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WALTER LIMA TORRES NETO

LIVRO: ENSAIOS DE CULTURA TEATRAL (Prefácio de Marta Morais da Costa)

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WALTER LIMA TORRES NETO

Conselho Editorial

Av. Carlos Salles Block, 658Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21

Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-10011 4521-6315 | 2449-0740

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©2016 Walter Lima Torres NetoDireitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra

pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a

permissão da editora e/ou autor.

N4699 Neto, Walter Lima TorresEnsaios de Cultura Teatral/Walter Lima Torres Neto. Jundiaí, Paco Editorial: 2016.

304 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-462-0457-1

1. Dramaturgia 2. Teatro 3. Cultura 4. Sistema teatral.I. Neto, Walter Lima Torres.

CDD: 792

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

Foi Feito Depósito Legal

Índices para catálogo sistemático:

Teatro 792

Cultura e instituições 306

Profa. Dra. Andrea DominguesProf. Dr. Antônio Carlos GiulianiProf. Dr. Antonio Cesar GalhardiProfa. Dra. Benedita Cássia Sant’annaProf. Dr. Carlos BauerProfa. Dra. Cristianne Famer RochaProf. Dr. Eraldo Leme BatistaProf. Dr. Fábio Régio BentoProf. Dr. José Ricardo Caetano Costa

Prof. Dr. Luiz Fernando GomesProfa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna Prof. Dr. Marco MorelProfa. Dra. Milena Fernandes OliveiraProf. Dr. Ricardo André Ferreira MartinsProf. Dr. Romualdo DiasProf. Dr. Sérgio Nunes de JesusProfa. Dra. Thelma LessaProf. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

Para Andréa

O fato é que a civilização dita “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como ela foi modelada ao longo de dois sé-culos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois maio-res problemas os quais sua própria existência fez surgir: o problema do proletariado e o problema do colonialismo.Aimé Cesaire. Discurso sobre o colonialismo, 1955

Sempre brigam comigo, me acusam e atacam quando digo essa frase, mas não posso deixar de dizer: o teatro, para o brasileiro, não é a mesma coisa que o canto para o italia-no, ou a música para o próprio brasileiro. O teatro não é o forte do brasileiro e não me queiram apedrejar por cau-sa disso. Forte do brasileiro é a música, a poesia, futebol.Zbigniew Marian Ziembinski, 1978

O teatro é uma arena de ideias e de criatividade que re-quer cultura e treino técnico e físico. Quem sabe quanto trabalho exige a estruturação de uma personagem, a cons-trução de um espetáculo? Alguém sabe que quatro anos de uma excelente escola de teatro são insuficientes para criar um profissional e que somente uma vida vivida para e pelo teatro constrói, consumindo-os, seres efêmeros chamados atores, diretores, cenógrafos, figurinistas, autores e músi-cos? – “Où sont les neiges d’antan?” Onde está a paixão que levava multidões aos teatros?Gianni Ratto, 1996

Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma eco-nomia territorializada, uma cultura territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. É desse modo que, gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se como um alimento da políti-ca dos pobres, que se dá independentemente e acima dos partidos e das organizações. Tal cultura realiza-se segun-do níveis mais baixos de técnica, de capital e de organiza-ção, daí suas formas típicas de criação.Milton Santos, 2000

Sumário

Prefácio – Refletores e reflexões sobre a cultura teatral 9

introdução – Teatro, sociedade e mercado 19

i – Cultura e prática teatral 41

ii – O dever da crítica 81

iii – O direito ao teatro 109

iV – O agente criativo 123

V – O termo dramaturgia, hoje 149

Vi – As coleções que marcaram época 165

Vii – O programa de teatro 187

Viii – O lugar no teatro 213

iX – A turnê e o tropeirismo teatral 235

X – O fracasso e o sucesso 249

Xi – O amor ao teatro 269

referências 285

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Prefácio

Refletores e reflexões sobre a cultura teatral

Marta Morais da Costa

Se a ilusão fosse inteira, perfeita e de duração contí-nua, deixaria de ser agradável [...] é a secreta compa-ração da arte rivalizando com a natureza que faz o en-canto do teatro. Louis-Sébastien Mercier, 1740–1814

