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Universidade Federal de São Paulo Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Letras Gazeta de Holanda, de Machado de Assis: uma série singular Fábio da Silva Júnior Guarulhos 2021

Gazeta de Holanda, de Machado de Assis: uma série singular

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Universidade Federal de São Paulo

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Letras

Gazeta de Holanda, de Machado de Assis: uma série

singular

Fábio da Silva Júnior

Guarulhos

2021

Fábio da Silva Júnior

Gazeta de Holanda, de Machado de Assis: uma série

singular

Dissertação apresentada para obtenção do título de

Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da

Universidade do Federal de São Paulo

Área de Concentração: Literatura

Linha de pesquisa: Literatura e autonomia entre ética e

estética

Orientadora: Professora Doutora Francine Fernandes

Weiss Ricieri

Co-orientador: Professor Doutor João Roberto Gomes de

Faria

Guarulhos

2021

Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos

autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório

Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer

ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico

para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

SILVA JÚNIOR, Fábio.

Gazeta de Holanda, de Machado de Assis: uma série singular / Fábio da

Silva Júnior. – 2021. – 198 f.

Dissertação (Mestrado em Letras). – Guarulhos: Universidade Federal de São

Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Orientadora: Francine Fernandes Weiss Ricieri Co-orientador: João Roberto Gomes de Faria.

Gazette de Hollande, de Machado de Assis : une série singulière

1. Literatura brasileira. 2. Machado de Assis. 3. Literatura e jornalismo. 4.

Crônica. 5. Gazeta de Holanda. I. Francine Fernandes Weiss Ricieri. II. João

Roberto Gomes de Faria. III. Gazeta de Holanda, de Machado de Assis: uma

série singular

FÁBIO DA SILVA JÚNIOR

GAZETA DE HOLANDA, DE MACHADO DE ASSIS: UMA SÉRIE SINGULAR

Aprovação: 22/07/2021

Profa. Dra. Francine Fernandes Weiss Ricieri

Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. João Roberto Gomes de Faria

Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Jean Pierre Chauvin

Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Lúcia Granja

Universidade Estadual de Campinas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras da Universidade Federal

de São Paulo (UNIFESP) como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre em

Letras.

Área de concentração: Estudos Literários

Linha de pesquisa: Literatura e autonomia:

entre ética e estética

À inspiradora luz,

que sempre me rege,

me guarda, me vela

e me ilumina.

Agradecimentos

Ao longo de minha curta trajetória acadêmica tive a honra de contar com pessoas muito

especiais, a quem quero expressar meu mais profundo agradecimento:

Primeiramente, a Deus por ter me proporcionado encontros que aprimoraram e aprimoram o

meu desenvolvimento espiritual e intelectual. Segundamente, aos meus pais, Geralda Nonata

da Silva e Flávio Pires da Silva, por terem me presenteado com a vida. Em especial, agradeço

à minha amada mãe, primeira a me ensinar a arte de amar a Vida e as Letras.

Agradeço também à minha querida orientadora, a professora doutora Francine Fernandes

Weiss Ricieri, que, além de orientar está pesquisa com uma leitura crítica e sugestões

cuidadosas, também me orientou a enfrentar obstáculos que surgiram ao longo desse percurso.

Ao meu caro co-orientador, o professor doutor João Roberto Gomes de Faria, por seu olhar

sempre sensível nas revisões textuais e sua disponibilidade nas trocas de ideias a respeito da

vida e da obra de Machado de Assis.

Às professoras doutoras Leila de Aguiar Costa e Lavínia Silvares, pelas ricas contribuições

bibliográficas, no que toca à literatura francesa e inglesa, respectivamente.

Aos professores doutores João Adolfo Hansen, Mirhiane Mendes de Abreu, Maria Lúcia Dias

Mendes e Maria Eulália Ramicelli, com quem cursei disciplinas na pós-graduação, e que me

expuseram novos horizontes para os estudos críticos e teóricos da literatura.

À professora doutora Iara Rosa Farias, com quem fiz minha primeira iniciação científica,

apostando em mim e no meu potencial e à professora doutora Josiane Martinez, pelos

conselhos dados quando ainda cursava Língua Grega, na graduação.

Também sou grato pela amizade e parceria do professor doutor Rodrigo Soares Cerqueira,

com quem realizei o estágio do Programa de Aperfeiçoamento Didático – PAD, bem como ao

professor doutor Pedro Marques Neto, que me fez ricas sugestões durante a entrevista do

processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Letras.

Um agradecimento especial à professora doutora Maria Lúcia Claro Cristóvão, que tanto me

ajudou na aprendizagem da língua francesa, tão importante para este estudo. Igualmente

agradeço aos colegas de curso Larissa Souza, Vinícius Takahashi e Yumi Rubio.

Às companheiras e aos companheiros de luta, meu mais terno agradecimento pelas palavras

de apoio e torcida: Simone Fronza, Jéssica Biône, Renata Lopes, Angela Pereira, Lara

Perussi, Nayra Kikuchi, Letícia Santana, Gi Mendes, Marcello Silva e Marcelo Brito, Rosana

Oliveira, Ana Paula, Maria Celeste, Stefany Bueno, Inês Barros, Soraya Nunes, Wesley

Aleixo, Jéssica Mak, André Silva, Gabrielle Costa, Marcela Costa, Kemily Flores, Domitila

Pereti, Ariane Ribeiro, Suelen Santana, Gabriel Ornelas, Hanna Lima e Erik Correia.

Aos laços afetivos que construí ao longo do mestrado: Renato Barreto, Julian Guilherme,

Dênea Lima, Cinthia Cardoso, Jéssica Aline, Milena Andrade, Francini Rijo, Elaine Correia,

Gabriel Furine, Luciana Soares e Thaís Portansky.

Ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à ex-presidenta Dilma Rousseff e ao ex-ministro

da educação, Fernando Haddad, pela criação de políticas públicas que permitiram a milhões

de jovens como eu, entrar e se formar em uma Universidade Pública de excelência, como a

UNIFESP.

Sou grato também a todos aqueles que colaboram pela existência e resistência do Campus

Guarulhos da Universidade Federal de São Paulo, no bairro dos Pimentas, zona periférica da

cidade: porteiros, zeladores, auxiliares de limpeza, profissionais do Restaurante Universitário

e das secretarias de curso, aos bibliotecários, aos docentes e diretores da instituição.

Igualmente agradeço à professora doutora Lúcia Granja e ao professor doutor Jean-Pierre

Chauvin, membros da banca de qualificação, que, com olhar arguto e gentileza nas palavras,

enriqueceram ainda mais essa pesquisa.

À CAPES, pela bolsa concedida no período de abril de 2020 a julho de 2021, momento mais

desafiador, sombrio e tenebroso de nossa história recente.

A todos aqueles que acreditam no pesquisador, na ciência e no poder da educação como

válvula transformadora da sociedade e da realidade.

E a esta versão de mim, por não ter desistido mesmo quando tudo parecia impossível.

Dou de conselho prudência,

E digo aos homens incautos

Que inda o melhor é a inocência.

(MACHADO DE ASSIS)

Resumo

Esta pesquisa estuda a construção da série de crônicas versificadas intitulada ―Gazeta de Holanda‖,

escrita por Machado de Assis entre os anos de 1886 e 1888. Para compreender a composição da

coluna, é pertinente entender o que foram as ―Gazettes de Hollande‖, denominação dada a panfletos

que circularam entre a Holanda e a França, entre os séculos XVII e XVIII, conforme esclarece o

historiador Eugène Hatin (1870). Também se faz necessário o estudo da epígrafe utilizada nos textos,

retirada da opereta La Grande-Duchesse de Gérolstein, dos franceses Henri Meilhac e Ludovic

Halévy, com música do compositor alemão Jacques Offenbach (2003). Representada durante a

segunda metade do século XIX, a ópera-bufa foi um sucesso triunfal em diversos palcos do mundo,

como afirma Siegfried Kracauer (2002), tendo tido repercussão também nos teatros cariocas, o que

permite compreender sua presença na produção machadiana. Parece proveitoso, por fim, explorar

sentidos da utilização, na assinatura das crônicas, do pseudônimo Malvólio, nome de uma

personagem de Noite de Reis, peça do dramaturgo inglês William Shakespeare (2008). O conjunto

desses elementos parece configurar uma prática discursiva fortemente marcada pela presença de

elementos satíricos. Enylton José de Sá Rego (1989) já apontou elementos da sátira luciânica que se

mostram presentes em textos de Machado de Assis produzidos a partir da década de 1880, tais como a

mistura de gêneros, a utilização sistemática da paródia, a liberdade de imaginação, o estatuto ambíguo

e não-moralizante e o ponto de vista de um observador distanciado. Na série, juntamente com a verve

cômica, tais recursos parecem contribuir com a formulação de posicionamentos críticos a respeito da

proliferação de doutrinas filosóficas, científicas e religiosas, bem como com relação a questões mais

gerais, como política e escravidão; assuntos tratados, mais especificamente, nos capítulos analíticos

da dissertação.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Gazeta de Notícias; Machado de Assis; Crônicas; Gazeta de

Holanda.

Résumé

Cette étude analyse la construction de la série de chroniques écrites en vers, et intitulées « Gazeta de

Holanda » (Machado de Assis, 1886 – 1888). Pour comprendre la composition de la série, il est

pertinent de comprendre ce qu'étaient les «Gazettes de Hollande», dénomination donnée aux

brochures qui circulaient entre la Hollande et la France, entre le XVIIe et le XVIIIe siècle, comme

l'explique l'historien Eugène Hatin (1870). Il faut aussi étudier l'épigraphe utilisée dans les textes,

tirée de l'opérette La Grande-Duchesse de Gérolstein, des Français Henri Meilhac et Ludovic

Halévy, avec la musique du compositeur allemand Jacques Offenbach (2003). Représenté au cours de

la seconde moitié du XIXe siècle, l'opéra-bouffon a été un succès triomphal sur plusieurs scènes à

travers le monde, comme l'a déclaré Siegfried Kracauer (2002), ayanté galement eu des répercussions

dans les théâtres de Rio de Janeiro, ce qui permet de comprendre sa présence dans la production de

Machado de Assis. Enfin, il semble utile d'explorer le sens de l'utilisation, dans la signature des

chroniques, du pseudonyme Malvólio, du nom d'un personnage de La nuit des rois, une pièce du

dramaturge anglais William Shakespeare (2008). L'ensemble de ces éléments semble configurer une

pratique discursive fortement marquée par la présence d'éléments satiriques. Enylton José de Sá Rego

(1989) a déjà souligné des éléments de la satire lucianique présents dans les textes de Machado de

Assis produits depuis les années 1880, tels que le mélange des genres, l'utilisation systématique de la

parodie, la liberté d'imagination, le statut ambigu et non moralisateur et le point de vue d'un

observateur distant. Dans la série, avec la verve comique, ces ressources semblent contribuer à la

formulation de positions critiques concernant la prolifération des doctrines philosophiques,

scientifiques et religieuses, ainsi que par rapport à des questions plus générales, telles que la politique

et l'esclavage, sujets traités, plus spécifiquement, dans les chapitres analytiques de la thèse.

Mots-clés : Littérature brésilien; Gazeta de Notícias ; Machado de Assis, Chroniques ; Gazeta de

Holanda.

Lista de ilustrações

FIGURA 1 – O PAIZ, 27 FEV. 1888, P. 2 ................................................................................... 37

FIGURA 2 – JORNAL DO COMMERCIO, 27 DEZ. 1867, P. 5 ........................................................ 70

FIGURA 3 – JORNAL DO COMMERCIO, 11 FEV. 1868, P. 06 ...................................................... 71

FIGURA 4 – JORNAL DO COMMERCIO, 02 JUN. 1868, P. 5 ........................................................ 73

FIGURA 5 – JORNAL DO COMMERCIO, 17 AGO. 1868, P. 5 ....................................................... 73

FIGURA 6 – JORNAL DO COMMERCIO, 19 DEZ. 1868, P. 4 ........................................................ 74

FIGURA 7 – SEMANA ILLUSTRADA, 27 DEZ. 1868, P. 3359 ..................................................... 74

FIGURA 8 – JORNAL DO COMMERCIO, 21 DEZ. 1872, P. 8 ........................................................ 76

FIGURA 9 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 06 JUN. 1876, P. 4 ............................................................ 77

FIGURA 10 – JORNAL DO COMMERCIO, 20 JUN, 1876, P. 06 .................................................... 77

FIGURA 11 – GAZETA DE NOTICIAS, 3 JUL. 1876, P. 2 ............................................................ 80

FIGURA 12 – JORNAL DO COMMERCIO, 20 FEV. 1880, P. 3 ...................................................... 81

FIGURA 13 – JORNAL DO COMMERCIO, 20 JUL. 1881, P. 4 ...................................................... 81

FIGURA 14 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 1º NOV. 1886, P. 1 .......................................................... 84

FIGURA 15 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 NOV. 1886, P. 2 ....................................................... 102

FIGURA 16 – O PAIZ, 22 NOV. 1886, P. 1.............................................................................. 102

FIGURA 17 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 23 NOV. 1886, P. 2 ....................................................... 103

FIGURA 18 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 14 MAIO. 1887, P. 2 ....................................................... 105

FIGURA 19 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 19 JUN. 1887, P. 1 .......................................................... 105

FIGURA 20 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 21 JUL. 1887, P. 1 ......................................................... 106

FIGURA 21 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2 AGO. 1887, P. 1 ........................................................... 106

FIGURA 22 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 8 OUT, 1887, P. 1 ......................................................... 107

FIGURA 23 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 16 NOV. 1886, P. 1 ....................................................... 107

FIGURA 24 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 29 DEZ. 1887, P. 2 ........................................................ 108

FIGURA 25 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 30 DEZ. 1887, P. 2 ........................................................ 108

FIGURA 26 – GAZETA DA TARDE, 6 AGO. 1888, P. 2 ............................................................. 109

FIGURA 27 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 10 DEZ. 1875, P. 4 ......................................................... 115

FIGURA 28 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 19 FEV. 1877, P. 4 ......................................................... 116

FIGURA 29 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 14 MAR. 1878, P. 4 ........................................................ 116

FIGURA 30 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 25 MAIO 1879, P. 4 ....................................................... 117

FIGURA 31 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 17 JAN. 1882, P. 4 ......................................................... 118

FIGURA 32 – O PAIZ, 30 JUL. 1886, P. 3 ................................................................................ 119

FIGURA 33 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 23 MAR. 1887, P. 1 ......................................................... 129

FIGURA 34 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 27 MAR. 1887, P. 1 ........................................................ 130

FIGURA 35 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 25 OUT. 1886, P. 2........................................................ 158

FIGURA 36 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 25 OUT. 1886, P. 2........................................................ 158

FIGURA 37 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 26 OUT. 1886, P. 1........................................................ 160

FIGURA 38 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 26 OUT. 1886, P. 1........................................................ 161

FIGURA 39 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 5 SET. 1885, P. 1 ............................................................ 167

FIGURA 40 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 28 NOV. 1885, P. 1 ......................................................... 167

FIGURA 41 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 14 ABR. 1887, P. 2........................................................ 168

FIGURA 42 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 12 JUN. 1887, P. 2 ........................................................ 169

FIGURA 43 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 24 JUL. 1887, P. 1 ......................................................... 170

FIGURA 44 – GAZETA DE NOTÍCIAS, 17 SET. 1886, P. 1 ........................................................ 177

Sumário

Primeiras palavras ................................................................................................................ 16

I – Um cronista versejador ................................................................................................... 21

Machado de Assis e a crônica ........................................................................................... 21

O bruxo e a tradição da sátira ........................................................................................... 28

Por uma imprensa escrita em verso: invenção ou tradição? ............................................... 36

II – Uma série singular ......................................................................................................... 43

Gazette de Hollande ......................................................................................................... 43

La Grande-Duchesse de Gérolstein ................................................................................... 59

Estreia........................................................................................................................... 59

Enredo .......................................................................................................................... 63

Repercussão na Europa ................................................................................................. 68

La Grande-Duchesse de Gérolstein no Brasil ................................................................ 70

A excelência de uma citação: a epígrafe ........................................................................ 83

Noite de Reis .................................................................................................................... 87

Malvólio em Noite de Reis ............................................................................................ 91

Dentre tantos, Malvólio ................................................................................................. 99

Os versos cintilantes e espirituosos de um cronista brejeiro ............................................ 101

III – Sonhos singulares ....................................................................................................... 111

―Quisera ser cartomante‖ ................................................................................................ 115

Voilà ce que l‘on dit sur la bonne aventure dans la « Gazette de Hollande » ................ 120

É a fé que nos salva ........................................................................................................ 126

Voilà ce que l‘on dit sur l‘hypnotisme dans la « Gazette de Hollande » ....................... 130

―Sou meio espírita‖ ........................................................................................................ 134

Voilà ce que l‘on dit sur le spiritisme dans la « Gazette de Hollande » ........................ 138

IV – Tu tá livre, eu fico escravo ......................................................................................... 143

O crime de Botafogo: um célebre processo ..................................................................... 147

Voilà ce que l‘on dit sur les deux esclaves dans la « Gazette de Hollande » ................. 159

Um obscuro herói: o capoeira entre a navalha e a rasteira ............................................... 164

Voilà ce que l‘on dit sur les capoeiras dans la « Gazette de Hollande » ....................... 170

É pai Silvério quem fala.................................................................................................. 175

Voilà ce que l‘on dit sur le status-liber dans la « Gazette de Hollande » ...................... 181

Últimas palavras ................................................................................................................ 186

Referências ........................................................................................................................ 188

Arquivos e fontes ........................................................................................................... 195

Periódicos consultados ................................................................................................... 195

Anexos............................................................................................................................... 197

Anexo 1 .......................................................................................................................... 197

Anexo 2 .......................................................................................................................... 198

Anexo 3 .......................................................................................................................... 198

Anexo 4 .......................................................................................................................... 199

16

Primeiras palavras

São expressivos os estudos voltados às crônicas de Machado de Assis, que atuou por

mais de três décadas à frente das mais diferentes séries, nos jornais cariocas. A despeito disso,

são escassos os trabalhos dedicados especificamente à série versificada ―Gazeta de Holanda‖

(1886-1888), em que se debruçou sobre os mais diversos assuntos. Nela, por exemplo, lembra

em tom saudosista de artistas dramáticos e líricos que se apresentavam nos teatros cariocas

em décadas anteriores, como ocorre, mais precisamente, no terceiro texto, publicado a 12 de

novembro de 1886. Igualmente comparece o cientificismo, assunto tão em voga na imprensa

da época, como na publicação de 6 de dezembro de 1886, na qual aborda a lei darwínica. A 21

de dezembro de 1886, trata da prática da cartomancia, por meio de uma conversa entre o

narrador e o Diabo. Já a hipnose e o espiritismo são questões centrais nas publicações de 6 de

abril e 2 de novembro de 1887, respectivamente.

A política é outro assunto recorrente na série. Em alguns dos textos, o narrador aborda,

em tom zombeteiro, questões relacionadas às eleições, como ocorre nos textos de 4 de julho

de 1887, em que se registra alto número de abstenções; e de 15 de novembro de 1887, em que

é criticada a demora do processo eleitoral, dada a desatualização na lista de nomes dos

eleitores. Ademais, o próprio ato composicional dos textos se torna assunto de uma

publicação, como se vê a 6 de dezembro de 1887. Do mesmo modo, festas populares foram

tematizadas, tal como o Carnaval, tratado na penúltima crônica a circular, a 16 de fevereiro de

1888.

Este trabalho, dedicado em específico à série mencionada, apresenta outros quatro

capítulos, além deste primeiro, de caráter introdutório. Em ―Um cronista versejador‖, serão

recuperados estudos sobre Machado de Assis cronista, destacando-se ainda elementos

relativos à sátira presentes em suas produções. Como já afirma Sônia Brayner em ―Machado

de Assis: um cronista de quatro décadas‖ (1992), os folhetins rimados eram então costumeiros

nos jornais oitocentistas. Desse modo, destacaremos que a escrita de crônicas versificadas já

havia aparecido em outras duas publicações do autor. A primeira delas, datada de 26 de maio

de 1872, foi publicada em francês, na série ―Badaladas‖, da Semana Illustrada. Já a segunda,

datada de 5 de agosto de 1883, foi publicada em ―Balas de Estalo‖, série de Gazeta de

Notícias. Cabe destacarmos que ambas as publicações se assemelham estruturalmente aos

textos da série ―Gazeta de Holanda‖, pois foram escritos em quartetos. No decorrer do estudo,

esses pontos serão mais bem aprofundados, de modo a elucidar a construção da coluna.

17

No capítulo seguinte, denominado ―Uma série singular‖, exploraremos o que foram as

folhas clandestinas denominadas ―Gazette de Hollande‖. Já no século XIX, o historiador,

jornalista e biógrafo francês, Eugène Hatin, fornece mais informações sobre essas gazetas. Em

trabalho publicado em 1870 (Les gazettes de Hollande et la presse clandestine aux XVIIe

et XVIIIe siècles), o estudioso se dedica exclusivamente às publicações que circulavam entre

a Holanda e a França, durante o século XVII e XVIII. Escritas em francês, tais produções

contavam com a colaboração de refugiados.

No prefácio de seu estudo, Hatin (1870) lembra a concepção fortemente associada a

essas folhas, que as entende como uma espécie de panfleto indiscreto, veículo de fofoca e

difamação. O autor, contudo, lança luz sobre outros conteúdos difundidos por elas, em

especial, aqueles voltados à política, principal foco dessas gazetas. Nossa hipótese de

trabalho, portanto, é que o título escolhido para a série teria sido uma apropriação de Machado

de Assis do espírito satírico dessas ―gazette de Hollande‖.

Além desse referencial adotado no título, o cronista fez uso de uma epígrafe em

francês. Os dizeres: ―Voilà ce que l’on dit de moi / Dans la gazette de Hollande!‖ aparecem

em 48 dos 49 textos publicados na série. O trecho foi retirado da ópera-bufa La Grande-

Duchesse de Gérolstein, de Henri Meilhac, Ludovic Halévy, com música do compositor

Jacques Offenbach. Essa opereta foi uma das atrações durante a Exposição Universal de 1867,

em Paris, como destaca o crítico Siegfried Kracauer em Jacques Offenbach and the Paris of

his time (2002).

Com isso, tanto a Exposição Universal como a opereta se tornaram atrações para

líderes e autoridades que visitavam a cidade luz, capital do século XIX, conforme Walter

Benjamin (1983). De acordo com Kracauer (2002), a opereta foi um sucesso triunfal, o que

fez com que suas representações ocorressem em outras localidades da Europa, como em

Portugal, na Itália e no continente americano. No Brasil, por exemplo, são muitos os anúncios

nos jornais cariocas entre os anos de 1867 e o início do século XX, período em que a

produção offenbachiana foi aqui representada. Mais à frente, recuperaremos alguns desses

anúncios na tentativa de elucidar sua menção na abertura da série.

Também é sabido que foram muitas as máscaras, isto é, assinaturas, utilizadas pelo

cronista Machado de Assis. O uso de pseudônimos era algo recorrente na imprensa da época,

o que lhe permitiu a façanha de assumir diferentes identidades ao longo de sua carreira. Esse

ponto que tanto interesse desperta nos estudiosos do escritor, será mais aprofundado em nosso

estudo. A ―Gazeta de Holanda‖ machadiana foi publicada no jornal carioca Gazeta de

18

Notícias, entre 1º de novembro de 1886 e 24 de fevereiro de 1888. Sob o pseudônimo

Malvólio1, única referência shakespeariana utilizada por Machado na assinatura de uma série,

o autor abordou diferentes assuntos e debates concernentes a seu tempo.

Malvólio é homônimo do intendente da peça Twelfth Night, Or What You Will, já

há muito reconhecida como Noite de Reis, do dramaturgo inglês William Shakespeare. A

personagem deseja usufruir das vantagens do título de nobreza, mas se torna vítima de uma

brincadeira, sendo ridicularizada na tragicomédia. Em sua última fala, ele promete vingar-se

de todos aqueles que o humilharam. Esse homônimo adotado como pseudônimo para a

―Gazeta de Holanda‖, também recebeu comentários do crítico machadiano Eugênio Gomes

(1961). É curioso notar que o único pseudônimo shakespeariano utilizado por Machado de

Assis, na assinatura de uma série, ocorre, justamente, nessa coluna em que o verso foi

utilizado em detrimento da prosa. Esse Malvólio, portanto, não só parece mascarar o autor,

como conjecturamos ser a marca de uma persona cujo infortúnio parece estar implícito no

próprio nome, algo que será demonstrado através de diálogos entre a ―gazeta‖ machadiana e

jornais oitocentistas disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (RJ).

Logo, o estudo tem por objetivo apresentar uma contribuição para a compreensão do

modo de estruturação dessa coluna, entendendo que se possa assim também iluminar os

estudos relativos ao conjunto da produção cronística do autor. A hipótese de que se parte, na

reflexão proposta, é que Machado tenha se apropriado do ideal das ditas ―Gazette de

Hollande‖, sobretudo em virtude de seu aspecto satírico. Esperamos, assim, investigar como a

sátira, bem como os recursos paratextuais e o pseudônimo contribuíram para a construção da

série.

Para efeitos de organização do estudo, dividimos os aspectos mais propriamente

temáticos das crônicas em dois grandes blocos. O primeiro, dedicado à consideração das

doutrinas filosóficas, científicas e religiosas (em um quadro mais amplo, de proliferação de

doutrinas), que começavam a ganhar espaço nesta segunda metade do século XIX. O segundo,

dedicado à observação do modo como a reflexão sobre a escravidão aparece nessas crônicas.

Tais assuntos serão cuidadosamente abordados e analisados em dois capítulos.

Em ―Sonhos singulares‖, a partir dos aspectos históricos e teóricos apresentados nos

capítulos precedentes, serão priorizados movimentos analíticos voltados ao estudo de crônicas

em que são abordadas doutrinas, em especial no que diz respeito ao espiritismo e práticas

então consideradas associadas. Nos três textos selecionados, constatamos a presença explícita

1 Ao longo do estudo, optamos pelo uso acentuado do nome Malvólio. Nas citações em língua inglesa,

manteremos de acordo com a escrita em inglês, sem acento.

19

da temática. Na crônica de 21 de dezembro de 1886, Malvólio afirma ter se encontrado com o

Diabo, pedindo-lhe para ser uma cartomante. Ao longo das estrofes, parece haver uma mistura

entre a liberdade de imaginação e o ideário que se fazia sobre as cartomantes, provavelmente

veiculado nos próprios anúncios de jornais, como pretendemos explicitar. A 06 de abril de

1887, é a hipnose que intriga o narrador, sendo o texto comentado posteriormente em O Paiz.

Outros traços satíricos parecem compor a publicação de 02 de novembro de 1887. Nela, o

narrador afirma ser ―meio espírita‖, mostrando todo seu conhecimento a respeito da

reencarnação e, consequentemente, do processo de evolução do espírito.

Em ―Tu tá livre, eu fico escravo‖, dedicaremos especial atenção a três crônicas que

tratam da escravidão e da condição do negro, no Brasil oitocentista. Recuperando-se,

igualmente, a relação com os aspectos já explorados nos capítulos ―Um cronista versejador‖ e

―Uma série singular‖, pretendemos estudar a crônica de abertura, na qual o autor, além de

apresentar o que seria o programa literário da série, também trata do julgamento de d.

Francisca da Silva Castro, acusada de torturar suas duas escravas menores, Joana e Eduarda.

O caso repercutiu na imprensa carioca no ano de 1886 e será recuperado aqui. Além desse

texto, outro que parece proveitoso para se explorar é a publicação de 1ª de agosto de 1887.

Nela, o cronista versa sobre a capoeiragem, destacando a aversão da imprensa à luta

combativa já há muito praticada no país. Por fim, na publicação de 27 de setembro do mesmo

ano, é dada voz à pessoa a quem mais interessavam as discussões acerca da abolição: o

escravo. Em um diálogo sincero entre o narrador e um pregoeiro de legumes, nomeado como

pai Silvério, o cronista aborda a condição do dito status-liber. Em nossas ―Últimas palavras‖,

serão apresentadas considerações finais derivadas da pesquisa.

São esses, portanto, alguns dos temas presentes na série, que, não tendo passado

despercebidos aos olhos de Machado de Assis, foram apresentados por meio de seu narrador

que se diz ―caolho, coxo e maneta‖. À vista disso, nessa ―gazeta‖ de estilo diferenciado, o

escritor parece ter entrelaçado o tom da inocência e da loucura (―E vem, como é de ciência, /

Entre muletas segura, / A muleta da inocência, / E a muleta da loucura‖) para tratar de

assuntos veiculados nos jornais da época.

O estudo do tripé constitutivo da série, a saber, os elementos satíricos presentes nas

publicações, os recursos paratextuais (título, numeração e epígrafe) e o pseudônimo, permite

pensar como se configura sua prática discursiva dentro de seu suporte comunicacional, a

Gazeta de Notícias. Nesse quadro mais amplo, uma possível contribuição deste trabalho

talvez pudesse ser a possibilidade de se apresentarem novas questões aos estudos

20

machadianos, permitindo novos diálogos com a produção do autor. Da mesma forma, talvez

seja possível, a partir das questões desenvolvidas neste estudo, repensar os limites entre os

textos comumente escritos em prosa, que, em dado momento histórico, foram escritos em

verso, como é o caso das crônicas de ―Gazeta de Holanda‖.

21

I – Um cronista versejador

Eu gosto de ver impressas as notícias particulares, é bom uso, faz da vida de cada um

ocupação de todos.

Machado de Assis e a crônica

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é considerado por muitos críticos o

maior nome da literatura brasileira do século XIX. Seu reconhecimento ocorre,

principalmente, pelos romances publicados em mais de cinquenta anos de carreira,

destacando-se Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e, talvez, a mais

conhecida dentre suas obras, Dom Casmurro. Machado também ficou conhecido por contos

como ―Teoria do medalhão‖, ―A sereníssima república‖, ―O espelho‖, ―A igreja do Diabo‖,

―Conto alexandrino‖, ―As academias de Sião‖, ―A cartomante‖, ―O enfermeiro‖, entre tantos

outros.

O morador do Cosme Velho iniciou sua vida nas letras com a publicação de poesias

esparsas, na Marmota fluminense – isso ainda na adolescência. Nessa mesma fase de vida,

dá início à sua carreira na imprensa carioca, a princípio como tipógrafo entre 1856 e 1858, na

Imprensa Nacional, passando, anos mais tarde, a ocupar a função de revisor no Correio

Mercantil. Em 1859, tornou-se colaborador do hebdomadário O Espelho, no qual publicou

artigos de crítica teatral e crônicas. Em 1860, Machado passa a fazer parte da redação do

Diário do Rio de Janeiro e dá continuidade a sua carreira de cronista2 em outubro de 1861,

encerrando-a em fevereiro de 1897, na Gazeta de Notícias. Ao longo dos trinta e seis anos à

frente das colunas, escreveu mais de seiscentas crônicas em diferentes jornais da cidade do

Rio de Janeiro.

A atuação em diferentes periódicos traria resultados não apenas na forma de articular

as informações que seriam apresentadas ao leitor, mas, especialmente, no modo como passaria

a fazer isso, como, por exemplo, em ―História de Quinze Dias‖ e ―História de Trinta Dias‖

2 Como vamos apontar ao longo dessa pesquisa, são muitos os estudos voltados à carreira de Machado de Assis

como cronista. Alguns deles se voltam para a produção da juventude do autor, como é o caso de Machado de

Assis, escritor em formação (à roda dos jornais), da pesquisadora Lúcia Granja (2000); outros se voltam para a

produção da década de 1880, como é o caso de alguns trabalhos dos historiadores Sidney Chalhoub (2005) e Ana

Flávia Cernic Ramos (2005), bem como do crítico literário John Gledson (2003; 2006); há ainda trabalhos

voltados à produção cronística de Machado na década de 1890, como o de Dilson Ferreira da Cruz Júnior (2001),

cuja abordagem da questão ocorre a partir de um duplo enfoque, que oscila entre a crítica literária e a análise do

discurso.

22

(mesma série de crônicas: a alteração do título deveu-se à mudança de periodicidade da

publicação) de Illustração Brazileira (1876-1878). Nelas, assinando como Manassés,

Machado divide uma mesma crônica em diferentes partes, tratando, em cada uma delas, de

uma informação diferente, como política, literatura, teatro, economia, etc. Esse recurso o

auxiliou no amadurecimento de sua escrita, como é perceptível nas crônicas publicadas em

diferentes séries de Gazeta de Notícias, a partir de 1883.

Nesse jornal, Machado de Assis esteve à frente de cinco séries3 e é justamente a

terceira delas que delimitamos como objeto de estudo, no caso as crônicas versificadas de

―Gazeta de Holanda‖. Ao longo dos anos, a coluna recebeu menções esparsas na crítica

machadiana, como em Sônia Brayner (―Machado de Assis: um cronista de quatro décadas‖),

Eugênio Gomes (Machado de Assis) e John Gledson, no terceiro capítulo de Machado de

Assis: ficção e história (2003). Algumas dessas observações serão apresentadas mais à frente.

No ensaio ―Narradores do ocaso da monarquia (Machado de Assis, cronista)‖ (2008), os

historiadores Jefferson Cano, Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira e Ana

Flávia Cernic Ramos, dedicaram pequena atenção à série ―Gazeta de Holanda‖. Embora seja

muito expressivo o número de estudos sobre o autor oitocentista, a série ainda é pouco

explorada.

Há um número significativo de trabalhos sobre os narradores das crônicas

machadianas; contudo, poucos deles abordam mais detidamente a série delimitada como

objeto deste estudo. Uma exceção é a dissertação de mestrado de Gabriel de Oliveira Ribeiro

do Valle Corrêa, intitulada Há diferença? Se há diferença, desmancha-se... Representação

da sociedade fluminense na série de crônicas Gazeta de Holanda, de Machado de Assis

(2012), cujo objetivo é o estudo da série em articulação entre a produção cronística do autor e

a crônica como gênero relativamente novo, mas muito popularizado e praticado por escritores

oitocentistas.

Ademais, o pesquisador considera relevante o estudo dos textos no suporte original de

veiculação da série, no caso a Gazeta de Notícias. Corrêa (2012) defende que tal veículo

comunicacional potencializa a compreensão de dados significativos. Assim, dedica-se ao

estudo do gênero dentro do contexto social, bem como à análise formal de ―Gazeta de

Holanda‖, apontando, por fim, sua pertinência dentro da produção do cronista Machado de

Assis. Além desses dados, ao final da dissertação, Corrêa (2012) insere notas nas 49

3 Machado, em pouco mais de treze anos, esteve à frente de cinco colunas em Gazeta de Notícias, nas quais

atuou em períodos diferentes e por quantidade de tempo variado, ficando de dois meses, em uma série, até um

período próximo de quatro anos, em outra. As séries são as seguintes: ―Balas de Estalo‖ (1883-1886); ―A + B‖

(1886); ―Gazeta de Holanda‖ (1886-1888); ―Bons dias!‖ (1888-1889) e ―A Semana‖ (1892-1897).

23

publicações, o que auxilia na leitura e na compreensão das crônicas. Outro trabalho sobre a

mesma série, é o artigo de Anselmo Luiz Pereira Campos, intitulado ―Machado de Assis, um

Poeta Satírico?‖. No breve estudo, publicado na revista Em tese, no ano de 2006, o

pesquisador toma como ponto de partida o percurso do escritor oitocentista no gênero poético.

Alguns pesquisadores se dedicaram a outras colunas semanais, escritas pelo autor.

Exemplo disso é o estudo de Lúcia Granja, intitulado Machado de Assis, escritor em

formação (à roda dos jornais) (2000). Nele, a pesquisadora se dedica às publicações da

juventude de Machado, as quais foram veiculadas na década de 1860, em três jornais cariocas,

sendo eles: Diário do Rio de Janeiro; O futuro e Semana Illustrada. Granja (2000) mostra

que não somente os recursos e técnicas do fazer literário, mas ainda os temas abordados em

suas crônicas foram retomados e aprimorados em produções posteriores, como contos e

romances.

No já mencionado ―Narradores do ocaso da monarquia (Machado de Assis, cronista)‖

(2008), os historiadores se voltam para os narradores das séries da década de 1870, como

―História de Quinze Dias‖ publicada na Illustração Brazileira. Na mesma década, o cronista

atuou em O Cruzeiro, onde esteve à frente da coluna ―Notas Semanais‖ (1878). Para essa

série, Lúcia Granja produziu dois ensaios (Revista Olho d’água), sendo eles ―Machado de

Assis, jornalista: o homem, o texto, o tempo‖ (2009) e ―Machado de Assis, esse escritor

monstruoso (entre aberrações e espetáculos)‖ (2017). Em seu mais recente trabalho, Machado

de Assis – antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção (2018), a pesquisadora também se

dedica à série.

Para a produção da década de 1880 há outros estudos sobre Machado cronista. É o

caso, por exemplo, da dissertação de mestrado da historiadora Ana Flávia Cernic Ramos,

defendida em 2005 e intitulada Política e humor nos últimos anos da monarquia: a série

"Balas de Estalo" (1883-1884). Nela, Ramos (2005) estuda da série publicada em Gazeta de

Notícias e aborda, entre outros aspectos, a atuação do literato entre os anos de 1883 e 1886.

De modo semelhante, na obra As máscaras de Lélio: política e humor nas crônicas de

Machado de Assis (1883 – 1886), publicada em 2016, a pesquisadora se volta para a atuação

do autor, visando entender a construção do personagem-narrador e o uso da literatura como

forma de discutir política, ciência e escravidão.

Em ―A arte de alinhavar histórias: a série ‗A + B‘ de Machado de Assis‖, capítulo que

integra Histórias em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil (2005),

o historiador, Sidney Chalhoub, dedica-se à série ―A + B‖, antecessora de nossa série ―Gazeta

24

de Holanda‖. Naquela série, o cronista produziu apenas 7 crônicas, em forma de diálogo. No

mesmo capítulo, o pesquisador aborda ―Bons dias!‖, publicada entre 1888 e 1889. No entanto,

é John Gledson que dá especial atenção a essa última série, o que ocorre no terceiro capítulo

de Machado de Assis: ficção e história (2003). Nele, dentre os pontos abordados por Gledson

(2003) estão: o ―anonimato‖4 na publicação da coluna; a verve cômica dos textos; os grandes

acontecimentos históricos, como a própria Lei Áurea; e mesmo o ―advento de uma República

branca, dominada por uma oligarquia ‗federal‘‖ (GLEDSON, 2003, p. 167), assuntos também

explorados no ensaio ―Bons dias‖, publicado em Por um novo Machado de Assis: ensaios

(2006).

Para a produção realizada na década de 1890, o pesquisador Dilson Ferreira da Cruz

Júnior, em sua dissertação de mestrado intitulada Estratégias e máscaras de um fingidor: a

crônica de Machado de Assis, defendida em 2001, volta-se para os dois primeiros anos de

publicação da coluna dominical ―A Semana‖ (1892 e 1893). Cruz Júnior (2004) tem como

base a edição crítica5 com introdução e notas de John Gledson. No estudo, trabalha com a

hipótese de que o propósito da série seria o entendimento da realidade nacional. Para isso, o

estudioso recorre ao conceito de enunciador, formulado por Oswald Ducrot.

São, pois, variados e diversos os estudos a respeito de nosso cronista. Alguns

pesquisadores, como Enylton José de Sá Rego (1989), não se voltaram em específico para o

estudo do gênero ou de uma série, mas forneceram dados que contribuem para análise. Em

sua tese para doutorado, O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a

tradição luciânica (1989), o estudioso elucida pontos concernentes à tradição da sátira romana

e da sátira menipeia. Desse modo, mostra que a primeira tem por finalidade moralizar através

do riso, enquanto a segunda, não-moralizante, deixa ao público o papel de tirar suas próprias

conclusões. Dadas as dificuldades em se encontrar uma definição exata para o que vem a ser a

4 Contestamos essa informação, pois a 06 de agosto de 1888, em publicação da Gazeta da Tarde, é feita uma menção a Machado de Assis, na qual são associados ao autor os pseudônimos Malvólio, Lélio e Boas noites.

Exploraremos essa informação mais à frente. 5 Além dos trabalhos aqui mencionados, algumas séries contam com edições críticas. É o caso de Comentários

da Semana, com introdução e notas de Lúcia Granja e Jefferson Cano (2008); Histórias de Quinze Dias, com

introdução e notas de Leonardo Affonso de Miranda Pereira (2009); Notas Semanais, com introdução e notas de

John Gledson e Lucia Granja (2008); Balas de Estalo de Machado de Assis, organizada e comentada por

Heloísa Helena Paiva De Luca (1998); Bons dias! (1990) e A Semana (1996), com introdução e notas de John

Gledson. Há também uma coletânea para as séries ―A + B‖ e ―Gazeta de Holanda‖, organizada por Mauro Rosso

(2011), e publicada pelas Edições Loyola. Contudo, a edição de Machado de Assis: Crônicas (―A + B‖ e

―Gazeta de Holanda‖) não é mencionada em estudos machadianos.

25

sátira menipeia, Sá Rego (1989) lança luz sobre as cinco principais características encontradas

nas obras de Luciano de Samosata6, apresentando e exemplificando cada uma delas.

Como veremos mais à frente, esses traços também estão presentes em escritos que

antecedem a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881. É a partir dessa

obra que a crítica comumente passa a dividir a produção de Machado de Assis em duas fases.

Enquanto na primeira os seus romances estariam mais próximos do romance convencional, na

segunda, o escritor passaria a fazer uso de recursos satíricos, inscrevendo sua obra na tradição

luciânica. Com isso, como afirma Sá Rego (1989), o sério e o cômico passariam a ser

constitutivos de suas obras. No entanto, o estudo das crônicas machadianas demonstra que,

muito antes da escrita desse romance, o autor já fazia uso de recursos, tais quais aqueles

apontados como pertencentes apenas ao que seria sua segunda fase; exemplo disso é o que se

observa na crônica versificada escrita em francês, ainda na década de 1870, a ser apresentada

mais adiante.

De acordo com o estudioso, a dificuldade em classificar Memórias Póstumas como

um gênero literário específico seria característica da sátira menipeia, em virtude da mistura de

diferentes gêneros. Assim, afirma que os seguintes elementos são encontrados nas produções

do que considera como a segunda fase do escritor oitocentista: a mistura de gêneros, como

aspecto inovador; a utilização sistemática da paródia; a liberdade de imaginação, o que se

torna um critério fundamental para a produção artística; o estatuto ambíguo e não-

moralizante; e o ponto de vista de um observador distanciado. Atendo-se, em especial, ao

romance considerado como inaugural dessa fase e aos dois seguintes, Quincas Borba e Dom

Casmurro, Sá Rego (1989) ainda mostra que os elementos pertencentes à tradição luciânica

também estão presentes em contos e crônicas de Machado de Assis, publicados a partir de

1880.

Por meio dessas considerações e das cinco características do lucianismo presentes na

produção machadiana, pretendemos destacar na próxima seção os elementos usados na

6 Antes disso, Enylton de Sá Rego (1989) faz uma breve exposição da tradição da sátira, em que aborda a

recepção crítica das obras de Machado, entendidas como pertencentes à segunda fase do autor. No segundo capítulo, expõe, resumidamente, a tradição da sátira. Sá Rego começa tratando de Menipo de Gadara, de quem

restaram apenas trechos de obras. Daí passa para Marcus Terentius Varro (Varrão), autor de sátiras romanas.

Discerne, então, duas tradições de sátira, a romana e a menipeia, apresentando pontos que as caracterizam. O

pesquisador ainda aborda Lucius Aenaeus Sêneca, antes de chegar, propriamente, a Luciano de Samosata,

nascido possivelmente no século II de nossa era. Sá Rego (1989) apresenta cinco elementos presentes na obra

machadiana, que afirma pertencerem à tradição da sátira menipeia. O estudioso considera a obra de Luciano

como a principal propagadora das características pertencentes à antiga tradição. Por esse motivo, propõe

substituir o termo ―sátira menipeia‖ por ―tradição luciânica‖ ou ―lucianismo‖. Nos capítulos seguintes, dedica-se

à análise de ecos da tradição em romances, contos e crônicas de Machado de Assis, produzidos a partir da década

de 1880.

26

composição desses textos. Considerando o estudo de Sá Rego (1989), verificamos, já na

primeira publicação da série, datada de 1º de novembro de 1886, que tais elementos se fazem

presentes:

Um doutor da mula ruça,

Caolho, coxo e maneta,

É o homem que se embuça No papel desta gazeta

(...)

E vem, como é de ciência,

Entre muletas segura,

A muleta da inocência, E a muleta da loucura.

Em uma de suas considerações a respeito de Quincas Borba, o estudioso destaca um

momento em que Sofia, após receber uma correspondência entregue por um carteiro, vê-o

tropeçando e caindo, o que lhe suscita o riso7. Além disso, no capítulo seguinte, o narrador do

romance menciona o banquete dos deuses homéricos, mais especificamente, o momento em

que Vulcano8, com seu andar manco, desperta o ―riso inextinguível‖ dos deuses

9. Luciano

parodia essa cena no quinto de seus Diálogos dos deuses, intitulado ―Juno e Júpiter‖. E é

nesse sentido que Sá Rego (1989) discerne uma relação entre a produção machadiana e a

produção de Luciano, sendo a passagem de Sofia uma espécie de paródia em segundo grau.

É esse riso grotesco, suscitado pela mistura do trágico e do cômico, que o estudioso vê

na passagem de Quincas Borba. Tal mistura também aparece já na primeira estrofe, em que o

narrador surge como ―Um doutor da mula ruça, / Caolho, coxo e maneta (...)‖. A

caracterização de Vulcano, que se torna motivo de troça para os deuses, também está presente

em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que Eugênia é coxa de nascença, como

confessa no capítulo XXXII (―Coxa de nascença‖). No capítulo seguinte (―Bem-aventurados

os que descem‖), Brás Cubas, em suas divagações, questiona-se sobre as qualidades físicas da

moça:

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza

é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se

bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite sem atinar com a solução do enigma. (...) (MACHADO DE

ASSIS, 2015a, p. 639)

7 Capítulos LII e LIII de Quincas Borba. Consultar Machado de Assis (2015a, p. 780-782). 8 Na mitologia romana, Vulcano corresponde a Hefesto. 9 Consultar Canto XVIII da Ilíada, traduzida por Haroldo de Campos (2002). Consultar também Canto VIII da

Odisséia, traduzida por Trajano Vieira (2014).

27

Dessa maneira, se, por um lado, a marca principal do defunto-autor é o registro de sua

história com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, por outro, o narrador da série se propõe

fazer uma gazeta modesta, em que a inocência e a loucura parecem servir como pré-anúncios

do tom que será adotado para apresentar suas ideias. A primeira estrofe da crônica de abertura

da série (1º de novembro de 1886) apresenta ao público esse narrador como um doutor, mas

um doutor destituído das marcas usuais de distinção da posição (―Um doutor da mula ruça, /

Caolho, coxo e maneta, / É o homem que se embuça / No papel dessa gazeta.‖).

Segundo Antônio de Moraes e Silva, no Diccionário de Lingua Portugueza, de 1890,

―doutor da mula ruça‖, ―diz-se do que pertence ter ciência, e sabe pouco, ou nada‖ (1890, p.

713). Já no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, de Antônio Houaiss e Mauro Salles

Villar (2001), são dadas as seguintes definições: ―aquele que tem o diploma, o título, mas a

quem faltam os conhecimentos notáveis que alardeia ter; charlatão, curandeiro (HOUAISS;

VILLAR, 2001). Simultaneamente, o suporte material parece ser de igual modo destituído de

valorização:

Gazeta que, se tivesse

Outra forma, outro formato, Pode ser que merecesse

Vir com melhor aparato.

Mas é modesta, não passa

De uma folha de parreira,

Que dá uva, que dá passa,

Que dá vinho e borracheira. (GAZETA DE HOLLANDA, 1886, p.01)

Composta por 23 estrofes, a crônica inaugural parece propor uma espécie de programa

literário da série. Assim, até por volta da estrofe 19, sucedem-se considerações e zombarias

em que o estatuto da gazeta vai sendo construído e submetido à ironia galhofeira do

narrador10

. Não poderia passar sem nota que a estrofe 20 (e seguintes) recupere(m)

exatamente o doutor Pangloss, personagem de Voltaire. Na próxima seção, dedicaremos

especial atenção à tradição da sátira e sua adoção por Machado de Assis. Com isso, esperamos

10 Roberto Acízelo de Souza, em O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista (1999),

busca entender o que levou ao silenciamento das vozes ocupadas com a arte da eloquência. O principal objetivo

do trabalho seria recuperar a vertente retórico-poética, a fim de compreender como se construiu o êxito da

componente historicista. Dado que o estudo da retórica se fazia presente nos currículos escolares oitocentistas,

Acízelo demonstra sua participação na formação dos escritores, tendo em vista, principalmente, que suas

produções serviriam posteriormente como alimento na pedagogia das letras. Assim, algumas dessas produções

apresentariam um claro fraseado sonoro, com a prodigalidade de adjetivos ornamentais e mesmo um tom

declamatório. O pesquisador reconhece que Machado de Assis desnaturalizaria o campo da retórica, o que nos

leva a pressupor que a presença de tais elementos na ―Gazeta de Holanda‖ se dê justamente em tom irônico.

28

elucidar alguns traços satíricos marcantes nas crônicas, em especial, naquelas de ―Gazeta de

Holanda‖ selecionadas para estudo.

O bruxo e a tradição da sátira

Já em Historie politique et littérarie de la presse en France : avec une introduction

sur les origines du journal et la bibliographie genérale des journaux depuis leur origine

(1859), o historiador francês, Eugène Hatin, dedica parte de sua pesquisa à produção em verso

na impressa francesa. Na parte intitulada ― La petit presse: Gazette en vers‖, o autor disserta

sobre produções versificadas no século XVII, apontadas por ele como possíveis padroeiras

das crônicas parisienses. Dentre as produções, destaca a de J. Loret11

, a propósito da qual faz

a seguinte afirmação:

Quando nós dissemos que, de todas as tentativas de jornais feitos durante a

Fronde, nenhum teve consistência real, nenhum sobreviveu, reservamos em

nosso pensamento uma pequena gazeta que nasceu bem no seio da Fronde, mas que dela não procedia diretamente, e se distinguia da variedade de

Mazarinades por um caráter que lhe era próprio: nós queremos falar da

Muse historique de Loret, gazeta burlesca e em versos, como convinha ao tempo, mas que não é menos que a patrona dessas crônicas parisienses, das

quais há muito usamos e abusamos. (HATIN, 1859, p. 290, tradução nossa)12

O estudioso afirma que a publicação ficou esquecida por dois séculos, mas que

circulou durante quinze anos, despertando o interesse da sociedade mais polida e esclarecida.

Entre os assuntos encontrados nas publicações escritas ou impressas, destacam-se a política e

a literatura, bem como questões ligadas à cidade e à corte. No entanto, outros assuntos

também foram tratados, como, por exemplo: festas públicas e reais, representações teatrais,

bailes com reis ou ricos senhores da corte; nascimentos, casamentos e mortes de pessoas

ilustres; notícias literárias, lançamento de livros e sermões; instituições novas e invenções

úteis; curiosidades de toda natureza, como mistérios do beco e segredos de alcova, etc. Como

ainda salienta:

(...) Loret toma nota de tudo, revela tudo, descreve tudo em versos ricos e fáceis, espirituosos e inocentes, burlescos, mas plenos de bom senso, livres,

11 Além de dados biográficos a respeito de J. Loret, Eugène Hatin (1859) também dá mostras de outras

publicações em verso antes do início de Muse historique. 12 Quand nous avons dit que, de tous les essais de journaux faits pendant la Fronde, aucun n'avait eu de

consistance réelle, aucun n'avait survécu, nous réservions dans notre pensée une petite gazette qui prit bien

naissance au sein de la Fronde, mais qui n'en procédait pas directement, et se distinguait de la multitude des

Mazarinades par un caractère à elle propre : nous voulons parler de la Muse historique de Loret, gazette

burlesque et en vers, comme il convenait au temps, mais qui n'en est pas moins la patronne de ces chroniques

parisiennes dont on a depuis tant usé et abusé. (HATIN, 1859, p. 290)

29

mas não audaciosos e sempre impregnados de um profundo respeito pela verdade. (HATIN, 1859, p. 314, tradução nossa)

13

Para exemplificar, o historiador cita a publicação de 06 de dezembro de 1659, em que

Loret faz comentários elogiosos à representação de Les Précieuses ridicules, comédia de

Molière, sem, contudo, fazer menção explícita ao comediógrafo:

Esta trupe de comediantes

Que o senhor confessa ser sua

Representando em seu teatro

Uma ação muito ostentosa, Ou, ao contrário, um assunto prazeroso,

Induzindo um riso ininterrupto

Por essas coisas travessas, Intituladas as Preciosas,

Teve tantas visitas

Por pessoas de todas as qualidades, Que jamais se viu tantas juntas

Como nesses dias passados, parece-me,

No hotel do Petit-Bourbon

Por um sujeito mal ou bom. Esse é apenas um tema quimérico;

Mas tão bufão e tão cômico

Quanto nunca foram as peças de Ryer, Que foram tão dignas de homenagem;

(...)

