadrá-lo também nesta
seção. Além disso, foi o único que teve reincidência da
101
matéria no dia seguinte, a matéria Barraco na vida real e no
dia seguinte a matéria Continua a novela Suzana Vieira.
Coletamos apenas dois da área de esportes e os oito
restantes podem ser enquadrados na área que denominamos
cidade. E nenhuma ocorrência desse tipo foi registrada na
capa do dia 18 de dezembro.
No jornal Super, foi encontrado um traço comum em
todas as edições analisadas, trata-se do fato de que em todas
as primeiras páginas figurarem uma fotografia, em uma média
de tamanho de meia página, de uma mulher - atriz ou modelo
- sempre em roupas sumárias ou em poses mais sensuais. E
tomando por pressuposto o que foi dito a respeito do fait
divers, dado o seu consumo imediato e provido de um caráter
atemporal, em suas diferentes manifestações, é utilizado, na
mídia, com diversas abordagens. Aparece tanto no tratamento
da realidade quanto da ficção. Entendemos que a presença
dessas fotografias pode ser percebida, de uma forma não
muito característica, como uma espécie de fait divers.
Por isso, resolvemos enquadrar tais fotografias em uma
categoria particular de fait divers, conforme o quadro à frente:
102
Quadro 02: Relação de fait divers na área de ocorrência Celebridade
Edição do
Super
Celebridade Manchete
18/12/2006 Christiane
Fernandes
Atriz de "Páginas da vida" exibe corpinho sarado
19/12/2006 Adriane Galisteu Loira Cai no samba no
Rio
20/12/2006 Bárbara Borges Atriz conta como faz
para ficar "zen".
21/12/2006 Fernanda
Schonardie
Com uma "Mamãe Noel" dessa, precisa de presente?
22/12/2006 Renata
Dominguez
Atriz diz que é uma
escrava da profissão
23/12/2006 Camila Rodrigues Gata mostra o corpão
sarado
24/12/2006 Caroline
Dieckman
Disse que não pretende
posar nua
Quanto à forma como são apresentados, no que tange
ao aspecto gráfico, tais fait divers são sempre destacados dos
demais elementos do texto. As manchetes: Tragédia e mortes
em duas horas, Padre na Cadeia, Barraco na vida real, Fuga
em massa, Papai Noel sem trenó figuraram na parte superior
central do jornal, com letras destacadas e todas foram
103
acompanhadas de fotografias. Além dessas, também a
manchete Corpo de mulher fica 24 horas no sofá foi
complementada com fotografia e embora ocupasse um
espaço considerável na primeira página da edição de
19/12/06, não ganhou o mesmo destaque que as citadas
anteriormente.
Já as reportagens, Jornalista da Globo em quadrilha de
caça-níquel, Deputado esfaqueado por eleitora na Bahia,
Agressão a funcionária fecha posto de saúde no bairro Glória,
Menina entra em coma após extrair dente, Samu demora a
chegar e idosa morre em Santa Luzia, Menino morre
esmagado no portão de sua casa aparecem na metade inferior
do jornal e não são acompanhadas de fotografias.
E as manchetes Presidente do Galo denunciado pelo
mensalão, Menina é atropelada no Anel e motorista foge,
Acaba hoje novela do novo técnico do América e Continua a
novela Suzana Vieira estão localizadas na parte superior
direita primeira páginas e nenhuma delas também são
complementadas por fotografia. Um fato curioso no Super é
que muitas manchetes da capa apresentam acompanhamento
de um balão de cor amarela, com um pequeno detalhamento
da matéria.
As chamadas para os fait divers das celebridades, como
já mencionado, ocupam quase metade da página e com
exceção do de Renata Dominguez, todos os demais estão na
104
metade inferior do jornal. Nenhuma celebridade masculina foi
encontrada nesta amostra, o que mostra a orientação do jornal
para o gênero masculino que constitui, segundo os dados
arrolados anteriormente, 86% de seu público leitor.
Considerações Finais:
No decorrer deste breve estudo, deparamos com duas
posições um pouco distintas no que tange às características
dos jornais populares: uma que o olhava a partir de um
modelo de jornal referência localizado fora de seu público
alvo, tratava-se de uma referência pautada em jornais
destinados às classes A e B; e outra que o olhava como um
segmento da Grande Imprensa, porém que julga ser
necessário um maior estudo a respeito de suas
características, mas não tendo como parâmetro jornais
destinados a outro público.
Tal posicionamento constituiu-se para este estudo uma
grande interrogação, pois dependendo de qual linha se
adotasse, como guia dessa pequena investigação sobre o
papel do fait-divers no jornal Super Notícias, levaria a uma
conclusão muito distinta da outra. Pois, em uma, teríamos que
a presença de maior ou menor número de fait divers
determinaria ao jornal ser sensacionalista, o que lhe
configuraria como sinônimo de “má qualidade” e “deteriorante
do bom jornalismo”, isso para usarmos alguns dos clichês
105
costumeiros para tal designação. Em outra, teríamos o fait
divers como uma característica marcante desse tipo de
jornalismo o que configuraria apenas como estratégia de
marketing para a vendagem do jornal, atendendo aos apelos
mercadológicos.
No entanto, seguindo uma linha crítica entendemos a
possibilidade de uma terceira interpretação que vê no fait
divers uma tentativa de aproximação da linguagem popular,
seguindo novos tipos de mapas culturais que não aqueles da
imprensa de elite. Mas essa terceira via implica certa
relativização, pois não podemos perder de vista que não
existe a suposta neutralidade e objetividade jornalística, assim
como é provável que não exista a isenção intencional no
emprego dos fatos do dia.
Encontramos uma presença significativa de fait divers no
jornal em estudo, mas como ressalta Amaral, citada
anteriormente, não se enquadram mais no esquema espreme
que sai sangue, descrito por Agrimani.
Acreditamos mais naquela vertente que diz buscar
novos mapas culturais para a construção de jornais,
especialmente por pensar na relevância social de estudar-se a
imprensa popular, seja ela uma dissidência ou não da
imprensa de elite, que vem proporcionando uma certa
democratização da leitura de jornais e de certa forma, da
informação, ainda que em um formato diferenciado daquele
106
tido como "mais sério", para setores da população com baixa
escolaridade. E para atender a tal setor, muitas vezes, os
jornalistas não devem ficar circunscritos a uma única forma de
se fazer jornalismo.
É preciso democratizar o acesso à informação, mas
também possibilitar e ajudar a formar a crítica, a atitude
reflexiva que se espera que um leitor proficiente seja capaz de
fazer. Para isso, tanto jornais ditos populares, quanto jornais
de referência precisam se comprometer não com a realidade,
uma vez que são sempre representações da realidade, já que
esta, pela sua própria natureza, não pode ser apreendida
pelas notícias ou fait divers. Mas com a forma como
representam essa realidade e o comprometimento ético no
qual estão envoltos, buscando não desviar a atenção dos
assuntos realmente relevantes para a sociedade em que
ocorre.
Os jornais populares devem ser observados e estudados
para que seja possível captar suas estratégias e, como uma
forma de crítica importante, incorporá-las ou descartá-las no
sentido de se criar bases técnicas para um jornalismo popular
pautadas em qualidade do gênero e não na referência padrão
atual, o jornal voltado para as classes A e B.
Obviamente que não se apregoa aqui que tal jornal se
dedique demasiadamente à dramatização das notícias, à
priorização do interesse do público em detrimento do interesse
107
público e à representação das pessoas como sendo apenas
consumidoras ou vítimas sociais.
Entendemos juntamente com Kellner (2001) que os
textos produzidos pela mídia não devem ser encarados pura e
simplesmente como divulgadores da ideologia dominante ou
dominada, tampouco entretenimento puro e inofensivo. Muito
pelo contrário, consistem em produções complexas, que
envolvem “discursos sociais e políticos cuja análise e
interpretação exigem métodos de leitura e crítica capazes de
articular sua inserção na economia política, nas relações
sociais e no meio político em que são criados, veiculados e
recebidos” (KELLNER, 2001,p. 13).
Decorre dessa consideração a grande necessidade de
maiores estudos a respeito do gênero antes de condená-lo ou
de simplificá-lo demais.
Referências Bibliográficas:
AGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo. São Paulo: Summus Editorial, 1995.
AMARAL, Márcia Franz. Sensacionalismo: um conceito errante. Revista Intertexto. Disponível em: < http:// www.intertexto.ufrgs.br/marcia_amaral_art.html_45.
108
______. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva/Fundo Estadual de Cultura, 1970.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998. vol. 2.
