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Livro Ensaios de Leitura Crítica - Autora Magna Campos

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VirtualBooks

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© Copyright 2010, Magna Campos.

Capa:Kythão, com ideia da autora

1ª edição

1ª impressão

(2010)

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma -,

nem apropriada e estocada sem a expressa autorização de Magna Campos.

Livro preparado e editado por VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA.

Rua Benedito Valadares, 560 - centro – 35660-000- Pará de Minas - MG - Brasil

Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

Campos, Magna

ENSAIOS DE LEITURA CRÍTICA. Magna Campos. Pará de

Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2010. 156p.14x20 cm.

ISBN 978-85-7953-227-6

1. Educação. Literatura. Jornalismo. Brasil. I. Título.

CDD- 370

5

SUMÁRIO

Apresentação

03

Ensaio 1: A representação da identidade feminina na publicidade “Um Toque de Seda”

05

Ensaio 2: A imagem da leitura, no campo do ethos enunciativo, construída pela apresentação das diretrizes do PNLL. (As vozes de dois Ministros de Estado)

35

Ensaio 3: Jornalismo popular x sensacionalismo: um estudo do papel do fait divers no Jornal Super Notícia 74

Ensaio 4: Tecnologia como mediadora de subjetividades 109

Ensaio 5: Vozes e ideologias na representação de Fóruns Mundiais: algumas considerações 138

Ensaio 6: Uma breve leitura do filme Quis Show: a verdade dos bastidores 149

6

Neste livro, reúno alguns dos textos que produzi na

época em que realizei o Mestrado em Teoria Literária e Crítica

da Cultura, afiliada que fui à linha de pesquisa, Discurso e

Representação Social, pela Universidade Federal de São João

Del-Rei, entre os anos de 2006- 2008.

Os ensaios e artigos que aqui se apresentam são

reelaborações de algumas comunicações e mesa-redonda

apresentadas em congressos científicos, constituem esforços

de uma proposta de leitura em diálogo com a complexa e

produtiva relação de áreas do conhecimento tradicionalmente

distintas – que vão desde as teorias do discurso, passando

pelas teorias da comunicação e chegam às teorias sociais.

Um diálogo que busca entremeios que possibilitem a

realização de leituras na perspectiva da crítica cultural – esse

grande cadinho que dilui fronteiras e propõe novos olhares

menos segmentados para a sociedade e para suas práticas

socioculturais.

Magna Campos

7

A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NA PUBLICIDADE “UM TOQUE DE SEDA”1

Magna Campos – UFSJ

Prof. Dr. Antônio Assunção – UFSJ

Resumo: Neste texto será analisado como é representada a

identidade feminina na campanha publicitária, um toque de Seda, veiculada na revista Claudia, em dezembro de 2006, pela Editora Abril. Considera-se neste trabalho a identidade como construída pela prática social, como uma construção também discursiva, na qual as representações sociais são o resultado da interação entre os mundos individual e social, possível no espaço discursivo criado entre ambos. Para se avaliar a questão proposta, percorreu-se a teoria buscando no conceito de identidade e de representação social. Constata-se que o tipo de identidade feminina representada pela peça publicitária em análise encaixa-se dentro do verdadeiro arquétipo mercadológico da mulher moderna: uma mulher que trabalha, que é independente, que tenta conciliar vida profissional com a vida social e que valoriza a beleza física, mas que, no entanto, dada a correria de sua “batalha” diária não tem tempo a perder com cuidados demorados em prol de alcançar a beleza. Verificada como uma representação de identidade que visa a incitar ainda mais o consumo de uma imagem do que é “ser mulher na atualidade” e, também, o consumo de produtos relativos à beleza, que prega a individualidade, o gosto e o estilo pessoal como marcas da mulher independente e realizada.

Contextualização:

A publicidade de cosméticos, de forma geral, tem

buscado, através de formas persuasivas distintas, expandir

1 Texto escrito em 2007.

8

cada vez mais o uso de tais produtos através da adesão de

novos e da confirmação de antigos consumidores. De acordo

com Lopes (2005, p.6), o ciclo de vida de um cosmético é de,

no máximo, cinco anos. Alguns produtos são retirados do

mercado meses após o lançamento, conforme informação da

autora. O que demonstra a grande rotatividade dos produtos.

A maior parte da publicidade de cosméticos é

estrategicamente dirigida às mulheres por serem elas as

grandes consumidoras destes produtos. Tais publicidades

investem na criação de um elo entre o produto e a vida

emocional da mulher e isso pode ocorrer por meio de

representações do feminino nelas engendradas. No entanto,

esta mulher representada não figura sempre do mesmo modo,

visto que é preciso aproximar-se dos arquétipos femininos de

representação instaurados na sociedade, de acordo com a

época corrente e com os desejos que a publicidade quer

alcançar ou criar nas consumidoras a fim de que comprem os

produtos anunciados.

Muitas vezes as pessoas são impelidas a consumir não

apenas os produtos anunciados pela publicidade, mas a

consumir a própria publicidade. Kellner (2001, p.324) indica

que “a publicidade está tão preocupada em vender estilos de

vida e identidades socialmente desejáveis, associadas a seus

produtos, quanto em vender o próprio produto”.

9

O termo consumismo, segundo Yúdice (2006, p.228), é

historicamente associado a movimentos de proteção ao

consumidor. No entanto, hoje, a noção de consumismo não se

refere mais predominantemente à proteção ao consumidor,

função que está perfeitamente alojada dentro do Estado, mas

à permeação de todos os aspectos da vida (lar, lazer, psiquê,

sexo, política, educação, religião) por um ethos (ou estilo de

vida) em que todas as imagens nos consomem.

De um movimento social de proteção ao consumidor, o

consumismo foi transformado em um movimento empresarial

para a instrumentação democrática do consentimento, ainda

de acordo com Yúdice. Em parte, a permeação de tudo o que

há na vida pelo consumo foi possibilitado pela mudança de

uma seleção sempre mais específica de consumidores.

A cultura de consumo define-se como o conjunto de

práticas e representações que estabelecem uma relação

estetizada e estilizada com os produtos. Bourdieu apud Souza

(2004, p.173) define o estilo de vida (estilização) como sendo

um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem,

na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos,

mobília, vestimentas, linguagem corporal, a mesma intenção

expressiva. Trata-se de um consumo no qual os atributos

simbólicos dos produtos são manipulados em função de uma

intenção expressiva. Sob este aspecto, o consumo moderno

caracteriza-se pela ênfase dos atributos simbólicos dos

10

produtos, em detrimento de suas qualidades estritamente

funcionais e pela sua manipulação na composição de estilos

de vida. O consumo foi convertido no espaço de articulação

das distinções sociais, hierarquizadas em termos de uma

distribuição diferencial de prestígio.

Apesar de os discursos publicitários legitimarem e

generalizarem as práticas de embelezamentos corporais para

todos, as maneiras e graus de acesso aos produtos em prol

da beleza revelam-se hierarquizados.

A estetização do consumo, construindo universos

imagéticos em torno dos produtos, envolve os indivíduos em

fantasias tecnologicamente produzidas. É a inserção da

mercadoria (corpo) em um mundo de sonho onde tudo é

possível. A forma como o produto é apresentado causa nos

indivíduos a sensação de estarem muito próximos do objeto

oferecido, como se bastasse estender a mão e satisfazer seus

mais íntimos anseios. Não há, então, distância entre objeto de

consumo e consumidor, mas uma estreita relação de

dependência de um para com o outro.

Ao estimular os investimentos no corpo como forma de

expressar a individualidade, o estilo de cada uma, a

manifestação da personalidade de cada mulher, na “escolha”

de cosméticos, roupas, práticas, bens de consumo, os

discursos publicitários midiáticos englobam a todas em um

discurso ideológico do gosto, num discurso legitimado,

11

impondo uma variedade de gostos, de modo naturalizado,

fazendo com que não percebam seu caráter ideológico.

No que se refere ao mercado, percebe-se a utilização de

métodos que dão ilusória impressão de que seus

consumidores são livres para escolher seus estilos de vida,

seus hábitos, que têm liberdade para definir suas formas de

vida. Contudo, essa desejada liberdade do consumidor – que

significa uma orientação da vida para as mercadorias

aprovadas pelo mercado – impede, pois, a liberdade decisiva

de seu libertar das exigências que o mercado preparou para a

escolha dentre os produtos que padronizou para o consumidor

que ele quer conquistar.

De acordo com Vestergaard e Schroder (2004) apud

Reis (2006, p.42-3), as grandes agências de publicidade,

principalmente nas últimas três décadas, têm empregado

psicólogos e sociólogos que, munidos das mais recentes

pesquisas de opinião, procuram determinar os valores e

imagens que exercem maior apelo junto ao público de uma

dada publicação. Um dos pressupostos básicos do seu

trabalho é que os anúncios devem preencher a carência de

identidade de cada leitor, a necessidade que cada pessoa tem

de aderir a valores e estilos de vida que a confirmem como

sujeito e permitam-lhe compreender o mundo e seu lugar nele.

Para os autores, ocorre um processo de significação, no qual

certo produto se torna expressão de um determinado

12

conteúdo (estilo de vida e valores). Esse processo teria como

objetivo ligar a desejada identidade a um produto específico,

de modo que a carência de uma identidade se transforme na

carência do produto.

Reis (2006, p.49), parafraseando Soulages (2001), diz

que os efeitos visados pela instância de produção não se

restringem apenas à aquisição do produto que está sendo

veiculado pela publicidade, como, também, à adesão e

assimilação dos valores que o mesmo traz subentendidos.

Apesar de cada vez mais se investir em consolidação do

nome da empresa, da marca, da agregação a ela de valores

positivos e politicamente corretos, todos estes itens

pontuados, e outros mais, convergem para o mesmo fim: a

venda do produto, que é o objetivo máximo da publicidade.

A publicidade é, para Soulages (2001), uma forma

insidiosa e mascarada de circulação das representações

sociais. Longe de refletir as identidades reais, a publicidade

participa da estereotipação das identidades sociais,

constituindo-se como um autêntico programa de construção

identitária. A publicidade cria e dissemina em suas peças,

modelos estereotipados de beleza, de saúde etc., nos quais

os consumidores possam se projetar, criando-se, assim, os

mundos possíveis, que englobam a figura e o mundo do

consumidor para que ele possa se ver através desse espelho

de representação.

13

Hodiernamente, falar sobre o sujeito moderno ou formas

como esse sujeito é interpelado por algum discurso, insira-se

aí o discurso publicitário, requer que se leve em consideração,

tal qual já expusemos, questões que versem sobre a

identidade (s) desse sujeito. No “badalado” livro de Stuart Hall,

A identidade cultural na pós-modernidade2, o autor afirma que

as identidades estão sendo descentradas devido à

fragmentação crescente nas sociedades modernas.

Hall (2004, p.10) distingue três concepções muito

diferentes de identidade, sendo elas formuladas conforme a

concepção de sujeito tomada, assim, teríamos: o sujeito do

iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

Para o autor, sujeito Iluminista, compreendido como

indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de razão,

criou uma concepção muito “individualista” do sujeito. Um

indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de

capacidades de razão. Essencialmente descrito como

masculino. Mas, diante da crescente mudança do mundo

moderno e da compreensão de que a autonomia deste sujeito

não era exatamente como era concebida, pois ele também era

formado na relação com outras pessoas, desenvolve-se a

concepção do sujeito sociológico.

A concepção de sujeito sociológico caracteriza-se, para

Hall, como uma identidade em busca de uma estabilização

2 Versão usada de 2004.

14

entre o interior e o exterior, o mundo pessoal e o mundo

público, internalizando sentimentos subjetivos em lugares

objetivos (mundo social e cultural). De acordo com essa visão,

que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a

identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade.

(HALL, 2004, p.11)

Estas duas concepções demonstram a busca por uma

identidade fixa e permanente, todavia, no contexto atual, elas

se encontram em colapso, em “crise”, ou em “deslocamento”,

como prefere afirmar Hall. Desta transformação surge o

conceito de sujeito pós-moderno, pois, diferentemente dos

dois conceitos anteriores, este sujeito não é caracterizado por

uma identidade fixa ou permanente. Ainda, segundo Hall

(2004, p.12), o sujeito, previamente vivido como tendo uma

identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;

composto não de uma única, mas de várias identidades.

Sendo assim, deveríamos, em lugar de falar da

identidade como uma coisa acabada, falar de identificação, e

vê-la como um processo em andamento. Pois,

a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós enquanto indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir do nosso exterior pelas formas através das quais nós imaginamos ser visto por outros. (HALL, 2004, p.39)

15

Essa forma do sujeito se enxergar a partir do que

imagina ser a visão do outro sobre ele, leva à questão da

representação, uma vez que a identidade não é algo inato,

mas formado e transformado no interior das representações.

Assim, a identidade resulta das interações entre os grupos e

os procedimentos de diferenciação simbólica que eles utilizam

em suas relações construindo e se reconstruindo

constantemente no interior das trocas sociais, num processo

dinâmico e inacabado de (co)construção. Portanto, como

prática social.

Ao analisar uma campanha da Nova Linha Seda3,

denominada Um toque de Seda, veiculada na revista Claudia

de dezembro de 2006, corpus deste breve estudo,

concordamos com Hall e também com Moita Lopes (2002,

p.31) quando afirmam que a identidade deve ser pensada

como “um construto situado em circunstâncias sócio-históricas

particulares”. E, também, que as identidades, além de serem

construídas no discurso e pelo discurso, são fragmentadas e

fruto de todas as experiências que os sujeitos experienciam

durante toda a sua vida.

A identidade, conforme caracterizada anteriormente,

aponta também para uma noção de representação social que

3 Marca fabricante de produtos para cabelo, especificamente neste

caso, o anúncio refere-se a shampoos e condicionadores.

16

fuja ao dualismo entre o mundo individual e mundo social,

considerados como “dicotômicos”.

Nessa perspectiva, entendemos com Jodelet (2001,

p.22) que as representações sociais podem ser caracterizadas

como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e

partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a

construção de uma realidade comum a um conjunto social”. As

representações sociais configuram-se como sistemas de

interpretação da realidade que produzem e constituem-se de

valores, crenças e atitudes. E que ainda, de acordo com a

autora, “as representações sociais circulam nos discursos, são

trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e

imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em

organizações materiais e espaciais”. (idem, op. cit)

No entanto, posicionando-nos discursivamente,

acreditamos que o sujeito interaja com essas representações

sociais, atuando não apenas como receptáculo de

informações, mas que haja na tensão entre a aceitação e a

recusa das representações sociais. Pois, sendo

fundamentalmente dinâmicas, as representações sociais

levam os indivíduos a produzirem comportamentos e

interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam os

dois. Devido a essa condição, as representações sociais

revelam-se potencialmente capazes de orientar conceitos e

influenciar condutas. Por isso a importância de seu estudo.

17

Análise

A revista Claudia, da Editora Abril, surgiu em 1960.

Naquela época, de acordo com Jordão (2005, p.33), “a leitora

da revista era a mulher que usava bobes no cabelo, enquanto

preparava o jantar para o marido, e o esperava com um

sorriso no rosto”. Paulatinamente a revista começou a tratar

de temas mais profundos como aborto, divórcio, sexo,

profissão, entre outros. Hoje seu público-alvo, ainda de acordo

com a autora, é a mulher realizadora e ativa que buscou, em

todos esses anos, prazer, felicidade, conforto, praticidade e

principalmente a liberdade.

Segundo dados do Instituto Marplan, do 2º semestre de

2005 e 1º semestre de 2006, obtidos no site da editora Abril, a

revista Claudia tem um total de leitores de 2.397.000 e o perfil

deste leitor pode ser traçado assim:

50% têm idade entre 18 e 39 anos;

87% são mulheres

62% são pertencentes às classes A e B.

A revista é hoje a revista feminina mais vendida no país.

E denomina-se como:

Claudia é a revista que traz inspiração, reflexões e soluções para a mulher que desempenha múltiplos papéis. Claudia aborda uma grande variedade de assuntos todos os meses: serviços,

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tendências, moda, família, carreira, qualidade de vida. É a revista feminina mais importante e mais lida do país. Claudia é completa, como a mulher tem

que ser. (site da Editora Abril4)

Só mencionamos aqui alguns dados sobre a revista por

julgarmos que o perfil de leitor da revista está em acordo com

o perfil de consumidor buscado pela publicidade em questão.

Usaremos, neste estudo, uma enumeração particular das

páginas do anúncio para efeitos de organização desta análise:

a página de apresentação será a página um, obviamente,

seguidas das páginas dois, três e quatro.

Com exceção da página um as demais seguem o

mesmo padrão:

foto, não de corpo inteiro da garota-propaganda,

suposta consumidora do produto, que, devido ao

recorte na imagem, direciona o olhar de quem olha

para o rosto da mulher e obviamente para seus

cabelos;

nome da campanha publicitária no canto superior

direito da página;

trecho selecionado da fala da consumidora em

destaque, à direita da foto, bem próxima à boca da

suposta consumidora;

4 Disponível em:

http://elle.abril.com.br/midia_kit/claudia/m_revista.html. Acesso em: 14 fev. 2007.

19

nome e sobrenome, idade e profissão das

mulheres;

texto relato da experiência que a Nova Linha Seda

operou em cada uma delas, em forma de uma

pequena entrevista;

(Esses elementos todos em segundo plano na imagem).

embaixo, em primeiro plano, e ocupando um

tamanho na página que vai até a cintura de cada

mulher fotografada, vem a imagem do produto: o

shampoo e o condicionador experimentado-

anunciado.

Fundo branco, não havendo outra coisa a não ser

a mulher, o texto e o produto.

O anúncio é introduzido por um texto “apresentativo” não

apenas da Nova Linha Seda, mas também de três

personagens que figuram como garotas-propaganda do

produto. E que, ao longo da publicidade, verifica-se serem

elas – as garotas-propaganda –, as protagonistas da história e

não os produtos anunciados, como se poderia esperar de um

anúncio, digamos, tradicional5.

O texto introdutório ocupa a primeira página e cada uma

das garotas-propaganda ocupam também uma página. Na

5 Isso não implica papel menor ao produto e sim uma representação

da identidade da mulher que deve desejar a nova linha Seda. As garotas-propaganda funcionam com uma âncora para o produto.

20

página de abertura, uma frase ganha destaque: Três mulheres

de bem com a vida, na qual a palavra bem é grafada em

tamanho muito maior que as demais. Estar de bem com a vida

é estar feliz, no entender da publicidade em questão. Em

seguida a esta frase, segue a apresentação dessas três

mulheres que estão de bem com a vida, mas ao contrário do

que se poderia esperar, não são seus nomes que as

identificam e sim suas profissões: uma designer de jóias, uma

advogada e uma relações públicas. Vejamos o texto:

Além de essas mulheres serem apresentadas pelas

profissões e não pelos nomes, o texto diz que elas irão contar

algo: ou seja, diferentemente das publicidades em que há uma

voz que fala em lugar da mulher e nas quais as mulheres

figuravam apenas como um apelo visual, aqui se diz que elas

irão contar. Tenta-se representar, portanto, a mulher como

uma profissional e como alguém que teria “voz”. E o que

essas mulheres contam? Contam sobre uma relação, mas que

não é entre elas e uma outra pessoa e, sim, de uma pessoa

6 O itálico já faz parte do texto original.

“Uma designer de jóias, uma advogada e uma relações

públicas6 contam como melhoraram sua relação com o

cabelo. Cada uma teve uma experiência diferente com a

Nova Linha Seda.”

21

com um fragmento desta pessoa, neste caso, o cabelo.

Podemos perceber que o corpo é, então, fragmentado

metonimicamente.

Após esse trecho, segue-se, ainda na página de

abertura, um outro trecho com letras em tamanho normal,

visto que os dois outros disponíveis estão em destaque nesta

página. Dividido em dois parágrafos esse trecho descreve um

pouco sobre o tipo, perfil, de mulher que precisa dessa nova

linha Seda.

Avultam-se, no primeiro parágrafo do trecho, vários

verbos no infinitivo não-flexionado que designam ações, e que

são ações das mulheres, conforme anúncio, que precisam de

Seda: trabalhar, cuidar família, abrir espaço na agenda pra

ver os amigos, correr atrás de compromissos, dar conta de

inúmeras pendências, fazer-se presente e atuante em várias

frentes, encontrar tempo para ficar bonita, aproveitar os

melhores momentos da vida.

Tudo isso representando a mulher ativa socialmente,

que trabalha fora e é capaz de tomar decisões, de se

organizar, de ter tempo para vida social, de cuidar da família e

ainda de ser bonita, elegante, sensual e atraente, enfim, uma

mulher realizada. Ou como o próprio anúncio menciona: estar

de bem com a vida. O que não seria fácil, segundo a

publicidade, pois essa mulher teria que vencer uma batalha

diária: fazer-se presente em várias frentes.

22

Todas essas atividades desenvolvidas pela mulher,

segundo o anúncio, dá muito trabalho, mas nos permite

aproveitar os melhores momentos da vida. Perceba-se que

agora aparece uma voz social que se inclui no texto e

denuncia quem fala: uma posição mulher, pois ela se inclui

quando diz: mas nos permite aproveitar... portanto, uma

simulação de discurso de mulher para mulher, uma tentativa

de estabelecer proximidade e intimidade.

O texto desse parágrafo contrapõe o lugar social da

mulher “pós-moderna” com o lugar ocupado pela mulher em

outras épocas, pois a mulher atual, segundo a publicidade, se

faz presente e atuante em várias frentes, ou seja, ela

conquista espaços que antes lhe era negado e ainda é capaz

de cuidar da família e aproveitar os melhores momentos da

vida.

O segundo parágrafo do trecho menciona o que a Nova

Linha Seda pode fazer para cooperar com essa mulher que

não tem tempo a perder, pois sua batalha diária é laboriosa.

Nesta página, o discurso da beleza se aflora, pois não ter

cabelo bonito, em conformidade com o proposto na

publicidade, impede a mulher de sair de casa. E a

representação da mulher do anúncio é de uma mulher bonita,

elegante, sensual e atraente.

O parágrafo inicia-se por uma interrogação: O cabelo

não está bom? Seguido de uma afirmação: Não tem problema.

23

É só encontrar um jeito diferente de secar, um corte mais

estiloso e produtos que realcem a forma. O texto prossegue

com um tom de aconselhamento tranquilizador: A Nova Linha

Seda é isto: um verdadeiro tratamento de beleza para cabelo

liso, ondulado ou cacheado. Você usa e sai de casa relaxada,

para cuidar do que realmente importa na vida. Finalmente,

tem-se os três tipos de cabelos diferentes com os quais a

nova linha pode ajudar as mulheres a relacionarem-se melhor.

Note-se também que aparece aqui a palavra tratamento dando

uma ideia de cabelo doente, que precisa de cuidados

verdadeiros. O imperativo deflagra o tom apelativo da

publicidade, não no tom de ordem, mas ainda sim de

aconselhamento: você usa e sai de casa relaxada. Para uma

mulher tão ativa e atuante, na perspectiva do anúncio, a

palavra relaxada é muito mais do que só uma palavra é

também um tratamento contra o stress operado pela escolha

linguística associada às qualidades do produto.