(apud HATIN, 1859, p 316-317, tradução nossa)14

Publicações desse tipo foram muito admiradas por seus contemporâneos, ainda de

acordo com Hatin (1859). Era justamente o aspecto burlesco das publicações o que mais

despertava o interesse do público leitor. Outra característica que merece destaque é a ausência

de titulação, sendo que os textos contavam apenas com a presença de um epíteto, geralmente

relacionado ao conteúdo a ser tratado, e os dizeres ―A son Altesse Mademoisselle de

Longueville‖, a quem eram destinadas as publicações. Ademais, Eugène Hatin (1859) acresce

que, só depois que esses textos foram reunidos em volume, receberam o título La Muse

historique, ou Recueil des Lettres en vers, contenant les nouvelles du temps, écrites à

Son Altesse Mademoiselle de Longueville, depuis duchesse de Nemours, par J. Loret.

13 (...) Loret tient note de tout, révèle tout, décrit tout en vers abondants et faciles, spirituels et naïfs, burlesques,

mais pleins de bon sens, libres, mais non effrontés, empreints toujours d'un profond respect pour la vérité.

(HATIN, 1859, p. 314) 14 Cette troupe de comédiens / Que Monsieur avoue être siens / Représentant sur leur théâtre / Une action assez

folâtre, / Autrement un sujet plaisànt, / A rire sans cesse induisant / Par des choses facétieuses, / Intitulé les

Précieuses, / Ont été si fort visites / Par gens de toutes qualités, / Qu'on n'en vit jamais tant ensemble / Que ces

jours passés, ce me semble, / Dans l'hotel du Petit-Bourbon / Pour un sujet mauvais ou bon. / Ce n'est qu'un sujet

chimérique ; / Mais si bouffon et si comique / Que jamais les pièces du Ryer, / Qui fut si digne de laurier ; (...)

(apud HATIN, 1859, p 316-317)

30

Com um propósito muito semelhante, a ―Gazeta de Holanda‖ machadiana versou

sobre os mais diversos assuntos. Como já mencionamos acima, os elementos satíricos se

sobressaem nessas crônicas em verso, de modo a produzir, com um toque brincalhão e uma

pitada a mais de ironia, comentários sobre a sociedade da época. A esse respeito, Sá Rego

(1989), na tese já mencionada, dedica-se à produção do bruxo. Tendo em vista a tradição da

sátira menipeia, também denominada de luciânica ou lucianismo, o estudioso se volta para os

textos produzidos a partir da década de 1880

Nos cinco capítulos, Sá Rego (1989) elucida pontos concernentes à aproximação entre

a obra de Machado de Assis e o lucianismo. Para isso, no primeiro deles, destaca a dificuldade

em se classificarem os romances do escritor, sobretudo a partir de Memórias Póstumas de

Brás Cubas, já que a obra publicada em 1881 não estava de acordo com as características dos

romances convencionais produzidos até então. O aspecto inovador da obra fez o próprio

romancista classificá-la como um romance ―para uns e não para outros‖. Essa indefinição era

fruto justamente da mistura do sério e do cômico. Assim, a crítica da época buscou respostas

para entender o romance, afirmando ser Machado de Assis um escritor de estilo fragmentário,

um copista de modelos estrangeiros e tradições literárias, bem como descrevendo seu aparente

pessimismo como fruto de aspectos biográficos e não literários. A propósito de cada um

desses pontos, Sá Rego (1989) faz uma aproximação com a sátira menipeia, mostrando que as

obras de Machado possuem uma forte relação com essa tradição.

Tento em vista a definição comumente aceita de que a sátira seria a mistura de ―verso

e prosa‖ (versoiprosa), Sá Rego (1989) busca encontrar uma melhor definição através das

cinco principais características apontadas por Mikhail Bakhtin (1997). Para o crítico

machadiano, elas podem ser encontradas em romances, contos e crônicas do autor. Com isso,

no segundo capítulo do ensaio, o estudioso faz um breve resumo histórico-crítico dessa

tradição, a começar por Menipo de Gadara, cujo conhecimento só se dá por meio do

testemunho duvidoso de Diógenes Laércio. Seu nome só foi totalmente esquecido devido a

dois escritores posteriores, o romano, Terêncio Varrão, e o sírio helenizado, Luciano de

Samosata. As produções do primeiro são imitações de Menipo, consistindo em sátiras

―menipeias‖. Delas, só restaram títulos e fragmentos de frases, o que dificulta a realização de

julgamentos mais detalhados sobre a produção. É nesse ponto que Sá Rego (1989) afirma

existirem duas tradições de sátiras no século I d.C. Isso é elucidado por afirmação de

Quintiliano, que requisita para os romanos a exclusividade da sátira, em um claro

reconhecimento de que, muito antes, a sátira já existia entre os gregos.

31

Quintiliano adota dois critérios em sua consideração: o formal e o moral. Para ele, a

sátira consistiria no uso do verso hexâmetro e teria finalidade moralizadora, de modo que o

riso seria um meio de denunciar os vícios da humanidade. Sá Rego (1989) confessa que essa

última classificação é mais difícil de ser compreendida. Alguns outros autores classificados

nessa tradição são apresentados, como Sêneca. Porém, a obra de Luciano de Samósata se

sobressairia, dado que ela liga a tradição grega da sátira menipeia às suas repercussões nos

tempos modernos.

Assim como a produção de Machado de Assis, a produção de Luciano também

apresenta certa dificuldade de classificação em termos de gêneros literários. Contudo, o

pesquisador resume as principais características da obra de Luciano em cinco pontos, a saber:

(...) 1) criação – ou continuação – de um gênero literário inovador, através da

união de dois gêneros até então distintos: o diálogo filosófico e a comédia; 2) utilização sistemática da paródia dos textos literários clássicos e

contemporâneos, como meio de renovação artística; 3) extrema liberdade de

imaginação, não se limitando às exigências da história ou da

verossimilhança; 4) estatuto ambíguo e caráter não-moralizante da maior parte de sua sátira, na qual nem o elemento sério nem o elemento cômico

têm preponderância, apenas coexistem; 5) aproveitamento sistemático do

ponto de vista do kataskopos ou observador distanciado, que, como um espectador desapaixonado, analisa não só o mundo a que se refere como

também a sua própria obra literária, a sua própria visão-de-mundo. (SÁ

REGO, 1989, p. 45-46)

A propósito de cada um desses elementos, o estudioso apresenta trechos de obras de

Luciano. Na primeira delas, é destacada, por exemplo, a união entre um gênero ―elevado‖ e

um gênero ―inferior‖. Mas, como também mostra Sá Rego (1989), a hibridização não é

garantia de inovação no nível estético, pois, como considera Luciano, é necessário que haja

harmonia nessa combinação.

O segundo traço é a paródia, entendida como uma ―prática textual que se refere

prioritariamente a outra prática textual‖ (SÁ REGO, 1989, p. 52). Desse modo, o estudioso

destaca três aspectos principais notados na produção de Luciano, sendo eles:

(...) a) a paródia dos gêneros e convenções da literatura passada e presente;

b) paródia aos temas e ideias da literatura e da vida social contemporânea; e, finalmente, c) paródia e textos definidos, através de citações literárias ou

quase-literais, geralmente em um contexto distinto daquele do qual a

passagem em questão teria sido apropriado. (SÁ REGO, 1989, p. 52)

Para o autor, é justamente por meio da paródia a gêneros, ideias e passagens textuais

que se efetiva a primeira das recorrências da obra de Luciano. Ou seja, a sua criação se dá,

sobretudo, por meio dos recursos parodísticos. Aliás, Sá Rego (1989) analisa:

32

Em nossa opinião, é portanto o uso sistemático da paródia que está na origem da produção dos textos ―híbridos‖, onde se encontram lado a lado

passagens em prosa e verso. Podemos assim abandonar o critério

―prosimétrico‖, por muitos séculos considerado como o único critério formal para a caracterização da sátira menipéia. O que sugerimos, em seu lugar, é

um critério em que se considere a presença da paródia ao mesmo tempo a

estilos ―altos‖ e ―baixos‖ como uma das características essenciais da sátira menipeia. Tal sugestão, em nossa opinião, oferece ainda a vantagem de

justificar o caráter ―enciclopédico‖ ou de ―learned wit‖ frequentemente

associado com a tradição menipeia. (SÁ REGO, 1989, p. 56-57)

A terceira característica fundamental é a liberdade de imaginação frente às limitações

impostas pela história ou pela visão ―realista‖ ou ―representacional‖ da obra de arte. Por isso,

a produção artística deve ser avaliada a partir de outros critérios (a imaginação) que não

aqueles da verossimilhança, reguladores da produção do historiador. Já a quarta é a mistura do

sério e do cômico sem a finalidade moralizadora. Nesse sentido, a produção de Luciano difere

do ideal da sátira romana, que visa moralizar através da ironia. Como mostra Sá Rego (1989),

isso não implica na ausência de moral em suas obras, pois Luciano não deixa de comentar os

problemas históricos de seu tempo. Ele, então, incumbe o leitor de tirar suas próprias

conclusões sobre a moralidade do texto.

O quinto e último traço atribuído às produções de Luciano é o ponto de vista

distanciado do kataskopos, o que consiste em uma visão do alto, em três aspectos distintos:

(...) no primeiro deles, vemos um narrador que, presente no texto, vê o

mundo do alto; no segundo, um narrador que, ausente, é mero observador de suas personagens; e, no terceiro, temos um narrador que, embora presente no

texto, não deixa identificar-se a sua visão-de-mundo. (SÁ REGO, 1989, p.

63-64)

Na série em estudo, pressupomos estar diante do primeiro deles, ou seja, o narrador

que vê o mundo do alto, o que mais se sobressai nas crônicas. Ainda de acordo com Sá Rego

(1989), de todas as características citadas, o ponto de vista distanciado é considerado como o

mais importante na obra de Luciano. É por esse motivo que o estudioso afirma serem os

seguintes aspectos resultantes de tal distanciamento: a hibridização; o uso da paródia; a

produção de uma arte imaginativa e a aversão a uma visão ética moralizante.

Por ser a obra de Luciano a única a sobreviver daquele período, Sá Rego (1989)

propõe a substituição do termo ―sátira menipeia‖ pelo de ―tradição luciânica‖ ou

―lucianismo‖, sendo, portanto, uma poética fundamentalmente guiada pela paródia. Ainda é

digno de nota que nem todas as obras com temáticas próximas das de Luciano são

classificadas dentro da tradição, pois não apresentam elementos típicos do lucianismo. Em

Machado de Assis, por exemplo, é o caso de ―O parasita‖ e da comédia Os deuses de casaca.

33

Embora apresentem uma temática parecida com as produções de Luciano, os textos não

possuem as demais recorrências apresentadas aqui.

Ademais, Enylton de Sá Rego (1989) faz considerações sobre a sátira luciânica em

diferentes períodos históricos, a começar pelo Renascimento, com a obra Elogio da loucura,

de Erasmo Rotterdam. Igualmente, o estudioso destaca a obra Anatomia da Melancolia, de

Robert Burton; e Tristram Shandy, de Laurence Sterne. É mencionado ainda que não só as

características do lucianismo são retomadas em produções machadianas datadas a partir da

década de 1880, como também muitos desses autores são referidos pelo escritor oitocentista.

No terceiro capítulo de seu estudo, o pesquisador se dedica exclusivamente aos ecos

luciânicos na produção de Machado de Assis, como temas e características. É dessa maneira

que apresenta referências e alusões feitas a Luciano de Samosata nos textos de Machado. A

primeira menção direta se dá no conto ―Teoria do Medalhão‖. Após apresentar algumas

menções em outros contos e romances, Sá Rego (1989) faz a seguinte consideração:

Como vimos em nosso estudo sobre a sátira menipeia e a tradição luciânica, uma das características essenciais dessa linhagem literária é a utilização de

menções veladas a escritores precedentes de mesma tradição. Portanto, um

dos critérios para a classificação de Machado dentro desta tradição deve ser

a presença de alusões a Luciano em sua obra. Após detalhada pesquisa comparativa das obras dos dois autores, encontramos com efeito várias

passagens em que Machado parece referir-se direta e indiretamente aos

textos de Luciano. (...) No entanto, apesar de conter apenas cinco exemplos, acreditamos serem estes bastante significativos de temas de grande

importância na obra de Machado: a loucura e a imaginação, o grotesco

desconcerto do mundo, a escritura e a memória, a intromissão do riso na tragédia, e, finalmente, o pessimismo aparente do homem que se recusa a

transmitir seu ―legado de miséria‖ através da paternidade. (...) (SÁ REGO,

1989, p. 92)

Dessa forma, Sá Rego (1989) vai apresentar trechos da produção machadiana, a fim de

elucidar cada uma dessas características. Na primeira delas, o estudioso recorre às em

Memórias Póstumas e a Quincas Borba para afirmar ser a loucura uma metáfora utilizada

por Machado para expressar sua visão de mundo. Na segunda, tem como exemplo o capítulo

IX (―A ópera‖), de Dom Casmurro. Nele, é apresentada a teoria do desconcerto das vozes,

que, em outras palavras, expressa a ideia de que o mundo é organizado a partir da ordem e da

desordem. A terceira é exemplificada com o capítulo LIX (―Convivas de boa memória‖)

também de Dom Casmurro. No trecho, Sá Rego (1989) recupera a expressão ―odeio um

conviva de boa memória‖, alusão a um diálogo de Luciano. Na quarta, usa como exemplo um

trecho de Quincas Borba, no qual Sofia não consegue segurar o riso após ver o carteiro

tropeçar e cair no chão, a que já nos referimos. Na quinta e última característica, um trecho de

34

Memórias Póstumas é utilizado para elucidar suas proposições. É dessa forma que o autor

mostra que a ideia de pessimismo atribuída à produção de Machado de Assis se deve não a

dados biográficos, mas à própria tradição luciânica que apresenta tal componente, ao misturar

o sério e o cômico15

.

Ainda são destacados outros elementos da produção machadiana, os quais podem ser

lidos dentro da tradição. Um deles é o interesse pela anatomia:

Como tema histórico e literário, portanto, a anatomia interessava a Machado

de Assis. Mas é também como metáfora – como um método de análise minuciosa da alma humana, em busca não da descrição de ―situações‖, mas

sim do estudo de ―caracteres‖ – que Machado se interessa pela anatomia, e a

pratica em sua obra. (...) (SÁ REGO, 1989, p. 109)

Esse tema chama a atenção de Machado pelo que tem de paradoxal, como ocorre no

―Conto Alexandrino‖, em que o anatomista é anatomizado no fim. O crítico também faz a

seguinte declaração ao tratar do texto ―A Nova Geração‖ de Machado de Assis, publicado em

1879:

(...) Acreditamos que essa dialética tradição x inovação recebeu em

Machado de Assis uma solução criadora, que ao mesmo tempo segue e

transforma a tradição luciânica, adaptando-a às necessidades artísticas de seu tempo e de seu objetivo. Como vimos, todos os grandes escritores que

inovaram dentro desta tradição fizeram o mesmo, sabendo adaptar para seus

fins próprios os gêneros e convenções literárias vigentes, assim como temas e ideias da literatura e da vida social de sua época, através do uso sistemático

da paródia. (...) (SÁ REGO, 1989, p. 113, grifos do autor)

Enylton de Sá Rego (1989) afirma que Machado aborda o problema da paródia,

discutindo-a sob o nome de plágio. A esse propósito, o pesquisador trata do uso da citação

truncada, recuperando uma consideração de Machado, em ―Teoria do Medalhão‖. No conto, o

narrador considera a arte de ―renovar o sabor de uma citação, intercalando-a numa frase nova,

original e bela‖, o que não caracteriza o artista como ―mero copista‖. Há, portanto, um

incremento novo dado pelo autor, o que parece ocorrer com os elementos paratextuais de

―Gazeta de Holanda‖.

De acordo com Sá Rego (1989), em todos os narradores da produção iniciada na

década de 1880 haveria um distanciamento com relação aos fatos narrados. Contudo, como

15 Sergio Paulo Rouanet, em Riso e Melancolia (2007), afirma que esse elemento dialético está presente em

todos os autores shandianos. Nessa linhagem, em que figuram nomes como Sterne, Xavier de Maistre, Diderot e

Almeida Garrett, também consta o de Machado de Assis. Além desse elemento apontado por Rouanet, outros

seriam características do gênero shandiano, tal como a aparente liberdade do narrador; os ziguezagues na

narrativa, decorrentes do método digressivo e das interseções à história já existente e a arbitrariedade de tratar o

tempo e o espaço. Nas crônicas que serão analisadas nessa dissertação, os traços mais próximos à forma

shandiana consistem na mistura entre o riso e a melancolia e a digressividade e fragmentação da narrativa. Esses

aspectos serão melhor explorados ao longo de nosso estudo.

35

pretendemos demonstrar, esse distanciamento por parte do narrador não parece ser primordial

na constituição da série em estudo, dado que, em muitos momentos, mesmo estando em um

ponto de vista superior – como na crônica de 27 de setembro de 1887, analisada mais à frente

–, mostra-se em total interação com os fatos. Igualmente, demonstra ter autoconsciência de

seu processo narrativo.

No quarto capítulo, Sá Rego (1989) se volta para o surgimento da literatura brasileira

sob o signo do romance europeu. Nessa parte, são feitas considerações sobre Victor Hugo e

Machado de Assis, destacando-se a visão divergente que os dois tinham sobre o grotesco.

Para o primeiro, esse elemento teria surgido no drama romântico, através da mistura da

tragédia e da comédia. Para o segundo, conhecedor e admirador da tradição luciânica, tal

princípio já existiria na antiguidade grega. Logo, parece proveitoso pensar na série ―Gazeta de

Holanda‖ como sendo constituída por referências também marcadas pela presença do sério-

cômico. Isso vai ao encontro do que destaca Sá Rego (1989), que recupera a ideia de que a

produção cronista do autor serviu como um ―laboratório ficcional‖ para sua produção madura.

O pesquisador ainda afirma que, a partir de 1876, as produções de Machado de Assis

entram na tradição da sátira menipéia. O escritor, assim, privilegiaria a ironia e a imaginação,

sendo a apresentação mais importante do que a veracidade dos fatos narrados. De maneira

semelhante, o aspecto formal tem um valor simbólico e preponderante, o que depende da

imaginação do autor ou narrador que organiza a narrativa. Para Machado, é o modo de contar

que mais importa:

Na opinião de Machado, portanto, para ser representativa a história exige

não apenas fatos verdadeiros mas sobretudo uma apresentação formal que

tenha forte valor simbólico e comunicativo. (...) Para se re-escrever a

história, portanto, é necessário não somente relatar novos fatos, mas sobretudo dar-lhes uma nova organização formal que tenha um novo valor

simbólico. (SÁ REGO, 1989, p. 160)

O distanciamento do narrador parece estar relacionado a essa forma de contar a história. A

título de exemplificação, o conto ―A cartomante‖ dá uma versão narrativizada de um

conteúdo divulgado em jornais (os anúncios de cartomantes) junto a um ideal feito sobre elas,

demonstrando, assim, uma visão irônica e cética.

No quinto capítulo, Sá Rego (1989) se dedica aos três principais romances do autor.

Com isso, visa destacar que, a partir de Memórias Póstumas, Machado passou a produzir

textos híbridos, que ―(...) parodiam as convenções e tradições literárias dominantes em sua

época, sobretudo as associadas com o romantismo e o naturalismo‖ (SÁ REGO, 1989, p.

165). Ainda de acordo com o autor, Machado passa a re-escrever ironicamente os grandes

36

gêneros da literatura ocidental: ―(...) nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, realiza uma

re-escrita cômica do épico; em Quincas Borba, uma re-escrita trágica do cômico; e em Dom

Casmurro, uma re-escrita da tragédia‖ (SÁ REGO, 1989, p. 165). A propósito de cada um

desses romances, o estudioso destaca pontos que confirmam suas hipóteses. Assim, é

destacado que o uso da poética da sátira menipeia tem por base o conceito de paródia. O autor

menciona também algumas características dos narradores da dita segunda fase machadiana:

(...) Como vimos, é através do uso sistemático da paródia que os textos

associados com a tradição luciânica apresentam um hibridismo genérico que lhes serve na superação das formas literárias estabelecidas. Além de seu

conteúdo parodístico, tais textos caracterizam-se ainda pela presença de um

narrador irônico e distanciado, por uma posição moral essencialmente anti-

autoritária e por uma extrema liberdade de imaginação frente aos ditames da verossimilhança. (...) (SÁ REGO, 1989, p. 166)

Esses mesmos traços, vale ressaltar, estão presentes em produções anteriores às

Memórias Póstumas, como crônicas e, até mesmo, cenas cômicas, como ―A Sonâmbula‖,

texto a ser retomado em nossos ―Sonhos singulares‖. Outra informação digna de nota é que a

escrita da série coincide com a escrita de Quincas Borba. Segundo o crítico, o aspecto

híbrido desse romance resulta do tema do bom provinciano e do final trágico, o que configura

a re-escrita trágica do cômico. Para exemplificar, Sá Rego (1989) menciona o convite feito

pelo narrador da obra para que o leitor reaja com lágrima ou riso ao término da narrativa. Esse

hibridismo do sério e do cômico também está presente nas crônicas versificadas de ―Gazeta

de Holanda‖.

Por uma imprensa escrita em verso: invenção ou tradição?

É com recorrência e certa facilidade que encontramos na imprensa oitocentista a

divulgação de poemas, bem como séries semanais escritas em verso ou, até mesmo, textos

críticos, como os quartetos sobre a opereta La Grande Duchesse de Gérolstein e a paródia A

Baronesa de Cayapó, que serão apresentados no próximo capítulo. Como já destaca Sônia

Brayner (1992), a produção cronística em verso estava em voga na imprensa brasileira. Logo,

não parece ser à toa que a autora sugere um possível convite por parte de Ferreira de Araújo16

ao autor Machado de Assis para a produção de crônicas versificadas, na Gazeta de Notícias:

(...) Os folhetins rimados estavam então em moda, como os de O País,

escritos por Augusto Fábregas, e os do Jornal do Comércio, por Oscar Pederneiras. A Gazeta de Notícias resolveu suprir essa lacuna e,

16 Fundador e diretor do jornal.

37

provavelmente, Ferreira de Araújo sugeriu a Machado a ideia, mais tarde substituída pelas crônicas em prosa ―Bons dias!‖, às vésperas da Abolição (5

de abril de 1888). (BRAYNER, 1992, p. 411)

Entretanto, como pudemos constatar, também foi publicada outra série em verso no mesmo

jornal. A coluna intitulada ―Rimas por Flauta‖, assinada por Zé Daniel, um possível

pseudônimo, semelhantemente conta com a presença de uma epígrafe diferente em cada texto.

Algumas das publicações versificadas, presentes em jornais oitocentistas, apresentam

similaridades com a série machadiana, o que ocorre não apenas pelo aspecto composicional,

mas ainda pela finalidade para a qual eram produzidas. Vemos isso, por exemplo, no jornal

Diário de Notícias. Nele, uma série intitulada ―Reportagem Parnasiana‖ circulava já em 1886

(mesmo ano em que se dá início à publicação de ―Gazeta de Holanda‖), sendo composta por

quartetos e assinada pelo pseudônimo Violino.

Já no jornal O Paiz, uma série nomeada ―Aparas‖, cuja autoria é atribuída a Augusto

Fábregas, passa a circular a partir de fevereiro de 1888, chegando a ultrapassar o número de

420 publicações, ao final de agosto de 1889. Estruturalmente, os textos se assemelham à

produção machadiana, assim como apresentam uma numeração, mas em algarismos romanos.

Mesmo com a ausência de uma epígrafe, são notórias as semelhanças entre as publicações de

Fábregas e a série de Machado de Assis. Cabe acrescentar que o uso do pseudônimo variou ao

longo dos anos, ora sendo assinada por Canivete, ora por Tesoura:

Figura 1 – O Paiz, 27 fev. 1888, p. 2

Outro nome apontado por Brayner (1992) é o de Oscar Paranhos Pederneiras. De

acordo com Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, no Diccionario Bibliographico

Brazileiro (1900), Oscar Pederneiras produziu textos para diferentes jornais cariocas,

adotando, em algumas de suas publicações, o verso e a verve satírica para tratar de assuntos

38

cotidianos. Alguns dos jornais citados são: Jornal do Commercio, Folha Nova e o já

mencionado Diário de Notícias. Ainda conforme Sacramento Blake (1900), essas produções

se deram nos anos iniciais da década de 1880. No entanto, não pudemos localizar publicações

com esse teor no período correspondente nem no Jornal do Commercio, nem no Diário de

Notícias; já a Folha Nova não foi encontrada na Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional.

Outra informação que merece comentário é que antes de dar início à série versificada,

Machado de Assis já havia produzido dois textos à maneira de ―Gazeta de Holanda‖ 17

, em

séries anteriores. A primeira das publicações ocorreu na série ―Badaladas‖, publicada na

Semana Illustrada. Nela, o autor dividia o pseudônimo Dr. Semana com outros cronistas.

Embora a autoria dos textos seja controversa para a crítica machadiana, a edição da Jackson

de 1938, apresenta essa crônica como sendo de Machado.

Em um trabalho minucioso realizado pela pesquisadora Sílvia Maria Azevedo, o texto

aparece na coletânea Badaladas do Dr. Semana, por Machado de Assis, publicado em

2019. No estudo, Azevedo (2019) reúne cerca de trezentas crônicas, cuja autoria atribui ao

escritor. Dentre os textos selecionados, encontra-se reunida a mesma crônica mencionada

acima, cuja publicação se deu a 26 de maio de 187218

. No texto, apresentado parcialmente a

seguir, o escritor aborda em língua francesa questões como o próprio ato composicional e a

configuração do jornal; também não passam despercebidas questões religiosas, culturais e

políticas, assunto esse que mais parece despertar seu interesse:

Ai de mim! Para fazer minha crônica

Verídica

Eu não tenho no meu velho bolso

Um assunto.

E, vós, poetas, cuja caneta

Não pega um resfriado

Cuja musa fértil sabe Como se faz

De páginas longas e guiadas,

Pontilhadas,

De figuras e de palavras,

Gordas e grandes.

Levai-me sobre vossas grandes asas

Imortais,

Aos países onde vós sonhais

E reinais.

17 O número de quartetos em ―Gazeta de Holanda‖ varia de publicação para publicação, sendo que a menor

apresenta apenas três estrofes, e a maior, vinte e nove. 18 A fim de corrigirmos erros de transcrição, como palavras, pontuação e estrofe, consultamos o texto original na

revista Semana Illustrada, disponível na Hemeroteca Digital. No entanto, nenhuma das partes corrigidas foi

incluída no corpus aqui selecionado.

39

Pois, tudo que não é prosa, Eu não ouso

Tratar nesta seção mundana

Do jornal.19

O texto é composto por 36 quartetos, dos quais gostaríamos de destacar alguns versos.

Na primeira estrofe, é anunciada pelo cronista a ausência de assunto; na segunda, como em

um Canto homérico, o autor se refere às musas dos poetas; em seguida, são as configurações

do jornal a despertar sua atenção; já na quinta estrofe merece menção o pedido para ser levado

pelas asas dos poetas: ―Levai-me sobre vossas grandes asas / Imortais, / Aos países onde vós

sonhais / E reinais‖. Outra informação que merece destaque é dada na estrofe seguinte, na

qual a crônica parece consistir em uma ―seção mundana / Do jornal‖. Nos demais quartetos,

são referidos assuntos encontrados nos periódicos, tais como ―vendas‖, ―alterações‖, ―grandes

apostas‖, ―desperdícios‖, ―guerras‖, ―encomendas‖ e ―teatro‖. Entretanto, tudo não parece

passar de ―uma ideia séria / E dispendiosa / Não é disso que gostamos‖20

. É dessa forma que a

política se torna o foco principal do cronista, como vemos nas estrofes seguintes:

– Senhor, eu lhe disse, esta guerra Este é o negócio

Daqueles que estão nos cristais

Do Estado.

É um jogo nobre e difícil,

Muito fértil

Em golpes imprevistos e mutáveis Resultados.

Para jogá-lo é necessário que se tenha Moeda;

Eu, eu sou um pobre sonhador

Sem valor.

Depois, eu ainda adoro minha migalha

Utopia,

Uma virgem perdendo tempo Nos campos.

21

19 Hélas! Pour faire ma chronique / Véridique, / Je n‘ai pas dans mon vieux gousset / Un sujet. // O vous, poètes,

dont la plume / Ne s‘enrhume, / Dont la muse fertile sait / Comme on fait // Des pages longues et guindées, /

Parsemées, / De figures et de propos / Gras et gros, // Portez-moi sur vos grandes ailes / Immortelles, / Dans les

pays où vous rêvez / Et régnez. // Car, tout ce qui n'est pas la prose, / Moi, je n'ose / Traiter dans ce quartier

banal / Du journal. 20 (...) une idée sérieuse / Et coûteuse / Ce n'est pas ce que nous aimons. 21 – Monsieur, lui dis-je, cette guerre / C'est l'affaire / De ceux qui sont au baccarat / De l‘Etat. // C'est un jeu

noble et difficile, / Très fertile, / En coups imprévus et changeants / Dénoûments. // Pour le jouer il faut qu'on aie

/ De monnaie ; / Moi, je suis un pauvre rêveur / Sans valeur. // Puis, j'adore toujours ma mie / Utopie, / Une

vierge qui perd son temps / Dans vos camps.

40

A guerra é referida como um ―jogo nobre e difícil / Muito fértil, / Em golpes

imprevistos e mutáveis / Resultados‖, já o cronista se revela ―um pobre sonhador / Sem

valor‖. Ao se referir à sua Utopia, compara-a a uma ―virgem perdendo tempo / Nos campos‖,

acrescentando, pouco depois, ser ―Esta coisa que eu gosto de ver, / Quando, à noite, / / Coloco

minha alma na janela / Para ver nascer / A lua, cujo coração bondoso / Foge durante o dia‖22

.

Enquanto isso, as demais pessoas são ―práticas / Metódicas / Ajustadas, frias, racionais,

discretas / E corretas‖23

. Ao se referir a ministros e deputados, afirma:

Que eles venham ver esta charmosa

Flor nascente

Que se chama Lucinde, e depois Eu vos digo

Que se este belo talento não apagar Qualquer vestígio

De ódio, é que eles estão então

Quase mortos.

Mas, qual! Eu escrevi uma crônica

Política?

Claro! esta foi sem perceber. Então, boas noites!

Dr. Semana.

(BADALADAS, 1872, p. 4778-4782, tradução nossa) 24

É interessante notar que ―Flor nascente‖ é a jovem atriz portuguesa, Lucinda Simões,

recém chegada ao Brasil, para representações no Teatro São Luiz. No Diário do Rio de

Janeiro, a 5 de maio de 1872, é noticiada a chegada do Sr. José Simões Nunes Borges

acompanhado de sua filha. Na nota, destaca-se que, na Europa, a moça já é muito conhecida e

elogiada. A 25 de maio, o mesmo jornal tece uma longa nota sobre a atriz, chamando a

atenção para o que classifica como ―tiroteios espirituosos‖ em sua atuação. Na edição do dia

seguinte, o autor da seção ―Revista do Domingo‖ defende Lucinda Simões de ataques, citando

alguns de seus mais recentes trabalhos. Também afirma ser ela uma ―dama, coquette e dama

galã‖ que pronuncia ―paixão em cena‖. Já Machado de Assis, ao mencioná-la, considera que,

se os ministros, vendo-a em cena, não se derem conta de que o belo talento da atriz apaga

todo ódio, é porque estão quase mortos. Ainda é instigante observar que, ao finalizar sua

publicação, o cronista reconhece, em pleno lusco-fusco crepuscular, que fez uma crônica 22 Cette chose que j‘aime à voir, / Quand, le soir, // Je mets mon âme à la fenêtre / Pour voir naître / La lune, dont

l‘aimable cour / Fuit le jour. 23 (...) pratiques, / Méthodiques, / Réglés, froids, raisonneurs, discrets / Et corrects. 24 Qu‘ils aillent voir cette charmante / Fleur naissante, / Qu‘on appelle Lucinde, et puis / Je vous dis // Que si ce

beau talent n‘efface / Toute trace / De haine, c‘est qu‘ils sont alors / Presque morts. // Mais, quoi! J‘ai fait une

chronique / Politique ? / Parbleu ! ce fut sans le savoir. / Donc, bonsoir. (BADALADAS, 1872, p. 4778-4782)

41

política, despedindo-se com um cordial ―bonsoir‖, como o faria ao final de sua série ―Bons

dias!‖.

Uma segunda crônica versificada, tal qual as de ―Gazeta de Holanda‖, seria publicada

em ―Balas de Estalo‖. Nessa coluna, Machado publicou e assinou seus textos sob o

pseudônimo Lélio. Essa série contava com a participação de outros escritores e intelectuais,

cada um deles provido de pelo menos uma identidade, bem como de características próprias

na composição. Com textos escritos, até então, em prosa, nosso cronista adota o verso na

publicação de 5 de agosto de 1883. O texto composto por 11 quartetos, aparentemente faz

uma alusão ao fato de ter o jornal completado oito anos de circulação, no dia 2 do mesmo

mês25

:

Neste dia venturoso,

Ufano entre os mais ufanos, Bradarei com alma e gosto;

Parabéns a quem faz anos!

(...)

E o mesmo sol que ora surge

Neste pélago de enganos, Ressurja cinquenta vezes.

Parabéns a quem faz anos.

Brava gente brasileira,

E gringos e carcamanos,

Brademos todos a uma:

Parabéns a quem faz anos!

Lélio

(MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 450-451)

Alguns versos da publicação merecem ser destacados aqui, a começar pelo mais

repetido deles: ―Parabéns a quem faz anos!‖. Aparecendo onze vezes ao final de cada uma das

estrofes, o verso parece sintetizar a proposta central do texto. Assim, não somente a persona

que assume a crônica, como também os demais elementos a que se refere, parabenizam com

os mesmos dizeres. No segundo quarteto, por exemplo, ―gritam as nuvens‖ e ―dizem as

flores‖ o brado: ―Parabéns a quem faz anos!‖. Em seguida, são ―os próprios anjos descendo /

Lá dos astros soberanos‖. A partir do quarto quarteto ―um médico distinto‖, descrito dentro de

sua prática médica, igualmente repete o dito. Pelas estrofes seguintes, ainda é afirmado a seu

respeito ―com as drogas que receita, / Cura os ataques humanos / E apara os golpes da morte‖.

Mais ―Também pratica as virtudes‖; ―Que importa o tempo lhe ponha / Sinais de seus longos

25 A primeira publicação da Gazeta de Notícias data de 02 de agosto de 1875.

42

danos? / É calvo mas é bonito‖. Cada uma das estrofes é finalizada com a repetição do verso

de congratulação.

Em ambas as publicações, encontramos uma liberdade de imaginação e fantasia, como

podemos ver, por exemplo, nos versos ―Levai-me sobre vossas grandes asas‖ e ―Os próprios

anjos descendo / Lá dos astros soberanos‖, respectivamente. Embora não seja predominante a

presença desse recurso apontado por Enylton de Sá Rego (1989) como pertencente à tradição

luciânica, esse traço serve como uma clara demonstração de elementos satíricos em textos

cronísticos do autor, mesmo aqueles escritos em verso, como os de sua ―gazeta‖. Talvez, por

essa razão, afirme Ivan Teixeira (2010), no capítulo ―Confluências discursivas: jornal, luzes,

mulher‖, de O Altar e o Trono, que, conquanto se admita uma inteligência singular do

escritor:

(...) é possível imaginar que Machado de Assis tenha sido uma invenção, não

só dos livros que leu e estudou, mas também dos jornais e revistas em que

colaborou, a partir dos quais modelou e aprimorou continuamente seu repertório. (TEIXEIRA, 2010, p. 70)

43

II – Uma série singular

(...) Sempre me sucedeu apreciar a maneira por que os caracteres se exprimem e se

compõem, e muita vez não me desgosto o arranjo dos próprios fatos.

Gazette de Hollande

Baseados nos apontamentos de Pierre Larousse (1872), no Grand Dictionnaire

Universel du XIXe siècle, os historiadores Jefferson Cano, Sidney Chalhoub, Leonardo

Affonso de Miranda Pereira e Ana Flávia Cernic Ramos, apontam em ensaio intitulado

―Narradores do ocaso da monarquia (Machado de Assis)‖ e publicado na Revista Brasileira,

no ano de 2008, que o título ―Gazeta de Holanda‖, da série de crônicas em verso, publicadas

por Machado de Assis, faz referência aos jornais e panfletos publicados por refugiados

franceses em Amsterdã e Leiden, entre o século XVII e XVIII. Além disso, acrescem que a

maledicência e a calúnia eram as marcas principais dessas publicações.

O historiador Eugène Hatin, autor de Historie du journal en France e Historie

Politique et Littéraire de La Presse en France, publica em 1870 o seu estudo sobre as

gazetas clandestinas, também conhecidas por ―gazette de Hollande‖26

. No livro, intitulado Les

gazettes de Hollande et la presse clandestine aux XVIIe et XVIIIe siècles, o estudioso se

dedica exclusivamente às publicações feitas em língua francesa que circularam entre a

Holanda e a França.

Já no prefácio, Hatin lembra a concepção geralmente associada a essas folhas e que as

entende como uma espécie de panfleto indiscreto, veículo de fofoca e difamação27

. Essa

informação é retomada outras vezes ao longo de seu estudo, mas para destacar outros

conteúdos veiculados por essas folhas clandestinas, especialmente aqueles voltados à política.

Ao se voltar para a história da imprensa francesa, Hatin (1870) reconhece a ausência de

estudos sobre a circulação dessas folhas, o que atribui, sobretudo, à ausência de materiais para

tais pesquisas.

26 Na Bibliothèque Nacionale de France, encontramos o que seria extrato de uma ―gazette de Hollande‖.

Conferir: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8600495d/f1.item.zoom 27 Em obras literárias do século XVII e XVIII, encontramos alusões ao que seriam essas ―gazetas de Holanda‖. É

o caso, por exemplo, de uma passagem de As relações perigosas, de Choderlos de Laclos. No romance

epistolar, na carta CXLI, é feita a seguinte menção: ―A propósito, agradeço-vos os pormenores do caso da

pequena Volanges; é coisa a ser silenciada até o dia seguinte ao do casamento, para a gazeta da maledicência‖.

Ver: LACLOS, Choderlos de. As relações perigosas. Trad. Sérgio Millet. 1º ed. Abril Cultura, 1971, p. 271-

273.

44

Sendo assim, ao levar em consideração a visão geralmente estabelecida e comumente

aceita a respeito das gazetas, o estudioso afirma que nunca houve uma folha denominada

Gazette de Hollande. Ademais, ele acresce que essa denominação designava, tão-somente, as

folhas vindas da República das Províncias Unidas:

(...) Isso deveria ser, em meu pensamento, como tantos marcos para os trabalhadores; não vou lhe acrescentar outra importância. Entretanto, dele

resulta já um primeiro esclarecimento, a saber, que jamais houve uma gazeta

portando o título de Gazette de Hollande, que foi introduzido o costume de designar, sob esse nome, todas as folhas vindas da república das Províncias-

Unidas, e também, posso acrescentar hoje, de lançar na conta das gazetas

todas as iniquidades imputáveis a uma multidão de escritos de toda natureza, mais ou menos periódicos, que a Holanda verteria sobre a França. (HATIN,

1870, p. 02, tradução nossa)28

Por terem essa origem estrangeira é que Hatin (1870) afirma que essas gazetas não

podem ser consideradas nas classificações de jornais franceses. Isto é, apesar da escrita em

francês, a produção se dava na Holanda e em outras localidades. Antes de iniciar sua

exposição, o autor relata os procedimentos adotados na realização de seu estudo, como, por

exemplo, a consulta a bibliotecas e acervos existentes. Igualmente, reconhece que, para falar

do estabelecimento da imprensa francesa, é preciso tratar antes da imprensa clandestina, dado

que ela produziu muitos escândalos e polêmicas entre o século XVII e XVIII, período em que

circulou. Assim, destaca que não só pessoas comuns, mas autoridades e, até mesmo o próprio

Rei Luís XIV, foram alvos dos ataques das gazetas. Por isso, faz a seguinte afirmação:

(...) Estávamos, então, sob o regime do privilégio e do monopólio, e a consequência forçada desse regime é o contrabando, são os negócios

subterrâneos. Fui, portanto, fortemente levado a dizer algumas palavras da

imprensa clandestina, e ouço por lá não os jornais de outra fronteira, que

circulavam mais ou menos livremente na França, e que eu chamaria com prazer a imprensa de contrabando, mas essas pequenas gazetas, manuscritas

ou impressas, essas notícias à mão, como se dizia, produto da maledicência

parisiense, que passávamos por baixo do pano, cujo caráter seria mais preferivelmente escandaloso que político. (HATIN, 1870, p. 10, tradução

nossa)29

28 (...) Ce devait être, dans ma pensée, comme autant de jalons pour les travailleurs ; je n'y avais pas attaché

d'autre importance. Il en résultait déjà, cependant, un premier éclaircissement, à savoir qu'il n'y a jamais eu de gazette portant le titre de Gazette de Hollande, que l'usage s'était introduit de désigner sous ce nom toutes les

feuilles venant de la république des Provinces-Unies, et aussi, puis-je ajouter aujourd'hui, de mettre en masse sur

le compte des gazettes toutes les iniquités imputables à une foule d'écrits de toute nature, plus ou moins

périodiques, que la Hollande déversait sur la France. (HATIN, 1870, p. 02) 29 (...) On était alors, chez nous, sous le régime du privilège et du monopole, et la conséquence forcée de ce

régime, c'est la contrebande, ce sont les entreprises souterraines. J'ai donc été forcément amené à dire quelques

mots de la presse clandestine, et j'entends par là non pas les journaux d'outre-frontière, qui circulaient plus ou

moins librement en France, et que j'appellerais volontiers la presse de contrebande, mais ces petites gazettes,

manuscrites ou imprimées, ces nouvelles à la main, comme on disait, produit de la médisance parisienne, qu'on

se passait sous le manteau, et dont le caractère était plutôt scandaleux que politique. (HATIN, 1870, p. 10)

45

Nas duas partes da obra, Hatin (1870) destaca acontecimentos históricos e políticos

que se deram durante a circulação dessas folhas; além disso, dá pequenas amostras do

conteúdo publicado por elas, bem como a recepção que tiveram por parte do público leitor. Na

primeira parte do estudo, intitulada ―État de la press en France aux XVIIe et XVIIIe siècles:

La presse clandestine‖, afirma que o jornal é um instrumento político e histórico. É desse

modo que o estudioso considera o jornal como uma fonte, onde se encontram a história moral,

política e literária das mais variadas nações.

Como mostra o historiador, durante um século e meio, a França contou apenas com

um jornal oficial, denominado, inicialmente, como Gazette, e mais tarde como Gazette de

France. Nesse ínterim, outros jornais apareceram, mas nenhum foi capaz de abalar o domínio

da folha oficial. Foi o caso, por exemplo, do Journal des Savants e do Mercure galant:

Na França, durante um século e meio, nós tivemos somente um jornal

político propriamente dito, somente uma gazeta, enfeudada no poder e

escrevendo apenas o que lhe ditavam. O privilégio concedido a Renaudot, em 1631, assegurava-lhe não somente o monopólio da Gazette, convertida

mais tarde em Gazette de France, mas de todos os ―outros papeis

geralmente não especificados contendo relato de coisas passadas e futuras, ou que se passariam tanto dentro como fora do reino‖, e mais, ainda, a

publicidade comercial. Quando, trinta e quatro anos depois, em 1665, o

fundador do Journal de Savants, Denis de Sallo, imagina o jornal literário e

científico, ele havia igualmente obtido um privilégio exclusivo. Em 1672 nasceu o Mercure galant, o protótipo dos pequenos jornais: aliando a

política à literatura, ou, se quisermos, a história à fantasia, de Visé criou,

entre o jornal político e o jornal literário, um gênero misto, cujo monopólio lhe foi concedido paralelamente. (HATIN, 1870, p. 16, tradução nossa)

30

Sendo assim, ao se referir a um relato do filósofo e escritor francês Pierre Bayle a

respeito da Gazette de France, Hatin (1870) destaca algumas das declarações comparando a

folha oficial aos jornais estrangeiros. Dentre as considerações feitas, destacam-se: a qualidade

linguística com que eram escritos os artigos; a ausência de fofocas, ou ameaças aos inimigos

do rei; bem como o fato de não se veicularem notícias falsas. Ainda segundo Bayle, os jornais

estrangeiros tinham um método completamente contrário ao jornal produzido na França, isso

porque faziam referências a conspirações inexistentes e realizavam constantes ameaças.

30 En France, pendant un siècle et demi, nous n'eûmes qu'un journal politique proprement dit, qu'une gazette,

inféodée au pouvoir et n'écrivant rien que sous sa dictée. Le privilège accordé à Renaudot, en 1631, lui assurait

le monopole non-seulement de la Gazette, devenue plus tard Gazette de France, mais de tous « autres papiers

généralement quelconques contenant le récit des choses passées et avenues ou qui se passeraient tant dedans que

dehors le royaume », et de plus, encore, de la publicité commerciale. Quand, trente-quatre ans après, en 1665, le

fondateur du Journal des Savants, Denis de Sallo, imagina le journal littéraire et scientifique, il avait également

obtenu un privilège exclusif. En 1672 était né le Mercure galant, le prototype des petits journaux : en alliant la

politique à la littérature, ou, si l'on veut, l'histoire à la fantaisie, de Visé avait créé, entre le journal politique et le

journal littéraire, un genre mixte dont le monopole lui avait été pareillement concédé. (HATIN, 1870, p. 16)

46

Entretanto, o historiador acresce que nem sempre os fatos apresentados pela Gazette

de France eram feitos à luz da verdade. Para exemplificar sua asserção, Hatin (1870) se

refere ao silêncio da folha diante de alguns acontecimentos da Revolução Francesa, como foi

o caso da tomada da Bastilha, em 1789. É nesse ponto que ele destaca a importância das

folhas estrangeiras, visto que a insuficiência do jornal oficial foi uma das razões para que as

gazetas clandestinas circulassem na França, mesmo diante da intensa perseguição contra elas:

Esta insuficiência da Gazette seria além do mais vivamente sentida pelos

contemporâneos, que sempre protestam, de um modo ou de outro, contra o magro regime ao qual os querem submeter. Daí os esforços aos quais fiz

alusão para contornar seu privilégio; daí essas publicações clandestinas de

todas as formas e de todas as cores, brochuras, epigramas, sátiras, sobretudo

canções, que vinham a cada dia custear a malícia dos salões e dos cafés, a despeito dos preferidos e dos governantes que elas dilaceram; daí essas

gazetas clandestinas, essas notícias à mão tão vivamente perseguidas, mas

tão persistentes. (HATIN, 1870, p. 19-20, tradução nossa)31

Contudo, deveria ser com prudência, sabedoria e controle o uso das informações veiculadas

por essas gazetas. É por isso que Eugène Hatin (1870) apresenta uma queixa do autor de La

Police de Paris dévoilée (HANTIN, 1870, p. 19) sobre os reais motivos que levavam os

leitores a buscarem pelas gazetas estrangeiras. O homem se mostra indignado pelo fato de as

pessoas não se contentarem com as informações prestadas pela Gazette de France e

buscarem em folhas clandestinas fatos frívolos, como a vida particular de membros da corte

ou do clero. É desse modo que faz a seguinte declaração: ―(...) Cabe ao lápis dos espertos

fixar essas notas escandalosas, que, a cada dia, se sucedem e desaparecem. (...)‖ (apud

HATIN, 1870, p. 20, tradução nossa)32

Como o pesquisador pondera, a paixão pela notícia precede a existência de qualquer

jornal, de modo que até o século XVII essa curiosidade era saciada somente por meio do

―ouvir dizer‖. É forçoso reconhecer que a busca pela informação é natural ao homem e é em

especial através do jornal que esse desejo passa a ser mais facilmente realizado. Com isso,

Hatin (1870) conta como surgiram os primeiros centros em Paris, onde escritores de

profissão, ou não, encontravam-se a fim de compartilhar informações que pertenciam tanto à

cidade como à Corte. Inicialmente, esses jornalistas se comunicavam apenas entre si sobre

31 Cette insuffisance de la Gazette était d'ailleurs très-vivement sentie par les contemporains, qui de tout temps

protestèrent, de façon ou d'autre, contre le maigre régime auquel on les voulait soumettre. De là les efforts

auxquels j'ai fait allusion pour tourner son privilège ; de là ces publications clandestines de toutes les formes et

de toutes les couleurs, brochures, épigrammes, satires, chansons surtout, qui venaient chaque jour défrayer la

malice des salons et des cafés, en dépit des favoris et des gouvernants qu'elles déchiraient ; de là ces gazettes

clandestines, ces nouvelles à la main si vivement pourchassées, mais si persistantes. (HATIN, 1870, p. 19-20) 32 (...) C‘est au crayon des malins à fixer ces notes scandaleuses, qui, chaque jour, se succèdent et s‘envolent. (...)

(apud HATIN, 1870, p. 20)

47

notícias que tinham apurado, ou mesmo inventado. Mas, logo surgiu o desejo de registrar e,

dada a oportunidade, eles passaram a produzir uma espécie de jornal, cujas cópias eram

manuscritas e distribuídas na capital francesa. De acordo com o historiador, foi daí que

surgiram as notícias manuscritas, as quais precederam as publicações de jornais e revistas

impressas do século XVIII.

Como também informa, a comercialização foi regulada na medida em que a

clandestinidade permitia; assim, cada grupo contava com seu escritório editorial, sua cópia, e

sua equipe de correspondentes nas províncias. Essas primeiras publicações, por ora chamadas

de gazetins, variavam de valor de acordo com o número de páginas de que eram compostas. É

curioso notar que, assim como na França, em outros países também houve a circulação dessa

espécie de notícia à mão, como, por exemplo, na Inglaterra. Segundo Hatin (1870), lá as

folhas levavam o nome de New-Letters e despertavam, muitas vezes, mais interesse do que

os próprios jornais impressos.

Dadas as restrições impostas à liberdade de imprensa no território francês, o autor

ainda chama a atenção para o fato de ter sido o aspecto satírico o responsável por fomentar e,

consequentemente, manter a existência dessas folhas. O elemento satírico parece ser, pois,

uma marca recorrente nesse tipo de publicação. Não é à toa, portanto, que perseguimos essa

questão no estudo da ―Gazeta de Holanda‖. Como mencionamos brevemente em nossas

―Primeiras palavras‖ e no capítulo anterior, Machado de Assis alia tais recursos a seu olhar

jornalístico, de modo a tratar dos mais diversos assuntos. Não obstante o uso da sátira, Hatin

(1870) também mostra que alguns autores das gazetas foram perseguidos e punidos, o que fez

com que as folhas se tornassem mais raras em alguns momentos, sem, nem por isso,

desaparecerem de vez. Semelhantemente, os versos cintilantes e espirituosos da série

machadiana suscitaram comentários analíticos e elogiosos na imprensa carioca da época, o

que nos ajuda a entender melhor a composição de seus textos. Retomaremos essa questão.

Embora a noção de uma ―gazette de Hollande‖ como veículo de conteúdo difamatório

e maledicente fosse recorrente, as folhas clandestinas se tornaram uma espécie de resumo de

sua época, visto que veicularam os mais variados assuntos, tais como: análise de peças

teatrais; relato de assembleias literárias e julgamentos famosos; publicação de novos livros e,

em particular, livros clandestinos e proibidos; peças raras ou inéditas, em verso ou em prosa;

canções satíricas; anedotas e boas palavras; aventuras da sociedade; feitos da Corte que eram,

muitas vezes, embelezados por escândalos, etc. Não é à toa que o estudioso faz a seguinte

48

consideração: ―(...) toda essa crônica escandalosa que os franceses, sobretudo os parisienses,

tanto apreciaram em todos os momentos‖ (HATIN, 1870, p. 26, tradução nossa)33

.