CHAMPAGNE, Patrick. Formar a Opinião: o novo jogo político. Petrópolis: Vozes, 1998.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os Estudos Culturais. In: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz; FRANÇA, Vera (orgs.) Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001, p.151-170.
KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. São Paulo: EDUSC, 2001.
LANZA, Sônia Maria. Jornalismo: da origem folhetinesca à folhetinização da informação. Disponível em: <http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd3/ jornal/soniamarialanza.doc. > Acesso em: 17 dez.2006.
OLIVEIRA, Adilson. Um estudo da linguagem esportiva do jornal Agora. 2002. Disponível em: <http://www.mundocultural.com.br/artigos/Colunista.asp?artigo=530.> Acesso em: 28 dez. 2006.
PEDROSO, Rosa Nívea. A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista. São Paulo: Annablume, 2001.
RAMOS, Roberto. Mídia e sensacionalismo: uma relação semiológica. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 5, dez. 2004, p.57-62.
109
SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1998.
SOMMER, Vera Lúcia. A força do fait-divers no Diário do Litoral: jornal de destaque no Vale do Itajaí/SC. 2004. Disponível em: <http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/17305/1/R2107-1.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2006.
110
TECNOLOGIA COMO MEDIADORA DE SUBJETIVIDADES1
Magna Campos – UFSJ
Profª. Dra. Dylia Lysardo-Dias – UFSJ
Resumo: O objetivo desta comunicação é analisar o folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná a fim de pensarmos a relação entre tecnologia-leitura-subjetividade no âmbito da sociedade contemporânea. Efetuaremos um estudo exploratório a partir das teorizações efetuadas por alguns expoentes teóricos no que tange ao estudo das relações espaço/tempo na atualidade. Prosseguiremos com os estudos de Martín-Barbero (2001), Santaella (2003) sobre a tecnologia como mediação, pressupondo a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através dos meios; também por Woodward (2000) a despeito da subjetividade como construção social fundada na diferença; e por Bauman (1999) para quem a tecnologia digital pode ser entendida como mais uma fonte de consumo; coadunados ao pressuposto de que a leitura, como forma de linguagem, significa e, por isso, nos significa e nos relaciona com o mundo. Nesse âmbito, interessa-nos acima de tudo perceber como se apresenta o sujeito-leitor na tríade acima elencada. Contextualização:
1.1 O cenário pós-moderno: espaço da ambivalência
Muito se tem discutido nos últimos tempos sobre a
superação da modernidade por uma fase conseguinte
nomeada ora de pós-modernidade2, ora de modernidade
1 Texto escrito em 2008.
2 LYOTARD (1998), JAMESON (1997), HALL (2004) e CANCLINI
(2008).
111
tardia3, modernidade líquida4, modernidade reflexiva5 ou de
hipermodernidade6 e, provavelmente, de outros termos que
aqui nos escapam. Encontramos, em nossas pesquisas,
algumas definições de pós-modernidade, que ora a opõem à
modernidade, ora a vêem como uma continuação da
modernidade, ora como uma perspectiva que tudo critica e
nada põe no lugar. No esforço de defini-la, as discussões,
geralmente, giram em torno das transições paradigmáticas7
que vêm ocorrendo desde o final do século XX e,
especialmente, nesse início de século XXI, o que nos levaria
ao questionamento e à reescrita dos ideais da modernidade,
tais como: a racionalidade a-histórica, as verdades
transcendentais8, a homogeneidade do sujeito social, a
autonomia, dentre outros.
3 HALL (2004).
4 BAUMAN (2001).
5 GIDDENS (2002).
6 LIPOVETSKY (2004).
7 Paradigma, de acordo com Kuhn (1975, p.221-222), é algo
compartilhado pelos membros de uma comunidade, ou seja, é o consenso de uma comunidade científica em relação a alguns conceitos que vão definir o que é válido para a comunidade. 8 Na visão de Jameson (1997), uma importante característica da
pós-modernidade é a fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade dos discursos característica da era moderna. Ao contrário, não parece haver, na pós-modernidade, o pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas, sim o pressuposto de que existem verdades relativas. Assim sendo, na medida em que se pressupõe que não há uma verdade que justifique a universalização dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos coexistindo em uma mesma época.
112
Cumpre aqui discutirmos alguns traços distintivos da
pós-modernidade em relação à modernidade, como forma de
situarmos o sujeito-leitor dentro deste cenário, uma vez que
concebemos a pós-modernidade como uma forma de
interrogar a modernidade e de problematizar certas questões
por ela trazidas. Nesse ínterim, encontramos em Canclini
(2008) uma perspectiva na qual embasamos o nosso olhar
sobre esse cenário:
Concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou tendência que substitui o mundo moderno, mas como uma maneira de problematizar os vínculos equívocos que ele amarrou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se. (CANCLINI, 2008, p.28)
Entendemos também, juntamente com Bauman (1999b),
que a pós-modernidade não está em oposição à modernidade,
mas em ambivalência com ela, criando assim, uma zona
fronteiriça entre as duas. Dessa forma, o sujeito-leitor situado
nesse entremeio, no espaço da ambivalência, entre a
modernidade e a pós-modernidade, produz suas leituras e
sentidos a cada momento diferentes, mergulhado nos fios do
interdiscurso e na pluralidade de vozes9; diante de antigos ou
de novos textos e de novos meios para a textualidade.
Importa-nos, no que tange à pós-modernidade, mais
detidamente, as questões que abarcam a temática da
9 Tomamos a leitura como prática social produzida discursivamente.
113
tecnologia10 a fim de efetivarmos um esforço de compreensão
das subjetividades em jogo com relação ao tema da leitura e
da leitura das textualidades relacionadas a essa tecnologia.
Consideramos que o grande desenvolvimento tecnológico,
especificamente aquele ligado às novas tecnologias de
informação e comunicação (TIC), que vivenciamos nos últimos
tempos, bem como a compressão tempo/espaço trazida pelo
advento da informatização, mediam mudanças relacionadas à
vida sociocultural, política, histórica e, dessa forma, afetam os
sujeitos inseridos nesse contexto e as atividades
desempenhadas por estes, como é o caso da leitura.
Numa perspectiva discursiva, é possível perceber os
atravessamentos das questões sociais na atividade de leitura
e na constituição do sujeito-leitor. Por esse motivo, ao
inserirmos o sujeito-leitor no contexto da pós-modernidade
não o podemos enxergar como imune a todo esse processo
de mudança, imune à sócio-história e às práticas discursivas11
em que atua e que o constituem. Uma vez proposto como um
sujeito social, precisamos enxergá-lo, como bem o propõe
Coracini (2002; 2005), em sua heterogeneidade,
10
CAVALLO & CHARTIER (1998, vol 1 – vol 2) mostram como algumas tecnologias mudaram a história da humanidade e, consequentemente, da leitura, como é o caso da escrita, da imprensa, o conjunto de tecnologias eletroeletrônicas como o rádio, televisão, computador. Hoje temos todas elas integradas ao computador, por meio da internet. 11
Práticas discursivas tomadas no sentido foucaultiano, como sistemas que instauram o enunciado como acontecimento.
114
fragmentação, e, para usarmos um termo muito caro à pós-
modernidade, em sua fluidez.
Bauman (2001) esclarecendo-nos melhor sobre essa
fluidez, defende a tese de que a modernidade12 é um longo
processo de “liquefação” da solidez característica dos tempos
pré-modernos. O que a modernidade se propõe é substituir os
“sólidos” tradicionais por novos “sólidos”, mais confiáveis,
previsíveis e administráveis segundo critérios racionais. O que
de fato ocorreu, no entender de Bauman, foi que, ao longo dos
tempos modernos, os sólidos se derreteram, ou seja, aqueles
conceitos centrais, como por exemplo, emancipação,
individualidade, tempo/espaço, os quais deveriam constituir o
chão firme dos novos tempos, perderam sua rigidez.
Dentre os tantos sólidos que a modernidade se
encarregou de desfazer se encontram as categorias de tempo
e de espaço, que a nós interessa bastante, tendo em vista que
essa mudança ou liquefação das relações entre essas duas
categorias – a qual ocasiona a compressão entre elas – foi
ocasionada, em grande parte, pelo desenvolvimento e
12
Para Bauman haveria duas espécies de modernidades: a sólida (pesada) – referente ao que usualmente é chamado de modernidade, propriamente dita – e a líquida (leve) – referente ao que chamamos aqui de pós-modernidade. O termo “modernidade líquida” é cunhado por Bauman no livro que tem por título exatamente essa nomeação, publicado no Brasil em 2001.