O que dizer de um livro de ensaios, organizados pelo fio con-dutor da cultura teatral, e que se desdobra no estudo minucioso de componentes diversos do teatro? Como abranger em rápido prefá-cio aspectos tão intrínsecos à arte como a crítica, os agentes criati-vos, a dramaturgia, os livros especializados, os fracassos e sucessos, os programas das peças representadas, a espacialização do palco e dos edifícios, as peregrinações dos elencos e a relevância dos fatores materiais e econômicos da arte? O empreendimento de síntese tem um quê de ousadia e muito de destemida pretensão. Entretanto, vozes fracas e anônimas, diz a Nova História, também venceram batalhas e fizeram acontecimentos. Portanto, içando âncoras e en-funando velas, lançar-me-ei neste mar vasto e desafiador de um prefácio a um livro tão diverso e com tantas contribuições para o conhecimento do teatro, em especial o do Brasil.

Em terra de uma arte sempre em crise, como o teatro brasilei-ro, a atividade complexa e sistêmica da cultura teatral pode contar com as contribuições da academia universitária para trazer luzes de informação e esclarecimento sobre obstáculos e sucessos, em es-pecial no seu desenvolver histórico. Este propósito se confirma nas páginas crítico-avaliativas de Walter Lima Torres Neto em “Ensaios de Cultura Teatral”.

Nesta apreciação do livro, ressalto o enredar-se do trabalho do cientista a pensar seu tempo, enlaçado pelas palavras do conheci-

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mento – atributo das lides universitárias – com a vivência próxima do teatro feito e vivido seja em busca do lucro, ou em perene ex-plicação do mundo e da vida, ou, ainda, nas asas de um amor ora acasalado, ora em processo de separação.

Enquanto dramaturgia, o teatro tem uma natureza interpre-tável, como defendeu Louis Jouvet. Mais do que isso, as várias linguagens de que se compõe um espetáculo teatral, polimorfo e plurilinguístico, permitem desdobráveis interpretações. Não por serem múltiplas apenas, mas por surgirem de linguagens diferentes; por proporem vias de acesso diversas entre si; por se manifestarem em objetos a requisitar repertórios de leitura acumulados em exer-cícios de análise apoiados em códigos de comunicação variados. Os mesmos pressupostos teóricos aplicáveis à linguagem verbal do texto dramático pedem alteração quando o leitor se depara com a visualidade do texto espetacular, ou com o grafismo dos progra-mas, ou com a complexidade do texto gestual-cinético-verbal da interpretação do ator ou a espacialidade dos palcos. Até mesmo ao considerarmos apenas a linguagem verbal, como se fazem diferen-tes os enfoques para tratar dos diferentes gêneros textuais, como o drama, a tragédia, a comédia, a crítica, as listas dos programas, as informações dos periódicos e assim por diante!

Não é de estranhar, portanto, que este volume de ensaios esteja ancorado em capítulos que desenham um arco tão amplo de inte-resses e de estudos no âmbito da arte teatral. A riqueza do livro está exatamente nesta abertura descritivo-analítica. Seu título já anun-cia essa amplitude por considerar a cultura teatral como foco de interesse e de discussão de seus elementos. Para tanto, Walter Lima Torres busca estabelecer de princípio o entendimento do que seja “cultura teatral” no primeiro capítulo: “poderia englobar um con-junto de condicionamentos e procedimentos, de regras, de técnicas artísticas (trabalho intelectual e esforço criativo) e estratégias co-merciais, elementos que estão em permanente atrito com tradições e inovações estéticas e que, juntos, objetivam a concepção, execução e posterior fruição de uma obra cênica, seja ela ficcional, representa-

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cional ou não.”. Posteriormente ele especifica os componentes dessa cultura, no seu entender: “agentes, valores, temas, instituições, pro-cedimentos criativos, processo de produção e comercialização do trabalho criativo”.

Tomarei como apoio alguns dos termos dessa definição para tecer rápidos comentários a respeito do que li com invulgar atenção e agrado. Em meu entender, o termo mais provocante dessa defini-ção de cultura é atrito. Desdobrando-o em vocábulos de significado próximo, acentuo o caráter de conflito, discussão, divergência, tu-multo, resistência. Desde Aristóteles, a noção de conflito aplicada ao teatro tem sido acolhida, praticada e renovada pelas mais dife-rentes estéticas do palco. Tomada como situação fulcral da drama-turgia, o conflito sustenta e determina de modo explícito a espe-cificidade da arte teatral quando comparada às demais expressões artísticas. O conhecimento da história do teatro tem demonstrado a alternância de estéticas que tomam o conflito como verdade axio-lógica – o realismo e o naturalismo, em especial – e outras em que a resistência consiste exatamente em romper e esgarçar esse conceito – o simbolismo e o teatro pós-dramático, por exemplo.