Novamente volta a ação da mulher que deve cuidar do

que realmente importa na vida. E o que importa está descrito

pelas outras ações mencionadas no primeiro parágrafo.

Encerrando o parágrafo e também a página inicial tem-se a

frase: Porque – fala sério! – foi-se o tempo em que a mulher

não saía de casa por causa do cabelo! O tom coloquial tenta

estabelecer uma ideia de proximidade com a leitora-futura-

consumidora do produto, além de caracterizar uma variação

24

linguística típica na fala de pessoas mais jovens, como é o

caso das três garotas-propaganda.

Para finalizar esta parte, menciona-se o nome da

campanha publicitária que ajuda a entender melhor a

contribuição de Seda para a mulher pós-moderna: Um toque

de Seda. Apenas um toque, o mínimo esforço, como em um

passe de mágica.

Na página dois da peça publicitária, aparece a foto da

primeira garota-propaganda, suposta consumidora do produto

anunciado e que fala, como se estivesse em uma entrevista, a

respeito dela mesma e de como foi sua experiência com a

linha Seda Liso Perfeito. Um trecho de sua fala é destacado

na parte superior do texto de sua entrevista. Vejamos:

“Sou perfeccionista, qualidade fundamental para a

minha profissão. Do desenho de um anel até o

polimento final, não deixo escapar nenhum

detalhe. Um bom acabamento faz toda a diferença

entre uma jóia de classe e uma bijuteria sem

imaginação. Tenho o mesmo nível de exigência

com o meu cabelo.”7

Nota-se a valorização da representação profissional

desta mulher. Uma mulher com um alto nível de exigência e

7 Aspas do texto original

25

que se revela perfeccionista em tudo e com tudo. A

contraposição entre uma jóia de classe e uma bijuteria ajuda,

por extensão, a formar a ideia de qualidade do produto

anunciado também, visto que uma mulher com um nível de

exigência destes, que observa cada detalhe de suas peças,

não iria usar qualquer produto em seus cabelos. Sua

identidade, portanto, é delineada por seu estilo perfeccionista

e exigente.

Só então é apresentado ao público-leitor-futuro-

consumidor (leitora-futura-consumidora) o suposto nome da

mulher da foto e entrevistada, trata-se de Mariana Bittencourt,

28 anos, designer de jóias. Atente-se para a importância dada

pela peça publicitária a questão da idade da mulher

apresentada ao lado da profissão exercida. E após segue-se

a fala inteira da suposta designer de jóias.

No texto de sua fala, ganham relevo mais uma vez a

questão profissional demonstrando ser o exercício de sua

atividade profissional a realização de um sonho de infância e

de sua autorrealização em ser competente neste quesito.

Delineia-se uma mulher empenhada naquilo que faz, que

busca novas técnicas para melhorar ainda mais suas

criações, valorizando assim a mulher criativa e capaz de

inovar. Uma analogia é traçada entre o aprimoramento de sua

atividade profissional e o aprimoramento nos cuidados com o

cabelo proporcionado à mulher pelo uso de Seda Liso

26

Perfeito. O que pode ser verificado no trecho final da

entrevista:

Seda Liso Perfeito entrou em minha vida como uma

autêntica “hair designer” para meu cabelo. Ele

ganhou novamente leveza e brilho: fica bem mais

solto, lisinho, mas com a forma que eu gosto. Ou

seja: ganhou uma finalização perfeita, assim como

as minhas jóias.

Os planos, eficiência profissional e eficiência do produto

se cruzam nesta fala, construindo uma imagem positiva do

produto, sem, no entanto, mencionar suas propriedades

químicas como era comum em anúncios anteriores de

cosméticos.

Na página três, a mesma estrutura da página anterior é

seguida e o trecho destacado da fala da suposta segunda

consumidora é o seguinte:

“Divido o dia-a-dia entre reuniões no escritório e

encontros externos com os clientes. Nesse vaivém,

meu cabelo ficava sem forma, armado. Irritada, eu

tentava domá-lo fazendo escova. Agora aposentei o

visual „liso‟: assumi o ondulado, que me dá mais

personalidade. É uma delícia ter um produto

27

específico para o meu cabelo.”

Novamente a representação da mulher profissional ativa

e atuante ganha relevo nesta segunda suposta entrevista. A

correria do dia-a-dia é frisada a fim de valorizar a necessidade

de um produto específico e prático para essas mulheres tão

sem tempo. Neste trecho também é frisada a questão da

especificidade de se ter um produto para cada tipo de mulher,

é como se o anúncio dissesse: cada mulher é única e nós

entendemos isso e desenvolvemos um produto para você!

Além disso, ocorre um apelo para que a mulher liberte-se e

mostre o seu natural, devidamente cuidado pela Nova Linha

Seda, o que pode ser notado no uso de certas expressões

como domá-lo, aposentei o visual liso, assumi o ondulado que

me dá mais personalidade. A questão da identidade aqui gira

em torno da personalidade.

Depois do trecho, mais uma vez, o nome da suposta

consumidora, Milena Barreto, 25 anos, advogada. E no

mesmo molde da anterior, a valorização do lado profissional e

da idade da consumidora.

Esta entrevistada fala um pouco menos de sua

profissão, sem, no entanto, desprender-se de ser esse o fator

responsável pela falta de tempo para ficar presa a processos

demorados de cuidados com o cabelo. Menciona a questão

do ambiente de trabalho que favoreceria à perda da beleza

28

natural de seu cabelo: o contato diário com o ar condicionado

do escritório prejudica meu cabelo: as ondas perdem o

volume, murcham. Por esse motivo vivia presa a um ritual

demorado da santa escova, que fazia até na praia. Mas isso

até sua experiência com a nova linha Seda Ondas Marcantes.

A importância do lado do bom convívio social, de ser

bem vista pelo outro(s), é representada, no texto, no trecho

em que diz:

Meus amigos dizem que estou com um ar mais jovial

e o meu namorado diz que o cabelo ondulado me

deixa mais “mulherão”. E eu me sinto mais segura

por ter assumido meu cabelo do jeito que é.

Interessantemente essa mulher, apesar de ter apenas

25 anos, valoriza muito o fato de aparentar-se mais jovem aos

olhos dos amigos. Pode ser observado ainda, que essa

mulher profissional, jovem, com intensa agenda diária, capaz

de se sair bem no lado profissional e no social é, apesar de

todas as conquistas feministas de emancipação da mulher,

pretensamente submissa ao olhar masculino que modela o

ideal de beleza e de sensualidade feminina, como pode ser

lido no trecho: meu namorado diz que o cabelo ondulado me

deixa mais mulherão. Fator que juntamente com a aceitação

da forma natural de seu cabelo – desde que tratado

29

adequadamente por Seda – faz com que essa mulher se sinta

mais segura e com personalidade mais marcada, ou

poderíamos pressupor que sua identidade estaria atrelada à

representação que “recebe” dos outros.

Na quarta e última página da peça publicitária, uma

terceira mulher, também suposta consumidora, é apresentada

nos mesmos moldes das duas anteriores:

“Passo o dia lidando com clientes, funcionários,

fornecedores e me esforço para que tudo saia

conforme o planejado. Por isso, poder contar com

uma linha de produtos que me livre da preocupação

com meus cabelos é um alívio. Troquei cachos

arrepiados e amassados por cachos bem definidos.”

Nesta terceira fala da consumidora destacada na peça

publicitária, avultam-se além do dinamismo profissional da

mulher supostamente entrevistada, a capacidade de

planejamento. A falta de tempo a perder com cuidados para

embelezamento dos cabelos é recorrente e o alívio em saber

que existe uma linha de produtos que a livre da preocupação

com isso é valorizada.

A suposta consumidora é denominada de Carol Schoof,

27 anos, relações públicas. E assim como nas demais, aqui

também a idade e a questão profissional são relevadas. No

30

texto da entrevista desta consumidora, há uma referência à

correria normal de seu dia-a-dia, expressa em:

minha vida é muito corrida [...] principalmente

nesta época do ano, em que aumenta o número

de eventos que organizo para o restaurante

onde trabalho: são almoços, confraternizações,

festas de final de ano.

Notamos, portanto, a representação da mulher como

dinâmica, vencedora de desafios que lhe são impostos.

Dinamismo que também pode ser notado em: gasto muita

energia, falo com muita gente. E é justamente desses

contatos que surgem novas amizades desse contato com

pessoas diferentes, das quais acabo me aproximando.

Algumas viram até amigas. Novamente, o sucesso no

convívio social tem lugar na publicidade.

O produto também proporciona à entrevistada maior

confiança nela mesma: a correria continua, mas agora me

sinto confiante cada vez que olho no espelho. Tenta-se,

portanto, agregar ao produto mais esse valor simbólico.

A peça parece mostrar que mais do que ter um tipo de

produto diferente para cada tipo de cabelo, tem um produto

diferente para cada tipo de mulher, para cada personalidade

ou estilo de vida. Essas mulheres, ou melhor, essas

31

representações, figuram como protagonistas das experiências

diferentes, anunciadas na abertura da publicidade, na

verdade, servem de suporte para apresentar ao público a

Nova Linha Seda.

As identidades arroladas, embora tratem todas de

mulheres atuantes no mercado de trabalho, representam cada

uma a seu jeito, fragmentações das mulheres que se

desdobram para gerir terem sucesso nos campos profissional,

pessoal e social, que não perdem a preocupação com a

beleza, vista como essencial para a boa imagem perante os

outros. Mulheres que fazem aquilo que gostam e não têm

tempo a perder. São mulheres bonitas e esbeltas, que se

encaixam dentro dos ditames dos padrões de beleza

pregados pelo mercado consumidor, que querem ficar cada

vez mais belas, sem terem que perder tempo demais com

isso.

Há na publicidade um silenciamento8 quanto ao

segmento masculino, pois a propaganda é dirigida

exclusivamente ao público feminino, denunciando o maior

apelo feito às mulheres com relação aos cuidados estéticos

com a beleza. Que encontra sustentação na formação

discursiva que preconiza os cuidados estéticos em muito

8 Orlandi diz que o silêncio pode ser compreendido não como

ausência de palavras, mas como calar o interlocutor de sustentar outro discurso. O silêncio se produz em condições específicas que constituem seu modo de significar. (2002, p.105)

32

maior grau às mulheres que aos homens. Pois a mulher se

sentiria muito mais pressionada socialmente a ser bela, o que

estimularia o crescimento cada vez maior das ofertas de

produtos dirigidos a esse filão do mercado: cuidados com a

beleza.

A mulher representada tem que enfrentar a sociedade

dia-a-dia e em várias frentes e deve se apresentar bonita,

elegante, sensual e atraente e para isso ela não deve se

preocupar porque há uma linha de produtos que pensa

exatamente nela, em sua falta de tempo, e que está ao seu

alcance. Linha que apenas com um toque é capaz de relaxá-

la, torná-la mais mulherão, mais confiante em si mesma. E por

isso aparecem todas sorridentes nas imagens, demonstrando

estarem de bem com a vida.

Resta mencionar que a publicidade se encaixa

perfeitamente no perfil de leitora da revista Claudia, o pode

significar adesão destas ao consumo do produto anunciado.

Considerações finais:

Nesta publicidade, constatamos que as mulheres têm

suas identidades representadas em forma de estilo, gosto,

personalidade. São representadas como mulheres

independentes financeiramente, atuantes no mercado de

trabalho, dinâmicas e competentes, capazes de gerir suas

33

vidas profissional e social com equilíbrio. Fazem aquilo que

gostam e não têm tempo a perder. São mulheres bonitas e

esbeltas, que se encaixam dentro dos ditames dos padrões

de beleza pregados pelo mercado consumidor, que querem

ficar cada vez mais belas, sem terem que perder tempo

demais com isso. Essas representações são filiadas às

classes média e alta, pois todas possuem curso superior

como formação profissional e podem escolher os produtos a

serem consumidos por elas. Mulheres que conseguiram um

suposto lugar de fala, ainda que o texto seja apenas uma

ilusão de realidade a fim de persuadir as leitoras-futuras-

consumidoras de que as mulheres ali apresentadas são

pessoas normais.

Essa representação visa incitar ainda mais o discurso do

gosto camuflado sobre a roupagem de estilo pessoal e

individualidade, que seria, segundo esse discurso, marcas da

personalidade.

Identificamos ainda um jogo de sedução como uma

estratégia de marketing: coloca-se nas palavras das mulheres

a construção do corpo da mulher atual e de sua identidade

para incrementar credibilidade / confiabilidade à marca

anunciada. Cria-se uma imagem de mulher esclarecida que

tem poder de discernimento quanto ao que é positivo e

negativo em suas vidas, que sabe sempre o que quer e como

quer, apenas como ilusão de valorização das individualidades,

34

de suas identidades, mas o que se tenciona, de fato, é a

adequação destas mulheres aos padrões de beleza impostos

pela sociedade e maior aproximação com a leitora-futura-

consumidora. Observamos também que, ao se colocar nas

palavras da mulher a construção do corpo e da identidade da

mulher pós-moderna, cria-se também um lugar determinado

pelo mercado para essa mulher: o lugar de consumidora.

Não se pode deixar de mencionar nesta análise a

contradição existente entre o que se diz no anúncio e o que

se mostra. Todas as supostas consumidoras, que dão seus

depoimentos, se referem à praticidade de uso oferecida pelo

produto, uma delas chega até mesmo a mencionar: eu só lavo

e deixo secar naturalmente. Fica lindo, as ondas ganham

forma e o volume está sob controle. Contudo, as três

aparecem na publicidade com cabelo produzido

artificialmente.

Referências Bibliográficas:

JODELET, Denise (org.) As representações sociais. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: estudos culturais. São Paulo: EDUSC, 2001.

35

LOPES, Marcela Teixeira. O conceito de beleza e maternidade: um estudo exploratório do comportamento feminino. 135f. Dissertação (Mestrado). Instituto COPPEAD de Administração – UFRJ, 2005.

MOITA LOPES, Luís. P. Identidades Fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula.Campinas: Mercado de Letras, 2002.

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2002.

REIS, Alcione Aparecida Roque. Processos de construção discursiva em publicidades de produtos diet e light. 110f. Dissertação (Mestrado). Programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos – FALE – UFMG, 2006.

SOUZA, Areci de Fátima Costa Souza. O percurso dos sentidos sobre a beleza através dos séculos: uma análise discursiva. 221f. Dissertação (Mestrado). Departamento de Lingüística do IEL – UNICAMP, 2004.

UNILEVER / SEDA. Campanha um toque de Seda. Revista Claudia, n.12, ano 45, dez. 2006.

YÙDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

Site da editora Abril. www.abril.com.br.

Site da revista Claudia. www.claudia.com.br.

36

A IMAGEM DA LEITURA, NO CAMPO DO ETHOS ENUNCIATIVO, CONSTRUÍDA PELA APRESENTAÇÃO DAS DIRETRIZES DO PNLL.

(As vozes de dois Ministros de Estado) 1

Magna Campos – UFSJ Profª. Dra. Dylia Lysardo Dias – UFSJ

Resumo: Este trabalho tem por objetivo verificar a imagem da leitura (ethos) criada na cena de abertura do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), lançado em março de 2006, numa tentativa de ação coordenada entre dois ministérios: Ministério da Educação e Ministério da Cultura. Para tanto, usamos o conceito de ethos discursivo desenvolvido por Amoussy e Maingueneau, os quais consideram que sempre que enuncia, o sujeito deixa entrever uma imagem de si, não só pelo que ele diz, como também pela forma como diz. Todavia, nosso intento não é verificar a imagem discursiva criada pelos sujeitos em questão, no que diz respeito a eles mesmos, e sim, a imagem da leitura que construíram em suas enunciações. Verificamos que, embora, a proposta seja de articulação entre os dois ministérios, cada um dos textos de apresentação, assinado pelos respectivos ministros representantes de cada um dos dois ministérios envolvido, constrói um ethos diferente para a mesma questão: a leitura.

Introdução:

A proposta deste trabalho é de analisar qual é o ethos

discursivo construído para a questão da leitura naquela que

chamaremos de cena de abertura do Plano Nacional do Livro

e Leitura (PNLL), de 2006. Tal cena configura-se por dois

textos de apresentação, cada qual assinado por um dos

1 Texto escrito em 2007.

37

ministros representantes dos ministérios envolvidos na

elaboração do plano.

O PNLL traz à pauta uma situação atípica aos planos

que, de uma forma geral, pretendem servir ao fomento da

leitura e ao incentivo do livro: a tentativa de ação coordenada

entre dois ministérios. Neste caso, os Ministérios da Cultura e

da Educação.

De acordo com Maingueneau apud Amoussy (2005,

p.16),

a maneira de dizer autoriza uma construção de uma verdadeira imagem de si e, na medida que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma inter-relação entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficácia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adesão. Ao mesmo tempo, o ethos está ligado ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, ou melhor, ao processo de sua legitimação pela fala.

Pressupomos que, ao enunciar, cada um dos ministros

favorecerá à construção de uma imagem de si e do objeto de

que falam: o PNLL. Por ser este último um plano que visa

ações que sirvam ao fomento e à valorização da leitura,

acreditamos que, por via secundária, em suas falas os dois

ministros, também, acabem por criar uma imagem geral da

leitura.

38

Nesse intento, esta breve análise será estruturada em

quatro partes. A primeira versará sobre o PNLL e suas

condições de produção, a fim de que possamos ter uma ideia

mais concreta sobre o objeto apresentado pelos ministros. A

segunda tratará da teoria que utilizaremos para tentar

depreender qual a imagem da leitura construída, trata-se da

questão do ethos discursivo ligado à cena de enunciação,

proposto por Maingueneau e utilizado por Amoussy. Na

terceira parte, usaremos a teoria proposta por Maingueneau

para analisar a cena enunciativa de abertura do PNLL. E na

quarta parte, auxiliados pelas observações depreendidas das

partes anteriores, procederemos à análise da imagem da

leitura propriamente dita. Por fim, traçaremos articulações

entre as partes que compõem este trabalho em nossas

considerações finais.

2.0 – O PNLL e a cena enunciativa de abertura: a construção discursiva da imagem da leitura

2.1 – Sobre o PNLL e suas condições de produção

O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) foi lançado

oficialmente, numa tentativa de ações coordenadas entre os

Ministérios da Cultura e da Educação, em março de 2006.

Configura-se como sendo o primeiro, em toda a história do

Brasil, a priorizar a questão do Livro e da Leitura com vistas a

39

se tornar política de Estado. Apresenta ainda caráter

permanente, com edições tri-anuais, que deverão ser

avaliadas a cada ano, a entender pelo que está disposto em

seu texto.

O PNLL surgiu, segundo José Castilho Marques Neto2,

dentro dos debates que envolveram as atividades do

VivaLeitura3, cujos objetivos eram divulgar a leitura e

promover a conscientização sobre o valor social do livro,

atividades desenvolvidas em 2005.

Segundo o documento,

o objetivo central da Política de Estado aqui delineada é o de assegurar e democratizar o acesso à leitura e ao livro a toda a sociedade, com base na compreensão de que a leitura e a escrita são instrumentos indispensáveis na época contemporânea para que o ser humano possa desenvolver plenamente suas capacidades, seja no nível individual, seja no âmbito coletivo. (PNLL, 2006, p.25)

É designado como um conjunto de projetos, programas,

atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e

bibliotecas, empreendidas pelo Estado (em âmbito federal,

2 Secretário-Executivo do PNLL em entrevista concedida ao jornal do

Sindicato dos Bibliotecários do Estado de São Paulo (SinBiesp Notícias).Disponível em: < http://www.sinbiesp.org.br/detartigo.asp? cod=64.> Acesso em: 15 jul. 2007. 3 A ideia de se instituir 2005 como o ano da leitura foi gestada em

2003 num encontro de chefes de Estado acontecido na Bolívia, e aprovada pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Foi chamado de ano Ibero-americano da leitura.

40

estadual e municipal) e Sociedade (setor privado e terceiro

setor). Apresenta, conforme citação acima, como finalidade

básica assegurar a democratização do acesso ao livro, o

fomento e a valorização da leitura e o fortalecimento da cadeia

produtiva do livro, como fatores relevantes para o incremento

da produção intelectual e o desenvolvimento da economia

nacional, conforme explicitado pela Portaria Interministerial

1442 do Ministério da Cultura (MinC) e Ministério da Educação

(MEC)4.

O plano prevê atuações em quatro linhas de ações

distribuídas nos seguintes eixos:

• Eixo 1: Democratização do Acesso

• Eixo 2: Fomento à Leitura e Formação

• Eixo 3: Valorização da Leitura e da Comunicação

• Eixo 4: Apoio à Economia do Livro

O PNLL se integra ao Plano Nacional de Cultura (PNC)

corroborando com uma indicação da Organização das Nações

Unidas (ONU) de que o acesso aos equipamentos culturais

passe a figurar como Índice de Desenvolvimento Humano

4 Site do Ministério da Cultura. Disponível em: <

http://www.cultura.gov.br/noticias/noticias_do_minc/ index.php?p=23553&more=1&c=1&pb=1> . Acesso em: 15 jul.2007.

41

(IDH) juntamente com o acesso a bens e serviços5. Assim, tal

documento atende ao preceito da ONU de inclusão social,

conforme pode ser lido no seguinte trecho:

têm por base a necessidade de se formar uma sociedade leitora como condição essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de brasileiros no que diz respeito a bens, serviços e cultura, garantindo-lhes uma vida digna e a estruturação de um país economicamente viável. (PNLL, 2006, p.20)

O Plano é gerado em meio à indicação da ONU e

também da Organização das Nações Unidas para Educação,

Ciência e Cultura (UNESCO6), sendo estas últimas as

seguintes: o livro deve ocupar destaque no imaginário

nacional; devem existir famílias leitoras, cujos integrantes se

interessem vivamente pelos livros e compartilhem práticas de

leitura; deve haver escolas que saibam formar leitores,

valendo-se de mediadores bem formados (professores,

bibliotecários) e de múltiplas estratégias e recursos para

alcançar essa finalidade; deve ser garantido o acesso ao livro,

com a disponibilidade de um número suficiente de bibliotecas

e livrarias, entre outros aspectos; e o preço do livro deve ser

acessível a grandes contingentes de potenciais leitores, os

5 Dado indicado na justificativa das diretrizes do PNLL, de dezembro

de 2006. 6 Idem.

42

sujeitos sociais mais recorrentes no documento em questão.

Pois, entende-se que,

a leitura e a escrita constituem elementos fundamentais para a construção de sociedades democráticas, baseadas na diversidade, na pluralidade e no exercício da cidadania; são direitos de todos, constituindo condição necessária para que possam exercer seus direitos fundamentais, viver uma vida digna e contribuir na construção de uma sociedade mais justa. (PNLL, 2006, p.20)

Dessa forma, a leitura e a escrita atuariam como

elementos capazes de construir a cidadania, da inclusão

social.

