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ÍNDIOS URBANOS: QUEM SÃO, DE ONDE VÊM, PARA ONDE VÃO...
Vanderlise M. Barão1;
Jean Baptista2;
Leonardo Napp e
Bianca Brigidi3.
Este estudo tem por objetivo realizar uma exposição fotográfica sobre o dilema
de etnias indígenas que vivem e circulam dentro da rede urbana de Porto Alegre. E tem
o apoio institucional do Centro de Pesquisas Históricas – PUCRS e do NIT – UFRGS,
coordenados pelos professores doutores Maria Cristina dos Santos e Sérgio Baptista da
Silva.
Queremos mostrar, através de imagens fotográficas associadas a textos extraídos
de relatos, que deverão circular no transporte coletivo da cidade, bem como de
exposição de posters com a amostra completa numa área de grande circulação da
cidade, a existência e importância cultural das etnias indígenas do Rio Grande do Sul,
que vivem em Porto Alegre e seus arredores. Dessa forma, dar amostras de sua
contribuição para o desenvolvimento cultural da cidade e apresentando um quadro de
suas reivindicações por atendimento de seus direitos, bem como mostrando as formas de
manutenção cultural e étnica. Será salientada a ocupação de áreas e a demora nas
demarcações das terras indígenas e as dificuldades de sobrevivência nas pequenas áreas
que vem ocupando onde não há recursos suficientes para manter as famílias, fazendo
com que venham buscar recursos na forma do comércio de artesanato e mendicância nas
áreas urbanas.
O objetivo maior é chamar a atenção da população como um todo, através dessa
exposição fotográfica, sobre a existência de etnias indígenas autênticas no Rio Grande
do Sul, aprofundando assim os conhecimentos a respeito dos sistemas econômicos e
sociais empregados por essas populações nos centros urbanos.
A cidade alvo será Porto Alegre, onde circulam e fazem comércio grupos Mbyá
Guarani e Kaingang. A idéia é mostrar as diferenças culturais dessas duas etnias, as
relações comerciais existentes entre eles, as questões relacionadas a territorialidade, em
1 Mestre em História das Sociedades Ibéricas e Americanas – PUCRS. 2 Doutorando em História das Sociedades Ibéricas e Americanas – PUCRS. 3 Ambos mestrandos em História das Sociedades Ibéricas e Americanas – PUCRS.
2
especial a Guarani, que faz com que atuem no centro da cidade, bem como as questões
econômicas e políticas que permeiam a permanência de índios nos centros urbanos.
É importante ressaltar, em relação a territorialidade Guarani, que a cidade se
desenvolveu sobre antigo território indígena, sendo possível encontrar vestígios
arqueológicos que comprovam a ocupação Guarani anterior a ocupação lusitana. Em
contrapartida dar uma amostra dos territórios ocupados atualmente pelos Mbyá Guarani
nos arredores da cidade, apresentando a circulação e o comércio realizado nesses
espaços e a necessidade dos indígenas de venderem seu artesanato a fim de
complementarem suas necessidades econômicas já que os territórios são pequenos e não
dão conta de suprir as necessidades do grupo, principalmente nos dias atuais onde o
consumo de artigos que não são produzidos pelos índios se tornou uma necessidade,
como roupas e sapatos, utensílios domésticos e até gêneros alimentícios.
Dessa forma, tentar abordar as diferenças étnicas e culturais desses povos dando
à população porto-alegrense informações básicas e pertinentes para entender a
existência dessas etnias, com a intenção de romper com o preconceito e o
descomprometimento que paira sobre esses indivíduos.
Tendo em vista a falta de informações que pontua a população brasileira sobre
seus compatriotas indígenas, e percebendo que o Rio Grande do Sul, por ser uma antiga
fronteira de expansão colonial, também se priva de tais conhecimentos a amostra visa
levar informações a população em geral sobre as diferenças culturais e etnias indígenas
aqui existentes.
Da mesma forma será preciso dar a conhecer as lutas e resistências desses povos
a ocupação de suas terras, e ao cumprimento dos direitos garantidos pela Constituição
Federal, que lhes proporciona o direito a exercer sua cultura e o respeito ao seu modo de
vida, língua e principalmente a terra, que lhes foi tomada durante o processo de
conquista e colonização do continente americano, e que hoje não passam de pequenas
áreas e que mesmo assim não estão totalmente demarcadas e regulamentadas conforme
orienta a legislação brasileira.
Os pesquisadores envolvidos neste projeto vêm se debruçando sobre o assunto
em diferentes áreas e de diferentes formas. Os trabalhos de pesquisa que vem sendo
desenvolvidos no âmbito do mestrado e doutorado desses pesquisadores têm abordado a
história do Rio Grande do Sul por outro foco que não o da antiga “história oficial”, mas
sim fazendo outras criticas e observando informações e fontes que possam fornecer um
outro olhar sobre essa história. Esse olhar visualiza os indígenas como participantes
3
ativos e transformadores da história rio-grandense, bem como dá voz a documentos e
relatos que mostram um outro indígena, diferente do passivo e exótico índio brasileiro,
que parece ter doado suas terras e suas riquezas, sem cultura própria e que desapareceu
solenemente da história da nação, principalmente na história regional.
Com as mudanças políticas, o fim do período imperial no Brasil e a implantação
da República brasileira os índios foram um pouco esquecidos, não havendo políticas
específicas para eles. A idéia de que a assimilação desses povos pela sociedade
brasileira era inevitável, fazia crer que o seu desaparecimento era uma questão de
tempo. E que em muitos lugares, como no Sul e Sudeste do Brasil, esses povos já teriam
se extinguido, já que se tratava de fronteiras de expansão coloniais antigas, já
consolidadas. Os indígenas que ainda sobreviviam, em geral no Norte e Centro Oeste do
país, eram tratados como se não passassem de empecilhos para o desenvolvimento
nacional, ocupando terras devolutas, que ainda não haviam caído no interesse dos
brasileiros.