Outro ponto para o qual parece oportuno chamar a atenção é a vida efêmera dessas

publicações, isso porque muitas delas não chegavam a circular pela segunda vez. Mesmo que

muitas não apresentassem um título, não raro o estudioso diz ter encontrado alguma gazeta,

ou como prefere considerar, um panfleto com titulação:

Eu falo de notícias à mão que duraram e constituíram até certo ponto uma

empresa; em número muito pequeno. A maior parte dessas folhas, sem sequência, sem consistência, somente apareciam e desapareciam.

Manuscritos ou impressos, as notícias geralmente eram enviadas em

envelopes, na forma de uma carta, e não tinham nenhum tipo de título.

Vemos, entretanto, como já tive ocasião de observar em minha Historie de

la presse, algumas pequenas gazetas, seria melhor dizer, alguns panfletos,

abrigando-se sob o nome de folhas autorizadas. (HATIN, 1870, p. 27,

tradução nossa)34

O autor elucida suas afirmações com exemplos de anúncios veiculados nesses

panfletos. Tanto nesse estudo, como no já mencionado Histoire politique et littéraire de la

press en France : avec une introduction historique sur les origines du journal (1859 – 1861. 8

v.), demonstra que o conteúdo não era exclusivamente voltado ao escândalo e à maledicência:

Casas a vender ou apartamentos a alugar. Grande parte da orla de novas construções do Palácio Real para alugar. Advertimos que receberemos somente meninas, vendedores, libertinos,

intrigantes, escroques, fazedores de projetos, chefes de museus, liceus,

inventores de balões, fabricantes de gás inflamável, como outros em

condições de lá se divertirem e de pagarem bem.

Agência a vender O escritório de espionagem de M., o controlador geral do Parlamento está vago: o abade Sabatier de Castres, o titular, foi desvendado, não pode mais

utilizá-lo de modo útil; ele gostaria de se desfazer. (apud HATIN, 1870, p.

29, tradução nossa)35

33 (...) toute cette chronique scandaleuse dont les Français, les Parisiens surtout, ont de tout temps été si friands.

(HATIN, 1870, p. 26) 34 Je parle là des nouvelles à la main qui ont duré, qui ont constitué jusqu'à un certain point une entreprise ; et

c'est le très-petit nombre. La plupart de ces feuilles, sans suite, sans consistance, ne faisaient que paraître et disparaître. Manuscrits ou imprimés, les bulletins de nouvelles s'envoyaient généralement sous enveloppe, dans

la forme d'une lettre, et ne portaient aucune espèce de titre. On vit cependant, comme j'ai eu occasion de le faire

remarquer dans mon Histoire de la presse, quelques petites gazettes, il serait peut être mieux de dire quelques

pamphlets, s'abriter sous le nom de feuilles autorisées. (HATIN, 1870, p. 27) 35 Maisons à vendre ou appartements à louer. La plus grande partie du pourtour des nouveaux bâtiments du

Palais-Royal à louer. On avertit qu'on n'y recevra que des filles, des brocanteurs, des libertins, des intrigants, des

escrocs, des faiseurs de projets, des chefs de musée, de lycée, des inventeurs de ballons, des fabricants de gaz

inflammable, comme plus en état de s'y plaire et de bien payer.Office à vendre. L'office d'espion de M. le

contrôleur général dans le Parlement est vacant : l'abbé Sabatier de Castres, le titulaire, ayant été démasqué, ne

peut plus l'exercer utilement ; il voudrait s'en défaire. (apud HATIN, 1870, p. 29)

49

Dessa forma, o pesquisador afirma que a única gazeta que mereceu o título de

maledicente foi a Nouvelles ecclésiastiques. Como expõe, essa folha intrigou mesmo

escritores contemporâneos, como o ensaísta e filosofo francês Voltaire, que se referia à folha

como Gazette ecclésiastique:

(...) De todos os jornais clandestinos, nenhum fez tanto barulho, nenhum outro teve tão real importância como aquele. Seria a obra, o instrumento de

opiniões religiosas excitadas a um tal ponto que não acreditamos ser possível

a esta época cética e zombeteira, onde se crê tão pouco, onde se zomba de tão bom grado de tudo; seria um tipo de catapulta destinada a contrariar esta

famosa Bula Papal Unigenitus, que causa na França tanto escândalo e

levanta tantas paixões, que ‗se tornou o próprio caso de cada um, e quase seu único negócio, do qual se espera notícias com uma espécie de impaciência,

notícias que se recebe com uma diligência e uma avidez semelhante à de um

comerciante que as recebe de um navio no qual depositou seus bens e sua

fortuna‘. (HATIN, 1870, p. 32, tradução nossa)36

Ainda sobre essa folha, o autor acresce que, além do trabalho dado à polícia que

buscava descobrir a real autoria dos textos, a gazeta também era encontrada em vários pontos

de Paris, espalhando-se facilmente. No início, as Nouvelles ecclésiastiques circulavam como

as demais publicações, pois eram escritas à mão, mas em 1728 passaram a ser impressas. No

período da agitação revolucionária, os produtores se refugiaram em Utrecht, de onde

publicaram entre 1794 e 1803, quando deixou de circular. Desse modo, afirma Hatin: ―(...)

Para manter um jornal clandestino, é preciso um partido, um interesse, paixões, fé, condições

tais como finalmente as encontrou a folha jansenista‖ (HATIN, 1870, p. 34, tradução nossa)37

.

Na segunda parte de seu trabalho, intitulada ―La presse française à l‘étranger – Les

Gazettes de Hollande‖, Hatin (1870) se volta para as publicações da imprensa estrangeira,

destacando a circulação de jornais e as primeiras revistas impressas. Diferentemente do que

ocorria na França, em outros países, como Holanda e Inglaterra, os jornais se multiplicavam.

É desse modo que o autor destaca o fato de terem sido as folhas estrangeiras (escritas em

francês) mais procuradas quando as gazetas clandestinas se tornaram mais raras. Também é

curioso notar que as folhas estrangeiras tiveram mais liberdade de circulação no território

36 (...) De tous les journaux clandestins, aucun ne fit autant de bruit, aucun non plus n'eut une aussi réelle

importance que celui-là. C'était l'oeuvre, l'instrument d'opinions religieuses surexcitées à un degré que l'on

n'aurait pas cru possible à cette époque sceptique et raileuse, où l'on croyait si peu, où l'on se moquait si

volontiers de tout ; c'était une sorte de catapulte destinée à battre en brèche cette fameuse bulle Unigenitus, qui

causa en France tant de scandale et souleva tant de passions, qui « était devenue la propre affaire de chacun, et

presque son unique affaire, dont on attendait des nouvelles avec une sorte d'impatience, nouvelles qu'on recevait

avec empressement et une avidité semblable à celle d'un marchand qui en reçoit d'un vaisseau sur lequel on a

placé son bien et sa fortune. » (HATIN, 1870, p. 32) 37 (...) Pour soutenir un journal clandestin, il faut un parti, un intérêt, des passions, la foi, des conditions telles

enfin qu'en rencontra la feuille janséniste. (HATIN, 1870, p. 34, tradução nossa)

50

francês do que as produzidas no próprio país. Contudo, Hatin (1870) pondera que essa

circulação se deu sob uma maior circunspecção e, quanto a isso, acresce:

(...) Sem buscar outras razões, poderíamos pensar que o governo queria,

ainda aqui, fazer a parte do fogo. Autorizando a entrada de gazetas na França, que teriam entrado de todo modo e que, além disso, corriam toda a

Europa, ele poderia esperar, senão torná-los favoráveis à sua política, pelo

menos forçá-los a uma maior circunspecção. É com esse objetivo que o

vemos tentar, como já havia feito para os autores das gazetas à mão, dar uma ligação oficial a seus correspondentes em Paris, aos boletineiros, ou

boletinistas, como os chamamos. (HATIN, 1870, p. 36, tradução nossa)38

Era, portanto, o interesse político o que motivava essa maior aceitabilidade dos jornais

estrangeiros, na França. Além disso, havia a tentativa de dar um vínculo oficial aos

correspondentes estrangeiros que estavam em Paris. Hatin (1870) exemplifica isso,

apresentando uma série de jornais que circularam nesse período, como era o caso do Courrier

de l'Europe. Esse jornal anglo-francês foi impresso em Londres, durante os últimos anos da

monarquia francesa. A circulação na cidade luz se deu em um momento em que os dois países

estiveram próximos de romper relações.

Após a Revolução Francesa e já sob o regime republicano, o governo não dispensou

gastos com os ditos gazetiers. Isso consistia em uma clara tentativa de que falassem a favor da

França, o que não seria necessário caso houvesse liberdade de impressa, pois como considera

Hatin (1870):

Seria uma fraqueza que os bucaneiros literários deviam explorar com a

última insolência. Havia, contra todos esses embaraços, um expediente, um remédio bem mais simples e mais eficaz: dar uma maior liberdade à

imprensa nacional. Não o percebemos ou não cremos dever tentar. (HATIN,

1870, p. 42, tradução nossa)39

Além de serem vendidas nas ruas, as gazetas estrangeiras podiam ser encontradas em

diferentes localidades da França, como, por exemplo, cafés, gabinetes literários e clubes.

Como apontado pelo autor, essa prática já se fazia presente em meados do século XVIII.

Hatin (1870) cita, então, um texto em verso, de autoria de François Colletef e publicado no

Tracas de Paris (1660), que se refere aos curiosos que liam as gazetas no quai des Augustins:

38 (...) Sans chercher d'autres raisons, on pourrait penser que le gouvernement voulait, ici encore, faire la part du

feu. En autorisant l'entrée en France des gazettes, qui auraient pénétré quand même, qui d'ailleurs couraient toute

l'Europe, il pouvait espérer, sinon les rendre favorables à sa politique, tout au moins les obliger à une plus grande

circonspection. C'est dans ce but qu'on le vit essayer, comme il l'avait déjà fait pour les auteurs des gazettes à la

main, de donner une attache officielle à leurs correspondants à Paris, aux bulletiniers, ou bulletinistes, comme on

les appelait. (HATIN, 1870, p. 36) 39 C'était une faiblesse que des flibustiers littéraires devaient exploiter avec la dernière effronterie. Il y avait,

contre tous ces embarras, un expédient, un remède bien plus simple et plus efficace : c'eût été de donner une plus

grande liberté à la presse nationale. On ne s'en avisa pas, ou l'on ne crut pas devoir en essayer. (HATIN, 1870, p.

42)

51

Mas, seguindo, olhe, Sem te divertir com mostarda

40,

Todos esses leitores de novidades

Nessas boutiques parados. Um coloca sobre o nariz seus óculos

Para ler a gazeta,

Escritas em prosa, escritas em verso, As novidades do universo.

É um prazer, para esses leitores,

Ver as diversas posturas.

Entre essas pessoas, eis duas Fixadas à direita como estacas;

Outras recolhidas sob estalagens.

Tudo assim como imagens; Aquelas acima premidas em um banco,

Estas sob a porta empilhadas:

Pois cada boutique está tão cheia;

Que nós mal poderíamos nos conter. Este que lê mais prontamente

Empresta a outro um começo.

Outro curioso pede Uma gazeta de Holanda,

E esta aqui de Anvers...

(apud HATIN, 1870, p. 43-44, tradução nossa)41

A escrita dessas gazetas se dava não só em verso, como também em prosa e, como já

foi dito, eram elas as responsáveis por suprir o silêncio da Gazette de France em relação a

acontecimentos não noticiados. Contudo, Eugène Hatin (1870) relata que nos últimos anos de

circulação, as gazetas holandesas se tornaram mais incisivas em seus ataques, tornando-se

mesmo mais difamatórias. Os ataques eram realizados, em especial, contra a religião, as

autoridades e até pessoas comuns. Duas curiosidades nessas publicações merecem a atenção

do historiador. A primeira delas se refere ao fato de todas as gazetas estrangeiras estarem

repletas de máximas inglesas e republicanas; e a segunda se refere ao fato de os impressores

provinciais reimprimirem as folhas holandesas, acrescentando-lhes informações nem sempre

verdadeiras. Por isso, para Hatin (1870), parece ser incontestável a existência de falsificações

das ―gazette de Hollande‖.

Os proprietários dessas folhas também passaram a obter lucro com a publicação de

anúncios à custa de um ordenado, como mostra o autor por meio de relatos. Mesmo diante das

40 Não conseguimos recuperar o sentido da expressão ―à la moutarde‖ no texto. Parece tratar-se de expressão

idiomática ou de alguma alusão contextual. Mantivemos uma versão literal. 41 Mais, en faisant chemin, regarde, / Sans t'amuser à la moutarde, / Tous ces lecteurs de nouveautés / Dans ces

boutiques arrêtés. / L'un sur son nez met sa lunette / Afin de lire la gazette, / Écrite en prose, écrite en vers, / Des

nouvelles de l'univers. / C'est un plaisir, pour ces lectures, / De voir les diverses postures. / Parmi ces gens, en

voilà deux / Fichés tout droits comme des pieux ; / D'autres rangés sous étalages, / Tout ainsi comme des images

; / Ceux-là dessus un banc pressés, / Ceux-ci sous la porte entassés : / Car chaque boutique est si pleine ; / Qu'on

n'y saurait tenir qu'à peine. / Celui qui lit plus promptement / Prête à l'autre un commencement. / Un autre

curieux demande / Une gazette de Hollande, / Et celui-ci celle d'Anvers... (apud HATIN, 1870, p. 43-44)

52

recriminações da folha oficial, as gazetas continuaram a circular na França, mas com cautela.

É assim que Hatin (1870) apresenta uma série de gazetas estrangeiras que, já no final da

década de 1770, circulavam na França:

Em 1779, recebemos em Paris certo número de jornais de gêneros diversos,

nove gazetas estrangeiras: a Gazette d'Amsterdam, a Gazette de La Haye,

a Gazette de Leyde (Nouvelles extraordinaires de divers endroits), a Gazette d'Utrecht, a Gazette de Clèves, dita Courrier du Bas-Rhin; a

Gazette d'Altona, a Gazette de Bruxelles, a Gazette de Cologne e a

Gazette des Deux-Ponts. Essas gazetas apareciam duas vezes por semana,

exceto essa de La Haye, que aparecia três. Elas continham: essa de Amsterdam, 48 livros; essa de Clèves, 42; e as outras, 36.

A essas gazetas precisaria adicionar o Courrier de l'Europe, do qual

falamos acima e que não figura na lista da qual tomei emprestada a informação que precede, sem dúvida porque a circulação estava proibida no

momento em que esta lista foi feita. (HATIN, 1870, p. 48-49, tradução

nossa)42

Atendo-se aos objetivos de seu estudo, o historiador afirma que nenhum outro país

produziu tantos periódicos franceses como a Holanda. São essas gazetas clandestinas,

portanto, que o estudioso considera como as mais interessantes em termos históricos, o que se

deve, principalmente, ao papel que exerceram. Além disso, alguns outros fatores contribuíram

para a produção e circulação dessas folhas, como o grande número de refugiados franceses,

fugidos das perseguições religiosas e a maior liberdade de expressão que encontram no

território holandês. Essa maior liberdade resultava, sobretudo, do fato de cada cidade ter sua

própria lei. Não havia, pois, uma autoridade central, cabendo a cada estado formular leis a

serem aplicadas nas cidades (HATIN, 1870, p. 92-93), mas o estudioso também acresce que

havia certos privilégios, como exemplifica com uma pequena passagem:

É bom que saibamos, de fato, que as gazetas na Holanda, como em todo lugar, existiram em virtude de um privilégio, de uma concessão que lhes foi

conferida: ―Com privilégio de Nossos Senhores os Estados Gerais de

Westfrise e da Holanda‖, lemos no título ou na subscrição de cada um de seus números. Isto já mostra que a liberdade de imprensa não seria tão

absoluta na república das Províncias-Unidas como geralmente se é levado a

pensar. (HATIN, 1870, p. 87, tradução nossa)43

42 En 1779, on recevait à Paris, outre un certain nombre de journaux de genres divers, neuf gazettes étrangères :

la Gazette d'Amsterdam, la Gazette de La Haye, la Gazette de Leyde (Nouvelles extraordinaires de divers

endroits), la Gazette d'Utrecht, la Gazette de Clèves, dite Courrier du Bas-Rhin ; la Gazette d'Altona, la

Gazette de Bruxelles, la Gazette de Cologne, et la Gazette des Deux-Ponts. Ces gazettes paraissaient deux

fois par semaine, excepté celle de La Haye, qui paraissait trois fois. Elles coûtaient : celle d'Amsterdam, 48 livres

; celle de Clèves, 42 ; les autres, 36.

A ces gazettes il faudrait ajouter le Courrier de l'Europe, dont nous avons parlé ci-dessus, qui ne figure pas sur

la liste à laquelle j'ai emprunté le renseignement qui précède, sans doute parce que la circulation en était interdite

au moment où cette liste fut dressée. (HATIN, 1870, p. 48-49) 43 Il est bon qu'on sache, en effet, que les gazettes en Hollande, comme partout ailleurs, existaient en vertu d'un

privilège, d'un octroi qui leur était concédé : « Avec privilège de Nosseigneursles Etats généraux de Westfrise et

de Hollande », lit-on dans le titre ou dans la souscription de chacun de leurs numéros. Cela montre déjà que la

53

Nesse ponto, o historiador trata da primeira publicação, com certa regularidade, de que

tomou conhecimento. Trata-se de uma publicação que se dava em Antuérpia, na Holanda, no

século XVII. No início, o estudioso presume que as publicações ocorriam em intervalos

indeterminados, mas, aparentemente, a partir de 1621, os números passaram a seguir com

mais frequência, de modo que, entre 1622 e 1623, as publicações ocorriam até três vezes por

semana. Dessa maneira, ele apresenta algumas características das publicações:

(...) O número consiste mais frequentemente em oito páginas in-8, a primeira das quais é ocupada por um grande título e uma vinheta geralmente

emprestada do evento principal em questão, e que, por consequência, varia

cada vez; a oitava página também é frequentemente preenchida por uma

vinheta. Ainda era somente um jornal básico, mesmo sendo todo ilustrado; mas, enfim, um jornal. (HATIN, 1870, p. 53, tradução nossa)

44

Hatin (1870) reconhece que não tem nenhuma informação de quando essas folhas de

fato começaram a circular; alguns indícios são dados, contudo, por meio daquelas gazetas

produzidas à mão, e que tratavam, geralmente, de eventos militares. O historiador também diz

não ter encontrado nenhum material preservado na Holanda que date da primeira metade do

século XVII. Porém, uma descoberta na biblioteca Mazarine, na França, revelou o que seriam

quatro gazetas holandesas publicadas entre os anos de 1637 e 1639. É assim que se refere à

primeira delas:

A primeira gazeta francesa de Holanda que eu conheci data de 1639. Ela tem

por título: Nouvelles des divers Quartiers. É a tradução literal de Tydingen

uyt verscheyden Qjmrtieren, publicada paralelamente pelo mesmo editor, Broer Jansz, em outra época atual a Sua Excelência. Ela foi interrompida,

como a original, no fim de 1643, ao menos na Biblioteca Mazarine, onde eu

a encontrei. (HATIN, 1870, p. 56-57, tradução nossa)45

No entanto, com as gazetas que tanto parecem ter preocupado Luís XIV, o pesquisador

reconhece não ter tido nenhum contato. Sendo assim, mesmo sem se saber o motivo exato que

levou ao surgimento dessas folhas, afirma que desde o início os holandeses viram nisso uma

oportunidade de negociar, visto que o público ansiava por publicações escritas em francês.

Como língua mais difundida e utilizada, mesmo entre pessoas que não sabiam ler, a língua

liberté de la presse n‘était pas aussi absolue dans la république des Provinces-Unies qu‘on est généralement porté

à le penser. (...) (HATIN, 1870, p. 87) 44 (...) Le numéro se compose le plus souvent de huit pages in-8, dont la première est occupée par un grand titre

et une vignette empruntée d'ordinaire du principal événement dont il est question, et qui par conséquent varie

chaque fois ; la huitième page aussi est assez souvent remplie par une vignette. Ce n'était là encore, tout illustré

qu'il était, qu'un journal bien élémentaire ; mais enfin c'était un journal. (HATIN, 1870, p. 53) 45 La première gazette française de Hollande que je connaisse date de 1639. Elle a pour titre : Nouvelles des

divers Quartiers. C'est la traduction littérale des Tydingen uyt verscheyden Qjmrtieren, publiée

parallèlement par le même éditeur, Broer Jansz, jadis courantier de Son Excellence. Elle s'arrête, comme

l'original, à la fin de 1643, du moins à la Bibliothèque Mazarine, où je l'ai rencontrée. (HATIN, 1870, p. 56-57)

54

francesa se popularizou, dentre outros motivos pelo conhecimento proferido em sermões e

escritos, além do ensino do francês em escolas, que abdicaram do latim. Por isso, afirma o

historiador:

Quando, portanto, os editores holandeses pensam em fazer comércio de

notícias, eles escolhem a língua francesa como aquela que lhes promete mais

leitores; além disso, encontram entre os refugiados franceses, penas sempre prontas, sempre habilidosas. Alguns fazem também uso do alemão e do

italiano; mas as gazetas francesas sempre foram as mais numerosas e

também as mais correntes. (HATIN, 1870, p. 56, tradução nossa)46

Como aponta Hatin (1870), o contato linguístico entre os refugiados franceses e os

holandeses surtiu efeitos na escrita dessas gazetas. Consequentemente, nem todos viram com

bons olhos o uso do francês nessas publicações; foi o caso, por exemplo, de Voltaire e Racine,

que acusaram os gazetiers de deturparem a língua. Para o autor, ainda é de se estranhar que os

responsáveis por essas folhas tenham sido alvo de tantas críticas, mesmo lançando luzes sobre

assuntos do interesse das grandes massas:

Além disso, não era um fato particular à Holanda esse desprezo pelos gazetistas: era universal; e é verdadeiramente uma coisa estranha que esta

aversão da opinião pública venha se somar às perseguições do poder contra

uma instituição tão eminentemente útil aos interesses das massas. Mas o fato é certo, os espíritos tiveram alguma dificuldade em se acostumar à ideia de

que se pudesse fazer comércio público de notícias. (HATIN, 1870, p. 59,

tradução nossa)47

Apesar das fortes críticas e perseguições que as ―gazettes de Hollande‖ sofreram,

principalmente em seu início, Eugène Hatin (1870) afirma que, com o passar do tempo, os

governos perceberam as vantagens que elas poderiam ofertar e, como já apontado aqui, em

alguns momentos fizeram uso delas em benefício próprio. Por esse motivo, parecia ser

comum aos gazetiers enfatizarem informações de partidos que os apoiavam. Com isso, as

gazetas clandestinas, antes escritas à mão, vendidas avulsas e que lidavam apenas com um

evento, ganharam uma maior periodicidade, recebendo, algumas delas, uma titulação. À vista

disso, como mostra Hatin (1870):

(...) A expansão do comércio, as relações múltiplas entre as diversas nações,

suas lutas mesmo, sobretudo as guerras, tornaram essas publicações mais

46 Quand donc les éditeurs hollandais songèrent à faire commerce de nouvelles, ils choisirent la langue française

comme celle qui leur promettait le plus de lecteurs ; ils trouvaient, d'ailleurs, parmi les réfugiés français, des

plumes toujours prêtes, sinon toujours habiles. Quelques-uns firent aussi usage de l'allemand et de l'italien ; mais

les gazettes françaises ont toujours été de beaucoup les plus nombreuses, et aussi les plus courues. (HATIN,

1870, p. 56) 47 Ce n'était point, d'ailleurs, un fait particulier à la Hollande, que ce dédain pour les gazetiers : il était universel ;

et c'est vraiment une chose étrange que cette répulsion de l'opinion publique venant s'ajouter aux persécutions du

pouvoir contre une institution si éminemment utile aux intérêts des masses. Mais le fait est certain, les esprits

eurent quelque peine à s'habituer à l'idée qu'on pût faire commerce public de nouvelles. (...) (HATIN, 1870, p.

59)

55

frequentes; fomos naturalmente levados a reunir vários eventos na mesma folha ou no mesmo caderno; enfim, viemos a dar um título uniforme a essas

folhas volantes, a estabelecer entre elas uma ordem de sucessão e a lhes

atribuir um retorno periódico; então, tínhamos o que chamamos, dependendo do país, tydinghen, zeytung, gazette, isso que designamos mais tarde sob o

nome perfeitamente apropriado de papier-nouvelles; enfim, isso que agora

chamamos, na França, jornal, nome reservado, originalmente, aos periódicos literários. (HATIN, 1870, p. 76, grifos do autor, tradução nossa)

48

Como se observa, as mudanças políticas e comerciais tiveram impacto nas publicações dessas

folhas. Isso refletiu ainda no conteúdo veiculado por elas, dado que incorporaram outras

informações, não só ligadas a eventos militares, como ocorria inicialmente.

Além da circulação das gazetas francesas produzidas na Holanda, Hatin (1870) destaca

outros dois tipos de publicação que ocorreram no início do século XVII. O primeiro é o

chamado mercúrio, denominação dada a um tipo de anuário que recebeu um menor número de

queixas por circular com menos frequência; já o segundo seria um pequeno jornal em que a

gíria e a sátira pareciam ser as marcas principais. Ele também se refere a essa última folha

como o periódico panfleto. Como sugere o historiador, parece ter ocorrido com certa

intensidade a circulação dessas publicações, principalmente dos libelos, que ganharam forma

de jornal e desapareceram da mesma forma como surgiram. Mas, como herança, elas

deixaram as gazetas em verso, também conhecidas como gazetas burlescas. Foi, então, o

Mercure galante que fez a mistura entre verso e prosa, combinando política e literatura.

De modo geral, foi dessa mesma maneira que surgiu na França a imprensa periódica.

Datam, portanto, da primeira metade do século XVII as primeiras nouvelles e gazetas, em

formato in-folio ou in-4º, com duas colunas, circulando até três vezes por semana. Hatin

(1870) esclarece que sua organização se dava de acordo com a ordem das datas, sendo que as

notícias do exterior eram fornecidas, principalmente, por meio de jornais estrangeiros. Essa

imprensa estrangeira, como vem a afirmar depois, foi um complemento à imprensa francesa

que acabara de nascer (HATIN, 1870, p. 86). É curioso notar que, em seu início, as

publicações eram marcadas por um tom mais monótono, como o historiador informa:

O tom geral dessas folhas, sobretudo na origem, é calmo, monótono. São

simples crônicas, endereçadas menos à paixão do público do que a sua curiosidade. Os fatos são simplesmente registrados, sem quase reflexões;

mas compreendemos que elas podem, na sua verdade mesmo, ser

48 (...) L'expansion du commerce, les relations plus multipliées entre les diverses nations, leurs luttes mêmes,

surtout les guerres, rendirent ces publications plus fréquentes ; on fut naturellement conduit à réunir plusieurs

événements sur la même feuille ou dans le même cahier ; enfin on en vint à donner un titre uniforme à ces

feuilles volantes, à établir entre elles un ordre de succession et à leur assigner un retour périodique : on eut alors

ce qu'on appela, suivant les pays, tydinghen, zeytung, gazette, ce qu'on désigna plus tard sous le nom,

parfaitement approprié, de papier-nouvelles, ce qu'aujourd'hui enfin nous nommons, en France, journal, nom

réservé, dans l'origine, aux écrits périodiques littéraires. (HATIN, 1870, p. 76, grifos do autor)

56

apresentadas de uma maneira que nem sempre agradava na França. Não pretendo dizer, aliás, que a verdade fosse sempre ali respeitada, nem torná-

los melhores do que eram. Seriam gazetas, com todos os vícios originais

desse tipo de publicações, vícios que o batismo da civilização está longe de ter apagado completamente. (HATIN, 1870, p. 79-80, tradução nossa)

49

Logo, eram publicações que adotavam um tom diferente daquele que viriam a adotar depois,

mas, nem por isso, veiculavam somente informações verdadeiras, o que para o autor parece

ser uma clara amostra de que os ditos ―vícios originais‖ sempre estiveram presentes no cerne

dessas ―gazette de Hollande‖.

Sendo a Gazette de France a única folha oficial com que se podia contar em território

francês, às gazetas clandestinas restava tão-somente a censura e a perseguição, reservando-se

ainda aos seus produtores o risco de sofrerem consequências legais e, até mesmo, físicas, em

decorrência de suas práticas. Mesmo diante de possíveis privilégios, como já apontado aqui,

Hatin (1870) enfatiza que não havia nenhuma liberdade expressa para a circulação dessas

gazetas. Elas eram terminantemente proibidas de discutir atos locais e somente com

circunspecção conseguiam tratar de assuntos internos; em especial, dedicavam-se aos assuntos

externos, a fim de atender necessidades internacionais.

Não raro, como o estudioso também relata, governos vizinhos realizavam queixas

contra essas publicações, mas pouco era feito; a não ser algum decreto contra o jornalista que

realizara o ataque, ou contra a imprensa em geral (HATIN, 1870, p. 88-89). Assim, são

apresentados alguns casos, como os dois que seguem abaixo:

1684. O magistrado de Amsterdam, tendo notado que imprimiam clandestinamente nesta cidade as gazetas ou notícias nas quais os fatos eram

expostos somente de acordo com a opinião do autor e do editor, sem

consideração da verdade, o que engana o leitor e ofende os potentados estrangeiros, proíbe sua impressão no futuro, sob pena de cem ducados de

prata, um ano de banimento da cidade, etc. (HATIN, 1870, p. 95, grifos do

autor, tradução nossa)

21 de fevereiro de 1686. Por proposta dos deputados de Amsterdam, decreto

que proíbe imprimir ou torna nulo imprimir qualquer jornal francês, sob os

nomes de Courantes, Gazettes, Gazettes raisonnées, Nouvelles choisies, Lardons, ou outros. (HATIN, 1870, p. 96, grifos do autor, tradução nossa)

50

49 Le ton général de ces feuilles, surtout dans l'origine, est calme, monotone. Ce sont de simples chroniques, qui

s'adressent moins à la passion du public qu'à sa curiosité. Les faits y sont simplement enregistrés, sans presque

jamais de réflexions ; mais on comprend qu'ils pouvaient, dans leur vérité même, y être présentés d'une façon qui

ne plût pas toujours en France. Je ne prétends pas dire, d'ailleurs, que la vérité y fût toujours respectée, ni les

faire meilleures qu'elles n'étaient. C'étaient des gazettes, avec tous les vices originels de ces sortes de

publications, vices que le baptême de la civilisation est loin d'avoir complètement effacés. (...) (HATIN, 1870, p.

79-80) 50 1684. Le magistrat d'Amsterdam, s'étant aperçu que l'on imprimait clandestinement dans cette ville des

gazettes ou nouvelles dans lesquelles les faits étaient exposés seulement selon les opinions de l'auteur et de

l'éditeur, sans considération de la vérité, ce qui fourvoie le lecteur et offense les potentats étrangers, fait défense

57

Esse decreto resultou em efeitos sentidos diretamente pelos gazetiers, o que os levou a

buscar por soluções. Uma delas consistia em seguir as regras impostas pelo Estado. Dada a

autorização, eles passaram a compor suas folhas com a condição de usarem apenas extratos ou

traduções de jornais holandeses. Contudo, como mostra Hatin (1870), ao longo de todo o

século XVIII há inúmeros relatos, principalmente de autoridades, que acusam as gazetas de

veicularem falsas informações.

Os gazetiers foram acusados de reproduzirem informações diferentes em publicações

destinadas a localidades diversas. Embora não fosse clara a finalidade disso, esta parece ser

uma estratégia adotada por eles para se desviarem das condições impostas pelo decreto. Essa

breve exposição de Hatin (1870) dá uma ideia de como eram feitas essas queixas que vinham

de todas as partes, como Madri, Londres e Bruxelas. Igualmente, o historiador mostra que o

principal argumento dessas reclamações era o de que as gazetas divulgavam notícias falsas. É

por isso que afirma:

De tudo isso, não quero tirar outra conclusão senão esta, a saber, que as

gazetas francesas da Holanda não eram, como se costuma acreditar,

panfletos periódicos abandonados a todos os ardores de paixões insalubres.

Elas seriam isso que foram sempre e, por toda parte, as gazetas, umas folhas de notícias, somente com um grão a mais de sal, mas que faz apenas realçar

o sabor; com uma maior soma de liberdade, mas da qual elas usavam, em

geral, com uma moderação que, a meu ver, destaca-se desse quadro mesmo que acabo de esboçar de suas querelas com a diplomacia, e que, hoje, parece

fraqueza e timidez, comparada à audácia insolente de certos jornais ingleses,

por exemplo, em torno dos governos estrangeiros. Não encontramos nelas, é verdade, nenhuma estreia-Amsterdam ou Haia, nem artigos de fundo, nem,

por conseguinte, esses discursos indigestos que certos jornais criam na

obrigação de servir cada manhã a seus assinantes, mas fatos abundantes e

numerosos, correspondências, que dão a alguns, à Gazette de Leyde notadamente, um interesse ao menos igual a este que oferecem alguns de

nossos grandes quadros de papel, tão vastos, mas tão vazios algumas vezes.

Acrescentaria que elas contêm, em quase todos os números, anúncios que interessam não somente à história política e moral dos Países-Baixos, mas

também, e em alto grau, a nossa própria história literária. A polêmica, ou,

por melhor dizer, o raciocínio político, era preferivelmente o feito dos

mercúrios, que viriam ao resgate das gazetas, no fim do século XVII. (HATIN, 1870, p. 101-102, tradução nossa)

51

d'en 'imprimer à l'avenir, sous peine de cent ducats d'argent, d'une année de bannissement de la ville, etc.

(HATIN, 1870, p. 95, grifos do autor). 1686, 21 février. Sur la proposition des députés d'Amsterdam, édit qui

défend d'imprimer ou défaire imprimer aucun journal français, sous les noms de Courantes, Gazettes, Gazettes

raisonnées, Nouvelles choisies, Lardons, ou autres. (HATIN, 1870, p. 96, grifos do autor) 51 De tout cela je ne veux tirer d'autre conclusion que celle-ci, à savoir que les gazettes françaises de Hollande

n'étaient point, comme on est assez porté à le croire, des pamphlets périodiques abandonnés à toutes les ardeurs

des passions malsaines. Elles étaient ce qu'ont été toujours et partout les gazettes, des feuilles de nouvelles, avec

seulement un grain de sel de plus, mais qui ne fait qu'en rehausser la saveur ; avec une plus grande somme de

liberté, mais dont elles usaient, en général, avec une modération qui, à mon sens, ressort de ce tableau même que

je viens d'esquisser de leurs démêlés avec la diplomatie, et qui, aujourd'hui, nous paraîtrait faiblesse et timidité,

58

Em suma, suas considerações dão mostras de que as gazetas foram folhas com um

grão a mais de sal e de que faziam uso da liberdade de forma moderada. Mesmo diante da

escassez de materiais para realizar seu estudo, as reclamações e queixas acabam servindo a

Hatin (1870) como demonstração do interesse que as publicações clandestinas despertavam

no público da época. Esses relatos acabam revelando não só fatos históricos e políticos, mas

até mesmo literários, o que vai ao encontro de suas considerações sobre o jornal ser uma

espécie de fonte histórica. É nesse sentido que o estudioso declara que os mercúrios

dependiam das folhas clandestinas, pois condensavam as informações prestadas por elas.

Mesmo sendo imprecisa uma afirmação sobre a circulação semanal dessas gazetas, ou

seja, se havia um dia fixo para serem publicadas, Hatin (1870) afirma que eram muitos os

copistas empenhados no ofício. Consequentemente, isso fez com que aqueles que eram

contrários às publicações buscassem meios para impedir a circulação dessas folhas, o que

levou os conselheiros de Luís XIV a sugerirem que a defesa fosse feita com as mesmas armas,

possivelmente, com a criação de uma gazeta, visando responder aos ataques (HATIN, 1870,

p. 114-115). Fato é que muitos autores tomaram a iniciativa de defender a monarquia, como

destaca Hatin (1870).

Como também mostra, mesmo diante das publicações já impressas, algumas gazetas

clandestinas continuavam a ser produzidas à mão, isso por dois motivos: o primeiro deles era

o custo das impressões e o segundo era a esperança dos produtores de conseguir enganar a

vigilância da polícia francesa (HATIN, 1870, p. 124). Antes de concluir seu estudo, Hatin

(1870) ainda destaca a fundação de uma folha literária na França, em 1665, precedendo, e

muito, a primeira folha de mesmo caráter a ser publicada na Holanda:

É em 1665 que um conselheiro do Parlamento de Paris, Denis de Sallo, homem tão judicioso quanto erudito, imaginou fazer pela república das

Letras o que outros tinham feito pela política, e criou o Journal des savants.

A ideia tinha parecido tão próspera e tão simples ao mesmo tempo, que foi imediatamente imitada na Inglaterra, na Itália, na Alemanha. A Holanda

permaneceu na retaguarda; ela não tinha ainda um jornal literário quando

comparée à la hardiesse insolente de certains journaux anglais, par exemple, envers les gouvernements étrangers.

On n'y trouve point, il est vrai, de premiers-Amsterdam ou La Haye, ni d'articles de fond, point par conséquent

de ces tartines indigestes que certains journaux se croient dans l'obligation de servir chaque matin à leurs

abonnés, mais des faits abondants et de nombreuses, correspondances, qui donnent à quelques-unes, à la Gazette

de Leyde notamment, un intérêt au moins égal à celui qu'offrent certains de nos grands carrés de papier, si

vastes, mais si vides quelquefois. J'ajouterai qu'elles contiennent, dans presque tous les numéros, des annonces

qui intéressent non-seulement l'histoire politique et morale des Pays-Bas, mais encore, et à un haut degré, notre

propre histoire littéraire. La polémique, ou, pour mieux dire, le raisonnement politique, était plutôt le fait des

mercures, qui étaient venus à la rescousse aux gazettes à la fin du XVIIe siècle. (HATIN, 1870, p. 101-102)

59

Bayle veio para lá fixar sua estadia, e nosso filósofo disso se surpreende. (HATIN, 1870, p. 125, tradução nossa)

52

Outro ponto que intriga o pesquisador é que, na Holanda, na época em que realizou seu

estudo, não se imprimia mais nenhum jornal ou periódico francês. No entanto, relata que os

jornais, revistas e obras francesas eram facilmente encontrados em clubes e vitrines de

livreiros do país que antes era seu exportador.

No epílogo de seu estudo, Hatin (1870) conclui dizendo que a Gazette de France,

durante muito tempo, foi a única folha oficial e que seu repertório histórico é o mais seguro,

mesmo diante das fraquezas expostas. O historiador entende que seu estudo se voltou tão-

somente para as gazetas francesas produzidas na Holanda, mas que ainda haveria

possibilidade de expansão do assunto. Como também expõe, nenhuma das publicações com

que trabalhou leva o nome de ―Gazette de Hollande‖. Assim, ao retomar as já referidas

Gazette d’Amsterdam, Gazette de Leyde, Gazette d’Utrecht, Gazette de La Haye e

Gazette de Rotterdam, o autor apresenta o período que cada uma delas circulou, bem como

algumas de suas principais características. Dessa forma, depois da apresentação das gazetas

clandestinas, Eugène Hatin (1870) conclui:

Eu digo as, e não a gazeta de Holanda. De fato, jamais houve um jornal

portando o título de Gazette de Hollande, e não há um a quem possa ser dado em preferência a outros. Cada uma das cidades principais das

Províncias Unidas tinha sua gazeta francesa, portando, geralmente, seu

nome, ao menos de modo fictício, quando não realmente. (HATIN, 1870, p.

228, grifos do autor, tradução nossa)53

La Grande-Duchesse de Gérolstein

Estreia

Ainda em território europeu, entre os meses de abril e novembro de 1867, ocorreu na

cidade de Paris a quarta Exposição Universal. O evento, criado em 1851, tinha por objetivo

não só vender produtos, mas também promover uma sociedade industrial sob a égide do

52 C'est en 1665 qu'un conseiller au Parlement de Paris, Denis de Sallo, homme aussi judicieux qu'érudit, avait

imaginé de faire pour la république des lettres ce que d'autres avaient fait pour la politique, et créé le Journal

des savants. L'idée avait paru si heureuse et si simple à la fois qu'elle avait été immédiatement imitée en

Angleterre, en Italie, en Allemagne. La Hollande était demeurée en arrière ; elle n'avait point encore de journal

littéraire quand Bayle vint y fixer son séjour, et notre philosophe s'en étonne (...). (HATIN, 1870, p. 125) 53 Je dis les, et non la gazette de Hollande. Il n'y eut jamais en effet de journal portant le titre de Gazette de

Hollande, et il n'en est point à qui on puisse le donner par préférence aux autres. Chacune des villes principales

des Provinces-Unies eut sa gazette française, portant généralement son nom, fictivement du moins quand ce

n'était pas réellement (...) (HATIN, 1870, p. 228, grifos do autor)

60

progresso. Os palácios, pavilhões, jardins e monumentos construídos para as exposições,

assim como os espetáculos de música e dança e as variedades gastronômicas, correspondiam

aos conceitos de produtos e eventos culturais, de acordo com a concepção da museóloga e

historiadora Heloísa Barbuy (1999).

Em sua obra A exposição universal de 1889 em Paris: visão e representação na

sociedade industrial (1999), Barbuy destaca que:

As exposições universais surgem (ainda não com essa denominação, mas já

com os propósitos universalistas que as marcariam) em Londres, no ano de 1851, com a Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations.

Concebidas, em princípio, como exposições industriais e comerciais e com

pretensões enciclopédicas de abrangência, guardam essas características por

toda a segunda metade do século XIX e até o início da Primeira Guerra Mundial (...). (BURBUY, 1999, p. 38)

Ainda segundo a historiadora, havia objetivos muito mais amplos do que os

comerciais, e que estavam implicados no complexo social, cultural e mental da época

(BARBUY, 1999, p. 41). Ao se referir mais especificamente à exposição ocorrida na capital

francesa em 1867, Barbuy (1999) mostra que foi nessa exposição que surgiu a categoria de

produtos agrícolas, o que estava relacionado com as particularidades do evento. Em outro

ponto, ao se referir ao público frequentador das exposições realizadas entre 1855 e 1878, a

estudiosa destaca que geralmente era formado por produtores e operários altamente

qualificados.

A exposição de 1867 também foi uma forma de firmar a grandeza do ―Segundo

Império Francês‖, regido pelo Imperador Charles-Luis Napoléon Bonaparte, condecorado

como Napoleão III. Como aponta o escritor, teórico de cinema e crítico cultural, o alemão

Siegfried Kracauer, nesse período a capital francesa recebeu mais de dez milhões de pessoas,

dentre elas monarcas e príncipes (KRAUCAUER, 2002, p. 318). Paris havia se tornado um

atrativo não só por causa da Exposição Universal, mas também por conta de outros grandes

acontecimentos que movimentavam a vida parisiense, como era o caso da opereta La

Grande-Duchesse de Gérolstein, de Henri Meilhac, Ludovic Halévy e música do compositor

Jacques Offenbach.

Henri Meilhac e Ludovic Halévy foram os responsáveis por criar o libreto que, mais

tarde, teria sua história representada nos mais importantes teatros da Europa e de outras

localidades do mundo, como o Brasil. No entanto, tudo isso só ocorreu graças ao trabalho do

compositor francês de origem alemã, Jacques Offenbach (1819-1880). Como informa Jean-

Claude Yon, no ensaio ―A ópera-bufa de Offenbach: algumas pistas para o estudo da

circulação mundial de um repertório no século XIX‖ (2014), o compositor, em 25 anos de

61

carreira, o que corresponde ao período de 1855 a 1880, fez surgir um novo gênero lírico.

Assim, se ―(...) o músico empregou o termo ‗ópera-bufa‘ para qualificar seus principais

trabalhos, é, entretanto, o termo ‗opereta‘ que se impôs para designar suas obras e aquelas dos

compositores que, em seguida, exploraram esta veia‖ (YON, 2014, p. 284). Mais à frente, o

estudioso destaca que esse novo gênero, ao mesmo tempo lírico e dramático, em que as falas

são numerosas e de suma importância, logo conheceu o sucesso nos cinco continentes.

Ainda segundo Yon (2014), Offenbach soube reconhecer nas Exposições Universais

uma forma de progredir em sua carreira. Foi assim que, pouco tempo depois da abertura da

Exposição, mais precisamente na noite de 12 de abril de 1867, no Théâtre des Variétés, na

capital francesa, estreou La Grande-Duchesse de Gérolstein, opereta em 3 atos e 1 quadro.

Como destaca Kracauer (2002):

No Variedades, a última opereta de Offenbach, A Grande Duquesa de

Gerólstein, estava sendo ensaiada sob alta pressão, com o objetivo de que

ficasse pronta para a abertura da exposição. O pouco que se sabia sobre ela despertou curiosidade generalizada. Dizia-se que foi apenas em consideração

ao censor que Meilhac e Halévy colocaram a ação no século XVIII, em um

daqueles fabulosos pequenos estados alemães que Eugène Sue inventara para seus Mistérios de Paris. A opereta foi considerada uma sátira ao

militarismo; também foi considerada uma sátira à corte russa e Catherine, a

Grande, estando repleta de alusões políticas. Dezoito músicos militares

realmente aparecem nela, e assim por diante. Le Figaro simplesmente o apreciou. (KRACAUER, 2002, p. 303, tradução nossa)

54

Nessa opereta, mais especificamente, o compositor mostra de forma satírica o que

seriam os bastidores da vida na corte. É nesse sentido que Yon (2014) destaca que Offenbach

não hesitou em tratar de temas sensíveis em suas produções, como, por exemplo, o poder e,

mais exatamente, a encenação do poder. Por isso, Kracauer (2002) considera que: ―(...)

Quanto mais se revelava a irrealidade da estrutura imperial, mais manifesta se tornava a

realidade offenbachiade, mas mais supérflua se tornava como um instrumento político. (...)‖

(KRACAUER, 2002, p. 324, tradução nossa)55

.

54 At the Variétes, Offenbach‘s latest operetta, The Grand Duchess of Gerolstein, was being rehearsed at high pressure, the aim being to have it ready for the opening of the exposition. The little that was known about it

stimulated widespread curiosity. It was said that it was only out of consideration for the censor that Meilhac and

Halévy had placed the action in the eighteenth century, in one of those fabulous little German states that Eugène

Sue had invented for his Mystères de Paris. The operetta was said to be a satire on militarism; it was also said to

be a satire on the Russian court and Catherine the Great and to be teeming with topical political allusions.

Eighteen military bandsmen actually appeared in it, and so on and so forth. Le Figaro simply reveled in it.

(KRACAUER, 2002, p. 303) 55 (...) The more the unreality of the imperial structure was revealed, the more manifest the reality of the

offenbachiade became, but the more superfluous it became as a political instrument. (...) (KRACAUER, 2002, p.

324)

62

Nesse mesmo sentido, Yon (2014) informa que as operetas costumavam passar pela

avaliação de censores, de modo que muitas composições tinham trechos censurados, como

forma de atenuar as passagens de efeitos subversivos. No que diz respeito à opereta La

Grande-Duchesse de Gérolstein, os censores franceses apresentaram um relatório uma

semana antes da estreia. Dentre as informações apresentadas, destacava-se a titulação, isso

porque poucas pessoas na Europa possuíam o título de duque ou duquesa, o que poderia gerar

aproximações desagradáveis com figuras particulares.

Entretanto, como informado por Yon (2014, p. 289), esse agravante foi atenuado

graças à denominação fantasiosa de ―Gérolstein‖, nome emprestado do célebre romance-

folhetim Les mystères de Paris, de Eugène Sue, publicado em 1842-1843. Outros fatores

também despertaram a atenção dos censores, como, por exemplo, o ridículo que a temática

poderia projetar sobre o poder soberano, assim como os riscos que poderiam causar as

situações a que a Grã-duquesa se atirava com prazer. No relatório apresentado pelo

pesquisador (YON, 2014, p. 289), os censores ainda destacam as excentricidades da opereta,

como os figurinos grotescos, a encenação e os aspectos cômicos musicais, visto que isso

poderia deixar o público fora de toda a realidade.

A fim de uma melhor compreensão da repercussão da opereta tanto em Paris, como

após sua chegada ao Brasil, cabe aqui uma breve apresentação do enredo, pondo em cena,

desde já suas doze personagens: a Grande Duquesa de Gérolstein; Wanda (camponesa e noiva

de Fritz); Fritz (soldado do regimento da grã-duquesa); Barão Punk (preceptor da grã-

duquesa); General Boum; Príncipe Paul (noivo da grã-duquesa); Barão Grog (diplomata

enviado pelo pai do príncipe); Nepomuc (ajudante do campo); Iza; Olga; Amelie; e Charlotte

(damas de honra da grã-duquesa).

Na sequência, como forma de situar a série ―Gazeta de Holanda‖, escrita por Machado

de Assis, buscamos compreender a repercussão de La Grande-Duchesse de Gérolstein, no

Rio de Janeiro. Isso ocorrerá não só através do levantamento de menções e anúncios feitos em

jornais cariocas entre as décadas de 1860 e 1880, mas, especialmente, por meio de estudos

voltados à recepção das composições de Jacques Offenbach em solo brasileiro. Com isso,

pretendemos explorar possibilidades de sentido para a utilização de um trecho da opereta

como epígrafe dos textos publicados na coluna machadiana.

Ademais, lembramos que Machado de Assis sempre se mostrou crítico em relação a

esse tipo de produção teatral. É o que mostra, por exemplo, o pesquisador João Roberto

Gomes de Faria, em ―O pensamento crítico‖ (2012). Dentre as informações abordadas por

63

Faria (2012), cabe destacarmos a menção ao texto crítico ―O Passado, o Presente e o Futuro

da Literatura‖, publicado no jornal A Marmota, em abril de 1858. Nele, Machado faz

considerações sobre a produção teatral brasileira, criticando, ainda, a falta de investimentos

nos artistas nacionais. Para o escritor oitocentista, a produção teatral deveria retratar os

costumes, almejando melhorá-los através de uma crítica moralizadora.

Além disso, Faria (2012) menciona a postura do autor em relação às limitações do

Conservatório Dramático, pois a este cabia somente a avaliação de questões morais, não

exercendo qualquer censura a peças mal escritas. A respeito da opereta, que, gradativamente,

caía no gosto do público, Faria (2012) afirma ter sido a estreia de Orphée aux enfers, em

fevereiro de 1865, um ―golpe de misericórdia‖ contra o dito teatro sério. A produção de

Hector Crémieux, Ludovic Halévy e música de Offenbach não só alcançou um sucesso

extraordinário, como sinalizou um caminho de lucro mais fácil para os empresários teatrais.

Como considera Décio de Almeida Prado, no capítulo ―Os três gêneros do teatro musicado‖,

de História Concisa do Teatro Brasileiro (2008): ―O teatro musicado, em suas várias

encarnações, significa um aumento ponderável de público, com benefícios econômicos para

intérpretes e autores, e o decréscimo de aspirações literárias‖ (PRADO, 2008, p. 113). Esse

tipo de produção não agradava o gosto do jovem crítico Machado de Assis:

(...) Estava apenas no começo o processo de substituição do teatro de cunho literário pelas formas mais populares da opereta, da mágica e da revista de

ano em nossos palcos. E o crítico sensível, desgostoso em ver que o teatro

estava perdendo as suas funções de educar o público e aprimorar seu gosto

artístico, não escondeu o pessimismo diante da situação, prevendo um futuro de ―completa dissolução da arte‖, se não fossem tomadas as medidas

corretas para evitar o desastre iminente. Os sinais já estavam dados: depois

das tragédias clássicas, dos dramas românticos e das comédias realistas, o teatro que se anunciava servia apenas ―para desenfastiar o espírito, nos dias

de maior aborrecimento‖. (FARIA, 2012, p. 218)

No entanto, foi desse mesmo tipo de produção teatral – alvo de críticas em sua

juventude –, que, anos depois, o autor retomaria um trecho como epígrafe para abertura de sua

única série cronística escrita em verso, sua ―Gazeta de Holanda‖.