115
utilização das novas TIC, como é o caso da internet13 e das
comunicações eletrônicas.
Bauman (2001) afirma que a modernidade
começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, e presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua „capacidade de carga‟, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permite „passar‟, „atravessar‟, „cobrir‟ – ou conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas. (BAUMAN, 2001, p.15-16) grifos do autor.
No período moderno, tal separação teve como resultado
o predomínio do tempo sobre o espaço, pois a modernidade
(pesada) é, talvez, mais que qualquer outra coisa, a história do
tempo. Decorre dessa dissolução entre tempo e espaço a
13
A qual, segundo Lévy (1996), possibilitou a configuração de um novo espaço: o ciberespaço.
116
metáfora do líquido usada por Bauman para definir a atual
fase da modernidade em que nos encontramos, pois, segundo
o autor, “para os fluidos o que conta é o tempo, e não o
espaço, que preenchem apenas momentaneamente”
(BAUMAN, 2001, p.8). Por terem uma extraordinária
mobilidade e inconstância, associam-se os fluidos à ideia de
“leveza” ou “ausência de peso”.
Decorre dessas razões o fato de, conforme Bauman
(2001), considerar-se fluidez ou liquidez como metáforas
adequadas à natureza da fase em que vivemos, nova na
história da modernidade. Enquanto a modernidade sólida
colocava a duração eterna como principal motivo e princípio
da ação, na modernidade líquida a duração eterna não tem
função. O curto prazo substituiu o longo prazo, e fez da
instantaneidade o ideal último. Se antes os indivíduos
contabilizavam seu tempo e seu espaço a partir do que seu
corpo podia fazer; e depois passaram a lidar com o tempo e o
espaço que os automóveis produziam – estar a dez minutos
de alguém/algum lugar não significa o mesmo para alguém a
pé e para alguém motorizado –; agora o espaço dissolve-se,
uma vez que por meio de um sinal eletrônico, uma mensagem
pode atravessar o mundo em segundos ou frações de
segundos14.
14
Com isso enveredamos de vez na era do “tempo real”, do “on-line”.
117
Por esse motivo, Bauman (2001) argumenta na direção
de visões fluidas e heterogêneas e muito mais dinâmicas da
sociedade contemporânea, construída “no aqui e no agora”.
Essas tecidas sob uma trama movente15, ao contrário de
visões duradouras e unificadoras da tradição moderna,
baseadas nas verdades universais e na racionalidade, que,
supostamente, levariam ao progresso e ao desenvolvimento,
amparadas no ideal do Estado-nação.
Uma nova ordem mundial ou de um novo capitalismo,
chamada por Bauman (1999b) de nova (des)ordem mundial,
que atravessa o mundo, em todas as esferas, por meio da
globalização16, ameaça e enfraquece a fórmula do Estado-
nação, por meio dos muitos processos de integração e
interpenetração econômica, cultural, tecnológica e ideológica
entre os países, ocasionando uma crescente interpenetração
de bens físicos e simbólicos entre os territórios e um aumento
exponencial dos fluxos globais de pessoas.
Segundo Hall (2004), baseado em Giddens (1990),
a globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo
15
A ideia do movimento é muito recorrente em Bauman, assim como em muitos outros autores que tratam da questão da pós-modernidade. 16
Ver: BAUMAN (1999; 2001); GIDDENS (1991); HALL (2004).
118
do tempo e do espaço. (HALL, 2004, p.67) grifos do autor
Isso nos permite pensar que a globalização, com suas
configurações em que o tempo é um instante e o espaço é um
quase nada, alcança a todos nós, indiferentemente de
estarmos mais ou menos engajados no universo global17. Tal
fato nos leva à conclusão de que o espaço e o tempo são
produtos das relações sociais, culturais, adicionadas às
políticas e econômicas.
Completa a perspectiva da qual procuraremos falar
sobre o sujeito-leitor na pós-modernidade – nesse cenário
tecnológico, marcadamente globalizado e globalizante –, uma
visão das novas TIC também como algo essencialmente
heterogêneo e em constante transformação. Podemos
considerar as tecnologias como heterogêneas no sentido de
que nascem em contextos heterogêneos, e, especialmente no
caso das TIC, no sentido de que misturam ou fazem convergir
17 Mesmo que o global tenha dado maior visibilidade também ao local, entendemos juntamente com Hall que esse “„localismo‟ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o exterior constitutivo da globalização” (2003, p. 61). Com base nessa afirmativa que pensamos que todos estamos envoltos pelo advento da globalização, indiferentemente dessa contextualização ser global ou local. E é nesse sentido, que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.
119
outras tecnologias, surgidas em outros contextos sócio-
históricos.
Por isso, consideramos que uma abordagem da relação
sociedade-tecnologia-cultura mais adequada à problemática
da leitura deve tomar como pressuposto que a tecnologia, a
exemplo da linguagem, tanto influencia os contextos nos quais
surge (ou é introduzida), como tem seu sentido, sua forma e
sua função transformados no tempo e no espaço pela maneira
como é praticada em contextos heterogêneos.
1.2 As novas TIC mediando a produção de
subjetividades
Partimos do pressuposto de que a subjetividade,
conforme apresentado por Woodward (2004, p.55), “é vivida
em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão
significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual
adotamos uma identidade”.Assim, a subjetividade é construída
e significada pela interpelação18 dos atos de linguagem, e
estes, por sua vez, encontram-se, no que se refere à
contemporaneidade, atrelados às novas Tecnologias de
Comunicação e Informação (TCI). Tecnologias essas que se
18
“Interpelação é o termo utilizado por Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os sujeitos – ao se reconhecerem como tais: „sim, esse sou eu‟ – são recrutados para ocupar certas posições-de-sujeito”. (WOODWARD, 2004, p.59)
120
expandem com muita agilidade nos dias atuais, e penetram
todo o tecido social, possibilitando o chamado cenário digital.
De acordo com a autora,
vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (WOODWARD, 2000, p.55)
Decorre daí uma importância significativa do papel da
tecnologia como mediadora na constituição das
subjetividades, haja vista que ela figura como um importante
meio para as formas simbólicas, especialmente em tal cenário.
Em nosso entendimento, essa tecnologia terá seu
sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no
espaço por essas subjetividades. Além disso, consideramos
os meios – incluindo-se as novas TIC – não como fontes de
inovações em si, mas como mediações entre novas práticas
de comunicação [e informação] e transformações sociais (Cf.
121
MARTÍN-BARBERO, 2001). Esse conceito de mediação19 nos
ajuda a pensar que tecnologia e cultura não estão postas
como instâncias isoladas e estáticas que se refletem, mas
como dinâmicas que se influenciam mutuamente, portanto, se
ela – a tecnologia – é condicionante dessa cultura, é também
condicionada por ela, e ainda, pressupõe a cultura como algo
que se transforma constantemente nos e através dos meios.
Nesse cenário ambivalente da atualidade, a identidade é
um construto, simbólico e social, fabricada pela marcação da
diferença, que ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos
de representação quanto por meio de formas de exclusão
social (Cf. WOODWARD, 2000, p.39). Nesses processos de
fabricação de novas identidades, contudo, na pós-
modernidade, não se encontram mais o sujeito como ser fixo,
coerente e estável, aquele sujeito unificado e centrado que
estabilizava o mundo social, antes, temos aí o sujeito
fragmentado, marcado pelas incertezas. Esse deslocamento
19
Conforme Santaella, “embora sejam responsáveis pelo crescimento e multiplicação dos códigos e linguagens, meios continuam sendo meios. Deixar de ver isso e, ainda por cima, considerar que as mediações sociais das mídias em si [estendemos também para as novas TIC] é incorrer em uma ingenuidade e equívoco epistemológicos básicos, pois a mediação primeira não vem das mídias, mas dos signos, linguagem e pensamento, que elas veiculam”. (SANTAELLA, [1992] 2000, apud SANTAELLA, 2003, p.116-117)
122
produz novas formas de posicionamento20 e provoca
mudanças nos conceitos de sujeito e de identidade.
Segundo Hall, a identidade “permanece sempre
incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo
formada”, através de processos inconscientes. Por isso, em
lugar de falar da identidade como uma coisa acabada,
deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo
em andamento” (HALL, 2004, p.38). Identificar-se, como
podemos deduzir, é identificar-se com a falta do outro e,
portanto, dividir-se. A identidade não surge da plenitude
interior do indivíduo, mas da falta a ser preenchida pelo nosso
exterior – um exterior atravessado pela novas TIC.