Favoreceram também para o surgimento do plano, vários

resultados negativos, quanto à competência em leitura dos

brasileiros, apontados pelas pesquisas realizadas, no país, por

iniciativas públicas e privadas, nacionais ou internacionais.

Um desses resultados foi o apontado pelo Indicador de

Alfabetismo Funcional (INAF) 20057, que evidenciava que

apenas 26% dos entrevistados brasileiros com idade entre 15

e 64 anos foram classificados como pessoas capazes de ler,

compreender e relacionar o texto lido com outros

conhecimentos. Demonstrando que três quartos da população

7 Relatório do INAF 2005. Disponível em: www.ipm.org.com.br.

Acesso em: 02 jul. 2007.

43

brasileira está à margem do efetivo letramento, tão essencial

para o avanço do país.

O resultado do Programa Internacional de Avaliação de

Alunos (PISA) 20008, também mediu o letramento em leitura

de alunos com 15 anos de idade e apontou que o Brasil

apresentou o pior índice dentre os 32 países analisados.

E para citarmos uma última pesquisa, apresentaremos

dados da primeira investigação realizada no Brasil dirigida por

setores particulares de nossa sociedade e que tinha por

objetivo demonstrar o Retrato da Leitura no Brasil9. De acordo

com o apurado pela pesquisa, que teve como referência de

investigação a população com 14 anos ou mais e mínimo de

três anos de escolaridade, o brasileiro lê em média 1,8 livro ao

ano, índice considerado muito baixo e que fica atrás de outros

países da América Latina, como é o caso da Colômbia, com

índice de 2,4 livros por ano. Esse índice se revela ainda mais

crítico quando a pesquisa demonstra que a penetração do

livro no país e o acesso a esse objeto cultural são ainda

bastante restritos, concentrando-se o mercado comprador de

livros nas mãos de 20% da população alfabetizada, na Região

8 BRASIL leva bomba no Pisa. Disponível em:

http://www.educacional.com.br/noticiacomentada/ 011207_not01.asp. Acesso em: 02 jul. 2007. 9 Realizada em 2001 pela Câmara Brasileira da Indústria do Livro

(CBL), Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e Associação Brasileira dos Editores de Livros (Abrelivros). Disponível em: < www.cbl.org.br> Acesso em: 02 jul. 2007.

44

Sudeste, nas grandes cidades e metrópoles, nos estratos de

renda mais elevados e com instrução superior.

Outro dado da pesquisa aponta que apenas 50% dos

livros de leitura corrente no país foram comprados, em

contraposição a 8% pertencentes às bibliotecas e a 4%

doados pela escola. O que demonstra a dificuldade de acesso

aos livros em escolas e bibliotecas, o que, somados à baixa

renda de grande maioria da população brasileira, contribuem

para que não se concretize a leitura no país.

Essas pesquisas ecoam no PNLL (2006) como

verdadeiras vozes motivadoras e justificadoras do intento, o

que pode ser observado nas seguintes passagens:

O Brasil chega ao século XXI, momento em que a difusão do audiovisual assume imensas proporções, ainda com enorme déficit no que diz respeito às práticas leitoras dos textos escritos. Nossos índices de alfabetização (stricto e lato sensu) e de consumo de livros são ainda muito baixos, na comparação com parâmetros de países mais ricos e desenvolvidos e mesmo com alguns dos países em desenvolvimento da América Latina e da Ásia. (PNLL, 2006, p. 14)

[No PISA] destaca-se ainda mais o péssimo desempenho dos alunos brasileiros, próximos do final da escolaridade obrigatória, revelando que não estão preparados para enfrentar os desafios do conhecimento nas complexas sociedades contemporâneas. Uma

45

performance dessa natureza acarreta prejuízos de toda ordem. A baixa competência de leitura não apenas influi no desenvolvimento pessoal e profissional dos estudantes como também, e até por isso, contribui decisivamente para ampliar o gigantesco fosso social existente em países como o Brasil, promovendo mais exclusão e menos cidadania. (PNLL, 2006, p.17)

A hipótese assumida pelo PNLL, de acordo com

ZILBERMAN (2007), é a de que uma das causas de se ler

pouco no Brasil é a circunstância de as pessoas ignorarem a

importância que o livro e a leitura podem desempenhar em

suas vidas.

A autora ainda menciona que o plano é fruto de toda

uma história da leitura e da educação no país que remonta os

primórdios da educação brasileira. Zilberman resume o

cenário evolutivo da história das tentativas de melhoria dos

índices de leitura no seguinte trecho:

Do século XVI ao XX, multiplicaram-se as proposições de melhoria dos índices de leitura e consumo de livros no País, intensificando-se sobretudo a partir dos anos 1980, quando a população brasileira, que, ao final dos anos 50, somava 60 milhões de habitantes, dobra para 120 milhões em 1980 e quase triplica para 160 milhões em 2000. Projetos de alfabetização de adultos, somados à ampliação da faixa de escolarização obrigatória (até 1970, correspondendo aos cinco anos do ensino primário; depois de 1970, correspondendo aos oito anos do

46

ensino básico), tentam atender à demanda crescente, mas as carências não diminuem, requerendo novos e mais extensos programas de leitura, de distribuição de livros (didáticos e infantis) à população de baixa renda, e de alfabetização acelerada. (ZILBERMAN, 2007, p.01)

Após essa contextualização, a autora insere o PNLL

dentro das políticas do século XXI, no âmbito da

administração federal vigente, mas que, como mencionado

anteriormente, é resultado, ainda, dessas mesmas

coordenadas citadas por ela.

Portanto, verificamos que o PNLL aparece como

resultado da confluência de várias vozes: algumas políticas,

outras econômicas, outras sociais e ainda outras culturais. E

na tentativa de atender às determinações de alguns órgãos

estrangeiros, aos apontamentos da comunidade científica, aos

clamores do setor econômico e às exigências de uma

sociedade contemporânea cada vez mais imersa nas

tecnologias de comunicação e de informação que traz à tona

uma constate exigência de um bom grau de letramento, pois a

sociedade informatizada precisa cada vez mais de pessoas

capazes de desfrutar dos bens e serviços que ela produz.

Nesse contexto, os dados das pesquisas e dos índices

sociais criam novos parâmetros, um novo discurso para a

tentativa de superação das dificuldades encontradas para se

formar uma sociedade leitora, na medida em que

47

consideramos que a linguagem e o discurso não (apenas)

descrevem uma realidade, mas a criam.

2.2 A questão do Ethos

Para Amoussy (2005, p.9),

todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto não é necessário que o locutor faça o seu auto-retrato, detalhe as suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma apresentação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si.

De acordo com a autora, o posicionamento discursivo do

sujeito é acompanhado por uma imagem desse mesmo

sujeito, não só pelo que ele diz, como também pela forma

como diz. Diz também que o ethos não seria uma

característica puramente linguageira e, nem tampouco, uma

característica exclusivamente institucional. Trata-se de uma

característica discursiva que se dá na relação entre o

linguístico e o institucional (AMOUSSY, 2005).

Nesta linha de raciocínio, Maingueneau (2005, p. 69),

relaciona o ethos à cena de enunciação. Segundo

Maingueneau (2001, p.79), o texto escrito possui, mesmo

48

quando o denega, um tom10 que dá autoridade ao que é dito.

Esse tom permite ao leitor construir uma representação do

corpo do enunciador, uma instância subjetiva encarnada que

assume o papel do fiador do discurso enunciado e não,

evidentemente, do corpo do autor efetivo (MAINGUENEAU,

2005, p. 72). A qualidade do ethos, dessa forma, está

associada à imagem do fiador que, confere a si próprio, uma

identidade compatível com o mundo que ele deverá construir

em seu enunciado.

O leitor deverá construir com base em indícios textuais

de diversas ordens, a imagem do fiador, o qual vê-se, assim,

investido de um caráter e de uma corporalidade

(MAINGUENEAU, 2005, p.72). Portanto, para Maingueneau o

caráter é o conjunto de traços psicológicos que o leitor/ouvinte

atribui à figura do enunciador, em função de seu modo de

dizer, e a corporalidade remete a uma representação do corpo

do enunciador da formação discursiva. Não se trata de traços

psicológicos ou da presença física dos enunciadores, mas do

que o leitor/ouvinte atribui a eles em função de seu modo de

dizer.

Dessa forma, o posicionamento discursivo não pode ser

dissociado da forma pela qual ele toma corpo e da cena na

qual esse corpo tem existência social e histórica. Porém, a

10

Segundo Maingueneau, o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral.

49

cena não é um quadro que exista anteriormente a constituição

do ethos. A cena de enunciação e o ethos possuem uma

relação paradoxal: o ethos não só pressupõe uma cena,

quanto à valida. (MAINGUENEAU, 2005, p.72-74)

Neste mesmo texto, Maingueneau diz que existe um

processo de incorporação que opera em três registros

indissociáveis: a) a criação de um ethos do fiador, conferido

pelo co-enunciador, a partir de indícios da própria enunciação;

b) a assimilação ou incorporação desse ethos por parte do co-

enunciador; c) a constituição de um corpo formado pela

comunidade imaginária que comunga na adesão de um

mesmo discurso.

Tendo como base a Análise do Discurso (AD),

Maingueneau afirma que o enunciador

não é um ponto de origem estável que se “expressaria” dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material em um modo de circulação para o enunciado. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)

O ethos configura-se, então, como parte constitutiva da

cena enunciativa e não apenas um meio de persuasão,

conforme pregava a retórica tradicional. Para operacionalizar a

noção em que o ethos é tanto uma característica linguageira,

50

quanto institucional, proposta por Amoussy, encontramos em

Maingueneau a pressuposição de uma análise na qual é

possível interpretar a situação de enunciação que é validada e

pressuposta por determinado ethos discursivo. Desse modo,

Maingueneau faz uma divisão da cena de enunciação em três

instâncias: cena englobante, cena genérica e cenografia. De

acordo com o autor:

A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão [...] Quanto à cenografia, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, etc. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)

Ao tratar a questão do gênero discursivo, o autor afirma

que alguns apresentam maior possibilidade de suscitar

cenografias do que outros. Como é o caso da lista telefônica

que não admite a cenografia e de gêneros que, por natureza,

exigem a escolha de uma cenografia, como os gêneros

publicitários, literários, políticos etc.. Especificamente o

discurso publicitário ou o político mobilizam cenografias

variadas, uma vez que, para persuadir seu co-enunciador,

devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade

invocando uma cena de fala valorizada. Citando o exemplo de

51

Amoussy (2005, p.16), o candidato de um partido pode falar a

seus eleitores como homem do povo, como homem

experiente, como tecnocrata etc.

Nessa cenografia, de acordo com Maingueneau, a figura

do enunciador, o fiador, e a figura correlativa do co-enunciador

são associadas a uma cronografia (um momento) e uma

topografia (um lugar) das quais supostamente o discurso

surge. (MAINGUENEAU, 2005, p.77). Assim, enquanto a cena

enunciativa corresponde ao tipo e gênero de discurso, a

cenografia, por sua vez, é estabelecida pelo discurso.

2.3 A cena enunciativa de abertura do PNLL

No documento que apresenta as diretrizes do PNLL

(2006), um fato curioso mostra-se já na abertura. Trata-se do

que no documento é nomeado de Palavra do Ministro da

Cultura e de Palavra do Ministro da Educação, uma espécie

de apresentação ou prefácio do documento redigido pelos

então ministros Gilberto Gil, do Ministério da Cultura (MinC) e

Fernando Haddad, do Ministério da Educação (Mec). Cada um

dos ministros assina uma das apresentações, numa tentativa

assumida de articulação entre os ministérios, em prol da

questão do Livro e da Leitura.

Essa tentativa de articulação já se configura como uma

circunstância atípica no cenário das políticas públicas de

52

leitura, haja vista que a própria desarticulação entre o MEC e

o MinC desde 1985 sinaliza para os desafios e dificuldades de

criar no Brasil, na escola, uma política cultural de formação de

leitores. Distinguindo-se outrora um planejamento do outro, a

relação da educação com a cultura foi seccionada e os

programas e projetos governamentais em torno do livro e da

leitura, colocados em prática nas últimas duas décadas, não

conseguiram a profundidade e consistência necessária para

serem eficientes de fato.

Tal articulação em si já apontaria para uma encenação

discursiva um pouco diferente dentro das políticas públicas e

dentro da característica usual deste tipo de documento.

Por opção metodológica, trabalharemos com as duas

apresentações separadamente, constituindo, cada uma delas,

uma cena de enunciação. No entanto, como nosso objetivo de

análise é observar e descrever a imagem da leitura construída

nessa confluência, que chamaremos de cena de abertura, não

perderemos de vista a ideia de cena de abertura, que engloba,

para nós, os dois discursos.

Apresentamos de início as condições de produção do

plano, pois como afirma Orlandi (1988, p.19), o dizer não é

apenas do domínio do locutor, pois tem a ver com as

condições em que se produz e com outros dizeres. E

aproveitaremos nesta parte para tratar brevemente sobre cada

um dos ministros em questão. Não como traços biográficos

53

apenas, mas para nos ajudar a visualizar o lugar social de

onde cada um deles enuncia e de certa forma as condições de

produção de seus discursos. Além disso, como sustentam

Charaudeau & Maingueneau (2004, p. 221), o ethos discursivo

relaciona-se estreitamente à imagem prévia que o alocutário

pode ter do locutor, ou, pelo menos, com a ideia que este faz

do modo como seus alocutários o percebem. Assim, segundo

esses mesmos autores (2004, p. 221), existe um ethos prévio

ou pré-discursivo que o locutor trabalha em seu discurso,

consolidando-o, atenuando-o ou retificando-o. O modo de

enunciar o discurso, portanto, não é aleatório: o ethos

discursivo deve autorizar e legitimar o locutor como sujeito de

seu discurso, sob pena de anular a validade, coerência e

eficácia do discurso. Ethos pré-construído (prévio), diríamos,

muito relevante no caso de representantes políticos, como é o

caso dos ministros acima.

A primeira cena enunciativa apresentada no documento

do PNLL refere-se, tal qual já dissemos, à Palavra do Ministro

da Cultura: Gilberto Gil.O ministro em questão, é

constantemente apresentado como o músico e ministro.

Apresentando uma carreira sólida na área da música, atuando

como cantor, compositor, intérprete reconhecido não apenas

no Brasil, como também de grande expressividade no exterior.

O ministro (músico) é reconhecido como um ativista social,

que usou as letras de suas músicas para “refletir” a

54

preocupação política e um inconformismo com a maneira de

viver do povo brasileiro. Preso pelo regime militar brasileiro

acusado de supostas atividades subversivas acabou sendo

exilado em Londres. Participou, juntamente com outros

artistas, do Tropicalismo11. Antes de ser nomeado Ministro de

Estado da Cultura, já havia ingressado na vida política, em

1988, ocupando as cadeiras de vereador de Salvador, na

Bahia, e de Secretário da Cultura de Salvador.

Em prefácio ao livro organizado por Leonardo Brant,

Diversidade Cultural, Gil afirma que:

hoje, como ministro da cultura do meu país, vejo no conceito de cultura a possibilidade de lidar com o ser humano brasileiro em todas as suas dimensões, mergulhado num meio ambiente Brasil

11

A Tropicália, Tropicalismo ou Movimento tropicalista foi um movimento cultural que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira; mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O movimento manifestou-se principalmente na música usando deboche, irreverência e improvisação, revoluciona a música popular brasileira, até então dominada pela estética da bossa nova. Liderado pelos músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, o tropicalismo usa as ideias do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade para aproveitar elementos estrangeiros que entram no país e, por meio de sua fusão com a cultura brasileira, criar um novo produto artístico. Também se baseia na contracultura, usando valores diferentes dos aceitos pela cultura dominante, incluindo referências consideradas cafonas, ultrapassadas ou subdesenvolvidas. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tropic%C3%A1lia. Acesso em: 17 jul. 2007.

55

que é sempre já natureza e cultura. Como artista e cidadão do mundo, vejo na cultura o espaço para o encontro de países, credos, etnias, sexualidades e valores, na cacofonia de suas diferenças, no antagonismo de suas incompatibilidades, na generosidade de um lugar-comum, algo que nunca existiu, mas sempre foi sonhado por aqueles que deixam seu olhar perder-se no horizonte. (in: BRANT, 2005, p.10) grifo nosso.

Como podemos observar, o próprio ministro define-se

como artista e cidadão do mundo e não apenas como um

brasileiro.

A cena de enunciação – Palavra do Ministro da Cultura –

, neste caso, configura-se como um dos discursos de

apresentação do PNLL, o primeiro plano, que como já

mencionado, pretende tornar-se política pública permanente,

fator bem frisado pelo ministro em seu texto, como pode ser

observado em:

[...] construir políticas duradouras12 que assegurem a ampliação do número de leitores no Brasil [...] [...] construir, portanto, uma política pública duradoura para o setor cultural constitui-se, indubitavelmente, numa daquelas grandes demandas da Sociedade [...]

12

Todos os grifos nas falas dos ministros são de nossa autoria.

56

Gilberto Gil fala, nesta cena, como ministro da Cultura,

em ação coordenada com outro ministro, e

consequentemente, com outro ministério. Enuncia, portanto,

ligando-se a uma instituição política. A cena englobante, assim

configurada, refere-se ao discurso político, mas que ao

mesmo tempo, arriscaríamos chamá-la de propaganda de

Governo e do Ministério da Cultura. O que pode ser percebido

em:

[...] É por esta razão básica que encaramos neste governo o conjunto de políticas que possibilitem a ampliação do acesso ao livro e à leitura como políticas fundamentais para a construção plena da cidadania em nosso país. [...] [...] A cultura, portanto, não apenas é assumida pela ONU como tarefa do governo, mas como uma tarefa prioritária de governo, capaz de definir o grau de desenvolvimento econômico e social de um país. [...]

A cena genérica configura-se como uma apresentação-

prefácio das diretrizes de um plano de incentivo à leitura e ao

livro. No entanto, sua filiação ao discurso político impõe-lhe

um novo nome, comum à autoridade que lhe é investida, por

isso é chamada de Palavra do Ministro da Cultura, tal qual é

57

comum ouvirmos em pronunciamentos oficiais, apresentados

inicialmente por: “com a palavra o Presidente da República”.

Quanto à cenografia, nela se deslinda o tom do artista-

ministro, Gilberto Gil. A apresentação-prefácio dá-se numa

mescla de tom poético com professoral. A começar pelo

próprio título dado à sua fala: Ler é abrir janelas. Vejamos

alguns trechos em que tais tons podem ser observados:

Poético: Caracterizado por metáforas, inversões

lexicais, pelo tom enfático de algumas proposições.

[...] Ler é transcender, é possibilitar, é ir além do nosso por vezes cruel mundo imediato – tantas e tantas vezes nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando estamos amuados e pesarosos. Ler é abrir janelas, destramelar portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler é fazer-nos expandidos. [...]

Professoral: Caracterizado pela tentativa de explicação

de processos, pelas próprias definições apresentadas para o

que seja Ler (como nos dois trechos citados no exemplo

anterior) e pela demonstração de como, segundo ele, o plano

poderá obter sucesso.

58

[...] E que convívio maravilhoso se dá numa Biblioteca, esta magnífica invenção coletiva da Humanidade: envoltos no manto do silêncio que aí reside e que nos convida à concentração e à reflexão, as Bibliotecas nos dão acesso aos infindáveis conhecimentos encontrados nos livros [...] [...] A partir do ato da leitura podemos então desenvolver um certo número de operações cognitivas, hierarquizando os argumentos, comparando os enunciados, descartando ideias [...]. Usamos essas ideias [...] para sermos melhores amigos e amigas, melhores pais e mães, melhores trabalhadores, melhores empresários ou melhores políticos. [...] [...] Quem faz cultura é a Sociedade, não é o Estado. Mas, cabe ao Estado – porque isso é do mais alto interesse público – amplificar as possibilidades para a produção cultural e para a multiplicação dos canais de difusão e das oportunidades de acesso. [...] [...] É preciso salientar que nós só teremos sucesso se conseguirmos consolidar efetivamente um pacto republicano para a atuação conjunta: não é nenhum governo, nem um setor em particular, é a Sociedade brasileira que exige a consolidação de uma ação concertada para o livro e leitura em nosso país. Todo investimento neste setor é extremamente recompensador. A sociedade reconhece e agradece.

59

Interessante salientar que o ministro justifica o

“empreendimento” e, portanto, o plano, e antecipa-se no

reconhecimento deste pela sociedade e agradece

antecipadamente, também, em nome dela.

No texto seguinte, temos a mesma configuração geral

da cena de enunciação: um dos discursos de apresentação

do PNLL – Palavra do Ministro da Educação –, desta vez,

vinculada ao Ministério da Educação, também em ação

coordenada com o Ministério da Cultura e, portanto, com

outro ministro e ligada à instituição política.

Antes de prosseguirmos, na análise, porém,

mencionemos um pouco sobre o ministro em questão:

Fernando Haddad, a exemplo do que realizamos com o

ministro Gilberto Gil e munidos do mesmo objetivo.

O referido ministro é geralmente apresentado como

professor Fernando Haddad, mesmo ocupando a cadeira de

ministro de estado. Isso porque Fernando Haddad foi

professor de Teoria Política Contemporânea da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de

São Paulo (USP). Antes de ocupar o cargo de ministro,

ocupou outros cargos políticos, dentre os quais, o de

Secretário Executivo do Mec na administração de seu

antecessor, Ministro da Educação, Tarso Genro.

60

Reconhecido por defender uma visão sistêmica13 da

educação, desde a educação infantil até o pós-doutorado, à

frente do ministério, rompeu com a ideia de que os diversos

níveis de ensino devessem competir entre si. Também

assume que a universidade deve se demonstrar como

liderança na requalificação dos outros níveis de educacionais

e ajudar a promover a inclusão social da população à

margem, no universo da cultura letrada.

Neste segundo caso, a cena englobante revela-se como

um discurso político, que ainda mais que na apresentação

anterior, propaga e promove o Ministério da Educação, os

projetos e pesquisas realizadas por este, desde longa data e,

especialmente, no atual mandato governamental. Como

exemplificaremos a seguir:

13

CUNHA, Luiz Antônio. Zigue-Zague no Ministério da Educação: uma visão da educação superior. Revista Contemporânea de Educação. Publicação online do programa de pós-graduação em educação da UFRJ. Disponível em: http://www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero1/artigos/conjuntura.php. Acesso em: 17 jul. 2007.

61

[...] Na verdade, nesse início do século XXI,

quando a sociedade brasileira conta com

mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos na

escola, o país tem a oportunidade histórica

de formar uma geração que teve acesso à

educação. [...]

[...] O MEC, por meio do INEP realizou avaliação, em matemática e português (leitura), de mais de 3 milhões de alunos de 4ª e 8ª séries em 40 mil escolas do país através do Prova Brasil. [...] [...] O MEC vem desenvolvendo, em parceria com os municípios, uma proposta de ação pública e conjunta de formação de leitores e de incentivo à leitura, que tem por princípio proporcionar melhores condições de inserção dos alunos na cultura letrada, no momento de sua escolarização. [...] [...] Nos últimos quatro anos, o MEC vem implementando uma série de ações de formação, em parceria com diversas universidades [...]