Enredo

1º ato

64

O elenco composto por doze personagens tem como protagonista a jovem grã-duquesa

do ducado fictício de Gérolstein. A história se inicia com o encontro entre o soldado Fritz e

sua noiva Wanda, no acampamento onde estão reunidos os soldados da grã-duquesa,

momentos antes de partirem para a guerra. No mesmo instante, o general Boum aparece em

cena. Pouco depois, Nepomuc, ajudante do acampamento, comunica ao general sobre a visita

que a grã-duquesa pretende realizar a eles. Para isso, ela solicita que façam uma tenda, onde

possa se abrigar. O general Boum, então, encarrega o jovem soldado de ficar de guarda no

local.

Depois de muitas peripécias, o barão Puck, preceptor da grã-duquesa, aparece em cena

assustado com o barulho dos tiros que estão sendo disparados. Ele e o general conversam

sobre a presença da grã-duquesa no acampamento, o que é uma forma de animar os soldados

antes da batalha, dado que a visita serve como estímulo. Nessa mesma cena, o barão explica

ao general os motivos que o levaram a declarar guerra contra o inimigo. Ele confessa que tudo

ocorreu como forma de trazer distrações à entediante vida da jovem. Não bastasse a batalha

como forma de distração, o preceptor diz ainda ter arrumado um noivo para a moça, mas que

ela recusa responder à proposta de casamento. O ajudante do acampamento aparece e

comunica a chegada da grã-duquesa de Gérolstein.

Ela entra acompanhada pelo coro formado por suas damas de honra e canta. Depois de

tomar seu acento na tenda preparada, ela avista o soldado Fritz. Só então a moça demonstra

interesse pelo rapaz, pedindo ao general Boum que o chame. Após uma primeira conversa

sobre a vida no acampamento, a grã-duquesa decide promover o jovem soldado a sargento.

Com isso, o general e Puck percebem seu interesse por Fritz. Continuando a conversa, o rapaz

fala de Wanda para a grã-duquesa, o que desperta seu interesse em conhecer a moça.

Em seguida, a grã-duquesa mais uma vez promove o rapaz, mas agora, a tenente. A

postura com relação ao ex-soldado começa a surpreender a todos. É feita uma proposta para

que a moça cante, ela convida Fritz para acompanhá-la, mas o general Boum diz que o cargo

que o rapaz ocupa não permite esse tipo de postura e de proximidade; por esse motivo, a grã-

duquesa promove Fritz, tornando-o capitão. Depois de cantarem, Nepomuc comunica a

chegada do príncipe Paul, pretendente da duquesa e de seu acompanhante, o barão Grog. A

moça decide receber apenas o príncipe.

Antes do encontro entre os dois, a grã-duquesa e o general Boum conversam sobre o

plano de guerra, verificando mesmo as estratégias que serão adotadas para a invasão. Pouco

tempo depois, o príncipe aparece. Ficando a sós com ela, comunica que está preparado para se

65

casar. No entanto, ela diz que, por estar ocupada com a guerra, não pode se casar naquele

momento. Ele insiste no pedido, alegando que seu pai cobra pela união que já devia ter

ocorrido há seis meses. Além disso, o príncipe diz ter outra queixa, no caso, a divulgação de

seu nome em uma ―gazette imprimée en Hollande... On parle de moi là-dedans‖, escrita pelos

ditos gazentiers56

. Paul afirma que as publicações entram na vida particular das pessoas, a fim

de divertir o público. O príncipe, então, decide ler para a grã-duquesa o que é dito sobre ele:

Para desposar uma princesa

O Príncipe Paul foi ao Passeio Público parece que nada apressado,

O casamento está atrasado.

Todos os dias quando aparece a aurora,

O Príncipe Paul coloca luvas brancas, É hoje? – Não, não ainda.

Então o Príncipe tira suas luvas...

O Príncipe Paul tem a alma grande, Ele sofre, mas se mantém emudecido...

(em voz alta) Eis o que se diz de mim

Na gazette de Hollande.

(MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 12, tradução nossa)57

A essas informações, a grã-duquesa responde: ―É preciso acrescentar fé / À gazette de

Hollande‖ (MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 12, tradução nossa)58

. Então, o príncipe dá

sequência à leitura, apresentando outros despautérios ditos a seu respeito:

O Príncipe estava todo entusiasmado

Chegando a essa corte.

Chegando próximo de sua dama O Príncipe ardia de amor.

Tão ardente que se supõe

Depois de seis meses daquele jogo

Que não deve ficar grande coisa De todo esse fogo, no qual queima!

No teu bolso coloca teu pedido,

Príncipe Paul, e volta para casa... Eis o que se diz de mim

Na gazette de Hollande!

(MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 12, tradução nossa)

59

56 Tais quais aqueles mencionados por Eugène Hatin (1870). 57 Pour épouser une princesse / Le Prince Pauls‘ en est‘ allé / Mail il paraît que rien ne presse, / Le mariage est

reculé. / Tous les jours quand paraît l‘aurore, / Le Prince Paul met des gants blancs, / Est-ce aujourd‘hui ? – Non,

pas encore. / Alors le Prince ôte ses gants... / Le Prince Paul a l‘âme grande, / Il souffre, mais il se tient coi... /

(avec éclat) Voici ce que l‘on dit de moi / Dans la gazette de Hollande. (MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 12) 58 Il faut toujours ajouter foi / A la gazette de Hollande. (MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 12) 59

Le Prince était fout feu tout flamme / En arrivant à cette cour. / En arrivant près de sa dame / Le

Prince était brûlant d‘amour. / Il a tant brûlé qu‘on suppose / Après six mois de ce jeu-là / Qu‘il ne doit

pas rester grand‘ chose / De tout ce feu dont il brûla ! / Dans ta poche mets ta demande, / Prince Paul,

66

Ao final, mais uma vez, a grã-duquesa dá credibilidade à ―gazette de Hollande‖,

dizendo: ―Il faut toujours... etc‖ (MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 12). Dentre as

informações, consta que há muito tempo ele tem tentado se casar com a grã-duquesa, de modo

a se referir à publicação por duas vezes: ―Voici ce que l’on dit de moi / Dans la gazette de

Hollande!‖ e ―Voilà ce que l’on dit de moi / Dans la gazette de Hollande!‖.

Enquanto os dois ainda estão juntos, Fritz retorna vestido de capitão, atendendo ao

pedido da grã-duquesa. Ele apresenta algumas objeções, propondo outro plano de ataque para

invadir o território dos inimigos. O plano é bem aceito pela grã-duquesa, mas não pelo general

Boum. Assim, ao se recusar a seguir o plano do rival, abre espaço para a moça mais uma vez

promover Fritz. É desse modo que ela o torna general-chefe de seus exércitos. Já prontos para

partirem, a grã-duquesa faz mais um grande ato, pois entrega ao general-chefe a espada que

pertencia a seu falecido pai. É assim que o agora ex-general Boum, o barão Puck e o príncipe

Paul decidem unir forças contra Fritz. O ato é finalizado com a saída dos soldados para a

batalha.

2ª ato

O segundo ato tem início com as mulheres recebendo cartas de seus amados. Nas

cartas, eles fazem juras de amor e contam detalhes sobre a vitória que obtiveram na guerra.

Quando todos estão reunidos para confraternizar, o príncipe chega acompanhado do barão

Grog. Eles não são recebidos, pois o dia está reservado para o retorno de Fritz, responsável

pela vitória do exército do ducado. Fritz entra junto à duquesa e, na presença de todos, conta

detalhes sobre a batalha. Depois disso, ela manda todos saírem, ficando sozinha com o rapaz.

Já a sós, a grã-duquesa demonstra interesse por Fritz. O ex-soldado, contudo, confessa seus

sentimentos por Wanda, recusando qualquer outra união que não seja com sua amada.

Pouco tempo depois, o ex-general Boum, o barão Puck e o príncipe Paul se reúnem

para conspirar contra Fritz. Eles planejam se vingar do rapaz e buscam meios para realizar

isso. Nesse instante, a grã-duquesa comunica-os da autorização dada ao novo general para se

casar com a noiva, informando que eles se encontram na capela próxima.

et rentre chez toi... / Voilà ce que l‘on dit de moi / Dans la gazette de Hollande ! (MEILHAC &

HALÉVY, 2003, p. 12)

67

3ª ato – 1 ª quadro

Os homens contam detalhes sobre o plano que têm contra Fritz. Para realizá-lo,

pretendem fazer uso de passagens secretas existentes nos corredores do palácio. Novamente

com os conspiradores, a grã-duquesa avista o barão Grog com quem fica a sós pouco depois.

Com o retorno dos homens, a moça afirma ter desistido de se vingar de Fritz, o que não seria

bom no dia de sua união com o príncipe. A grã-duquesa diz, então, ter aceitado a proposta

graças à eloquência de Grog. Contudo, o ex-general Boum ainda mantém seus antigos planos

contra o antigo rival.

Pouco depois, Fritz e Wanda, já casados, entram em cena. Os dois são

cumprimentados por todos. Já a sós, o casal é surpreendido com gritos de ―Viva ao General!‖,

dados abaixo da janela do leito nupcial. Ao ver que são de pessoas que o homenageiam, o

noivo lhes comunica o desejo de ficar a sós com a esposa. Após isso, os dois são novamente

surpreendidos com fortes batidas na porta do quarto. Os três homens aparecem em cena, a fim

de colocar o plano de vingança em ação. Após Wanda se despedir do marido, a cortina cai,

finalizando o ato.

2ª quadro

Todos estão reunidos no acampamento de soldados. Nele, comemoram o casamento da

grã-duquesa. Ao ver o príncipe, a moça diz que pretende recompensar o barão Grog pelos

favores prestados aos dois. Andando pelo acampamento, ela questiona seu preceptor sobre

Fritz, ao que ele responde que Boum fez uma brincadeira com o atual general-chefe. É nesse

momento que o ex-general revela detalhes do plano executado. Depois disso, são

comunicados da chegada do rapaz.

Wanda aparece correndo em direção ao marido. Fritz chega diante de todos em estado

deplorável. Mesmo sabendo do plano de Boum, a grã-duquesa responsabiliza Fritz pelo

estado em que se encontra. Após acusá-lo de traição, a grã-duquesa propõe um julgamento,

que não ocorre. Assim como ela o promoveu seguidamente a altos cargos, acaba destituindo-o

de cada um deles, até torná-lo um simples soldado. Fritz, então, pede sua demissão, a qual é

concedida sem nenhuma objeção. Com isso, tudo volta a ser como outrora. Porém, antes de

partir definitivamente, Fritz decide pedir à grã-duquesa autorização para ser professor em sua

aldeia, pedido aceito pela moça. Em sua última fala, a grã-duquesa declara: ―O que quereis

68

vós fazer... (olhando para Fritz e Grog – à parte) Quando não se tem aquilo que se ama, é

preciso amar aquilo que se tem‖ (MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 48, tradução nossa)60

.

Repercussão na Europa

De acordo com Siegfried Kracauer, as operetas de Jacques Offenbach estavam

relacionadas ao Segundo Império, sobretudo La Grande-Duchesse de Gérolstein, por ter se

dado juntamente aos últimos momentos de glória de Napoleão III. Nesse sentido, o estudioso

afirma que: ―O apogeu da opereta foi inseparável da ditadura de Luís Napoleão e, quando a

ditadura entrou em colapso, o dia da opereta acabou‖ (KRACAUER, 2002, p. 321, tradução

nossa)61

. Contudo, como ainda informa, o nome de Offenbach não foi abalado62

, de modo que

suas composições continuaram sendo sucesso não só em Paris, como em outros lugares do

mundo.

As suas operetas foram brechas encontradas para lidar com a realidade social, em

especial depois das ordens imperiais que baniram a temática em representações teatrais. Em

vista disso, afirma o crítico alemão:

Por mais ambíguo que fosse, ele havia cumprido uma função revolucionária

durante a ditadura: a de flagelar a corrupção e o autoritarismo e defender o

princípio de liberdade. Com certeza, sua sátira fora recoberta por uma vestimenta de frivolidade, conciliada com uma atmosfera de embriaguez, e

acordo com as exigências do Segundo Império. Mas a frivolidade foi mais

profunda do que o mundo da Boêmia da moda poderia ver. (KRACAUER, p. 324, 2002, tradução nossa)

63

Semelhantemente, Jean-Claude Yon (2014) destaca que, para a posteridade, a figura

do compositor ficou associada à de Napoleão III, enquanto as músicas se tornaram uma

espécie de ―trilha sonora‖ do Império e uma ilustração da ―festa imperial‖. No entanto,

pondera que essa é uma visão ambígua, acrescentando que há um equilíbrio no estilo adotado

por Offenbach. Para Yon (2014), esse modo ambíguo com que os críticos avaliaram durante

60 Qu‘est-ce que vous voulez y faire... (regardant Fritz et Grog – à part) Quand on n‘a pas ce que l‘on aime, il

faut aimer ce que l‘on a. (MEILHAC & HALÉVY, 2003, p. 48) 61 (...) The operetta‘s zenith was inseparable from Louis Napoleon‘s dictatorship, and when the dictatorship

collapsed, operetta‘s day was over. (KRACAUER, 2002, p. 321) 62 Como informa o autor, as composições de Offenbach passaram a ser criticadas, principalmente pelos

apoiadores do regime republicano. Eles consideravam as composições como produtos do mau império, de modo

que as frivolidades de suas operetas eram consideradas imoralidades. (KRACAUER, 2002, p. 326) 63 (...) Thoroughly ambiguous as it was, it had fulfilled a revolutionary function under the dictatorship: that of

scourging corruption and authoritarianism, and holding up the principle of freedom. To be sure, its satire had

been clothed in a garment of frivolity and concealed in an atmosphere of intoxication, in accordance with the

requirements of the Second Empire. But the frivolity went deeper than the world of fashionable Bohemia could

see. (…) (KRACAUER, p. 324, 2002)

69

muito tempo a produção de Offenbach se deve, justamente, ao seu estilo. Isto é, o modo

paradoxal ―(...) lhe confere uma grande plasticidade, permitindo aos tradutores e adaptadores

destacar em cada obra o sentido que lhes convier e que lhes parecer o mais adequado para

garantir o sucesso em seus países (...)‖ (YON, 2014, p. 285). Dessa maneira, há um saber-

fazer do mundo teatral parisiense junto à audácia na escolha e no tratamento dos temas, como

afirma.

Esse estilo tão marcante parece ter sido notado já no primeiro dia de representação de

La Grande-Duchesse de Gérolstein. A primeira amostra serviu como forma de avaliar se a

opereta seria ou não um sucesso de público. De acordo com Kracauer (2002, p. 307), depois

do primeiro ato apresentado, já se tinha certeza do êxito que seria a nova produção de

Offenbach. A produção ainda ganhou modificações no segundo e no terceiro atos para a noite

seguinte, de modo que atingiu seu sucesso triunfal na terceira noite. Isso levou seus criadores

a acreditarem em um recorde de apresentações, tendo em vista produções anteriores. No papel

principal, a cantora Hortense Schneider, muito conhecida na época, deu vida à Grã-duquesa.

Sua atuação foi motivo de elogios, despertando o interesse não só dos parisienses, como ainda

de grandes políticos e imperadores que frequentavam a Exposição Universal. Assim, como

destaca Kracauer:

(...) O público não sabia o que admirar mais, seu canto ou a linguagem maliciosa de seus olhos, seu imprudente atrevimento ou sua delicadeza. Ela

tinha se tornado uma estrela brilhante no firmamento da opereta. Mas,

quanto à peça em si, ela decaiu perceptivelmente após o meio do segundo

ato. (KRACAUER, p. 307, 2002, tradução nossa)64

Ademais, o êxito das representações de La Grande-Duchesse de Gérolstein não

ficou restrito apenas à capital francesa, dado que se espalhou por outras localidades do

mundo. O sucesso triunfal chegou aos palcos da Itália, de Portugal e, como se não bastasse,

ultrapassou os limites transatlânticos, chegando aos palcos de outros continentes. Logo, as

exibições da opereta foram além da Exposição Universal, realizada na capital francesa, no ano

de 1867.

Na próxima seção, mais precisamente, pretendemos mostrar a repercussão da opereta

na cidade do Rio de Janeiro, a partir da abordagem dada pela imprensa da época. Os dados

correspondem ao período de 186765

a 188666

. Com isso, buscamos contribuir com hipóteses

64 (...) The public did not know which to admire most, her singing or the malicious language of her eyes, her

reckless daring or her finesse. She had become a brilliant star in the firmament of operetta. But as for the piece

itself, it fell off perceptibly after the middle of the second act. (KRACAUER, p. 307, 2002) 65 Primeira menção à opereta no Jornal do Commercio. 66 Ano em que Machado de Assis inicia a série ―Gazeta de Holanda‖, em Gazeta de Notícias.

70

de leitura que a utilização do trecho ―Voilà ce que l’on dit de moi / Dans la gazette de

Hollande!‖, como epígrafe da coluna ―Gazeta de Holanda‖, pode ter implicado na

composição dos textos da série.

La Grande-Duchesse de Gérolstein no Brasil

Assim como em Paris e em outras localidades do continente europeu, a opereta de

Jacques Offenbach também foi representada no Brasil. Durante décadas67

, a atração

originalmente francesa foi representada em diferentes teatros do Rio de Janeiro. Depois da

estreia em Paris, a 12 de abril de 1867, passaram a figurar nos jornais cariocas anúncios

divulgando representações da ópera-bufa nos mais conhecidos teatros da época. Foram muitos

os anúncios entre os anos de 1867 e meados da década de 1880. Ainda no final da década de

1860, o Jornal do Commercio, um dos mais importantes jornais a circular na Corte,

menciona em um curto comentário os primeiros ensaios ocorridos para representação da

opereta, no Brasil. A menção, realizada a 27 de dezembro de 1867, ocorre no mesmo ano de

sua estreia em Paris. É o que se vê no trecho apresentado abaixo:

Figura 2 – Jornal do Commercio, 27 dez. 1867, p. 5

Seu lançamento, porém, só se deu no ano seguinte, mais precisamente a 15 de janeiro

de 1868. Em um anúncio publicado em francês no mesmo jornal, além da informação sobre a

trupe parisiense a se apresentar no Teatro Lírico Francês, também constam os nomes dos

compositores e da cantora Mlle. Aimée, que vive a grã-duquesa nos palcos brasileiros.

67 Antes mesmo de sua estréia no Alcazar Lyrique em janeiro de 1868, até os anos iniciais do século XX, as

representações de La Grande-Duchesse de Gérolstein estão presentes em anúncios de jornais cariocas.

71

Figura 3 – Jornal do Commercio, 11 fev. 1868, p. 06

Nos dias seguintes, outros anúncios também foram divulgados, mais precisamente na

quarta página do jornal, ao lado de anúncios de peças teatrais, locação de imóveis, venda de

xaropes, etc. A 14 de fevereiro de 1868, na primeira página do jornal, foi publicada uma nota

crítica sem assinatura, intitulada ―Alcazar Lyrico‖. Nela, são dadas algumas impressões sobre

a composição de Offenbach, destacando-se alguns pontos positivos, como, por exemplo, a

melodia rapidamente captada pelo público; mas, de igual modo, são tecidas críticas, em que

são salientados pontos negativos, tal como o fato de ser a opereta considerada um gênero

secundário, incapaz de elevação e de sincera poesia. Além disso, são realizados ataques ao

compositor, alegando-se que sua criação revela sua dificuldade de se afastar de um gênero

inferior. No final do mesmo texto, reconhece-se que, apesar dos pontos negativos,

―encontram-se umas duas páginas de boa música‖. A 23 de março de 1868 em um curto

comentário, é destacado que La Grande-Duchesse de Gérolstein parece não alcançar o

mesmo êxito obtido em Paris.

Como mostra Orna Messer Levin em seu ensaio ―Offenbach e a disputa pelo público

brasileiro (1840-1870)‖ (2014), as outras operetas de Offenbach já haviam atingido sucesso

no país, em especial na cidade do Rio de Janeiro. Muitas delas haviam sido representadas

primeiramente no Alcazar68

, atingindo sucesso de público e de crítica. Foi o caso, por

68 O Alcazar Lyrique Fluminense foi inaugurado a 17 de fevereiro de 1859 e era uma espécie de café, dedicado a

atrações mistas, com número de música, em especial, árias, sainetes e duetos bufas; além disso, contava também

com dança coreografada. As apresentações eram destinadas exclusivamente ao público masculino. Alguns

72

exemplo, da já referida Orphée aux enfers (1865), Barbe-Bleue (1867), La Belle Hélène

(1867) e La Vie parisienne (1867). Porém, tendo em vista as polêmicas em torno das

representações realizadas nesse teatro, sobretudo por ter se tornado para muitos intelectuais da

época uma espécie de casa de prostituição onde os empresários lucravam por meio da

comicidade, sem compromisso com a formação das plateias, cabe destacar que foi no Alcazar

que se deram as primeiras representações do gênero no Rio. Assim, ao se referir à gestão do

empresário francês Joseph Arnaud69

no comando do teatro, a autora informa:

(...) Como empresário, soube captar o gosto já sedimentado nas plateias

fluminenses pelos espetáculos musicais. Por outro lado, se Arnaud não foi o

introdutor dos gêneros ligeiros no Brasil, teve o mérito da exibição, em primeira mão, de composições do célebre Jacques Offenbach, cujas operetas

alcançaram sucesso estrondoso no Rio de Janeiro, trazendo repetidas

enchentes aos teatros, termo que equivalia à lotação máxima de público. (LEVIN, 2014, p. 300)

Como pondera Anaïs Fléchet, em estudo intitulado ―Offenbach no Rio: A febre da

opereta no Brasil do Segundo Reinado‖ (2014), não se pode atribuir um sucesso imediato às

produções de Offenbach, primeiro porque, antes mesmo do Alcazar Lyrique, suas

composições já eram apresentadas em outros teatros cariocas; segundo porque somente a

partir de 1865, com Orphée aux enphers, o ritmo de criação se tornou mais exponencial,

sobretudo a partir de 1867.

Depois da estreia de La Grande-Duchesse de Gérolstein, proliferam na imprensa

carioca as menções feitas à opereta do compositor. Uma delas, publicada no jornal de 2 de

junho do mesmo ano, criticava seus cantores, deixando implícito que seria grande a procura

do público pelas apresentações da trupe francesa:

intelectuais da segunda metade do século XIX viam o Alcazar como motivo do declínio da dramaturgia

brasileira. Para eles, a criação desse teatro era um golpe dos estrangeiros contra os artistas brasileiros que

tentavam criar uma dramaturgia nacional, tendo em vista que o público já estava habituado aos espetáculos

líricos e às diversões populares, como os circos. Essa acusação levava até mesmo a desqualificarem as encenações lá ocorridas. 69 O Alcazar funcionava na antiga Rua da Vala, designada atualmente como Rua Uruguaiana. Inicialmente, a

direção estava sob o comando do francês Hubert, mas com a falência de sua empresa, toda a mobília do recém

inaugurado teatro foi vendida em leilão. Ainda que não haja clareza quanto ao aparecimento de Joseph Arnaud

no negócio, Levin (2014) informa que o nome do empresário passou a figurar ao lado do de C. Garnier, então

novo dono do estabelecimento e possivelmente membro da família de livreiros, em 1863. A empresa Arnaud &

Garnier passou a pagar pelas publicidades nos jornais, anunciando a representação de espetáculos em francês a

ocorrerem no Alcazar. A estudiosa pondera que o nome de Garnier deixou de figurar nos anúncios em 1866,

ficando tão-somente o de Arnaud. Isso se manteve até 1878, ano de seu falecimento. No ano seguinte, o teatro

teve seu nome modificado para D. Izabel, após ser vendido.

73

Figura 4 – Jornal do Commercio, 02 jun. 1868, p. 5

Apesar da crítica, isso mostra que o público brasileiro aprovava a composição

offenbachiana, consistindo em uma verdadeira ―enchente‖ nos teatros, como se verá a seguir.

A 17 de agosto de 1868, uma nota dá ideia do número de representações realizadas na cidade

do Rio de Janeiro, destacando o local em que se deu uma das representações e o número de

espectadores lá presentes. Foram cinco mil pessoas acomodadas em um circo:

Figura 5 – Jornal do Commercio, 17 ago. 1868, p. 5

No trecho é destacado que apesar de a trupe já ter feito 66 representações com a

opereta, era grande a procura por parte do público. Não obstante as apresentações da opereta

francesa, a 19 de dezembro de 1868, o jornal carioca anuncia a 1ª representação da paródia A

baronesa de Cayapó, dizendo ser uma imitação da composição de Offenbach. Como nos

anúncios de La Grande-Duchesse de Gérolstein, são dados detalhes sobre o local de

exibição, o Theatro Gymnasio Dramatico. Igualmente, é anunciado o nome de Furtado

Coelho, como diretor; o do Sr. Dr. Caetano Figueiras70

, Manuel Joaquim Ferreira Guimarães

e Antônio Maria Barroso como criadores; o de Julio Nunes como maestro; sendo a cenografia

de responsabilidade dos Srs. Tessani e Tenerelli. Também constam os nomes dos atores que

compõem o elenco, seguidos de suas respectivas personagens:

70 Caetano Alves de Sousa Figueiras, autor da paródia e do prefácio do livro de poesias Crisálidas, de Machado

de Assis.

74

Figura 6 – Jornal do Commercio, 19 dez. 1868, p. 4

O sucesso obtido por A Baronesa de Cayapó parece ser tamanho que, a 27 de

dezembro do mesmo ano, a revista Semana Illustrada destaca na capa o cumprimento do Dr.

Semana à Baronesa de Cayapó71

. Na mesma publicação, mais especificamente na sétima

página, é apresentado um texto sem assinatura, intitulado ―Gymnasio dramatico‖. Nele, é

tecida uma elogiosa crítica à paródia brasileira, destacando, em especial, a excelência dos

atos, a beleza do cenário, o zelo e o cuidado de seu criador, o Sr. Furtado Coelho:

Figura 7 – Semana Illustrada, 27 dez. 1868, p. 3359

71 É interessante destacar que, nessa época, Machado de Assis já atuava na Semana Illustrada como um dos

cronistas a fazer uso do pseudônimo coletivo Dr. Semana, então subscrito em trabalhos da revista. Conforme

afirma Galante de Sousa (1955), só a 20 de junho de 1869 a série ―Badaladas‖, assinada pelo mesmo

pseudônimo, passou a circular. Contudo, na seleção de textos atribuídos ao autor e reunidos nas Edições W. M.

Jackson de 1938, a crônica publicada a 27 de dezembro de 1868 não é atribuída ao nosso cronista.

75

Nos fins da década de 1860, outras menções à opereta de Offenbach ganham espaço

nos jornais cariocas. É destacada, com frequência, a qualidade da produção do compositor e

da atuação de Mlle. Aimée, atriz que vive a Grã-duquesa nos palcos, nas primeiras

representações. Muito antes de sua atuação em La Grande-Duchesse de Gérolstein, a atriz já

havia despertado o interesse do jovem Machado de Assis72

.

Tanto a produção de Offenbach, como a paródia de Furtado Coelho parecem ser bem

sucedidas nos teatros cariocas. No estudo de Anaïs Fléchet (2014), a autora aponta que as

paródias feitas a partir de produções francesas consistiam em uma busca de legitimação

através do repertório francês, tão bem sucedido entre a elite brasileira. É nesse sentido que

Fléchet (2014) destaca algumas características comuns a essas paródias. Ela considera que

―(...) a ação é transportada para o cenário brasileiro (paisagem, personagens) e incrementada

com diversos efeitos cômicos; a música, quanto a ela, permanece idêntica e estabelece o elo

com a obra original, podendo, ao mesmo tempo, incluir certas variações (...)‖ (FLÉCHET,

2014, p. 318). Isso parece ocorrer com A Baronesa de Cayapó, pois, como será observado

mais à frente, é dito ser uma produção, ou ―imitação‖, como mencionado nos jornais. É nesse

sentido que Fléchet (2014) entende o nome de Offenbach como um gesto de apelo.

Na década de 1870, além de crítica em língua francesa, como a publicada no Jornal

do Commercio, a 14 de fevereiro de 187073

, chamam a atenção os comentários elogiosos aos

atores que vivem as personagens, como o divulgado na Semana Illustrada a 10 de março de

187274

. Nessa década, bem como na anterior, a opereta do compositor e a paródia brasileira

são apresentadas concomitantemente em teatros da cidade do Rio de Janeiro, como se

demonstra em anúncio publicado a 21 de dezembro de 1872, no Jornal do Commercio:

72 Em crônica datada de 03 de julho de 1864, publicada na série ―Ao acaso‖ (1864-1865), do Diário do Rio de

Janeiro, Machado de Assis, sob o pseudônimo M. A., tece as seguintes considerações sobre o trabalho de Mlle.

Aimée: ―Já tinha lançado no papel as minhas iniciais, mas sou obrigado a incluir ainda algumas linhas no folhetim.

‗Dize aos teus leitores, escreve-me agora um amigo, que, se querem ver um demoninho louro – uma figura leve,

esbelta, graciosa – uma cabeça meio feminina, meio angélica – uns olhos vivos – um nariz como o de Safo –

uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio – enfim a graça

parisiense, toute pure, vão...‘

Adivinhem os meus leitores aonde quer o meu amigo que eu os mande ver idílio? ―... ao Alcazar: é mlle.

Aimée‘‖. (MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 128-129). Essa menção levou a biógrafa Lúcia Miguel-Pereira a

considerar um possível interesse amoroso por parte de Machado de Assis. 73 Ver anexo1. 74 Ver anexo 2.

76

Figura 8 – Jornal do Commercio, 21 dez. 1872, p. 8

No primeiro quadro, tem-se o anúncio de A Baronesa de Cayapó, informando, desde

o início, sua representação no Cassino; outra informação que merece destaque se encontra

após o título, em que se menciona, em letras menores: ―Paródia burlesca da ópera-buffa em 4

atos‖. Nas duas linhas seguintes: ―La Grande Duchesse de Gerolstein‖ e ―Música de

Offenbach‖. Na última linha, ainda é digna de nota a seguinte informação: ―Coro de ambos os

sexos a 30 vozes‖, o que permite deduzir a grandiosidade do espetáculo. No terceiro quadro,

observa-se o anúncio da apresentação de La Grande-Duchesse de Gérolstein, a ocorrer no

Teatro Lírico Francês. Como se vê, as duas apresentações ocorrem no mesmo dia 21 de

dezembro de 1872. Ademais, vê-se que, enquanto um anuncia em português, o outro o faz em

francês.

Assim, como afirma a pesquisadora Marta Metzler, em seu em artigo ―Espelho falso: a

paródia na formação do teatro brasileiro‖ (2015), essa concorrência entre peça original e

paródia, ao invés de acirrar a disputa pelo público, acabava fortalecendo a ambas. É por isso

que declara:

A memória do referente não se desloca da paródia; permanece em fundo, ou, antes, em paralelo, permitindo que a paródia funcione como tal. Sua

recepção, para acontecer de forma ampla, depende do reconhecimento por

parte do espectador, que, de modo ativo, estabelece as associações entre a paródia e seu referente. Como um mosaico de textos, contém o modelo (em

memória) e seu reflexo (divergente). É assim que os espetáculos paródicos

podem ganhar sentidos com seu público, na mesma medida em que se

guardam na lembrança aqueles que foram alvos de paródia. É a modalidade de espetáculo-paródia, que, a princípio, caracteriza a prática parodística no

teatro cômico brasileiro, desde seus inícios com o emblemático Orfeu na

roça, do ator Vasques. (METZLER, 2015, p. 90)

A década de 1870 marca também o aparecimento da Gazeta de Notícias. O jornal

fundado por José Ferreira de Araújo, Manuel Carneiro, Elísio Mendes e Henrique Chaves, só

teve a primeira publicação a 02 de agosto de 1875. Uma das primeiras menções à produção do

77

compositor se dá no mesmo ano de início de circulação do jornal, mais precisamente, a 11 de

outubro de 187575

. A referência se dá em um comentário sem assinatura e de caráter elogioso.

Dentre as informações, constam: o retorno das apresentações da trupe, o nome dos atores que

compõem o elenco e a expectativa de a opereta continuar sendo um sucesso de público.

Nas publicações de 06 e 20 de junho de 1876, respectivamente, na Gazeta de Notícias

e no Jornal do Commercio, o nome de Eduardo Garrido passa a figurar junto ao dos

produtores franceses, atribuindo-se a ele a tradução da opereta. É o que se vê nas imagens

apresentadas abaixo:

Figura 9 – Gazeta de Notícias, 06 jun. 1876, p. 4

Figura 10 – Jornal do Commercio, 20 jun, 1876, p. 06

Na primeira, retirada da Gazeta de Notícias, a partir da quinta linha, são dadas as

seguintes informações: ―1ª representação da ópera burlesca em 3 atos e 4 quadros, por Henri

Meilhac e Ludovic Halévy, tradução de Eduardo Garrido‖. Já na segunda, retirada do Jornal

do Commercio, consta, a partir da sétima linha: ―10ª representação da ópera burlesca em 3

atos, e 4 quadros, por Henri Meilhac e Ludovic Halévy, tradução de Eduardo Garrido‖. Com

75 Ver anexo 3.

78

esses dois anúncios, é possível ver que, se inicialmente a ausência do nome de um tradutor

poderia ser um indício de que as apresentações eram realizadas em língua francesa, a partir

dessa data o conteúdo parece ser apresentado tão-somente em língua portuguesa.

Segundo Graça dos Santos em ―Offenbach em Lisboa no fim do século XIX, entre

atração e repulsa‖ (2014), o escritor Eduardo Garrido foi responsável pela tradução da opereta

offenbachiana, em Portugal. Como a estudiosa também informa, a opereta estreou em terras

portuguesas a 29 de fevereiro de 1868, mais precisamente, no Teatro do Príncipe Real.

Entretanto, seu nome só passou a circular nos anúncios de jornais cariocas a partir de 1876.

Para desenvolver esse aspecto, cabe retomar Orna Messer Levin (2014) e Anaïs Fléchet

(2014), que tecem considerações a respeito da circulação do conteúdo dessas operetas no

Brasil oitocentista.

Levin (2014) destaca na conclusão de seu estudo a necessidade de novas pesquisas que

se voltem para a contribuição que as tipografias deram para a publicação de peças e de obras

relativas aos debates públicos, tal como a tipografia Perseverança. Ela considera que somente

assim será possível compreender o contexto de circulação das composições de Offenbach e,

consequentemente, o que teria levado ao sucesso suas produções. Já Féchet (2014), em seu

estudo, destaca que havia duas formas principais para a circulação de tais conteúdos.

Enquanto a primeira consistia na própria ―trupe parisiense‖, que se alojava na cidade do Rio;

a segunda se referia às partituras editadas na França e distribuídas por editores brasileiros. É

nesse sentido que ela afirma:

(...) Essas partituras são interessantes sob diversos aspectos. Por um lado,

elas lembram a importância do impresso nas circulações musicais numa

época onde as técnicas de gravação ainda são balbuciantes – a primeira

apresentação do fonógrafo de Thomas Edison data de dezembro de 1877. Por outro lado, elas indicam que a difusão das obras de Offenbach

transborda largamente as salas de espetáculo. Assim, se o Alcazar é proibido

às meninas de boa família, elas constituem o principal alvo dos comerciantes de pianos e dos editores de partitura, o que convida a repensar não somente a

questão do gênero, mas também a dimensão social da difusão do repertório

de Offenbach. (FÉCHET, 2014, p. 322-323)

A esse respeito, cabe assinalarmos que não há qualquer menção ao libreto de La

Grande-Duchesse de Gérolstein, no levantamento feito por Jean-Michel Massa (2001)

acerca do acervo pessoal de Machado de Assis. Na ausência de trabalhos mais detalhados

sobre as tipografias da época, é inviável afirmar a venda e a circulação de tal material, no

79

Brasil oitocentista76

. Contudo, tendo em vista o sucesso das operetas nos teatros cariocas, e

mesmo, a relação de Machado com a imprensa e o teatro, parece proveitoso pensar na

utilização do título e da epígrafe como uma clara alusão àquelas publicações que se davam

entre a Holanda e a França, como já tratamos aqui.

Em sua produção literária, não raro encontramos referências às operetas. No portal

organizado por Marta Ribeiro Rocha e Silva de Senna77

, na seção ―Citações e alusões na

ficção de Machado de Assis‖, verificamos um rico levantamento das menções feitas pelo

escritor tanto a autores e vultos, como a obras literárias e personagens fictícios. A respeito de

Jacques Offenbach e suas operetas, há duas buscas de ocorrências para contos e romances.

Uma primeira menção se dá em ―Luís Soares‖, publicado no Jornal das Famílias, no início

de 1869. Nesse conto, há uma referência a Barbe Bleue. Outra ocorre em Ressurreição,

romance lançado em 1872. Nele, é feita uma referência direta ao compositor. Já no conto ―O

sainete‖, publicado no periódico A Época, em 1875, o contista alude La Grande-Duchesse

de Gérolstein ao se referir à preferência do melancólico dr. Maciel por ―um dueto da grã-

duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense aos domingos da

Escola da Glória‖ (MACHADO DE ASSIS, 2015b, p. 1338). Após figurar alusivamente na

abertura da série veiculada na década de 1880, o tempo de Offenbach e da opereta seriam

relembrados no conto ―João Fernandes‖, publicado em A Estação, em 1894; e na obra Esaú e

Jacó, de 1904.

Além de anúncios já comumente realizados nos jornais, a 03 de julho de 1876, a

Gazeta de Notícias divulgou uma nota sem assinatura, intitulada ―A Grande Duquesa de

Gérolstein‖. Nela, é digno de nota não apenas o elogio à atuação dos atores, da produção do

figurino e da cenografia, mas, principalmente, o fato de se referir à tradução de A grã-

duquesa de Gerólstein, como um dos melhores trabalhos do escritor Eduardo Garrido.

Ademais, merece destaque o fato de as representações da opereta não ocorrerem mais no

Alcazar, mas no Teatro da Phenix.

76 Agradeço à pesquisadora Lara Silva Perussi Bertão, que, a nosso pedido, verificou uma partitura da opereta, na

Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa. O material do século XIX se encontra disponível no link:

http://purl.pt/29157/4/1234001_PDF/1234001_PDF_24-C-R0150/1234001_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf 77 No site, a estudiosa fornece dados encontrados somente em contos e romances, ficando de fora poemas,

crônicas, peças e textos críticos do escritor. Conferir: http://machadodeassis.net/dtb_index.asp

80

Figura 11 – Gazeta de Noticias, 3 jul. 1876, p. 2

O longo texto pondera que, na parte dramática, alguns atores se excedem e que,

mesmo com o gênero proporcionando tal liberdade, o êxito não dependeria tão-somente do

aspecto ultra-burlesco que buscam realizar. Nesse ínterim, continuam a ser divulgadas as

representações de La Grande-Duchesse de Gérolstein e da paródia, A Baronesa de

Cayapó. No começo da década de 1880, as menções feitas à ―imitação‖ dão pistas sobre seu

enredo, como no anúncio publicado a 1º de fevereiro de 1880, no Jornal do Commercio.

Dentre as informações divulgadas, consta uma lista apresentando o nome das personagens da

peça francesa, seguida do nome de seus correspondentes na paródia e dos artistas que

compõem o elenco. Abaixo dessa lista, é mencionado sucintamente o que ocorre em cada um

dos quatro atos, como exposto a seguir: 1º ato em uma fazenda do Paty do Alferes; 2º ato, em

casa da Baronesa de Cayapó; o 3º, na Sala Azul; 4º, no terreiro da fazenda da Baronesa. No

mesmo mês, mais precisamente, a 20 de fevereiro de 1880, o jornal publicou um texto

intitulado ―Phenix e Recreio‖. Na publicação, escrita em quatro quartetos e assinada por

81

Mosquito (certamente um pseudônimo), foram tecidas comparações entre a produção francesa

e a brasileira. O mesmo texto já foi mencionado rapidamente em ―Por uma imprensa escrita

em verso: invenção ou tradição?‖:

Figura 12 – Jornal do Commercio, 20 fev. 1880, p. 3

Tendo em vista que o título do texto faz clara referência ao local em que foram

realizadas as apresentações, Mosquito se mostra mais interessado pela que ocorreu no

Recreio, no caso, A Baronesa de Cayapó. Se, nos dois primeiros quartetos, ele demonstra

maior interesse pela paródia brasileira, nos últimos dois, justifica isso se referindo à atuação

do elenco. A 20 de junho de 1881, o Jornal do Commercio anuncia para o dia seguinte uma

única apresentação de La Grande-Duchesse de Gérolstein, a ocorrer no Teatro D. Pedro II.

Figura 13 – Jornal do Commercio, 20 jul. 1881, p. 4

No pequeno anúncio apresentado na quarta página do jornal, se sobressai o nome da

atriz que fará a grã-duquesa: ―Mlle. Paola Marié fará o papel de LA GRANDE DUCHESSE,

82

que ela representou mais de cem vezes seguidas no teatro Bouffes Parisienses, em Paris‖.

Segundo informa Siegfried Kracauer, Mlle. Paola Marié passou a interpretar o papel da

Grande-duchesse nos palcos parisienses depois que Hortense Schneider deixou a companhia,

rumo a Châtelet (KRACAUER, 2002, p. 318).

Portanto, o anúncio da presença da atriz Mlle. Paola Marié certamente foi motivo para

a apresentação única e esporádica, visto que na década de 1880 as poucas menções feitas à

composição de Jaques Offenbach estão relacionadas à paródia sempre associada ao seu nome.

É o que se vê, por exemplo, em publicação de Gazeta de Notícias, de 16 de março de 188478

.

A longa nota tece elogios à atriz que viveu nos palcos a baronesa de Cayapó. Embora o elenco

tivesse variado ao longo dos anos, é destacado que certamente os frequentadores dos teatros

lembrarão que, nos últimos quinze anos, a paródia foi um grande sucesso. Além disso,

destacamos o fato de ser feita referência a um personagem da paródia como sendo o

correspondente a Fritz, personagem de La Grande-Duchesse de Gérolstein. No final do

trecho, é enfatizado o sucesso que A Baronesa de Cayapó obteve, destacando-se que as

representações despertaram não só muito riso, como o aplauso entusiasmado por parte do

grande público.

Outra referência feita à opereta francesa se dá a 05 de agosto de 1889. Em um pequeno

texto intitulado ―A Grã-duqueza‖ e publicado entre o final da sexta e o começo da sétima

coluna, das oito presentes no jornal. Nele, é mencionada a trupe Lacista, responsável por

apresentar na antevéspera La Grande-Duchesse de Gérolstein, enfatizando que não há peça

que mais agrade ao público. Em seguida, são feitas referências aos atores, destacando-se sua

atuação nos palcos. O divertimento parece ser certo, como é sugerido na referência à

representação da véspera. O texto é finalizado sem assinatura, apenas com a informação de

que haverá mais uma apresentação naquela noite.

Com isso, como considera Metzler (2015), a paródia tem como um de seus elementos

constitutivos a crítica, mas, além disso, também conta com o aspecto elogioso, ainda que

ironicamente. Ademais,

Descentrada, marginal, paralela, a paródia, no âmbito do teatro brasileiro,

desmantela divisas, ao imbricar canto e contracanto, criação e crítica, ideia e

simulacro. Enfraquece valores eurocêntricos, a que sobrepõe um caleidoscópio de múltiplos espaços-tempos, de múltiplas vozes em

coexistência. Assume o próprio gesto de troca como valor, livrando-se da

entronização da ideia de identidade, bem como da nostalgia (ou ilusão) romântica da originalidade. (METZLER, 2015, p. 97)

78 Ver anexo 4.

83

Sendo assim, ainda cabe refletir sobre a utilização de tal passagem como epígrafe para

a série de crônicas em verso de ―Gazeta de Holanda‖, pois, havendo uma paródia brasileira,

cujo conteúdo foi adaptado à realidade atual do Brasil oitocentista, é de se pressupor que

outras referências tenham sido adaptadas, como, por exemplo, a própria menção à ―gazette de

Hollande‖ com a criação de uma gazeta equivalente79

. Mesmo sem respostas conclusivas, é

forçoso reconhecer que é a referência à produção francesa a responsável por abrir a série

machadiana. Assim, a escolha da epígrafe em francês em detrimento do português, implica a

construção de efeitos de sentido que ainda cabe investigar.

A excelência de uma citação: a epígrafe

A epígrafe, recurso discursivo/narrativo tão empregado por Machado de Assis em suas

produções, é uma moldura que deve ser considerada como aparato textual. Ela não apenas

serve de ―borda da obra‖, como afirma Gérard Genette, em Paratextos editoriais (2009), mas

igualmente assume forte valor indicial, semiológico, de modo a apontar para caminhos e, por

vezes, descaminhos de leitura, de interpretação a serem seguidos, verificados ou negados. A

epígrafe é, assim, definida pelo crítico francês:

Definirei grosso modo a epígrafe como uma citação colocada em exergo, em

destaque, geralmente no início de obra ou de parte de obra: ―em destaque‖

significa literalmente fora de obra, o que é uma coisa exagerada: no caso, o

exergo é mais uma borda da obra, geralmente mais perto do texto, portanto depois da dedicatória, se houver dedicatória. (...) (GENETTE, 2009, p. 131,

grifos do autor)

Não é à toa, pois, que Antoine Compagnon, em O trabalho da citação (1996),

considera a epígrafe como a ―citação por excelência‖. Como assinala o crítico, ela seria um

sinal de valor complexo, um símbolo e um índice, sendo, sobretudo, um ícone por consistir

num meio de entrada privilegiada na enunciação. Além disso, afirma ser a epígrafe uma ―(...)

imagem, uma insígnia ou uma decoração ostensiva no peito do autor (...)‖ (COMPAGNON,

1996, p. 120). Sozinha no meio do livro, por exemplo, ela o representa, infere-o e resume-o,

apresentando, assim, seu senso ou contra-senso. Ademais, o crítico acresce ser a epígrafe

(...) um grito, uma palavra inicial, um limpar de garganta antes de começar

realmente a falar, um prelúdio ou uma confissão de fé: eis aqui a única proposição que manterei como premissa, não preciso de mais nada para me

79 No Brasil, entre os anos de 1867 e 1868 circulou um periódico denominado La Gazette du Brésil. Escrita em

francês, a folha tinha por objetivo aumentar as relações entre o país e a Europa, em especial a França, veiculando

conteúdo político, literário, comercial e financeiro. O material encontra-se disponível para consulta na

Hemeroteca Digital. Ver: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=812170&pagfis=1

84

lançar. Base sobre a qual repousa o livro, a epígrafe é uma extremidade, uma rampa, um trampolim, no extremo oposto do primeiro texto, plataforma

sobre a qual o comentário ergue seus pilares. (COMPAGNON, 1996, p. 121)

Com isso, parece proveitoso pensar o trecho retirado da opereta e recuperado por

Machado de Assis na abertura da série, não apenas como uma justificativa ao título da coluna

– uma vez que se reporta diretamente a ele –, mas também como uma recuperação histórica.

Nesse caso, da concepção que se fazia das folhas clandestinas, apelidadas como ―gazette de

Hollande‖. Contudo, na série machadiana, em específico, os ditos espirituosos e zombeteiros

a princípio se sobressaem à noção de uma folha veiculadora de informação falaciosa e

maledicente, como pretendemos demonstrar.

Figura 14 – Gazeta de Notícias, 1º nov. 1886, p. 1

Acima, reproduzimos a primeira publicação da série. Como pudemos averiguar na

pesquisa realizada à fonte primária, as crônicas eram publicadas sempre entre a primeira e a

segunda página do jornal. Embora variasse sua localização no suporte, o que é uma

demonstração de que não possuía um espaço já predeterminado, no geral a ―Gazeta de

Holanda‖ aparecia ou entre a quinta e a sétima coluna da primeira página ou entre a segunda e

85

a sétima coluna, da página seguinte. Já a epígrafe figura em 48 dos 49 textos publicados, a

exceção é a publicação de 28 de setembro de 1887, que aparece como uma ―errata‖. Ao

retomarmos as considerações feitas por Granja em ―Ratos, pássaros ou morcegos? Machado

de Assis, Théophile Gautier e um repertório de citações‖ (2012), a respeito das citações feitas

pelos escritores-jornalistas do século XIX, também parece relevante pensar no uso da

referência offenbachiana às ―gazette de Hollande‖ como um procedimento retórico:

(...) as citações que faziam Machado e os outros escritores durante o XIX

estão tão relacionadas a uma real disponibilidade dos livros comercializados, quanto à disposição individual do escritor para citá-los, referi-los, aludir a

eles ou construir, segundo sua exclusiva vontade, o seu cânone próprio de

influências. Desse modo, pode ser que venhamos idealizando demais as

escolhas literárias alegadas pelos hábeis narradores machadianos. (GRANJA, 2012, p. 107, grifos da autora)

Essa última afirmação desperta interesse, pois, na série, a epígrafe parece ser usada

visando propósitos específicos, como rememorar ou aludir às ditas gazetas clandestinas do

século XVII e XVIII. Um caminho interpretativo apontado por Granja (2012) no uso da

citação seria tê-la como uma espécie de lugar comum, já conhecido pelo público, tal e qual os

ditados populares. Conforme observa Genette (2009), a epígrafe geralmente vem

acompanhada de seu referencial, ou seja, de sua origem ou autoria, o que não ocorre na série

em estudo. Isso torna difícil qualquer afirmação sobre o conhecimento que o leitor empírico

teria sobre esse referencial, conhecimento esse, talvez, perceptível somente ao leitor-modelo.

Mesmo sem uma resposta conclusiva sobre a utilização ipsis litteris, uma vez que

Machado não deturpa, mas acresce novos sentidos ao trecho de La Grande-Duchesse de

Gérolstein – para relembramos as considerações de Raimundo Magalhães Júnior, em ―O

deturpador de citações‖ (1957) –, esse apanhado parece anunciar um possível propósito da

coluna. Logo, o emprego da língua francesa abre uma voz primeira para sua fonte, em uma

espécie de diálogo especular, ou em efeito de eco. Ainda chama a atenção o fato de vir o título

em português (conforme a grafia da época, a palavra Holanda era escrita com duas letras ―L‖)

e a epígrafe em francês (conforme o texto original), o que corrobora nossa especulação.

Abel Barros Baptista também se dedica ao uso da epígrafe, mas, mais especificamente,

no romance Esaú e Jacó. O emprego do verso ―Dico, che quando l’anima mal nata‖, da

Divina Comédia de Dante Alighieri, merece destaque do crítico português, que mostra

possíveis sentidos no emprego da referência do poeta florentino. No capítulo ―Filosofia do par

de lunetas‖ de seu estudo Autobiografias: solicitação do livro na ficção de Machado de Assis

(2003), Baptista explora hipóteses formuladas pelos pesquisadores Helen Caldwell e John

Gledson a respeito da epígrafe e do capítulo XIII (―A epígrafe‖) do romance.

86

Conforme destaca o crítico, para Caldwell, a epígrafe serviria como uma espécie de

―par de lunetas‖, sendo, portanto, um instrumento para a compreensão do romance. Contudo,

para Gledson, sua função esclarecedora se desarticularia, dado que no capítulo ―A epígrafe‖ é

dada uma justificativa para o seu uso. Sendo assim, Gledson acredita que a epígrafe e o

capítulo lançam luz sobre novos significados, não desempenhando seu aspecto esclarecedor. É

dessa forma que Baptista (2003) vê como problemática a concepção do ―par de lunetas‖, pois,

ao invés de esclarecer, a epígrafe e a explicação apontariam para outros sentidos possíveis.

Por isso, afirma o crítico:

(...) julgo que se percebe um efetivo e poderoso efeito esclarecedor: o par de lunetas dá a ver que, não havendo delimitação segura entre o claro ou

totalmente transparente e o ―menos claro ou totalmente obscuro‖, a própria

figura do par de lunetas não pode nem excluir-se das dificuldades da distinção nem eximir-se a atuar sobre elas: suplemento que precisa de novo

suplemento, par de lunetas que, por sua vez, requer um par de lunetas.

(BAPTISTA, 2003, p. 418)

No romance, essa noção do ―par de lunetas‖ evidencia a impossibilidade de esclarecer

qualquer sentido que esteja oculto. Quer dizer, em Esaú e Jacó, o uso da epígrafe, a princípio,

teria por finalidade elucidar o sentido do romance, mas o capítulo XIII ―(...) é um reforço do

poder de esclarecimento da epígrafe, e por isso mesmo uma neutralização desse poder‖

(BAPTISTA, 2003, p. 419). Dentro da narrativa, portanto, ele se tornaria um suplemento

esclarecedor para compreender a impossibilidade de traçar uma fronteira que, para Baptista,

consiste em separar o ―menos claro ou totalmente escuro‖ do mais claro ou totalmente óbvio.