Hoje se fala em educação diferenciada, em saúde diferenciada, respeito à cultura, e
se tem a esperança de que os índios venham, embalados pelas novas leis, gozar de plena
cidadania no Brasil. A pergunta é: O que é gozar de plena cidadania num país que não
consegue superar suas desigualdades, onde as classes empobrecidas não têm plenos
direitos que lhes proporcione um bem estar social; onde não sofram com a fome e a
violência doméstica no seu dia a dia?
Os índios são uma categoria a mais de marginalizados, pois o Brasil comporta
uma parcela bem maior de excluídos que não são étnicos, não são “diferentes” perante a
lei, mas que são tudo isso de fato, porque são pobres e vivem a margem da sociedade e
sua cultura dominante.
A emergência de grupos étnicos, organizações dentro do Estado é um fato, já que
não só no Brasil os grupos indígenas se organizam a partir de movimentos que ressaltam a
diferença étnica e cultural como elemento dinamizador para exigir direitos e participação
na política desse Estado. E no Brasil, embora tenha havido pressão por parte da própria
sociedade nacional e internacional, que nas décadas de 1970 e 1980 emergiam para uma
nova dinâmica de relações com o sistema capitalista e os Estados nacionais, fizeram com
que os grupos e comunidades indígenas produzissem representantes ou organizações que
os representassem, como forma de atuarem dentro dessa dinâmica, embora carregassem
nessa indianidade a forma genérica da categoria jurídica que lhes havia sido aplicada pelo
poder público. (RICARDO, 1998: 47).
4
Dessas representações iniciais várias outras vão surgir pós 1988, com a mudança
na Constituição brasileira, e essas organizações, que são mecanismos puramente políticos,
se apresentam nos moldes ocidentais, para poderem assim lidar com o discurso e o mundo
institucional, público e privado, desse Estado que os congrega.
Vendo esses movimentos e pensando no movimento atual dos Mbyá Guarani em
favor da Escola, mesmo não sendo um consenso dentro do grande grupo, mas um evento
restrito a algumas comunidades, pode-se ficar alerta para o que Verdery (In:
VERMEULEM & GOVERS, 2003: 70) nos aponta, dizendo que:
as identidades não são necessariamente essenciais e fixas, que são situacionais, que o que conta são as fronteiras em vez do seu conteúdo, que a etnicidade é antes de mais uma forma de organizar a vida social e não uma característica inata ao ser humano. Apesar de eu já ter sugerido que os processos de formação de Estados no mundo real poderão ter subestimado o “situacionismo” em alguns locais, penso que será preferível enfatizar o situacionismo, a invenção e as fronteiras em vez do conteúdo, ao invés de aderir ao novo racismo e sexismo implícitos em inúmeras políticas de identidade.
Levi – Strauss (1970) chama a atenção sobre a idéia das “raças humanas” como
determinantes para o modo de vida de alguns grupos sociais, refutando esse conceito em
favor de uma noção cultural, dizendo que há uma confusão entre a noção biológica de
raça e as diferenças culturais. E que há muito mais culturas humanas do que tipos raciais.
Porém esse tipo de confusão acaba fazendo parte da bagagem das políticas sobre
identidade que vem sendo desenvolvidas nos últimos anos, e criando, muitas vezes esse
novo tipo de racismo que Verdery questiona.
O âmago da questão é que existem as desigualdades sociais, que estão calcadas
nas diferenças culturais. Embora o senso comum remeta a compreender as diferenças
através de conceitos marcadamente racistas e a entender o progresso como algo
cumulativo que pertença ao homem moderno, o autor mostra através de vários exemplos
que o determinismo geográfico ou a raça não são fatores relevantes para explicar as
diferenças entre culturas ou segmentos sociais. Estes podem influir, assim como as
especificidades do meio em que se encontram os indivíduos, mas que as sociedades não
estão isoladas e, portanto não se pode pensar que elas não interagem entre si, e que
mesmo as sociedades do passado se desenvolveram e construíram sua história, baseadas
em suas experiências, necessidades e interação com outros grupos diferenciados. As
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culturas não se diferenciam do mesmo modo, mesmo que aplicando técnicas semelhantes
ou trocando informações, a diversidade é muito mais rica do que se pode conhecer e
muito mais dinâmicas são as transformações culturais que estas sociedades podem
desenvolver.
É interessante perceber como o autor coloca o fato da sociedade ocidental usar
termos como “selvagem” para designar os grupos sociais que seriam tidos por primitivos,
atrasados em relação ao progresso moderno, etc., e que esse tipo de designação é uma das
atitudes marcantes das sociedades indígenas, para designar aqueles que não são do seu
grupo. Ou seja, quando os chamamos de não humanos, estamos refletindo o mesmo
sentido que eles nos dão, quando nos chamam por alguma designação local. Lembro aqui
do que nos fala Viveiros de Castro (2002), quando fala do nativo relativo, aquele que nos
avalia e nos coloca no seu discurso, da mesma forma como fazemos com ele.
É como diz Levi – Strauss (1970: 60):
a humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, por vez mesmo, da aldeia...
É o paradoxo do relativismo, e assim pode-se pensar como é equivocada a idéia de
evolucionismo cultural, como se cada sociedade não tivesse sua própria história, sua
própria rede de significados. Pensar uma sociedade, uma cultura, como antepassado de
outro é perigoso e até pernicioso, já que as culturas e as sociedades não evoluem de forma
linear e a ordem de grandeza do passado de cada grupo social e cultural depende de sua
rede de significados.
Na perspectiva etnocêntrica as coisas só podem ser explicadas se tiverem relação
com a rede de significados ocidental, por isso somos nós que classificamos as culturas, as
raças, as sociedades. São os nossos valores que estão intrínsecos ao observar o outro; e
então discorremos nossas explicações cientificas e fazemos valer nosso discurso.
A história nem sempre é cumulativa para nós e para o outro, mas quem faz a
escolha de que história contar? Quem colocou a idéia de que a civilização ocidental seria
superior aos outros povos?