A cena genérica refere-se a uma apresentação-prefácio

não só das diretrizes do PNLL, mas uma espécie de

prestação de contas das ações do MEC em prol da livro e da

62

leitura efetuadas na atual administração. Os exemplos acima

servem também a este caso.

A cenografia aqui, diferentemente do tom poético-

professoral do ministro Gilberto Gil, ganha a seriedade e a

“contundência” de um administrador-prestador de contas. O

professor, talvez se apresente apenas na figura do articulador

que aloja o PNLL dentro de um cenário de muitas outras

políticas educacionais que dialogarão com ele e servir-lhe-ão

de subsídio para que obtenha sucesso. Por isso, talvez, o

título escolhido para seu texto tenha sido: O livro, a escola e a

leitura.

O tom do prestador de contas e articulador do tema

dentro dos outros programas do ministério pode ser verificado

em várias passagens de seu texto, destacamos algumas:

[...] Por meio da Secretaria de Educação Básica – SEB e do Fundo de Desenvolvimento da Educação – FNDE, o MEC coordena dois importantes Programas – o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD e o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE que poderiam ser chamados dos grandes portais para o acesso ao livro no Brasil, pois atendem a milhões de alunos das escolas públicas. [...] [...] Nos últimos quatro anos, o MEC vem implementando uma série de ações de formação, em parceria com diversas universidades, entre elas o Programa de Formação Continuada de Professores das

63

Séries/Anos Iniciais do Ensino Fundamental (Pró-Letramento) nas áreas de Alfabetização e Linguagem e de Matemática. [...]investindo, assim, na formação dos professores como mediadores de leitura.

[...] No acesso às novas mídias, merecem destaque as ações realizadas por meio da Secretaria de Educação a Distância – SEED, como os programas TV Escola e Mídias na Educação. [...] [...] A promoção da alfabetização de jovens e adultos através das ações do Programa Brasil Alfabetizado é complementada pela produção de material de leitura dedicado especificamente aos neo-leitores, jovens e adultos recém alfabetizados. [...] [...] O MEC também inovou com o PNLEM – Programa Nacional do Livro Didático para o ensino Médio que adquiriu e entregou 12, 5 milhões de exemplares de livros didáticos das disciplinas de português e matemática para estudantes de escolas públicas de nível médio. [...] [...] O Portal dos Periódicos da CAPES e a janela do “Domínio Público” na página do MEC também contribuem para a melhoria da qualidade na educação e para a formação de novos leitores ao facilitar o acesso a obras literárias e à produção científica. [...] [...] O incentivo à leitura, à divulgação do

64

livro e à produção de textos é outra vertente da política que busca a melhoria da qualidade da educação. Junto com o Ministério da Cultura e a OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos, o MEC lançou o Prêmio Vivaleitura, que visa reconhecer e premiar boas experiências de formação de leitores. [...]

Essa articulação é sempre feita nos moldes: o que se

fez dirigido ao para que ou quem se fez. O sujeito destas

ações é sempre o mesmo, o Ministério da Educação, portanto

um sujeito impessoal.

Podemos observar nas duas falas que, embora haja

uma condição preexistente de ação coordenada entre os

ministérios, cada ministro justifica a importância do tema e do

trabalho desenvolvido, mas poucas são as vezes que o

articulam como atribuição conjunta dos dois ministérios.

2.4 A imagem da leitura construída na cena de

abertura

Exploramos na caracterização da cena de enunciação

as três cenas que a compõem, no entanto, ainda nos resta

tentar apurar a(s) imagem(ns) que esta cena constrói para/da

leitura.

65

Pensamos que ao criar uma imagem de si, cada um de

nossos fiadores, cria também uma imagem do objeto PNLL, e,

por consequência, já que a questão do incentivo à leitura é a

desencadeadora do plano, supomos que eles acabam por

criar, por uma via secundária, uma imagem da leitura com a

qual o plano pretende trabalhar.

No texto de Gilberto Gil, encontramos várias

proposições para a leitura. Elencamos as que conseguimos

detectar:

A leitura como viagem transcendental: ler é

transcender [...] é ir além do nosso por vezes cruel mundo

imediato.

A leitura como companheira: tantas e tantas vezes

nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando

estamos amuados e pesarosos.

A leitura libertadora: ler é abrir janelas, destramelar

portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas

conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que

outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler

é fazer-nos expandidos.

A leitura como função didática presa às disciplinas:

coloca ao nosso alcance saberes tão diversos como aqueles

sobre a matemática aplicada à construção de relógios e ao

vôo dos aviões; o desenho geométrico que fará casas e

estradas; a composição molecular inscrita no cerne de nossas

66

células ou nos alimentos que nos dão uma vida mais

saudável; a história do comércio, dos transportes e também a

história daquela risonha menina a caminho. E até àquele

poema que usamos para enternecer a quem amamos.

A leitura como exercício da memória: seria um

exercício absolutamente fascinante remontar em quantas

dimensões, em quantos momentos, de quantas formas a

leitura marcou a vida de cada um, a vida de cada cidade, de

cada sociedade.

A leitura como edificação: quando falamos de livro e

leitura falamos, portanto, de expansões e de potencialidades.

A leitura como emancipação social: É por esta razão

básica que encaramos neste governo o conjunto de políticas

que possibilitam a ampliação do acesso ao livro e à leitura

como políticas fundamentais para a construção plena da

cidadania em nosso país.

O ministro ainda trata, sem que talvez se aperceba do

fato, de rituais estereotipados de leitura, fato que podemos

ilustrar na seguinte passagem:

E que convívio maravilhoso se dá numa Biblioteca, esta magnífica invenção coletiva da Humanidade: envoltos no manto do silêncio que aí reside e que nos convida à concentração e à reflexão, as Bibliotecas nos dão acesso aos infindáveis conhecimentos encontrados nos livros, dispostos em convívio pacífico, lado a lado, em suas estantes e prateleiras.

67

Melhor seria, talvez, que esses livros se encontrassem

desarrumados sobre a mesa de leitura, após terem sido

folheados e lidos pelas pessoas.

Todavia, em meio a essa proliferação de imagens de

leitura que o texto do ministro constrói, acreditamos que o

ethos construído para a leitura em sua fala, como um todo,

seja o ethos da promessa. A promessa de libertação, de

edificação, de emancipação, de companheirismo, de

extravasamento, de conhecimento. Um ethos que promete a

melhoria pessoal manifestada em:

a partir do ato da leitura podemos então desenvolver um certo número de operações cognitivas, hierarquizando os argumentos, comparando os enunciados, descartando ideias [...]. Usamos essas ideias [...] para sermos melhores amigos e amigas, melhores pais e mães, melhores trabalhadores, melhores empresários ou melhores políticos.

Ainda salientamos que no texto em questão a leitura é

tratada sempre em termos de leitura de livros apenas, daí os

espaços de bibliotecas serem tão frisados, e a leitura

apresenta sempre um caráter positivo, no discurso em

questão.

Na fala de Fernando Haddad, encontramos a leitura

como processo para o letramento escolar: uma política

68

consistente que promova o domínio da leitura e da escrita ao

longo da vida escolar/ [...] É preciso, portanto, que – da

educação infantil à pós-graduação – a criança/aluno participe

de um ambiente de forte e permanente estímulo à leitura, quer

através do livro, quer através dos demais suportes que tornam

a leitura uma atividade cada dia mais necessária a todos.

A leitura como prática social: mas sobressai a

regularidade das práticas de leitura, do estímulo às atividades

de criação de textos, da valorização das experiências e

saberes de seus alunos e das comunidades em que estão

inseridas. A leitura e a escrita têm, nessas escolas, o caráter

de uma atividade cotidiana, que vai além da função didática.

A leitura irradiada a partir da escola: a formação de

leitores se inicia na escola e deve prosseguir no ambiente

familiar e comunitário [...].

A leitura como inclusão (social e tecnológica): o

MEC vem desenvolvendo, em parceria com os municípios,

uma proposta de ação pública e conjunta de formação de

leitores e de incentivo à leitura, que tem por princípio

proporcionar melhores condições de inserção dos alunos na

cultura letrada, no momento de sua escolarização. [...] Através

das ações do programa Mídias na Educação busca-se

alcançar o objetivo de proporcionar formação continuada para

o uso pedagógico das diferentes tecnologias da informação e

da comunicação

69

Também aqui, observamos uma razoável proliferação de

imagens da leitura, mas podemos agrupá-las sobre o ethos

da esperança. Esperança de que todos os programas

políticos que envolvem a educação e consequentemente a

leitura, juntamente com este novo plano consigam incluir,

atualizar, efetivar, formar e mudar o panorama da leitura no

país, democratizar o acesso. Ethos da esperança que pode

ser observado mais nitidamente em:

Na verdade, nesse início do século XXI, quando a sociedade brasileira conta com mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos na escola, o país tem a oportunidade histórica de formar uma geração que teve acesso à educação e formá-la na valorização da leitura, no domínio da escrita, na visão crítica das informações que recebe e no exercício da produção e criação de sentido para suas práticas cotidianas.

Chamamos a atenção para o fato de que nesta cena,

considera-se a leitura não apenas do livro, mas também de

outros suportes. Apesar de considerarmos aqui o fato de que

o plano é uma proposta de fomento da leitura e do acesso ao

livro, nada impediria que os ministros mencionassem a

respeito de outros suportes. A exemplo do discurso anterior,

no texto de Fernando Haddad, a leitura também se apresenta

com caráter positivo.

70

3. Considerações finais:

Verificamos na fala do Ministro da Cultura a crença de

que o acesso ao livro leva automaticamente à formação do

leitor, por isso ele recorre corriqueiramente à necessidade de

bibliotecas e de frequentá-las, cumprir ritos de leitura, de

ampliar e melhorar a economia do livro como aquela que tem

um vasto potencial de geração de empregos, renda e

felicidade.

Ao passo, que, para o Ministro da Educação, o leitor se

constrói dentro do universo do letramento escolar, mediados

pelo professor que necessita estar preparado para exercitar

competentemente tal papel – Afinal, parafraseando o poeta14,

precisa-se do livro fechado, mas também de quem o abra,

interrogando-o – e por um sistema público que consiga

promover a inclusão das classes populares na cultura letrada.

Todavia, embora enfatizado, o ministro não restringe a leitura

ao ambiente escolar apenas, o que corroboraria para diminuir

a função social da leitura que ele enuncia e criaria uma noção

equivocada de que a escola seja a única agenciadora eficaz

da leitura. Embora reconheçamos ser a escola um local, por

excelência, capaz de impulsionar e, até mesmo, de

determinar a atividade de leitura.

14

Fernando Haddad cita João Cabral de Melo Neto em abertura a seu texto.

71

Interessante observarmos também que, especialmente

no discurso político, a questão do ethos prévio funciona como

um dispositivo que ajuda a construir o ethos discursivo, haja

vista que o tom poético do artista se manifestou na Palavra do

Ministro da Cultura e o tom do professor que defende uma

visão sistêmica da educação e a inclusão social também

aparece na Palavra do Ministro da Educação. Embora o

artista tenha assumido muito mais um tom professoral do que

o professor propriamente dito, que se demonstrou mais como

um articulador-prestador de contas.

Como já mencionamos, apesar do PNLL configurar-se

como um conjunto de ações coordenadas entre dois

ministérios, nos textos dos ministros essa articulação ocorre

muito sutilmente. Logicamente cada um fala a partir de suas

posições dentro do cenário político, e mais do que isso, no

lugar social destinado e assumido por cada um deles, mesmo

porque a própria separação dos textos da apresentação já

induz a uma possível “desarticulação” desses discursos.

Todavia, o que mais nos chamou atenção foi a

construção de ethos distintos para a leitura nas duas

apresentações. Esperávamos, de início, que as falas fossem

diferentes, mas que houvesse uma convergência quanto ao

ethos final construído. Mas a análise nos demonstrou uma

outra realidade. Enquanto no texto do Ministro Gilberto Gil o

ethos da promessa se delineou, no texto de Fernando

72

Haddad, foi o ethos da esperança que se apresentou como

construído. O que nos indica que há modos de pensar e de

problematizar a questão da leitura de forma diferente pelos

dois ministros. Todavia, avulta-se, como ponto de encontro, a

menção da leitura como capaz de expressão da diversidade

cultural e de fortalecimento dos valores democráticos e a

solução da desigualdade social, tópicos que, de uma ou outra

maneira, são recorrentes em todo o documento e frequentam

os discursos pedagógicos brasileiros mais gerais já há algum

tempo.

Certamente, tentar priorizar o livro e a leitura e

transformá-los em política permanente do Estado é um

grande avanço dentro dos incentivos e planos na área.

Concordamos com o Ministro da Educação quando deixa

entrever em sua fala que não basta um plano para que nosso

status negativo neste setor seja superado. É preciso uma

reunião de ações, em vários outros setores, que vão desde a

melhoria no acesso aos materiais de leitura, quanto na

preparação dos professores para que saibam trabalhar a

leitura de forma produtiva e eficaz em sala de aula.

É preciso entender a leitura como uma questão cultural

(já que passa pelo valor simbólico que a sociedade lhe atribui)

e econômica, mais do que uma questão de gosto ou de

querer individual. É preciso que haja condições favoráveis

para que ela se estabeleça muito mais do que, apenas, a

73

ampliação da quantidade de livros disponíveis. Pois não

existe uma relação automática entre acesso ao livro e leitura,

é preciso estabelecer-se uma cultura de promoção e de

valorização da leitura. Porque além do Estado e da Sociedade

disponibilizar informações, é preciso capacitar os indivíduos

para acessá-las.

Melhorar os índices de alfabetismo é uma dessas ações.

Pois os altos índices de analfabetismo funcional, que hoje

preocupam mais, talvez, que o analfabetismo absoluto ─ haja

vista que esse indica que o ensino nas escolas brasileiras não

tem conseguido atingir a eficácia, sequer, no processo de

alfabetização, quiçá no de letramento15 ─ atravancam o

desenvolvimento social e econômico do país.

Mas não nos cabe avaliar o PNLL e sim verificar a

imagem da leitura construída naquela que denominamos

como cena de abertura do programa. Neste caso, imagens e

ethos distintos em cada um dos textos avaliados.

Referências bibliográficas:

15

Usamos alfabetização no sentido da aprendizagem da técnica de ler e escrever (decodificar e codificar) e letramento como o uso proficiente das habilidades de leitura e escrita como funções e práticas sociais. Concordando com Soares (2003) aponta para o letramento como algo importante e que se distingue da alfabetização, porque existe uma grande diferença entre aprender o código e saber utilizá-lo. A autora defende que os conceitos estão imbricados, de forma que entre eles não existe hierarquia ou cronologia. “Pode-se letrar antes de alfabetizar ou o contrário” (SOARES, 2003).

74

AMOUSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

BRANT, Leonardo (org.). Diversidade cultural: globalização e culturas locais – dimensões, efeitos e perspectivas. São Paulo: Instituto Pensarte, 2005.

MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. In: AMOUSSY, Ruth (org.). São Paulo: Contexto, 2005. p.69-92.

______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

MAINGUENEAU, Dominique; CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

ORLANDI, E. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1988.

DIRETRIZES DO PLANO NACIONAL DO LIVRO E LEITURA (PNLL). Brasília: Governo Federal, 2006.

SOARES, Magda Becker. O que é letramento. Diário do Grande ABC, Santo André, ago. 2003. Disponível em: http://www.diarionaescola.com.br/29se08.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2004.

ZILBERMAN, Regina. A leitura como bem público. Disponível em: http://catalogos.bn.br/proler/Artigos/ReginaZilberman.pdf. Acesso em: 02 jul. 2007.

75

JORNALISMO POPULAR X SENSACIONALISMO:

UM ESTUDO DO PAPEL DO FAIT DIVERS NO JORNAL SUPER NOTÍCIA1

Magna Campos – UFSJ

Prof. Dr. Guilherme Rezende – UFSJ

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer um levantamento sobre o papel que teria o fait divers no jornal mineiro Super Notícia. Para tanto foi necessário recorrer ao gênero jornalista a que tal jornal se afilia, o jornalismo popular, a fim de levantar-se sua história e suas especificidades. E ainda estudar a vinculação deste gênero ao sensacionalismo, macroestrutura que engloba a categoria escolhida para análise, ou seja, o fait divers, buscando não uma condenação, mas sim, respaldo científico que permita um posicionamento menos preconceituoso diante das possíveis ligações entre esses três aspectos: jornalismo popular – sensacionalismo – fait divers. Constatou-se, no entanto, que são necessários muito mais estudos sobre as especificidades desses novos jornais populares que têm se tornado fenômenos de venda. Optou-se, então, por levantar-se a problemática envolvida na questão e deixar maiores conclusões a cargo de estudos posteriores.

Palavras-chave: Fait divers, jornalismo popular, sensacionalismo. Introdução:

O jornal Super Notícia tem conquistado uma vendagem

de exemplares, cada vez mais significativa, trazendo algumas

1 Texto escrito em 2006.

76

características em sua apresentação composicional que o

difere dos jornais de referência no estado de Minas Gerais. E

muitas vezes, estas características são designadas por seus

concorrentes mais tradicionais e até mesmo por leitores de

outros jornais, com certo “preconceitos”. Por isso, busca-se na

análise dos fait divers a verificação do papel que tais

elementos apresentariam neste jornal, tentando verificar se

cabe ao jornal o título de sensacionalista que lhe tem sido

imputado por algumas instâncias.

De acordo com Amaral (2005), os periódicos voltados

para os públicos das classes C, D e E são identificados como

jornais populares por duas razões: pelo baixo preço e pelos

assuntos cobertos, que têm critérios de noticiabilidade

distintos dos praticados pelos jornais considerados de

referência ou aqueles que se destinam aos leitores das

classes A e B.

Reconhecemos que o termo sensacionalista, geralmente

é atribuído ao jornal que se utiliza de fait divers de uma forma

demasiadamente vaga e recorrente, e quando usado para

definir uma publicação que veicula aspectos culturais e sociais

de uma camada da população deixados de lado pelo

jornalismo de referência. Ser chamado de sensacionalista

incute ao jornal assim nomeado o peso de ser classificado

como jornalismo popular, dado o fato de que alguns veem a

ligação direta entre uma e outra classificação. É como se ao

77

falar-se em jornalismo popular aparecesse como sinônimo a

expressão, sensacionalista e vice-versa.

Assim, os jornais populares são, em grande medida,

vistos com certas reservas pelos críticos desse tipo de fazer

jornalístico em função do modo como essas publicações

constroem em suas páginas a realidade. Durante muito tempo,

as publicações que se definiam como populares foram

chamadas de sensacionalistas, tanto pela população, quanto

por profissionais de jornalismo e pesquisadores. Alguns

dessas publicações ligavam a presença sistemática de fait

divers, especialmente abarcando a questão da violência, como

traço marcante do sensacionalismo. Um dos estudos que

estabelece a relação da cobertura sistemática da violência,

sensacionalismo e jornalismo popular é Agrimani (1995).

A escolha dessa categoria de análise é justificada pela

tentativa de buscar, com tal análise, verificar se há

fundamentação comprovada por algum critério (nesse caso

uma presença significativa de fait divers) que não seja apenas

o "intuitivo2" para nomear o Super Notícias como

sensacionalista. No entanto, reconhecemos que este estudo é

breve demais para pretender dar uma resposta a essa

questão, portanto, nosso intento será apenas contribuir para a

discussão do assunto.

2 Leia-se intuitivo aqui como caracterizador da nomeação desprovida

de qualquer explicação científica.

78

Neste estudo, na tentativa de verificarmos o papel que

teria o fait divers na publicação em estudo, traçaremos um

percurso que buscará a definição deste termo por alguns

estudiosos do assunto, passando pela história do jornal Super

Notícia, com o propósito de mostrar o porquê de sua

associação ao gênero jornalismo popular e, daí então,

procederemos a uma exploração sobre os termos jornalismo

popular e sensacionalismo. Após, com base na teoria

apresentada, efetuaremos uma breve análise do fait divers na

amostragem selecionada para o trabalho.

2.0 – Fundamentação teórica

2.1 – Sobre o fait divers:

Histórias absurdas que poderiam acontecer a qualquer

um, mas que raramente acontecem, assim poderiam ser

caracterizados os fait divers. Segundo o Grande Dicionário

Universal do Século XIX de Pierre Larousse, citado por

Agrimani (1995, p.25), fait divers é uma rubrica sob a qual os

jornais publicam com ilustrações as notícias de gêneros

diversos que ocorrem no mundo. Ainda, de acordo com esse

dicionário seriam exemplos típicos de fait divers: pequenos

escândalos, acidentes de carro, crimes terríveis, suicídios de

amor, operários caindo do quinto andar, roubo a mão armada,

acontecimentos misteriosos, execuções etc.. O que há de

comum nesses fatos é que todos pertenceriam a contextos

79

populares e particulares e que, de repente, ganham evidência

em um contexto público e reconhecimento social.

De acordo com Ramos (2004, p.57) a expressão

francesa fait divers designa, em sua generalidade, a

informação sensacionalista. E engana-se quem pensa que tal

expressão é contemporânea à mídia impressa ou eletrônica,

segundo o pesquisador acima, ela existe desde a época dos

menestréis, portanto tem origens na oralidade.

Agrimani (1995, p. 27), menciona que em 1631 o

Gazette de France lançou edições extraordinárias, de grandes

tiragens, totalmente dedicadas aos fait-divers

sensacionalistas. A exemplo desse jornal, muitos outros

passaram a publicar os fait divers para alavancar suas

vendas.

Barthes (1970, p.58), ao falar da extraordinária

participação do fait divers na imprensa de hoje, propõe

inicialmente que se proceda a uma análise estrutural a fim de

diferenciar as ditas "informações gerais", nome dado

atualmente ao fait divers, dos outros tipos de informações.

Elabora também seu conceito para fait divers, o qual

significaria, segundo esse autor, fatos diversos que cobrem

escândalos, curiosidades e bizarrices, caracterizando-se como

sinônimo da imprensa popular e sensacionalista. Para ele:

O fait divers é uma notícia de ordem não classificada, dentro de um catálogo mundialmente conhecido (políticas,

80

economia, guerras, espetáculos, ciências, etc.); numa só palavra, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em suma inomináveis, que se classificam em geral pudicamente sobre a rubrica dos Varia. […] é uma informação total, ou mais exatamente, imanente, ele contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait divers; ele não remete a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, aos seus sonhos, aos seus medos [...] no nível da leitura, tudo é dado num fait divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seus desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete, pelo menos formalmente, a nada de implícito. (BARTHES, 1970, p.58-59).

O fait divers é, assim compreendido, uma narrativa total,

autossuficiente, pois o acontecimento, surgido ex nihilo , não

precisa do mundo para ser “consumido”, na expressão de

Barthes. Estrutura fechada, pura imanência, o fait divers

contém em si todo o seu saber. Daí, talvez, o gosto popular

pelos “casos sem importância num jornal”, que opõem dois

paradigmas, o da vida pública e o da esfera privada.