Em outras palavras, o capítulo do romance evidencia a impossibilidade de a epígrafe por si só

esclarecer o sentido da obra, pois, como ―par de lunetas‖, indica possíveis caminhos

interpretativos que podem se bifurcar. Com isso, ao pensar mais especificamente na série

escrita para a Gazeta de Notícias, sobretudo, sua titulação e sua epígrafe, esses elementos

parecem anunciar um propósito, talvez semelhante ao das folhas clandestinas cuja verve

satírica era marca distintiva.

Ademais, é interessante destacar a importância semionarrativa do título, pois, segundo

Carlos Reis, no Dicionário de Narratologia (2011), esse recurso constitui um importante

elemento paratextual. Bem como a epígrafe, o título é marcado por sua ―excelência‖, não

sendo um elemento de uso exclusivo da narrativa. De acordo com Reis (2011), o título não só

pode assumir um relevo semântico, como ainda sociocultural.

Esse recurso, que, por ora, pode orientar a leitura, permite ao leitor que seja detentor

de certa ―competência narrativa‖ adotar ―uma atitude receptiva adequada a certo tipo de

narrativa, às estratégias que usualmente a caracterizam, aos vectores temáticos eventualmente

87

insinuados, etc‖. Em outros momentos, também pode solicitar ―procedimentos de

descodificação próprios de narrativas não ficcionais‖ (REIS, 2011, p. 418). Daí, por exemplo,

o alerta para gêneros discursivos, como memórias, relatos de viagens e discurso de imprensa.

Essas proposições, a princípio, corroboraram a concepção da ―Gazeta de Holanda‖ tal como

aquelas de que já tratamos aqui.

Noite de Reis

A maioria dos estudiosos estima que a peça Noite de Reis80

foi escrita no ano de 1601,

sendo sua primeira edição de 1623. Esse é o caso, por exemplo, de Joseph Hunter, que já no

século XIX fazia essas afirmações em sua obra New Illustrations of the life, studies, and

writing of Shakespeare (1845). Em estudos mais recentes, outros estudiosos fazem a mesma

asserção, como o crítico literário Kenneth Arthur Muir, em Shakespeare’s Sources:

comedies and tragedies (2008) e o tradutor Carlos Alberto Nunes, no prefácio para a comédia

publicada em Comédias: teatro completo (2008).

Outra consideração dos estudiosos consiste nos apontamentos feitos pelo estudante do

Middle Temple com relação à representação da peça. John Manninghamm, a 02 de fevereiro

de 1601 ou 1602, relata em seu diário ter assistido à representação de Noite de Reis, em um

dos dois grandes dias anuais. O estudante ainda diz reconhecer relações entre a comédia de

Shakespeare e uma peça italiana, intitulada Gl’ Inganni. Ao se referir à peça shakespeariana,

o estudante faz a seguinte afirmação:

1601. Em nossa festa, nós tivemos uma peça chamada Twelve Night, or

What you Will. Muito similar a Comedy of Errors, ou Manechimi in

Plautus; mas muito mais semelhante e mais próxima a esta na Itália chamada

Inganni. Uma boa ação na peça para fazer o comissário acreditar que a senhora viúva está apaixonada por ele, foi falsificar uma carta como de sua

senhora em termos gerais, dizendo-lhe o que ela mais gostou nele, e

assinalando os gestos dele com sorrisos, sua roupa, etc., e então quando ele veio a atuar, fazendo-o acreditar que ele tinha sido considerado louco. (apud

HUNTER, 1845, p. 367, tradução nossa)81

80 No enredo da peça não é feita nenhuma menção a reis ou rainhas na história, o que causa certa estranheza. No entanto, diferentes autores apontam para possíveis sentidos no título da peça. Carlos Lopes Nunes (2008), por

exemplo, aponta para a possibilidade de ter a peça sido representada pela primeira vez na Noite de Reis.

Igualmente Kenneth Arthur Muir (2008) aponta para essa mesma possibilidade, mas acresce que o título pode ter

tido origem em uma frase presente no prólogo de Gl’Inganatti: la notte di Beffana. Também Joseph Hunter

(1845) mostra estar de acordo com essa ideia, considerando que mesmo Shakespeare reconheceu essa falta de

relação adicionando: or What You Will. 81 1601 (that is 1601-02), Feb, 2. At our feast, we had a play called Twelve Night, or What you Will. Much like

the Comedy of Errors, or Manechimi in Plautus; but most like and neere to that in Italian called Inganni. A good

practise in it to make the Steward beleeve his lady widdowe was in love with him, by counterfayting a letter as

from his lady in generall termes, telling him what shee liked best in him, and prescribing his gesture in smilling,

88

Como Hunter (1845) destaca em sua obra, essa informação fomentou – e ainda

fomenta – estudos no que concerne à relação entre Shakespeare e a comédia popular italiana.

Contudo, em seu estudo, o trecho citado e mantido de acordo com a escrita original, é

apresentado, dentre outros motivos, para acrescentar que na época outras duas peças de

mesmo título foram representadas. De acordo com o autor, a primeira foi de autoria de Nicola

Secchi,impressa na cidade de Florença, em 1562; já a segunda, com suposta autoria de Curzio

Gonzaga, impressa em Veneza, em 1592. Hunter (1845) ainda aponta uma terceira peça de

mesmo nome, mas representada somente em 1604; data posterior, portanto, à peça de

Shakespeare.

Ao tratar da mesma questão, Muir (2008) afirma ser desconhecida a autoria da

segunda peça. Já Karen Newman, em Shakespeare’s rhetoric of comic character (2005),

acresce que a peça foi escrita anonimamente por membros da Academia de Siena, conhecidos

como Intronati. Ela informa também que a primeira representação ocorreu em 1532. Nos três

estudos, os autores afirmam ser a segunda peça a que tem maiores relações com Noite de

Reis, esclarecendo, assim, a qual das peças o estudante do Middle Temple se referia em seu

diário. Ainda segundo Newman (2005), no prólogo da comédia italiana é dito que o texto foi

escrito para compensar uma representação anterior, intitulada Il Sacrifício:

(...) o prólogo, a peça foi escrita em três dias para compensar um espetáculo

alegórico apresentado no Epiphany, chamado Il Sacrificio, no qual membros

da academia sacrificaram lembranças de suas damas para Minerva, na

esperança de se libertarem dos laços de amor. O prólogo foi dito por um ator enviado como embaixador para resgatar a amizade de nobres senhoras,

ofendidas pela misoginia de Il Sacrificio. (NEWMAN, 2005, p. 66, tradução

nossa)82

É dessa referência feita à peça Il Sacrificio que Muir (2008) sugere uma possível

gênese para o nome de Malvólio, intendente da condessa Olívia de Noite de Reis:

(...) Na introdução dessa peça é feita menção a ‗Messer Agnol Malevolti‘, embora o nome de Malvólio possa ser derivado da frase mala vaglia

83, que

his apparraile, &c., and then when he came to practise making him believe they took him to be mad, &c. (apud

HUNTER, 1845, p. 367) 82 (…) the prologue, the play was written in three days to compensate for an allegorical spectacle presented on

Epiphany called Il Sacrificio in which members of the academy sacrificed remembrances of their ladies to

Minerva in hopes of freeing themselves from the bonds of love. The prologue is spoken by an actor sent as

ambassador to reclaim the friendship of the noble ladies offended by the misogyny of Il Sacrificio. (…)

(NEWMAN, 2005, p. 66) 83 Em italiano, significa ―má ordem de pagamento‖. Outra hipótese seria male volti, o que significaria ―caras

ruins‖.

89

ocorre sete vezes na versão de Bandello da história. (MUIR, 2008, s/p, tradução nossa)

84

No trecho, Muir (2008) aponta ainda para outra possível origem do nome da

personagem; algo talvez desconhecido ou ignorado por Hunter (1845) ao afirmar que

Malvólio seria uma ―happy adaptation‖ de uma personagem de Il Sacrificio. Fato é que além

dessa relação, os pesquisadores também fazem considerações a respeito de outras

correspondências entre Noite de Reis e Gl’Inganatti. É o caso, por exemplo, da temática

comum às duas peças, pois, tanto na comédia shakespeariana quanto na representada em

Siena, há um irmão e uma irmã, sendo ela a se disfarçar, o que gera situações embaraçosas e

cômicas. Sendo assim, não só a temática, mas ainda a correspondência entre as personagens

de uma e outra peça é apontada pelos estudiosos, o que se dá, mais precisamente, com relação

aos nomes que passam a ter na peça de Shakespeare.

É por esse motivo que Louise George Clubb (2010, p. 01), em sua obra Pollastra and

the Origins of Twelfht Night, destaca que mais que uma simples incorporação de enredo das

peças italianas em suas produções, o autor inglês tinha conhecimento dos métodos utilizados

pelos dramaturgos e atores italianos. Clubb (2010) aponta ainda que não só Shakespeare, mas

outros de seus contemporâneos tinham conhecimento sobre a comédia popular italiana.

Embora a relação intertextual entre essas produções fosse complexa e, ao mesmo tempo,

inconfundível, o estudioso ainda acrescenta:

Shakespeare é frequentemente chamado de inventor da comédia cômica e foi

indiscutivelmente seu mestre; Twelfth Night é muitas vezes citada como um exemplar perfeito do gênero. O vínculo há muito estabelecido entre ele e a

comédia Sienese Gl’ingannati, escrita e encenada pelos Accademici degli

Intronati em 1532, junta Shakespeare diretamente ao teatro italiano, não meramente à coleção de novelas, as quais tiveram enredo seguido por

inúmeras commedie erudite. (CLUBB, 2010, p. 01, tradução nossa)85

Como mostra o poeta, tradutor, teórico e crítico de teatro, o polonês Jan Kott, no

capítulo ―Amarga Arcádia‖, de seu livro Shakespeare nosso contemporâneo (2003), o tema

principal da comédia é o disfarce. Toda a história se passa nas terras da Ilíria e tem como

personagens centrais o duque Orsino, a condessa Olívia e Viola. Para Kenneth Arthur Muir

(2008), esse cenário consiste em mais uma inovação de Shakespeare, pois o dramaturgo

84 (...) In the introduction to this play mention is made of ‗Messer Agnol Malevolti‘, though Malvolio‘s name

may be derived rather from the phrase mala vaglia, which occurs seven times in Bandello‘s version of the story.

(MUIR, 2008, s/p) 85 Shakespeare is often called the inventor of romantic comedy and was indisputably its master; Twelfth Night is

often cited as a perfect exemplar of the genre. The long-established link between it and the Sienese comedy

Gl’ingannati, written and acted by the Accademici degli Intronati in 1532, joins Shakespeare directly to the

Italian theater, not merely to the novella collections which were plot quarries for countless commedie erudite.

(CLUBB, 2010, p. 01)

90

abandona a cidade de Modena, na Itália, e Constantinopla, em favor dessa nova terra. No

entender de Kott (2003), a Ilíria é uma terra onde todos ―são dotados de um amargo

conhecimento do amor‖ e expressam isso por meio de versos:

Na Ilíria, todos falam do amor em versos. Em versos nobres, às vezes um

pouco forçados. O drama verdadeiro desenrola-se no subsolo dessa retórica

de corte. Às vezes, simplesmente, o ritmo será quebrado e um grito irromperia na superfície (...). (KOTT, 2003, p. 234)

O tema do disfarce era usual na época da composição da peça, mas, especialmente em

Noite de Reis, ele tem algo a mais. Como destaca também, desde a primeira cena a música e

o lirismo se fazem presentes, porém de forma dissonante:

Dentro de um instante, no litoral marinho dessa mesma Ilíria, Viola e o Capitão serão lançados à costa. Em poucas linhas, Shakespeare conta a

história da irmã que perdeu o irmão gêmeo num naufrágio. A intriga é um

pretexto. O tema da peça é o disfarce. Viola, para ser admitida no serviço do duque, deve fingir ser um rapaz. As meninas se disfarçam de rapazes nos

contos, nas lendas e no folclore de todos os povos, nos poemas líricos e

épicos, desde Homero até nossos dias. Elas dissimulam seu sexo sob a couraça a fim de combater na guerra, sob o capuz de monge a fim de entrar

no convento; vestem roupas de estudante a fim de se inscrever na

universidade. A Idade Média conhece o disfarce heróico e o litúrgico. O

Renascimento se compraz no disfarce amoroso. Este aparece tanto na comédia italiana quanto nas coletâneas de novelas onde Shakespeare ia

buscar a trama e os temas de suas comédias. O disfarce tinha sua justificação

nos costumes: as moças não podiam viajar sozinhas, não era mesmo aconselhável que andassem sozinhas à noite pelas ruas das cidades italianas.

Tinha também sua justificação teatral: ao criar de saída um quiproquó,

facilitava a intriga, fornecia imediatamente uma situação de farsa. (...)

(KOTT, 2003, p. 231)

A longa citação, além de dar detalhes sobre a peça, como seu enredo, também lança

luzes sobre implicações do tema do disfarce na época. A comédia em cinco atos tem treze

personagens, sendo eles: Orsino (duque da Ilíria); Sebastião (irmão de Viola); Antônio

(capitão de navio e amigo de Sebastião); Valentim e Cúrio (gentis-homens da corte do

duque); Sir Tobias Belch (tio de Olívia); Sir André Aguecheek; Malvólio (intendente de

Olívia); Fabiano e Feste (bobo da casa de Olívia); Olívia (condessa rica); Viola (apaixonada

do duque, que se disfarça de Cesário); Maria (criada de Olívia); e mais nobres, sacerdotes,

oficiais, músicos e gente do séquito.

A história se passa basicamente entre a beira da praia, o palácio do duque Orsino e a

casa de Olívia. No entanto, as cenas não são sequenciadas, de modo que cada uma ocorre em

uma localidade diferente. Sendo assim, a fim de se atender aos objetivos deste estudo,

mencionaremos na seção a seguir as passagens em que aparece Malvólio. À vista disso,

pretendemos entender a importância da personagem na peça por meio de estudos críticos,

91

dado que tal compreensão implicará também no entendimento da construção da série ―Gazeta

de Holanda‖.

Malvólio em Noite de Reis

Depois de entrarem em um dos quartos da sala, Olívia dá ordens para que retirem de lá

o bobo. A fim de convencer a condessa de que ela não está em completo juízo, ele faz uso de

toda sua eloquência, questionando-a sobre o motivo de seu sofrimento. Ao dizer que sofre

pelo irmão falecido, o bobo responde: ―Suponho que sua alma está no inferno, madona‖.

Olívia, então, garante que a alma do irmão está no céu, o que leva o bobo mais uma vez à

seguinte conclusão: ―Então sois dobradamente louca, madona, por chorardes pela alma do

irmão que está no céu. Cavalheiros, levai daqui esta louca!‖.

Após ouvir isso, a condessa questiona o intendente: ―Que pensais deste louco,

Malvólio? Não se corrigirá mais?‖. Só então é dada a palavra ao personagem, que declara:

―Sim, mas só quando os estertores da morte o sacudirem; a debilidade que abate os sábios,

melhora os tontos‖. Como Hunter (1845) considera, Malvólio demonstra prazer em realizar

seus julgamentos, não deixando escapar ninguém de sua maligna disposição. Depois de ouvir

o que o intendente tinha a dizer a seu respeito, o bobo responde:

Deus vos envie logo a debilidade, senhor, para que a vossa falta de senso melhore mais depressa. Sir Tobias poderia jurar que eu não sou uma raposa,

mas não apostaria dois pence em como não sois louco. (SHAKESPEARE,

2008, p. 399)

Acusado de falta de senso, Malvólio dá uma nova resposta, após ser questionado pela

senhora:

Admira-me que Vossa Excelência encontre prazer em um idiota tão sem sal. Há dias, vi derrotá-lo um bufão ordinário que não tem mais cérebro do que

uma pedra. Vede como ele agora está corrido; quando não lhe falais nem lhe

dais oportunidade, fica como que amordaçado. Para mim, as pessoas

sensatas que cacarejam diante dos bobos como este, não passam de palhaços dos próprios bobos. (SHAKESPEARE, 2008, p. 399)

Parece ser grande o prazer que Malvólio demonstra em realizar tal julgamento. É nesse

sentido que Hunter (1845) faz a seguinte afirmação sobre a personagem: ―(...) Sob uma

demonstração de humildade, ele esconde um coração orgulhoso e tirânico (...)‖ (HUNTER,

92

1845, p. 382, tradução nossa)86

. Depois de ouvir tudo o que os dois tinham a dizer um sobre o

outro, a condessa explicita a ideia que o intendente tem de si mesmo:

Oh! tendes muito amor-próprio, Malvólio; provais as coisas com paladar

estragado. As pessoas generosas, inocentes e bem-dispostas tomam como pelotadas contra passarinhos o que se vos afigura balas de canhão. Um bobo

a quem se dá liberdade não prejudica a ninguém, por mais satírico que seja,

da mesma forma que o homem discreto não nos ofende, embora não pare de

censurar-nos. (SHAKESPEARE, 2008, p. 399)

Além do amor-próprio, sua falta de senso de humor intriga Olívia, o que o leva a

provar das coisas com ―paladar estragado‖, tomando por ―balas de canhão‖ aquilo que para

outros seriam apenas ―pelotadas contra passarinhos‖. Depois dessa primeira aparição,

Malvólio se retira a pedido de Olívia com a missão de dispensar o cavalheiro enviado por

Orsino, que acaba de chegar à residência. Ainda nessa cena, o intendente volta para informar

que, mesmo depois de tentar, o cavalheiro se recusa a ir embora. Questionado sobre a maneira

do recém chegado, Malvólio faz as seguintes afirmações: ―Das piores possíveis; deseja falar-

vos, quer o queirais, quer não‖. Acrescentando pouco depois:

Não é bastante velho para homem, nem bastante jovem para adolescente,

assim como vagem antes de conter ervilha, ou maçã não amadurecida de todo: flutua entre menino e homem, é muito bem apessoado e fala com

desenvoltura. Parece, em suma, que acabou de ser desmamado.

(SHAKESPEARE, 2008, p. 400)

No trecho citado acima, Malvólio faz essas declarações a respeito de Viola, então

disfarçada de Cesário e servindo de mensageiro ao conde Orsino. As afirmações do intendente

vão ao encontro do que Hunter (1845) afirma, ou seja, que não dispensa nenhuma

oportunidade de realizar julgamentos, revelando-os quando questionado ou não, como será

demonstrado logo mais. Outra aparição da personagem ocorre na segunda cena do segundo

ato. Incumbido de duas missões, ele vai ao encontro do mensageiro: a primeira tarefa é

devolver um anel supostamente enviado pelo duque e a segunda é comunicar que a condessa

dispensa qualquer cortejo por parte do nobre, dispensando mesmo o retorno do mensageiro.

Além da falta de humor, a rusticidade parece ser outra marca de Malvólio.

Na cena seguinte, contudo, é onde começa a ser tramado um plano contra o intendente.

Tudo tem início quando Sir Tobias, Sir André e o bobo bebem e cantam altas horas da noite,

em um dos quartos da casa. Maria aparece por causa do barulho, chamando-lhes a atenção.

No entanto, os homens não dão mostras de menor preocupação, seguindo com a

86 (...) Under a show of humility he hides a proud and tyrannical heart (…) (HUNTER, 1845, p. 382)

93

comemoração do ―dozeno dia após o Natal!‖. É nesse momento que aparece Malvólio,

incomodado pelo barulho:

Sois loucos, senhores, ou o que sois? Careceis de espírito, de maneiras, de

honestidade, para gritardes desse modo, como caldeireiros, no meio da noite? Quereis transformar a casa de minha senhora em cervejaria, para

guinchardes sem tento nem pudor esses refrões de alfaiate? Não respeitais

nem o lugar, nem as pessoas, nem o tempo? (SHAKESPEARE, 2008, p.

404)

Após serem interrompidos pelo intendente, Sir Tobias se mostra incomodado, dizendo:

―Observamos o tempo, senhor, em nossos estribilhos. Ide enforcar-vos!‖. Novamente,

Malvólio tenta mostrar um comportamento formal e grave, mas acaba revelando seu orgulho e

tirania:

Sir Tobias, vou ser franco convosco: a minha senhora me incumbiu de dizer-

vos que, embora ela vos dê guarida como parente, não pactua com vossas desordens. Se puderdes separar-vos de vosso comportamento indigno, sereis

bem-vindo a sua casa; do contrário, vos daria adeus de muito boamente, no

caso de vos despedirdes. (SHAKESPEARE, 2008, p, 404)

Os homens não demonstram o menor abalo diante das falas de Malvólio,

questionando-o quanto a ser alguma coisa mais que intendente. Decididos a ficar, os homens

continuam com a comemoração. Antes de sair, porém, o intendente sugere que Maria não

incentive semelhante despropósito. É, pois, Maria quem afirma já ter um plano a colocar em

ação, de modo que possa ridicularizar o intendente, tornando-o objeto da risada de todos. A

isso, a criada acrescenta:

Pois ficai sabendo que por vezes ele é uma espécie de puritano. (...)

É um diabo de puritano, ou algo assim como um desmancha-prazeres, um

asno cheio de afetação, que decorou umas tiradas e as expele aos pedaços; que tem opinião muito elevada de si próprio, tão cheio – segundo crê – de

belas qualidades, que tem como dogma que todas as pessoas se apaixonam

dele à primeira vista. É nesse ponto que a minha vingança vai operar.

(SHAKESPEARE, 2008, p. 405)

Maria dá alguns detalhes de seu plano, prometendo que o divertimento será infalível contra o

empregado da condessa. Tudo consiste em escrever cartas secretas de amor, fazendo-o crer

que foram escritas pela condessa e destinadas a ele. Crente no amor de Olívia, Malvólio

atenderá a todas as recomendações que lhe forem feitas.

Dessas passagens mencionadas, a afirmação de Malvólio ser um ―puritano‖ merece

destaque de Hunter (1845), pois o estudioso considera essa descrição como uma clara aversão

94

aos puritanos87

. Tendo em vista que a composição da peça ocorreu ainda sob o impacto que a

Igreja da Inglaterra vinha sofrendo desde a Reforma, que resultou em sua separação da Igreja

Católica Apostólica Romana, o momento fez com que grupos mais radicais do protestantismo

buscassem novas reformas. Assim, tendo em vista a afirmação de Maria de que Malvólio é

uma ―espécie de puritano‖, Hunter (1845) vê nisso uma crítica ao puritanismo. Outras

referências como essas são feitas ao longo de outras cenas da peça, o que vai ao encontro da

proposição do crítico. Ademais, por considerar que o dramaturgo inglês tem uma marca

indireta e sarcástica, o estudioso faz a seguinte consideração:

(...) há aqui de fato um desígnio sistemático de ridicularizá-los e expor ao ódio público o que lhe pareceram ser as características obscuras da

personagem puritana. Isso não apenas aparece em expressões particulares e

passageiras na peça, mas para aqueles que estão familiarizados com as representações que seus inimigos faziam do personagem puritano, parecerá

suficientemente evidente que Shakespeare pretendia fazer de Malvólio uma

abstração da personagem, para exibir nele todas as piores características e combiná-las com outras meramente ridículas. (HUNTER, 1845, p. 381,

tradução nossa)88

A proposição apresentada fica mais clara a partir da quinta cena do segundo ato, isso

porque é nela que se dá a execução do plano forjado contra o intendente da condessa. No

jardim da casa, Sir Tobias, Sir André e Fabiano conversam; Maria chega e comunica a

aproximação de Malvólio. Antes de se esconderem, porém, a criada atira a carta no chão. Em

seguida, o intendente aparece divagando em um monólogo e dando amostras desse conceito

elevado que tem de sua própria pessoa. Não obstante, Malvólio revela seu desejo de se casar

com Olívia, a fim de se tornar o ―Conde Malvólio!‖. 87 De acordo com o cientista social Breno Martins Campos (2014), a Reforma tinha por finalidade tornar

protestante a Igreja da Inglaterra, atendendo, dessa forma, aos verdadeiros propósitos de uma reforma até então

não realizada. Em 1553, Maria Tudor subiu ao trono, tornando-se rainha da Inglaterra, da Escócia e da Espanha.

Sua ascensão ao trono trouxe junto um período de restauração do catolicismo na Inglaterra, o que durou até 1558

quando faleceu. Esse período, como o estudioso destaca, foi um momento de perseguição contra os protestantes.

No entanto, a subida de Isabel I ao reinado, em 1558, fez com que a perseguição contra os protestantes se

tornasse algo superado, principalmente porque ela adotou doutrinas de inspiração calvinista e a liturgia

reformada. Isso resultou na expansão do protestantismo, não só em países da Europa (Inglaterra, Suíça, Holanda,

França, Escócia e Alemanha), como também da América. Campos (2014) pondera que, na Inglaterra e na

Escócia, a designação presbiterianismo passou a ser utilizada por causa do sistema adotado no governo da Igreja,

visto que presbíteros eram eleitos para os cargos administrativos. Em consequência das mudanças e da expansão

do sistema presbiteriano implantado pelos puritanos, novas reformas foram requeridas por eles. Dentre essas novas buscas, o autor destaca: a purificação; a intensificação da vida religiosa e da disciplina; o zelo pela

conduta dos fieis, exigindo uma conduta moral, etc. Logo, não era apenas uma reforma doutrinária, mas da

própria prática da fé. Conferir: CAMPOS, Breno Martins. Puritanismo e a construção político-social da

realidade. In: Revista Pandora Brasil. Nº 60 – Janeiro de 2014. Políticas teóricas e práticas. 88 (...) that here in fact there is a systematic design of holding them up to ridicule, and of exposing to public

odium what appeared to him to be the dark features in the puritan character. Not only does this appear in

particular expressions and passages in the play, but to those who are acquainted with the representations which

their enemies made of the puritan character, it will appear sufficiently evident that Shakespeare intended to make

Malvolio an abstract of the character, to exhibit in him all worst features, and to combine them with other which

were merely ridiculous. (…) (HUNTER, 1845, p. 381)

95

Durante seu monólogo, o intendente faz planos para o futuro que espera ter ao lado da

condessa; igualmente, revela detalhes de como será sua relação com os criados. A cada

declaração que ouvem, os homens fazem comentários de desaprovação; mesmo escondidos,

chamam-no de miserável, biltre e tinhoso. É por isso que Jan Kott (2003) considera Malvólio

como bem mais que um puritano, pois, ao apresentar tal postura, lança mão de seu

comportamento formal para revelar seu rancor: ―Malvólio, o tartufo inglês, lança sua sombra

sobre essa dolce vita; ele que é talvez mais um rancoroso que um puritano. (...)‖ (KOTT,

2003, p. 252).

É por essa postura de um puritano odioso, como considera Hunter (1845), que a

personagem se torna vítima de suas próprias atitudes, sendo levada, portanto, ao ridículo.

Pouco depois de fazer tais declarações, Malvólio encontra a carta e, ao ver as letras, afirma ser

de sua senhora. Todos esperam pela leitura, que é feita em voz alta pelo intendente. Enquanto

ele tenta desvendar os enigmas da carta, principalmente, as iniciais a quem se destina; os

outros o observam de longe e, de igual modo, reagem a cada declaração sua:

M. O. A. I. Este disfarce não combina com o princípio; mas com um

pequeno jeito seria fácil relacioná-lo comigo, por incluir o meu nome todas essas letras. Mas que vejo? Segue-se agora prosa. ―Se isto te chegar às mãos,

reflete. Minha estrela me coloca em plano superior ao teu; mas não receies a

grandeza; uns nascem grandes, outros adquirem a grandeza, e a outros a grandeza vem de encontro. Teu Destino te estende as mãos; segura-as com

alma e corpo; e para que te acostumes com o que tens de vir a ser, despoja-te

de teu invólucro humilde e apresenta-te com aparência renovada. Sê hostil

com certo parente e rezingueiro com os criados; que de teus lábios ressoem apenas argumentos de Estado; assume ares originais, é o que te aconselha

quem suspira por ti. Lembra-te de quem elogiou as tuas meias amarelas e

que desejava ver-te com ligas cruzadas. Repito: lembra-te! Avante, pois! Se o quiseres, obterás tudo. Caso contrário, continuarei a ver em ti apenas o

intendente, pessoa de mesmo nível dos criados e indigna de tocar nos dedos

da Fortuna. Adeus. A que desejara permutar serviços contigo. A feliz

infortunada.‖ (SHAKESPEARE, 2008, p. 409-410)

Malvólio se mostra feliz após ler o conteúdo da carta e diz que acatará todas as

recomendações que lhe foram feitas. Em seguida, os homens reconhecem a grandiosidade do

plano de Maria. Ela volta e todos falam sobre a perfeição da brincadeira realizada contra o

intendente. Sir Tobias afirma: ―Fizeste-o sonhar de tal maneira, que quando a imaginação se

desmanchar, ele acabará louco‖. Ao que Maria acrescenta:

Pois se quiserdes ver os frutos da brincadeira, observai-o a primeira vez que

ele vier ter com a senhora. Há de apresentar-se com meias amarelas, que é

cor que ela detesta, e com ligas cruzadas, coisa que ela não suporta; há de dirigir-lhe sorrisos, o que não condiz com a disposição de espírito em que ela

se encontra, propensa à melancolia, e que há de ensejar-lhe somente

96

desprezo. Se quiserdes vê-lo, acompanhai-me. (SHAKESPEARE, 2008, p. 410)

O ato é finalizado com os homens se dizendo capazes de ir à porta do Tártaro por causa do

―excelente demônio espiritual‖ que é Maria.

Uma nova aparição da personagem só se dá na quarta cena do terceiro ato. No jardim,

Olívia fala a Maria do encontro que tivera mais cedo com Cesário. Ao questionar sobre

Malvólio, a condessa é informada pela criada que ele está em um ―estado bastante esquisito‖.

Por esse motivo, Maria acredita que o intendente está possesso. Além de rir, ele faz uso de

meias na cor amarela e ligas nas pernas, como recomendado na carta. Ao vê-lo, Olívia

questiona sobre o motivo de seu riso, de modo que o intendente responde com passagens da

carta. A cada declaração, a condessa se mostra confusa, não entendendo nada do que é dito

por ele. Ela acredita que Malvólio está louco. Logo em seguida, um criado lhe fala da

presença do mensageiro do duque, informando também que foi difícil convencê-lo a voltar.

Porém, antes de ir ao encontro com Cesário, Olívia pede a Maria que chame Sir Tobias para

fazer companhia a Malvólio. O intendente reconhece nisso mais uma prova do sentimento da

condessa.

Quando Sir Tobias e Fabiano chegam e veem Malvólio, dizem que todos ―os

demônios do inferno‖ se confinam dentro do intendente, ou talvez esteja ―dominado pela

própria legião‖. Eles, então, recomendam reza, mas o homem se mostra revoltado, e diz: ―Ide-

vos todos enforcar! Sois criaturas fúteis: não me misturo convosco. Dentro de pouco ficareis

sabendo de mais alguma coisa‖ (SHAKESPEARE, 2008, p. 416). Fabiano reconhece que a

brincadeira fez com que o intendente enlouquecesse de vez. Malvólio se retira e, então, Sir

Tobias reconhece que é preciso tomar providências.

A cena continua sem a presença de Malvólio. É nela que Sir Tobias comunica a

Cesário o duelo proposto por Sir André. Nessa mesma cena, ocorre a primeira grande

confusão em decorrência do disfarce de Viola, pois Antônio aparece no momento em que

Cesário e Sir André vão dar início ao duelo. O capitão, ao confundir o mensageiro com seu

amigo Sebastião, acaba entrando no confronto, mas, antes que possa empunhar sua espada,

oficiais aparecem e acabam prendendo-o por reconhecê-lo de outros combates.

Uma nova aparição de Malvólio só se dá na segunda cena do quarto ato. Nela, o

intendente está isolado em um quarto escuro da casa. É desse modo que Maria, o bobo e Sir

Tobias conseguem ridicularizá-lo novamente. O bobo se disfarça de Sir Topas, também

chamado de ―o cura‖ e faz uma visita ao intendente no compartimento escuro. Sem saber com

quem está falando, Malvólio faz o seguinte questionamento: ―Quem está falando aí?‖, ao que

97

é respondido pelo bobo: ―Sir Topas, o cura, que veio visitar Malvólio o lunático‖. Em

seguida, o diálogo entre os dois continua, sem, contudo, o intendente saber que fala ao bobo.

Malvólio é reconhecido como um ―lunático‖, ―demônio hiperbólico‖ e ―satanás

desonesto‖. Joseph Hunter (1845) considera essas associações como mais uma forma de

criticar os puritanos, tornando Malvólio vítima da própria prática do puritanismo, como o

exorcismo. Ao relatar supostos casos de possessão em que as práticas dos puritanos se fizeram

presente, Hunter (1845) afirma:

(...) Eu imagino que a representação de Malvólio, sendo ele mesmo

possuído, foi uma feliz ridicularização dessas performances; mostrando

como era fácil dar o caráter de possuído a qualquer pessoa em cuja conduta qualquer coisa muito particular fosse encontrada, mas que, neste caso

particular, foi proeminente na mente de Shakespeare. (HUNTER, 1845, p.

388, tradução nossa)89

O diálogo entre Malvólio e o bobo continua, de modo que o intendente, a fim de

provar sua sanidade mental, propõe um desafio ao bobo, que o questiona sobre a opinião de

Pitágoras em relação às aves silvestres. Maria sugere que não seria necessário disfarce,

porque, de onde está não avista ninguém. Só então Sir Tobias recomenda ao Bobo que fale

sem disfarçar a voz. Temendo causar mais uma decepção à sobrinha, ele diz que seria melhor

parar com a brincadeira para evitar maiores problemas. Após isso, o Bobo fala com o

intendente sem se passar por Sir Topas e pede ao céu que restitua o juízo de Malvólio,

retirando-se logo depois para atender ao pedido feito pelo intendente. No caso, o de lhe

arrumar papel, tinta e luz para escrever uma carta destinada a Olívia.

A trama é solucionada no quinto ato com apenas uma cena. Como já mencionado, o

disfarce de Viola provocou embaraços cômicos no decorrer da história, como, por exemplo, o

fato de ela e Sebastião serem confundidos um com o outro. Contudo, antes do aparecimento

final de Malvólio e mesmo da entrega de sua carta à condessa, os irmãos se reencontram. Isso

acaba esclarecendo o motivo de tanta confusão, bem como o porquê de a condessa se casar

com Sebastião (pois acredita se tratar de Cesário).

Após a explicação de Viola a respeito do disfarce, Orsino lhe propõe consórcio e

acrescenta pedindo que se apresente em seus trajes femininos. Viola informa que toda sua

roupa está na casa do capitão, preso por ordens de Malvólio. Só então a condessa dá ordens

para soltar o intendente, solicitando sua presença. É nesse momento que o Bobo,

acompanhado por Fabiano, aparece com a carta, que é lida:

89 (…) I conceive that the representing Malvolio to be performances, shewing as it did how easy it was to give

the character of being possessed to any person in whose conduct anything very peculiar was found, but that this

particular case was prominent in the mind of Shakespeare. (…) (HUNTER, 1845, p. 388)

98

Por Deus, senhora, o mundo há de vir a saber a ofensa grave que me fizestes. Conquanto me houvésseis trancado no escuro e entregue à guarda do

borracho do vosso primo, conservo o uso dos sentidos tão bem como Vossa

Senhoria. Guardo em meu poder a carta em que me induzis a proceder como o fiz, esperando reabilitar-me com ela e confundir-vos. Pensai de mim o que

quiserdes; neste momento deixo de lado o dever para falar-vos como

ofendido. Malvólio, a quem tratam como louco. (SHAKESPEARE, 2008, p. 427)

Tomando conhecimento do conteúdo, a condessa reconhece a injustiça feita contra

Malvólio. Mas, antes da chegada do intendente, a moça propõe que a sua união com

Sebastião, bem como a de Orsino com Viola, sejam celebradas; proposta que conta com a

aprovação do duque. Logo em seguida, Fabiano chega com Malvólio. Depois de ouvir tudo o

que ocorreu, Olívia diz que a carta a ele destinada foi escrita por Maria. E acresce: ―(...) Sê

calmo, peço-te. É certo que judiaram de ti muito; mas quando conhecermos os motivos e os

autores de tudo, hás de encontrar-se como juiz e queixoso de tua causa‖ (SHAKESPEARE,

2008, p. 428).

Na sequência, Fabiano confessa ter participado do plano juntamente com Sir Tobias

para se vingarem de certas ―coisas desonestas‖ feitas pelo intendente. A condessa lamenta

tudo o que foi feito contra o ―bom Malvólio‖. Em seguida, o Bobo também confessa ter

participado da brincadeira, tendo se passado por Sir Topas. Na confissão, o bobo revela o

motivo que o levou a participar do plano contra o intendente. Além de falas do próprio

Malvólio, o bobo retoma a declaração dada pelo intendente durante a discussão que tiveram

diante da condessa: ―Como pode a senhora encontrar prazer em um idiota tão sem sal?

Quando não achais graça nos seus disparates, ele como que fica amordaçado‖. Depois disso, é

Malvólio quem se pronuncia, declarando: ―Vou vingar-me de toda essa caterva!‖. Logo após,

o duque diz ser preciso incitá-lo para a paz. Tudo termina quando todos saem de cena e o

bobo se despede cantando. Segundo David Willbern, em ―Malvolio‘s Fall‖ (1978):

(...) Malvólio é, portanto, essencial para uma resolução final do enredo; a coerência final de tempo e circunstância depende da gaivota maltratada.

Quando ele se retira, prometendo vingança, ele também perturba a trama,

recusando-se a cumprir seu papel essencial na ―junção mútua‖ final. (WILLBERN, 1978, p. 89, tradução nossa)

90

É, portanto, essa personagem ridicularizada e que promete vingança em sua última

fala, que, a princípio, serviu como referencial a Machado de Assis para assinar as crônicas em

verso de ―Gazeta de Holanda‖. Pensar a respeito dessa escolha como pseudônimo e no que

90 (...) Malvolio is therefore essential to a final resolution of the plot; the ultimate coherence of time and

circumstance depends upon the mistreated gull. When he stalks out, swearing revenge, he also disrupts the plot,

refusing to fulfill his essential role in the final ―mutual joinder‖ (…). (WILLBERN, 1978, p. 89)

99

isso pode ter implicado para a construção da série é o que pretendemos desenvolver na

próxima subseção.

Dentre tantos, Malvólio

Tendo em vista a correspondência que haveria entre as personagens da peça italiana e

da peça shakespeariana, estudiosos apontam que a única sem uma referência exata seria

Malvólio. Por esse motivo, algumas hipóteses sobre sua gênese são aventadas: a referência

feita na introdução de Gl’Inganatti; ou a ideia sucintamente apresentada por Muir (2008) de

o nome derivar de mala vaglia; ou como Giulia Harding e Chris Stamatakis consideram, em

―Shakespeare, Florio, and Love‘s Labour‘s Lost‖91

(2017), de o nome Malevolti ser

literalmente ―sick cheeks‖ ou ―pox cheeks‖; ou, ainda, como apresentado por J. Madison

Davis e A. Daniel Frankforter (2004), no The Shakespeare name dictionary, de o nome ter

vindo do latim mage-volo, significando ―I wish for more‖92

(2004, p. 575). Fato é que

Malvólio parece despertar o interesse de estudiosos não só por causa de sua possível origem,

como também por causa do papel que desempenha no enredo da peça.

É essa referência shakespeariana que Machado de Assis busca para pseudônimo das

crônicas de ―Gazeta de Holanda‖. Essa mesma informação merece comentário do escritor e

crítico literário Eugênio Gomes (1961). Em artigo publicado no livro Shakespeare no Brasil,

Gomes (1961) faz a seguinte consideração a respeito das produções do escritor e de sua

relação com as obras do autor inglês:

Recorde-se que um dos seus múltiplos pseudônimos – Malvólio – com o

qual assinava as crônicas versificadas de Gazeta de Holanda, entre 1886 e

1888, é o pajem de Olívia, na comédia Twelfth Night, or what you will.

Esta última frase devia ser particularmente grata a um escritor que gostava de embaçar às vezes os leitores, nem só tomando os mais desconcertantes

disfarces, através de incontáveis pseudônimos, mas também por suas

digressões à mercê de excêntricas fantasias. (GOMES, 1961, s/p)

Assim, considerando a vasta produção de Machado de Assis ao longo dos mais de

cinquenta anos de carreira, dos quais mais de trinta foram dedicados à escrita da crônica, é de

se reconhecer que William Shakespeare é um dos autores mais citados pelo bruxo. Não só nas

crônicas, mas em contos, romances, poemas, comédias e ensaios, o autor fez uso de

91 Ver: HARDING Giulia; STAMATAKIS, Chris. Shakespeare, Florio, and Love‘ Labour‘s Lost. In: DE

FRANCISCI, Enza; STAMATAKIS, Chis. Shakespeare, Italy, and Transnational Exchange: Early Modern

to Present. New York: Routledge, 2017. 92 Ver: DAVIS, J. Madison; FRANKFORTER, A. Daniel. The Shakespeare name dictionary. Routledge: New

York and London, 2004.

100

referências diretas ou indiretas às peças e sonetos do bardo inglês. Algumas dessas referências

são apontadas por Eugênio Gomes, as quais também são trabalhadas por Helen Caldwell, na

obra O Otelo Brasileiro de Machado de Assis (2008), estudo dedicado ao romance Dom

Casmurro. Outro a se voltar para a relação entre os dois autores é Faria (2011), no ensaio

―Machado de Assis e Shakespeare ou Bentinho vai ao teatro‖. Nele, o ensaísta faz uma

refinada reflexão sobre a passagem em que o narrador do romance afirma ter assistido à

representação de Otelo, em um teatro carioca, na década de 1870. Com isso, o crítico mostra

como o romancista parece ter usado pretensiosamente essa referência para associar a punição

de Desdêmona nos palcos e o desfecho de Capitu. De igual modo, Marta de Senna, no site já

mencionado93

, aponta citações feitas por Machado ao autor de Macbeth.

Ainda mais detalhadamente, a pesquisadora Adriana Costa Teles mostra todas as

menções feitas pelo autor oitocentista ao autor inglês, em um rico levantamento feito para sua

pesquisa de pós-doutorado. No estudo intitulado Machado de Assis e Shakespeare:

intertextualidades (2017), ela destaca desde a primeira menção feita em 1859, no conto

―Madalena‖, até a última feita em 1908, no romance Memorial de Aires. Na produção do

autor, Teles (2017) contabiliza mais de trezentas citações/alusões, em cerca de 170 textos. Ela

também chega a declarar que essas referências se tornaram mais elaboradas e complexas com

o passar do tempo.

A autora afirma haver certo predomínio de algumas peças shakespearianas em

determinados gêneros escritos por Machado de Assis, sendo cada uma delas referida de um

modo particular. Assim, Hamlet desponta em textos não só ficcionais, como as crônicas;

Otelo ganha mais relevância nos romances; e Romeu e Julieta figura com mais menções nos

contos. A esse respeito, Teles (2017) considera que as referências feitas pelo escritor não

funcionam como meras alusões, mas que, ao criarem teias intertextuais, abrem caminho para

novas significações.

Dentre as personagens que reaparecem na produção machadiana, duas delas que

serviram de pseudônimo para Machado de Assis nos despertam interesse. A primeira delas foi

Próspero, da peça A Tempestade. Além de mascarar o autor na assinatura no conto ―Duas

Juízas‖, Próspero também é homônimo de uma personagem da mesma publicação de 1883. Já

a segunda é o intendente Malvólio, de Noite de Reis, para a série ―Gazeta de Holanda‖. No

que tange à sua produção cronística, dois pontos ainda merecem nosso destaque: o primeiro se

refere ao fato de Malvólio ser a única personagem shakespeariana utilizada como

93 Ver nota 77.

101

pseudônimo, em uma série. Ao longo da carreira, outros pseudônimos também foram

utilizados, alguns deles de referência bíblica, como Manassés; ou dramática, como Lélio, da

comédia molieriana L’Etourdi (1653) também presente em Sganarello (1660). O segundo

ponto que destacamos consiste na própria utilização dos pseudônimos na assinatura das séries.

Embora a prática fosse comum entre os autores oitocentistas, Malvólio foi o último

pseudônimo utilizado por Machado na assinatura de uma série, dado que em ―Bons dias!‖,

série escrita entre 05 de abril de 1888 e 29 de agosto de 1889, o cronista finalizava seus textos

com um cordial, mas não menos irônico, ―Boas noites‖. Ainda que alguns estudiosos

entendam a expressão como um pseudônimo, consideramos ser ela de natureza diversa do que

era habitual. Depois desse período, já na década de 1890, Machado de Assis publica na série

dominical ―A Semana‖, sem nenhuma assinatura.

Dentre os vários textos produzidos ao longo de sua trajetória de vida, foram muitos os

pseudônimos de que fez uso. No entanto, em nenhum outro texto ou série figura o nome de

Malvólio. Esse nome marca, tão-somente, as publicações de Gazeta de Notícias quando

aparece abaixo das várias estrofes escritas para a série ―Gazeta de Holanda‖94

. Logo,

compreender quem é essa personagem que serviu a Machado como uma possível inspiração

na assinatura da coluna e, mais, o papel que desempenha na comédia de Shakespeare, consiste

em um caminho – mas não o único – para se entender a construção e a constituição da série de

crônicas versificadas.

Conforme considera Hunter (1845), entre as personagens shakespearianas, em

especial, dentre aquelas que contam as histórias vividas na Ilíria, Malvólio é uma das mais

completas. Assim, se, por um lado, sua primeira fala já demonstra o tom a ser adotado ao

longo da peça, por outro, seu próprio nome parece enunciar um infortúnio imbricado em sua

característica. Talvez, por isso, tenha sido ele e não outra personagem a inspirar e a disfarçar

as tiradas brincalhonas e zombeteiras de Machado de Assis, em sua versalhada.

Os versos cintilantes e espirituosos de um cronista brejeiro

Assim como romances, contos e peças, as crônicas também foram alvo de comentários

críticos entre escritores que atuavam na imprensa carioca. Não só a Gazeta de Notícias, mas

94 Em algumas publicações, o nome Malvólio figura em verso. Isso ocorre pela primeira vez na crônica de

número 3, a 12 de novembro de 1886. Na ocasião, o narrador relata ter recebido uma carta, cujo remetente seria

a própria epidemia: ―Escreve um correspondente / Cholera-Morbus chamado: / ‗Conto que proximamente, /

Malvólio, estou ao teu lado‘‖ (GAZETA DE HOLLANDA, 1886, p. 01).

102

também outros jornais como o Diário de Notícias, a Gazeta da Tarde, O Paiz e a revista

literária A Semana, apresentam, entre 1886 e 1888, comentários que dão uma visão mais

enriquecedora sobre a série machadiana. Em outras palavras, esses ditos contribuem para uma

melhor compreensão do texto do autor, do mesmo modo que para a recepção por parte do

público leitor95

.

Em alguns textos, além de impressões críticas, também encontramos uma leve troca de

farpas, o que sustenta a verve satírica das publicações e seu toque brincalhão. A 18 de

novembro de 1886, por exemplo, é apresentada a seguinte nota em Gazeta de Notícias:

Figura 15 – Gazeta de Notícias, 18 nov. 1886, p. 2

O curto comentário se refere à publicação do dia precedente, na qual a palavra

―amigo‖ teria sido empregada na rima em detrimento da palavra ―anjo‖, como mostraremos

mais adiante. Já em O Paiz, a edição de 22 de novembro, traz o seguinte comentário sobre a

série:

Figura 16 – O Paiz, 22 nov. 1886, p. 1

95 Conforme verificamos ao longo da pesquisa, não há uma estrita regularidade nas primeiras publicações da

―Gazeta de Holanda‖. No primeiro mês, a coluna saiu com espaços de no máximo sete dias de uma publicação

para outra. Do primeiro texto para o segundo texto, por exemplo, foram apenas quatro dias de diferença.

Contudo, essa aparente regularidade seria quebrada com os longos espaços temporais a ocorrer no mês de

dezembro. Depois do dia 6, outra publicação só ocorreria a 21 de dezembro de 1886. No entanto, a partir de

agosto de 1887, a série passaria a circular com um intervalo de publicação menor de uma crônica para outra.

103

O trecho é parte da seção ―Boletim – Revista da Imprensa‖, na ocasião publicada na

primeira coluna, da primeira página do periódico. Nele, é apresentado um comentário

apreciativo a respeito da publicação machadiana. Além disso, é instigante notar como se

referem a Malvólio: ―o espirituoso cronista da ‗Gazeta de Holanda‘‖. No mesmo texto são

apresentadas impressões ou, melhor, uma revista, sobre publicações de outros jornais, o que

parecia ser uma prática comum na imprensa oitocentista carioca. A 23 do mesmo mês, a

Gazeta de Notícias apresenta a seguinte nota:

Figura 17 – Gazeta de Notícias, 23 nov. 1886, p. 2

Esse trecho, tal quais outros apresentados acima, parecem contribuir para a construção

da persona responsável pela série, dando-lhe mesmo uma história de vida com ricas relações

parentescas. Na curta nota apresentada, acresce-se o informe sobre a prisão de um sujeito de

nome Antonio Fernandes Pereira, acusado de ter aberto uma ―subscrição‖ para sustento

próprio. O sujeito teria se guiado pelo exemplo do compadre de Malvólio, mencionado, mais

precisamente, em sua quarta crônica. Nela, o cronista trata de questões econômicas em 23

estrofes, destacando, por exemplo, um novo banco, a circulação de dinheiro e o câmbio. A

partir da nona estrofe é dito:

Nem eu, nem meu compadre Eusébio Vaz Quintanilha,

Que, por mais que corra e ladre,

Nenhum grande emprego pilha.

Que, para matar a fome,

Vem matá-la em minha casa,

Sem poder dizer que come, Mas que destrói, mata, arrasa.

Pobre Quintanilha! Um amigo! Coitado! Afinal parece

Que lá teve algum arranjo

Que lhe dá certo interesse.

Há dias que o não via;

Onde iria o desgraçado?

104

Quem sabe se morreria, Faminto e desesperado?

Eis que ontem, quando passava Pela rua da Quitanda,

E nos negócios cismava

Desta Gazeta de Holanda,

Lá do outro lado da rua

Uma figurinha para;

Trazia a cabeça nua, Bacia, opa e uma vara.

Era o pobre... Deu comigo E veio, em quatro passadas,

Ao seu delicado amigo

Apertar as mãos pasmadas.

(...)

(GAZETA DE HOLLANDA, 1886, p. 01)

Na citação, vemos o verso para o qual, dias antes, a Gazeta de Notícias apresenta uma

correção, sendo o ajuste de ―Um amigo!‖ para ―Um anjo!‖. Nas demais estrofes da crônica,

Malvólio conversa com seu compadre, questionando-o se ele se tornara um ―andador de

irmandade‖. A isso, o amigo responde que aluga a opa e a bacia a alguma Irmandade,

declarando também: ―É este o meu banco. O banco / É variável, mas certo; / Deus dá banco a

todo o mundo; / Uns vão longe, outros vão perto‖ (GAZETA DE HOLLANDA, 1886, p. 01).

De maneira semelhante, ao longo do ano de 1887 são feitas outras considerações a

respeito da série de Machado de Assis. Em uma delas, como destacaremos a seguir, é revelada

a identidade do autor responsável pelos versos. A publicação é da revista literária A Semana,

de 15 de janeiro de 1887. O texto, assinado apenas por um ―S‖, encontra-se na seção

intitulada ―Jornaes e revistas‖, publicada entre a terceira e a quarta coluna da primeira página

e a primeira coluna da segunda. Mesmo com um conteúdo pouco legível devido às marcas do

tempo, o crítico literário, José Galante de Sousa, transcreve o trecho em sua Bibliografia de

Machado de Assis (1955):

Às perguntas de vários de nossos assignantes sobre quaes sejam os escriptores que na Gazeta de Notícias usam de pseudonymos satisfazemos

com as seguintes informações (...)

