12
Confins 22 (2014) Número 22 ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Antonio Carlos Vitte A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Aviso O conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusiva do editor. Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digital desde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquer exploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e a referência do documento. Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casos previstos pela legislação em vigor em França. Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a edição eletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Referência eletrônica Antonio Carlos Vitte, « A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza », Confins [Online], 22 | 2014, posto online no dia 29 Novembro 2014, consultado o 03 Dezembro 2014. URL : http:// confins.revues.org/9895 ; DOI : 10.4000/confins.9895 Editor: Théry, Hervé http://confins.revues.org http://www.revues.org Documento acessível online em: http://confins.revues.org/9895 Documento gerado automaticamente no dia 03 Dezembro 2014. © Confins

Immanuel Kant's Physische Geographie: description and history of nature

Embed Size (px)

Citation preview

Confins22  (2014)Número 22

................................................................................................................................................................................................................................................................................................

Antonio Carlos Vitte

A Physische Geographie de ImmanuelKant: descrição e história da natureza................................................................................................................................................................................................................................................................................................

AvisoO conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquerexploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferência do documento.Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislação em vigor em França.

Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a ediçãoeletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França)

................................................................................................................................................................................................................................................................................................

Referência eletrônicaAntonio Carlos Vitte, « A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza », Confins[Online], 22 | 2014, posto online no dia 29 Novembro 2014, consultado o 03 Dezembro 2014. URL : http://confins.revues.org/9895 ; DOI : 10.4000/confins.9895

Editor: Théry, Hervéhttp://confins.revues.orghttp://www.revues.org

Documento acessível online em:http://confins.revues.org/9895Documento gerado automaticamente no dia 03 Dezembro 2014.© Confins

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 2

Confins, 22 | 2014

Antonio Carlos Vitte

A Physische Geographie de ImmanuelKant: descrição e história da natureza

1 Até meados do século XVIII a geografia não era considerada uma ciência (MAY, 1970)para Immanuel Kant (1704-1824). A geografia deveria apenas auxiliar a ciência e a razãofornecendo elementos para que a razão produzisse uma sistematização dos princípiosempíricos das natureza. A função da geografia seria a de fornecer elementos à razão para aconstituição de leis empíricas e auxiliá-la no ordenamento das relações causais.

2 Para um Kant fortemente vinculado aos princípios do newtonianismo, para ser consideradauma ciência, a geografia deveria necessariamente trabalhar com leis transcendentais, umavez que somente elas permitiriam a produção de prognósticos sobre os fenômenos (SLOAN,2006).

3 De meados do século XVIII, até o ano basilar de 1790, Kant revê seus postulados e suafidelidade aos princípios do mecanicismo newtoniano, momento em que a natureza passa aser concebida não mais como uma ideia, mas sim uma estrutura independente da razão epossuidora de uma história. A partir da concepção de uma história da natureza, poderiamser construídos quadros evolutivos, cada qual com suas tipologias representativas (LENOIR,1981; REILL, 2005; RUDWICK, 2005, p. 71-85).

4 Então, a questão que se coloca é determinar a partir de qual momento e porque Kant passou aconsiderar a geografia como uma ciência? A premissa deste artigo é que houve uma interaçãocomplexa entre o desdobrar filosófico de Kant e o desenvolvimento das ciências naturais eda vida.

5 O desenvolvimento da história natural e das ciências da vida obrigaram Kant a rever ospostulados da Crítica da Razão Pura, onde os princípios mecânicos e os teleológicos foramreorganizados na Crítica da Faculdade do Julgar, derivando disto uma nova concepção sobre anatureza e sua sistematicidade. Por outro lado, a reflexão kantiana colocou questões de ordemmetodológica a este novo quadro, conduzindo obrigatoriamente as ciências naturais e da vidaa produzirem uma teoria geral sobre a história natural. Donde a filosofia kantiana, a partir daTerceira Crítica, forneceu o cimento epistemológico para a produção de uma nova visão sobreo mundo orgânico.

6 Este é o contexto em que a natureza deixa de ser apenas uma ideia regulativa1, ao mesmotempo em que a geografia passa a ser considerada uma ciência por Kant, cujos princípios foramdesenvolvidos pela naturphilosophie, na qual a geografia de Alexander von Humboldt é umaforte representante.