Para dar conta do sentido sempre inacabado da
identidade, alguns teóricos recorrem ao conceito de différance
elaborado por Derrida, pois para este autor, na leitura de
Woodward, “o significado é sempre diferido ou adiado; ele não
é completamente fixo ou completo, de forma que sempre
existe algum deslizamento” (2000, p.28). Assim, a identidade é
um tornar-se e aqueles que a reivindicam não se limitam a ser
posicionados por ela: “eles seriam capazes de posicionar a si
próprios e de reconstruir e transformar as identidades
históricas, herdadas de um suposto passado comum”.
(WOODWARD, 2000, p.28)
20
Hall argumenta que o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica. (Cf. Woodward, 2000, p.27)
123
Todavia, no que se refere à leitura, se tomarmos como
pressuposto que todos os sujeitos-leitores lêem da mesma
maneira e não considerarmos a heterogeneidade desses
sujeitos, bem como dos textos lidos e dos sentidos
produzidos, estamos ao mesmo tempo desconsiderando os
processos identitários nos quais esses sujeitos se constituem.
Pois, esses processos são construídos ao longo da vida do
sujeito-leitor e são marcados pela diferença, conforme propõe
Woodward, ao postular que a identidade “não é o oposto da
diferença: a identidade depende da diferença” (2000, p.40).
Sendo a diferença condição básica para a construção da
identidade na própria configuração do sujeito, seja ele leitor ou
não, o outro já o constitui.
Portanto, as identidades são multiplamente construídas
ao longo dos discursos, das práticas e posições que podem se
cruzar ou ser antagônicas. Nesse sentido, pensando na leitura
como uma prática social21 de significação, embrenhada nas
redes discursivas, podemos entender, juntamente com
Coracini, que,
ler pressuponha um sujeito que produz sentido, envolvendo-se, dizendo-se, significando-se, identificando-se, abrindo espaço para a subjetividade e para a
21
Para Woodward (2000, p.33) toda prática social é simbolicamente marcada. Entendemos a leitura como prática social, uma vez que a linguagem o é. Sendo assim, como dissemos outrora, estudando a linguagem (e, portanto, a leitura) estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constitutiva e constituinte.
124
heterogeneidade que vez por outra rompe a barreira porosa e opacificante das palavras e se deixa representar, de modo imprevisível, pela linguagem
22.
(CORACINI, apud GALLI, p.6)
A leitura, assim, torna-se uma forma de identificação e
de construir identidades que deixa entrever o sujeito por meio
da linguagem, permeado que é pela alteridade e pela
fragmentação, não nos esquecendo que esse sujeito é sempre
historicamente situado. E a partir do momento em que há a
valorização da alteridade e da ideia de construção provisória
da identidade por meio da linguagem, e nesse caso, a leitura
está subtendida, não se pode negar a relação intercambiante
entre sujeito-linguagem (pois ao se dizer o sujeito se diz),
sujeito-mundo (ao representar ele se representa) e sujeito-
sentido (ao significar ele se significa), envoltos e
movimentando-se no limite da ambivalência, não nos
esquecendo que essas relações de linguagem.
Ler não pressupõe simplesmente um conhecimento
consciente do uso da linguagem; antes, constitui momentos
importantes de produção de sentidos que só ocorrem como
22
Conforme Coracini (2003a, p.113), se esse sujeito é internamente múltiplo, heterogêneo, clivado, não nos é possível falar de identidade como algo acabado, estável e fixo. Por isso, a identidade é ilusória e só existe como construção imaginária. Nós somente podemos captá-la por irrupções esporádicas no fio do discurso, quando o sujeito deixa, de forma inconsciente, resvalar a sua heterogeneidade.
125
consequência de uma série de identificações que pressupõem
um investimento do sujeito na linguagem.
No entanto, a leitura, contemporaneamente, encontra-se
enredada com outros espaços que configuram um novo local
para o texto e novas textualidades, possibilitados pelas novas
TIC. Esses novos espaços, promovidos pelas novas TIC, têm
proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de
significação e de representação, o que implica, para o sujeito-
leitor, o aumento de possibilidades de assumir, negar e
reivindicar identidades diferentes a cada circunstância
deparada, a cada texto que se lhe dá à leitura. Em nosso
entendimento, o espaço em que a textualidade ( digital)
aparece tem significação , tem materialidade e não é
indiferente em seus distintos modos de significar.
Também, devemos atentar, conforme propõe Santaella
(2003), para a relação da cultura contemporânea, mediada
pelas novas TIC, com a linguagem, na constituição de novas
posições para o sujeito, isto é, novos lugares na rede da
comunicação, e acrescentamos, da interação social. Pois
essas formas de subjetivação na era digital reclamam por
novos olhares.
Pensemos, então, nessa relação tecnologia-leitura-
subjetividade com o auxílio de um material que conseguimos
por meio de uma busca efetuada na internet, em junho de
2008, no banco de imagens do Google, no qual digitamos a
126
expressão “sujeito-leitor+tecnologia”, no sistema de busca do
site. Todavia, chamamos a atenção para o fato de que esse é
apenas um estudo exploratório, no sentido de que não
pretendemos obter, a partir dele, grandes generalizações ou
formulações que possam ser estendidas indiscriminadamente
a outros casos. Antes, trata-se de uma tentativa de por em
prática o poder explicativo das teorizações que tecemos e
assim problematizar algumas questões. Ainda é preciso
ressaltar que a mesma peça publicitária foi analisada por
Nunes (2005) em um artigo sobre inclusão digital, dessa
autora aproveitamos a nomeação de sujeito-leitor tecnológico
por ela cunhada.
Feito essa ressalva, passemos ao material:
127
Figura 1: Folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná
23.
A peça publicitária acima chamou-nos a atenção não só
pela configuração do que ela diz, como também e,
principalmente, pela forma como diz. Em formato retangular,
traz em um segundo plano, a imagem de um rosto sem
qualquer designação de gênero, podendo ser de um jovem ou
de uma jovem, o qual fita diretamente o interlocutor. À sua
frente, em primeiro plano, ocultando e ocupando o lugar de
23
Comitê de Democratização da Informática do Paraná é uma organização não-governamental – que faz parte de uma rede presente em dezenove estados brasileiros e em oito países.
128
sua boca, há uma janela de navegação na internet24 com suas
ferramentas de navegação: voltar, avançar, atualizar, início,
preencher, imprimir e correio, janela essa que funciona como
uma tarja preta, tendo em vista que essa janela, além das
ferramentas citadas, tem seu corpo – onde geralmente
aparecem os textos digitais25 – preenchido pela cor escura,
sem imagem ou palavra alguma. Abaixo e fora dessa janela
de navegação, há, em tom imperativo, os seguintes dizeres:
“Quem não conhece informática, não tem vez. Nem voz”.
Notamos de início a interdição da fala daquele/a que
aparece na imagem, o/a qual tem em seu rosto, a substituição
da boca por um mecanismo eletrônico – a janela de
navegação. Todavia, esse mecanismo apresenta as
ferramentas para seu funcionamento, mas falta-lhe quem as
coloque em movimento e funcionamento: o sujeito que saiba
operá-las. Interdição porque, numa sociedade permeada, ou
diríamos atravessada, pelas novas TIC, não saber operá-las,
a julgar pela peça, é não ter acesso às formas de informação
e nem às formas de sociabilidade possibilitadas por ela. Enfim,
é não ingressar no processo constitutivo de sentido
possibilitado por esse meio, é não ser seu sujeito.
24
É possível saber que se trata de uma janela de navegação não apenas pelo formato característico, mas pelo endereço eletrônico que apresenta na parte superior do browser: www.cdipr.org.br . 25
Geralmente designados de hipertextos, no entanto, entendemos que nem todos os textos digitais são hipertextos. Exploraremos essa questão no tópico seguinte desta dissertação.
129
Diferentemente da fala, que no indivíduo é um
mecanismo físico, o direito à fala é estabelecido em relação à
posição ocupada pelo sujeito no discurso, e tem a ver com as
relações de poder estabelecidas em uma cultura. E, no caso
da peça, tem direito à fala “apenas os que conhecem
informática”, ou seja, os que se tornam leitores26 de sua
textualidade digital. Tendo em vista que as relações de poder
são muito importantes na construção de subjetividades, e
decorrentemente, de identidades, Woodward nos alerta que
“todas as práticas de significação que produzem significados
envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir
quem é incluído e quem é excluído” (2000, p.18-19). E, assim,
essas relações de poder, em nosso exemplo, ajudam a definir
uma subjetividade adequada à textualidade digital, que
chamaremos aqui de sujeito-leitor-tecnológico, aproveitando a
nomeação empregada por Nunes (2005).