MALVOLIO (―Gazeta de Hollanda‖) e LELIO (―Balas de Estalo‖) –

Machado de Assis. (apud GALANTE DE SOUSA, 1955, p. 31)

Isto posto, vemos que a autoria de ―Gazeta de Holanda‖ era sabida não só por parte

dos homens da imprensa, como também por parte do público leitor, uma vez que a relação

Machado e Malvólio se tornara pública. Essa informação se torna ainda mais relevante

105

quando levamos em consideração outros comentários tecidos em jornais de 1887 e 1888, pois

pressupomos ser esse esclarecimento um elemento a mais para fomentar o toque brincalhão

dos textos. É o que ocorre, por exemplo, na seção (―Boletim – Revista da Imprensa‖) já

mencionada de O Paiz, em 1887. Nela, é feita a seguinte declaração a 7 de abril: ―Gazeta de

Notícias – O hipnotismo sugeriu a Malvólio magníficas quadras para a sua Gazeta de

Holanda‖; voltaremos a essa questão, em especial, no capítulo ―Sonhos singulares‖. Pelos

altos do mês de maio, mais precisamente, no dia 14, o Diário de Notícias apresenta a seguinte

informação em ―Contos e Pontas‖:

Figura 18 – Diário de Notícias, 14 maio. 1887, p. 2

Além de mencionar o período sem a ventura de ler a ―Gazeta de Holanda‖, também

merece destaque a adjetivação dada à série machadiana: ―cintilante, espirituosa e brejeira‖.

Pouco depois, o autor do texto afirma preferir a ―poesia artística e delicada do Malvolio à

versalhada excepcionalmente correta do Varias‖. A referência é feita à famosa seção

―Notícias várias‖, publicada no Jornal do Commercio. Na mesma coluna, encontramos

outras duas menções à publicação de Machado de Assis, sendo a primeira delas datada de 19

de junho e a segunda de 2 de agosto. Em ambas são feitos comentários elogiosos acerca dos

versos do cronista, sendo que, na primeira delas, são citadas duas estrofes da série:

Figura 19 – Diário de Notícias, 19 jun. 1887, p. 1

106

O texto se refere à crônica do dia precedente, em que o escritor abre a publicação com

referêcia à Rosa de Malherbe. Antes, porém, de apresentarmos a segunda menção,

gostaríamos de destacar nesse interim um curto comentário feito a 21 de julho, na seção

―Entrelinhas‖, da Gazeta de Notícias. No texto de tom queixoso e assinado por Ridaixo, é

feita a seguinte declaração:

Figura 20 – Gazeta de Notícias, 21 jul. 1887, p. 1

Na segunda menção feita pelo Diário de Notícias a que nos referimos, o autor da

seção reconhece não ter compreendido a publicação machadiana do dia anterior. No entanto,

afirma que, assim como nos demais textos, naquele certamente haveria uma ―infinita graça‖

nos versos:

Figura 21 – Diário de Notícias, 2 ago. 1887, p. 1

A dita incompreensão se refere à publicação de 1º de agosto de 1887. Nela, o cronista se

voltou para a capoeiragem, prática rejeitada pela imprensa e perseguida pelas autoridades

policiais, como exporemos mais à frente, em ―Tu tá livre, eu fico escravo‖. A 8 de outubro de

1887, é Ferreira de Araújo quem faz uma breve menção a Malvólio. Sob o pseudônimo José

Telha, em ―Macaquinhos no Sotão‖, o diretor da Gazeta de Notícias, declara:

107

Figura 22 – Gazeta de Notícias, 8 out, 1887, p. 1

No texto, o autor, em uma espécie de devaneio, menciona como seria referido pelos

colegas da imprensa caso estivesse enfermo e viesse a falecer. Sua quimera nos desperta

interesse, pois é afirmado sobre Malvólio ―querer fazer crer que é do meu tempo‖, no caso, do

tempo da persona (José Telha) que assina a série. Isso nos leva a pensar na declaração como

sendo, talvez, uma possível alusão à personagem shakespeariana, que, outrora, ―provava das

coisas com paladar estragado‖. Já em outra publicação, datada de 16 de novembro, o mesmo

autor se refere a Malvólio, dizendo tê-lo encontrado na Rua do Ouvidor, ouvindo a banda

alemã tocar trechos de O Barbeiro de Servilha, de Rossini.

Figura 23 – Gazeta de Notícias, 16 nov. 1886, p. 1

No encontro com amigos, Malvólio ainda afirmaria: ―nós somos quase os últimos

representantes de uma raça de dilettanti96

que se vai extinguindo‖. Uma nova referência seria

feita no mesmo jornal a 29 de dezembro de 1887, na chamada ―Caçada de Sylabbas‖. O jogo

consistia em um desafio para que o leitor desvendasse ―nomes conhecidos, muito impagáveis‖

através de pistas que eram deixadas no texto:

96 Amadores.

108

Figura 24 – Gazeta de Notícias, 29 dez. 1887, p. 2

A resposta ao desafio aparece na publicação do dia seguinte, na qual o pseudônimo utilizado

por Machado de Assis vem como respostas à brincadeira proposta. Dentre os três nomes

citados, encontra-se o de Malvólio ao lado de José Telha e Canhanha:

Figura 25 – Gazeta de Notícias, 30 dez. 1887, p. 2

Poucos dias antes da última publicação de ―Gazeta de Holanda‖, mais precisamente a

09 de fevereiro de 1888, é feita brevíssima menção a Malvólio em um verso de ―Rimas por

Flauta‖. Nela, é apontado que a persona, acompanhando certa procissão, iria ―tangendo uma

lira‖. Ainda é curioso notar que, mesmo depois de alguns meses sem circular, a ―Gazeta de

Holanda‖, em especial, Malvólio, manter-se-ia na lembrança da imprensa e dos leitores. É o

que vemos, por exemplo, na Gazeta da Tarde, de 6 de agosto de 1888. No texto intitulado

―Notas à margem‖ e assinado por V. M. (Valentim Magalhães), é mencionado um banquete

oferecido a Machado de Assis, pelos amigos e secretários da Agricultura, na noite do dia 4. A

―festa íntima e cordial‖ contou com a presença de 30 ofertantes, dos quais alguns nomes se

destacam, como Ferreira de Araújo, Valentim Magalhães e Carlos Laet.

109

As homenagens ao ―velho amigo‖, ao ―digno homem que tem conseguido elevar-se

sem prejudicar ninguém‖, ocorreram ao longo da noite, sendo o brinde de honra realizado

pelo próprio Machado e dedicado aos seus amigos. A nota sobre a justa homenagem ―a quem

tanto lustre e glória tem dado às nossas letras‖ como considera Magalhães em seu discurso, é

finalizada com a seguinte declaração:

Figura 26 – Gazeta da Tarde, 6 ago. 1888, p. 2

Além de felicitar a condecoração ao ―sacerdote imaculado da religião da Forma, que

sabe casá-la harmoniosamente com o Pensamento‖ como se refere a Machado de Assis,

Valentim Magalhães também rememora referências ao escritor, associando a ele nomes já há

muito conhecidos por parte do público, como é o caso de Malvólio, dos ditos espirituosos e

brejeiros; de Lélio97

, das tiradas cômicas; e de Boas-noites, cuja verve fortemente irônica já

aparecia em ―Bons dias!‖.

Sobre essa última série, cabe lembrarmos que, para alguns críticos como John Gledson

(2003)98

, sua escrita teria ocorrido sob a égide do mais completo anonimato. Ainda conforme

o crítico, isso teria permitido a Machado de Assis expor a sociedade oitocentista com uma

maior liberdade e sem risco de sofrer consequências imediatas. Porém, como demonstramos

com a passagem acima, a autoria da série era tão conhecida como as demais, nas quais o

97 No capítulo ―A desconhecida‖, de Machado de Assis desconhecido, Magalhães Júnior (1957) apresenta

nomes de folhas que compunham a dita ―imprensa amarela‖ oitocentista. Essas folhas vasculhavam a vida íntima

de pessoas ilustres da sociedade fluminense. Em uma delas, denominada Corsário, jornal que ―era lido às

escondidas e não entrava na casa das famílias‖ segundo o crítico, a publicação de 25 de setembro de 1883 apresenta o que seria uma carta revelando a identidade dos autores de ―Balas de Estalo‖. Nela também há uma

associação dos sete pseudônimos aos sete pecados capitais. Machado de Assis, o Lélio da série, é associado ao

pecado da luxuria. Em nota, o autor da carta ainda insinua: Ignez Gomes, sterysmo. Como expõe Magalhães

Júnior (1957), o nome da atriz foi apontado por alguns como possível affair de Machado de Assis. Isso, contudo,

parecia fazer parte de algum chiste, dado que o próprio Machado, em publicação na seção humorística da folha,

afirma ser o periódico ―uma necessidade social‖ e mesmo um ―último argumento da medicina heroica‖. 98 Gledson afirma em ―Bons dias!‖, capítulo de Machado de Assis: ficção e história (2003, p. 138), que era

declaradamente sabido que Malvólio era Machado de Assis. O estudioso apresenta trecho de publicação datada

de 15 de janeiro de 1887, do jornal Gazeta de Notícias, em que é feita a relação entre o autor e o pseudônimo.

Entretanto, essa informação foi divulgada na revista literária A Semana, como mostramos.

110

escritor também tratou de questões políticas, sociais, culturais e religiosas com sua tão

marcante e reconhecível verve satírica.

111

III – Sonhos singulares

Qui vive la pietà quand’è ben morta;

chi è più scellerato che colui

che al giudicio divin passion comporta?

(...)

Mira c’ha fatto petto de le spalle:

perché volle veder troppo davante,

di retro guarda e fa retroso calle99

.

(ALIGHIERI)

O pacto com o Diabo, a consulta às pitonisas, o diálogo com espíritos e a busca pelas

mais diversas práticas esotéricas são temas recorrentes e atrativos no universo literário. Nas

mais diferentes épocas, autores se dedicaram a essas fantasias tão instigantes aos homens.

Talvez, por esse mesmo motivo, Machado de Assis tenha se deixado seduzir pela temática,

apresentando, ao longo de sua vasta e rica produção literária, adivinhas que predizem ―cousas

futuras‖ ou personagens que relatam experiências fantásticas. Não só em seus poemas, contos

e romances, como ainda em suas crônicas, o também bruxo se empenhou, e com graça, a

tratar do assunto que desperta tanta curiosidade e fascinação100

.

Igualmente curiosos pela maneira como o escritor lidou com a questão, alguns

pesquisadores se ocuparam do assunto, como é o caso de Ubiratan Paulo Machado, em Os

Intelectuais e o espiritismo: de Castro Alves a Machado de Assis (1996). Na obra, o crítico

propõe o estudo da ascensão espírita no Brasil, dialogando com outras doutrinas e crenças

populares, como a cartomancia e o curandeirismo. Segundo informa, diferentes práticas,

fossem elas religiosas ou não, passaram a ser associadas à doutrina recém chegada ao país.

Foi na década de 1860, pouco depois de ser codificada em Le Livre des Esprits, por

Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan-Kardec, que o espiritismo

chegou aos trópicos. Nessa mesma década, o jovem cronista já se mostrava um crítico

fervoroso em relação à nova crença, o que faz Ubiratan Machado (1996) apontá-lo como o

mais intransigente dentre os autores oitocentistas.

99 ―Aqui piedade é morte em toda mente: / Quando Deus condenou, quem mais malvado / Do que esse, que

ternura por maus sente? // (...) // Pelo futuro penetrar querendo, / Tem o dorso adiante em vez do peito, / E a

recuar caminha, atrás só vendo‖. (ALIGHIERI, A Divina Comédia, 2017) 100 A questão foi estudada em pesquisa de Iniciação Científica, realizada entre os anos de 2017 e 2018, sob

orientação da professora doutora Francine Ricieri. Desse trabalho, resultou o artigo ―Machado de Assis, cronista:

o espiritismo kardecista sob a pena da galhofa‖, publicado em 2018, no dossiê temático da revista Letras

Escreve. Ver: https://periodicos.unifap.br/index.php/letras/article/view/4285.

112

Outra a estudar a questão é Elaine Cristina Maldonado, em sua dissertação Machado

de Assis e o Espiritismo: diálogos machadianos com a doutrina de Allan Kardec (1865-

1896), defendida em 2008. Nela, explora a ascensão da doutrina espírita no Rio de Janeiro,

por meio de crônicas e de contos em que Machado de Assis abordou o ponto. Nesse

apanhado, a historiadora elucida em que momento estava a doutrina quando o escritor

publicou tais textos. Ademais, discorre sobre a associação entre o espiritismo e o aumento na

incidência de casos de loucura, questão levantada na época e amplamente discutida por órgãos

oficiais. Outro ponto estudado por Maldonado (2008) são os arts. 156, 157 e 158, do capítulo

III ―Dos Crimes Contra a Saúde Pública‖101

do Código Penal, decretado em outubro de 1890.

Com objetivo de punir aqueles que praticavam atividades consideradas espíritas, como a

cartomancia, o curandeirismo e a hipnose, a ordem previa a prisão do acusado pelo período de

um a seis meses mais o pagamento de multa. A mesma decisão judicial foi pautada pelo

escritor oitocentista, a 27 de outubro de 1895, em crônica de ―A Semana‖.

Já no início da ascensão espírita no país, Machado dá os primeiros sinais sobre como

iria se posicionar em relação ao assunto. Ao longo de décadas seriam muitas as críticas à

doutrina codificada por Allan-Kardec. Sua primeira menção ao espiritismo ocorre na crônica

publicada a 21 de março de 1865, na seção ―Ao acaso‖, do Diário do Rio de Janeiro. Nela,

refere-se a uma carta com previsões sobre o rumo da Guerra do Sul:

Não sabemos se o leitor crê ou não crê no espiritualismo102

. Pela nossa parte,

nunca prestamos fé a essas superstições, apesar de conhecermos algumas pessoas para quem o espiritismo é uma verdade incontestável e uma ciência

adquirida.

Uma dessas pessoas, muito antes da notícia do convênio, remeteu-nos uma folha de papel, contendo o resultado de duas sessões de espiritualismo, nas

quais algumas profecias foram feitas relativamente à guerra do Sul. (...)

A maior parte dos acontecimentos anunciados pelo espiritualismo não eram

predições, eram induções. (...) (MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 252).

Na década de 1870, o assunto voltaria a figurar nas crônicas, como na publicação de

16 de junho de 1878, da série ―Notas semanais‖, do jornal O Cruzeiro. Nela, o cronista

disserta sobre a prisão de um casal acusado de praticar o sonambulismo, atividade, por ora,

associada à doutrina espírita:

Não menor opróbrio para a ciência foi a prisão de Miroli e Locatelli.

Descanse a leitora; não se trata de nenhum tenor nem soprano, subtraído às

101 BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em:

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-

publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 14 set. 2018. 102 Como esclarece Ubiratan Machado (1996), não era clara a distinção entre espiritismo e espiritualismo, bem

como outras terminologias da crença espírita, sobretudo em seu momento inicial, no Brasil.

113

futuras delícias da fashion. Não se trata de dois canários; trata-se de dois melros.

Não é melro quem quer. O primeiro daqueles merece dois dedos de

admiração. Sucessivamente médico, domador de feras, volantim, mestre de dança e ultimamente adivinho, não se pode dizer que seja homem vulgar; é

um furavidas, que se atira à struggle for life e com unhas e dentes, sobretudo

com unhas. De unhas dadas com a dama Locatelli, fundou uma Delfos na rua do Espírito Santo, e entrou a predizer as coisas futuras, a descobrir as coisas

perdidas, e a farejar as coisas vedadas. O processo era o sonambulismo ou o

espiritismo. Os crédulos, que já no tempo da Escritura eram a maioria do

gênero humano, acudiram às lições de tão ilustre par, até que a polícia o convidou a ir meditar nos destinos de Galileu e outras vítimas da autoridade

pública. (MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 387)

Além de se referir à prisão dos consortes, o cronista alerta para a punição que sofrerão

no Além, onde ficarão com a cabeça voltada para o dorso, bem como os adivinhos

condenados no vigésimo canto do Inferno dantesco. O processo que repercutiu na imprensa da

época é recuperado por Jaison Luís Crestani, em ―Machado de Assis e a imitação burlesca de

discursos e práticas culturais‖ (2015). No ensaio, o pesquisador analisa a interação de

Machado com o contexto de produção de O Cruzeiro, onde o caso foi noticiado e onde a

crônica também foi publicada. Dentro da produção machadiana, esse mesmo processo se

desdobrou no texto em forma dramática: ―A Sonâmbula: uma ópera cômica em quatro atos‖.

Crestani (2015) retoma a narrativa, tendo em vista aspectos satíricos na produção, como o

traço parodístico ao lidar com o processo criminal contra o casal de esotéricos.

Na série ―Balas de Estalo‖, em que Machado de Assis atuou entre 2 de julho de 1883 a

22 de março de 1886, período em que publicou 125 crônicas, o cronista incorporou o próprio

discurso espírita como forma de realizar críticas veladas à doutrina. Isso pode ser visto, por

exemplo, na publicação de 5 de outubro de 1885, em que a liberdade imaginativa é claramente

expressa103

.

Esse conteúdo é, portanto, recorrente tanto em séries anteriores à ―Gazeta de

Holanda‖, como também em outras produções do autor, as quais serão retomadas nas

próximas subseções. Com isso, entender mais sobre os recursos utilizados para abordar essas

questões de cunho religioso, filosófico e científico, assuntos presentes e estudados na

produção em prosa do autor, será uma forma de compreender melhor o uso que Machado de

Assis fez do verso, bem como da tríade aqui estudada, a saber, os traços satíricos presentes

nos textos, os recursos paratextuais e o pseudônimo, para expor questões pertinentes a seu

tempo, mas que se mostram sempre atuais.

103 Esse texto será retomado mais adiante, na subseção a respeito da temática espírita.

114

Nos três textos que serão analisados, a cartomancia, a hipnose e o espiritismo são

temas centrais. Neles, além de constatarmos a presença explícita de tais tópicos, também

observamos a recorrência no uso de elementos satíricos. É o que pretendemos demonstrar, por

exemplo, com a publicação de 21 de dezembro de 1886. Nela, Malvólio afirma ter sido

tentado pelo Diabo, confessando-lhe, ainda, seu desejo de ser uma cartomante. Nessa mesma

publicação, além da liberdade imaginativa, outro elemento satírico presente é a paródia. Com

isso, pressupomos que o ideário sobre as cartomantes presente em anúncios de jornais

oitocentistas104

é retomado na crônica através desse traço.

Na crônica de 6 de abril de 1887, é a hipnose a ser tematizada dos versos de ―Gazeta

Holanda‖. Com um tom cômico, o narrador reconhece ter dificuldade em tratar do assunto,

retomando, em algumas passagens, o que seriam propósitos médicos. A princípio, as marcas

de comicidade e o caráter não moralizante servem para tratar despretensiosamente de mais

uma doutrina a ganhar espaço e adeptos, na sociedade oitocentista.

Outros traços satíricos também parecem compor a publicação de 2 de novembro de

1887. Ao longo de 22 estrofes, o narrador, que declara ser ―meio espírita‖, mostra todo seu

conhecimento a respeito da reencarnação e, consequentemente, do processo de evolução do

espírito. Além da liberdade de imaginação e do caráter não moralizante – no que seria uma

espécie de alerta ao leitor, para seu post-mortem –, outro aspecto marcante é a paródia, ao

tratar de uma questão candente, junto a um antigo referencial filosófico, como é o caso de

Sócrates.

Tanto Ubiratan Machado (1996) como Maldonado (2008) destacam que Machado de

Assis tematizou a doutrina e as práticas associadas a ela em outras produções. É o caso de

―Uma visita de Alcibíades‖, publicado em 1876, no Jornal das Famílias, com segunda

versão modificada, em 1882, na Gazeta de Notícias. Outros são: a já referida cena cômica ―A

Sonâmbula: uma ópera cômica em quatro atos‖, publicada em O Cruzeiro, em 1878; e os

contos ―A segunda vida‖ e ―A cartomante‖, publicados na Gazeta de Notícias, em 1884. A

temática ainda aparece de relance no romance Quincas Borba, de 1891, e de forma mais

detalhada em Esaú e Jacó, de 1904. São esses, pois, alguns dos pontos apresentados na

produção machadiana e que, em maior ou menor grau, também aparecem na série ―Gazeta de

Holanda‖. Nas próximas subseções, aprofundaremos essa análise.

104 Esse assunto foi apontado e explorado no artigo ―O embaralhar das cartas: a cartomante de Machado de Assis

e de Júlia Lopes de Almeida‖, publicado no dossiê temático ―História e Literatura‖, do segundo volume da

revista Contraponto, em 2020. Consultar:

https://revistas.ufpi.br/index.php/contraponto/article/view/12577/7405.

115

“Quisera ser cartomante”

As práticas esotéricas há muito fascinam os homens. Curiosos e instigados pelo desejo

de desvendar o passado, o presente e o futuro, buscam por pessoas que se dizem capazes de

predizer e decifrar os mistérios deste e do outro mundo. Assim, com frequência e certa

facilidade, encontramos em jornais oitocentistas anúncios de cartomantes, sonâmbulas,

magnetistas, mágicos e adivinhos que prometem revelar segredos. O anúncio dessas pitonisas

e desses profetas ocorre desde a simples divulgação de suas práticas, como forma de

promover seus trabalhos e atrair a clientela, até matérias em colunas policiais, escritas para

alertar e denunciar a atividade. Fato é que adivinhação parece ter despertado o interesse geral,

seja dos crentes, seja dos céticos.

Alguns desses anúncios são recorrentes no mesmo periódico, como é o caso dessa

publicação na Gazeta de Notícias:

Figura 27 – Gazeta de Notícias, 10 dez. 1875, p. 4

Chamada de celebre cartomante e sonâmbula, A... V..., como é identificada, atende

das 9h da manhã às 9h da noite. No informe ainda consta o horário de atendimento de um

sonâmbulo, das 10h às 4h da tarde. A dupla atua na Rua da Assembleia, 93. Sem mais

detalhes, fica o leitor instigado a visitar tal ambiente. Doravante, a 5 de maio de 1884, a mais

antiga cartomante do Rio de Janeiro informa seu novo endereço de atendimento na Rua Sete

de Setembro, 75. Além disso, assegura à clientela que às sextas-feiras fará consulta gratuita

para as pessoas pobres. Em outros reclames, como no intitulado ―Ver para crer à casa

vermelha‖, além das práticas realizadas por um professor mágico, a nota também afirma ser

ele admirável, surpreendente e divertido, uma forma um tanto quanto provocadora de atrair

clientes:

116

Figura 28 – Gazeta de Notícias, 19 fev. 1877, p. 4

Nos jornais oitocentistas proliferam pequenos anúncios, sem maiores detalhes a

respeito das práticas esotéricas. Ainda assim, é possível afirmar que tais atividades eram

muito procuradas e, certamente, muito lucrativas para aqueles que a exerciam, como a recém

chegada do Sul, a adivinha Thereza Meraldi, no ano de 1878. Além de ser anunciada como a

―maior cartomante deste século‖, a publicação também informa que a profissional fala vários

idiomas, o que parece assegurar sua instrução.

Figura 29 – Gazeta de Notícias, 14 mar. 1878, p. 4

117

A pequena ilustração ainda parece representar o busto da renomada cartomante,

enaltecendo, assim, sua fama perante o leitor. Como nos dois anúncios mencionados antes, no

de Thereza Meraldi, também consta a informação de que ela atende em um sobrado, sendo

este localizado na Rua da Carioca, 128. Esse tipo de edifício parece ser o mais frequente entre

os profissionais da adivinhação105

. Já em 1879, o mesmo jornal divulga a chegada da

cartomante D. Sibilia Concha de Salamanca. Além de tratar de aspectos mais práticos, o

anúncio informa que a adivinha ―faz passar uma corrente magnética e elétrica a todas as

pessoas que sejam infelizes no amor e em todos os seus negócios e passa a dar-lhes felicidade

em tudo que empreenderem‖.

Figura 30 – Gazeta de Notícias, 25 maio 1879, p. 4

A ausência do valor a ser pago por essas consultas é um forte indício de que o negócio

empreendido só é acertado diretamente entre as cartomantes e seus clientes. As práticas

esotéricas parecem ser tão comuns que, em meados de 1882, a Gazeta de Notícias divulga a

publicação de um folheto, intitulado ―Alta cartomancia‖. A obra organizada por um sábio

brasileiro é apresentada como ―importante‖ e ―recreativa‖. Fruto de uma combinação

francesa, alemã, espanhola e italiana, o público poderia desfrutar dos segredos da arte

adivinhatória pelo valor de 1$000 réis.

105 Na fábula ―As adivinhas‖, Jean La Fontaine chama a atenção para o fato de o prestígio das sibilas está

relacionado ao ambiente em que atuavam. Por isso, afirma o fabulista francês, ―a amostra e o rótulo asseguram a

freguesia‖. É como se o casebre onde realizavam atendimento fosse o responsável por oferecer ainda mais

credibilidade às suas práticas místicas. (Ver: LA FONTAINE, Jean. As adivinhas. In: _____. Fábulas. Tradução

e adaptação a prosa René Ferri; ilustração Gustave Doré. 1ª ed. São Paulo: Lafonte, 2020, p. 64-65).

118

Figura 31 – Gazeta de Notícias, 17 jan. 1882, p. 4

Nessa mesma década são recorrentes as menções à prática da adivinhação nas colunas

policiais. Como exploramos no artigo ―O embaralhar das cartas: a cartomante de Machado de

Assis e de Júlia Lopes de Almeida‖, publicado pela revista Contraponto, em 2020. O estudo

se propõe a uma análise comparatista entre duas adivinhas, uma do conto machadiano, ―A

cartomante‖, e a outra do romance de Júlia Lopes, A intrusa. Mobilizando certo ideal feito

sobre a prática, bem como as descrições apresentadas nos jornais, os dois autores usaram a

ficção para dar vida às suas cartomantes trambiqueiras. Não só anúncios promovendo as

adivinhas, mas também reclamações e alertas emitidos por clientes que se diziam lesados

podem ter servido de inspiração. Alguns desses protestos são apresentados aqui, a título de

exemplificação.

A 19 de novembro de 1884, o periódico de Ferreira de Araújo divulga denúncia contra

um sujeito de nome Pedro Aresse. Segundo informa, o homem atuava como cartomante. No

relatório, a cartomancia e outras práticas esotéricas são associadas à vadiagem. A 1º de

novembro de 1885, no Diário de Notícias, é Arthur Azevedo quem faz declarações a respeito

do exercício. Sob o pseudônimo de ―Eloy, o herói‖, na seção ―De Palanque‖, o cronista

informa ter recebido uma carta de um apreciador. Na correspondência, ―a vítima incauta‖

recrimina a arte adivinhatória e pede que o autor chame a atenção do chefe de polícia, para

que tome providências legais. No entanto, o cliente é alertado de que as cartomantes não

recrutam seus clientes à força e que elas têm licença para exercer a profissão. Por esse motivo,

Azevedo afirma: ―Enquanto houver cartomantes e sonâmbulas, tem a gente certeza de que há

tolos. E que seria dos espertos se não houvesse tolos‖? Ele conclui o assunto com a seguinte

recomendação: ―Fiquem em paz as cartomantes‖.

119

A 4 de março 1886, na primeira página de O Paiz, é publicada a denúncia de um

cliente desiludido. Após consultar a famosa Mme. Josephina, o sr. José Alonso Fernandes se

dirigiu à delegacia para registrar queixa contra a adivinha. Decepcionado pelo fato da pitonisa

não ter nada a ver com a personagem Esmeralda da Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, o

homem também se mostrou indignado com o valor cobrado: 5$000 réis. Ela ainda teria lhe

prometido revelar o número da loteria, caso pagasse 100$. A 28 e 30 de julho o mesmo jornal

divulga uma nota sob o título ―Escândalo‖. Nela, a ―vizinhança indignada‖ faz uma

reclamação contra uma cartomante:

Figura 32 – O Paiz, 30 jul. 1886, p. 3

Semelhantemente, são feitas outras denúncias contra as praticantes do esoterismo, na

maioria dos casos, mulheres, como se observa. A 22 de agosto de 1886, no mesmo jornal,

pede-se que a polícia tome providências para acabar ―com uma maldita casa de cartomancia,

ou casa de dar fortuna‖, localizada na Rua do Sacramento. É descrito o ambiente de

atendimento, que, disfarçado de casa de costureira, conta com ―balcão no meio da sala‖,

―cortinas encarnadas e franja amarela‖, além do altar de ―São Benedito‖. Com uma clientela

tão variada, a dita embusteira cobra de 5$ a 10$ réis por consulta, mas, ao cliente que se

recusa a pagar tal valor, é feita a ameaça de fazer desandar sua fortuna. Mesmo após

denúncias envolvendo a morte de duas pessoas vítima de seus ―remédios‖, a ―bruxa‖ vive a

escapar da polícia. Ao final da nota, há o seguinte alerta: ―Os homens casados, sem filhos, que

se acautelam com tal armadilha, enquanto as autoridades não acabarem com tal infâmia‖.

A 18 de outubro e 1º novembro de 1886 são publicadas duas notas a respeito da ―casa

misteriosa‖ da Rua do Sacramento. Na primeira, alerta-se para os riscos que oferece a

habitante daquela residência; na segunda, há a informação de que em sua morada são

praticadas as ações mais ―negras e vis, desde a sedução de pobres moças donzelas, honestas

120

senhoras casadas, até o estelionato‖. A 1º de dezembro de 1886, em ―Gazeta de Holanda‖, é

Machado de Assis, sob a assinatura de Malvólio, quem trata da cartomancia. Com tiradas

irônicas, o narrador na oitava crônica afirma ter tido um encontro com o Diabo. Na ocasião, o

tinhoso lhe ofertara a oportunidade de realizar qualquer um de seus desejos. Malvólio, então,

confessa seu sonho singular de ser cartomante, destacando pormenores da prática por meio de

recursos satíricos, como a paródia. Esse e outros recursos serão mais bem explorados a seguir.

Voilà ce que l‘on dit sur la bonne aventure106 dans la « Gazette de Hollande »

A partir do que foi apresentado acima, partimos para nossa primeira análise, nessa

dissertação. O texto escolhido consiste na oitava publicação de Machado de Assis, em sua

―Gazeta de Holanda‖. A crônica composta por vinte e cinco quartetos tem nos dois primeiros

a apresentação de um discurso citado, o que nos permite afirmar que o narrador dá voz a um

eu não presente no momento de sua enunciação:

E disse o Diabo: - ―Fala, Que queres ser nesta vida?

Antonino ou Caracala?

Capucho ou jardins de Armida?

―Escolhe, e verás, Malvólio,

Tudo o que quiseres; pede

Um sólio, e terás um sólio, Pede um culto, e és Mafamede‖.

Ainda sem apresentar quem teria sido esse interlocutor do Diabo é dada sequência à

citação no segundo quarteto. Só então o interlocutor é revelado, dado que Malvólio107

é

mencionado na fala da figura diabólica: ―Escolhe, e verás, Malvólio‖. Nesse ponto, o leitor

descobre a quem o Diabo se dirigiu outrora, no caso o narrador-autor da série. Diante disso, o

diálogo continua: ―Tudo o que quiseres; pede / Um sólio, e terás um sólio, / Pede um culto, e

és Mafamede‖.

A partir do terceiro quarteto, o narrador passa a fazer uso do discurso direto,

apresentando, em tom de pilhéria, qual teria sido sua reação à tentadora proposta do Diabo. É

a partir disso, também, que se começa a delinear uma maior liberdade imaginativa do

narrador, dado que ele passa a relatar o conteúdo da conversa que teria tido com o tinhoso.

106 Refere-se ao modo como os profissionais da arte divinatória eram chamados, na França. No jornal

hebdomadário L’annonéen, écho de L’Ardeche, a 15 de setembro de 1842, foi publicado um folhetim

denominado ―La bonne aventure‖. O material se encontra disponível em

https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k58276778.item. 107 Nesse quarteto, vemos o nome Malvólio fazer rima com sólio, sendo, portanto, uma palavra paroxítona.

121

Cabe lembrarmos que, de acordo com Sá Rego (1989), a extrema liberdade de imaginação é

um dos elementos característicos da sátira. Assim, afirma Malvólio:

E eu, respondendo-lhe disse,

Que nem tronos nem altares; Que, na minha mandriice,

Tinha sonhos singulares.

Não fosse o conhecimento de que ele assinava os textos da série, seria somente nesse

ponto que a identidade do narrador seria revelada ao leitor, pois, como vemos, ele diz: ―E eu,

respondendo-lhe, disse‖. Estabeleceu-se, pois, uma relação dialógica em outro tempo que não

o do presente relato. Nisso, reconhecemos um transcurso no tempo, no qual o narrador retoma

algo dito em um passado não definido. Há, assim, uma mudança temporal, dado que o tempo

do enunciado apresentado não corresponde ao tempo da enunciação. Parece ser, portanto, por

meio do transcurso temporal, bem como dos argumentos instaurados ao longo dos

subsequentes quartetos que a crônica ganha um aspecto narrativo, parodiando, ainda por meio

do verso, aquele mesmo conteúdo concernente às cartomantes e que volta e meia era

veiculado nos jornais oitocentistas.

Então, pelos próximos sete quartetos, Malvólio expõe anseios dos quais abriria mão em

sua vida ociosa. O narrador machadiano abnega de várias tentações mundanas em prol da

realização de um sonho singular:

Ou antes, um sonho apenas, Um só desejo, um só, único,

Mais velho que a velha Atenas,

Mais velho que um vintém punido.

Não era ter a coroa

Do Egito nem da Bulgária,

Nem ver as moças de Goa, Nem ter os beijos da Icária.

Nem dormir o dia inteiro Em tapetes persianos,

Sentindo o vento fagueiro

De numerosos abanos.

Digo abanos meneados

Por muitas damas formosas,

Feitos de fios delgados De palma, e plumas, e rosas.

Nem comer em pratos de ouro

Figos secos da Turquia Acompanhado do louro

Néctar que há na Andaluzia.

122

Nem possuir as estrelas Que são tão minhas amigas,

Para um dia convertê-las

Em meias-dobras antigas.

Pois tudo isso, e o mais que pode

Entrar no mesmo cortejo, Duvido que se acomode

Ao meu íntimo desejo.

O narrador, desse modo, dá sequência à sua argumentação a respeito de sua aspiração

pessoal: ―Ou antes, um sonho apenas, / Um só desejo, um só, único‖. Malvólio compara,

mesmo, seu desejo às antiguidades, como a velha Atenas e um vintém punido. Pouco depois,

enumera uma série de caprichos que não correspondem ao seu intento: ―Não era ter a coroa /

Do Egito nem da Bulgária, / Nem ver as moças de Goa, / Nem ter os beijos da Icária‖.

Em cada um dos quartetos, o narrador, além de dizer o que não deseja ser em sua vida,

também dá uma justificativa ao Diabo, baseando-se, possivelmente, em anseios que seriam

almejados por uma coletividade. É o que vemos, especificamente, nos versos a seguir: ―Nem

dormir o dia inteiro / Em tapetes persianos / Sentindo o vento fagueiro / De numerosos

abanos‖. Já nos versos: ―Digo abanos meneados / Por muitas damas formosas, / Feitos de fios

delgados / De palma, e plumas, e rosas‖, Malvólio explica em tom professoral seu desdém por

esses artigos suntuosos.

Assim, pelos próximos versos, ele segue a mesma lógica dos anteriores, apresentando

toda sua apatia por coisas vãs: ―Nem comer em pratos de ouro / Figos secos da Turquia‖ e

―Nem possuir as estrelas / Que são tão minhas amigas‖. O seu ―sonho singular‖ só começa a

ser desvendado a partir dos seguintes versos: ―Pois tudo isso, e o mais que pode / Entrar no

mesmo cortejo, / Duvido que se acomode / Ao meu íntimo desejo‖. No primeiro verso, a abrir

a estrofe subsequente, é o narrador a indagar seu interlocutor:

Sabes tu o que eu quisera?

Quisera ser cartomante, Dizer que espere ao que espera,

E dizer que ame ao amante.

Vemos, aqui, claramente, a relação dialógica estabelecida entre os dois interlocutores.

Ocorre nela uma mistura entre o tempo da enunciação e o tempo do enunciado, uma vez que a

figura maligna é trazida para próximo da enunciação, como se estivesse próxima

temporalmente do narrador. Após confessar seu interesse em se tornar cartomante, Malvólio

apresenta os motivos que o levam a cobiçar a arte adivinhatória:

Saber de cousas perdidas, Saber de cousas futuras,

123

De verdades não sabidas, De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada, Ou se há lá na costa mouras;

Se a costureira – casada –

Chega a depor as tesouras.

Quem é certo moço que anda

De chapéu branco e luneta,

E algumas vezes lhe manda Lembranças por uma preta.

(...)

Tudo isso, e o mais que não cabe

Em verso rápido e breve,

E que a cartomante sabe, Sabe, conta, e não escreve.

É o meu desejo. E tenho Que, se essa cousa me ensinas,

Serei, com o meu engenho,

O doutor destas meninas.

O narrador, assim, parece parodiar as promessas das cartomantes, bem como as queixas

de pessoas que se diziam enganadas pelas profissionais. Como expusemos mais acima, ambos

os conteúdos eram veiculados frequentemente nos periódicos da época. Isso se comprova com

a singela pretensão de ―Saber de cousas perdidas / Saber de cousas futuras‖. As conjecturas

que seguem esses versos e são expressas, em sua maioria, pela oração subordinada ―se...‖,

reafirmam a nossa hipótese, isso porque se referem a possíveis questionamentos ou anseios

por parte da clientela. Alguns outros exemplos são: ―Se a mulher de um diplomata / Vive

enredando as pessoas... / Se há de esperar certa data‖ ou ―Onde para uma pulseira / Um

recibo, um cachorrinho...‖ ou mesmo ―Se há de morrer de um inchaço / Que traz na perna

direita...‖etc. As perguntas visando à solução de tais problemas, de tão repetidas teriam se

tornado uma espécie de lugar-comum, de modo que já seriam esperadas por Malvólio na

condição de cartomante.

É interessante notar que, até aqui, todos os argumentos utilizados são proferidos

unicamente por ele, e que, a não ser no início de sua gazeta, não é feito mais uso da citação

direta. Até esse ponto, o encontro entre Malvólio com o sedutor Diabo parece ilógico,

sobretudo ao levarmos em consideração o conteúdo da conversa. A despeito disso, vemos que

há uma forte relação entre o assunto apresentado no texto de ―Gazeta de Holanda‖ com o que

124

circulava nos jornais da época, como os anúncios de práticas esotéricas e as recorrentes

denúncias contra as adivinhas, relatadas geralmente em colunas policiais.

Em outras palavras, a publicação de Machado de Assis estabelece contato direto com o

meio no qual foi produzida. Assim, a questão em geral abordada em textos escritos em prosa,

aparece agora versificada e acompanhada por uma pitada a mais de comicidade e

descontração. Isso nos demonstra que o uso do verso não é um obstáculo quando também

empregado na composição do gênero cronístico. As curiosidades e possíveis perguntas feitas à

cartomante ainda parecem contribuir para a construção do que poderia ser um perfil dos

clientes, no caso, as clientes. É provável que as características associadas a esse perfil

estivessem relacionadas ao público que buscava pelas práticas da cartomancia.

Malvólio parece chegar ao fim de sua explanação ao Diabo, nos versos: ―Tudo isso, e o

mais que não cabe / Em verso rápido e breve‖. O narrador-cronista, com isso, parece

distanciar seu atual ofício de versejador daquela tão almejada prática esotérica. Isso fica mais

claro com os versos ―E que a cartomante sabe, / Sabe, conta e não escreve‖. Reconhecemos

essa dissociação pelo fato de colocar em ―verso rápido e breve‖ as tarefas que a cartomante

―sabe, conta e não escreve‖. Quer dizer, Malvólio não só se reafirma como o produtor da

crônica, como também elenca tudo ou quase tudo aquilo que poderia ser feito e dito pelas

adivinhas.

Desse jeito, as marcas ficcionais, como a relação entre Malvólio e o Diabo, são

elementos que levam a publicação a um contexto ficcional, mas inscrito em uma realidade

empírica, ao trazer referências reais. Vemos essas referências, por exemplo, nos versos em

que Malvólio afirma esperar aprender com o Diabo as práticas da cartomancia: ―É o meu

desejo. E tenho / Que, se essa cousa me ensinas‖. Já nos versos: ―Serei, com o meu engenho /

O doutor destas meninas‖, parece explicitar que seu público seria formado, se não em

específico, mas quase que majoritariamente, por mulheres. Ele ainda demonstra ter certa

autoridade sobre seu trabalho e seu público, ao afirmar que seria com seu ―engenho o doutor

destas meninas‖.

Ao levarmos em consideração questões sociais da época, como o espaço destinado às

mulheres e aos homens, reconhecemos certa inclinação em caracterizar a clientela da

cartomante como sendo formada por mulheres. Isso vai ao encontro de outros textos de

Machado, como é caso do conto ―A cartomante‖108

, no qual a narrativa tem início com o

108 Cf. MACHADO DE ASSIS, A cartomante. In: Machado de Assis: obra completa em quatro volumes,

volume 2. Org. Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa Jahn. – 3ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, p.

434-439.

125

relato de Rita sobre a visita que fizera a uma cartomante; e o romance Esaú e Jacó109

, no qual

a narrativa se inicia com a personagem Natividade, mãe dos protagonistas, subindo ao morro

do Castelo em busca de Bárbara, a Cabocla do Morro Castelo.

Outro aspecto a chamar a atenção é que enquanto uns estariam inclinados às coisas da

ordem pública, como a política e a loteria, outros estariam inclinados às coisas da ordem do

sobrenatural, como as práticas da cartomancia. Essas suposições são manifestas mais

claramente nas últimas estrofes da crônica:

Que a nós outros coube a sorte

Política e loteria,

Cousas que têm, como a morte, Mistério e melancolia.

Mas que hão de fazer as damas Com a alma incendiada

Das mesmas secretas flamas

E ao mesmo abismo inclinada?

Procuram timidazinhas

Aquelas claras vivendas,

E crescem as adivinhas, Não dão para as encomendas.

Pois se tu, Diabo amigo,

Me pões capelo de mestre, Juro-te que dás comigo

No paraíso terrestre.

Cá virão as Evas novas

Inquietas, desordenadas,

Pedir-me, com ou sem provas, As verdades mascaradas.

E olha que farei no ofício

Notáveis melhoramentos, Tapetes, largo edifício,

E o preço – mil e quinhentos.

Malvólio.

(GAZETA DE HOLLANDA, 1886, p. 1)

Ao passo que uns se inclinariam sobre um abismo da ordem pública, outros se

inclinariam sobre um abismo da ordem do sobrenatural, o que, em certa medida, os nivelaria.

Mesmo sem se dirigir a alguém em especial, as lacunas, ou antes, as referências feitas ao

longo do texto, poderiam ser reconhecidas pelos leitores. Ao se referir às pessoas que

109 Cf. MACHADO DE ASSIS, Esaú e Jacó. In: Machado de Assis: obra completa em quatro volumes, volume

1. Org. Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecílio, Heloisa Jahn. – 3ª ed. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, p. 1047-

1193.

126

procuravam pelas práticas esotéricas, vemos uma clara referência ao crescente número de

cartomantes na cidade (―e crescem as adivinhas, / Não dão para as encomendas‖), o que talvez

fosse resultado da eclosão no fluxo imigratório no Brasil, como apontado por Ubiratan

Machado (1996).

Na ausência de um sotaque italiano, feito o daquela sibila trambiqueira, de ―A

cartomante‖, Malvólio tenta persuadir o ser maligno a realizar seu intento: ―Pois se tu, Diabo

amigo, / Me pões capelo de mestre / Juro-te que dás comigo / No paraíso terrestre‖. Ainda que

ele não especifique o local de encontro, como o faz Lélio, em uma de suas ―Balas de

estalo‖110

, o narrador da gazeta assegura cá um ―paraíso terrestre‖, pois as filhas de Eva irão

procurá-lo ―inquietas e desordenadas‖. Assim como no conto, em que Rita busca pela

cartomante na tentativa de ter respostas sobre os sentimentos de seu amante, nessa crônica as

damas querem decifrar segredos, mesmo na ausência de uma comprovação (―Pedir-me com

ou sem provas, / As verdades mascaradas‖), o que acaba revelando certa ingenuidade da parte

delas.

No último quarteto, ele destaca os resultados monetários que a prática da cartomancia

poderia trazer: ―E olha que farei no ofício / Notáveis melhoramentos, / Tapetes, largo edifício,

/ E o preço – mil e quinhentos‖. Para quem vê na arte da adivinhação o caminho certo para

atingir o sucesso, parece infundado a busca de riqueza em coisas vãs, como seriam aquelas

buscadas por seus contemporâneos. Bastasse, talvez, um baralho de cartas, e algumas outras

bugigangas, para que obtivesse seu tão desejado excito financeiro. Mérito seu com um toque

diabólico, a empreitada seria uma garantia de futuro.

À semelhança daqueles condenados no vigésimo canto do Inferno da Divina Comédia,

que pagam duras penas por outrora terem se aventurado na arte divinatória – algo já apontado

na epígrafe desses ―Sonhos singulares‖ –, nosso narrador machadiano também quer seguir no

ofício de diseur de bonne aventure, muito embora arriscando seu próprio futuro. Seria, pois,

desvendando segredos e mistérios desta e da outra vida que Malvólio pretendia tornar

realidade seu sonho, ou melhor, sua ambição nos negócios.

É a fé que nos salva

Bem como a cartomancia, a hipnose foi uma prática habitual e muito procurada pela

população oitocentista brasileira. Também conhecida por ―sugestão hipnótica‖, foi utilizada

110 Retornaremos a essa crônica mais adiante.

127

por médicos como meio terapêutico. Nela, o paciente era induzido por meio do sono ao

restabelecimento do mal a que era acometido, fosse ele de ordem física, psíquica ou

intelectual. Como esclarece o antropólogo Emerson Giumbelli, em seu estudo O cuidado dos

mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo (1997):

(...) O efeito do sono hipnótico, aliás considerado idêntico ao sono natural, consistia em um aumento da ‗sugestibilidade‘: o cérebro passaria a um

estado tal que a idéia sugerida se imporia com uma força extraordinária e

determinaria o cometimento do ato correspondente. (...) (GIUMBELLI, 1997, p. 153)

Tal exercício foi constantemente recriminado por membros da imprensa, de órgãos

oficiais e da Igreja, isso porque especulavam que, em mãos erradas, o hipnotizador poderia

induzir seu paciente ao cometimento de crimes. Desse modo, ―manteria o indivíduo

responsabilidade por seus atos contrários à lei?‖. Essa questão tangente em conferências e

congressos médicos foi debatida amplamente nas páginas dos jornais, levando mesmo à

publicação de teses sobre o assunto. Uma delas foi apresentada à Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro, no final da década de 1880. De autoria de Francisco Fajardo, o estudo ficou

popularmente conhecido como Tratado de hipnotismo111

.

Para tratar da prática rotineira no século XIX, Giumbelli dedica especial atenção em

―A medicina perigosa: o crepúsculo dos hipnólogos‖, subseção do segundo capítulo de seu

estudo. Nela, o pesquisador chama a atenção para o grande divulgador da prática na cidade do

Rio de Janeiro, o médico obstetra e professor da Faculdade de Medicina, Érico Coelho. Em

janeiro de 1887, teria ele apresentado à Academia Imperial de Medicina a memória do que

seria a ―cura do beribéri‖ através da sugestão hipnótica. Sua declaração repercutiu a ponto de

ressurgir, a 30 de junho de 1887, no discurso anual do presidente da mesma associação, o

médico Souza Lima. Muito se especulou a respeito da prática que poderia trazer tanto

benefícios como malefícios quando mal empregada.

Nos jornais dessa época são recorrentes os alertas para os danos que a hipnose oferece

às famílias. Em geral, o desprestígio da atividade resultava do estabelecimento feito com o

charlatanismo, já que os hipnotizadores eram vistos como ludibriadores da fé alheia. Por isso,

o pesquisador afirma:

Portanto, de um lado, o argumento de que a medicina estaria sendo

banalizada pelas pretensões curativas da nova doutrina, e, de outro, a advertência sobre a possibilidade da reintrodução de concepções

111 Há vários estudos sobre o hipnotismo, publicados no século XIX. Alguns deles, em língua francesa, estão

disponíveis na plataforma da Bibliothèque Nationale de France:

https://gallica.bnf.fr/services/engine/search/sru?operation=searchRetrieve&version=1.2&query=%28gallica%20

all%20%22hypnotisme%22%29&lang=fr&suggest=0.

128

francamente superadas ou da validação de práticas charlatanescas e ignóbeis. E a julgar pelas referências que encontramos nos trabalhos de Fajardo e de

Silva, hostilidades partidas de dentro do meio médico eram recorrentes

contra os defensores da ‗terapia sugestiva‘. Apreensões e acusações traduziam o mal-estar gerado por uma aproximação perigosa de doutrinas

médicas com saberes e práticas desqualificados e ilegítimos. E entre tais

saberes e práticas, estava o ‗espiritismo‘. (GIUMBELLI, 1997, p. 167)

Além da associação feita entre hipnose e charlatanismo, também se fazia uma

aproximação com as práticas da doutrina espírita, assunto, então, em voga e que retomaremos

na próxima subseção. Muitas das críticas feitas contra a ―sugestão hipnótica‖ partiam dos

redatores da folha católica O Apóstolo. Com frequência, alertavam a população para os riscos

que tal exercício oferecia contra a saúde pública e a moral das famílias. Igualmente, acusavam

os colaboradores de O Paiz de propagandistas, pelo fato de divulgarem notícias sobre tudo o

que acontecia na Europa e que estivesse relacionado ao hipnotismo, como congressos, livros

ou experiências. O novo meio terapêutico seria tão perigoso a ponto de ser uma ameaça à

existência da medicina tradicional e da farmácia, devido suas promessas de cura.

A 14 de fevereiro de 1887, em matéria intitulada ―Ler, cortar e traduzir‖, o jornal O

Paiz trata das vantagens da hipnose. Nela, são citados casos bem sucedidos de pessoas que,

por meio da sugestão hipnótica, aprenderam a ler e a escrever. A 19 de março, o mesmo

periódico, além de classificar o método como ―moderno recurso terapêutico‖, também

apresenta o relato das benfeitorias da nova prática. Toda essa repercussão fez com que o

Jornal do Commércio, a 20 de março, alertasse o público para os riscos do novo costume,

chamando a atenção do leitor para as matérias divulgadas pelo Paiz. Semelhantemente, no

mesmo dia, O Apóstolo faz duras críticas aos hipnotizadores, identificando como ―imoral e

perigosa‖ a atividade por eles exercida. Ainda é citado o estudo de um autor francês que

expõe os perigos da hipnose. Ao final do texto, pede-se que a moralidade das famílias seja

defendida e que tal exercício não seja adotado pela sociedade.

Poucos dias depois, a 22 de março, O Paiz transcreve uma carta. Considerada como

uma ―grande questão‖, um médico relata ter conseguido tirar através do hipnotismo todas as

dores físicas, inclusive os suores noturnos, de uma mulher tísica. No dia seguinte, é Valentim

Magalhães quem faz o alerta, na primeira página do Diário de Notícias. No texto ―A

Hypnotopathia‖, o autor afirma não impugnar a ―nova medicina‖ e constata:

129

Figura 33 – Diário de Notícias, 23 mar. 1887, p. 1

Apesar disso, aponta para um inconveniente que traria a ―sugestão‖, caso viesse a se

tornar um sistema de cura. No caso, a ―ruína das boticas e das farmácias‖. Magalhães

considera que o hipnotizador não precisaria desses recursos tradicionais, pois bastaria

adormecer e ordenar ao doente que não sentisse mais seus males, dispensando, assim,

qualquer outro recurso já comprovado cientificamente. Somente isso já seria suficiente para o

restabelecimento do enfermo. Ao concluir, faz ele recomendações aos pais de família e às

senhoras, para que tomem as devidas precauções, em relação ao que chama de ―boticários da

alma‖.