Há de se admitir que a cultura ocidental se impõe, mas não se pode menosprezar
os avanços tecnológicos que a humanidade criou ao longo da sua existência, e que não
foram obra de mero acaso, como muitos tentam afirmar. Levi – Strauss (1970: 84) afirma
que as descobertas do fogo, do cozimento, da agricultura, etc., só puderam acontecer
porque houve mentes pensantes para elaborar as técnicas, o acaso não poderia por si só
resultar no progresso tecnológico, por que este não se cria sozinho. Como o próprio autor
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diz que a genialidade independe da raça ou cultura, mas de condições que estão fora da
consciência dos homens.
Dizer que este ou aquele modo de ser é o correto depende do ponto de vista de
quem vê e vive neste modo de vida. Se o olhar do “nativo”, desse “outro” que se relaciona
conosco, vê outros elementos como importantes para a sua história e significação, isto não
quer dizer que ele seja mais ou menos inferior a mim, ao modelo de vida ocidental que
tenho em mente, mas sim que é diferente e que a maneira que ele vê e age sobre sua
sociedade resolve seus problemas.
Temos que atentar também para um outro ponto salientado por Levi – Strauss: A
cultura, assim como a história, se dá por combinações, trocas. Quando há a interação
entre sociedades diferentes, seja da forma que for (comercio, guerra, aliança, etc.) há
trocas culturais inevitáveis. Portanto não poderia haver culturas superiores, senão essas
trocas não seriam validas. E esse suposto progresso ditado pela sociedade ocidental, está
de certa forma inteiramente ligado à essas trocas, ele está envolto nesse duplo sentido
entre os dominantes e dominados, entre a unificação e a diversidade e ele só acontece por
que há a diversificação cultural, infelizmente esse progresso acabou sendo entendido
pelas classes dominantes não como algo dinamizador das interações sócio - culturais, mas
como o criador das desigualdades sociais.
Dessa forma encontramos uma historiografia que desconsidera a história
indígena, prevalecendo a historia ocidental, onde esses índios que aparecem nessa
história oficial são marcados pelo discurso de seus conquistadores. Podemos pensar aqui
naquilo que João Pacheco (1999) chama de questão dos “índios misturados”, pois a
invisibilidade promovida sobre essas populações nos grandes centros urbanos faz com
que não se perceba que são índios, ou que se questione a veracidade de sua indianidade.
Antes de tudo é bom frisar que o termo “índio” é uma construção histórica, essas
populações não são todas iguais e não se denominam “índios”.
Procurar construir uma abordagem histórica onde os protagonistas são indígenas
se torna um desafio, já que será imprescindível recorrer aos métodos, teorias e conceitos
de outras disciplinas, como a antropologia e a etnologia, além da história, para
desenvolver uma interpretação pertinente sobre o objeto abordado.
Há de se levar em conta questões particulares do grupo analisado, o que obriga o
historiador a aventurar-se nos campos da etnologia. Mas, assim como se mostra um
pouco hostil ao historiador, escrever uma história indígena através de um viés
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etnográfico e/ou antropológico é bastante rico, já que trata-se de olhar para outras
formas de fazer história, e outro jeito de pensar sobre a história.
Dentro dessas outras formas, categorias e definições que se encontram no
discurso indígena, o próprio historiador vai definindo um discurso diferente, onde
dialoga com conceitos e teorias, modos de fazer e de pensar que não são próprios da sua
disciplina, mas que estão tão próximos, nas ciências humanas, e que basta uma
aproximação maior para perceber que os ganhos são bastante gratificantes para ambas
disciplinas, já que se debruçam sobre semelhantes objetos.
O uso de recursos diversos, além do documento escrito, leva o historiador a
exercer um papel mais diversificado em sua pesquisa, com o uso de imagens, memórias
orais e observação etnográfica, o que faz com que este pesquisador se abra a um
universo de teorias e métodos que não são comumente encontrados nas pesquisas
historiográficas, mas que estão acessíveis na vizinhança, basta abrir-se ao dialogo e
buscar estes recursos para escrever uma história indígena menos engessada no tempo e
no espaço, como a que oficialmente de cristalizou nos livros de história mais clássicos.
E como podemos pensar que não existe uma antítese entre história e estrutura, de
acordo com Sahlins (2003: 180) essas disciplinas não são excludentes, mas ao contrario
se complementam. De acordo com esse autor, a percepção consciente do evento leva a
um reconhecimento deste como algo concreto, e este inserido em categorias
preexistentes passa a ser entendido e historicizado. A história está presente na ação do
evento, e isto também está presente na estrutura do discurso que descreve o evento.
João Pacheco (1999), em um artigo onde aborda a questão dos índios
misturados, trata de um assunto bastante pertinente, onde a aproximação entre
antropologia e história é marcante no entendimento da identidade indígena, entre índios
que foram englobados radicalmente pelas frentes coloniais e que por isso encontram-se,
atualmente, dentro de uma categoria em muito preconceituosa e deslegitimadora da sua
indianidade, que é a de “índios misturados” ou negativamente aculturados.
Ele se propõe a discutir a questão dos índios do nordeste, mas essa situação
também é reconhecida no sudeste, centro - oeste e sul do país.
A idéia de enfocar exclusivamente a região amazônica como área primordial das
sociedades indígenas, já que lá se encontrariam os índios “puros”, é equivocada, mas
para o senso comum essa é a realidade, por isso tem sido dada pouca atenção aos índios
do nordeste e demais regiões que possuem situação semelhante.
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No entanto, não é apenas o senso comum que ignora as particularidades e
história dos índios ditos “misturados”, mas os próprios pesquisadores mais antigos
também os deixavam em segundo plano, já que a sua indianidade seria controversa, e
estes já estariam num alto grau de integração não podendo ser vistos como estatuas do
passado, tendo a sua cultura se perdido no processo do contato. Então não poderiam
contribuir devidamente aos estudos etnográficos clássicos.