Mas partindo do pressuposto de que a linguagem e,
como manifestação desta, a leitura, significa e, por isso, nos
significa, não podemos nos esquecer, que falar ou ler é estar
no sentido com as palavras – ditas, não ditas ou a se dizer –,
pois elas significam e nos relacionam com o mundo, com as
26
Muitos podem não escrever, isto é, tornarem-se autores, nos espaços de fluxos, ou ambientes virtuais, mas fatalmente, tornar-se-ão leitores da textualidade aí disposta, uma vez que tal imperativo funciona como porta de acesso a esse espaço, mesmo que essa leitura seja apenas “intuitiva”.
130
coisas, com as pessoas, e com nós mesmos. Constituem
nossa subjetividade, produzindo sentidos. E dar sentido é
considerar o lugar da história e da sociedade. É, também,
aceitar que se está sempre no jogo da produção, na relação
entre as diferenças e as relações de poder que entram na
constituição do sujeito. Portanto, o apetrecho técnico que
funciona como uma tarja preta à frente da boca do/a jovem
interdita não só suas palavras, mas sua relação plural com os
sentidos e com o mundo, interdita o acesso à leitura, por falta
de domínio das ferramentas que possibilitam acessar os
textos digitais.
A produção da subjetividade que aqui nos interessa, qual
seja a do sujeito-leitor-tecnológico, na peça, não tem outra
saída: ou aprende a dispor do recurso técnico, que possibilita
o acesso à textualidade em questão, ou estará condenada a
“não ter voz nem vez” e, assim, à nulidade. Não há opção. E
isso é válido para qualquer pessoa, haja vista a indefinição do
pronome “quem” utilizado no enunciado.
A autora Woodward nos lembra que,
os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (WOODWARD, 2000, p.17)
E ainda, que
só podemos compreender os significados envolvidos nesses sistemas [de
131
representação] se tivermos alguma ideia sobre quais posições-de-sujeito eles produzem e como nós, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. (WOODWARD, 2000, p.17)
Nesse caso, as posições-de-sujeito produzidas são: a do
incluído – em nossa perspectiva, o sujeito-leitor-tecnológico –
criando para isso uma identidade, a do/a jovem esperto/a que
não “fica de fora do barco tecnológico e se torna seu
navegante”, e, inevitavelmente, a do excluído digital, aquele
que não está apto a “embarcar nesse navio”. O incluído, ou
seja, aquele que “conhece informática” e é capaz de ler sua
textualidade, tem acesso ao dizer e por isso pode se dizer. Em
contrapartida, aquele que não a conhece, é interditado,
barrado, e, por isso silenciado27. No entanto, não podemos
nos esquecer que toda subjetividade é construída sempre em
relação ao outro, pois o outro é constitutivo do eu. Decorre
daí que podemos, então, concluir que o excluído, o não-
sujeito-leitor-tecnológico, é o exterior constitutivo do incluído, é
o seu outro. E ambos convivem juntos no mesmo mundo que
agrega e segrega pessoas por meio das novas TIC e por meio
de seus discursos.
27
Lembrando que Orlandi (1992) chama a atenção para o fato de que o silêncio também produz sentido, também é significativo no dizer.
132
Nesse sentido, ao mesmo tempo que a peça, como
forma de representação, define, com seu discurso, que tipo de
sujeito devemos ser e como devemos ocupar essa posição-
de-sujeito em nossa cultura atravessada pelas novas TIC, não
podemos ignorar o papel ativo da instância de recepção, a
qual não absorve simplesmente os sentidos que lhe são
criados e essas posições. O sujeito da instância da recepção
está constantemente estabelecendo negociações de sentido
em seu contexto de mediações simbólicas. E, por esse motivo,
uma vez que tomamos o pressuposto da heterogeneidade
como constitutiva não só da linguagem28, mas também, da
tecnologia e da subjetividade, não nos é possível entender a
inclusão ou a exclusão como um estar dentro ou um estar fora
de um sistema ou do que se prega desse sistema, conforme
propõe a campanha. Por meio da heterogeneidade é possível
visualizar que somos inevitavelmente, de alguma forma,
incluídos e excluídos ao mesmo tempo. Além disso, a inclusão
pode abrir a possibilidade de subverter as relações de poder
28
Authier-Revuz, no livro, Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer, explora com propriedade a constituição heterogênea da linguagem, todavia, no que tange ao universo da linguagem digital, tão fortemente atrelada à questão das novas TIC, deparamo-nos com mais uma forma de heterogeneidade: aquela que diz respeito à tradução dos dados (sejam eles letras, números, som, imagem, vídeo, etc.) inseridos no computador, para uma mesma linguagem, a codificação digital em bits, que é a linguagem processada pelo computador. E que, transcodificada, é devolvida a nós na sua forma original, o som como som, a imagem como imagem, a escrita como escrita, por exemplo.
133
que tentam homogeneizar todos os incluídos – como tendo
vez e voz –, bem como homogeneizar todos os excluídos –
destituídos de vez e voz –, impondo-lhes, assim, as
necessidades do outro – qual seja, a interpelação social ao
consumo, simbólico ou material, das novas TIC. Interpelação
esta que, muitas vezes, apagam as diferenças em uma
tentativa de ação homogeneizadora da sociedade. Em outras
palavras, incluir-se envolveria, ao mesmo tempo, ter contato
com a demanda do outro, e, a partir de então, negociar,
estabelecer-se e transformar-se, elaborar as suas próprias
demandas e não simplesmente as aceitar passivamente.
Tomamos emprestado de Canclini (2005) uma afirmação
feita por ele relativa à globalização, e a transpusemos para o
contexto de nossa análise por julgarmos que em certa medida
ela nos serve bem. O autor, ao afirmar que, nos dias de hoje,
as diferenças e as desigualdades deixam de ser fraturas a
superar, diz que esses termos foram substituídos por dois
outros: inclusão e exclusão. Nas palavras de Canclini o
predomínio deste vocabulário significa que:
A sociedade, antes concebida em termos de estratos e níveis, ou distinguindo-se segundo identidades étnicas ou nacionais, agora é pensada com a metáfora da rede. Os incluídos são os que estão conectados; os outros são os excluídos, os que vêem rompidos seus vínculos ao ficar sem trabalho, sem casa, sem conexão. (CANCLINI, 2005, p.17)
134
Em nosso caso, os excluídos e, por isso,
“desconectados”29 da rede perdem até mesmo seu direito de
dizer e assim “não terão vez” na sociedade – ou será porque
não têm vez, não poderão dizer e dizer-se – tem seu espaço
de fala invadido pela tonalidade escura da janela de
navegação numa possível alusão à sua desconectividade.
Não ler o digital é estar desconectado do mundo. “Ou [o
sujeito] se adéqua às tecnologias de comunicação [e de
informação], ou está fora da possibilidade de pluralizar
sentidos e percepções” (NUNES, 2005, [s.p]), na pós-
modernidade. Parece que poderíamos, até mesmo, empregar
aqui a proposição parodística formulada por Kenneth Gergen
– da qual nos dispensaremos de comentá-la – em que o autor
propõe: Estou conectado, logo existo. (apud SANTAELLA,
2007, p.231)
Mas, se adaptar-se ao digital é inserir-se, organizar-se
numa rede de informações e de sociabilidade, como dissemos
anteriormente, podemos pensar mais uma vez nas teorizações
de Bauman (1999a) no que diz respeito a inovações
tecnológicas contemporâneas. O autor as relaciona à
expansão capitalista e à categoria de consumo. Esta última é
por ele considerada como fator de referência e de organização
da sociedade pós-moderna. Em sua perspectiva, todas as
29
Usamos a expressão de Canclini, todavia, com certa ressalva, tendo em vista que nos posicionamos desde a abertura desta unidade a favor da não existência da possibilidade de exclusão total.
135
sociedades sempre consumiram, mas aquilo que caracteriza a
sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a
ênfase dada a esse consumo. Os membros da sociedade
moderna definiam suas redes de sociabilidade em torno da
capacidade de produção. Já na pós-modernidade, a
organização social se dá mais pela capacidade e pelo desejo
de consumir do que pelo que cada um de seus membros
produz.