Barthes, ao falar da estrutura do fait divers, dá-lhe essas

duas categorias, causalidade e coincidência, ambas

direcionadas para a classificação da excepcionalidade, fixada

no conflito.

81

Outro teórico a tratar a questão do fait divers é Maffesoli, para quem

em uma sociedade de massa, mas também de comunicação, o fait divers é uma informação quente e circunstancial, localizada (...) ele emana de um lugar datado, ele é carne e sangue em sua origem(...) como o conto, o carnaval, o jogo pueril. O comentário do fait divers permite falar, sem falar, da morte, da violência , do sexo, das leis e de suas transgressões. (apud AGRIMANI, 1995, p. 25).

Posição que coincide com a de Barthes quando

menciona sobre a imanência do fait divers como informação

total, metaforizada por Maffesoli como carne e sangue.

O pesquisador francês, Edgar Morin, apud Agrimani

(1995, p.26), observa que, no fait divers, o limite do real ou do

inesperado, o bizarro, o crime, o acidente, a aventura, irrompe

na vida cotidiana. De acordo com Sommer (2004, p.03), Morin

(1997) associa o sensacionalismo ao fait divers (fatos

variados), destacando que a dramatização dos fatos (notícias)

comove o público. Por serem gratuitos e descontextualizados

da realidade, esses fatos variados reafirmam “a presença da

paixão, da morte e do destino, para o leitor que domina as

extremas virulências de suas paixões, proíbe seus instintos e

se abriga contra os perigos” (MORIN, 1997 apud SOMMER,

2004, p. 03). Ainda de acordo com Morin, o fait divers vai até o

fundo da morte e da mutilação, como lógica irreparável da

82

fatalidade. É consumido não como um rito criminal, mas na

mesa, com café e leite, no metrô.

Tal qual proposto por Barthes (1970), Morin esclarece

que o fait divers se situa fora do contexto histórico. Pode-se

dizer, então, que o fait divers nunca envelhece, já que se situa

fora do contexto histórico, porque relatos de crimes e outras

tragédias são narrativas da causalidade, do inesperado,

construídas para provocar espanto no leitor, sendo

transportadas para o presente, o imediato, a cada leitura.

De acordo com Meyer (1996, p.100),

a narrativa do fait divers visa essencialmente provocar reações subjetivas e passionais no leitor-ouvinte. Tende a abolir a distância que o separa do acontecimento e dar-lhe a ilusão de que participa, ele próprio, da ação. Funcionando como um romance, o relato desse tipo de acontecimento convida o leitor a participar por meio da imaginação das situações descritas e a se identificar com os personagens cujas aventuras acompanha (...) ele estabelece com nosso inconsciente relações que refletem nossa própria ambivalência (...) é um lugar de exercício do imaginário. (apud Lanza, [s.d], p. 5)

Partilhando de ponto de vista semelhante, Sodré (1998,

p.134) assinala que o texto noticioso encena uma causalidade,

ao por em ordem as diferentes experiências vivenciadas pelo

indivíduo no dia-a-dia. É a notícia assumindo o caráter teatral

e dramático para captar leitores e espectadores.

Fundamentando-se em Roland Barthes, ele afirma que esse

83

tipo de texto – relato de algo aberrante – torna mais evidente a

presença do romanesco na narrativa noticiosa, constituindo-se

no primeiro exemplo histórico da dramatização do

acontecimento pela imprensa. Ideia essa que vai ao encontro

do conceito dado também por Meyer, acima citado, e por

Morin (1997) para os fatos diversos.

Portanto, depreendemos que o que conta no fait divers é

a exploração da emoção e também o seu caráter de

entretenimento, de chamar atenção, tão explorado pelas

diversas mídias na atualidade.

2.2 – Um pouco da história do Jornal Super Notícias

O Super, como é chamado por seus leitores, é um

jornal3 popular em cores e em formato de tablóide4. Criado

pela Sempre Editora, empresa proprietária de outros jornais,

como O Tempo, Pampulha, O Tempo Betim e O Tempo

Contagem, o Super apresenta em geral, segundo informações

dos próprios editores5, matérias curtas, de fácil leitura, custos

3 Jornal de circulação inicial na capital mineira, Belo Horizonte, e que

depois passou a ser vendido em muitas outras cidades de Minas Gerais. 4 Jornal feito com papel A3 ou duplo ofício, menor do que os

tamanhos tradicionais. 5 Disponível em: http://www.otempo.com.br/sempre_editora/. Acesso

em: 07 jan. 2007.

84

baixos e simplicidade de conteúdo, bem ao caráter dos ditos

jornais populares.

Lançado em 1º de maio de 2002, o jornal apresenta

reportagens com ênfase em esportes, cidades e polícia, visa

ao público das classes econômicas B, C e D, e também a um

público constituído em sua grande maioria, pelo gênero

masculino. Observemos, para melhor visualização e

detalhamento do perfil de leitores, alguns dados apresentados

pela equipe responsável pela publicidade do Jornal em

questão.

85

Gráfico 1: Perfil de Leitores do Jornal Super Notícias Fonte: conforme dados do Instituto Marplan

6. .

6 Disponível em:

http://www.otempo.com.br/publicidade/perfil_leitores_super_noticias.jsp. Acesso em: 12 dez.2006.

86

Esse jornal têm em média 25 páginas e cobertura de

pautas como notícias sobre violência, vida de celebridades,

futebol, cidades, prestação de serviços e política. O Super

Notícia abrange 7 editorias, sendo elas: Opinião, Cidades,

Geral, Emprego, Variedades, Classificados e Esportes, além

de contar com colaborações de colunistas.

Apesar de ter sido lançado há quase cinco anos, foi a

partir de outubro de 2005 que o jornal conseguiu uma

vendagem mais significativa no Estado de Minas Gerais. Fato

irônico, pois foi com o lançamento de um outro tablóide, o

Aqui7, criado para concorrer diretamente com ele, e que levou

a Sempre Editora a reduzir preço do jornal à metade a fim de

igualar-se a seu novo concorrente, além de investir

"agressivamente" nas suas ações de marketing com

promoções e ampliação de canais de distribuição em todas as

regiões da capital mineira, Belo Horizonte, e de muitas outras

cidades do interior do estado.

Hoje o Super é vendido em mais de 200 cidades do

estado de Minas Gerais, conforme Silva, em matéria

publicada, em 21/06/2006, no jornal on-line da Puc Minas,

intitulada - Super notícias: o tablóide que virou fenômeno.

7 Tablóide lançado pelo Grupo Diários Associados, proprietário do

jornal Estado de Minas, em outubro de 2005 pela metade do preço do Super Notícias, R$ 0,25 e que levou o Super a baixar seu preço também a R$ 0,25.

87

Se em seus três primeiros anos o jornal não obteve tanta

expressividade nas vendas, a partir de outubro de 2005, com

a já mencionada campanha de marketing, o tablóide

conseguiu um feito histórico: aumentar imensamente a sua

vendagem e ainda ameaçar a liderança do jornal Estado de

Minas, líder de venda no gênero jornalístico no estado, nas

últimas quatro décadas.

Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação

(ICV), publicados na primeira página do jornal O Tempo, de 23

de fevereiro de 2006, em janeiro de 2005, o Super vendia uma

média diária de 7.377 exemplares contra 70.274 do Estado de

Minas. Já em janeiro de 2006, o Super atingiu a vendagem

média diária de 79.379 exemplares, que significou o

crescimento de 976% em 12 meses, contra 69.926 do Estado

de Minas, indicando queda de 0,99% na vendagem deste

último no mesmo período. O último dado auditado pelo IVC

sobre a vendagem do Super, obtido por este estudo, foi de

agosto de 2006 que indicava uma média diária aproximada de

150 mil exemplares8.

Criticado como sensacionalista e como popular, os

responsáveis pelo jornal negam que ele seja sensacionalista,

conforme as palavras do editor, Rogério Maurício Pereira: “se

8 CRESCIMENTO do "Super Notícia” estimula duplicação do Parque

Gráfico da Sempre Editora. Disponível em: http://www.abigraf.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1439&Itemid=43. Acesso em: 10 dez. 2006.

88

popular for um produto que atrai milhares de pessoas

diariamente, o Super é popular. O Super não é sensacionalista

[…] o Super é um jornal sério, recheado com informações

objetivas9” .

Segundo Agrimani (1995, p.13) “sensacionalista é a

primeira palavra que a maior parte das pessoas utiliza para

condenar uma publicação”. E ainda,

quando se enclausura um veículo nessa denominação, se faz também uma tentativa de colocá-lo à margem, de afastá-lo dos mídias "sérios". Se um jornal é tachado de sensacionalista, significa para o público que o meio não atendeu às suas expectativas. (AGRIMANI, 1995, p.13)

Verifica-se, portanto, com Agrimani o ônus de receber o

título de sensacionalista. Nomeação que o jornal em estudo

tenta negar. Ainda segundo o autor, a edição do produto

sensacionalista é pouco convencional, tendendo ao

escandaloso. O tópico escolhido para ser analisado no jornal,

o fait divers, de acordo com Agrimani, seria o principal

nutriente do sensacionalismo, embora não seja o único.

2.3 Jornalismo popular e sensacionalismo

9 SILVA; Sálua Zorkot. Super notícias: O tablóide que virou

fenômeno. Disponível em: http://www.fca.pucminas.br/ooutro/bolso/bolso12006007.htm. Acesso em: 07 jan. 2007.

89

O jornalismo popular teve início no Brasil na década de

20, do século passado, quando surgiu o jornal Folha da Noite.

Segundo Oliveira (2002, p.2), esse jornal teve o propósito de

“apresentar-se como um órgão destemido de combate, mas

de feição leve e graciosa, que contrastava com a sisudez e

austeridade dos demais jornais da época”. A Folha da Noite foi

um dos primeiros jornais que criou segmentos que visassem a

diferentes tipos de leitores, como a criação do suplemento

feminino, do suplemento esportivo e outros que atingissem a

segmentos distintos da população, capitalizando suas

insatisfações.

O jornal traz características importantes no que tange a

caracterização de um novo tipo de jornalismo: a preocupação

em atingir a um público de composição social heterogênea, a

busca de uma feição mais leve e "digestiva", a criação de uma

seção de esportes, uma seção feminina, o tratamento

novelesco de alguns fatos. Traços esses que ganhariam

relevância na imprensa com o tempo, e nem sempre nos

mesmos tipos de jornal.

Nos anos 60, surge o jornal Notícias Populares10, dito

expoente máximo de jornalismo popular no Brasil. Sua

criação, ainda de acordo com Oliveira (2002, p.3) inscrevera-

se como parte de estratégia de lutas de grupos políticos

10

Considerado por Agrimani como tipo representante do jornalismo "espreme que sai sangue".

90

antivarguistas e anticomunistas, que se viam preocupados

com o que pareceria o poder de difusão do jornal Última Hora,

por eles considerado esquerdista. Criaram-no visando a

desviar o público daquele jornal para um jornal que tivesse um

sinal político oposto, ou antes, que não falasse de política. O

Notícias Populares aproveitou algumas fórmulas do Última

Hora até a exaustão, como por exemplo, notícias sobre

violência, crimes, sexo, esporte etc..

O jornalismo popular, voltado às camadas menos

privilegiada economicamente da população, parece, desde

então, ser uma tendência da especialização a que chegaram

os meios impressos.

Todavia, foi nos anos 90 que esse tipo de jornalismo –

jornalismo popular – ganha ainda mais força e se consolida.

Surgem publicações brasileiras como: O Dia, Extra, Lance. E

do ano de 2000 para cá, surgem o Diário Gaúcho, o Agora

São Paulo, o Meia Hora, o Expresso, o Super Notícias e o

Aqui e que, em geral, têm em comum a grande vendagem de

exemplares avulsa.

Podemos citar dois conceitos para o termo

sensacionalismo que são muito utilizados nos estudos sobre o

tema: o de Agrimani (1995) e de Pedroso (2001). Segundo

Agrimani, o sensacionalismo é tornar sensacional um fato

jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais, não

mereceria esse tratamento […] sensacionalizar aquilo que não

é necessariamente sensacional, utilizando-se para isso de um

91

tom escandaloso, espalhafatoso. Para Pedroso, o

sensacionalismo é um modo de produção discursiva da

informação de atualidade, processado por critérios de

intensificação e exagero gráfico, temático, linguístico e

semântico, contendo em si valores e elementos

desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos

no contexto de representação e construção do real social.

No entanto, o surgimento de jornais ditos populares, não

configuraria para alguns teóricos a existência de uma

Imprensa Popular. Esse é o caso da pesquisadora brasileira,

Rosa Nívea Pedroso que em seu livro, A construção do

discurso de sedução em um jornal sensacionalista, propõe

que a imprensa brasileira comumente dividida pelos

estudiosos em: Imprensa de Elite e Imprensa Popular, de

acordo com as características de produção e recepção dos

produtos por elas elaborados, no fundo, a dita Imprensa

Popular não reproduziria a condição de vida das classes

populares, ou seja, não seria um veículo que carrega em si

características da cultura popular, mas apenas artifícios que

agradam ao gosto popular.

Ainda, segundo a autora, a imprensa popular vigente,

não só a brasileira, mas comumente aquela dos países latino-

americanos, é caracterizada com aspectos da Grande

Imprensa, isto é, obedece a fins mercadológicos. Leia-se a

passagem abaixo na qual tal questionamento fica mais

92

delineado e é possível explicitar a posição da autora de que a

Imprensa Popular não constituiria um tipo de jornalismo, mas

um fruto (uma espécie de ramificação) da Grande Imprensa:

Se não consegue explicá-lo como algo autônomo, com determinantes próprios de realização, é porque ela não existe como um tipo de imprensa que se opõe a outro, mas é uma divisão aparente, ou seja, um segmento que pertence a grande imprensa e a reproduz. (PEDROSO, 2001, p. 46)

Todavia, tomando-se por referência a Crítica Cultural é

possível pensar essa questão e propor que no processo

midiático, percebe-se uma tendência ao condicionamento da

atividade criativa, o que não significa dizer que a cultura sofre

de uma dependência dos fatores econômicos. No entanto, tem

“influência e sofre consequências das relações político-

econômicas” (ESCOSTEGUY, 2001, p.156).

Não podemos, ao estudar-se a questão do jornalismo

popular, eximirmos de pensar a questão acima lançada e da

consideração de que os jornais populares sofreram

modificações e cresceram muito desde suas origens até hoje.

Os jornais destinados às classes B, C e D integram um novo

mercado a ser analisado, e que carecem de maiores estudos

científicos, pois são, em muitas ocasiões, excluídos como

objeto de estudo dos meios acadêmicos por serem

considerados "desvirtuantes" da referência: os jornais

destinados às classes A e B, a "elite cultural".

93

De acordo com Amaral (2005, p.01), diz-se,

normalmente, que “os produtos jornalísticos populares

distorcem os fatos”. Segundo ela, se é possível distorcê-los,

pressupõe-se que haja uma maneira certa de narrá-los,

concepção muito ligada “à noção da notícia como espelho dos

fatos”. E muitas vezes, cobra-se que as notícias tenham

exatamente o mesmo formato das publicadas em um jornal de

referência. Para ela,

muitas críticas aos exageros e às distorções da imprensa popular, pertinentes do ponto de vista ético, caem no extremo de imaginar possível uma notícia límpida que faça os fatos transparecerem tal como aconteceram. Ora, as notícias não emergem naturalmente do mundo real para o papel, não são simplesmente o reflexo do que acontece. São redigidas a partir de formas narrativas, pautadas em símbolos, estereótipos, frases feitas, metáforas e imagens. (idem, op.cit.)

Expressões como "degradação cultural", "lixo" e

"antijornalismo" são usadas para desqualificar os produtos

informativos populares comerciais, o que os exclui do rol de

objetos dignos de serem estudados e pesquisados. Dessa

forma, os produtos jornalísticos populares, frequentemente

nomeados como sensacionalistas, veem na amplitude desse

conceito a sua condenação.

94

O sensacionalismo é um modo de caracterizar o

segmento popular da Grande Imprensa, uma percepção do

fenômeno localizada historicamente e não do próprio

fenômeno, de acordo com Amaral (2005), pois ele

corresponderia mais à perplexidade com o desenvolvimento

da indústria cultural11 no âmbito da imprensa, do que um

conceito capaz de traduzir os produtos midiáticos populares

mais recentes.

Uma importante relativização a ser feita refere-se à

ampliação do conceito de cultura, ou seja, ao questionamento

da divisão hierárquica entre cultura elitista (tida como superior)

e cultura das classes populares (tida como inferior). No cerne

da cultura, transitam os mais variados modos de vida

perpassados por relações de poder. Existem distinções

decorrentes de classe, raça, poder, linguagem etc., e isso está

expresso no campo da cultura, que reflete, assim, as

diferenças sociais, e não só as diferenças entre classes

sociais.

11

A definição de indústria cultural surgiu no final da década de 40 quando Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, pensadores da Escola de Frankfurt, refugiados nos EUA em decorrência da Segunda Guerra Mundial, publicam em 1947, o clássico - Dialética do Esclarecimento. O uso do termo indústria cultural foi adotado a partir da publicação para substituir a expressão até então utilizada - cultura de massa [...] Segundo Adorno e Horkheimer, a indústria cultural é a integração deliberada a partir do alto de seus consumidores, ou seja, a vulgarização da arte superior e inferior e sua distribuição através de veículos de comunicação de massa manipuladores e aniquiladores da consciência e do pensamento crítico humano.

95

É preciso considerar também que um jornal destinado ao

público popular não se utiliza dos mesmos recursos do jornal

de referência. Ainda, de acordo com Hall et al (1999) apud

Amaral (2005, p.2), a construção do discurso informativo parte

de mapas culturais. Cada tipo de publicação legitima-se por

intermédio do uso maior ou menor dos recursos narrativos,

desenhados culturalmente. O discurso informativo pode se

inspirar em determinadas formas narrativas e, no segmento

popular, formas narrativas com características

melodramáticas, grotescas e folhetinescas.

Não se faz aqui uma apologia ao gênero popular,

apenas tenta-se evidenciar a necessidade de considerá-lo

relevante para estudos, visto seu grande crescimento e a

capacidade de tornar não-leitores de jornais, em leitores, de

tornar não-consumidores de jornais, em consumidores. E que

o estudo destes jornais não sejam apenas objeto de

comparação com os jornais de referência, não se

negligenciando a necessidade de uma postura crítica em

relação a esse tipo de jornalismo, assim como com relação a

qualquer outro.

No prefácio do livro Jornalismo Popular, Márcia Amaral,

escreve que os jornais destinados às classes B, C e D, hoje,

integram um novo mercado caracterizado por um público que

não quer apenas histórias incríveis e inverossímeis, mas

compra jornais em busca também de prestação de serviço e

96

de entretenimento. Os suportes usam como estratégia de

sedução do público-leitor a cobertura da inoperância do poder

público, a vida das celebridades e do cotidiano das pessoas.

Os assuntos que interessam são prioritariamente os que

mexem de imediato com a vida da população. Na pauta, o

atendimento do SUS e do INSS, a segurança pública, o

mercado de trabalho, o futebol e a televisão.

Vendidos nas bancas ou em sinais de trânsito por

ambulantes12, tais jornais seguem com capas chamativas e a

violência permanece como assunto, mas agora em um nível

que se poderia chamar de menos escatológico a despeito dos

jornais populares de outras décadas. Tais jornais publicam, ao

contrário do que muitos preconceituosamente acreditam,

matérias exclusivas, dão "furos" e ganham prêmios13.

Portanto, os jornais desse segmento têm assumido

maior importância social. Evidentemente, essa mudança de

rumo não significa que os jornais populares agora sejam de

qualidade ou não mereçam uma crítica, mas indica que

precisam ser vistos com um novo olhar.

12

Em Minas Gerais, o Jornal Super Notícia ressuscitou essa forma de venda por ambulantes. 13

Por exemplo, no Prêmio Esso 2004, o O Dia venceu na categoria Fotografia e ficou finalista, juntamente com o Extra, nas categorias Reportagem, Criação Gráfica e Primeira Página. Em 2005, Fábio Gusmão, do Extra, ganhou o prêmio Esso de Reportagem pelo trabalho Janela Indiscreta. Também em 2005, O Dia venceu a categoria Fotografia do XXII prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

97

Afinal, é preciso ampliar a noção de cultura como sendo

“uma região de sérias disputas e de conflitos acerca do

sentido; cultura diz respeito aos enfrentamentos entre modos

de vida diferentes devido à existência de relações de poder”

(ESCOSTEGUY, 2003, p. 68).

Também é importante frisar que o leitor popular não é

passivo em relação às notícias veiculadas. Nem o segmento

popular da imprensa é simplesmente fruto de interesses

empresariais e nem seu público responde cegamente aos

chamados do produto. Isso seria considerar que todos de uma

classe social efetuassem a leitura de um único segmento

jornalístico a ela destinado. Esse endereçamento, embora

exista, não é garantia de exclusividade, pois o sujeito-leitor,

mesmo em épocas em que a leitura era muito menos popular,

transitava entre os materiais e práticas de leitura de classes

sociais distintas (Cf. CAVALLO; CHARTIER, 1998). Seria

desconsiderar a capacidade de interação social do sujeito-

leitor.

Cabe salientar, aqui, que não se trata de subestimar a

inteligência do receptor. Muito menos afirmar que as notícias

transmitidas são consumidas uniforme e passivamente. É

evidente que o modo de interlocução com as informações

varia de pessoa para pessoa, tudo depende do contexto

sociocultural de cada indivíduo. De acordo com Champagne

(1998, p 18) “a capacidade para produzir uma opinião está

98

partilhada de forma desigual e, em particular, varia em função

do capital cultural de cada indivíduo”.

Se os jornais fazem sucesso, é porque há recompensas

para esse leitor. Assim, existe uma complexa relação entre a

produção e o consumo dos produtos populares.

3.0 – O fait divers no Jornal Super Notícias: uma análise

Como mencionamos anteriormente, o fait divers

configura-se em uma importante manifestação do

sensacionalismo jornalístico. Tentaremos esboçar por meio

desta análise o "peso" que teria o fait divers na publicação do

jornal em estudo, verificando a utilização em maior ou menor

número desse recurso tão caro ao sensacionalismo.

Para fins de análise, serão consideradas apenas as

primeiras páginas das edições do Jornal Super Notícias

(doravante Super), publicadas entre os dias 18 e 24 de

dezembro, de 2006. Esta amostra constitui-se, portanto, de

um exemplar publicado em cada dia da semana, iniciando-se

na segunda, dia 18 de dezembro e indo até o domingo, 24 de

dezembro. A opção pela primeira página das edições, deu-se

em função de ser ela a responsável por chamar a atenção dos

possíveis compradores-leitores do jornal, já que sua venda se

dá nas bancas e nas ruas e não por assinatura, como é

característico aos jornais dirigidos à classe A e B. Portanto,

99

toma-se a primeira página como uma amostra significativa do

todo, ainda que tal critério possa vir a ser questionado.