Buffon (1705-1788) e a história da natureza7 Entre 1748 e 1751 foram publicadas três obras que determinaram a mudança de rumo

na história intelectual do Esclarecimento europeu e inauguraram uma nova visão sobre asociedade e a natureza. Assim, em 1748 Montesquieu publicou o L’esprit des lois, em 1749foi a vez de Buffon publicar o primeiro dos três volumes da obra Histoire naturelle, généraleet particulière e já em 1751 o próprio Buffon inicia a publicação de sua monumental obraHistoire naturelle, constituída de trinta e seis volumes (SPARY, 2000).

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 3

Confins, 22 | 2014

8 Em meados do século XVIII estas três obras propunham uma nova linguagem e uma novainterpretação sobre a sociedade, atingindo não somente a Europa educada e esclarecida, mastambém o público em geral. Segundo Mornet (1910) em 1780 a Histoire naturelle de Buffonera a terceira obra mais lida e comentada na Europa, além de ser um dos livros mais popularesna França.

9 Até meados do século XVIII a matemática era a demonstração do poder da razão, aoponto de Spinoza considera-la o olho da filosofia natural (JORDANOVA, 1986). Contudo,concomitante aos questionamentos sociais sobre o poder absoluto das autoridades monárquicae teológica (JACOB, 1981), ocorriam reações contrárias à filosofia natural de cunho mecânica-matemática. Estes questionamentos se dirigiam contra um esquematismo de cunho abstratoque era utilizado pelos filósofos mecanicistas nas interpretações da natureza e da sociedade.

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 4

Confins, 22 | 2014

10 Para David Hume a natureza se caracterizava por uma uniformidade, assim como pelasimilaridade entre as formas e os processos. A partir disto, poderíamos falar na existência deuma identidade entre as formas e os processos, onde os eventos de transformação da naturezaeram sempre similares no tempo (HUME, 2000, 2003).

11 Ainda segundo Hume, a natureza era um complexo em constante revolução, onde as formasseriam destruídas mas e outras novas eram criadas (KROHN e KÜPPER, 1992) A certezadesta regularidade da natureza seria para Hume, dada pela observação da repetição das formase dos processos.

12 É neste contexto dos postulados de Hume, que pensadores do século XVIII como Buffonpassaram a reavaliar as teses da filosofia mecânica, em especial a concepção de uma razãohipotética da razão.

13 Para isto, a primeira posição assumida por Buffon foi a de ordem epistêmica e metodológica,concebendo que o conhecimento somente seria produzido a partir de uma estreita associaçãoentre as formas de linguagem, o método e a explicação filosófica, associação esta que irásubstantivar a retórica do filósofo natural na explicação sobre a natureza (JORDANOVA,1986, p.35).

14 Para Buffon haveria uma linguagem da natureza que não era abstrata e arbitrária comoconcebiam os filósofos mecanicistas, mas antes, a linguagem da natureza era factual e deveriaser buscada pelo filósofo natural por meio da intuição, da experimentação e da observaçãodos fenômenos reais.

15 A noção de uma linguagem da natureza reabilitava o pensamento naturalista de Plínio, deAristóteles e de Hipócrates; concomitantemente, Buffon se apropriava da concepção de vidana natureza, postura metafísica que fora defendida pelo hermetismo (DUCHESNEAU, 1985,p. 259-260) no Renascimento.

16 A linguagem da natureza não era a matemática, como defendiam os filósofos mecanicistas,uma vez que segundo Buffon, a matemática não gerava conhecimento sobre a natureza poisnão seria capaz de revelar os segredos da natureza. Estes segredos seriam atingidos pelaobservação e pela descrição dos fenômenos reais da natureza somente se inseridos em umaperspectiva histórica.

17 Ao conceber a história como uma forma de conhecimento sobre os fatos naturais, Buffonreintroduziu a ontologia nos estudos sobre a natureza (KIERNAN, 1973). A introdução dahistória nos estudos da natureza era justificada por Buffon a partir do pressuposto que anatureza não era um sistema lógico como pensavam os filósofos mecanicistas, pois ela erapermeada por contingências, além do que, muitos objetos da natureza eram únicos.

18 A história permitia ao filósofo natural ordenar os fatos e os eventos empíricos em um quadrode sucessão temporal (SLOAN, 2006). Mas como ter certeza da observação? Não seria a noçãode contingência dos eventos produto da falha da própria percepção?