No dia seguinte, O Apóstolo publica em sua primeira página a matéria ―O

hypnotismo‖. Além das duras críticas à nova terapia, ao espiritismo e ao curandeirismo,

sugere-se que aumentem o número de hospícios e de cemitérios na cidade, aludindo às

possíveis consequências desses métodos alternativos. Ao final, declara-se que não é de se

admirar que o povo ―ignorante seja supersticioso e siga práticas grosseiras‖, mas é de se

surpreender que médicos tenham seguido cegamente ―às imaginosas curas milagrosas‖. Já na

―Crônica da Semana‖, publicada a 27 de março de 1887, na Gazeta de Notícias, o autor

chama de ―moda‖ à prática que promete curar todos os problemas. Para demonstrar sua

influência, o cronista em tom pilhérico afirma ter escrito seu texto sob o efeito da sugestão

hipnótica:

130

Figura 34 – Gazeta de Notícias, 27 mar. 1887, p. 1

A 30 de março, O Paiz volta à questão, ao tratar das controvérsias apontadas pela

folha católica. Considerada como ―uma questão séria, científica, de grande alcance social‖,

são destacados os benefícios do hipnotismo quando empregado da maneira correta. Uma

última publicação a que reportamos é a de 22 de abril de 1887, de O Apóstolo. Na matéria

―Superstição e seus efeitos‖, os redatores recriminam a população por se deixar dominar por

―criminosos‖ que invadem não só o campo religioso, mas também o científico. Para

exemplificar, citam um folhetim apresentado pelo Jornal do Commércio, no qual é feito um

reclame contra médicos que legalizam óbitos de clínicas de ―curandeiros‖ espíritas ou

hipnotizadores. Ao finalizar, os autores do texto sugerem aos cidadãos que evitem esses

―exploradores da ignorância ou boa fé do público‖, pois ―tardias serão as lágrimas sobre a

sepultura de um ser querido‖.

Nesse ínterim, é Malvólio quem opina sobre a medicina hipnótica, demonstrando

mesmo certo receio em relação à nova prática. Na próxima subseção, exploraremos como os

elementos satíricos foram usados para fazer esse reclame, nessa sua ―Gazeta de Holanda‖.

Voilà ce que l‘on dit sur l‘hypnotisme dans la « Gazette de Hollande »

Ao longo de vinte e cinco estrofes, a hipnose foi tematizada nessa que vem a ser a

décima sétima publicação, datada de 6 de abril de 1887. Ainda sem mencionar o hipnotismo

nas primeiras duas estrofes, Malvólio inicia anunciando uma novidade que chega a dar sono a

toda gente. Ao mesmo tempo, porém, confidencia sua mais completa dificuldade em colocar o

131

nome de tal prática em seus versos, explicitando com isso o processo criativo de mais uma

gazeta:

Temos nova passarola

De grandes asas escuras, Mexidas por certa mola

Que dá sono às criaturas.

Chama-se – não sei maneira De pôr este nome em verso...

Palavra, é grande canseira,

Tão duro é ele e reverso.

Deito sílaba de lado,

De outro sílabas arranco,

Trabalho desesperado E fica o papel em branco.

Vá lá: medicina hipnótica, Custou, mas saiu... Parece

A cousa um tanto estrambótica,

E mais se a gente adoece.

Após explicitar tal percalço na composição de seu texto, o narrador mostra que, depois

de ter deitado e arrancado sílabas, finalmente conseguiu colocar em verso aquilo que tanto

custou a sair, a dita ―medicina hipnótica‖. A prática seria ainda mais ―estrambótica‖ quando

―a gente adoece‖, tendo em vista sua aplicação como método terapêutico. A partir daí, ele

chama a atenção para o fato de ser a hipnose uma medicina, embora nela também se opere a

sugestão. Pouco depois, esclarece o motivo de haver essa distinção, que, como mostramos, era

discutida pela imprensa da época.

Notem bem – é medicina,

Posto a sugestão opere; Cá o meu bestunto opina

Que um nome de outro difere.

Há em sugestão um jeito

Teórico feio, enigmático;

Mas medicina é perfeito, Perfeito, rápido e prático.

Quando aqui há poucos anos,

Já me não lembra em que dia, Deu entrada entre os humanos

A exata dosimetria,

Disse eu: ―Invenção potente!

Perfeição do formulário!

Consolação do doente!

Fortuna do boticário!‖

132

Apesar de ―sugestão‖ causar um efeito ―enigmático‖, para o narrador o emprego da

palavra ―medicina‖ seria o mais adequado, o que o fez até se lembrar de mais uma matéria da

área da saúde, a dosimetria112

. Essa última aludia à maneira pela qual uma medicação era

administrada ao enfermo. Segundo Malvólio, a sugestibilidade como recurso médico seria

uma espécie de ―consolação‖ aos doentes e uma via de ―fortuna‖ aos boticários. Se, por um

lado a medicina dosimétrica seria ―outro inimigo da métrica‖, isso porque interviria

diretamente na composição do verso e provavelmente da rima, por outro também seria uma

ameaça aos métodos convencionais há muito empregados pela velha ciência:

Mas daí a pouco ouvia (Outro inimigo da métrica)

Em vez de dosimetria,

Medicina dosimétrica.

E isso que cuidava que era

Farmácia, era uma doutrina, Uma escola em primavera

Contra a velha medicina.

Não digo que o sugestivo Hipnotismo também seja

Ária sobre outro motivo,

Nem igreja contra igreja.

Digo... Não sei como diga...

Não sei como diga... Ai, musa Do diabo e de uma figa!

Você ri! Você abusa!

Digo (vá) digo que, quando Cuidava que esta matéria,

Da qual não estou mofando,

Que é séria, três vezes séria,

Não pelas razões do grave

Apóstolo, que cogita

Não fazer dela uma chave P‘ra prender moça bonita;

Nas três últimas estrofes citadas, ao tentar argumentar que o hipnotismo não é uma

doutrina feita aquela ―escola em primavera‖, Malvólio explicita um tom de comicidade, ainda

que de forma ―despretensiosa‖. Essa mistura do sério e do cômico permeia a composição da

crônica, consistindo em mais um traço satírico a ser utilizado. É por meio disso que o narrador

112 Foi justamente a medicina dosimétrica o tema da primeira crônica de Lélio, em ―Balas de estalo‖. Na

publicação de 2 de julho de 1883, ele declara: Se a dosimetria quer dizer que os remédios dados em doses exatas

e puras curam melhor ou mais radicalmente, ou mais depressa, é, na verdade, grande crueza privar os restantes

enfermos de tão excelso benefício. Uns ficarão meio curados, ou mal curados, outros sairão dali lestos e

pimpões; e isto não parece justo. (LÉLIO, Balas de estalo, 1883, p. 2)

133

demonstra certa insegurança para lidar com a questão, recorrendo, por ora, à sua musa não

muito inspiradora: ―Digo... Não sei como diga... / Não sei como diga... Ai, musa / Do diabo e

de uma figa!‖. Enquanto isso, seu leitor parece rir do embaraço provocado: ―Você ri! Você

abusa!‖. Pouco depois, ao afirmar que não faz troça da matéria que é ―séria, três vezes séria‖,

alude àquelas razões dadas pelo periódico O Apóstolo. Como já expusemos aqui, a folha

católica constantemente alertava seus leitores para o risco que a prática oferecia contra a

segurança e a moral das famílias brasileiras.

Em seguida, o narrador faz várias insinuações a respeito da maneira pela qual a

―academia‖ lidaria com a questão. A hipnose não seria tratada por ela com a devida seriedade

requerida. Isso fica implícito em uma suposição levantada pelo próprio narrador: ―Supunha

que a academia, / Por sua vez, lendo e vendo / Ia explicar a teoria‖. Com isso, ao constatar ―os

graves problemas‖, o assunto seria tratado com maior circunspecção. A ―questão aberta‖

suscitaria, provavelmente, uma maior exposição de ideias e opiniões a seu respeito. Mas,

contrariando os propósitos de um órgão da ciência em examinar e estudar com

responsabilidade a descoberta, a sociedade científica seguiria por um caminho mais arriscado,

como vem afirmar:

Em vez disso, a academia

Dá-lhe duas passadelas

De escova, e manda a teoria

Curar as nossas mazelas;

Isto é que me põe os braços

Caídos, e a boca aberta... E já daqui vejo os passos

Desta nova descoberta.

Atrás dos homens sabidos

Virão os que nada sabem,

E gritarão desabridos

Até que os astros desabem.

Chegaremos aos cartazes

E aos anúncios de vinhetas, Pílulas Holloway capazes

De dar beleza às caretas.

Ora, há trinta anos havia Xarope que se chamava

Do Bosque, e tanto valia,

Que tudo e algo mais curava.

Hoje, esse licor exótico

Não tem uso, interno ou externo... Receio que o sono hipnótico

134

Chegue a tudo... e ao sono eterno.

Malvólio

(GAZETA DE HOLLANDA, 1887, p. 1)

O órgão oficial ao invés de explicar a teoria manda aplicá-la, de modo a ―curar as

nossas mazelas‖. Esse desleixo deixaria o narrador de ―braços caídos, e a boca aberta‖, pois

ao que parece os que praticam a nova descoberta não são sabidos, feito aqueles homens da

velha medicina. Nesse ínterim, o hipnotizado, levado pela força da fé, correria até risco de

vida ao crer em uma atividade de pouca importância para os acadêmicos. Como outros

medicamentos e métodos terapêuticos, que, inclusive, prometiam dar ―beleza às caretas‖

(Pílulas Holloway) ou curar ―tudo e algo mais‖ (Xarope do Bosque), a hipnose parecia ser

mais uma ameaça contra a saúde pública. Apesar da seriedade da matéria, seu alerta é dado

com toques de descontração. Não é à toa que o narrador afirma ao final de sua crônica ter

―Receio que o sono hipnótico / Chegue a tudo... e ao sono eterno‖.

“Sou meio espírita”

Se até o ano de 1857 os fenômenos tidos como ―mesas girantes‖ despertavam interesse

do público por consistir na movimentação de objetos independentes da ação humana, a partir

da codificação e publicação de Le Livre des Esprits em 1857, tais fenômenos passaram a ser

atribuídos aos desencarnados. O espiritismo surgia, assim, como a terceira revelação divina,

fruto dos proclamas e princípios anunciados por espíritos, simultaneamente em vários lugares

no mundo.

Foi em meio à estreia de Machado de Assis como cronista, no jornal Diário do Rio de

Janeiro, na década de 1860, que a doutrina espírita começou a ser difundida no Brasil,

despertando a curiosidade de uma classe emergente, seduzida em se comunicar com o Além.

Como destaca Ubiratan Machado (1996), a nova crença logo despertou a devoção dos ditos

intelectuais e homens das Letras, sendo mais bem difundida entre o estado da Bahia e do Rio

de Janeiro.

Como demonstramos no início desse capítulo, as primeiras menções feitas por

Machado de Assis ao espiritismo já eram indícios de um tom que iria se intensificar ao longo

das décadas, sobretudo em decorrência da ascensão espírita em outros círculos sociais. A

publicação de obras espíritas e a tradução para o português desses mesmos textos escritos

135

originalmente em francês, como foi o caso de O Livro dos Espíritos, traduzido e lançado em

1875, pela editora de Baptiste-Louis Garnier, permitiu que a doutrina se popularizasse.

Ademais, sua ascensão foi fruto do que Ubiratan Machado (1996) chama de

sincretismo religioso, isto é, teria ocorrido no país uma mistura religiosa, na qual as práticas

do catolicismo popular, das crenças religiosas de origem negra e das seitas afro-brasileira

teriam se misturado a ponto de despertar o interesse da população oitocentista113

, sempre

receptiva a tudo aquilo que envolvia o universo místico. Como bem destaca o autor:

Com este acelerado processo de sincretismo, o nome espiritismo passou a

abarcar uma gama imensa de manifestações religiosas, algumas bem

distintas da matriz kardecista. Mas para o povo, bastava uma tintura de maravilhoso e a evocação dos mortos, para ser enquadrado como

espiritismo. O quadro era confuso, sendo difícil desemaranhar os fios que

entrelaçavam as várias crenças. Destacava-se, porém, com um notável vigor, um espiritismo popular, de perfil eminentemente brasileiro. Poder-se dizer,

parodiando a parábola evangélica, que havia muitos chamados e muitos

escolhidos. Afinal, tudo em nossa sociedade patriarcal e escravocrata era

convidativo ao mágico, às expectativas paranormais. (MACHADO, 1996, p. 115-116)

Assim, de acordo com o estudioso, surgia ―(...) se não nominalmente, pelo menos

efetivamente, a cisão entre espiritismo popular e das elites, entre espiritismo de terreiro e de

mesa, distinção tão brasileira‖ (MACHADO, 1996, p. 131). Seria essa a característica

fundamental do espiritismo brasileiro. Em outras palavras, a doutrina advinda da França teria

ganhado ares tropicais através de sua mistura com diferentes crenças locais.

Dentro da produção machadiana, essa temática figurou não só em contos e romances

como ainda e, principalmente, em suas crônicas. O escritor responsável por criar personagens

tão marcantes em nossa literatura foi um crítico ferrenho à nova doutrina, sendo, mesmo,

apontado como o mais intransigente dentre os autores oitocentistas. Além dele, Ubiratan

Machado (1996) apresenta uma série de escritores que se converteram ao espiritismo ou, pelo

contrário, mostraram-se muito céticos em relação à crença. Só para citar alguns, José de

113 Exemplo disso é o mesmerismo, batizado como magnetismo animal. Essa prática teve início na França, entre

o período de 1778-85, pelo médico austríaco Franz Anton Mesmer. Ela se tornou recorrente no final do século

XVIII e se popularizou no Brasil em meados do século XIX. O magnetismo animal consistia na transmissão de fluidos energéticos de um indivíduo sadio a outro que estivesse doente. Outro exemplo é o sonambulismo, que

também surgiu no mesmo período. Ubiratan Machado afirma que a prática era geralmente exercida por

mulheres. Assim, ―o sonambulismo apregoava o dom de leitura do pensamento, a vidência, o poder de atuar

sobre os espíritos perturbadores e de combater os fluidos maléficos que persigam a pessoa. O dom da visão

extra-sensorial se transforma em rendosa profissão. E todas essas sonâmbulas se proclamam discípulas de

Mesmer, praticantes do mesmerismo‖ (MACHADO, 1996, p. 43). Essas duas práticas são abordadas também em

O Livro dos Espíritos. No Brasil, elas se tornaram comuns; é nesse sentido que o estudioso acrescenta que com

a codificação da doutrina espírita em 1857, e o início de suas práticas no país, tudo o que envolvia o contato com

o Além passou a ser denominado como espiritismo. Outros dois estudiosos que se voltam para a ascensão

espírita são Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, em Alan Kardec: o educador e o codificador (2019).

136

Alencar114

, Quintino Bocaiúva115

, Manuel de Araújo Porto Alegre (barão de Santo Ângelo)116

e Castro Alves117

são nomes de autores e intelectuais que tiveram algum contato com a

doutrina recém chegada, tematizando-a em algumas de suas produções. Como exemplificação

de dois autores que apresentam perspectivas distintas sobre as atividades espíritas, ou a ela

associadas, podemos citar Joaquim Manuel de Macedo e Júlia Lopes de Almeida.

O primeiro chegou a receber uma longa carta do escritor Porto Alegre, cujo conteúdo

era uma verdadeira aula de iniciação nas práticas espíritas. Na correspondência, Porto Alegre

chega a relatar as constantes evocações ao espírito de Gonçalves Dias, poeta falecido a 3 de

novembro de 1864. Entretanto, antes mesmo da codificação da doutrina na França, Joaquim

Manuel de Macedo já havia tematizado em A moreninha, romance publicado em 1844,

práticas que, posteriormente, passaram a ser associadas ao espiritismo. Isso pode ser visto,

mais precisamente, no capítulo XIII, intitulado ―Os quatro em conferência‖118

. Já a segunda, a

autora Júlia Lopes de Almeida, assim como Machado, adotou um tom mais crítico em suas

produções, de modo que as práticas associadas à doutrina espírita, tal como a cartomancia,

foram apresentadas como charlatanismo. É o que vemos no capítulo X de seu romance A

intrusa119

, publicado como folhetim em 1905, e como livro em 1908.

A espiritualidade e o contato com os mortos parece ser um assunto recorrente em

obras datadas desse período. Mesmo antes da codificação do espiritismo por Allan-Kardec, o

assunto já figurava em obras de literatos mundo afora, sempre envolvidos pelo assunto.

Exemplo disso é o que vemos, en passant, na Viagem à roda do meu quarto (2008, p. 77-

114 Como mostra Ubiratan Machado, José de Alencar em Guerra dos mascates alude à sua época como ―século

de espíritas em que se tiram fotografias às almas do outro mundo‖. 115 Quintino Bocaiúva foi jornalista, político e um dos signatários do Manifesto Republicano, em 1870. Ficou

fascinado pela doutrina espírita durante um momento em que esteve adoentado. Segundo Ubiratan Machado,

Bocaiúva chegou a formar uma razoável biblioteca de obras doutrinárias, tendo comparecido, para a surpresa de

muitas pessoas, à inauguração de uma nova sede da Federação Espírita Brasileira, no Rio de Janeiro, em 1911. 116

Era um praticante fervoroso da nova doutrina. Tematizou a mediunidade em sua peça Os voluntários da

pátria, em 1866. A obra aborda o magnetismo, que, por essa época, já era identificado ao espiritismo. Com sua

conversão, a temática passou a se fazer mais presente em sua obra, como é o caso de Colombo. 117 O poeta começou a se interessar pelo estudo da doutrina espírita ainda em 1867, quando chegou a Salvador

para ver a estréia de seu drama Gonzaga. Foi na Bahia onde surgiu o primeiro jornal espírita no país, intitulado

O Echo d’Além-Túmulo. Segundo Ubiratan Machado (1996), não é possível estabelecer relações entre Castro Alves e a folha espírita, mas diretrizes espíritas são discerníveis em sua peça D. Juan ou a prole dos saturnos. 118 No capítulo, a personagem Paula, muito estimada por D. Carolina, a quem serviu de ama, tem um ataque

depois de ser forçada a beber pelo alemão Keblerc, amigo da família. Por esse motivo, as mulheres de casa, e os

quatro amigos de Carolina, buscam saber o motivo do ataque, levantado a hipótese de ela estaria tomada por um

espírito maligno. Os quatro rapazes, dentre eles Augusto, passam a buscar uma solução para a recuperação da

ama, recorrendo à medicina homeopática e ao magnetismo animal. Ver Macedo (2013, p. 100-106). 119 No capítulo X do romance, a baronesa, mãe da falecida esposa de Argemiro, protagonista do romance, busca

pela cartomante D. Alexandrina na tentativa de encontrar um meio de distanciar a governanta Alice de seu ex-

genro e de sua neta Gloria. Dessa maneira, a baronesa busca o auxílio das práticas esotéricas para distanciar a

jovem, considerada como uma intrusa na vida da família. Ver Almeida (1908, p. 137-150).

137

84), do autor francês Xavier de Maistre, publicado em 1794. Na obra, há uma menção ao

sonambulismo, prática que, posteriormente, passaria a ser associada à doutrina espírita.

Depois de codificada e difundida, a nova crença suscitou ainda mais engajamento e

debate, tal como em Spirite: nouvelle fantastique, de Théophile Gautier (2000). Publicada em

1866, a obra foi a primeira a ficcionalizar as ideias espíritas, após sua ascensão, na França. O

tema também está presente no conto fantástico ―Águia branca‖, do autor russo Nicolai Léskov

(2012). Escrita em 1880, a sátira trata de política e espiritismo. Outro a mencionar a questão

foi o francês Marcel Proust (2019), em seu Em Busca do Tempo Perdido Volume I: no

caminho de Swann, publicado em 1913. Nele, é feita curta menção ao ―fenômeno das mesas

giratórias‖. Tal atividade, como já assinalamos, consistia na movimentação de objetos e afins

sem interferência humana. O fato costumava reunir curiosos, nos antigos salões. Com a

ascensão do espiritismo tais fenômenos passaram a ser atribuídos aos espíritos.

Já Machado de Assis por mais de uma vez tratou da questão espírita. Em uma delas,

como na ―bala de estalo‖ de 5 de outubro de 1885, aproveitou da máscara de Lélio para relatar

um acontecimento sobrenatural. Numa clara troça contra a crença, o narrador relata ter ido a

uma sessão, na Federação Espírita Brasileira (FEB). Criada em 1884, ela foi uma forma de

divulgar a doutrina kardecista e responder a ataques da imprensa e de órgãos oficiais. O relato

se inicia por um diálogo com o leitor: ―Mal adivinham os leitores onde estive sexta-feira. Lá

vai; estive na sala da Federação Espírita Brasileira, onde ouvi a conferência que fez o Sr. M.

F. Figueira sobre o espiritismo‖ (LÉLIO, Balas de Estalo, p. 2). A novidade, que certamente

já era surpreendente, espantaria, ainda mais, depois da confissão que se segue:

Achava-me em casa, e disse comigo, dentro d‘alma, que, se me fosse dado ir em espírito à sala da Federação, assistir à conferência, jurava converter-me à

doutrina nova.

De repente, senti uma coisa subir-me pelas pernas acima, enquanto outra coisa descia pela espinha abaixo; dei um estalo e achei-me em espírito, no ar.

No chão jazia o meu triste corpo, feito cadáver. Olhei para um espelho, a ver

se me via, e não vi nada; estava totalmente espiritual. Corri à janela, saí,

atravessei a cidade, por cima das casas, até entrar na sala da Federação. (BALAS DE ESTALO, p. 2)

Ao final da crônica, reforçando a provocação, o narrador relata que, ao retornar para

casa, encontrou seu corpo tomado pelo diabo e que esse leu o anúncio de um novo

medicamento que dizia curar todas as doenças. Isso fez com que o debochado narrador

associasse o fármaco àquela doutrina:

Aqui o diabo sorriu tristemente com a minha boca, levantou-se e foi à mesa, onde estavam as folhas do dia. Tirou uma, mostrou-me o anúncio de um

medicamento novo, o rábano iodado, com esta declaração no alto, em letras

grandes: ―Não mais óleo de fígado de bacalhau‖. E leu-me que o rábano

138

curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia curar – pretensão (acrescentou ele com um sorrido diabólico) – pretensão de todo

medicamento novo. Talvez quisesse fazer nisto alguma alusão ao

espiritismo. O que sei é que, antes de restituir-me o corpo, estendeu-me cordialmente a mão, e despedimo-nos como amigos velhos:

- Adeus, rábano!

- Adeus, fígado! Lélio (BALAS DE ESTALO, p. 2)

Fica implícita, pois, a sugestão segundo a qual a nova doutrina surgia apenas como um

atrativo para substituir outras já existentes que, por serem concepções do passado, já não

supriam mais a busca das pessoas, assim como o novo medicamento (que prometia a cura de

todas as doenças) ou com o imaginário relacionado ao diabo, já caindo em desuso. Seria de se

esperar, portanto, que, a despeito do aumento progressivo do número de adeptos, também essa

novidade se tornasse superada, vindo a ser suplantada por algo novo, que poderia surgir a

qualquer momento. Não é à toa que os dois se despedem com um ―Adeus, rábano!‖, dado ao

novo seguidor do espiritismo e um ―Adeus, fígado!‖, dado ao diabo, que, a essa altura, pode

ser interpretado como alusivo a concepções ultrapassadas de um passado muito recente.

Na série seguinte denominada ―A + B‖, Machado recorreu à estrutura dialógica para

compor suas crônicas. Sob a assinatura de João das Regras, os textos apresentam um diálogo

entre duas personagens, nomeadas A e B. Na conversa, as personagens dialogam sobre

acontecimentos da semana. Em uma delas, datada, mais especificamente, de 28 de setembro

de 1886, é feita uma menção a Allan-Kardec:

A – Sim? Acho que tem real merecimento; mas, por que não será um dos outros?

B – Não pode ser. O Bezerra120 também tem serviços, mas não se pode servir a dois

senhores, ou ao Baependi ou a Allan-Kardec.

(MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 615)

A pouco mais de uma semana da publicação do que seria seu último texto em ―A + B‖,

Machado deu início à sua série de crônicas que nos serve como objeto desse estudo. Nela,

também, com um olhar arguto e perspicaz e muita ironia na ponta de sua pena, o cronista

abordou a questão espírita. A seguir, exploraremos esses e outros recursos utilizados nos

versos de sua gazeta, no tocante ao espiritismo.

Voilà ce que l‘on dit sur le spiritisme dans la « Gazette de Hollande »

120 Refere-se a Adolfo Bezerra de Meneses Cavalcanti, um dos maiores nomes do espiritismo no Brasil, na

época, deputado. No trecho, também vemos uma menção a Allan-Kardec, o codificador da doutrina espírita.

139

É com um questionamento que tem início a publicação de 2 de novembro de 1887. A

crônica, a sair sob o número trinta e quatro, é composta por vinte e duas estrofes. Nela, o

narrador descreve comicamente algumas características que estariam relacionadas ao modo

espírita de viver. Esse modo de apresentar o assunto também lança luz sobre alguns elementos

satíricos utilizados em sua criação, como o diálogo filosófico, ou científico/religioso, e a

comédia. Como mostram as estrofes a seguir, não há, contudo, a predominância do elemento

sério nem do elemento cômico:

Que fará, estando junto

Sócrates a um hotentote?

Falo de varão defunto, Pode sair livre o mote...

E, antes de mais nada, digo Que essa junção de pessoas,

Vi hoje mesmo em artigo

Repleto de coisas boas.

O artigo é de sociedade

Espírita e brasileira;

Trata só da humanidade, É divisa sua e inteira.

O narrador refere-se à Federação Espírita Brasileira, que, por essa época, já divulgava

seus artigos através do periódico O Reformador, principal veículo da imprensa espírita e

órgão oficial da Federação. A partir disso, é dada sequência à narração, de modo que ele

confessa se reconhecer como ―meio espírita‖:

Que eu já sou meio espírita,

Não há negá-lo. Costumo Pôr na cabeça uma fita,

Em vez do chapéu a prumo.

Chamo à vida uma grã bota

Calçada pelo diabo;

Quando escrevo alguma nota, Principio e não acabo.

Dou o João, velho amigo,

Nascido em cinquenta e sete; E ele, quando isto lhe digo,

Todo se alegra e derrete.

E proclamam em recompensa,

Que sou de cinquenta e cinco;

Rimo-nos em boa avença, Do meu brinco e do seu brinco.

(...)

140

José Telha, que no sótão

Sustenta os seus macaquinhos,

Crê que alguns deles se botam Para a casa dos vizinhos

Mas eu respondo-lhe a cada Palavra com heroísmo,

Que o que parece pancada,

É simples espiritismo.

Para Malvólio, a vida é uma ―grã bota / calçada pelo diabo‖, o que revela, ainda que

implicitamente, uma visão pessimista de sua parte. Mais à frente, porém, acaba demonstrando

certa leveza ao mencionar uma troca de chistes com seu ―velho amigo‖, João. Nessas estrofes

também aparece uma autoreferência ao seu processo criativo, mais especificamente nos

versos ―quando escrevo alguma nota, / Principio e não acabo‖, revelando, além de tudo, uma

espécie de digressão.

Assim como a segunda crônica estudada nesse capítulo, nessa o narrador,

semelhantemente, refere-se a uma publicação que não a sua, sendo ela também da Gazeta de

Notícias. A referência a José Telha é uma alusão à série cronística ―Macaquinhos no sótão‖,

de autoria de Ferreira de Araújo. Ainda que não seja claro o sentido dos versos ―Que o que

parece pancada, / É simples espiritismo‖, supomos serem eles uma referência às práticas

espíritas, as quais comumente se davam em residências. Era o caso, por exemplo, das reuniões

e encontros, nos quais os envolvidos tinham por finalidade estabelecer contato com os mortos.

Logo após essa sugestão, Malvólio continua sua versalhada sobre a questão:

E, voltando à vaca fria, Sócrates era um sujeito

De grande filosofia,

Alta mente, heróico peito.

O hotentote, - conquanto

Lembre uma Vênus famosa

Pelo volumoso encanto Mas tão pouco volumosa,

Comparada àquela raça, Tão pouco, como seria

Uma uva a uma taça,

A laranja à melancia;

O hotentote, em bestunto,

É pouco mais que um cavalo;

Dê-se-lhe um simples assunto, Mal poderá penetrá-lo.

Mas, sendo um e outro feitos

141

Pela mesma mão divina, Força é que sejam perfeitos,

Di-lo a grande Espiritina.

Daí a necessidade

De andar a gente charola,

Não de cidade em cidade, Mas de uma bola a outra bola.

Ao retomar sua referência inicial ao filósofo e a um hotentote, o narrador parece se

referir à reencarnação e, consequentemente, ao desenvolvimento espiritual dos seres. Embora

―feitos / pela mesma mão divina‖, um seria um ―sujeito de grande filosofia‖, enquanto outro

seria ―pouco mais que um cavalo‖. Daí, a ―necessidade / De andar a gente charola, / Não de

cidade em cidade, / Mas de uma bola a outra bola‖. Esse mesmo ponto aparece nas entrelinhas

dos seguintes versos:

Morre aqui algum peralta,

Que furtou grandes dinheiros,

Ressurge em bola mais alta Entre os simples caloteiros.

Vai a outra, e paga em dia

Todas as dívidas suas; Vai a outra, e principia

A dar esmolas nas ruas.

Vai a outra, e já suprime

As ruas; chega à perfeita

Máxima pura e sublime

De só saber a direita.

Sobe finalmente à esfera

Onde uma sociedade De arcanjos lindos o espera,

E o conduz à eternidade.

Nas estrofes citadas, a reencarnação é aludida na referência a certo peralta que morreu

aqui e ―que furtou grandes dinheiros‖. O mesmo, contudo, ―ressurge em bola mais alta / Entre

os simples caloteiros‖, o que parece equivaler a uma nova existência. Depois ―vai a outra, e

paga em dia / todas as dívidas suas‖. Chega, aliás, a distribuir esmolas pelas ruas. Assim, as

penas em decorrência das ações cometidas em vidas passadas seriam aplicadas em vidas

futuras, à medida que o espírito passasse pelo processo de se reencarnar. Finalmente, ao

chegar à ―perfeita / Máxima pura e sublime / De só saber a direita‖, teria como recompensa

sua elevação a uma esfera ―Onde uma sociedade / De arcanjos lindos o espera, / E o conduz à

eternidade‖. Em outras palavras, ao seguir o princípio evangélico pregado por Jesus, qual seja,

142

de que ―quando derem esmola, não saiba sua mão esquerda o que faz sua mão direita‖, o

sujeito estaria em plena harmonia com a lei divina, de modo que seria elevado às mais altas

moradas celestiais. Ainda sobre essa pregação, esclarecem os espíritos no Evangelho

Segundo o Espiritismo:

Fazer o bem sem ostentação é um grande mérito; esconder a mão que dá é mais meritório ainda; é sinal incontestável de grande superioridade moral: de

fato, para ver as coisas de mais alto que a plebe, é necessário abstrair-se da

vida presente e identificar-se com a vida futura; numa palavra, é necessário colocar-se acima da humanidade para renunciar à satisfação que o

testemunho dos homens proporciona e espera a aprovação de Deus. (...)

(ALLAN-KARDEC, 2017, p. 155-154)

Assim, as compensações prometidas por Jesus teriam lugar em vidas futuras, não

escapando ao homem as consequências e as punições por suas faltas. Como conclusão de sua

gazeta, Malvólio afirma ainda que na eternidade, Sócrates, aprazível, receberia o hotentote e,

em seguida, discorreriam juntos sobre este mundo e suas incongruências:

Ali Sócrates jucundo

Receberá o hotentote,

E falarão deste mundo, E glosarão este mote:

- Para que há de haver juízes Em Berlim, ou noutra parte?

Têm aqui iguais narizes

O inocente e Malazarte.

Malvólio

(GAZETA DE HOLLANDA, 1887, p. 1)

Foi com esse tom irreverente que o narrador revelou bem mais que seu lado ―meio

espírita‖, pois mostrou ainda seu apurado conhecimento sobre uma doutrina que despertava

cada vez mais a atenção das pessoas. Com isso, o espiritismo reaparece na versalhada desse

cronista que parecia ser tão cético à nova crença. Os leitores, fossem eles atraídos pela

novidade religiosa e/ou pela chance de se contatar com os espíritos, encontrariam nas falas de

Malvólio a possibilidade de compreender mais sobre o que os esperava na vida futura, mesmo

que isso se desse da forma mais satírica possível.

143

IV – Tu tá livre, eu fico escravo

(...) Tout cela était indispensable, répliquait le docteur borgne, et les malheurs particuliers

font le bien général ; de sorte que plus il y a de malheurs particuliers, et plus tout est bien.

(VOLTAIRE)

Durante décadas, Machado de Assis foi considerado por alguns de seus biógrafos

como um escritor absenteísta em relação ao abolicionismo. Para uns, o autor de origem

humilde, negro e de classe abastada se deixara influenciar por esses fatores sociais a ponto de

se omitir diante do assunto. Isso é apontado e explorado por Magalhães Júnior, em ―Machado

de Assis e a abolição‖, capítulo do livro Machado de Assis desconhecido (1957). No texto, o

crítico contesta as acusações de alguns biógrafos121

machadianos que acusam o bruxo de ser

omisso. Por meio de uma série de exemplos acumulados na vasta produção122

, o estudioso

mostra que o autor oitocentista não ignorou os aspectos sociais e morais da escravidão,

salientando que ―tinha uma maneira única de dizer as coisas‖ (MAGALHÃES JÚNIOR,

1957, p. 164):

Não foi Machado de Assis, nem seria, nunca, com o seu temperamento, um

homem para rasgos como os de José do Patrocínio. Não tinha atitudes espetaculares. Faltava-lhe aquela ―natureza crepitante‖ do tribuno e

jornalista negro. Não fez da abolição um estribilho, um ritornelo, um refrão

de todos os dias. Seria, porém, erro total, ou de informação, ou de má fé, dá-lo como ausente, ou como desinteressado, em relação a tal problema. O

cargo, no Ministério da Agricultura, impedira-o de ir para a agitação dos

comícios. Mas lá mesmo, ele trabalhava em favor dos escravos.

(MAGALHÃES JÚNIOR, 1957, p. 166)

Não só Magalhães Júnior (1957), como também outros críticos mostram que o escritor

nascido no morro do Livramento não se engajou na luta feito alguns de seus pares123

, mas,

nem por isso, deixou de tematizar a questão em seus escritos. Isso pode ser visto, por

exemplo, na antologia Machado de Assis Afro-descendente: escritos de um caramujo

(2007). Nela, Eduardo Assis Duarte reúne os mais diversos gêneros literários (poemas,

crônicas, ensaios críticos, e trechos de contos e romances) em que Machado abordou o amplo

debate.

121 Exemplo disso é Lúcia Miguel-Pereira, em Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico) (1936). 122 Magalhães Júnior (1957) cita os contos: ―Mariana‖, ―Virginius‖, ―Pai contra mãe‖, ― O Caso da Vara‖; além

desses, também menciona o poema ―Sabina‖ e passagens de crônicas e romances, como Memórias Póstumas de

Brás Cubas e Esaú e Jacó. 123 José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, por exemplo, saiam às ruas do Rio de Janeiro em carreatas

mobilizadoras em prol da abolição.

144

Não é de hoje que muitos pesquisadores têm dedicado seus trabalhos à relação entre os

escritos do autor oitocentista e a escravidão. A título de exemplificação, citamos duas

dissertações sobre o ponto. Na primeira delas, de Mailde Jerônimo Tripoli (1997), intitulada

Imagens, máscaras e mitos: o negro na literatura brasileira no tempo de Machado de Assis

(1997), a pesquisadora defende a proposição de que Machado não foi um absenteísta em

relação à escravidão. Para isso, ela se vale de crônicas, contos e romances. O estudo é

dividido em quatro capítulos, sendo o primeiro introdutório; o segundo de uma breve

retrospectiva sobre a escravidão no Brasil; o terceiro discute três romances contemporâneos

ao autor e que abordam a escravidão; e no quarto capítulo, a estudiosa se volta à produção

machadiana, destacando passagens em que o autor lidou com a temática. A respeito das

crônicas, Tripoli (1997) faz a seguinte consideração:

(...) a política parece ter sido o seu tema favorito nesse gênero. Mas, assim

como a política, a escravidão também era um tema em pauta. Irônico e

sarcástico, Machado de Assis enfoca os diversos estágios do período abolicionista, as manipulações dos senhores, a violência inerente ao sistema

de dominação. Faz isso, ora de forma direta, ora dissimulada, mas

preservando um distanciamento crítico e lançando mão dos recursos de estilo que lhe eram comuns. (TRIPOLI, 1997, p. 160)

Tripoli (1997) destaca também que o pessimismo em Machado é uma marca estilística, dado

que é por meio da ironia, do sarcasmo e da verve cômica, que o autor desmascara de forma

matreira a sociedade oitocentista.

Na segunda dissertação, de autoria de Elisângela Aparecida Lopes (2007), intitulada

Homem do seu tempo e do seu país: senhores, escravos e libertos nos escritos de Machado

de Assis (2007), a pesquisadora tem por objetivo investigar as personagens que representam

senhores e escravos na produção machadiana. Do mesmo jeito, lida com diferentes gêneros

literários, abordando-os teoricamente. No estudo, destaca o modo crítico e irônico com que o

autor tratou das classes dominantes em seus escritos. Foi assim que Machado de Assis, de

forma satírica e zombeteira, lidou com a questão. Ao chamar a atenção para as crônicas,

Lopes (2007) destaca que foi com ar de frivolidade e em tom de conversa, que o cronista

tratou da escravidão:

Não me parecem tão adocicadas assim aquelas nas quais o tema da escravidão e da abolição estão presentes. O humor, ele sim, relativiza a

crítica feita pelo escritor nesses textos. A ironia também promove o disfarce

daquilo que é ―sério‖, dando ao texto ares de ―frívolo‖. Em algumas das

crônicas de Machado de Assis é possível visualizar as reflexões críticas do escritor em relação à instituição escravocrata, seus fundamentos, seus

elementos de manutenção, suas mazelas, suas consequências; assim como é

possível perceber a crítica do escritor no que se refere à forma como a abolição foi realizada no país, e suas consequências na organização do novo

145

modus vivendi do negro liberto. Tudo isso pode ser captado em meio às aparentes trivialidades de seus textos. Enquanto homem de imprensa e

homem de Letras que foi, soube associar essas duas instâncias na elaboração

do gênero crônica. (LOPES, 2007, p. 64)

Na conclusão, a estudiosa afirma que a produção machadiana demonstra certa

exaltação quanto às conquistas que conduziram à abolição, embora o autor expresse isso por

meio de um olhar desconfiado. Como vemos, portanto, a escravidão é tema presente não só

em romances e contos, gêneros que consagraram Machado de Assis, mas também em seus

poemas e, em especial, em suas crônicas. Neste último gênero, a questão aparece de forma

mais explícita e incisiva. Grosso modo, isso faz cair por terra qualquer argumento que tente

provar o contrário.

Ao longo dos anos em que atuou como cronista, Machado abordou desde a venda de

escravos em leilões, como também as leis que precederam à assinatura da Lei Áurea a 13 de

maio de 1888, como foi o caso da Lei de 28 de setembro de 1871, a conhecida Lei do Ventre

Livre e da Lei de 28 de setembro de 1885, conhecida por Lei do Sexagenário. Depois de

declarada a libertação dos escravos, o cronista ainda voltou ao assunto por várias vezes,

expondo não apenas a real condição dos libertos, como a continuidade do regime escravista

em algumas províncias do país, como em São Paulo. Cabe aqui, recuperarmos, de forma

breve, algumas dessas produções. A 25 de julho de 1864, em ―Ao Acaso‖, o cronista trata de

um duelo de filantropia. Na ocasião, o leilão de escravos ainda não era uma prática proibida, o

que só ocorreria com o decreto nº 1865, a 15 de setembro de 1869:

Era um leilão de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de mistura

com os móveis, havia uma pobre criancinha abrindo os olhos espantados e

ignorantes para todos. Todos foram atraídos pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entre outros, notei um indivíduo que, mais curioso

que compadecido, conjeturava à meia voz o preço por que se venderia aquele

semovente. Travamos conversa e fizemos conhecimento; quando ele soube que eu

manejava a enxadinha com que revolvo as terras do folhetim, deixou escapar

dos lábios esta exclamação:

- Ah! Estava longe de conhecer o que havia neste – ah! – tão misterioso e tão

significativo. (...) (MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 139)

A 1º de outubro de 1876, na série ―História de Quinze Dias‖, o autor tratou da lei do

Ventre livre. Ao se relembrar da data, apresenta o assunto nos seguintes termos:

Esperamos que o número será grande quando a libertação estiver feita em

todo o império. A lei de 28 de setembro fez agora cinco anos. Deus lhe dê vida e saúde! Esta

lei foi um grande passo na nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes

estávamos em outras condições. (MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 299)

146

Na década de 1880, na crônica de 23 de novembro de 1885, da série ―Balas de Estalo‖,

o cronista mais uma vez trata da filantropia ao discorrer sobre o fundo de emancipação. A 19

de maio de 1888, passados exatos 6 dias da assinatura da Lei Áurea, o assunto voltaria na tão

conhecida crônica do escravo Pancrácio, em ―Bons dias!‖. O dono, após conceder carta de

alforria ao seu ―molecote‖, releva, ao final, as suas reais pretensões, demonstrando,

claramente, a busca por notoriedade política:

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa,

na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a

gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever

e contar (simples suposição), é então professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são

os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és

livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de instaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

(MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 758, grifos do autor)

Na mesma série, a 26 de julho do mesmo ano, o cronista se referiria ao projeto de

indenização aos donos de escravos libertos pela lei conquistada graças à luta abolicionista. Já

na década de 1890, após a Proclamação da República, Machado de Assis por várias vezes

trataria da condição do liberto em ―A Semana‖. A 15 de maio de 1892, por exemplo, na

ocasião em que se celebrava o dia 13 de maio, é com satisfação que o cronista comenta a

libertação de uma negra, ainda mantida sobre o regime escravocrata: ―(...) A festa de Treze de

maio comemorava uma página da história, uma grande, nobre e pacífica revolução, com este

pico de ser descoberta uma preta Ana ainda escrava, em uma casa de S. Paulo. (...)‖

(MACHADO DE ASSIS, 2015d, p. 827).

Com a inauguração dos primeiros bondes elétricos na cidade do Rio de Janeiro, o

escritor achou mais uma oportunidade para tratar da condição dos libertos. É o que vemos na

alegoria dos dois burros falantes, na publicação de 16 de outubro de 1892. Nessa espécie de

fábula, a liberdade imaginativa dá voz aos animais, que, além de revelarem a triste condição

em que vivem, ainda mostram o descaso por parte dos homens:

- Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando

os bondes entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem

chicote? Todos os burros desse tempo entoaram cânticos de alegria e

abençoaram a ideia dos trilhos, sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. Não conheciam o homem. (MACHADO DE ASSIS, 2015d, p.

865)

147

Como mencionamos nas ―Primeiras palavras‖ deste estudo, a crônica inaugural da

série ―Gazeta de Holanda‖ não só apresenta ao leitor a nova coluna, como ainda expõe o

projeto literário a ser adotada nas publicações. Ademais, nesse mesmo texto, pouco explorado

pelos machadianos que se debruçaram sobre a questão escravista124

, o autor versou sobre um

caso que repercutiu na imprensa em 1886 e mobilizou autoridades na capital do Império. De

igual modo, não se omitiu diante de outros assuntos ligados à escravidão, como a

capoeiragem, prática perseguida pelas autoridades da época, bem como o voto dado pelo

Instituto dos Advogados em prol da condição do status-líber. Esses assuntos serão mais bem

explorados nas próximas subseções.

O crime de Botafogo: um célebre processo

A 11 de fevereiro de 1886, apresentou-se na redação da Gazeta da Tarde uma negra,

escrava, menor de idade, chamada Eduarda. A matéria divulgada sob a titulação ―Horrores

sobre horrores‖, narra a horripilante situação que se encontrava mais uma vítima da

escravidão. Publicada entre a primeira e a segunda coluna do jornal, são dados detalhes do

caso que chocou os cariocas e despertou o interesse da imprensa ao longo do ano. O estado da

jovem foi descrito nos seguintes termos:

Não podemos exprimir o horror que nos inspirou o estado da pobre criatura. Não se podia ter de pé: para caminhar, uma companheira amparava-lhe o

corpo. Tinha o rosto aberto em chagas, retalhado em sangrentos vincos, à

ponta de vergalho; os olhos fechados, as pálpebras avolumadas como

tumores, por medonha inflamação, deixando gotejar lágrimas horripilantes, através das dobras de inchação; as mãos inchadas como o rosto; os pulsos, o

pescoço, cobertos de horríveis vestígios de cordas; o corpo, todo contundido

e lacerado por graves sevícias. (HORRORES, 1886, p. 1)

Como ainda informa a matéria, ao se saber pela cidade do estado em que se achava

uma escrava no escritório da Gazeta da Tarde, o povo compareceu em abundância ao local.

Até mesmo os menos fáceis de comoção, condoeram-se do estado da moça. Representantes de

toda a imprensa da Corte estiveram presentes e registraram com suas penas a sensação que

produzia a figura de mais uma vítima da ―gloriosa instituição nacional‖. A jovem pedia

misericórdia para se salvar das ―torturas cotidianas com que, há muito tempo, a martiriza a

124 Exemplo disso é a já mencionada antologia de Eduardo Assis Duarte, publicada em 2007. Nela, Duarte reúne

textos em que Machado de Assis se dedicou à escravidão. São reunidos poemas, textos críticos, capítulos de

romances e trechos de crônicas e contos. Entretanto, a publicação inaugural, da série aqui em estudo, só aparece

na edição revista de 2020. Nessa crônica, como exploraremos a seguir, foi feita referência ao famoso caso de

Botafogo, no qual a senhora D. Francisca da Silva Castro foi levada a julgamento, acusada de maus tratos em

suas duas escravas, Joana e Eduarda.

148

senhora‖. Soube-se por meio da mesma que sua companheira de cárcere se encontrava em

estado ainda mais deplorável.

Ao tomar conhecimento do caso, a Confederação Abolicionista tomou para si a causa

e, com o auxílio de seu presidente, o Dr. João Clapp e seus membros associados, o caso foi

levado ao Sr. Juiz de Direito da 2ª Vara Cível, em Jurisdição do 11ª Distrito Criminal,

Monteiro de Azevedo, a fim de promover a liberdade de Eduarda. O processo criminal contra

seu algoz teve como representante legal o promotor público Dr. Carvalho Durão e o Dr.

Cândido Mendes de Almeida, como adjunto da promotoria. Foi nomeado como curador das

jovens o Dr. Sizenando Nabuco.

No dia seguinte, a 12 de fevereiro, a matéria intitulada ―As duas mártires‖ dá mais

detalhes sobre o caso das duas seviciadas. No texto, o sofrimento pelo qual passaram é

comparado mesmo ao dos martirizados nos tempos dos Césares ou da Inquisição, em

decorrência do cristianismo ou da Reforma. Conquanto, agora, a nova religião fosse a

liberdade para as vítimas do cárcere. Os ―dois cadáveres ambulantes‖ ou as ―duas chagas que

se moviam‖, como também são referenciadas na matéria, contam entre 15 e 16 anos. Joana,

companheira de Eduarda, achava-se em condição ainda mais horripilante. Como informa o

texto, somente aqueles ―gangrenados pela torpe instituição da escravidão‖ deixaram de se

indignar com o estado das duas jovens.

Destaca-se ainda que esse não era um caso isolado, mas somente mais um, dentre

tantos outros a ocorrer em antros chamados de fazendas, no interior de casas e palácios com

requintes luxuosos, como a casa de Botafogo, local em que ambas viviam. Também é

destacado que o caso só tomou tal dimensão por ter a escrava sido levada à redação do jornal.

Caso contrário, conduzida à polícia, o Sr. Coelho Bastos, nome importante para o atual e

futuro reinado, teria feito com que as duas desaparecessem sem deixar vestígios.

A matéria enfatiza que a responsabilidade por tal conjuntura no país, deve-se, em

especial, ao imperador Dom Pedro II, o que afirmam ser de unânime reconhecimento nacional

e estrangeiro. Na sexta coluna do jornal, em uma nota publicada a pedido de Valentim

Magalhães, redator de A Semana, é feita a retificação da notícia publicada no dia anterior, em

que narra a apresentação das escravas junto à redação dos jornais Vanguarda, Diário de

Notícias, O Paiz, Apóstolo, Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio. Acompanhada por

representantes da Gazeta da Tarde, a situação das moças pôde ser vista de perto por homens

da imprensa.

149

No dia 16 de fevereiro, o jornal Gazeta de Notícias, entre a quarta e a quinta coluna

da primeira página, divulga uma matéria intitulada ―Barbaridade‖. Nela, noticia que, no dia

precedente, várias pessoas foram ao necrotério a fim de ver o corpo da recém liberta Joana,

vítima das atrocidades da escravidão. Dentre os presentes, encontravam-se representantes da

imprensa, médicos, jovens estudantes de medicina, o presidente da Confederação

Abolicionista, autoridades políticas e muitos curiosos. Detalhadamente, são tecidas

informações sobre as condições da escrava falecida a 14 do corrente mês.

Feita a autópsia é informado o estado externo e interno do corpo. São feitas

considerações, destacando-se as sevícias na face, nos membros superiores e inferiores. Além

do estado do pulmão com granulações tuberculosas (o direito se apresentava crivado de

tubérculos com uma enorme caverna), Joana ainda apresentava o fígado volumoso, o baço

congesto e os rins volumosos, o esquerdo mais que o direito. Finda a autópsia, seu corpo foi

pedido pelo Dr. João Clapp para realizar o sepultamento. Em um dos carros a acompanhar o

féretro, havia o estandarte da Confederação Abolicionista125

. O enterro ocorreu no mesmo dia,

às 5 horas da tarde, no cemitério de São João Baptista. Como também informa a matéria,

antes de baixar o caixão, José do Patrocínio proferiu algumas palavras.

A 2 de março, a Gazeta da Tarde na primeira coluna, da primeira página, traz a

informação de que se acha recolhida à prisão D. Francisca da Silva Castro, apontada como

responsável pelas barbaridades contra as duas jovens. Na matéria intitulada ―Enfim‖, é com

satisfação que mencionam o nome do Sr. Dr. Carlos Gusmão, 3ª delegado de polícia.

Destacam sua determinação no seguimento do processo, tendo em vista os recursos na

tentativa de se obstar a ação contra a acusada, como, por exemplo, a alegação de sua

insanidade mental. Esse estado, contudo, foi questionado, ao passo que afirmam ser o autor de

tais perversidades um criminoso, ―desses que se deliciam com a certeza da impunidade‖.

Expedido o mandado de prisão, a criminosa foi retirada da Casa de Saúde do Dr. Eiras,

onde se encontrava em tratamento. Ao sair da clínica, D. Francisca teve um ataque histérico,

recebendo autorização do delegado para ser acompanhada pelo médico. Como destaca a

matéria, a acusada se encontrava em estado de fraqueza, visto que não se alimentava desde

sua acolhida na clínica. Ao ser declarada a sua prisão, a acusada declarou que acabaria de

morrer.

125 Grupo formado por José do Patrocínio, Ferreira de Meneses, Vicente de Sousa, Nicolau Moreira e João

Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, como destaca Joaquim Nabuco, em Minha formação (1998).

Na obra, o intelectual também afirma que o movimento abolicionista começou na Câmara em 1879, com o

pronunciamento de Jerônimo Sodré, o que, para Nabuco (1998), seria a mais clara demonstração de que o

―gérmen‖ da abolição era parlamentar (NABUCO, 1998, p. 192-193).

150

Entre os dias 12 e 13 de março, os jornais divulgam amplamente o relatório do

inquérito. Pelos meses seguintes, a Gazeta da Tarde e a Gazeta de Notícias dedicariam

especial atenção ao desenrolar do processo. A 13 de março, a Gazeta de Notícias noticia, na

matéria intitulada ―Barbaridade‖, todo o inquérito. Nele, constam todas as informações

concernentes às vítimas e à acusada, destacando desde o estado de Eduarda e Joana, até

mesmo, a fuga e a captura de D. Francisca.

Teje presa!

Francisca da Silva Castro, 35 anos, brasileira e casada com João Joaquim de

Magalhães, habitava uma casa na praia de Botafogo, com seus 5 filhos, as duas escravas

menores, além de empregados. No inquérito, datado de 11 de março de 1886, é apresentado,

pormenorizadamente, o caso de Botafogo. Ao dia 11 de fevereiro, ao encontrar uma

oportunidade para fuga, Eduarda saiu à rua onde encontrou uma mulher que a levou até a casa

de uma senhora, que, por sua vez, remeteu-a para a redação da Gazeta da Tarde.