Nesse âmbito, a tecnologia digital pode ser entendida,
em Bauman (1999a), como mais uma fonte de consumo. A
conexão de computadores através da Internet intensificou a
possibilidade de consumir e deslocou sua ênfase dos bens
materiais para o consumo de informação. Grande quantidade
de informação é consumida30 instantaneamente e a custos
baixos, independentemente do local onde é gerada ou
recebida. Então, podemos depreender a partir dessa
consideração que adentrar o universo da informática ou digital,
é consumir além de bens materiais representados pelos
artefatos técnicos, como por exemplo, dispositivos digitais e
meios de conexão à rede de internet; também os bens
simbólicos representados por bibliotecas digitais, ebooks,
softwares, websites, bancos de dados, enciclopédias on-line,
jornais on-line, serviços de compras, e muitos outros, e tudo
30
O que Santaella (2003, p.73) irá chamar de economia global informacional, designada por ela como a mais recente expressão da mobilização capitalista da sociedade.
136
isso enredados no formato de informação. Fato que contribui
para que alguns estudiosos designem nossa sociedade
contemporânea como sociedade de informação ou
informacional, como é o caso de Castells, no livro Sociedade
em Rede .
Parece-nos assim que, se tomarmos a tecnologia no
sentido de mediadora, podemos chegar a noção de que o
consumo das novas TIC – seja ele em forma material ou
simbólica – ou de seu discurso, é uma espécie de produção
da inclusão digital, e, por conseguinte, de produção do sujeito-
leitor-tecnológico. Pois essas novas tecnologias parecem
prometer um processo de transformação de um modo de ser,
num outro, visto que as informações estariam ao alcance de
qualquer um, bastando apenas ser um incluído digital, isto é,
um leitor da textualidade digital.
No entanto, não podemos enxergar o consumo de
informação como uma atividade pacífica e passiva por parte
do sujeito – higienizado de todo seu entorno sócio-histórico e
cultural – entorno este que é constituído pela mediação das
novas TIC. Pois, entendemos que esse sujeito estará no/em
constante fluxo de informação, não apenas a recebendo, mas
produzindo-a singularmente, em uma negociação constante
de sentidos os quais, por sua vez, são circunscritos pela
exterioridade, pelo outro. E é nesse jogo, muitas vezes tenso,
137
que as subjetividades, bem como as identidades, podem ser
constituídas e estabelecem-se.
Referência bibliográfica:
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999b.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008.
CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.1.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.2.
CORACINI, Maria José (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Campinas: Pontes, 2002.
CORACINI, Maria José. Concepções de leitura na (pós-)modernidade. In: CARVALHO, Regina Célia; LIMA, Paschoal (Orgs.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado das Letras, 2005. p.15-44.
138
GALLI, Fernanda Correa Silveira. O sujeito-leitor e o atual cenário tecnológico e globalizado. Revista Letra Magna, ano 2, n.3, 2005. p.1-13. Disponível em: http://www.letramagna.com/Fernanda_Correa_Silveira_Galli.pdf. Acesso em: 11 jun./2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
HALL, Stuart. Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
NUNES, Maíra. Quem tem vez e voz? Revista Eletrônica Temática. Set/2005. Disponível em: < http://www.insite.pro.br/Artigo%20Ma%EDra%20inclus%E3o.htm>. Acesso em: ago/2008. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA; Tomaz Tadeu (org.). identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2004. pp. 7-72.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
139
VOZES E IDEOLOGIAS NA REPRESENTAÇÃO DE FÓRUNS MUNDIAIS:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES1
Magna Campos – UFSJ
Prof. Dra. Adelaine LaGardia – UFSJ
Resumo: O trabalho em questão versará sobre uma leitura de uma charge publicada no Jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2001. Tal leitura incidirá sobre a questão da ideologia à luz de alguns pressupostos de Karl Marx, e da releitura da teoria marxista efetuada por Louis Althusser e Stuart Hall. Na charge analisada, pode-se observar certa ironia quanto ao acontecimento de dois eventos em âmbito mundial, sendo eles o Fórum Social Mundial e o Fórum Econômico Mundial. No entanto, a leitura aqui pretendida levantará questões concernentes ao funcionamento da ideologia, de acordo com as posturas teóricas dos autores acima citados, e, para isso, será relevante considerar o contexto de produção a que a tal charge remete, bem como às estratégias discursivas e visuais implícitas na crítica veiculada.
O termo “ideologia” apresenta acepções diferenciadas de
acordo com a filiação teórica em que é empregado. Pode-se
dizer que se configura como uma trama de diferentes fios
conceituais, traçado por divergentes histórias, e, neste caso,
mais importante provavelmente do que tentar agrupar essa
polissemia em uma grande teoria global, seja determinar o
que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser
descartado.
1 Texto escrito em 2007.
140
Nesta vertente de estudo, é que este trabalho se filia na
tentativa de proceder a uma pequena leitura de uma charge
publicada no Jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2001.
Essa leitura será pautada em algumas considerações
concernentes ao funcionamento da ideologia, baseadas na
releitura efetuada por Staurt Hall sobre essa questão em Karl
Marx e em Louis Althusser, bem como no funcionamento do
discursivo da ideologia, conforme pressupostos da análise do
discurso. Desde já, adianta-se que tal leitura apresenta um
caráter exploratório sem pretender-se alcançar o caráter
exaustivo de análise, tendo em vista a característica do
gênero acadêmico a que se propõe: uma comunicação
coordenada. A fim de situar-se o arcabouço teórico no qual
essa leitura será pautada, será realizada uma pequena
exposição a respeito do tema ideologia em conformidade com
os autores mencionados.
Pode-se mencionar que um dos maiores
questionamentos no que se refere à temática da ideologia em
Marx, diz respeito à problemática deste autor ter considerado
a ideologia concernente apenas às relações econômicas – ou
seja, às questões que envolvem a produção/consumo de
mercadorias em uma sociedade capitalista. Marx atribuía as
origens das categorias espontâneas do pensamento burguês
na materialização comum às formas superficiais do circuito
capitalista. Esse pensador identificou, especificamente, a
141
importância do mercado e das trocas de mercado, onde as
coisas são negociadas e os lucros obtidos.
Para isso, primeiro estabeleceu, como fonte de ideias,
um momento particular do circuito econômico do capital.
Segundo, demonstrou como a tradução das categorias
econômicas para as ideológicas pode ser efetuada. E por
último afirma que as categorias ideológicas "escondem" a
realidade subjacente e as substituem pelas "verdades" das
relações de mercado. Neste posicionamento, ideologia passa
a configurar-se como de caráter ilusório e negativo.
Pode-se identificar tal tradução nos dizeres de Brandão
(2004) acerca das proposições teóricas de Marx. Segundo
Brandão (2004, p.21),
os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a “potência” dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias de seu domínio.
142
Já em Althusser, nota-se um grande avanço neste
aspecto ao tentar descrever as formas de disseminação,
perpetuação e reprodução da ideologia, não a “sufocando”
apenas em termos de economia. No entanto, a ideologia para
Althusser ainda é “a Ideologia”, assim mesmo, no singular,
fortemente atrelada a uma classe social específica: a
burguesia. Segundo essa linha de pensamento, às demais
classes sociais, caberia o papel de reprodução fixa da
ideologia de sua classe, eternamente subordinada aos
ditadores da ideologia: a classe dominante. Portanto, pode-se
conjecturar que se em Marx ocorre o reducionismo
econômico, em Althusser ocorre o reducionismo de classe.
Se em Marx o Estado é visto de forma unificada e como
instrumento de dominação de uma classe, fator, aliás, que
expõe o teórico a inúmeras críticas; em Althusser o Estado e,
por extensão, a própria ideologia, possui distintos modos de
ação, atuando em diferentes locais. O Estado althusseriano é
visto como pluricentrado e multidimensional, apresentando
como função a união e a articulação, em uma instância
complexa, de gama de discursos políticos e de práticas sociais
que, em diferentes locais, ocupam-se da transmissão e
transformação do poder. Portanto, há um deslocamento da
questão da instrumentalidade do Estado (Marx) para a de seu
funcionamento, repressivo ou ideológico (Althusser).
143
Ideologia, para Althusser, seria configurada como
representação, pois, para ele, não são as suas condições
reais de existência, seu mundo real que os “homens
representam” na ideologia; o que é nelas representado é,
antes de qualquer coisa, a sua relação com as suas condições
reais de existência. Em Althusser, a ideologia possui uma
existência material na prática ou práticas nos Aparelhos
Ideológicos de Estado, em outras palavras, a ideologia se
materializa nos atos dos indivíduos, portanto, Althusser não
separa o conhecimento das práticas.