No quadro abaixo, classificamos os faits divers

encontrados em três áreas distintas, sendo elas: polícia,

esporte e cidade, visto que são essas as grandes áreas que a

editoria do jornal afirma serem seu "carro-chefe".

Quadro 01: Relação de fait divers por área de ocorrência

Edição do Super Polícia Esporte Cidade

18/12/2006

nº1685

1. Tragédia e mortes em duas horas

19/12/2006

nº1686

2. Padre na cadeia.

3. Jornalista da Globo em quadrilha de caça-níquel.

4. Deputado esfaqueado por eleitora na Bahia.

5. Corpo de mulher fica 24 horas no sofá.

20/12/2006

nº1687

6. Presidente do Galo denunciado pelo mensalão

7. Agressão a funcionária fecha posto de saúde no bairro Glória.

8. Menina entra em coma após extrair dente.

9. Menina

100

atropelada no Anel e motorista foge.

21/12/2006

nº1688

22/12/2006

nº1689

10. Barraco na Vida Real.*

11. Acaba Hoje novela do novo técnico do América.

23/12/2006

nº1690

12. Continua a novela Suzana Vieira.*

13. Samu demora a chegar e idosa morre em Santa Luzia.

14. Fuga em massa

24/12/2006

nº1691

15. Papai Noel sem trenó.

16. Menino morre esmagado no portão de sua casa.

Como pode ser observado no quadro acima, foram 16

ocorrências de fait divers, nestes sete exemplares do jornal.

Sendo seis deles assuntos policiais, embora o caso Suzana

Vieira (presente em 10 e 12) esteja mais ligado à questão das

celebridades do que policial propriamente dito. No entanto,

como configurou uma questão na qual estiveram envolvidos

policiais e advogados, optamos por enquadrá-lo também nesta

seção. Além disso, foi o único que teve reincidência da

101

matéria no dia seguinte, a matéria Barraco na vida real e no

dia seguinte a matéria Continua a novela Suzana Vieira.

Coletamos apenas dois da área de esportes e os oito

restantes podem ser enquadrados na área que denominamos

cidade. E nenhuma ocorrência desse tipo foi registrada na

capa do dia 18 de dezembro.

No jornal Super, foi encontrado um traço comum em

todas as edições analisadas, trata-se do fato de que em todas

as primeiras páginas figurarem uma fotografia, em uma média

de tamanho de meia página, de uma mulher - atriz ou modelo

- sempre em roupas sumárias ou em poses mais sensuais. E

tomando por pressuposto o que foi dito a respeito do fait

divers, dado o seu consumo imediato e provido de um caráter

atemporal, em suas diferentes manifestações, é utilizado, na

mídia, com diversas abordagens. Aparece tanto no tratamento

da realidade quanto da ficção. Entendemos que a presença

dessas fotografias pode ser percebida, de uma forma não

muito característica, como uma espécie de fait divers.

Por isso, resolvemos enquadrar tais fotografias em uma

categoria particular de fait divers, conforme o quadro à frente:

102

Quadro 02: Relação de fait divers na área de ocorrência Celebridade

Edição do

Super

Celebridade Manchete

18/12/2006 Christiane

Fernandes

Atriz de "Páginas da vida" exibe corpinho sarado

19/12/2006 Adriane Galisteu Loira Cai no samba no

Rio

20/12/2006 Bárbara Borges Atriz conta como faz

para ficar "zen".

21/12/2006 Fernanda

Schonardie

Com uma "Mamãe Noel" dessa, precisa de presente?

22/12/2006 Renata

Dominguez

Atriz diz que é uma

escrava da profissão

23/12/2006 Camila Rodrigues Gata mostra o corpão

sarado

24/12/2006 Caroline

Dieckman

Disse que não pretende

posar nua

Quanto à forma como são apresentados, no que tange

ao aspecto gráfico, tais fait divers são sempre destacados dos

demais elementos do texto. As manchetes: Tragédia e mortes

em duas horas, Padre na Cadeia, Barraco na vida real, Fuga

em massa, Papai Noel sem trenó figuraram na parte superior

central do jornal, com letras destacadas e todas foram

103

acompanhadas de fotografias. Além dessas, também a

manchete Corpo de mulher fica 24 horas no sofá foi

complementada com fotografia e embora ocupasse um

espaço considerável na primeira página da edição de

19/12/06, não ganhou o mesmo destaque que as citadas

anteriormente.

Já as reportagens, Jornalista da Globo em quadrilha de

caça-níquel, Deputado esfaqueado por eleitora na Bahia,

Agressão a funcionária fecha posto de saúde no bairro Glória,

Menina entra em coma após extrair dente, Samu demora a

chegar e idosa morre em Santa Luzia, Menino morre

esmagado no portão de sua casa aparecem na metade inferior

do jornal e não são acompanhadas de fotografias.

E as manchetes Presidente do Galo denunciado pelo

mensalão, Menina é atropelada no Anel e motorista foge,

Acaba hoje novela do novo técnico do América e Continua a

novela Suzana Vieira estão localizadas na parte superior

direita primeira páginas e nenhuma delas também são

complementadas por fotografia. Um fato curioso no Super é

que muitas manchetes da capa apresentam acompanhamento

de um balão de cor amarela, com um pequeno detalhamento

da matéria.

As chamadas para os fait divers das celebridades, como

já mencionado, ocupam quase metade da página e com

exceção do de Renata Dominguez, todos os demais estão na

104

metade inferior do jornal. Nenhuma celebridade masculina foi

encontrada nesta amostra, o que mostra a orientação do jornal

para o gênero masculino que constitui, segundo os dados

arrolados anteriormente, 86% de seu público leitor.

Considerações Finais:

No decorrer deste breve estudo, deparamos com duas

posições um pouco distintas no que tange às características

dos jornais populares: uma que o olhava a partir de um

modelo de jornal referência localizado fora de seu público

alvo, tratava-se de uma referência pautada em jornais

destinados às classes A e B; e outra que o olhava como um

segmento da Grande Imprensa, porém que julga ser

necessário um maior estudo a respeito de suas

características, mas não tendo como parâmetro jornais

destinados a outro público.

Tal posicionamento constituiu-se para este estudo uma

grande interrogação, pois dependendo de qual linha se

adotasse, como guia dessa pequena investigação sobre o

papel do fait-divers no jornal Super Notícias, levaria a uma

conclusão muito distinta da outra. Pois, em uma, teríamos que

a presença de maior ou menor número de fait divers

determinaria ao jornal ser sensacionalista, o que lhe

configuraria como sinônimo de “má qualidade” e “deteriorante

do bom jornalismo”, isso para usarmos alguns dos clichês

105

costumeiros para tal designação. Em outra, teríamos o fait

divers como uma característica marcante desse tipo de

jornalismo o que configuraria apenas como estratégia de

marketing para a vendagem do jornal, atendendo aos apelos

mercadológicos.

No entanto, seguindo uma linha crítica entendemos a

possibilidade de uma terceira interpretação que vê no fait

divers uma tentativa de aproximação da linguagem popular,

seguindo novos tipos de mapas culturais que não aqueles da

imprensa de elite. Mas essa terceira via implica certa

relativização, pois não podemos perder de vista que não

existe a suposta neutralidade e objetividade jornalística, assim

como é provável que não exista a isenção intencional no

emprego dos fatos do dia.

Encontramos uma presença significativa de fait divers no

jornal em estudo, mas como ressalta Amaral, citada

anteriormente, não se enquadram mais no esquema espreme

que sai sangue, descrito por Agrimani.

Acreditamos mais naquela vertente que diz buscar

novos mapas culturais para a construção de jornais,

especialmente por pensar na relevância social de estudar-se a

imprensa popular, seja ela uma dissidência ou não da

imprensa de elite, que vem proporcionando uma certa

democratização da leitura de jornais e de certa forma, da

informação, ainda que em um formato diferenciado daquele

106

tido como "mais sério", para setores da população com baixa

escolaridade. E para atender a tal setor, muitas vezes, os

jornalistas não devem ficar circunscritos a uma única forma de

se fazer jornalismo.

É preciso democratizar o acesso à informação, mas

também possibilitar e ajudar a formar a crítica, a atitude

reflexiva que se espera que um leitor proficiente seja capaz de

fazer. Para isso, tanto jornais ditos populares, quanto jornais

de referência precisam se comprometer não com a realidade,

uma vez que são sempre representações da realidade, já que

esta, pela sua própria natureza, não pode ser apreendida

pelas notícias ou fait divers. Mas com a forma como

representam essa realidade e o comprometimento ético no

qual estão envoltos, buscando não desviar a atenção dos

assuntos realmente relevantes para a sociedade em que

ocorre.

Os jornais populares devem ser observados e estudados

para que seja possível captar suas estratégias e, como uma

forma de crítica importante, incorporá-las ou descartá-las no

sentido de se criar bases técnicas para um jornalismo popular

pautadas em qualidade do gênero e não na referência padrão

atual, o jornal voltado para as classes A e B.

Obviamente que não se apregoa aqui que tal jornal se

dedique demasiadamente à dramatização das notícias, à

priorização do interesse do público em detrimento do interesse

107

público e à representação das pessoas como sendo apenas

consumidoras ou vítimas sociais.

Entendemos juntamente com Kellner (2001) que os

textos produzidos pela mídia não devem ser encarados pura e

simplesmente como divulgadores da ideologia dominante ou

dominada, tampouco entretenimento puro e inofensivo. Muito

pelo contrário, consistem em produções complexas, que

envolvem “discursos sociais e políticos cuja análise e

interpretação exigem métodos de leitura e crítica capazes de

articular sua inserção na economia política, nas relações

sociais e no meio político em que são criados, veiculados e

recebidos” (KELLNER, 2001,p. 13).

Decorre dessa consideração a grande necessidade de

maiores estudos a respeito do gênero antes de condená-lo ou

de simplificá-lo demais.

Referências Bibliográficas:

AGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo. São Paulo: Summus Editorial, 1995.

AMARAL, Márcia Franz. Sensacionalismo: um conceito errante. Revista Intertexto. Disponível em: < http:// www.intertexto.ufrgs.br/marcia_amaral_art.html_45.

108

______. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva/Fundo Estadual de Cultura, 1970.

CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998. vol. 2.

CHAMPAGNE, Patrick. Formar a Opinião: o novo jogo político. Petrópolis: Vozes, 1998.

ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os Estudos Culturais. In: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz; FRANÇA, Vera (orgs.) Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001, p.151-170.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. São Paulo: EDUSC, 2001.

LANZA, Sônia Maria. Jornalismo: da origem folhetinesca à folhetinização da informação. Disponível em: <http://www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/cd3/ jornal/soniamarialanza.doc. > Acesso em: 17 dez.2006.

OLIVEIRA, Adilson. Um estudo da linguagem esportiva do jornal Agora. 2002. Disponível em: <http://www.mundocultural.com.br/artigos/Colunista.asp?artigo=530.> Acesso em: 28 dez. 2006.

PEDROSO, Rosa Nívea. A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista. São Paulo: Annablume, 2001.

RAMOS, Roberto. Mídia e sensacionalismo: uma relação semiológica. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 5, dez. 2004, p.57-62.

109

SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1998.

SOMMER, Vera Lúcia. A força do fait-divers no Diário do Litoral: jornal de destaque no Vale do Itajaí/SC. 2004. Disponível em: <http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/17305/1/R2107-1.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2006.

110

TECNOLOGIA COMO MEDIADORA DE SUBJETIVIDADES1

Magna Campos – UFSJ

Profª. Dra. Dylia Lysardo-Dias – UFSJ

Resumo: O objetivo desta comunicação é analisar o folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná a fim de pensarmos a relação entre tecnologia-leitura-subjetividade no âmbito da sociedade contemporânea. Efetuaremos um estudo exploratório a partir das teorizações efetuadas por alguns expoentes teóricos no que tange ao estudo das relações espaço/tempo na atualidade. Prosseguiremos com os estudos de Martín-Barbero (2001), Santaella (2003) sobre a tecnologia como mediação, pressupondo a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através dos meios; também por Woodward (2000) a despeito da subjetividade como construção social fundada na diferença; e por Bauman (1999) para quem a tecnologia digital pode ser entendida como mais uma fonte de consumo; coadunados ao pressuposto de que a leitura, como forma de linguagem, significa e, por isso, nos significa e nos relaciona com o mundo. Nesse âmbito, interessa-nos acima de tudo perceber como se apresenta o sujeito-leitor na tríade acima elencada. Contextualização:

1.1 O cenário pós-moderno: espaço da ambivalência

Muito se tem discutido nos últimos tempos sobre a

superação da modernidade por uma fase conseguinte

nomeada ora de pós-modernidade2, ora de modernidade

1 Texto escrito em 2008.

2 LYOTARD (1998), JAMESON (1997), HALL (2004) e CANCLINI

(2008).

111

tardia3, modernidade líquida4, modernidade reflexiva5 ou de

hipermodernidade6 e, provavelmente, de outros termos que

aqui nos escapam. Encontramos, em nossas pesquisas,

algumas definições de pós-modernidade, que ora a opõem à

modernidade, ora a vêem como uma continuação da

modernidade, ora como uma perspectiva que tudo critica e

nada põe no lugar. No esforço de defini-la, as discussões,

geralmente, giram em torno das transições paradigmáticas7

que vêm ocorrendo desde o final do século XX e,

especialmente, nesse início de século XXI, o que nos levaria

ao questionamento e à reescrita dos ideais da modernidade,

tais como: a racionalidade a-histórica, as verdades

transcendentais8, a homogeneidade do sujeito social, a

autonomia, dentre outros.

3 HALL (2004).

4 BAUMAN (2001).

5 GIDDENS (2002).

6 LIPOVETSKY (2004).

7 Paradigma, de acordo com Kuhn (1975, p.221-222), é algo

compartilhado pelos membros de uma comunidade, ou seja, é o consenso de uma comunidade científica em relação a alguns conceitos que vão definir o que é válido para a comunidade. 8 Na visão de Jameson (1997), uma importante característica da

pós-modernidade é a fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade dos discursos característica da era moderna. Ao contrário, não parece haver, na pós-modernidade, o pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas, sim o pressuposto de que existem verdades relativas. Assim sendo, na medida em que se pressupõe que não há uma verdade que justifique a universalização dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos coexistindo em uma mesma época.

112

Cumpre aqui discutirmos alguns traços distintivos da

pós-modernidade em relação à modernidade, como forma de

situarmos o sujeito-leitor dentro deste cenário, uma vez que

concebemos a pós-modernidade como uma forma de

interrogar a modernidade e de problematizar certas questões

por ela trazidas. Nesse ínterim, encontramos em Canclini

(2008) uma perspectiva na qual embasamos o nosso olhar

sobre esse cenário:

Concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou tendência que substitui o mundo moderno, mas como uma maneira de problematizar os vínculos equívocos que ele amarrou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se. (CANCLINI, 2008, p.28)

Entendemos também, juntamente com Bauman (1999b),

que a pós-modernidade não está em oposição à modernidade,

mas em ambivalência com ela, criando assim, uma zona

fronteiriça entre as duas. Dessa forma, o sujeito-leitor situado

nesse entremeio, no espaço da ambivalência, entre a

modernidade e a pós-modernidade, produz suas leituras e

sentidos a cada momento diferentes, mergulhado nos fios do

interdiscurso e na pluralidade de vozes9; diante de antigos ou

de novos textos e de novos meios para a textualidade.

Importa-nos, no que tange à pós-modernidade, mais

detidamente, as questões que abarcam a temática da

9 Tomamos a leitura como prática social produzida discursivamente.

113

tecnologia10 a fim de efetivarmos um esforço de compreensão

das subjetividades em jogo com relação ao tema da leitura e

da leitura das textualidades relacionadas a essa tecnologia.

Consideramos que o grande desenvolvimento tecnológico,

especificamente aquele ligado às novas tecnologias de

informação e comunicação (TIC), que vivenciamos nos últimos

tempos, bem como a compressão tempo/espaço trazida pelo

advento da informatização, mediam mudanças relacionadas à

vida sociocultural, política, histórica e, dessa forma, afetam os

sujeitos inseridos nesse contexto e as atividades

desempenhadas por estes, como é o caso da leitura.

Numa perspectiva discursiva, é possível perceber os

atravessamentos das questões sociais na atividade de leitura

e na constituição do sujeito-leitor. Por esse motivo, ao

inserirmos o sujeito-leitor no contexto da pós-modernidade

não o podemos enxergar como imune a todo esse processo

de mudança, imune à sócio-história e às práticas discursivas11

em que atua e que o constituem. Uma vez proposto como um

sujeito social, precisamos enxergá-lo, como bem o propõe

Coracini (2002; 2005), em sua heterogeneidade,

10

CAVALLO & CHARTIER (1998, vol 1 – vol 2) mostram como algumas tecnologias mudaram a história da humanidade e, consequentemente, da leitura, como é o caso da escrita, da imprensa, o conjunto de tecnologias eletroeletrônicas como o rádio, televisão, computador. Hoje temos todas elas integradas ao computador, por meio da internet. 11

Práticas discursivas tomadas no sentido foucaultiano, como sistemas que instauram o enunciado como acontecimento.

114

fragmentação, e, para usarmos um termo muito caro à pós-

modernidade, em sua fluidez.

Bauman (2001) esclarecendo-nos melhor sobre essa

fluidez, defende a tese de que a modernidade12 é um longo

processo de “liquefação” da solidez característica dos tempos

pré-modernos. O que a modernidade se propõe é substituir os

“sólidos” tradicionais por novos “sólidos”, mais confiáveis,

previsíveis e administráveis segundo critérios racionais. O que

de fato ocorreu, no entender de Bauman, foi que, ao longo dos

tempos modernos, os sólidos se derreteram, ou seja, aqueles

conceitos centrais, como por exemplo, emancipação,

individualidade, tempo/espaço, os quais deveriam constituir o

chão firme dos novos tempos, perderam sua rigidez.

Dentre os tantos sólidos que a modernidade se

encarregou de desfazer se encontram as categorias de tempo

e de espaço, que a nós interessa bastante, tendo em vista que

essa mudança ou liquefação das relações entre essas duas

categorias – a qual ocasiona a compressão entre elas – foi

ocasionada, em grande parte, pelo desenvolvimento e

12

Para Bauman haveria duas espécies de modernidades: a sólida (pesada) – referente ao que usualmente é chamado de modernidade, propriamente dita – e a líquida (leve) – referente ao que chamamos aqui de pós-modernidade. O termo “modernidade líquida” é cunhado por Bauman no livro que tem por título exatamente essa nomeação, publicado no Brasil em 2001.

115

utilização das novas TIC, como é o caso da internet13 e das

comunicações eletrônicas.

Bauman (2001) afirma que a modernidade

começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, e presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua „capacidade de carga‟, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permite „passar‟, „atravessar‟, „cobrir‟ – ou conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas. (BAUMAN, 2001, p.15-16) grifos do autor.

No período moderno, tal separação teve como resultado

o predomínio do tempo sobre o espaço, pois a modernidade

(pesada) é, talvez, mais que qualquer outra coisa, a história do

tempo. Decorre dessa dissolução entre tempo e espaço a

13

A qual, segundo Lévy (1996), possibilitou a configuração de um novo espaço: o ciberespaço.

116

metáfora do líquido usada por Bauman para definir a atual

fase da modernidade em que nos encontramos, pois, segundo

o autor, “para os fluidos o que conta é o tempo, e não o

espaço, que preenchem apenas momentaneamente”

(BAUMAN, 2001, p.8). Por terem uma extraordinária

mobilidade e inconstância, associam-se os fluidos à ideia de

“leveza” ou “ausência de peso”.

Decorre dessas razões o fato de, conforme Bauman

(2001), considerar-se fluidez ou liquidez como metáforas

adequadas à natureza da fase em que vivemos, nova na

história da modernidade. Enquanto a modernidade sólida

colocava a duração eterna como principal motivo e princípio

da ação, na modernidade líquida a duração eterna não tem

função. O curto prazo substituiu o longo prazo, e fez da

instantaneidade o ideal último. Se antes os indivíduos

contabilizavam seu tempo e seu espaço a partir do que seu

corpo podia fazer; e depois passaram a lidar com o tempo e o

espaço que os automóveis produziam – estar a dez minutos

de alguém/algum lugar não significa o mesmo para alguém a

pé e para alguém motorizado –; agora o espaço dissolve-se,

uma vez que por meio de um sinal eletrônico, uma mensagem

pode atravessar o mundo em segundos ou frações de

segundos14.

14

Com isso enveredamos de vez na era do “tempo real”, do “on-line”.

117

Por esse motivo, Bauman (2001) argumenta na direção

de visões fluidas e heterogêneas e muito mais dinâmicas da

sociedade contemporânea, construída “no aqui e no agora”.

Essas tecidas sob uma trama movente15, ao contrário de

visões duradouras e unificadoras da tradição moderna,

baseadas nas verdades universais e na racionalidade, que,

supostamente, levariam ao progresso e ao desenvolvimento,

amparadas no ideal do Estado-nação.

Uma nova ordem mundial ou de um novo capitalismo,

chamada por Bauman (1999b) de nova (des)ordem mundial,

que atravessa o mundo, em todas as esferas, por meio da

globalização16, ameaça e enfraquece a fórmula do Estado-

nação, por meio dos muitos processos de integração e

interpenetração econômica, cultural, tecnológica e ideológica

entre os países, ocasionando uma crescente interpenetração

de bens físicos e simbólicos entre os territórios e um aumento

exponencial dos fluxos globais de pessoas.

Segundo Hall (2004), baseado em Giddens (1990),

a globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo

15

A ideia do movimento é muito recorrente em Bauman, assim como em muitos outros autores que tratam da questão da pós-modernidade. 16

Ver: BAUMAN (1999; 2001); GIDDENS (1991); HALL (2004).

118

do tempo e do espaço. (HALL, 2004, p.67) grifos do autor

Isso nos permite pensar que a globalização, com suas

configurações em que o tempo é um instante e o espaço é um

quase nada, alcança a todos nós, indiferentemente de

estarmos mais ou menos engajados no universo global17. Tal

fato nos leva à conclusão de que o espaço e o tempo são

produtos das relações sociais, culturais, adicionadas às

políticas e econômicas.

Completa a perspectiva da qual procuraremos falar

sobre o sujeito-leitor na pós-modernidade – nesse cenário

tecnológico, marcadamente globalizado e globalizante –, uma

visão das novas TIC também como algo essencialmente

heterogêneo e em constante transformação. Podemos

considerar as tecnologias como heterogêneas no sentido de

que nascem em contextos heterogêneos, e, especialmente no

caso das TIC, no sentido de que misturam ou fazem convergir

17 Mesmo que o global tenha dado maior visibilidade também ao local, entendemos juntamente com Hall que esse “„localismo‟ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o exterior constitutivo da globalização” (2003, p. 61). Com base nessa afirmativa que pensamos que todos estamos envoltos pelo advento da globalização, indiferentemente dessa contextualização ser global ou local. E é nesse sentido, que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.