19 Sendo a natureza uma matéria de fato, a questão era determinar a regularidade de seus eventos(HUME, 2000, 2003; BUFFON, 1749-1778). Apropriando-se do cálculo das probabilidades,Buffon (HUNEMAN, 2006; SLOAN, 2006), concebia que a regularidade de um evento seriadada pela repetição de uma série similar de eventos. Repetição esta que seria suficientepara revelar a ordem empírica da natureza, cuja certeza era dada pelos experimentos e pelasobservações de campo.

20 Durante a observação da regularidade de um evento o pesquisador deveria se preocupar com asequência e a repetição constante dos fatos. Assim, uma sucessão ininterrupta de eventos seriapara Buffon a demonstração de uma verdade física (BUFFON, 1749-1778).

21 A investigação da natureza deveria ser guiada pelo conhecimento indutivo, que era ofundamento da história natural em um dado tempo e espaço. A partir desta posição epistêmica,Buffon (op.cit.) se posicionava radicalmente contrário a classificação de Linneu, considerandoesta classificação lógica e abstrata na medida em que Linneu não considerava as relaçõesfísicas das espécies no espaço e no tempo.

22 Diferentemente de Linneu, para Buffon a classificação de uma espécie deveria sernecessariamente relacional, uma vez que a espécie seria o produto de relações intrínsecas a

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 5

Confins, 22 | 2014

si mesma, mas também das relações com outras espécies e com o ambiente. Portanto, umaespécie estava sujeita a variações e transformações no tempo e no espaço (SLOAN, 1976).

23 Esta premissa deveria ser levada em consideração no ato de classificação das espécies, poissegundo Buffon (1749-1778), esta classificação exigia estudos empíricos na natureza.

24 Ao conceber a natureza como uma coisa material que se realiza em objetos e espécies a partir detransformações por suas propriedades intrínsecas, Buffon resgatou a concepção neoplatônica ehermética de vida da natureza e segredos da natureza (REILL, 2005). Estas duas concepçõesforam reordenadas no quadro epistemológico e metodológico de Buffon, permitindo a inserçãoda história como sendo uma estrutura chave para a compreensão sobre a diversidade dasformas, dos objetos e das espécies na natureza. O sentido de história permitiu a Buffon eposteriormente a Cuvier desenvolver a noção de que a natureza, ou seja, as formas e as espéciesse transformam por grandes revoluções que envolvem a história geológica e a da vida na Terra(REILL, 2005; RUDWICK, 2005).

25 Portanto, o conhecimento da natureza é possível somente por meio de estudos empíricose indutivos, com a participação da observação, da descrição e da experimentação. Onde aobservação dos eventos, portanto a transformação das formas permitiria o estabelecimento deuma regularidade dos fenômenos naturais.

26 Este posicionamento epistemológico de Buffon (1749-1778) ao fundamentar o papel dadescrição da natureza2, em associação com a noção de sistemas de eventos e ao conceito dehistória da natureza, exigiu dos pesquisadores a necessidade de considerar como condição parainvestigação da natureza, que a mesma era externa, material e possuidora de uma dinâmica,cujo resultado seriam as morfologias.

27 Então, a questão que se colocou remetia a construção de uma metodologia para a investigaçãocientífica, uma vez que a forma era o produto momentâneo de uma dinâmica espaçotemporal,envolvendo uma teia complexa dada pela relação entre a história da natureza e as condiçõesambientais.

28 É neste contexto que os conceitos de fisionomia e de arqueologia da natureza irão impregnar odebate científico e filosófico a partir de meados do século XVIII, cuja expressão deste debateserá o reposicionamento filosófico e científico de Kant.

29 Esta reformulação kantiana terá dois claros impactos, o primeiro será no próprio conceito derazão, requalificada a partir deste momento como sendo produto de uma dinâmica e de umahistória. O segundo está relacionado ao fato de que a geografia passará a ser considerada umaciência, uma vez que para Kant, a história e a arqueologia da natureza exigia uma ciência quetrabalhasse com a sincronia do espaço a partir de uma perspectiva de um desenvolvimentohistórico da natureza (ADICKES, 1911; MAY, 1970; SLOAN, 2006).

Immanuel Kant: dos princípios regulativos e teleológicosaos morfotipos e a fisionomia da natureza enquantorecurso metodológico.

30 Entre 1790 e 1840 as ciências naturais, assim como as ciências da vida, sofreram umforte desenvolvimento na Alemanha, impulsionadas basicamente pelo surgimento da histórianatural e pelo desenvolvimento da fisiologia (LENOIR, 1981). Este desenvolvimento trouxeuma nova concepção sobre a noção de vivo, sendo agora interpretado como resultante demúltiplas conexões entre as forças inorgânicas com as orgânicas. Relações estas que eramcontextualizadas em uma teia complexa de interações espaciais e temporais.