Segundo João Pacheco (1999: 99), existe um certo preconceito entre os
pesquisadores, e ele diz que:
para a perspectiva dos estudos americanistas, no entanto, freqüentemente a pesquisa e a reflexão sobre as sociedades marcadas por processos históricos de mudança e por mecanismos de transferência, dominação e integração sociocultural não oferecem, em geral, muito interesse ou rentabilidade teórica.
É então aí que precisamos unir forças entre história e antropologia para que os
estudos dessas unidades sociais tenham seu lugar no tempo e no espaço, e se possa
investigar os processos políticos e socioculturais por onde passaram essas sociedades. E
em que medida a construção de uma identidade étnica foi se desenhando dentro desse
atribulado processo de conquista e perda de territórios e de domínios culturais. Esses
“índios misturados” tem-se mostrado um campo bastante fértil para estudos etno-
históricos.
O autor alerta para a desmistificação da procura do exótico como fonte
etnográfica, e busca dar atenção aos potenciais de pesquisa entre esses povos, onde se
possa trabalhar com vários conceitos e teorias intercambiados entre as disciplinas que
congregam as ciências humanas. Para isso um certo número de pesquisadores tem se
debruçado sobre o assunto e de suas pesquisas vêm surgindo um diálogo mais amplo na
área de etno – história, que abre o leque de conhecimentos dando assim mais
visibilidade aos movimentos étnicos indígenas que estão fora dos padrões amazônicos.
Sua contribuição a discussão do assunto aborda idéias básicas e simples, mas
que podem muito contribuir para o aprofundamento da temática e para a construção de
novos conceitos e teorias possíveis de serem aplicados a uma realidade social que vem
se apresentando cada vez com mais força aos pesquisadores.
Nos estudos das sociedades indígenas do sul do país, a questão da mistura é
bastante corriqueira entre os historiadores mais clássicos, que se perguntam até onde
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estes povos são indígenas de verdade, já que a situação em que se encontram é
semelhante ao que acontece aos índios do Nordeste e o processo de conquista e
colonização do território também é antigo e já se consolidou a muito tempo.
Esse tipo de discussão já é tão antigo quanto a colonização européia, mas ainda
traz a mesa muito preconceito e desconhecimento a respeito dessas populações, pois não
considera a identidade étnica desses grupos como algo em permanente construção e
continua buscando nos índios fosseis do passado. Esse tipo de atitude só vem endossar
os velhos preconceitos e as tão fadadas leis de tutela, onde os indígenas são vistos como
indivíduos inferiores dentro da sociedade brasileira. Questões como essa estão marcadas
na política indigenista, e nas atitudes daqueles que manipulam essa política, como é o
caso do órgão responsável pelos indígenas no Brasil – FUNAI – que em muitas ocasiões
trouxe a discussão da participação ou não de indivíduos índios em determinados setores
sociais, já que este estaria “integrado” e não seria mais um “indígena”4.
Em primeiro lugar, João Pacheco nos alerta para o rompimento dos preconceitos,
já que como nos mostra Bachelard (1970: 22 apud OLIVEIRA FILHO, 1999: 102):
Quando ele se apresenta à cultura cientifica, o espírito não é jamais jovem. Ele é de fato muito velho, pois tem a idade de seus preconceitos. Ter acesso a ciência é intelectualmente rejuvenescer, aceitar uma mutação brusca que deve contradizer um passado.
Pois é comum se ver em pesquisas atuais o uso dos velhos jargões científicos,
carregados por conceitos novos, novas idéias e temas, mas que trazem no seu âmago as
velhas idéias e teorias sobre o fazer etnográfico e histórico. O que o autor alerta aqui, é
para que não sobrecarreguemos nossos trabalhos com esses modelos científicos,
perdendo muitas vezes, o fio condutor que nos levou a debruçarmo-nos sobre esses
povos e suas sociedades na atualidade e acabemos por criar um indígena idílico e
distante da realidade então presenciada.
Para romper essas barreiras teóricas, em primeiro lugar, deve-se fazer um exame
critico das teorias existentes, e a partir daí pensar numa área nova do conhecimento,
como é o caso da temática sobre os “índios misturados” – que pode ser chamada de
4 Ver CUNHA, Manuela Carneiro da. Critérios de indianidade ou lições de antropofagia. In: Antropologia do Brasil: mito, historia e etnicidade. São Paulo: Brasiliense: 1987: 109 – 112. Onde ela trata das questões discutidas na década de 1980, sobre a emancipação de índios, que ficavam então
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antropologia dos “índios misturados”. Dentro dessa lógica, há de pensar também em
como as teorias e conceitos da história poderão contribuir nesses estudos, já que se trata
de um contexto em que essas populações participaram de um processo de contato
intenso, e mesmo sem deixarem de “ser índios”, foram vendo suas sociedade e sua
cultura sendo modificadas por elementos contrastantes e assimilando novas formas
culturais, muitas vezes atribuídas aos caboclos e sertanejos, que convivem no mesmo
espaço geográfico.
O autor vai propor três teses para reflexão sobre este assunto: Em primeiro lugar
fará uma critica aos historiadores, que se fecham em seus documentos, e se agrupam em
torno deles tornando-se especialistas dos mesmos, e buscam uma linha reta no
conhecimento, como se este pudesse ser cumulativo. E dessa forma encastelados nos
documentos, custam a perceber outras formas e outros discursos sobre o objeto
pesquisado, deixando margem para escapar o conteúdo etnográfico.
Os antropólogos também cometem seus encastelamentos, só que estes
negligenciam os documentos, e vão buscar todas as respostas na etnografia, em geral de
cunho bastante positivista, supondo uma cultura como um conjunto de objetos em que o
somatório de conhecimentos gerados sobre esta cultura lhe daria uma totalidade e um
conhecimento genérico sobre esta cultura, fazendo do pesquisador um especialista no
grupo a que se atribui a dita “cultura”. E o que fazer quando o grupo analisado não se
enquadra neste modelo?
É preciso ficar atento aos discursos de cada pesquisador, pois estes não realizam
pesquisas homogêneas, nem tampouco, é possível aplicar um questionário e ter em
minutos uma etnografia perfeita, ou fichar os documentos selecionados e ter uma
analise geral do objeto estudado. A pesquisa requer tempo, dedicação, e olhar clinico.