119

outras tecnologias, surgidas em outros contextos sócio-

históricos.

Por isso, consideramos que uma abordagem da relação

sociedade-tecnologia-cultura mais adequada à problemática

da leitura deve tomar como pressuposto que a tecnologia, a

exemplo da linguagem, tanto influencia os contextos nos quais

surge (ou é introduzida), como tem seu sentido, sua forma e

sua função transformados no tempo e no espaço pela maneira

como é praticada em contextos heterogêneos.

1.2 As novas TIC mediando a produção de

subjetividades

Partimos do pressuposto de que a subjetividade,

conforme apresentado por Woodward (2004, p.55), “é vivida

em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão

significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual

adotamos uma identidade”.Assim, a subjetividade é construída

e significada pela interpelação18 dos atos de linguagem, e

estes, por sua vez, encontram-se, no que se refere à

contemporaneidade, atrelados às novas Tecnologias de

Comunicação e Informação (TCI). Tecnologias essas que se

18

“Interpelação é o termo utilizado por Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os sujeitos – ao se reconhecerem como tais: „sim, esse sou eu‟ – são recrutados para ocupar certas posições-de-sujeito”. (WOODWARD, 2004, p.59)

120

expandem com muita agilidade nos dias atuais, e penetram

todo o tecido social, possibilitando o chamado cenário digital.

De acordo com a autora,

vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (WOODWARD, 2000, p.55)

Decorre daí uma importância significativa do papel da

tecnologia como mediadora na constituição das

subjetividades, haja vista que ela figura como um importante

meio para as formas simbólicas, especialmente em tal cenário.

Em nosso entendimento, essa tecnologia terá seu

sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no

espaço por essas subjetividades. Além disso, consideramos

os meios – incluindo-se as novas TIC – não como fontes de

inovações em si, mas como mediações entre novas práticas

de comunicação [e informação] e transformações sociais (Cf.

121

MARTÍN-BARBERO, 2001). Esse conceito de mediação19 nos

ajuda a pensar que tecnologia e cultura não estão postas

como instâncias isoladas e estáticas que se refletem, mas

como dinâmicas que se influenciam mutuamente, portanto, se

ela – a tecnologia – é condicionante dessa cultura, é também

condicionada por ela, e ainda, pressupõe a cultura como algo

que se transforma constantemente nos e através dos meios.

Nesse cenário ambivalente da atualidade, a identidade é

um construto, simbólico e social, fabricada pela marcação da

diferença, que ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos

de representação quanto por meio de formas de exclusão

social (Cf. WOODWARD, 2000, p.39). Nesses processos de

fabricação de novas identidades, contudo, na pós-

modernidade, não se encontram mais o sujeito como ser fixo,

coerente e estável, aquele sujeito unificado e centrado que

estabilizava o mundo social, antes, temos aí o sujeito

fragmentado, marcado pelas incertezas. Esse deslocamento

19

Conforme Santaella, “embora sejam responsáveis pelo crescimento e multiplicação dos códigos e linguagens, meios continuam sendo meios. Deixar de ver isso e, ainda por cima, considerar que as mediações sociais das mídias em si [estendemos também para as novas TIC] é incorrer em uma ingenuidade e equívoco epistemológicos básicos, pois a mediação primeira não vem das mídias, mas dos signos, linguagem e pensamento, que elas veiculam”. (SANTAELLA, [1992] 2000, apud SANTAELLA, 2003, p.116-117)

122

produz novas formas de posicionamento20 e provoca

mudanças nos conceitos de sujeito e de identidade.

Segundo Hall, a identidade “permanece sempre

incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo

formada”, através de processos inconscientes. Por isso, em

lugar de falar da identidade como uma coisa acabada,

deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo

em andamento” (HALL, 2004, p.38). Identificar-se, como

podemos deduzir, é identificar-se com a falta do outro e,

portanto, dividir-se. A identidade não surge da plenitude

interior do indivíduo, mas da falta a ser preenchida pelo nosso

exterior – um exterior atravessado pela novas TIC.

Para dar conta do sentido sempre inacabado da

identidade, alguns teóricos recorrem ao conceito de différance

elaborado por Derrida, pois para este autor, na leitura de

Woodward, “o significado é sempre diferido ou adiado; ele não

é completamente fixo ou completo, de forma que sempre

existe algum deslizamento” (2000, p.28). Assim, a identidade é

um tornar-se e aqueles que a reivindicam não se limitam a ser

posicionados por ela: “eles seriam capazes de posicionar a si

próprios e de reconstruir e transformar as identidades

históricas, herdadas de um suposto passado comum”.

(WOODWARD, 2000, p.28)

20

Hall argumenta que o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica. (Cf. Woodward, 2000, p.27)

123

Todavia, no que se refere à leitura, se tomarmos como

pressuposto que todos os sujeitos-leitores lêem da mesma

maneira e não considerarmos a heterogeneidade desses

sujeitos, bem como dos textos lidos e dos sentidos

produzidos, estamos ao mesmo tempo desconsiderando os

processos identitários nos quais esses sujeitos se constituem.

Pois, esses processos são construídos ao longo da vida do

sujeito-leitor e são marcados pela diferença, conforme propõe

Woodward, ao postular que a identidade “não é o oposto da

diferença: a identidade depende da diferença” (2000, p.40).

Sendo a diferença condição básica para a construção da

identidade na própria configuração do sujeito, seja ele leitor ou

não, o outro já o constitui.

Portanto, as identidades são multiplamente construídas

ao longo dos discursos, das práticas e posições que podem se

cruzar ou ser antagônicas. Nesse sentido, pensando na leitura

como uma prática social21 de significação, embrenhada nas

redes discursivas, podemos entender, juntamente com

Coracini, que,

ler pressuponha um sujeito que produz sentido, envolvendo-se, dizendo-se, significando-se, identificando-se, abrindo espaço para a subjetividade e para a

21

Para Woodward (2000, p.33) toda prática social é simbolicamente marcada. Entendemos a leitura como prática social, uma vez que a linguagem o é. Sendo assim, como dissemos outrora, estudando a linguagem (e, portanto, a leitura) estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constitutiva e constituinte.

124

heterogeneidade que vez por outra rompe a barreira porosa e opacificante das palavras e se deixa representar, de modo imprevisível, pela linguagem

22.

(CORACINI, apud GALLI, p.6)

A leitura, assim, torna-se uma forma de identificação e

de construir identidades que deixa entrever o sujeito por meio

da linguagem, permeado que é pela alteridade e pela

fragmentação, não nos esquecendo que esse sujeito é sempre

historicamente situado. E a partir do momento em que há a

valorização da alteridade e da ideia de construção provisória

da identidade por meio da linguagem, e nesse caso, a leitura

está subtendida, não se pode negar a relação intercambiante

entre sujeito-linguagem (pois ao se dizer o sujeito se diz),

sujeito-mundo (ao representar ele se representa) e sujeito-

sentido (ao significar ele se significa), envoltos e

movimentando-se no limite da ambivalência, não nos

esquecendo que essas relações de linguagem.

Ler não pressupõe simplesmente um conhecimento

consciente do uso da linguagem; antes, constitui momentos

importantes de produção de sentidos que só ocorrem como

22

Conforme Coracini (2003a, p.113), se esse sujeito é internamente múltiplo, heterogêneo, clivado, não nos é possível falar de identidade como algo acabado, estável e fixo. Por isso, a identidade é ilusória e só existe como construção imaginária. Nós somente podemos captá-la por irrupções esporádicas no fio do discurso, quando o sujeito deixa, de forma inconsciente, resvalar a sua heterogeneidade.

125

consequência de uma série de identificações que pressupõem

um investimento do sujeito na linguagem.

No entanto, a leitura, contemporaneamente, encontra-se

enredada com outros espaços que configuram um novo local

para o texto e novas textualidades, possibilitados pelas novas

TIC. Esses novos espaços, promovidos pelas novas TIC, têm

proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de

significação e de representação, o que implica, para o sujeito-

leitor, o aumento de possibilidades de assumir, negar e

reivindicar identidades diferentes a cada circunstância

deparada, a cada texto que se lhe dá à leitura. Em nosso

entendimento, o espaço em que a textualidade ( digital)

aparece tem significação , tem materialidade e não é

indiferente em seus distintos modos de significar.

Também, devemos atentar, conforme propõe Santaella

(2003), para a relação da cultura contemporânea, mediada

pelas novas TIC, com a linguagem, na constituição de novas

posições para o sujeito, isto é, novos lugares na rede da

comunicação, e acrescentamos, da interação social. Pois

essas formas de subjetivação na era digital reclamam por

novos olhares.

Pensemos, então, nessa relação tecnologia-leitura-

subjetividade com o auxílio de um material que conseguimos

por meio de uma busca efetuada na internet, em junho de

2008, no banco de imagens do Google, no qual digitamos a

126

expressão “sujeito-leitor+tecnologia”, no sistema de busca do

site. Todavia, chamamos a atenção para o fato de que esse é

apenas um estudo exploratório, no sentido de que não

pretendemos obter, a partir dele, grandes generalizações ou

formulações que possam ser estendidas indiscriminadamente

a outros casos. Antes, trata-se de uma tentativa de por em

prática o poder explicativo das teorizações que tecemos e

assim problematizar algumas questões. Ainda é preciso

ressaltar que a mesma peça publicitária foi analisada por

Nunes (2005) em um artigo sobre inclusão digital, dessa

autora aproveitamos a nomeação de sujeito-leitor tecnológico

por ela cunhada.

Feito essa ressalva, passemos ao material:

127

Figura 1: Folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná

23.

A peça publicitária acima chamou-nos a atenção não só

pela configuração do que ela diz, como também e,

principalmente, pela forma como diz. Em formato retangular,

traz em um segundo plano, a imagem de um rosto sem

qualquer designação de gênero, podendo ser de um jovem ou

de uma jovem, o qual fita diretamente o interlocutor. À sua

frente, em primeiro plano, ocultando e ocupando o lugar de

23

Comitê de Democratização da Informática do Paraná é uma organização não-governamental – que faz parte de uma rede presente em dezenove estados brasileiros e em oito países.

128

sua boca, há uma janela de navegação na internet24 com suas

ferramentas de navegação: voltar, avançar, atualizar, início,

preencher, imprimir e correio, janela essa que funciona como

uma tarja preta, tendo em vista que essa janela, além das

ferramentas citadas, tem seu corpo – onde geralmente

aparecem os textos digitais25 – preenchido pela cor escura,

sem imagem ou palavra alguma. Abaixo e fora dessa janela

de navegação, há, em tom imperativo, os seguintes dizeres:

“Quem não conhece informática, não tem vez. Nem voz”.

Notamos de início a interdição da fala daquele/a que

aparece na imagem, o/a qual tem em seu rosto, a substituição

da boca por um mecanismo eletrônico – a janela de

navegação. Todavia, esse mecanismo apresenta as

ferramentas para seu funcionamento, mas falta-lhe quem as

coloque em movimento e funcionamento: o sujeito que saiba

operá-las. Interdição porque, numa sociedade permeada, ou

diríamos atravessada, pelas novas TIC, não saber operá-las,

a julgar pela peça, é não ter acesso às formas de informação

e nem às formas de sociabilidade possibilitadas por ela. Enfim,

é não ingressar no processo constitutivo de sentido

possibilitado por esse meio, é não ser seu sujeito.

24

É possível saber que se trata de uma janela de navegação não apenas pelo formato característico, mas pelo endereço eletrônico que apresenta na parte superior do browser: www.cdipr.org.br . 25

Geralmente designados de hipertextos, no entanto, entendemos que nem todos os textos digitais são hipertextos. Exploraremos essa questão no tópico seguinte desta dissertação.

129

Diferentemente da fala, que no indivíduo é um

mecanismo físico, o direito à fala é estabelecido em relação à

posição ocupada pelo sujeito no discurso, e tem a ver com as

relações de poder estabelecidas em uma cultura. E, no caso

da peça, tem direito à fala “apenas os que conhecem

informática”, ou seja, os que se tornam leitores26 de sua

textualidade digital. Tendo em vista que as relações de poder

são muito importantes na construção de subjetividades, e

decorrentemente, de identidades, Woodward nos alerta que

“todas as práticas de significação que produzem significados

envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir

quem é incluído e quem é excluído” (2000, p.18-19). E, assim,

essas relações de poder, em nosso exemplo, ajudam a definir

uma subjetividade adequada à textualidade digital, que

chamaremos aqui de sujeito-leitor-tecnológico, aproveitando a

nomeação empregada por Nunes (2005).

Mas partindo do pressuposto de que a linguagem e,

como manifestação desta, a leitura, significa e, por isso, nos

significa, não podemos nos esquecer, que falar ou ler é estar

no sentido com as palavras – ditas, não ditas ou a se dizer –,

pois elas significam e nos relacionam com o mundo, com as

26

Muitos podem não escrever, isto é, tornarem-se autores, nos espaços de fluxos, ou ambientes virtuais, mas fatalmente, tornar-se-ão leitores da textualidade aí disposta, uma vez que tal imperativo funciona como porta de acesso a esse espaço, mesmo que essa leitura seja apenas “intuitiva”.

130

coisas, com as pessoas, e com nós mesmos. Constituem

nossa subjetividade, produzindo sentidos. E dar sentido é

considerar o lugar da história e da sociedade. É, também,

aceitar que se está sempre no jogo da produção, na relação

entre as diferenças e as relações de poder que entram na

constituição do sujeito. Portanto, o apetrecho técnico que

funciona como uma tarja preta à frente da boca do/a jovem

interdita não só suas palavras, mas sua relação plural com os

sentidos e com o mundo, interdita o acesso à leitura, por falta

de domínio das ferramentas que possibilitam acessar os

textos digitais.

A produção da subjetividade que aqui nos interessa, qual

seja a do sujeito-leitor-tecnológico, na peça, não tem outra

saída: ou aprende a dispor do recurso técnico, que possibilita

o acesso à textualidade em questão, ou estará condenada a

“não ter voz nem vez” e, assim, à nulidade. Não há opção. E

isso é válido para qualquer pessoa, haja vista a indefinição do

pronome “quem” utilizado no enunciado.

A autora Woodward nos lembra que,

os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (WOODWARD, 2000, p.17)

E ainda, que

só podemos compreender os significados envolvidos nesses sistemas [de

131

representação] se tivermos alguma ideia sobre quais posições-de-sujeito eles produzem e como nós, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. (WOODWARD, 2000, p.17)

Nesse caso, as posições-de-sujeito produzidas são: a do

incluído – em nossa perspectiva, o sujeito-leitor-tecnológico –

criando para isso uma identidade, a do/a jovem esperto/a que

não “fica de fora do barco tecnológico e se torna seu

navegante”, e, inevitavelmente, a do excluído digital, aquele

que não está apto a “embarcar nesse navio”. O incluído, ou

seja, aquele que “conhece informática” e é capaz de ler sua

textualidade, tem acesso ao dizer e por isso pode se dizer. Em

contrapartida, aquele que não a conhece, é interditado,

barrado, e, por isso silenciado27. No entanto, não podemos

nos esquecer que toda subjetividade é construída sempre em

relação ao outro, pois o outro é constitutivo do eu. Decorre

daí que podemos, então, concluir que o excluído, o não-

sujeito-leitor-tecnológico, é o exterior constitutivo do incluído, é

o seu outro. E ambos convivem juntos no mesmo mundo que

agrega e segrega pessoas por meio das novas TIC e por meio

de seus discursos.

27

Lembrando que Orlandi (1992) chama a atenção para o fato de que o silêncio também produz sentido, também é significativo no dizer.

132

Nesse sentido, ao mesmo tempo que a peça, como

forma de representação, define, com seu discurso, que tipo de

sujeito devemos ser e como devemos ocupar essa posição-

de-sujeito em nossa cultura atravessada pelas novas TIC, não

podemos ignorar o papel ativo da instância de recepção, a

qual não absorve simplesmente os sentidos que lhe são

criados e essas posições. O sujeito da instância da recepção

está constantemente estabelecendo negociações de sentido

em seu contexto de mediações simbólicas. E, por esse motivo,

uma vez que tomamos o pressuposto da heterogeneidade

como constitutiva não só da linguagem28, mas também, da

tecnologia e da subjetividade, não nos é possível entender a

inclusão ou a exclusão como um estar dentro ou um estar fora

de um sistema ou do que se prega desse sistema, conforme

propõe a campanha. Por meio da heterogeneidade é possível

visualizar que somos inevitavelmente, de alguma forma,

incluídos e excluídos ao mesmo tempo. Além disso, a inclusão

pode abrir a possibilidade de subverter as relações de poder

28

Authier-Revuz, no livro, Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer, explora com propriedade a constituição heterogênea da linguagem, todavia, no que tange ao universo da linguagem digital, tão fortemente atrelada à questão das novas TIC, deparamo-nos com mais uma forma de heterogeneidade: aquela que diz respeito à tradução dos dados (sejam eles letras, números, som, imagem, vídeo, etc.) inseridos no computador, para uma mesma linguagem, a codificação digital em bits, que é a linguagem processada pelo computador. E que, transcodificada, é devolvida a nós na sua forma original, o som como som, a imagem como imagem, a escrita como escrita, por exemplo.

133

que tentam homogeneizar todos os incluídos – como tendo

vez e voz –, bem como homogeneizar todos os excluídos –

destituídos de vez e voz –, impondo-lhes, assim, as

necessidades do outro – qual seja, a interpelação social ao

consumo, simbólico ou material, das novas TIC. Interpelação

esta que, muitas vezes, apagam as diferenças em uma

tentativa de ação homogeneizadora da sociedade. Em outras

palavras, incluir-se envolveria, ao mesmo tempo, ter contato

com a demanda do outro, e, a partir de então, negociar,

estabelecer-se e transformar-se, elaborar as suas próprias

demandas e não simplesmente as aceitar passivamente.

Tomamos emprestado de Canclini (2005) uma afirmação

feita por ele relativa à globalização, e a transpusemos para o

contexto de nossa análise por julgarmos que em certa medida

ela nos serve bem. O autor, ao afirmar que, nos dias de hoje,

as diferenças e as desigualdades deixam de ser fraturas a

superar, diz que esses termos foram substituídos por dois

outros: inclusão e exclusão. Nas palavras de Canclini o

predomínio deste vocabulário significa que:

A sociedade, antes concebida em termos de estratos e níveis, ou distinguindo-se segundo identidades étnicas ou nacionais, agora é pensada com a metáfora da rede. Os incluídos são os que estão conectados; os outros são os excluídos, os que vêem rompidos seus vínculos ao ficar sem trabalho, sem casa, sem conexão. (CANCLINI, 2005, p.17)

134

Em nosso caso, os excluídos e, por isso,

“desconectados”29 da rede perdem até mesmo seu direito de

dizer e assim “não terão vez” na sociedade – ou será porque

não têm vez, não poderão dizer e dizer-se – tem seu espaço

de fala invadido pela tonalidade escura da janela de

navegação numa possível alusão à sua desconectividade.

Não ler o digital é estar desconectado do mundo. “Ou [o

sujeito] se adéqua às tecnologias de comunicação [e de

informação], ou está fora da possibilidade de pluralizar

sentidos e percepções” (NUNES, 2005, [s.p]), na pós-

modernidade. Parece que poderíamos, até mesmo, empregar

aqui a proposição parodística formulada por Kenneth Gergen

– da qual nos dispensaremos de comentá-la – em que o autor

propõe: Estou conectado, logo existo. (apud SANTAELLA,

2007, p.231)

Mas, se adaptar-se ao digital é inserir-se, organizar-se

numa rede de informações e de sociabilidade, como dissemos

anteriormente, podemos pensar mais uma vez nas teorizações

de Bauman (1999a) no que diz respeito a inovações

tecnológicas contemporâneas. O autor as relaciona à

expansão capitalista e à categoria de consumo. Esta última é

por ele considerada como fator de referência e de organização

da sociedade pós-moderna. Em sua perspectiva, todas as

29

Usamos a expressão de Canclini, todavia, com certa ressalva, tendo em vista que nos posicionamos desde a abertura desta unidade a favor da não existência da possibilidade de exclusão total.

135

sociedades sempre consumiram, mas aquilo que caracteriza a

sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a

ênfase dada a esse consumo. Os membros da sociedade

moderna definiam suas redes de sociabilidade em torno da

capacidade de produção. Já na pós-modernidade, a

organização social se dá mais pela capacidade e pelo desejo

de consumir do que pelo que cada um de seus membros

produz.

Nesse âmbito, a tecnologia digital pode ser entendida,

em Bauman (1999a), como mais uma fonte de consumo. A

conexão de computadores através da Internet intensificou a

possibilidade de consumir e deslocou sua ênfase dos bens

materiais para o consumo de informação. Grande quantidade

de informação é consumida30 instantaneamente e a custos

baixos, independentemente do local onde é gerada ou

recebida. Então, podemos depreender a partir dessa

consideração que adentrar o universo da informática ou digital,

é consumir além de bens materiais representados pelos

artefatos técnicos, como por exemplo, dispositivos digitais e

meios de conexão à rede de internet; também os bens

simbólicos representados por bibliotecas digitais, ebooks,

softwares, websites, bancos de dados, enciclopédias on-line,

jornais on-line, serviços de compras, e muitos outros, e tudo

30

O que Santaella (2003, p.73) irá chamar de economia global informacional, designada por ela como a mais recente expressão da mobilização capitalista da sociedade.

136

isso enredados no formato de informação. Fato que contribui

para que alguns estudiosos designem nossa sociedade

contemporânea como sociedade de informação ou

informacional, como é o caso de Castells, no livro Sociedade

em Rede .

Parece-nos assim que, se tomarmos a tecnologia no

sentido de mediadora, podemos chegar a noção de que o

consumo das novas TIC – seja ele em forma material ou

simbólica – ou de seu discurso, é uma espécie de produção

da inclusão digital, e, por conseguinte, de produção do sujeito-

leitor-tecnológico. Pois essas novas tecnologias parecem

prometer um processo de transformação de um modo de ser,

num outro, visto que as informações estariam ao alcance de

qualquer um, bastando apenas ser um incluído digital, isto é,

um leitor da textualidade digital.

No entanto, não podemos enxergar o consumo de

informação como uma atividade pacífica e passiva por parte

do sujeito – higienizado de todo seu entorno sócio-histórico e

cultural – entorno este que é constituído pela mediação das

novas TIC. Pois, entendemos que esse sujeito estará no/em

constante fluxo de informação, não apenas a recebendo, mas

produzindo-a singularmente, em uma negociação constante

de sentidos os quais, por sua vez, são circunscritos pela

exterioridade, pelo outro. E é nesse jogo, muitas vezes tenso,

137

que as subjetividades, bem como as identidades, podem ser

constituídas e estabelecem-se.

Referência bibliográfica:

BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

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CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008.

CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.1.

CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.2.

CORACINI, Maria José (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Campinas: Pontes, 2002.

CORACINI, Maria José. Concepções de leitura na (pós-)modernidade. In: CARVALHO, Regina Célia; LIMA, Paschoal (Orgs.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado das Letras, 2005. p.15-44.