Nesse atrito constante, a dramaturgia foi realmente desenrolan-do um exuberante tapete vermelho por onde a arte teatral tem desfi-lado sua celebridade. Não apenas a dramaturgia, é evidente. Ela faz par com o espetáculo – o texto cênico – e todas as técnicas e estraté-gias de representação sobre o palco, material que embasa ou advém de teorias sobre o teatro. Esse conjunto faz a arte teatral renovar-se e permanecer. Esse espírito de união manifesta-se continuamente nos capítulos deste livro. Em relevo em “O direito ao teatro”, “O agente criativo”, “O lugar no teatro” e “O fracasso e o sucesso”.

No entanto, estudos sobre a história e o desenvolvimento da arte teatral comprovam que as mudanças não estão restritas aos elementos mais visíveis da peça teatral, de sua representação ou de teorias pré – ou pós – encenações. O projeto de criação teatral é também o da direção do espetáculo e “responde a uma política cul-tural correspondente a escolhas artísticas e definida por aquele ou

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aqueles que o colocam em ação”, segundo Michel Pruner em “La fabrique du théâtre”. Este é também o caminho trilhado por Walter Lima Torres e o que torna este livro uma contribuição valiosa para os estudos do teatro. Capítulos como “Cultura e prática teatral”, “As coleções que marcaram época”, “O lugar no teatro”, “A turnê e o tropeirismo teatral” e “O fracasso e o sucesso” trazem ao conheci-mento e ao juízo do leitor documentação e argumentação relevantes para um olhar amplo sobre a arte teatral. Os capítulos nomeados mapeiam territórios que nem sempre ficam delineados em estudos sobre o teatro com tal intensidade. Nestes, são muitas vezes tópicos passageiros, o que não ocorre aqui.

Essa diferença abre espaço para a discussão e inevitáveis di-vergências surgidas em momentos históricos definidos e no en-tendimento que temos hoje, em relação ao passado. Para além da compreensão do teatro como uma arte de fascínio, imaginação, sa-cralização, como está na visão dos artistas – ou como quer Walter Lima Torres, “agentes criativos” – simbolistas e de Antonin Artaud, por exemplo, este livro procura analisar o teatro sob a luz de sub-venções, estatais ou não (tão antigas quanto a própria arte), e de estratégias comerciais, de disputas por verbas e públicos. Tal es-colha não demonstra um amor menor ou interesseiro pelo teatro, mas tenta estabelecer uma compreensão mais realista e clara sobre os problemas que afetam e modificam a cultura teatral. Aliás, o quanto as crises do teatro brasileiro, que levaram a maior ou menor afastamento do público, não derivaram de problemas financeiros de companhias e de projetos estatais?

A incompletude, característica da natureza do teatro, faz com que dependa intensamente da presença dos espectadores. Shakes-peare dizia que o teatro são duas tábuas e uma paixão. Na verdade, como proprietário de um teatro, ele provavelmente sabia que, além disso, a presença do público e a necessidade de respostas (financei-ras ou de adesão à montagem) garantiam a continuidade de seu trabalho, da produção e da companhia sob sua direção. Portan-to, montar um quadro mais completo do teatro brasileiro é tratar

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também de subvenções, incentivos, mecenas, companhias estatais, lucro. Enfim, do vil – e indispensável – metal. É do que trata em especial o primeiro capítulo, “Cultura e prática teatral”. E, por ser o primeiro, introduz um tratamento mais frio e objetivo do siste-ma teatral e estará presente nos demais assuntos tratados ao longo do livro. A distinção entre uma política de Estado (manifesta em editais, incentivos e mecenatos) e uma política de cidadania (volta-da à formação do espectador-cidadão) traz à discussão um aspecto marcante da cultura teatral sob a ótica do teatro como consumo e como mercadoria. Mais uma aresta do atrito vigente na cadeia de produção da arte teatral.