Digo isso, pois cada período histórico tem seu próprio olhar sobre os acontecimentos, e
isto vai se refletir nas pesquisas anteriores, bem como nos documentos elaborados para
diferentes fins. Temos que ter em mente que nós próprios fazemos recortes e
selecionamos o que vamos escrever, então há de se fazer uma adequação ás teorias
vigentes, a fim de conformar o conhecimento produzido, já que este não deve ser
isolado.
destituídos dos direitos indígenas e muitas vezes impedidos de atuarem em suas próprias comunidades, pelo órgão gerenciador desses direitos, que é a FUNAI.
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Mas que deve ficar claro que os pesquisadores não são neutros ao escreverem,
bem como não é possível adequar tudo ao um modelo, este em geral não consegue dar
vazão a todo tipo de situação vivenciada.
Conforme nos coloca João Pacheco (1999:104 – 105), deve-se perguntar:
Será que para fazer etnohistória bastaria comparar esses relatos, construindo uma trajetória imaginária entre esses pontos, narrando naufrágios e navegações triunfais, indicando causas (ou apenas levantando hipóteses)? Ou seja, com base em registros tomados como “protocientíficos”, o trabalho do analista seria apenas o de transformar o descontinuo em continuo, e o concebido em verossímil?
O autor então chama a atenção para o fato de que se assim for a etnohistória se
tornaria uma terra de ninguém, onde não se levariam em conta as rigorosas críticas as
fontes realizadas pelos historiadores, nem as contextualizações sociais de relatos e
interpretações feitas pelos antropólogos. Essa seria uma forma equivocada de fazer
pesquisas com essas populações indígenas, já que a critica deve ser feita sobre a
observação, bem como deve ser levado em conta o processo histórico pelo qual passou
o grupo. Não se deve olhar de forma sincrônica para essas sociedades, elas passaram por
processos de mudança cultural no tempo, mas nada se preserva intacto, então para esse
tipo de pesquisa devem ser aplicados novos métodos, próprios para uma análise de
grupos “misturados”, que conservam sua indianidade, junto a todos os outros atributos
culturais e sociais em que estão inseridos.
Conforme Sahlins (2003), as experiências humanas são traduzidas pelo discurso
de quem escreve, e os objetos são mais particulares enquanto emblemas em um espaço
– tempo específico do que os signos, enquanto categorias ou classes conceituais ... é
impossível esgotar a descrição de qualquer objeto. Dessa forma podemos dizer que não
há como absorver a totalidade e as particularidades dos objetos, já que o sistema é
arbitrário e é assim porque é histórico.
Estes não são grupos em que se possa procurar elementos chamados
“tradicionais”, como se estes estivessem congelados no passado, é o que George
Stocking Jr. (OLIVEIRA FILHO, 1999) chama de “vício do presentismo”, que é a
busca do passado no presente. Estes índios que conhecemos hoje, e não só os do
nordeste, não existiram no passado, eles existem hoje. Os do passado lá ficaram e vão
permanecer, como antepassados dos atuais, mas não como iguais. Este é o tipo de
situação que muitas vezes se apresenta em juízo, quando da disputa de terras, ou
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qualquer outra reivindicação legal, em que legisladores e antropólogos entram em
conflito na questão dos direitos tradicionais dessas populações, já que o antropólogo
tenta fazer os juizes entenderem que os índios mudaram, mas não seus direitos a serem
tratados como indígenas e os juizes insistem na busca do passado como base para
atender as demandas indígenas.
É tarefa difícil, e não cabe ao etnohistoriador ou antropólogo encontrar esse
passado no presente, mas sim mostrar como esses sujeitos no presente não são
superficiais e sim autênticos na sua identificação étnica, e para isso tem de ser feito uma
busca da historicidade dessas sociedades.
Muitas dessas identidades são bastante recentes, outras recaem no século XVI e
XVII, e essas são características comuns nesses processos, pois essas populações estão
se reestruturando permanentemente. As categorias são sempre criadas e se transformam
conforme o discurso que vão encarnar. De acordo com Sahlins (2003) as alterações se
dão cada vez mais quando se pensa que as coisas continuam iguais. Surgem novas
categorias que asseguram a reprodução da cultura e a elas é dado um novo conteúdo,
que reifica as permanências, assimilando a novidade e integrando esta às categorias já
existentes. As categorias tradicionais são transformadas pela razão de quem as observa.
Não é incomum classificarmos essas novas identidades como “emergentes” ou
chamar o fenômeno de “etnogênese”, caracterizando processos socioculturais mais
atuais, onde foram realizadas descrições históricas densas. Mas isto não implica que os
trabalhos mais antigos pudessem marcar identidades étnicas como um fenômeno mais
natural ou espontâneo, como se confinassem a origem dos tempos. Todas essas
classificações são discursos que atendem as suas épocas e seus métodos. Toda história é
um discurso sobre alguma coisa, esta não dá as certezas, apenas o caminho escolhido
para ser descrito e contado.
Esse tipo de analise pode criar contradições dentro da pesquisa com essas
identidades emergentes, já que se não for bem entendida acaba levando a uma
discriminação em relação a essas populações, que coloca a sua legitimidade em
suspeita, principalmente dentro da opinião pública. Mas, a própria academia, que
trabalha dentro de modelos teóricos, vê dificuldade em especificar tais identidades, pois
acaba compartimentando o conhecimento de forma a seguir os modelos de
conhecimento, então não se coloca em cheque seus métodos e não se escutam os
“silêncios” da etnologia, e nem os da história. Dessa forma, fica impossibilitado pensar
uma outra história indígena, que não as já estudadas.