31 A construção desta concepção envolveu um ambiente que interpretava a vida como sendoo produto de uma relação e uma interação complexa entre os princípios mecânicos e osteleológicos da natureza. Pois, se a natureza era regida tanto por leis mecânicas, quanto poruma força não-mecânica, cuja função era a de promover a interação entre as diferentes esferasda natureza (LENOIR, 1981, p.312), cujo resultado seriam as morfologias (LENOIR, 1981)que por sua vez se transformavam temporal e espacialmente.

32 Para Kant, a melhor representação desta nova concepção de natureza era o organismo, quepara Goethe (STEIGERWALD, 2002) funcionava como uma estrutura heurística, portanto

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 6

Confins, 22 | 2014

uma estrutura epistemológica, onde a nova natureza era pensada como sistematicidade quedeveria ser pensada a partir de sua própria dinâmica.

33 Para Kant (2000), a noção de organismo permitia que fossem articuladas as relações e asexplicações causais com as teleológicas, interação esta que possibilitava o entendimento dadinâmicas da natureza.

34 Esta postura de Kant (2000) significou em termos filosóficos uma transformação dospostulados desenvolvidos na Crítica da Razão Pura, onde as leis empíricas e a experiência eminteração com os princípios transcendentais, em uma perspectiva histórica, constituíam umaunidade (HUNEMAN, 2006; SLOAN, 2006).Kant by Gottlieb Doebler

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/dd/, [Public domain], via Wikimedia Commons

35 Nesta nova concepção, tal como Buffon, a dinâmica e a história serão as duas grandesestruturas, segundo Kant, necessárias para se compreender a organização e a distribuiçãoespacial da natureza na superfície terrestre. Uma vez que permitiam ao pesquisador identificara regularidade dos eventos, assim como estabelecer as conexões entre as leis empíricasparticulares, com a própria história de transformação da natureza como um todo.

36 Esta postura epistemológica exigia por parte do pesquisador uma atitude empírica e indutiva,pois a dinâmica da natureza era diferenciada no tempo e no espaço (SLOAN, 2006).

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 7

Confins, 22 | 2014

37 Esta dinâmica da natureza se materializa, segundo Kant (LENOIR, 1984) em morfotipos. Estesmorfotipos foram chamados por Kant (KANT, 2000) de Naturzwecke. Assim Kant concebiaa Naturzweche:

38 ¨ The first principle required for the notion of an object conceived as a natural purpose is thatthe parts, with respect to both form and being, are only possible through their relationship tothe whole . . . . Secondly, it is required that the parts bind themselves into the unity of a wholein such a way that they are mutually cause and effect of one another” (Kant, 2000, p. 219).

39 Inicialmente Kant (2000) concebia os Naturzweche, apenas como corpos orgânicos, quecresciam e se desenvolviam segundo as leis orgânicas, sendo que o mesmo não aconteceriacom os corpos inorgânicos, pois estes seriam governados apenas por leis mecânicas.

40 No entanto, a partir de 1790, os trabalhos de Johann Friedrich Blumenbach e Johann ChristianReil (LENOIR, 1981), rejeitaram a tradição interpretativa de Sthal e de Caspar Wolff 3,assumindo a premissa de que o calor era um fenômeno da vida e não estava dissociadoda matéria. Ou seja, forma e função não eram dissociadas e que o calor era produto dosconstituintes do corpo organizado. Com isto, física e química passaram a ser vistas comocampos indissociáveis, o que significava dizer que haveria um interação entre os processosinorgânicos e os orgânicos que atuavam de maneira conjugada e interativa na geração da vidae na definição dos morfotipos (LENOIR, 1981 ).

41 Agora, as diferenciações dos morfotipos, passaram a ser interpretadas como resultantesde conexões entre os processos internos dos morfotipos, a história dos mesmos e as suascondições ambientais. De tal forma, que as conexões poderiam apresentar diferenciaçõesespaçotemporais com inferências diretas nas características e nas propriedades dos morfotipos.Com isto, haveria uma diferenciação espacial dos morfotipos, cujo resultado seriamconfigurações espaciais morfológicas diferenciadas entre si, permitindo-nos falar em sistemasmorfológicos (COLEMAN, 1964, 1973)4.