Partindo desse pressuposto, tem-se uma outra
conclusão a que Althusser chega, trata-se de caracterizar a
função da ideologia como constituidora de indivíduos
concretos em sujeitos. Pois para ele só há prática através de e
sob uma ideologia e só há ideologia pelo sujeito e para o
sujeito. É com base nesse pensamento que Althusser pode
concluir que a Ideologia interpela os indivíduos enquanto
sujeito. Dessa forma, traça uma concepção mais linguística ou
discursiva para ideologia, tendo em vista que colocou em
discussão o fato de como a ideologia é internalizada pelos
sujeitos.
Pensar em sujeito interpelado acarreta pensar também
em um sujeito interpelador, e, segundo Althusser, tal papel
caberia aos Aparelhos Ideológicos do Estado que
reproduziriam a ideologia da classe dominante. Hall (2003b)
144
ensaia uma possível crítica à interpelação dizendo que se
trata de mera especulação afirmar que eles (mecanismos de
interpelação) fornecem as condições concretas e suficientes à
enunciação de ideologias historicamente específicas e
diferenciadas.
Ao contrário de Marx e Althusser, tem-se em Hall uma
concepção de ideologia, ou melhor, de ideologias capaz de
representar diferentes grupos e classes, que existe
materialmente nas práticas sociais e nos signos na forma de
discurso. A ideologia, neste sentido, figuraria como um
discurso sobre a realidade, o que fica mais fácil de
compreender se considerar-se o fato que só é possível ter
acesso à realidade por meio do discurso que a organiza.
Seriam as ideologias como representações possíveis da
realidade por um grupo, que dão sentido às suas práticas.
Stuart Hall (2003) considera a ideologia como inerente ao
próprio ato de representar/significar e codificar/decodificar.
Pode-se, então, conceber ideologia como um discurso
que “empregado” por uma classe ou grupo social – o que
significa que estes discursos não são nem necessariamente
produzidos dentro destas classes ou grupos sociais, nem que
eles sejam reflexos destas classes ou grupos sociais –
organiza uma determinada representação da realidade e que,
ao refletir uma determinada posição, estabelece relações de
poder com as demais posições, com outras representações da
145
realidade, com outros discursos. Desta feita, não haveria,
segundo Hall, a obrigatoriedade da correspondência
necessária entre a classe socioeconômica e a ideologia.
Assim, um discurso seria ideológico quando classes e
grupos sociais o “empregam” para dar sentido ao modo como
a sociedade opera. Ressalta-se, no entanto, que nem todo
discurso, nem toda formação simbólica é ideológica, mas
somente o é, quando serve para dar sentido a algo que lhe é
externo, estabelecendo relações de poder - que são, de todo
modo, inerentes ao funcionamento dos signos, mas que não
são inerentes ao próprio objeto.
Tendo em vista esses apontamentos, passa-se agora
para a sua aplicação na leitura da charge, mencionada no
início deste trabalho, e impressa a seguir:
146
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, veiculado em 27/01/2001
Nessa charge2, o sentido da expressão - Vamos invadir o
McDonald’s - só pode ser atribuído considerando-se o
contexto de produção a que a charge nos remete. O texto em
estudo remete-nos a dois contextos distintos sobre o mesmo
signo: fórum. No entanto, um refere-se a fórum social e outro a
fórum econômico, os dois, porém, em âmbito mundial.
Portanto, duas situações que, como podemos observar pela
própria charge, configuram dois sujeitos diferentes valendo-se
do mesmo enunciado: Vamos invadir o McDonald’s. Sujeitos
2 Também usada pela professora Dra. Maria José Rodrigues Faria
Coracini, da Unicamp, em um texto de sua autoria.
147
esses que perspectiva althusseriana seriam interpelados pela
ideologia.
Numa perspectiva discursiva, pode-se dizer que os
enunciados mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam, uma vez que tais
enunciados estão inseridos em uma determinada formação
discursiva, o que quer dizer que é a partir de uma posição
dada, numa conjuntura específica, que se pode determinar o
que pode e deve ser dito. Sendo assim, infere-se que
formações discursivas significariam para Marx o conteúdo das
formas ideológicas, a expressão do ideal das relações
materiais dominantes, sendo o seu conteúdo dado pela classe
que, por deter os meios de produção, o material, detém
também os meios de produção intelectual.
Se considerar-se o preceito da correspondência
necessária entre classe socioeconômica e ideologia, tem-se
que a formação discursiva funcionaria como uma espécie de
“camisa de força” que circunscreveria o sentido a uma única
possibilidade. No entanto, relativizando-se essa situação e
aproveitando a proposta de ideologia sugerida Hall (2003),
haveria a possibilidade de poder ou não haver
correspondência, o que tornaria possível sair-se do patamar
da obrigatoriedade para o de evento, com isso a formação
discursiva apontaria para alguns sentidos possíveis e
silenciaria outros, mas não os negaria.
148
Veja-se o contexto de produção a que cada um dos
enunciados nos remete:
o primeiro enunciado é proferido pelos
participantes do Fórum Social Mundial (realizado
em Porto Alegre-RS) que são contrários à
globalização, à política do neoliberalismo, aos
países ricos,
o segundo, pelos participantes do Fórum
Econômico Mundial (realizado na Europa ou
USA) que reúne representantes dos países mais
ricos do mundo liderados pelos USA.
Vê-se, então, que se tratam de duas formações
discursivas antagônicas em que os sujeitos que falam, falam
de posições políticas, sociais, ideológicas diferentes. Dessa
forma os enunciados, apesar de gramaticalmente idênticos,
apresentam sentidos diferentes.
No Fórum Social Mundial, a ideologia marxista ligada à
luta de classes “impele” os sujeitos à luta e, neste sentido, o
termo invadir significa ocupar pela força, tomar posse3. Daí o
uso, na charge, de imagens de foices e bandeiras e até
mesmo de dupla exclamação ao fim do enunciado, dando esta
uma ideia de grito. Já no Fórum Econômico Mundial, o cenário
é outro, em lugar da balbúrdia do primeiro, há apenas dois
sujeitos, cujos vestuários remetem a condições sociais e
3 Conforme dicionário eletrônico Houaiss.
149
econômicas bem distintas da primeira imagem. Neste caso,
precedido de outro enunciado - que fome - que ajuda na
produção do sentido do enunciado, o termo invadir agora se
refere no sentido mais coloquial de ir para.
No entanto, os dois enunciados referem-se ao mesmo
local: McDonald‟s, símbolo do neoliberalismo e da dominação
americana. Aliás, um dos ditames do Fórum Social Mundial
questiona o chamado Primeiro Mundo e a hegemonia dos
valores da sociedade norte-americana como o modelo ideal a
ser seguido. Assim, observa-se que na charge em questão, é
ainda o conceito marxista de ideologia que está em jogo de
formação discursiva como determinante do sentido dos
enunciados.
Referências bibliográficas:
HALL, Stuart. Significação, representação, ideologia: Althusser e os debates pós-estruturalistas. In: ______.Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a.p.160-198. HALL, Stuart. O problema da ideologia: o marxismo sem garantias. In: ______. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003b. p.265-293.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
150
UMA BREVE LEITURA DO FILME QUIS SHOW: A
VERDADE DOS BASTIDORES1
Magna Campos – UFSJ
Prof. Dr. Guilherme Rezende – UFSJ
O filme narra uma história, baseada em fatos reais, sobre
um programa de televisão do tipo Perguntas e Respostas. O
enredo acontece na década de 1950, nos Estados Unidos, e
versa sobre o programa da NBC chamado de 21 o qual se
dizia um jogo isento de manipulações e sem a interferência de
seus produtores. Para ganhar o respeito de seus
telespectadores, as perguntas e respostas do programa eram
guardadas e um cofre “acima de qualquer suspeita”, pois essa
era a afirmação ostentada no anúncio e propaganda do
programa, cria-se, assim, o elemento – credibilidade – do
jogo.
O filme mostra, logo no início, o apresentador do programa
se preparando para entrar em cena e repassando o texto de
suas falas. Neste ponto, percebe-se que o apresentador tenta
imprimir um ar emotivo e, ao mesmo tempo, de naturalidade
daquilo que fala, tentando, assim, levar ao público a falsa
impressão de fala real, sem texto, sem “decoreba”. Neste
papel, pode-se dizer que o apresentador configura-se num
1 Texto escrito em 2006.
151
ator que é responsável pela mediação entre o “21” e a plateia
local e a de casa. Essa preocupação com a suposta
naturalidade ainda pode ser percebida na ordem para que os
participantes do jogo, os concorrentes, cumprimentem o
apresentador sempre pelo primeiro nome.