138

GALLI, Fernanda Correa Silveira. O sujeito-leitor e o atual cenário tecnológico e globalizado. Revista Letra Magna, ano 2, n.3, 2005. p.1-13. Disponível em: http://www.letramagna.com/Fernanda_Correa_Silveira_Galli.pdf. Acesso em: 11 jun./2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

HALL, Stuart. Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

NUNES, Maíra. Quem tem vez e voz? Revista Eletrônica Temática. Set/2005. Disponível em: < http://www.insite.pro.br/Artigo%20Ma%EDra%20inclus%E3o.htm>. Acesso em: ago/2008. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA; Tomaz Tadeu (org.). identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2004. pp. 7-72.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

139

VOZES E IDEOLOGIAS NA REPRESENTAÇÃO DE FÓRUNS MUNDIAIS:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES1

Magna Campos – UFSJ

Prof. Dra. Adelaine LaGardia – UFSJ

Resumo: O trabalho em questão versará sobre uma leitura de uma charge publicada no Jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2001. Tal leitura incidirá sobre a questão da ideologia à luz de alguns pressupostos de Karl Marx, e da releitura da teoria marxista efetuada por Louis Althusser e Stuart Hall. Na charge analisada, pode-se observar certa ironia quanto ao acontecimento de dois eventos em âmbito mundial, sendo eles o Fórum Social Mundial e o Fórum Econômico Mundial. No entanto, a leitura aqui pretendida levantará questões concernentes ao funcionamento da ideologia, de acordo com as posturas teóricas dos autores acima citados, e, para isso, será relevante considerar o contexto de produção a que a tal charge remete, bem como às estratégias discursivas e visuais implícitas na crítica veiculada.

O termo “ideologia” apresenta acepções diferenciadas de

acordo com a filiação teórica em que é empregado. Pode-se

dizer que se configura como uma trama de diferentes fios

conceituais, traçado por divergentes histórias, e, neste caso,

mais importante provavelmente do que tentar agrupar essa

polissemia em uma grande teoria global, seja determinar o

que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser

descartado.

1 Texto escrito em 2007.

140

Nesta vertente de estudo, é que este trabalho se filia na

tentativa de proceder a uma pequena leitura de uma charge

publicada no Jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2001.

Essa leitura será pautada em algumas considerações

concernentes ao funcionamento da ideologia, baseadas na

releitura efetuada por Staurt Hall sobre essa questão em Karl

Marx e em Louis Althusser, bem como no funcionamento do

discursivo da ideologia, conforme pressupostos da análise do

discurso. Desde já, adianta-se que tal leitura apresenta um

caráter exploratório sem pretender-se alcançar o caráter

exaustivo de análise, tendo em vista a característica do

gênero acadêmico a que se propõe: uma comunicação

coordenada. A fim de situar-se o arcabouço teórico no qual

essa leitura será pautada, será realizada uma pequena

exposição a respeito do tema ideologia em conformidade com

os autores mencionados.

Pode-se mencionar que um dos maiores

questionamentos no que se refere à temática da ideologia em

Marx, diz respeito à problemática deste autor ter considerado

a ideologia concernente apenas às relações econômicas – ou

seja, às questões que envolvem a produção/consumo de

mercadorias em uma sociedade capitalista. Marx atribuía as

origens das categorias espontâneas do pensamento burguês

na materialização comum às formas superficiais do circuito

capitalista. Esse pensador identificou, especificamente, a

141

importância do mercado e das trocas de mercado, onde as

coisas são negociadas e os lucros obtidos.

Para isso, primeiro estabeleceu, como fonte de ideias,

um momento particular do circuito econômico do capital.

Segundo, demonstrou como a tradução das categorias

econômicas para as ideológicas pode ser efetuada. E por

último afirma que as categorias ideológicas "escondem" a

realidade subjacente e as substituem pelas "verdades" das

relações de mercado. Neste posicionamento, ideologia passa

a configurar-se como de caráter ilusório e negativo.

Pode-se identificar tal tradução nos dizeres de Brandão

(2004) acerca das proposições teóricas de Marx. Segundo

Brandão (2004, p.21),

os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a “potência” dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias de seu domínio.

142

Já em Althusser, nota-se um grande avanço neste

aspecto ao tentar descrever as formas de disseminação,

perpetuação e reprodução da ideologia, não a “sufocando”

apenas em termos de economia. No entanto, a ideologia para

Althusser ainda é “a Ideologia”, assim mesmo, no singular,

fortemente atrelada a uma classe social específica: a

burguesia. Segundo essa linha de pensamento, às demais

classes sociais, caberia o papel de reprodução fixa da

ideologia de sua classe, eternamente subordinada aos

ditadores da ideologia: a classe dominante. Portanto, pode-se

conjecturar que se em Marx ocorre o reducionismo

econômico, em Althusser ocorre o reducionismo de classe.

Se em Marx o Estado é visto de forma unificada e como

instrumento de dominação de uma classe, fator, aliás, que

expõe o teórico a inúmeras críticas; em Althusser o Estado e,

por extensão, a própria ideologia, possui distintos modos de

ação, atuando em diferentes locais. O Estado althusseriano é

visto como pluricentrado e multidimensional, apresentando

como função a união e a articulação, em uma instância

complexa, de gama de discursos políticos e de práticas sociais

que, em diferentes locais, ocupam-se da transmissão e

transformação do poder. Portanto, há um deslocamento da

questão da instrumentalidade do Estado (Marx) para a de seu

funcionamento, repressivo ou ideológico (Althusser).

143

Ideologia, para Althusser, seria configurada como

representação, pois, para ele, não são as suas condições

reais de existência, seu mundo real que os “homens

representam” na ideologia; o que é nelas representado é,

antes de qualquer coisa, a sua relação com as suas condições

reais de existência. Em Althusser, a ideologia possui uma

existência material na prática ou práticas nos Aparelhos

Ideológicos de Estado, em outras palavras, a ideologia se

materializa nos atos dos indivíduos, portanto, Althusser não

separa o conhecimento das práticas.

Partindo desse pressuposto, tem-se uma outra

conclusão a que Althusser chega, trata-se de caracterizar a

função da ideologia como constituidora de indivíduos

concretos em sujeitos. Pois para ele só há prática através de e

sob uma ideologia e só há ideologia pelo sujeito e para o

sujeito. É com base nesse pensamento que Althusser pode

concluir que a Ideologia interpela os indivíduos enquanto

sujeito. Dessa forma, traça uma concepção mais linguística ou

discursiva para ideologia, tendo em vista que colocou em

discussão o fato de como a ideologia é internalizada pelos

sujeitos.

Pensar em sujeito interpelado acarreta pensar também

em um sujeito interpelador, e, segundo Althusser, tal papel

caberia aos Aparelhos Ideológicos do Estado que

reproduziriam a ideologia da classe dominante. Hall (2003b)

144

ensaia uma possível crítica à interpelação dizendo que se

trata de mera especulação afirmar que eles (mecanismos de

interpelação) fornecem as condições concretas e suficientes à

enunciação de ideologias historicamente específicas e

diferenciadas.

Ao contrário de Marx e Althusser, tem-se em Hall uma

concepção de ideologia, ou melhor, de ideologias capaz de

representar diferentes grupos e classes, que existe

materialmente nas práticas sociais e nos signos na forma de

discurso. A ideologia, neste sentido, figuraria como um

discurso sobre a realidade, o que fica mais fácil de

compreender se considerar-se o fato que só é possível ter

acesso à realidade por meio do discurso que a organiza.

Seriam as ideologias como representações possíveis da

realidade por um grupo, que dão sentido às suas práticas.

Stuart Hall (2003) considera a ideologia como inerente ao

próprio ato de representar/significar e codificar/decodificar.

Pode-se, então, conceber ideologia como um discurso

que “empregado” por uma classe ou grupo social – o que

significa que estes discursos não são nem necessariamente

produzidos dentro destas classes ou grupos sociais, nem que

eles sejam reflexos destas classes ou grupos sociais –

organiza uma determinada representação da realidade e que,

ao refletir uma determinada posição, estabelece relações de

poder com as demais posições, com outras representações da

145

realidade, com outros discursos. Desta feita, não haveria,

segundo Hall, a obrigatoriedade da correspondência

necessária entre a classe socioeconômica e a ideologia.

Assim, um discurso seria ideológico quando classes e

grupos sociais o “empregam” para dar sentido ao modo como

a sociedade opera. Ressalta-se, no entanto, que nem todo

discurso, nem toda formação simbólica é ideológica, mas

somente o é, quando serve para dar sentido a algo que lhe é

externo, estabelecendo relações de poder - que são, de todo

modo, inerentes ao funcionamento dos signos, mas que não

são inerentes ao próprio objeto.

Tendo em vista esses apontamentos, passa-se agora

para a sua aplicação na leitura da charge, mencionada no

início deste trabalho, e impressa a seguir:

146

Fonte: Jornal Folha de São Paulo, veiculado em 27/01/2001

Nessa charge2, o sentido da expressão - Vamos invadir o

McDonald’s - só pode ser atribuído considerando-se o

contexto de produção a que a charge nos remete. O texto em

estudo remete-nos a dois contextos distintos sobre o mesmo

signo: fórum. No entanto, um refere-se a fórum social e outro a

fórum econômico, os dois, porém, em âmbito mundial.

Portanto, duas situações que, como podemos observar pela

própria charge, configuram dois sujeitos diferentes valendo-se

do mesmo enunciado: Vamos invadir o McDonald’s. Sujeitos

2 Também usada pela professora Dra. Maria José Rodrigues Faria

Coracini, da Unicamp, em um texto de sua autoria.

147

esses que perspectiva althusseriana seriam interpelados pela

ideologia.

Numa perspectiva discursiva, pode-se dizer que os

enunciados mudam de sentido segundo as posições

sustentadas por aqueles que as empregam, uma vez que tais

enunciados estão inseridos em uma determinada formação

discursiva, o que quer dizer que é a partir de uma posição

dada, numa conjuntura específica, que se pode determinar o

que pode e deve ser dito. Sendo assim, infere-se que

formações discursivas significariam para Marx o conteúdo das

formas ideológicas, a expressão do ideal das relações

materiais dominantes, sendo o seu conteúdo dado pela classe

que, por deter os meios de produção, o material, detém

também os meios de produção intelectual.

Se considerar-se o preceito da correspondência

necessária entre classe socioeconômica e ideologia, tem-se

que a formação discursiva funcionaria como uma espécie de

“camisa de força” que circunscreveria o sentido a uma única

possibilidade. No entanto, relativizando-se essa situação e

aproveitando a proposta de ideologia sugerida Hall (2003),

haveria a possibilidade de poder ou não haver

correspondência, o que tornaria possível sair-se do patamar

da obrigatoriedade para o de evento, com isso a formação

discursiva apontaria para alguns sentidos possíveis e

silenciaria outros, mas não os negaria.

148

Veja-se o contexto de produção a que cada um dos

enunciados nos remete:

o primeiro enunciado é proferido pelos

participantes do Fórum Social Mundial (realizado

em Porto Alegre-RS) que são contrários à

globalização, à política do neoliberalismo, aos

países ricos,

o segundo, pelos participantes do Fórum

Econômico Mundial (realizado na Europa ou

USA) que reúne representantes dos países mais

ricos do mundo liderados pelos USA.

Vê-se, então, que se tratam de duas formações

discursivas antagônicas em que os sujeitos que falam, falam

de posições políticas, sociais, ideológicas diferentes. Dessa

forma os enunciados, apesar de gramaticalmente idênticos,

apresentam sentidos diferentes.

No Fórum Social Mundial, a ideologia marxista ligada à

luta de classes “impele” os sujeitos à luta e, neste sentido, o

termo invadir significa ocupar pela força, tomar posse3. Daí o

uso, na charge, de imagens de foices e bandeiras e até

mesmo de dupla exclamação ao fim do enunciado, dando esta

uma ideia de grito. Já no Fórum Econômico Mundial, o cenário

é outro, em lugar da balbúrdia do primeiro, há apenas dois

sujeitos, cujos vestuários remetem a condições sociais e

3 Conforme dicionário eletrônico Houaiss.

149

econômicas bem distintas da primeira imagem. Neste caso,

precedido de outro enunciado - que fome - que ajuda na

produção do sentido do enunciado, o termo invadir agora se

refere no sentido mais coloquial de ir para.

No entanto, os dois enunciados referem-se ao mesmo

local: McDonald‟s, símbolo do neoliberalismo e da dominação

americana. Aliás, um dos ditames do Fórum Social Mundial

questiona o chamado Primeiro Mundo e a hegemonia dos

valores da sociedade norte-americana como o modelo ideal a

ser seguido. Assim, observa-se que na charge em questão, é

ainda o conceito marxista de ideologia que está em jogo de

formação discursiva como determinante do sentido dos

enunciados.

Referências bibliográficas:

HALL, Stuart. Significação, representação, ideologia: Althusser e os debates pós-estruturalistas. In: ______.Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a.p.160-198. HALL, Stuart. O problema da ideologia: o marxismo sem garantias. In: ______. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003b. p.265-293.

BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora Unicamp, 2004.

150

UMA BREVE LEITURA DO FILME QUIS SHOW: A

VERDADE DOS BASTIDORES1

Magna Campos – UFSJ

Prof. Dr. Guilherme Rezende – UFSJ

O filme narra uma história, baseada em fatos reais, sobre

um programa de televisão do tipo Perguntas e Respostas. O

enredo acontece na década de 1950, nos Estados Unidos, e

versa sobre o programa da NBC chamado de 21 o qual se

dizia um jogo isento de manipulações e sem a interferência de

seus produtores. Para ganhar o respeito de seus

telespectadores, as perguntas e respostas do programa eram

guardadas e um cofre “acima de qualquer suspeita”, pois essa

era a afirmação ostentada no anúncio e propaganda do

programa, cria-se, assim, o elemento – credibilidade – do

jogo.

O filme mostra, logo no início, o apresentador do programa

se preparando para entrar em cena e repassando o texto de

suas falas. Neste ponto, percebe-se que o apresentador tenta

imprimir um ar emotivo e, ao mesmo tempo, de naturalidade

daquilo que fala, tentando, assim, levar ao público a falsa

impressão de fala real, sem texto, sem “decoreba”. Neste

papel, pode-se dizer que o apresentador configura-se num

1 Texto escrito em 2006.

151

ator que é responsável pela mediação entre o “21” e a plateia

local e a de casa. Essa preocupação com a suposta

naturalidade ainda pode ser percebida na ordem para que os

participantes do jogo, os concorrentes, cumprimentem o

apresentador sempre pelo primeiro nome.

Herbert, um dos participantes do jogo, de origem judaica,

representante do que poderíamos chamar de classe operária,

após algumas vitórias, não mais despertava grande interesse

dos telespectadores e o programa encontra-se numa fase de

estagnação de audiência. Tal personagem é representado no

filme de uma forma um pouco caricatural, pois traja sempre

um terno desajustado, exibe uma falha na arcada dentária que

torna grosseiro seu sorriso; fato, aliás, que muito perturbava

ao personagem, fissurado na ideia de recapear o tal dente e

melhorar não só sua imagem, mas também, mas também, no

entender dessa personagem, capaz de lhe conferir status

social. Hebert ainda representa um desajuste na ordem

natural do programa, uma vez que fala entre as falas do

apresentador e desconcerta-o em seu “texto-pronto-natural”.

No entanto, essa fala de Herbert é sempre sobre um tema

pontual: GERITOL, produto patrocinador do programa em

questão.

Desde a caracterização do personagem-jogador, Herbert,

vê-se um fator subversivo sendo construído, pois toda essa

caricatura indica em seus interstícios que embora

152

desajustado, desalinhado, esse dito gênio do programa traz

em sua própria condição os elementos da anarquia, da

rebelião contra a ordem do silenciamento-humilhante que lhe

é imposto pela organização do programa, quando estes,

valendo-se de uma tática para alavancar a audiência do

programa, aceitam-recrutam um novo e perfeito concorrente-

jogador.

Charles Van Doren surge no filme depois de ser delineado

para os telespectadores, agora do filme e não do Programa

21, como um rapaz inteligente, culto, capaz de responder às

questões propostas pelo programa e que se sente atraído pelo

tal jogo.

Ao procurar um desses programas em que se conseguia

ganhar algum dinheiro por meio do conhecimento-estudo que

possuía, Charles é “recrutado” pelos dois diretores do

Programa 21 que viram no rapaz exatamente a imagem do

novo “personagem-jogador-garoto-propaganda” que

precisavam.

Diferentemente de Herbert, Charles era bem apresentável,

com cabelos, barba e terno alinhados. Ostentava um sorriso

simpático, sem a “mancha” de uma falha dentária, tal qual o

concorrente. Era professor universitário, com alta formação

literária e oriundo de uma família reconhecida por seus

méritos intelectuais. Seu pai havia ganhado um prêmio

reconhecido de poesia e seu tio era um historiador renomado.

153

Tanto que, logo de início, seu sobrenome é ostentado e

repetido pelos diretores do programa.

Para dissuadi-lo a participar do programa e a cooperar

com direção, os organizadores usam a causa da educação

como justificativa até mesmo de atos ilícitos, como o de

receber as respostas das questões a fim de que o “mocinho”

permanecesse o tempo que lhes aprouvessem no programa.

Fator recusado por Van Doren inicialmente, mas que, a partir

da primeira vitória, parece ter se tornado comum ao

personagem.

Os conflitos têm início quando Herbert recebe a notícia de

que para ele o jogo acabara e que deveria errar uma das

questões do programa seguinte, justamente o que disputaria

com Van Doren. Não bastasse a queda repentina, ainda teria

que se humilhar errando, exatamente, uma questão que seria

de fácil resposta. Ou seja, cria-se o cenário da rebeldia, pois

além da exclusão, haveria também a humilhação pública.

É interessante observar alguns signos visuais que auxiliam

na encenação do desafio intelectual que são apresentados no

programa, tais como: posição de palco, o ritual de limpar o

suor, a pausa respiratória, o desligar do ar-condicionado, o

olhar introspectivo antes das respostas e mesmo o sorriso

aliviado da resposta correta. Tudo isso escapava aos olhos

até mesmo da plateia, programada para aplaudir e sorrir,

154

presente no estúdio-cenário de gravação do jogo, utilizada

também como fiscal da segurança do jogo.

Durante o filme, podem-se perceber várias cenas em que

patrocinador, diretor, organizador e toda a cúpula da televisão

valem-se da comunicação interna para deliberar sobre os

rumos do programa na hora mesma em que o jogo estava

sendo transmitido. Fator de crítica à mercantilização, latente

do filme.

O jovem e bem quisto Van Doren, assusta-se ao ver que

sua primeira vitória foi manipulada e sai meio transtornado do

estúdio com o fato, recusando-se a descer no elevador

juntamente com aqueles que sabia ter armado toda a vitória.

Curiosamente, ele que se recusara, em um primeiro

momento, a fazer parte dessa falcatrua se vê enredado pala

trama, pelo dinheiro e pela fama que tal vitória lhe

proporciona. Nesse sentido, seria possível apontar a escada

que ele escolhe descer sozinho, ao recusar descer de

elevador, como uma metáfora, via consciente da “decadência

moral”. A descida durante a qual o suor é real e a busca de

uma justificativa para aliviar-se do peso da consciência era

buscada e encontrada: tudo isso pela causa da educação!

O novo ganhador facilmente se torna o novo garoto

propaganda do anunciante e patrocinador do programa e

também se torna o novo herói para o qual os telespectadores

torcem ansiosamente e admiram-no por sua inteligência.

155

Revoltado com a humilhação que lhe fora imposta, Herbert

tenta mover uma ação contra o programa, o que não é levado

muito a sério, nem mesmo pela diretoria que tenta silenciá-lo

simplesmente para enterrarem o assunto e não por se sentir

realmente ameaçada.

Eis que surge no filme um personagem crucial, um jovem

advogado de uma subcomissão do congresso, que atraído por

uma pequena nota em um jornal sobre o processo contra o

programa convence seus superiores em liberá-lo para

pesquisar a respeito, em New York, onde é gravado o

programa.

Apesar da grande dificuldade em descobrir informações, o

advogado consegue por meio de Herbert, alguns dados que

foram cruciais para suas investigações, mesmo lhe parecendo

um tanto quanto insólitos, pela própria configuração das

informações que lhe foram repassadas por um personagem

atordoado pelo silenciamento que lhe fora imposto tanto pela

televisão, quanto pela justiça, o caricato Herbert.

Mas, mesmo o advogado, sente-se atraído pela imagem

de rapaz honesto que Van Doren ostentava. Assustado e

atordoado com as investigações Van Doren tem cada vez

mais noção da falta de ética de seus atos; a popularidade

agora se configura como um “peso” e esse fantasma volta a

perseguir-lhe, embora tivesse sido exorcizado anteriormente

naquela escada, já mencionada neste texto.

156

Tentando aliviar-se, Van Doren propõe a diretoria que não

lhe dessem as respostas, dessem-lhe apenas as perguntas e

que ele mesmo fosse o responsável pelas respostas. Talvez

para tentar sentir-se menos culpado na situação. Ainda assim,

o professor universitário não aguenta a forte pressão

psicológica e resolve “cair fora” do jogo, errando, por escolha

própria uma questão que também sabia a resposta.

Descoberta a trapaça do programa, Van Doren continua

com a imagem de bom moço, vítima da difamação que lhe era

imputada, todavia, pela sua própria formação moral e

configuração familiar não suporta mais a mentira e resolve

apresentar-se ao júri especial e não dá um depoimento,

propriamente dito, visto que enuncia sua declaração

antecipadamente e assume publicamente que recebia as

respostas das questões, tal qual os outros concorrentes

também deviam tê-las recebido.

No entanto, Van Doren, doutor em Literatura, usa de

metáforas para assumir e relatar seus erros, fator que jamais

seria colocado na boca de outro personagem como Herbert,

por exemplo, a quem coube a desmedida e a caricatura. Van

Doren, personagem que no auge do sucesso encantou-se

com a fama, o reconhecimento e com a fortuna, vira seu

mundo transtornado e restaram-lhe as metáforas para se

desculpar com todos aqueles que torceram, admiraram e se

espelharam nele.

157

O filme termina com o desolamento do advogado em

perceber que o verdadeiro alvo de suas denúncias, a

televisão, esquivara-se e saíra ilesa das acusações, recaindo

sobre “pobres mortais” as punições pelo grande jogo de poder

entre televisão e mercado.

As legendas finais aludem à continuidade da televisão,

com um pequeno e consertado arranhão na imagem e com a

marcação cicatrizante deixada na história-carreira dos

personagens do jogo, que nunca passara da ilusão de um

jogo, ilusão, aliás, que faz parte da rotina dos telespectadores

e, para lembrar Bourdieu, que configuram “os mecanismos

anônimos, invisíveis [...] que fazem da televisão um formidável

instrumento de manutenção da ordem simbólica” (1997,

p.20)2.

***

2 BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Tradução Maria Lúcia

Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.