42 Com isto, Kant ampliou a noção de Naturzweche, não separando mais o inorgânico do orgânicona geração de um corpo vivo. Esta nova posição filosófica e epistemológica de Kant foipossível somente a partir do momento em que houve uma requalificação dos princípiosregulativos e teleológicos na constituição da razão, com consequências na avaliação do mundonatural.

43 Esta nova postura frente aos princípios regulativos eteleológicos no entendimento da natureza,deve-se influencia de Buffon em Kant (HUNEMAN, 2006). Para quem agora, além das leiscausais, haveria uma proposta [grifo nosso], um objetivo inerente, uma teleologia na próprialógica de desenvolvimento da natureza, cuja síntese eram os morfotipos.

44 Esta mudança filosófica e epistemológica de Kant foi possível graças ao fato de que osprincípios regulativos e teleológicos passaram a ter o mesmo status dos princípios constitutivosda razão. De tal forma, que além de participarem ativamente na construção da representaçãoda sistematicidade e da unidade da natureza, também foram vistos como fundamentais naconstrução do conhecimento humano (CORDEIRO, 2012).

45 Para Breitenbach (2006) a requalificação dos princípios regulativos e teleológicos, foi umaestratégia para compatibilizar as leis mecânicas com as teleológicas, permitindo com istoconceber a sistematicidade da natureza a partir de uma relação complexa entre a disposiçãoespacial dos morfotipos, que resultavam da relação entre a dinâmica atual dos mesmos coma história da natureza.

46 Com esta nova postura Kant assumia que o conhecimento sobre a vida e a natureza não poderiaser reduzido a meras explicações mecânicas, mesmo princípio que deveria ser aplicado aosmorfotipos (KANT, 2000).

47 Cada morfotipo teria uma funcionalidade e uma potencialidade, sendo que aí se assentaria opapel do olhar e da percepção do sujeito, pois a observação da dinâmica e da funcionalidade doorganismo, ou dos morfotipos, possibilitava a dedução e a reconstrução os eventos passados.

48 Esta postura de Kant foi possível graças as reflexões geológicas de Abraham Werner, queconsiderava o espaço como uma estrutura filosófica e epistemológica fundamental para secompreender as variações morfológicas da crosta terrestre (RUDWICK, 2005). Retrabalhandoa noção de regularidade de eventos de Buffon; Werner desenvolveu o conceito de atualismo,

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 8

Confins, 22 | 2014

onde um evento do passado poderia ser explicado por analogia com um evento atual, já queas causas do passado atuariam com intensidade variada no presente5.

49 É neste momento que Kant irá produzir a noção de fisionomia [grifo nosso] (SLOAN, 2006)assumem importância metodológica nos estudos sobre a natureza.

50 A análise da fisionomia dos morfotipos permitiria ao pesquisador conectar conjuntamentedescrição e história da natureza (SLOAN, 2006). Uma vez que os morfotipos seriamproduto de uma transformação histórica que envolvia tanto os aspectos intrínsecos da relaçãoentre a esfera orgânica com a inorgânica, como também as relações desta esfera comas transformações ambientais, cujo produto final seriam os conjuntos de morfotipos comsuas características fisionômicas e potencialmente diferenciadas, muito embora pudessemgeneticamente ter uma história comum.

51 Os trabalhos de Buffon (1749-1778) associados às reflexões de Werner possibilitaram aKant lançar mão da análise da fisionomia das morfologias para se compreender e estabelecera sistemática da natureza, uma vez que por analogia seria possível reconstruir os eventospassados, mantendo sempre a noção de uma similaridade da forma.

52 A consideração da fisionomia na pesquisa científica não possibilitou apenas articular descriçãocom história da natureza, mas antes, esta articulação somente foi possível devido à entrada doespaço na análise científica.

A geografia física kantiana; descrição e história da natureza53 No período anterior a 1790, Kant considerava que a função da geografia seria a de

somente fornecer à razão as bases para uma sistematicidade da experiência, ou seja, ordenarespacialmente as leis empíricas. A geografia, deveria apenas sistematizar a experiência a partirde uma ordenação temporal e espacial das leis empíricas, fornecendo com isto, as condiçõespara que a razão pudesse produzir o conhecimento sobre a natureza (KANT, 1911, 1923;LENOIR, 1984).

54 A partir dos trabalhos de Buffon e de Werner, Kant passou a rever os postulados da Crítica daRazão Pura (KANT, 1982), reordenando as relações e o papel das leis mecânicas, assim comoos princípios regulativos e teleológicos na definição de uma nova sistematicidade da natureza.