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A segunda tese ressaltada por Pacheco de Oliveira, trata da questão indígena no
âmbito político, principalmente no que tange a relação entre terras e populações
indígenas. Estes dois elementos estão intrinsecamente ligados a questões identitárias e
de organização social, sendo uma demanda das próprias comunidades indígenas a
definição de seus territórios, o que coloca historiadores e antropólogos numa empreitada
difícil, que é a cobrança de demonstrar politicamente e judicialmente as evidências
históricas da antiguidade do território reivindicado como indígena.
Daí surgindo a problemática de mostrar que a importância da terra para essas
sociedades está muito mais relacionada aos seus usos e costumes do que a uma
antiguidade histórica. Não é possível demarcar áreas que não tenham condições de
sustento à esses povos, mas também não se pode negligenciar as relações culturais e
cosmológicas que regem a reivindicação da área como terra indígena.
A legislação que rege a noção de território indígena é uma elaboração dos
“brancos”5, e mantém as prerrogativas que foram estipuladas a principio para a
demarcação da área do Xingu, ainda em tempos do SPI. Nessa perspectiva fica difícil
incluir as terras indígenas destinadas aos “índios misturados”, já que estes fogem ao
padrão xinguano, bem como estão inseridos em áreas altamente povoadas por
populações coloniais. Dessa forma, as áreas são menores e muito diferentes da proposta
estipulada pela Constituição de 1988, que manteve o mesmo padrão da Emenda
Constitucional de 1969.
O SPI não tinha nenhuma preocupação em fazer uma conexão entre território e
cultura indígenas, já que atendia a demanda de dar assistência a essas populações até
que a integração fosse concluída. Este servia como um mediador nas questões de
fronteira econômica e povos indígenas, tentando amenizar os embates entre brancos e
índios, mas sem questionar os direitos a terra indígena, já que está deveria servir aos
propósitos dos brancos, ficando os índios com o direito a proteção assistencialista. Esta
terra então deveria ser distante das áreas de conglomeração populacional dos brancos, a
fim de preservar o índio, e não despertar interesse econômico para as frentes
colonizadoras, e por último ser aceita pelos indígenas. A FUNAI, quando implantada,
não teve uma postura diferente, pois a intenção de integrar os grupos à sociedade
5 Ver RIOS, Aurélio Veiga. Terras indígenas no Brasil: definição, reconhecimento e novas formas de aquisição. In: SOUZA LIMA, A. &BARROSO –HOFFMANN, M. (org.). Além da tutela: bases para uma nova política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / LACED, 2002: 63 – 81. Onde há um histórico sobre a legislação sobre terras indígenas desde o período colonial, mostrando que os
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nacional permanecia, então o que existia era um índio genérico, não eram ressaltadas as
diferenças étnicas como algo relevante.
Com essa postura o SPI chegou a dar assistência aos povos com alto grau de
contato, porém aí sua ação era muito mais voltada a reparar os danos do contato e
considerar esses indígenas como integrados, porém mal integrados a sociedade, já que
se encontravam em situação precária, mostrando uma pobreza extrema, muita
dependência e degradação social, devido ao contato e a exclusão da sociedade em que
viviam esses indivíduos.
A ação do SPI se voltava então em encaminhar famílias indígenas para glebas
onde pudessem desenvolver atividades de subsistência, quase transformando o índio
num pequeno agricultor. Não levando em conta a sua identidade étnica, mas sim a sua
condição de indígena. Dessa forma, não considerando sua relação cultural com o espaço
geográfico destinado a sua habitação.
Os povos do Nordeste fazem parte da área mais antiga de colonização, depois
vem a região Sudeste e Sul do país, portanto, o impacto econômico e sociocultural que
sofreram essas populações foi muito intenso e a longo prazo. Para essas etnias a
sobrevivência se deu de duas formas: uma foi recuar enquanto houvesse áreas
disponíveis para abrigar esses povos; outra foi agregando-se a sociedade emergente na
forma de mão de obra desqualificada.
Ambas as formas foram paliativas a uma desintegração cultural, e esta cultura se
manteve fragmentada e redimensionada dentro das comunidades que abrigam povos
indígenas. Muitos desses índios se confundem com os caboclos e sertanejos locais,
inclusivo no manejo cultural, já que muitos hábitos se confundiram entre índios e
brancos ao logo do tempo. E não só os hábitos se fundiram como a mestiçagem também
é um fato, que muitas vezes só mostra a diferença entre índios e brancos, na
identificação étnica de cada grupo.
Então, como vemos, não há território indígena nessas áreas de fronteira de
expansão antigas, o que há são índios históricos, que se reafirmam hoje como
descendentes, mas que não possuem áreas preservadas para serem demarcadas
conforme a legislação vigente. A lei não prevê esse tipo de indianidade, então acaba
tendo que abrir brechas para a adequação de tais situações, que em geral levam a muita
interesses europeus iniciais firmaram a política indigenista que prevalece até hoje como sendo uma elaboração arbitraria dos “brancos”.
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discussão jurídica e de opinião pública a fim de redimensionar a imagem que se tem do
índio, e suas demandas atuais.
A Constituição de 1988 prevê que a terra indígena é aquela ocupada
tradicionalmente pelo grupo de modo estável e que nela se exerçam atividades segundo
os “usos e costumes” do grupo. Então se torna possível fazer uma identificação através
do trabalho de campo e dos processos históricos que levaram aqueles indígenas a
ocuparem determinada área e se apropriarem daquele território.
Neste ponto, é preciso chamar a atenção para mais um fator que envolve o fazer
história indígena, pois o historiador terá que lidar também com questões legais, de
domínio do Direito, além das práticas a que está acostumado, já que terá de analisar a
própria legislação e por em acordo, ou desacordo, com as praticas históricas e
etnográficas, pelas quais estão passando os indivíduos em questão, no caso os grupos
indígenas que reivindicam um território.
João Pacheco parte então para a terceira tese, onde ele recomenda aos
antropólogos e historiadores buscar entender os povos indígenas como eles se
reconhecem hoje, e não ficar preso a busca de elementos puros, de uma cultura
originária, isentos da mácula do contato com as instituições ocidentais. Isso é
impossível de se ter. Em primeiro lugar nenhuma cultura é totalmente estável e
intocada, já que se constrói dentro do grupo social e se adapta a situações diferenciadas
e aos contatos com outros grupos. Em segundo lugar, dentro do próprio grupo há
culturas e formas simbólicas entendidas de maneiras diferentes pelas diferentes camadas
sociais. Então buscar uma cultura original é sonho, pois existem várias culturas numa
sociedade.