Um segundo termo que gostaria de ressaltar na conceituação de cultura teatral é fruição. Na frase conceitual o termo vem posiciona-do na seguinte expressão: “concepção, execução e posterior fruição de uma obra cênica”. Ou seja, é um ato e se localiza numa linha tem-poral – em primeiro lugar concepção, depois execução e, ao final, fruição. Em uma cadeia de significados, fruição acaba chegando a termos correlatos como “estar na posse de”, “usufruir”, “apreciar”. Enquanto ato, pressupõe um sujeito agente. Em termos das teorias da recepção, esse sujeito recebe a denominação de leitor (em seus vários tipos) e, no caso da arte teatral, acrescenta a ação do espec-tador. Leitor ele será sempre, seja para os textos verbais, seja para as demais linguagens. Mas, no caso do teatro e do texto espetacular ou cênico, esse leitor ganha mais atributos, em especial o de ser aquele que olha. Recordemos que, em latim, spectare pode significar olhar, observar, assistir a. Mais ainda, há várias camadas de leitores até o momento em que o espetáculo se torna vida sobre o palco. Um mesmo texto terá leitores que usarão da interpretação para o traduzir em outras linguagens: os atores, o diretor, o cenógrafo, o fi-gurinista, o iluminador, os criadores do programa e do cartaz do es-petáculo, o dramaturg, enfim cada uma das funções será exercida a partir da conversão de interpretações diversas em favor da unidade do espetáculo. Por sua vez, a encenação visa quase exclusivamente aos públicos para os quais foi construída – ou ao público pré-con-

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cebido, imaginado e esperado. É natural que, levando em conta o processo de interpretação, o qual parte sempre de repertórios pré-vios e de horizontes de expectativa dos leitores, esse espetáculo será objeto das mais diferentes leituras, produzidas pela multiplicidade dos leitores-profissionais-de-teatro e pelos espectadores.

Jaques Copeau, poeticamente, assim definiu seu entendimento de público: “Considero público o conjunto daqueles que uma mes-ma necessidade, um mesmo desejo, uma mesma aspiração condu-zem a um mesmo lugar, para satisfazer o gosto que têm de viverem juntos, de experimentar juntamente as paixões humanas, o deslum-bramento do riso e o da poesia, por meio de um espetáculo melhor acabado que a vida.”. Simultaneamente à compreensão do que seja público, infere-se um entendimento apaixonado do teatro e de suas funções psíquicas, culturais e sociais.

A transferência dos sentidos do espetáculo concebido para o público espectador é um dos processos mais fluidos e imprevisíveis da cultura teatral. Pudesse ele resultar em comunicação exata e an-tecipada, seria possível prever com certeza absoluta o sucesso de um espetáculo. A impossibilidade dessa certeza – que não existe nem na garantia de que a montagem terá a mesma recepção em todas as noites de uma temporada – torna a estudo dos públicos, da recep-ção das obras teatrais, da crítica literária e do julgamento histórico de um espetáculo, de um autor, de um elenco, de companhias, de temporadas e de montagens diferentes um eterno desafio.

Bernard Dort expressa a consciência da importância do público ao afirmar que “a obra teatral somente tem valor em função do público. Ela é criada pelo contato com ele. Ela muda, se modifica, se enriquece ou se apequena segundo o público que lhe dá ou retira sua adesão. Ela é – no sentido mais forte – o produto: é o público que literalmente a tira do nada, a escolhe, e, ao escolhê-la, se esco-lhe”. Talvez fosse mais correto aplicarmos a designação desses es-pectadores pela forma plural do substantivo: públicos. As diferenças mais evidentes são verificáveis no repertório relativo à própria arte teatral: o quanto cada espectador conhece ao que vai assistir sobre

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o palco, sua familiaridade com o tipo de espetáculo, a importância que ele pode vir a ter em sua cosmovisão e assim por diante. Públi-cos de gêneros teatrais diferentes (comédia, drama, musical, teatro experimental ou pós-dramático, por exemplo) possuem identidades diversas. Públicos de cidades diferentes, em temporadas cumpridas em épocas esparsas do ano, o contexto social e político vivido pelo público naquela temporada, os humores e comportamentos pró-prios do público de cada apresentação... Enfim, há uma variedade natural de público em cada espetáculo da mesma companhia e na mesma temporada!