55 É o momento em que geografia, antes mera ordenadora da experiência, se transformando emuma ciência chave para se entender a dinâmica da natureza e da cultura na superfície da Terra6.

56 Para Kant, o conhecimento geográfico produziria um conhecimento sistemático e total daTerra, sendo a única ciência capaz de produzir uma visão sistemática de natureza. SegundoKant a geografia possuía particularidades quanto ao método e ao objeto. A geografia comouma ciência unitária possuía como objeto a diferenciação espacial.

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 9

Confins, 22 | 2014

57 Sob o ponto de vista do método, a geografia era a única ciência que conseguia articular em suaexplicação geográfica a narração histórica sobre a transformação da natureza, com a descriçãodas fisionomias dos morfotipos ou dos sistemas morfológicos e a imaginação. Sendo que estaúltima tinha a capacidade de ao articular o empírico com o transcendental, produzir o sensode espacialidade.

58 Para Kant (ADICKES, 1911, p.169) a geografia era a única ciência que conseguia articulartempo e espaço em uma explicação científica, permitindo com isto a reconstrução dos quadroshistóricos sobre os eventos da natureza no passado.

Considerações finais59 A concepção de história da natureza desenvolveu-se a partir de meados do século XVIII,

cuja centralidade foi à reação da intelectualidade europeia frente aos postulados da filosofiamecânica. Neste processo, destacou-se Buffon que liderou esta reação, propondo que afilosofia mecânica tratava a natureza de forma abstrata, onde dominava a matemática e ageometria. Para Buffon, a natureza era real, empírica e se caracterizava por apresentar eventosque se articulavam em um sistema.

60 Aproveitando-se das reflexões de David Hume, Buffon irá propor que o verdadeiro estudo danatureza deve ser empírico e indutivo, onde observação e descrição são as grandes estruturasmetodológicas e que permitiriam a geração do conhecimento.

61 Para Buffon, tal qual a sociedade humana, a natureza também seria portadora de uma história,portanto dinâmica no espaço e no tempo.

62 A concepção de história da natureza trouxe um rompimento radical não somente com afilosofia mecânica de cunho newtoniano, mas também com a noção de fixismo das espécies.Para Buffon, uma espécie possuiria uma história e uma dinâmica, que seria produto dasrelações internas à espécie, mas também dada pela interferência das determinações ambientais,que poderiam inclusive impor uma transformação de um espécie em outra.

63 Estas reflexões de Buffon associadas à concepção de geologia de Werner, onde o espaço erauma categoria importante para se considerar as transformações e diferenciações morfológicasda crosta terrestre; levaram Kant a rever os postulados da filosofia crítica.

64 A concepção de que a natureza tinha uma história e uma dinâmica que inclusive poderiatransformar uma espécie em outra, levou Kant a repensar os fundamentos desenvolvidos naCrítica da Razão Pura, onde as leis empíricas eram subordinadas aos princípios constitutivosda razão e não tinham qualquer participação na geração do conhecimento.

65 O resultado foi à produção da Crítica da Faculdade do Julgar, onde a natureza passava a serconcebida como dinâmica e que se transformava no tempo e no espaço, cujo resultado erammorfotipos, que em conjunto formavam sistemas morfológicos. Esta nova postura de Kantlevou o filósofo a propor que como na natureza, a razão também ela tinha uma história. Estapostura de Kant foi o resultado de uma revisão no esquematismo dos princípios da razão, ondeagora, os princípios regulativos e teleológicos passaram a ter o mesmo status dos princípiosconstitutivos.

66 O resultado desta transformação na filosofia kantiana foi uma redefinição de seu conceito deciência, onde a geografia passou a ser considerada a única ciência capaz de trabalhar coma sincronia do espaço no tempo e ao mesmo tempo articular as diferenciações espaciais etemporais das leis empíricas com as transcendentais.

67 A Physische Geographie de Kant, assim como outras obras em que a reflexão geográficase apresenta como estruturante de um pensamento crítico, leva-nos a refletir sobre acomplexidade do conceito de geografia em Kant. Esta complexidade está, a nosso ver,relacionada ao fato de que em Kant a reflexão geográfica possui forte embasamento filosóficoe que somente a partir disso o filósofo chegou a pensar em uma epistemologia da ciência.