Voltando novamente ao que nos diz Marshal Sahlins, em relação aos sujeitos
que atuam no evento, conforme seu sistema simbólico (signos) surgiram diferentes
interesses e sentidos para cada indivíduo, sendo que interesse e sentido são dois lados da
mesma coisa, mas o interesse não é igual ao sentido. Os valores ao signo são dados pelo
sujeito, que podem divergir de seu valor convencional, e atuam de acordo com a ação da
inteligência e consciência humanas. Os poderes criativos não ficam suspensos, pois as
pessoas têm uma cultura e sabem identificar os valores de seu interesse. Dessa forma os
signos são envolvidos em operações lógicas e intencionais.
Essas culturas são intercambiáveis e podem envolver exclusão e conflito, bem
como indiferenças e ambigüidades. Não necessariamente vão coexistir com as
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sociedades nacionais, mas podem se fazer valer dentro das normas dessas sociedades,
fazendo valer a sua condição de étnico, não que isso implique o ser étnico o tempo todo.
Essa variedade cultural leva a se pensar num trabalho onde haja processos de
circulação de significações, onde Barth (apud OLIVEIRA FILHO, 1999: 113) chega a
falar em circulação das tradições culturais dentro ou através de diferentes unidades
sociais. Hannerz fala em fluxos culturais, onde enfatiza o caráter não estrutural,
dinâmico e virtual que constitui a cultura.
Pacheco de Oliveira (1999) aborda então as questões dos documentos
etnográficos produzidos pelos colonizadores europeus, que não tinham um caráter de
entendimento do outro, mas sim da descrição do exótico. Mas como eles teriam outro
tipo de visão antropológica, já que a disciplina estava em vias de consolidar-se
exatamente por que se encontrava diante do impacto de uma expansão colonial que
colocou dois mundos em choque? Esses documentos trazem a visão de uma época, um
discurso do europeu sobre o índio que ele interpreta com a visão de mundo do século
XVII, por exemplo. Como Sahlins (2003) salienta, a classificação é uma condição da
ação simbólica e tanto o nativo quanto o estrangeiro vai incluir os eventos em seu
esquema classificatório e elaborar um discurso sobre ele, tornando-o inteligível dentro
da sua categorização simbólica.
Há de se ter em mente que o conhecimento cientifico também é algo datado, ele
possui épocas históricas e nelas age de acordo com os conceitos e teorias vigentes e
conhecidos dos cientistas. Na época dos contatos a antropologia se consolidava como
disciplina e buscava isolar-se das outras ciências sociais, afirmando que seu objeto era o
nativo, longe da situação colonial. E temos também a visão da Igreja, que é muito
presente nos relatos históricos sobre os nativos, e esta tem influência direta na
idealização do índio cordial ou bravio, porém dependente.
Dessa forma o que foi criado era um nativo idealizado, com uma cultura
imaginada, sem máculas e sem interferências européias. Em realidade era um exercício
de abstração do pesquisador. Essas práticas podem atuar como testemunho da
profundidade em que se encontrou o pesquisador em seu trabalho etnográfico, bem
como funcionam como atenuantes da culpa, já que fossilizam o nativo e silenciam sobre
o processo colonizador e a desestruturação cultural que a seguiu. É uma forma de
mostrar a neutralidade do cientista diante do objeto, mas acaba por esconder sua
cumplicidade junto ao senso comum.
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Esse tipo de produção científica se deu em toda a América, porém nas
populações não andinas o descompasso é ainda maior. No Brasil houve a busca de um
resgate cultural, como se as culturas indígenas tivessem todas sido raptadas, e bastava
reencontra-las para recompor as sociedades indígenas tal qual foram antes do contato.
Para isso foram incentivados pelos pesquisadores à produção da cultura material e de
rituais tradicionais perdidos para que as culturas indígenas fossem então descritas como
originais.
Muitos equívocos foram cometidos e o medo da desaparição das sociedades
indígenas transparecia nos relatos dramáticos dos pesquisadores que percebiam a
situação real em que se encontravam essas populações. Daí começarem a surgir novos
conceitos e teorias a respeito dos questionamentos feitos pelos antropólogos, que
insatisfeitos com as noções de cultura vigentes buscavam saídas para o oficio do
etnógrafo, que acabaria desaparecendo junto com os índios. Eis que então a etnografia
se vê envolvida em outros parâmetros que não a busca do índio idílico, porém o senso
comum permanece idealizando a imagem do índio.
Essa imagem idealizada é muitas vezes acionada na defesa dos direitos
indígenas, porém ela pode se voltar contra esses direitos, quando a questão trata de
“índios misturados”, já que pode ser levantada a suspeita de que haja manipulações de
identidade para beneficiar determinados grupos. Dessa representação idealizada podem
surgir muitos efeitos negativos sobre o grupo indígena em questão, ressaltando
preconceitos, que levam a acreditar numa primitividade latente nesses povos e quando
estes não apresentam tais traços morais e sociais passam a ser negativamente
classificados de impuros, aculturados, etc., deixando então de ter direitos como
indígenas.
O que deve ser feito é levantar questões sobre o conceito de aculturação, já que
este é bastante impreciso e genérico. O que quer dizer aculturado? Sem cultura? Mas
nenhum povo existe “sem cultura”, esta pode ser modificada ao longo do tempo e isso
não é nenhuma anomalia, mas a cultura existe.
Outra questão é a representação idealizada do índio como ser primitivo, que leva
a crer num individuo estagnado no tempo. Essa imagem vem de encontro com os
modelos científicos mais tradicionais ou clássicos, de um índio fóssil, que não muda
nunca, e pode ser encontrado desde os tempos imemoriais em seu habitat natural. Deve-
se recusar esses modelos e apontar para novas dimensões sobre a legitimidade das
culturas indígenas, que não são paradas no tempo, mas ao contrario bastante dinâmicas.