A empatia, ou não, entre palco e plateia tornam cada apresen-tação única, irrepetível para quem formata o texto desde o palco e para quem o recebe, acomodado nas poltronas ou nas arquibanca-das ou nas calçadas do lugar do espetáculo. O público de um de-terminado espetáculo vive uma comunhão estética que Henri Gou-hier atribuía à “participação na consciência coletiva”. Esses valores, que tangenciam rituais e manifestações psíquicas revelam a rele-vância do público como integrante de uma cerimônia artística que transcende um estar junto no mesmo espaço e vivenciando palavras e ações comuns. De tal forma espetáculo e plateia se integram que a história registra representações cênicas em que as fronteiras entre palco e plateia desapareceram, e houve a real integração de pessoas na mesma festa, no mesmo jogo, no mesmo espetáculo, como em montagens do Grupo Oficina, ou de Julian Beck e Judith Malina, ou no Théatre du Soleil, de Ariane Mnouchkine.

Nos bastidores, na plateia, no coração dos atores e demais agen-tes criativos é o público que pulsa o tempo todo. Idêntica percepção podemos atribuir a todos os capítulos do livro: o leitor, o consumi-dor, o divulgador, o apreciador, seja quantas e quais forem as faces dos públicos de teatro, elas estão pulsando em toda a pesquisa, nas ideias, nos projetos culturais, nas realizações cênicas relatadas por Walter Lima Torres ao longo das substanciosas páginas deste livro.

Não é possível passar incólume pelas páginas dedicadas à crítica teatral brasileira, que atingiu picos de excelência no século passado

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e que agora está circunscrita às atividades acadêmicas sobremaneira. Esquecida ou amputada de veículos mais populares, como os perió-dicos, a crítica teatral cedeu aos encantos da modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, e – com perdão ao trocadilho – liquefez-se em notas sobre celebridades, entrevistas idem e pouca densidade, principalmente após o silenciamento – por motivos diversos – de críticos do porte de Bárbara Heliodora, Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi. Essa prática teatral de mediação que foi, segun-do Walter Lima Torres, capaz de “buscar subsídio para refinar um conhecimento sobre as obras cênicas, potencializando-se assim os mais diversos níveis de fruição” foi responsável pela formação de plateias capazes de melhor compreender os espetáculos a que assis-tiam. A crise econômica aliada à mudança dos suportes de comu-nicação, trocou o papel e a tinta dos periódicos pela volatilidade de alguns blogs e sítios digitais, deixando os espectadores à mercê da publicidade e do nível de acesso às mídias cultivado pelas celebri-dades de momento.

Sem que pareça saudosismo, o arrefecimento do papel da crí-tica militante desloca-se para publicações acadêmicas – como bem informa o capítulo sobre “O dever da crítica” –, mas perde-se na troca a agilidade e a presentificação, de vez que o comentário e a comunicação colados aos espetáculos na temporalidade do acesso e na acessibilidade da linguagem, desaparecem. Este acontecimento talvez se deva à perda de voz de autoridade, talvez se justifique pela dispersão em sujeitos individualizados, responsáveis por sua inter-pretação pessoal, desvinculada de críticos sapientes e olímpicos. A movimentação teatral intensa fica, portanto, entregue às demandas de mercado, à força da propaganda, ao chamariz dos atores de tele-visão, às intempéries e ao agito – ou não – da vida noturna.

Talvez possamos ver nos escritos sobre teatro e nas avaliações dos espetáculos formas de garantir a sobrevida do teatro. Esses olhares críticos de análise e de avaliação acabam por “decodificar o que os artesãos da fábrica teatral tentaram exprimir com os meios materiais que as obras tentam inventariar: em sua busca dos segre-

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dos da representação, esses mediadores exigentes nos lembram que, mesmo se ela possui uma história, a arte viva que é o teatro não pode ter outros destinatários senão seus contemporâneos”, confor-me palavras de Michel Pruner.

Enfim, e segundo essa ótica de contribuição cultural para seus contemporâneos, o livro de Walter Lima Torres, alia ao espectro teórico uma consistente visão da história, da teoria e do teatro bra-sileiro, com os holofotes de uma bibliografia vasta, chancelada pela vivência da arte, tanto experimentada no palco, quanto recebida na condição de espectador atento e culto. O título do capítulo derra-deiro pode sintetizar o que me parece ter movido o autor em sua indagação e escrita: “amor ao teatro”. Um amor que, segundo João Bethencourt, citado no último capítulo, é “uma forma de conheci-mento”. O resultado é uma obra densa, provocadora, informativa, aberta à revisão de padrões e valores tradicionalmente repetidos em outros estudos, parciais ou de semelhante amplitude.

Quem o ler, verá.