68 É neste quadro de complexidade que devemos ler o significado que Kant atribui à expressãodescrição da natureza. Esta não é meramente empírica, mas dotada também de relevânciauniversal, teórica, transcendental nos dizeres de Kant.

69 Deve-se destacar que o pensamento geográfico em Kant não se restringe apenas à PhysischeGeographie ‒ aliás, se tomarmos apenas esta como referência central, pouco ou quase nadada riqueza do pensamento geográfico de Kant pode nos ser revelada. A associação desta com

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 10

Confins, 22 | 2014

as demais obras revela-nos uma riqueza conceitual, em que se destaca o papel do espaço e dalocalização do lugar na determinação do conhecimento do mundo.

70 ADICKES, Erich. Untersuchungen zur Kants physische Geographie. Tübingen: Mohr,1911.

71 BREITENBACH, Angela. Mechanical explanation of nature and its limits in Kant’s Critiqueof Judgment. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences.,37, 2006, p. 694-711.

72 BUFFON, Georges Leclerc. Histoire naturelle, génerale et particulière. 36 vols., Paris:L’Imprimerie Royale, 1749-1778.

73 COLEMAN, William. Limits of the recapitulation theory: Carl Friedrich Kielmeyer’s Critiqueof the Presumed Parallelism of Earth History, Ontogeny, and the Present Order of Organisms.Isis, 64, 1973, p. 341-350.

74 ______. Georges Cuvier, Zoologist: a study in the history of evolutionary theory.Cambridge Mass.: Harvard University Press, 1964.

75 CORDEIRO, Renato Valois. O princípio da finalidade formal como um princípio regulativo-transcendental da faculdade de julgar reflexiva. Studia kantiana, 12, 2012, p. 154-174.

76 CROMBIE, Alexander. Historia de la ciencia: de San Agostinho a Galileo. Madrid:AlianzaEditorial, 1954.

77 DUSCHESNEAU, François. Vitalism in late eighteenth-century physiology: the cases ofBartez, Blumenbach and John Hunter. In: BYNUM, William F. e PORTER, Roy. WilliamHunter and the Eighteenth-Century Medical World. Cambridge:Cambridge UniversityPress, 1985, p. 259-295.

78 HUME, David. Tratado da natureza humana. SP: Editora da Unesp/Imprensa Oficial, 2000.79 ______. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. SP:

Editora da Unesp, 2003.80 HUNEMAN, Philippe. Naturalising purpose: from comparative anatomy to the ‘adventure

of reason’. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. 37,2006, p. 649-674.

81 JACOB, Margaret C. The radical enlightenment: freemasonry and politics in eighteenth-century Europe. NY:Oxford University Press, 1981.

82 JORDANOVA, Ludmilla. Languages of nature: critical essays on Science and literature.London: Free Association Books, 1986.

83 KANT, Immanuel. Physical Geography. Cambridge: Cambridge Editons, 1911, 9 vols.84 ______. Physische Geographie. Akademie Ausgabe of the Gesammelten Schriften, (AK.9),

1923.85 ______. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1982.86 ______. Critique of the Power of Judgment. NY: Cambridge University Press, 2000.87 KIERNAN, Colm. The enlightenment and Science in eighteenth-century France. In:

BESTERMAN, Theodore (org.) - Studies on Voltaire and the Eighteenth Century.Oxfordshire:Voltaire Foundation, 1973, p. 21-35.

88 KRON, Wolfgang. e KÜPPES, Günther. Die natürlichen ursachen der zwecke: Kants ansätzeder selbstorganisation. Selbstorganisation: Jahrbuch für komplexität in den Natur, Sozialund Geisteswqissenschaften, 3, 1992, p. 7-15.

89 LENOIR, Timothy. Teleology without regrets. The transformation of physiology in germany:1790-1847. Studies history Philosophical Science. Vol. 12, n. 4, 1981, p. 293-354.

90 MAY, J. Kant’s concept of geography. Toronto: Toronto University Press, 1970.91 MORNET, Daniel. Les enseignements des bibliothèques privies (1750-1780). Revue

d’Histoire Littéraire de la France, 17, 1910, p. 469.92 REILL, Peter Hanns. Vitalizing nature in the enlightenment. Berkeley: University of

California Press, 2005.93 SLOAN, Phillip. The Buffon-Linnaeus controversy. History of Science Society, vol.67, n. 3,

1976, p. 356-375.94 ______. Kant on the history of nature: the ambiguous heritage of the critical philosophy for

natural history. Studies in history and philosophy of biological and biomedical sciences,37, 2006, p. 627-648.