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Estas vivem sendo ressemantizadas e como já foi dito antes, não se trata de uma cultura,
mas de varias formas de culturas que se manifestam dentro de uma sociedade, de acordo
com o grupo social.
As mudanças culturais decorrentes do tempo em que estão em contato com
outras culturas, bem como de seu próprio tempo histórico não invalidam as identidades
indígenas, e ao contrario os direitos indígenas não são decorrentes da primitividade ou
pureza do grupo, mas sim da sua descendência reconhecida pelo Estado, como povos
autóctones. Sociedade indígena é uma categoria jurídica e é assim que deve ser tratada,
não é através da denominação de pureza cultural, ou de povos e nações originais que
serão tratados os assuntos indígenas quanto aos seus direitos e nem é assim que deve ser
escrita a história sobre os índios.
Mais uma vez é importante chamar a atenção para os cuidados que se tem de ter
em relação às simplificações analíticas em relação a esses povos, bem como o fato de se
ter de levar em conta a historia do contato e suas singularidades para cada sociedade
envolvida. E por ultimo fazer uma reflexão sobre as possibilidades de trabalho que se
tem pela frente usando novos modelos teórico-interpretativos, que balizariam outros
estudos sobre povos indígenas e abririam o leque de conhecimentos sobre essas
populações em seus diferentes espaços geográficos e modelos sociais adaptados.
Diante dessas questões esboçadas acima, é bom ressaltar que essas populações
sobreviventes no Rio Grande do Sul enfrentam a discriminação típica das regiões de
expansão colonial antigas. A falta de conhecimentos da sociedade envolvente para esses
indivíduos é muito grande e não é incomum a classificação popular desses povos como
“índios fajutos”, vagabundos e bêbados, mostrando um preconceito enraizado.
Nas escolas a imagem do indígena – quando aparece – é sempre marcada pela
idealização típica, como os índios encontrados por Cabral, no evento do
“descobrimento”, ou o índio idílico representando o exotismo do Brasil. Este indivíduo
representa um ser mítico, que não usa roupas nem sapatos, que vive na “selva”, junto à
natureza e dela faz parte.
Um índio que vive na cidade já não seria mais índio, pois está fora dos padrões
estabelecidos para essa categoria. Mas, como explicar esses indivíduos que passam por
nossos olhos ao freqüentar o Centro de Porto Alegre, vendendo artesanato, mendicando,
brincando nas ruas...? Quem são eles? Como podem ser índios já que usam
indumentária ocidental, fazem comércio, e principalmente não estão na selva?! E o que
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é pior, apresentam sua miséria, sua pobreza aos olhos ocidentais, quase chocando as
pessoas, não fosse a indiferença com que são tratados.
Da mesma forma, não há um interesse despertado na população em geral, para
buscar essas respostas sobre os povos diferentes que nos circundam, a nossa escola não
desperta o interesse pelo desconhecido, uma busca pelo saber, pois o mundo é sempre
tão agitado e precisamos trabalhar, e cuidar de nossas vidas que deixamos pouco tempo
para olhar ao redor. O habito de visitar museus ou amostras fotográficas, por exemplo, é
restrito a uns poucos, em geral acadêmicos ou estudantes, a leitura de livros específicos
então é extremamente restrita. Por isso a amostra em questão tem a intenção de atingir
um público não acostumado a ir à museus, portanto os adesivos anexados no transporte
coletivo poderá levar alguma informação a um público novo, que circula no centro e
desconhece sua história. Dessa forma se poderá fazer chegar a esse público algumas
informações na tentativa de despertar o interesse pelo conhecimento histórico dessa
temática.
Será realizado um trabalho de campo para coleta de dados e imagens
fotográficas no centro de Porto Alegre. Esse trabalho contará com equipe de três
pesquisadores que recolherão relatos gravados em fita cassete junto aos indígenas, bem
como farão relatório etnográfico de suas observações e auxiliarão nas tomadas
fotográficas que comporão a mostra.
Imagina-se a exposição articulada em torno do problema da inserção de
populações indígenas na vida urbana em Porto Alegre, principalmente no que diz
respeito à produção e comercialização de artesanato. Em torno disso articulariam-se
eixos expositivos que compreendam os seguintes aspectos:
1-deslocamentos executados;
2-processos de obtenção de matéria-prima e sua manipulação;
3-trocas de produtos entre comunidades indígenas;
4-venda de artefatos na cidade;
A intenção é que a execução destes eixos se dê não a partir de sínteses explícitas
elaboradas a partir do material coletado e sim a partir da ‘edição’ de relatos que
constituiriam eles mesmos o texto da exposição. Quanto às imagens acredita-se que
seria interessante outra modalidade de ‘edição’, tendo como fonte básica imagens
obtidas pelos próprios indígenas, que orientados pelos pesquisadores nas técnicas
fotográficas, fariam as tomadas nas aldeias e nos locais de comércio, conforme
achassem interessante.
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Essa proposta tem como objetivo a formatação de uma espécie de laboratório
etnológico, no qual o exercício retórico parte da noção da construção da vivência a
partir da explicitação de realidades encontradas usualmente pelas pessoas que
circulariam na exposição, mostrando, além disso, a ponta daquilo que se verifica nas
ruas, ou seja, aspectos da vida cotidiana de pessoas que, tem sim uma identidade étnica
diferenciada, mas que possuem necessidades semelhantes às de qualquer outro morador
da cidade. Tendo a noção de que a identidade étnica também se constitui como um
discurso construído politicamente pelo grupo social e de que a alteridade pode ser
utilizada como forma de satisfação de necessidades através da sua expressão por meio
de artefatos passíveis de comercialização. Compreende-se que a venda de artesanato,
longe de ser um índice de aculturação constitui-se num dos principais meios de
manutenção da reprodução social entre os grupos indígenas em meio urbano.
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