Herbert, um dos participantes do jogo, de origem judaica,
representante do que poderíamos chamar de classe operária,
após algumas vitórias, não mais despertava grande interesse
dos telespectadores e o programa encontra-se numa fase de
estagnação de audiência. Tal personagem é representado no
filme de uma forma um pouco caricatural, pois traja sempre
um terno desajustado, exibe uma falha na arcada dentária que
torna grosseiro seu sorriso; fato, aliás, que muito perturbava
ao personagem, fissurado na ideia de recapear o tal dente e
melhorar não só sua imagem, mas também, mas também, no
entender dessa personagem, capaz de lhe conferir status
social. Hebert ainda representa um desajuste na ordem
natural do programa, uma vez que fala entre as falas do
apresentador e desconcerta-o em seu “texto-pronto-natural”.
No entanto, essa fala de Herbert é sempre sobre um tema
pontual: GERITOL, produto patrocinador do programa em
questão.
Desde a caracterização do personagem-jogador, Herbert,
vê-se um fator subversivo sendo construído, pois toda essa
caricatura indica em seus interstícios que embora
152
desajustado, desalinhado, esse dito gênio do programa traz
em sua própria condição os elementos da anarquia, da
rebelião contra a ordem do silenciamento-humilhante que lhe
é imposto pela organização do programa, quando estes,
valendo-se de uma tática para alavancar a audiência do
programa, aceitam-recrutam um novo e perfeito concorrente-
jogador.
Charles Van Doren surge no filme depois de ser delineado
para os telespectadores, agora do filme e não do Programa
21, como um rapaz inteligente, culto, capaz de responder às
questões propostas pelo programa e que se sente atraído pelo
tal jogo.
Ao procurar um desses programas em que se conseguia
ganhar algum dinheiro por meio do conhecimento-estudo que
possuía, Charles é “recrutado” pelos dois diretores do
Programa 21 que viram no rapaz exatamente a imagem do
novo “personagem-jogador-garoto-propaganda” que
precisavam.
Diferentemente de Herbert, Charles era bem apresentável,
com cabelos, barba e terno alinhados. Ostentava um sorriso
simpático, sem a “mancha” de uma falha dentária, tal qual o
concorrente. Era professor universitário, com alta formação
literária e oriundo de uma família reconhecida por seus
méritos intelectuais. Seu pai havia ganhado um prêmio
reconhecido de poesia e seu tio era um historiador renomado.
153
Tanto que, logo de início, seu sobrenome é ostentado e
repetido pelos diretores do programa.
Para dissuadi-lo a participar do programa e a cooperar
com direção, os organizadores usam a causa da educação
como justificativa até mesmo de atos ilícitos, como o de
receber as respostas das questões a fim de que o “mocinho”
permanecesse o tempo que lhes aprouvessem no programa.
Fator recusado por Van Doren inicialmente, mas que, a partir
da primeira vitória, parece ter se tornado comum ao
personagem.
Os conflitos têm início quando Herbert recebe a notícia de
que para ele o jogo acabara e que deveria errar uma das
questões do programa seguinte, justamente o que disputaria
com Van Doren. Não bastasse a queda repentina, ainda teria
que se humilhar errando, exatamente, uma questão que seria
de fácil resposta. Ou seja, cria-se o cenário da rebeldia, pois
além da exclusão, haveria também a humilhação pública.
É interessante observar alguns signos visuais que auxiliam
na encenação do desafio intelectual que são apresentados no
programa, tais como: posição de palco, o ritual de limpar o
suor, a pausa respiratória, o desligar do ar-condicionado, o
olhar introspectivo antes das respostas e mesmo o sorriso
aliviado da resposta correta. Tudo isso escapava aos olhos
até mesmo da plateia, programada para aplaudir e sorrir,
154
presente no estúdio-cenário de gravação do jogo, utilizada
também como fiscal da segurança do jogo.
Durante o filme, podem-se perceber várias cenas em que
patrocinador, diretor, organizador e toda a cúpula da televisão
valem-se da comunicação interna para deliberar sobre os
rumos do programa na hora mesma em que o jogo estava
sendo transmitido. Fator de crítica à mercantilização, latente
do filme.
O jovem e bem quisto Van Doren, assusta-se ao ver que
sua primeira vitória foi manipulada e sai meio transtornado do
estúdio com o fato, recusando-se a descer no elevador
juntamente com aqueles que sabia ter armado toda a vitória.
Curiosamente, ele que se recusara, em um primeiro
momento, a fazer parte dessa falcatrua se vê enredado pala
trama, pelo dinheiro e pela fama que tal vitória lhe
proporciona. Nesse sentido, seria possível apontar a escada
que ele escolhe descer sozinho, ao recusar descer de
elevador, como uma metáfora, via consciente da “decadência
moral”. A descida durante a qual o suor é real e a busca de
uma justificativa para aliviar-se do peso da consciência era
buscada e encontrada: tudo isso pela causa da educação!
O novo ganhador facilmente se torna o novo garoto
propaganda do anunciante e patrocinador do programa e
também se torna o novo herói para o qual os telespectadores
torcem ansiosamente e admiram-no por sua inteligência.
155
Revoltado com a humilhação que lhe fora imposta, Herbert
tenta mover uma ação contra o programa, o que não é levado
muito a sério, nem mesmo pela diretoria que tenta silenciá-lo
simplesmente para enterrarem o assunto e não por se sentir
realmente ameaçada.
Eis que surge no filme um personagem crucial, um jovem
advogado de uma subcomissão do congresso, que atraído por
uma pequena nota em um jornal sobre o processo contra o
programa convence seus superiores em liberá-lo para
pesquisar a respeito, em New York, onde é gravado o
programa.
Apesar da grande dificuldade em descobrir informações, o
advogado consegue por meio de Herbert, alguns dados que
foram cruciais para suas investigações, mesmo lhe parecendo
um tanto quanto insólitos, pela própria configuração das
informações que lhe foram repassadas por um personagem
atordoado pelo silenciamento que lhe fora imposto tanto pela
televisão, quanto pela justiça, o caricato Herbert.
Mas, mesmo o advogado, sente-se atraído pela imagem
de rapaz honesto que Van Doren ostentava. Assustado e
atordoado com as investigações Van Doren tem cada vez
mais noção da falta de ética de seus atos; a popularidade
agora se configura como um “peso” e esse fantasma volta a
perseguir-lhe, embora tivesse sido exorcizado anteriormente
naquela escada, já mencionada neste texto.
156
Tentando aliviar-se, Van Doren propõe a diretoria que não
lhe dessem as respostas, dessem-lhe apenas as perguntas e
que ele mesmo fosse o responsável pelas respostas. Talvez
para tentar sentir-se menos culpado na situação. Ainda assim,
o professor universitário não aguenta a forte pressão
psicológica e resolve “cair fora” do jogo, errando, por escolha
própria uma questão que também sabia a resposta.
Descoberta a trapaça do programa, Van Doren continua
com a imagem de bom moço, vítima da difamação que lhe era
imputada, todavia, pela sua própria formação moral e
configuração familiar não suporta mais a mentira e resolve
apresentar-se ao júri especial e não dá um depoimento,
propriamente dito, visto que enuncia sua declaração
antecipadamente e assume publicamente que recebia as
respostas das questões, tal qual os outros concorrentes
também deviam tê-las recebido.
No entanto, Van Doren, doutor em Literatura, usa de
metáforas para assumir e relatar seus erros, fator que jamais
seria colocado na boca de outro personagem como Herbert,
por exemplo, a quem coube a desmedida e a caricatura. Van
Doren, personagem que no auge do sucesso encantou-se
com a fama, o reconhecimento e com a fortuna, vira seu
mundo transtornado e restaram-lhe as metáforas para se
desculpar com todos aqueles que torceram, admiraram e se
espelharam nele.
157
O filme termina com o desolamento do advogado em
perceber que o verdadeiro alvo de suas denúncias, a
televisão, esquivara-se e saíra ilesa das acusações, recaindo
sobre “pobres mortais” as punições pelo grande jogo de poder
entre televisão e mercado.
As legendas finais aludem à continuidade da televisão,
com um pequeno e consertado arranhão na imagem e com a
marcação cicatrizante deixada na história-carreira dos
personagens do jogo, que nunca passara da ilusão de um
jogo, ilusão, aliás, que faz parte da rotina dos telespectadores
e, para lembrar Bourdieu, que configuram “os mecanismos
anônimos, invisíveis [...] que fazem da televisão um formidável
instrumento de manutenção da ordem simbólica” (1997,
p.20)2.
***
2 BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Tradução Maria Lúcia
Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.