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 11

Confins, 22 | 2014

95 STEIGERWALD, Joan. Goethe’s morphology: Urphänomene and aesthetic appraisal.Journal of the History of Biology, 35, 2002, P. 291-328.

96 SPARY, Emma. Utopia’s garden: French natural history from old regime to revolution.Chicago:University of Chicago Press,

97 RUDWICK, Martin. Bursting the limits of Time. Chicago: University of Chicago Press,2005.

98 ZAMMITO, John H. Kant, Herder,. The birth of anthropology. Chicago: The UniversityChicago Press, 2002.

Notas

1 Kant considera como ideia regulativa as regras ao espírito, elas são máximas que guiam a especulaçãofilosófica. As ideias regulativas não determinam nenhum objeto para ser investigado, mas estimulam oentendimento a procurar sempre uma perfeição maior dos seus conceitos (BREITENBACH, 2006), umexemplo é o conceito de espaço absoluto.2 Segundo Crombie (1954) durante a escolástica a observação era o único recurso metodológico paraa investigação da natureza. Pois o fundamento era a contemplação do corpo de Deus. Com a revoluçãocientífica moderna no século XVII, será descrição que guiará a investigação. Pois agora, a natureza, asuperfície da Terra, era passiva e não continha nenhuma qualidade oculta.3 Para estes autores, o calor de um corpo era o produto de uma força vital, um eu imaterial que comandariaa relações entre os processos inorgânicos e os orgânicos dos seres vivos (LENOIR, 1981).4 Esta posição se desenvolveu intensamente a partir de 1830, a partir dos trabalhos de von Baer, paraquem o sistema de morfotipos era concebido como tridimensional e seria o produto complexo no espaçoe no tempo. Esta complexidade seria dada pela interação entre as esferas da natureza (clima, rocha,solo, vegetação e água) e onde o inorgânico e o orgânico se interagiam para produzir as qualidades domorfotipo, bem como suas potencialidades futuras. (LENOIR, 1981 ).5 O conceito de atualismo difere radicalmente do princípio do uniformitarismo de Hutton e de Lyell.Uma vez que o uniformitarismo considera que as causas que atuaram no passado atuam com a mesmaintensidade no presente (RUDWICK, 2005).6 O tema relativo à cultura e as raças não será desenvolvido neste artigo, para tanto consultar Zammito(2002).

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Antonio Carlos Vitte, « A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história danatureza », Confins [Online], 22 | 2014, posto online no dia 29 Novembro 2014, consultado o 03Dezembro 2014. URL : http://confins.revues.org/9895 ; DOI : 10.4000/confins.9895

Autor

Antonio Carlos VitteDepartamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto de Geociências,Unicamp, Campinas (SP), Brasil. CP 6152, CEP 13083-970. Pesquisador CNPq. E-mail:[email protected]

Direitos de autor

© Confins

Resumos

 Este artigo procura relacionar a geografia e a filosofia kantianas. Para Kant a geografia seriaa única ciência capaz de trabalhar o empírico e o transcendental, compondo uma relaçãomultiescalar, de acordo com a qual a descrição geográfica, associada à noção de história da

A Physische Geographie de Immanuel Kant: descrição e história da natureza 12

Confins, 22 | 2014

natureza poderia reconstruir os processos e as paisagens do passado e fornecer explicaçõespara as paisagens atuais.

La Physische Geographie d'Emmanuel Kant: description et histoire dela natureCet article vise à mettre en relation la géographie et la philosophie kantienne. Pour Kant, lagéographie serait la seule science qui peut travailler l'empirique et le transcendantal par lacréation d'une relation multiscalaire, selon laquelle la description géographique, associée à lanotion d'histoire de la nature pourrait reconstruire les processus et les paysages du passé etfournir des explications pour les paysages actuels.

Immanuel Kant's Physische Geographie: description and history ofnatureThis article seeks to relate Kantian geography and philosophy. In one hand, for Kant geographyis the only science that enables empirical and transcendental work due to the multiscalerelationship according to the geographical description and to the history of nature thatreconstructs the processes and landscapes of the past and also provides explanations for thelandscapes today.

Entradas no índice

Index de mots-clés : Kant; géographie physique; description de la nature; histoire dela nature; morphotypesIndex by keywords : Kant, physical geography; description of nature; history of nature;morphotypes.Índice de palavras-chaves : Kant; geografia física; descrição da natureza; história danatureza; morfotipos.