Pelo que narrou, já havia três anos que sofria os castigos por parte de sua senhora. O

estado em que se encontrava Eduarda era horripilante: rosto deformado, os braços em carne

viva, exibindo ainda as marcas das cordas com que era atada. O corpo de delito fora feito nas

duas. Poucos dias depois, Joana veio a óbito. Como destacado no relatório, o seu estado

agravou a tuberculose.

A acusada do crime, a 13 de fevereiro, acompanhada do marido e dos filhos,

recolhera-se em lugar desconhecido. A casa, com mais de 30 contos de réis em jóias, foi

abandonada pela família, como informa Anselmo Pinto Magalhães, sobrinho do cônjuge de

D. Francisca. No processo, o copeiro, o cozinheiro e a criada foram conduzidos à polícia, mas

nada declararam a respeito do paradeiro da patroa. Além disso, alegaram desconhecer as duas

escravas que ficavam isoladas na casa. Uma ex-criada, Maria Joana (nas demais publicações

aparece como Maria Joaquina), contudo, confirmou as informações prestadas por Eduarda.

Disse que as escravas eram conservadas presas no quarto de D. Francisca, sem a permissão de

transpor seus limites. A ex-criada afirma também que a ex-patroa mandava despir as jovens, a

fim de chicoteá-las. Não obstante o estado deplorável em que as deixava, Maria relata que o

alimento era posto no chão para que apanhassem com a boca, de bruços.

Outra testemunha, o alferes Antônio José de Freitas, afirma ter ouvido do próprio

marido da acusada, sobre um incidente ocorrido em dezembro de 1883, que a esposa era uma

151

―senhora nervosa e exaltada, tinha por costume castigar exageradamente suas escravas, o que

muito o contrariava, não encontrando meio de pôr cobro a uma tal ordem de cousas‖.

Todavia, Eduarda afirma no inquérito que Magalhães tentava impedir as agressões contra a

sua companheira de cárcere. Alegando estar quase cega, ela ainda foi examinada por médicos

que chegaram à conclusão de que suas cataratas resultavam das contusões que sofrera.

Ao tomar conhecimento da localização de D. Francisca, o delegado emitiu o pedido de

prisão. No depoimento prestado, a antiga dona declarou serem as escravas ―de índole

perversa, o que obrigava a castigá-las, mandando uma aplicar na outra chicotadas com um

pequeno chicote, negando que as tivesse amarrado ou mandado amarrar‖. Mesmo assim, foi

autuada nos termos do art. 13, §2 da lei de 20 de setembro de 1871126

e do art. 29 do

regulamento nº 4.824 de 22 de novembro de 1871127

.

O marido alegou que a esposa há 10 anos se achava em completo estado de loucura, o

que seria uma forma de escusá-la por meio do art. 10 do código criminal128

. Porém, a acusada

relatou com integridade o ocorrido, demonstrando lucidez ao se referir a informações

pessoais, tais como: o nome dos pais, a naturalidade, o nome de ruas, a data de nascimento e

de casamento. Esses dados seriam suficientes para demonstrar equilíbrio da ré. Tendo

incidido contra os artigos 193, 202, 203, 204 e 205129

, o inquérito foi remetido pelo delegado

126 O art. 13 diz respeito à entrega duplicada do mandado de prisão ao acusado do crime. No §2 é dada a seguinte

informação: ―À exceção de flagrante delito, a prisão antes da culpa formada só pode ter lugar nos crimes

inafiançáveis, por mandado escrito do Juiz competente para a formação da culpa ou à sua requisição; neste caso

precederá ao mandado ou à requisição declaração de duas testemunhas, que jurem de ciência própria, ou prova documental de que resultem veementes indícios contra o culpado ou declaração deste confessando o crime‖.

Consultar: BRASIL. Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2033.htm. Acesso em: 24 abr. 2020. 127 O art. 29 requer prisão preventiva do réu indiciado em crime inafiançável, ―apoiando-se em prova de que

resultem veementes indícios de culpabilidade, ou seja confissão do mesmo réu ou documento ou declaração de

duas testemunhas‖. Também declara que, feito o respectivo autuamento, a autoridade judiciária competente para

a formação da culpa deve reconhecer a procedência dos indícios por meio de despacho nos autos, ou expedição

de mandado escrito, ou ainda comunicação telegráfica (aviso geral na imprensa, por exemplo), dando a conhecer

certa requisição. Consultar: BRASIL. Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Historicos/DIM/DIM4824.htm. Acesso em: 24 abr. 2020. 128 No Código Criminal, vigente até 1890, o art. 10 (Título I ―Dos crimes‖ – Capítulo I ―Dos crimes e dos

criminosos‖) previa que não seriam julgados criminosos os menores de quatorze anos; os loucos de todo gênero (salvo os que tivessem intervalos de lucidez); os que cometeram crimes violentados por força ou medo; e os que

cometeram crimes casualmente ou por intenção ordinária. 129 No mesmo Código (Título II ―Dos crimes contra a segurança individual‖ – Capítulo I ―Dos crimes contra a

segurança da pessoa, e vida‖), o art. 193 punia o homicídio cometido sem os agravantes mencionados no art. 16.

Eram previstas as penas de galés perpetuas no grão máximo; de prisão com trabalho por doze anos na média; e

por seis no mínimo. Os demais artigos previam prisão e trabalho dos culpados por ferimentos e outras ofensas

físicas. O tempo de detenção variava nos artigos, sendo no art. 202 de um a seis anos; nos arts. 203 e 204 de um

a três anos; e no art. 205 de um a oito anos. Ademais, acrescia-se o pagamento de multa correspondente à metade

do tempo de pena. Consultar: BRASIL. Código Criminal do Império do Brazil. Lei de 16 de dezembro de 1830.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em: 24 de abr. 2020.

152

Dr. João Manuel Carlos Gusmão ao Sr. Dr. Promotor público da comarca, por meio do Exm.

Sr. Dr. Juiz de direito do 9º distrito criminal.

Nos meses seguintes, são recorrentes as menções ao caso, nos jornais. Em nota

publicada na Gazeta da Tarde, a 26 de março de 1886, são tecidos comentários sobre a

comemoração do dia 25, data considerada como a mais rutilante, pois marcava o fim da

escravidão no Ceará, em 1884. O evento ocorrido no Polytheama Fluminense, a convite da

Confederação Abolicionista, teve a ovação de discursos proferidos por personalidades ligadas

ao movimento. Foi o caso, por exemplo, do Dr. João Clapp, que, em breve discurso, arrancou

aplausos entusiasmados do público, outro foi o orador paraibano, o Dr. João Coelho

Gonçalves Lisboa, que estreou saudando o Ceará, província que se mostrou pura e grandiosa,

como um ―raio de luz iluminando o Brasil inteiro‖. Mais um a participar do evento foi José do

Patrocínio, que, em discurso, recordou o caso de Joana e Eduarda. Em sua fala, destacou a

tentativa dos advogados da ré, os Srs. Ignácio Martins e Cândido de Oliveira, ministro da

guerra do gabinete 06 de junho, em desculpar a acusada, alegando sua loucura. No texto é

feita a seguinte consideração:

O orador deseja que realmente esteja douda essa pessoa, pois só a loucura

poderia fazer isso, se atentar-se a que o coração das brasileiras está sempre

aberto a todos os sentimentos generosos e a prova aí estava no Ceará, que teve como melhores impulsionadores da obra de sua redenção, as filhas da

bela província que fez da vela branca de uma jangada a bandeira da nossa

liberdade. (25 DE MARÇO, 1886, p. 02)

Entre os dias 15 e 16 de abril, a Gazeta da Tarde e a Gazeta de Notícias publicaram

matérias dedicadas à feitura do sumário do processo instaurado contra D. Francisca. No jornal

de Ferreira de Araújo, sob a titulação ―Barbaridade‖, são apresentados os autos. José Joaquim

Magalhães, 50 anos, português, negociante e casado com a acusada, alega que a esposa não

torturava as escravas e que elas mesmas faziam isso, ―arranhando-se e mordendo-se uma à

outra, obrigando a senhora ou seus filhos a intervirem na briga para separá-las‖

(BARBARIDADE, 1886, p. 02).

Magalhães alega que na ocasião em que Joana fora encontrada, havia um xarope perto

de seu colchão, o que seria uma amostra dos cuidados médicos que vinha recebendo. Dentre

as perversidades que afirma as escravas terem cometido contra sua família, diz que elas

tiravam as almofadas das camas das crianças e pregavam alfinetes em suas roupas, na altura

da barriga. O negociante diz que Joana chegara à sua residência há 3 anos e que sofria de

enfermidade sifilítica. Ao sugestionar a esposa de dispensar as escravas, esta afirmou que não

premiaria as duas que serviam mal e eram perversas. Porém, na presença das mesmas, já

153

havia prometido conceder cartas de liberdade caso se corrigissem e a servissem bem, pelo

espaço de um ano.

Também informa Magalhães que Joana e Eduarda traziam marcas de castigos

cometidos pelo antigo proprietário, o Sr. Fuão Miranda, um guarda-livros. Em uma ocasião

com o antigo dono, Eduarda tentara mesmo cometer suicídio com uma faca. D. Francisca ao

tomar conhecimento das testemunhas que depuseram contra ela, afirmou desconhecê-las. A

senhora acresce que ―nunca as mandou castigar, nem as castigou, e sempre foram bem

alimentadas, até comiam demais‖ (BARBARIDADE, 1886, p. 02).

A 7 de junho, a Gazeta da Tarde noticia que, na marcha do processo, são requeridos

inquéritos sobre inquéritos na tentativa de salvação da acusada. O argumento de que sofre das

faculdades mentais é apresentado por seus advogados de defesa. Os médicos peritos, contudo,

mostram que ela não só domina as faculdades, como finge sofrer de um mal inexistente. O

caso que brada aos céus, como referido no texto, pede punição contra a acusada.

Entre 23 e 24 do mesmo mês são divulgadas notícias sobre o caso. No jornal de José

do Patrocínio, ao se mencionar o crime de Botafogo, a saúde mental de D. Francisca é

questionada. Igualmente, questiona-se a capacidade de uma pessoa que alega loucura praticar

constantemente atos violentos contra pessoas incapazes de reação. Sugere-se, pois, que se

trata de um caso de loucura ou de degradação moral, assim, afirmando: ―Já dissemos e

repetimos que a histeria não é loucura: a excentricidade de caráter, a falta de educação, o

nervosismo, não acarretam a irresponsabilidade‖ (O CRIME, 1886, p. 01).

Na Gazeta de Notícias do dia 24 de junho, nas três primeiras colunas da segunda

página, é publicada a promoção emitida pelo 1º promotor público, o Dr. Teixeira de Carvalho

Durão. Nas suas considerações, afirma que as provas colhidas no inquérito e no sumário, são

convincentes de que as violências praticadas contra Eduarda e Joana partiram de D. Francisca.

São citados os códigos penais da Áustria, de 1852 e da Toscana, de 1853, ainda em vigor.

Com trechos em francês e em italiano dos respectivos documentos, o promotor reforça sua

argumentação, considerando que a ré cometeu homicídio com dolo intermediado. De acordo o

artigo 193, do código criminal brasileiro vigente na época, ela teria cometido homicídio com

intenção indireta positiva, pois sabia dos riscos que corria sua escrava Joana. Quanto às

ofensas físicas contra Eduarda, D. Francisca responderia pelo artigo 205.

A 30 de julho de 1886 o mesmo jornal noticia que o juiz criminal Exm. Sr. Dr. Martins

Torres, proferiu a sentença da ré, no dia 28 do corrente mês. Nos autos da sentença, é

informado que ambas as escravas estavam sob a posse de D. Francisca Castro desde o dia 20

154

de dezembro de 1882. O mesmo documento contesta a afirmação de que as duas já traziam

marcas de castigos físicos praticados pelo antigo dono, isso porque nos documentos de

compra das mesmas, não constava nenhuma reclamação ao que chama de ―defeito‖.

Semelhantemente, o juiz chama a atenção para o alto valor pago, no caso, dois contos de réis.

Naquela época, o preço de escravos já estava depreciado em virtude da lei do Ventre Livre.

Como destaca também, no período em que possuiu as duas escravas, D. Francisca não

cometeu os atos em estado de loucura, como atestam os laudos emitidos pelos peritos. Ao

concluir, o Dr. Martins Torres sentencia: ―O escrivão do júri, a quem for este processo

distribuído, lance o nome da dita R. ao rol dos culpados e recomende-a na prisão em que se

acha‖. Entretanto, como mostraremos a seguir, a ré foi absolvida no julgado realizado entre os

dias 23 e 24 de outubro, sendo rememorada por Machado de Assis em sua primeira ―Gazeta

de Holanda‖.

A cobertura dada pela Gazeta da Tarde e pela Gazeta de Notícias permite

acompanhar todo o julgamento, desde a fala da acusação, das testemunhas, e da defesa, até

mesmo a discussão médica em torno da loucura ou não da ré e a sentença final. São dados os

nomes de cada um dos membros a participar do julgamento. Ao se referir à ré, acompanhada

por um dos filhos (entre 7 e 8 anos) e pelo Sr. Enéas Pontes, a matéria da Gazeta de Notícias

apresenta as seguintes declarações:

Trajava um magnífico vestido de cetim preto, todo enfeitado de vidrilhos.

O chapéu, também preto, em forma de boset, era um veludo, com pequenas e quase imperceptíveis filigranas de ouro. Uma pluma, presa e voltado do lado

esquerdo, servia, de prisão de pontas a um pequeno véu, que lhe descia a é a

[sic] altura do lado superior, deixando a descoberto a graciosa boca vermelha, que, em rápidas e constantes contrações, deixavam transparecer as

duas fileiras de dentes pequeninos. (JURY, 1886, p. 02)

A acusada também fazia uso de pulseiras de ouro, brincos de esmeralda e, às vezes, abanava-

se com um leque de finíssimas rendas pretas. Os outros quatro filhos foram levados até a ré,

na presença de duas mulheres. Dois deles dormiam, no colo.

Outros detalhes são mencionados, como seu porte físico, em que chamava a atenção a

formosura do corpo e os seus olhos, que tinham uma vivacidade e um brilho extremo. Ouviu-

se de um espectador a seguinte declaração: ―Em casa esta mulher devia ser conhecida pelos

olhos‖, dado que seu olhar era ―de quem está habituado ao mando imperioso, sem encontrar o

menor obstáculo à sua vontade, tendo à roda de si gente que presta obediência passiva a todos

os seus desejos‖. São retomadas, ainda, avaliações médicas, bem como informações de sua

infância, como o fato de ser filha ilegítima, e que na vida adulta constantemente recorria a

ataques histéricos para conseguir realizar planos em que encontrava relutância.

155

Depois de recusados alguns nomes por parte da promotoria e dos advogados de defesa,

foram escolhidos 12 homens para participar do conselho, como júri. Eles fizeram um

juramento perante os Santos Evangelhos. Como informa o texto, a ré, quando inquirida,

respondeu a todas as perguntas com firmeza na voz, mas deixando transparecer, em alguns

momentos, certo tom de raiva. Ao ser questionada sobre a acusação, afirmou que José do

Patrocínio, Sizenando Nabuco e João Clapp faziam isso por dinheiro. Nas declarações a

respeito de Eduarda, alegou que a escrava temia uma punição por ter deixado a companheira

Joana exposta à chuva, no dia precedente à fuga.

Em um requerimento, o advogado de defesa solicitou um banco ou cadeira com

encosto para maior comodidade de D. Francisca, pois temia que algum ataque nervoso

pudesse causar algum desastre. O pedido foi indeferido pelo juiz, mas este permitiu a

presença de duas ou três pessoas perto da ré. No início da leitura do processo, destacou que o

caso é de amplo conhecimento popular, o que cabe recuperarmos aqui:

Se há processo cujas diversas fases não seja preciso recordar, é por certo este. Estão bem vivas no ânimo do público as suas várias cenas, todas as

peripécias em todas as minudências.

Não é um crime vulgar, destes que causam a impressão de um dia, e com os

quais ninguém mais se importa. Ao contrário, nesta causa a condição miserável das ofendidas e as condições de poderio da acusada influíram

preponderantemente e duradouramente no ânimo do público.

A cena inicial deste importantíssimo processo foi uma procissão estranha, dada como pasto à curiosidade dos frequentadores da Rua do Ouvidor.

(JURY, 1886, p. 02)

Na leitura, são detalhados todos os acontecimentos: a fuga de Eduarda; a morte de

Joana; a carta de liberdade dada por D. Francisca às duas escravas, depois que o caso se

tornou publicamente conhecido; e as sevícias nas duas jovens. O juiz afirma que a escrava

sobrevivente além de quase cega, ainda sofria de males físicos, resultado dos castigos a que

fora exposta. A esse respeito, são tecidas as seguintes considerações:

Às vezes, estas sevícias eram feitas pelas próprias acusadas, a mandado de sua senhora, uma contra a outra... Em algumas ocasiões a senhora mandava

que elas se atirassem como bestas feras, castigando-se, ferindo-se

mutuamente, rolando pelo chão, que ficava manchado de sangue... (JURY, 1886, p. 02)

Durante a leitura do processo, a ré teve um violentíssimo ataque, caindo no chão. Ela

foi socorrida por médicos que estavam presentes, de modo que a sessão foi suspensa por meia

hora. Ao retomarem, o advogado pediu uma cadeira ou mesmo uma esteira, onde a ré pudesse

ficar deitada, contudo, o pedido foi negado. No depoimento de acusação, quatro homens

serviram de testemunhas. O advogado de defesa, Dr. Ignácio Martins, ao tomar a palavra,

156

afirmou que dão ao caso uma proporção dispensável; que os acusadores tomam a causa como

uma questão escravista, para ―despertar sentimentos generosos‖, pintando, mesmo, os

advogados de defesa como escravocratas. Em dado momento, Dr. Martins afirma que, sendo

Eduarda responsável pelas sevícias em Joana, não cabe acusação contra D. Francisca.

Antes de finalizar a cobertura do caso na publicação do dia 24, a matéria informa que

a todo o tempo, a sala esteve tomada de gente e que havia muitas senhoras sentadas nas

primeiras cadeiras. Nas proximidades do paço municipal, era grande a aglomeração do povo.

O julgamento se tornou um evento, contando com 30 praças do corpo militar da polícia

oficial, sendo preso um homem acusado de vender entradas ao preço de 10 contos de réis.

A 25 de outubro, o mesmo jornal divulga o último dia de julgamento. Estendendo-se

pela madrugada do dia 24, foram proferidas falas dos peritos sobre a divergência entre o

primeiro e o segundo laudo a respeito das faculdades mentais da acusada. Às 2 horas da

manhã, a ré sofre um ataque mais violento que o primeiro. D. Francisca é retirada da sala e a

sessão só é reiniciada às 3 horas. Tem-se início a réplica, em que falam o curador das vítimas

(Sr. Sizenando Nabuco), o advogado de defesa (Sr. Ignácio Martins) e o promotor público

(Dr. Carvalho Durão). Ao tomar a palavra, o promotor faz as seguintes considerações: afirma

que nunca se viram cenas tão cruéis de que foram vítimas as duas jovens; e que mesmo o

poeta florentino, Dante Alighieri, não teria conseguido criar martírios de tal ordem nos

círculos de seu ―Inferno‖. Ele questiona como a acusada conseguira juntar vários atestados

para provar sua loucura, mas não conseguira um para provar os cuidados que dizia ter com

Joana. Sobre a ausência de Maria Joaquina, testemunha chave no caso, aponta ter sido

arredada da Corte, provavelmente por quem teria visto em seu depoimento ―motivos de

temor‖.

Às 4 horas a ré teve um novo acesso. Ao retomar a fala, o promotor se referiu à

afirmação da defesa de que a morte de Joana se deu em decorrência das duas horas de

exposição feita em carro aberto, ao que contesta mencionando os três anos de martírio que

sofrera. Sobre Eduarda, reafirma que as agressões eram cometidas pela acusada de forma

―caprichosa e extravagante‖. Nesse momento, D. Francisca teve um novo acesso mais fraco

que os dois anteriores, mas que durou cerca de 10 minutos. Ela foi amparada pelo marido,

médicos e senhoras que estavam ao seu lado. O promotor, ao concluir sua fala, mostrou estar

de acordo com o laudo que afirmava a boa saúde mental da ré e pediu justiça aos jurados.

Na tréplica, o advogado Dr. Cândido de Oliveira tomou a palavra. Nesse momento,

disse compreender que o promotor ―é levado por um impulso nobre e generoso‖, dado que

157

pertence à ―grande religião abolicionista‖. Ele completa sua declaração nos seguintes termos:

―as religiões são todas tolerantes e têm os seus fanáticos, como têm os seus exploradores‖.

Contudo, diz não compreender o ―tom apaixonado‖ com que o promotor sustenta verdadeiras

blasfêmias a título de ―doutrinas jurídicas‖. O advogado reclama ainda da maneira como a

imprensa abordou o assunto, dizendo haver certo ―ruído apaixonado‖. A esse respeito,

acresce:

Há nesta causa uma dose de exagero; o abolicionismo achou naquela

paciente uma vítima para os seus excessos. Se estas duas escravas estivessem em outra condição social, não haveria tal

ruído. O abolicionismo aproveitou a ocasião para protestar com valentia,

dando ao mesmo tempo pasto à doentia curiosidade do público, contra uma

situação política que se inaugurava como reacionária de todo o sentimento liberal, reação que a história não lhe perdoará certamente. (JURY, 1886, p.

02)

Ao tratar da ex-criada Maria Joaquina, questiona sua real existência. O advogado

afirma que o art. 193 é usado a fim de condenar a acusada, mas alega que, se a omissão de

socorro constituísse culpa, muitos seriam os condenados por negar cuidados aos milhares de

tuberculosos espalhados pela cidade. A respeito do alto preço pago pelas duas, alega que

naquele momento a compra e a venda de escravos estavam em alta, tendo em vista a não

proibição do tráfico intraprovincial. Antes do Sr. Cândido de Oliveira concluir, D. Francisca

tem novo ataque, mas curto. Ao retomar a palavra para finalizar, afirma que em uma sala onde

são dadas tantas cartas de liberdade, deve ser feita justiça em não condenar ―essa infeliz

mulher, de cuja desgraça se quer fazer uma luta contra o abolicionismo e o esclavagismo‖.

Após o resumo do debate feito pelo juiz, o mesmo formulou 48 quesitos em quatro

séries de 12. A respeito da decisão do júri, apresentamos a seguir o trecho divulgado no

jornal:

158

Figura 35 – Gazeta de Notícias, 25 out. 1886, p. 2

Figura 36 – Gazeta de Notícias, 25 out. 1886, p. 2

A sentença foi dada nos seguintes termos: ―De conformidade com a decisão do júri,

foi a acusada absolvida por unanimidade de votos‖. Depois disso, D. Francisca, acompanhada

por seu marido e filhos, retirou-se para casa em carro aberto. Poucos dias depois, mais

159

precisamente a 27 de outubro, o jornal divulga uma nota intitulada ―Responderemos‖. Nela,

João Clapp transcreve a resposta de José do Patrocínio contra as acusações de D. Francisca,

que alegou no julgamento que Clapp, Patrocínio e Sizenando Nabuco se interessavam pelo

caso, pois queriam dinheiro.

Em resposta, declara que o único contato com a parte acusada se deu via os senhores

Drs. Cândido de Oliveira e Ignácio Martins e o Dr. Figueira de Magalhães. Diz ter dito aos

advogados da acusada que, caso Joana sobrevivesse, o ocorrido não iria além de uma

―reparação razoável‖, no caso, a liberdade e um pequeno dote para que uma pudesse se casar

e a outra, comprar a liberdade da mãe, ainda escrava. Ademais, Patrocínio informa que, no dia

seguinte, um dos advogados levou ao seu escritório as cartas de liberdade das escravas, mas a

data coincidiu com a morte de Joana. Desde então, começaram as intrigas do processo, não se

encontrando mais com os advogados.

Assim, além de contestar a acusação da ré, também lembra que a Confederação

Abolicionista, ao tomar conhecimento do caso, adotou as devidas providências legais, o que

os impossibilitaria (Clapp, Patrocínio e Nabuco) de realizar qualquer negociação, caso

tivessem o mesmo caráter de seus detratores. Para concluir, declara:

Os advogados de Francisca de Castro reduziram o crime de Botafogo a uma

questão de dinheiro, e disseram verdade. Resta apenas que o público saiba

quem o recebeu, e estes não foram nem João Clapp, nem Sizenando Nabuco,

nem José do Patrocínio. (PATROCÍNIO, 1886, p. 02)

Voilà ce que l‘on dit sur les deux esclaves dans la « Gazette de Hollande »

O caso de Botafogo repercutiu na imprensa carioca durante todo ano de 1886 e,

mesmo passado o julgamento e o veredicto final, Machado de Assis rememorou o crime nos

versos espirituosos e brejeiros da primeira publicação de sua ―Gazeta de Holanda‖. Por meio

de menções claras a nomes facilmente reconhecidos pelos leitores da época, o versejador se

refere ao processo a partir da décima quinta estrofe, das 23 da publicação:

Exemplo: ao ler que se trata

De fazer um edifício

Para o júri: - colunata,

Vasto e grego frontispício.

E que esta ideia bizarra

Nasceu mesmo agora, agora, Quando foi ali à barra

Uma distinta senhora;

Quando a afluência de gente

160

Era tal, que o magistrado Teve de ir incontinente

Pedir sabão emprestado;

A referência ao julgamento evidencia o tom irônico do narrador da série, uma vez que

atribui à desgraça contra as duas escravas, o fato de terem construído um novo prédio para o

tribunal. Na crônica, o narrador se refere a algo que leu sobre a construção de um edifício para

o júri. O edifício com ―colunata, / Vasto e grego frontispício‖, faz referência ao pedido que

será apresentado a seguir. A ―ideia bizarra‖ como se refere, nasceu ―quando foi ali à barra /

Uma distinta senhora‖, certamente referência a D. Francisca Castro; ademais, menciona que

era tal a ―afluência de gente‖, que o magistrado imediatamente teve de ―pedir sabão

emprestado‖.

Fato é que a 26 de outubro de 1886, a Gazeta de Notícias divulgou na primeira coluna

da primeira página uma nota sob a titulação ―Fórum‖. Nela, comenta as condições do edifício

onde fora realizado o julgamento: péssima instalação para o júri; uma escada com cento e

cinco degraus; e um único compartimento para testemunhas junto ao cubículo dos réus. Além

do calor, ainda informa que as salas estariam em más condições de segurança. O apelo à

iniciativa particular, para a construção de um novo prédio, teria partido de um jurado, como

informa.

Depois de finda a sessão que inocentou D. Francisca de ter torturado suas duas

escravas, foi formada uma comissão para realizar a ―tão útil medida‖. Aclamada pelos jurados

que participaram do julgamento, a presidência da comissão foi dada ao Dr. Ferreira Vianna.

Abaixo, apresentamos o trecho inicial do pedido feito por jurados e advogados, dentre eles o

Dr. Sizenando Nabuco:

Figura 37 – Gazeta de Notícias, 26 out. 1886, p. 1

Após aceitar a presidência da comissão, o Dr. Ferreira Viana se reuniu com seus

membros. Além de declarar satisfação em presidi-la, informa que outrora o pedido para

construção de um prédio já havia sido feito ao conselheiro Nabuco de Araújo, quando este era

ministro da justiça. O presidente faz ainda alguns apontamentos sobre a nova construção,

como o custo da empreitada:

161

Figura 38 – Gazeta de Notícias, 26 out. 1886, p. 1

Um dos membros chamou a atenção para o alto valor da construção do edifício em

―colunata, / Vasto e grego frontispício‖, para retomarmos o texto machadiano. A isso, o Dr.

Ferreira respondeu ―– Só assim não nos sairá cara‖. No final da matéria, afirma-se que a ideia

tem tudo para não ser só mais uma ideia, levando em consideração a ―importância dos

membros que compõem a comissão‖. Depois de rememorar essas informações em sua

crônica, Machado prossegue sua referência ao julgamento130

:

Comigo disse: - Bem feito

Que a Joaninha expirasse De uma moléstia do peito,

E que a Eduarda cegasse.

Só assim tínhamos prédio

Para um tribunal sem nada;

Não foi morte, foi remédio; Foi vida, não foi pancada.

Aqui, cabe relembrarmos a epígrafe que abre este capítulo, visto que os dizeres de

Pangloss, personagem de Cândido, expressam a ideia de que ―tudo está bem quando tudo está

mal‖, a saber: ―(...) Tudo isso era indispensável, replicava o doutor caolho, e as desgraças

particulares constituem o bem geral; de sorte que, quanto mais houver desgraças particulares,

mais tudo estará bem‖ (VOLTAIRE, 2003, p. 18). Ao abordar o caso, a publicação se

aproxima das gazetas clandestinas, veiculadoras de assuntos de interesse público nos séculos

XVII e XVIII, como julgamentos e questões políticas.

Ademais, retomando os dizeres de Sá Rego (1989), vemos a coexistência do elemento

sério junto ao elemento cômico, sem que nenhum dos dois se sobressaia. Essa crônica,

altamente referencial, também tem como marca constitutiva a presença do recurso satírico, o

130 O caso parece ter despertado tanta atenção dos cariocas, que, na publicação de 25 de outubro, dia, portanto,

em que se divulgou a sentença final, os redatores informam em nota que a tiragem do jornal no dia anterior foi

extraordinária. Isso fez com que os jornais se esgotassem muito cedo. Para mais, declaram que alguns

vendedores recebiam abusivamente 100 réis pela folha da qual o preço habitual era 40.

162

que consiste em uma clara demonstração do fazer literário do autor. Essa mesma técnica já foi

explorada por Lúcia Granja (2000). A pesquisadora mostra que não só recursos e técnicas do

fazer literário, mas temas abordados em crônicas foram retomados e aprimorados em

produções literárias posteriores. Por isso, a estudiosa questiona:

Como encontrar uma unidade para cada um desses textos e, ampliando, para a série em geral? Essa unidade sem dúvida existe, em relação aos

procedimentos narrativos. Nas séries de crônicas mais tardias que Machado

escreveu, isso se afigura de maneira bastante clara. O comportamento do narrador é uniforme, de modo que ele pode ser considerado quase uma

personagem do texto. (...) (GRANJA, 2000, p. 25)

Essa última consideração pode ser pensada, em especial, em ―Gazeta de Holanda‖,

principalmente por ser ela escrita na dita ―segunda fase‖ ou ―fase madura‖ do autor, conforme

consideram alguns críticos. Para exemplificar a composição cronística de Machado, Granja

(2000) destaca a imagem do leitor, parte integrante e fundamental na produção machadiana; a

escolha lexical; a construção sintática; bem como a utilização de figuras retóricas. Como

também afirma, é bem articulado o uso desses elementos, de modo que as palavras não

servem de adorno. Outro aspecto que chama a atenção da autora é o uso da autoridade literária

como forma de criar uma força argumentativa e de representação no texto. Por esse motivo,

faz a seguinte consideração:

(...) a tradição literária estará para sempre à disposição do narrador, que lançará mão da autoridade que ela lhe empresta, ainda que a distorça, sempre

buscando o seu benefício próprio e, nesse sentido, suas observações,

conselhos. Reflexões sobre a moral podem se tornar cada vez mais irônicas. E, sem dúvida, se esta pena pôde assim se tornar, foi graças ao exercício

constante das hábeis mãos que a conduziam. (GRANJA, 2000, p. 72)

É justamente esse aspecto literário que assegura e dá perenidade às crônicas. É por

meio disso também que o narrador mostra a sua alta consciência literária, ainda segundo

Granja (2000). Assim, essa ―(...) consciência da fragmentação, que ele demonstra pela

percepção poética dos recursos que lhe oferece a linguagem do jornal, confere-lhe o título de

um narrador moderno‖ (GRANJA, 2000, p. 145-146). No texto em estudo, esse recurso

aparece de forma explícita nas últimas estrofes da publicação. Nelas, há uma clara menção ao

doutor Pangloss, personagem de Cândido (2003), do filósofo e escritor francês Voltaire.

Na obra, ridicularizam-se religiões, teólogos, governos, exércitos, filosofias e

filósofos, todos submetidos aos óculos satíricos da personagem, que põe em questão a teoria

do otimismo incondicional que perpassa a história, em um primeiro nível de leitura. Na

crônica, a referência é feita do seguinte modo:

Pangloss, o doutor profundo,

163

Mostra que há grande harmonia Entre as coisas deste mundo,

Entre um dia e outro dia;

Que os narizes foram dados

Para os óculos; portanto,

Trazem óculos pousados... Pangloss é o meu padre-santo.

Logo, se uma e outra escrava

Brigaram sem sentimento, A razão de ação tão brava

Foi termos um monumento.

Neste ponto o ponto pingo,

E despeço-me no ponto

Em que cada novo pingo,

Já não é ponto, é posponto.

Malvólio

(GAZETA DE HOLLANDA, 1886, p. 01)

Cândido (2003) é, portanto, trazido ao repertório de recursos por meio dos quais a

primeira crônica delineia o que poderiam ser os propósitos da série – apresentando-se, ainda,

como referência importante, já que várias de suas metáforas e alegorias serão retomadas ao

longo de outras crônicas. Ao mencionar Pangloss, são retomados, pelo menos implicitamente,

alguns dos princípios do otimismo, filosofia pregada pelo doutor, em Cândido. Nela,

encontramos a dúbia formulação ―tudo está bem quando se está mal‖, crença com a qual outra

criação machadiana, o filósofo Quincas Borba131

, mostrava-se em harmonia.

As tiradas zombeteiras ao longo da obra de Voltaire podem servir como pontos de

reflexão nessa primeira publicação de Machado de Assis. Isso porque, ao afirmar que tal

personagem é seu ―padre-santo‖, aparenta estar de acordo com seu pensamento. Dessa forma,

atribui a construção do prédio do tribunal à desgraça ocorrida com as duas escravas, como se

demonstra nos versos a seguir: ―Logo, se uma e outra escrava / Brigaram sem sentimento, / A

razão de ação tão brava / Foi termos um monumento‖. Semelhantemente, doutor Pangloss, em

Cândido, faz a seguinte asserção:

Está demonstrado, afirmava ele [Pangloss], que as coisas não podem ser

diferentes; pois, tudo sendo feito para um fim, tudo é necessariamente para o

melhor fim. Observai que os narizes foram feitos para sustentar óculos; por

isso temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para serem calçadas, e nós temos calças. (...) Por conseguinte, aqueles que afiançaram

que tudo está bem disseram uma tolice: deviam dizer que tudo está o melhor

possível. (VOLTAIRE, 2003, p. 04-05)

131 Conferir capítulo XI de Quincas Borba. Ainda é interessante relembrar que a escrita do romance coincide

com o período de publicação de ―Gazeta de Holanda‖.

164

Assim, se todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis,

o narrador do texto machadiano mostra isso de forma irônica, sobretudo ao recuperar essa

referência literária junto a informações de maior conhecimento público, como o julgamento

de D. Francisca da Silva Castro. Ao final da publicação, mais uma vez a composição se torna

tema. Como conclusão, o narrador diz encerrar não apenas o assunto, como também o seu

texto: ―Neste ponto o ponto pingo, / E despeço-me no ponto / Em que cada novo pingo, / Já

não é ponto, é posponto‖. Esse mesmo caso seria abordado por Arthur Azevedo, na revista de

ano O Carioca, em 1887. Dentre os aspectos abordados pelo autor, também há menção à

construção do prédio.

Essa primeira publicação, portanto, a partir da trindade aqui já estudada (elementos

satíricos, recursos paratextuais e pseudônimo), anuncia o que seria essa ―gazeta de Hollande‖

carioca. Com tiradas zombeteiras e brincalhonas, Machado de Assis mostra seu real e sério

compromisso em lidar com questões de forte interesse popular, como a escravidão. Assim,

para tratar das mazelas sociais, não parece ser possível outro a não ser Malvólio a dizê-las.

Um obscuro herói: o capoeira entre a navalha e a rasteira

Como mencionado na abertura deste capítulo, em ―Gazeta de Holanda‖ Machado de

Assis abordou não só o caso de D. Francisca da Silva Castro, diretamente ligado à escravidão,

como também do negro que vivia na condição de status líber e da capoeiragem. Em

publicação de 1º de agosto de 1887, o cronista trata dos capoeiras. A prática, tida hoje como

patrimônio cultural brasileiro foi considerada crime entre os anos de 1890 e 1938, como

previa o Código Penal de 1890. No art. 402 do capítulo XIII (―Dos vadios e capoeiras‖)132

, era

prevista a prisão do praticante pelo período de dois a seis meses, tornando-se um agravante

seu pertencimento e/ou chefia de grupos de capoeiragem.

Eduardo de Assis Duarte, em seu ensaio ―A capoeira literária de Machado de Assis‖

(2009), aborda as estratégias linguísticas utilizadas pelo autor para tratar dos mais diversos

assuntos. Dentre as técnicas, considera que Machado utilizou de certa dissimulação em sua

132 ―Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecido pela

denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão

corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo termos de algum

mal; Pena – de prisão celular por dois a seis meses‖ (2004, p. 775, grifo do autor). Para saber mais, consultar:

SOARES, Oscar de Macedo, 1863-1911. Código penal da República dos Estados Unidos do Brasil. Prefácio

de Humberto Gomes de Barros. Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal: Superior Tribunal de Justiça, 2004.

165

escrita, semelhantemente à ginga de um capoeirista. É desse modo, pois, que o pesquisador

começa a sua explanação:

Inicialmente uma mistura de dança e jogo, a capoeira se desenvolveu no

Brasil a partir da contribuição africana, sobretudo através dos fundamentos introduzidos por escravos da etnia banto. Sua principal característica é a

ginga, movimento de corpo destinado a enganar o oponente, e que traduz

toda a malícia inerente à prática de dissimular os golpes em esquivos passos

de dança. O praticante da capoeira usa o gingado ou ato de gingar, que consiste em bambolear o corpo para a direita e a esquerda, a fim de

confundir o adversário, escapar de seus golpes, e procurar o momento e o

ângulo certos para atacar. (DUARTE, 2009, p. 27, grifos do autor)

Já no ensaio ―Capoeira na escravidão e no pós-abolição‖ (2018), presente no

Dicionário da escravidão e liberdade, os estudiosos Antônio Liberac Cardoso Simões Pires

e Carlos Eugênio Líbano Soares, explanam sobre a prática no Brasil. Os dois apontam que as

primeiras menções à atividade combativa já se davam entre o final do século XVIII e início

do XIX. Eles destacam também a formação de grupos de escravos, os ditos maltas, que

visavam o domínio do espaço urbano por meio da capoeiragem, como ocorreu com a cidade

do Rio de Janeiro e outras províncias, como Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará.

Assim como Duarte (2009), Pires e Soares (2018) entendem o termo ―capoeira‖ como

referência a uma prática lúdica de dança. Nisso, retomam um estudo das primeiras décadas do

século XX, para explicar a etimologia da palavra. Segundo informam:

Nos primórdios do século XIX, com a chegada da família real portuguesa, a Guerra Real de Polícia, criada então, testemunha em seus registros um certo

―jogo do capoeira‖ que remete a uma prática lúdica (dança) de um

personagem (o capoeira). Tal conceito confirma a tese do escritor Adolfo Morales de los Rios Filho, o qual, em artigos de 1926, sustenta que capoeira

era a dança marcial dos negros carregadores de cesto; na etimologia tupi-

guarani: caá (mato) + pó (círculo), círculo de palha (de mato). Assim, capoeira era o carregador (radical ―eira‖) do cesto chamado ―caápó‖;

capoeiro, capoeira. Esses escravos, ainda de acordo com o escritor, eram

fortemente presentes na antiga estiva do Rio, na beira do morro do Castelo,

hoje largo da Misericórdia. (...) (PIRES, SOARES, 2018, p. 137)

Ademais, acrescem que as disputas entre esses escravos ocorriam, em geral, nas praças

com maior número de fontes de água, tendo em mente que eram justamente estas as mais

frequentadas. Na maioria das vezes, os combates se davam à noite, quando a vigilância da

polícia era menor. Embora a prática não aparecesse no Código Criminal do Império, eram

duros os castigos aplicados contra aqueles que praticavam a capoeira. Além dos duzentos

açoites a que estava sujeito, o preso também poderia ser enviado para a Presiganga, nau que

servia como navio-prisão, ancorada na baía de Guanabara. Eram grandes as dificuldades das

autoridades no combate aos capoeiras, levando em consideração a maneira como atuavam:

166

Tudo indica que a capoeira surgiu da combinação de diferentes ritos corporais africanos que alcançaram a América pelo tráfico atlântico e se

condensaram no ambiente urbano escravista, fundamental para a sua

formação complexa. Como prática cultural de escravos negros nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, tal luta caracterizava-se por

determinados golpes de perna e cabeça, mas também pelo uso generalizado

de instrumentos cortantes (navalha, faca, porrete, canivete, sovela). Algumas maltas da primeira metade do século XIX usavam fitas de cores vermelha e

amarela para se distinguirem. Os conflitos se davam sobretudo entre maltas

rivais, mas aos poucos o poder público passou a intervir nos confrontos, até

que na metade desse século aconteceu uma verdadeira guerra do poder policial contra as maltas. (PIRES, SOARES, 2018, p. 138)

Ainda de acordo com os historiadores Pires e Soares (2018), com o fim do tráfico

negreiro em 1850, ocorreu um processo de crioulização, isto é, ―(...) hegemonia gradual de

escravos nascidos no Brasil na população cativa. Era o início da transição do que chamamos

capoeira africana (escravos) para a capoeira crioula (libertos, livres, estrangeiros brancos)‖

(PIRES, SOARES, 2018, p. 139). Além disso, muitos dos capoeiras atuavam como capangas

político-eleitorais de partidos monárquicos, em especial, o Partido Conservador. Como bem

observam, há muita especulação a respeito dos capoeiras e do modo como agiam; exemplo

disso são os grupos rivais denominados Nagoas e Guaiamuns:

(...) Suas origens obscuras permitem apenas vislumbrar que eram o eco de duas tradições na capoeira escrava: uma africana e a outra crioula. Uma

ocupava a periferia imediata da área central da corte (Nagoas); a outra, o

núcleo mais antigo da cidade colônia, a Cidade Velha (Guaiamuns). Uma deveria provir da antiga capoeira africana, inventada por escravos vindos de

além-mar; a outra, derivava dos nascidos na terra, pardos e pretos crioulos,

portadores de uma identidade protonacional. Uma evocava a tradição rebelde

dos africanos ocidentais da Bahia, imortalizada na Revolta dos Malês de 1835; a outra buscava longínquas origens indígenas tupis-guaranis. (PIRES,

SOARES, 2018, p. 140)

Encontramos com facilidade e até certa recorrência, menções na imprensa da época

sobre confrontos entre grupos rivais de capoeiras. De modo geral, as práticas estavam sempre

associadas à coluna destinada aos casos policiais e à crônica policial. A 29 de agosto de 1885,

por exemplo, o Diário de Notícias divulga uma nota intitulada ―Guerra aos capoeiras!‖. Nela,

destaca os constantes conflitos que têm provocado os capoeiras, os quais se acometem com

seus rivais com pedradas e faca em punho. A ―gente honesta e pacífica‖ como a população é

classificada, nem mesmo dentro de casa encontra segurança. Ademais, a linguagem com que

interpelam inimigos e desconhecidos é digna de repressão na breve nota. Afirma-se mesmo

que a ausência da polícia agrava a ―grandeza do mal‖. Por fim, pede-se que o novo chefe

policial extermine com a capoeiragem.

167

A 5 de setembro de 1885, em uma nota com mesma titulação da anterior, o jornal

menciona a construção de barracas para um festejo a ocorrer no campo da Aclamação. A isso,

acresce a seguinte informação:

Figura 39 – Diário de Notícias, 5 set. 1885, p. 1

Segundo informa, o Dr. Coelho Bastos, o mesmo delegado que em 1886 se

encarregaria de abrir o inquérito contra D. Francisca da Silva Castro, tem operado uma rusga,

que, a princípio, seria um indício de que se encarregaria de pôr fim à capoeiragem. A 28 de

novembro de 1885, na matéria ―A nossa polícia‖, enfatizam-se as constantes solicitações para

melhoria da segurança pública na capital. Desse modo, ao mencionar a capoeiragem,

consideram a prática como um ―vergonhoso espetáculo‖ que os estrangeiros testemunham,

podendo mesmo formar uma má opinião do ―nosso povo ordeiro‖. Afirma-se também que

quase diariamente a imprensa registra tais conflitos, ao que complementam:

Figura 40 – Diário de Notícias, 28 nov. 1885, p. 1

Além de sugerir certa condescendência por parte da autoridade policial, é afirmado

que os capoeiras são ―desordeiros, vagabundos e até ratoneiros‖, sendo que muitos são

recrutados para a polícia, a fim de ―zelar e defender a vida e propriedade da população

pacífica da imperial cidade de S. Sebastião‖. Não obstante chamar a atenção para o receio da

população em sair às ruas, o texto também faz duras críticas ao delegado Dr. Coelho Bastos.

Ao tratar da insatisfação com a nova autoridade policial, a matéria rememora um crime

ocorrido a 21 agosto do corrente ano. Nele, um jovem de nome Manuel Moreira Pinto teria

sido ―barbaramente assassinado por capoeiras‖. Na noite em que ocorrera o crime, muitos

capoeiras foram detidos, dentre eles Gregório Nogueira de Azevedo Paredes, apontado como

168

autor do assassinato. Preso, então, pelo antigo 3º delegado de polícia, a atual chefia não só

soltara como ainda o tornara agente secreto. A 13 de dezembro de 1885, o caso voltaria a ser

assunto no jornal, na matéria ―O crime na Rua dos Andradas: um brado de indignação contra

a capoeiragem‖.

O mesmo jornal, a 24 de dezembro de 1886, relaciona a prostituição e a capoeiragem

em ―A bem da ordem‖. Na nota, destaca-se que as ―desgraçadas mulheres‖, em vista das

perenes ameaças, ―procuram elemento de segurança na navalha do capoeira‖, mas,

simultaneamente, tornam-se alvo de nova exploração por parte deles. Da mesma maneira que

o Diário de Notícias e tantos outros jornais da época, a Gazeta de Notícias veicula

informações envolvendo os capoeiras. Em nota publicada a 14 de abril de 1887 a respeito das

representações do ator Vasques, é dado o seguinte destaque para sua atuação na comédia Os

capoeiras. O comentário elogioso também dá detalhes do enredo:

Figura 41 – Gazeta de Notícias, 14 abr. 1887, p. 2

Fora destacar o estilo ligeiro da cena cômica, a menção ao conteúdo revela que a

capoeiragem é amplamente praticada, insinuando, mesmo, que os capoeiras dão golpes e

fazem o possível para atingir seus objetivos. Todos capoeiram, como se enfatiza. No dia 10

de junho a Gazeta de Notícias publica informações referente aos capoeiras. Na publicação,

menciona uma ―grande batalha‖ realizada no largo de S. Francisco de Paula. Na ocasião, um

saiu ferido e outros sete foram presos. . A 12 do mesmo mês, a crônica policial divulga a

seguinte informação:

169

Figura 42 – Gazeta de Notícias, 12 jun. 1887, p. 2

Essa publicação saiu na segunda página, uma coluna depois da publicação de número

19, da ―Gazeta de Holanda‖. A 2 de julho o mesmo periódico publica matéria sobre uma

tentativa de assassinato contra um sargento do corpo de polícia. O homem, ferido na cabeça

por um capoeira, encontrava-se em estado grave no hospital do quartel. A 23 de julho de

1887, a seção ―Júri‖ menciona julgamentos ocorridos no dia precedente. Dentre eles, cita o

caso de João José da Silva, de cognome João Veado, brasileiro, de 25 anos, solteiro, pescador,

sabendo ler e escrever. Em 12 de abril do mesmo ano, o réu, que é conhecido por capoeira,

feriu com uma navalha dois homens, fazendo-lhes ofensas leves. No caso, depuseram três

testemunhas de acusação. O rapaz foi condenado ―a 1 ano de prisão e multa correspondente à

metade do tempo, grau máximo do art. 201 do código penal‖.

A 24 de julho, o jornal publica na primeira página a matéria ―A polícia e os

capoeiras‖. O texto é iniciado com uma referência às constantes correrias provocadas pelos

capoeiras. Na reflexão, afirma-se que os ―obscuros heróis da navalha e da rasteira‖ como são

chamados no texto, advêm da mais ínfima camada social. A dita ―instituição‖ de tão enraizada

nos costumes brasileiros, seria tolerada pelo poder público, o qual se omitiria em tomar

providências mais enérgicas para extinguir o mal. De mais a mais, é afirmado que há uma

aproximação de pessoas bem nascidas com os capoeiras. Considerada como uma das maiores

pragas a assolar o Rio de Janeiro, a capoeiragem é tida na matéria como uma ameaça contra a

vida do cidadão, sendo responsável pela deterioração moral. Muito embora algumas

autoridades policiais tenham tentado por fim à prática, destaca-se que o esforço foi em vão,

dado que o problema advém da própria organização do corpo policial e da falta de leis:

170

Figura 43 – Gazeta de Notícias, 24 jul. 1887, p. 1

Sobre a indiferença da polícia, é afirmado que seu corpo é formado por pessoas que

convivem ou conviveram com os capoeiras, de modo que ainda guardam ―certo respeito ao

espírito de classe‖, o que reforça certa leniência policial em relação à capoeiragem. Também

são mencionados os lugares mais frequentados por seus praticantes, como os largos de S.

Francisco de Paula, Carioca e Rocio. Ao findar o texto, são propostas duas medidas visando

sua extinção. A primeira se refere a uma reforma do corpo policial, aumentando o número de

policiais. Já a segunda, diz respeito à decretação de leis especiais a fim de punir aqueles que

praticam a capoeira. No último parágrafo da matéria, afirma-se que já há um projeto de lei na

assembleia com essa finalidade, isto é, a de acabar com a atividade ―cuja existência se explica

pela proteção e pela indiferença culpada‖.

Voilà ce que l‘on dit sur les capoeiras dans la « Gazette de Hollande »

De forma breve, apresentamos aqui uma questão inesgotável e muito abordada pela

imprensa oitocentista. Não finda nossa discussão, cabe agora recuperarmos a publicação de

―Gazeta de Holanda‖ em que Machado de Assis tematizou a capoeiragem. É oportuno

lembrar que o mesmo texto já foi mencionado na seção ―Os versos cintilantes e espirituosos

de um cronista brejeiro‖, dado o comentário feito em ―Contos e Pontas‖, do Diário de

Notícias. Nele, seu autor afirma não ter compreendido a versalhada do dia anterior,

acrescentando ―Pois é como lhes digo: não entendi o homem, o que me penalizou de algum

modo‖. Os versos de ―infinita graça‖ a que se refere foram publicados na crônica de número

22, a sair em 1º de agosto. O assunto foi abordado nos seguintes termos ao longo dos 21

quartetos:

Anda agora toda a imprensa,

Ou quase toda, cuidando De alcançar que, sem detença,

Acabe um vício nefando.

171

Na brasileira linguagem, Essa nacional usança

Chama-se capoeiragem;

É uma espécie de dança,

Obrigada a cabeçadas,

Rasteiras e desafios, Facadas e punhaladas,

Tudo o que desperte os brios.

Há formados dois partidos, Dizem, cada qual mais forte,

De tais rancores nutridos,

Que o melhor desforço é morte.

Ora, os jornais que desejam

Ver a boa paz nas ruas,

Reclamam, pedem, forcejam Contra as duas nações cruas.

Referem casos horrendos, Já tão vulgares que soam

Como simples dividendos

De bancos que se esboroam.

E zangam-se as tais gazetas,

Enchem-se todas de tédio,

Fazem caras e caretas Por não ver ao mal remédio.

O cronista se refere à atenção dada pela imprensa ao que chama de ―vício nefando‖.

Como informa, a capoeiragem, na linguagem brasileira, é uma espécie de dança, na qual são

obrigadas ―cabeçadas‖, ―rasteiras e desafios‖, além de ―facadas e punhaladas‖. Mesmo sem

mencionar diretamente os Guaiamuns e os Nagoas, parece fazer alusão aos dois grupos

quando se refere aos ―dois partidos‖ e às ―duas nações cruas‖. A preocupação dos jornais em

ver finda a prática da capoeira é destacada na crônica, bem como pudemos verificar nas

matérias dos periódicos aqui citados. Além de casos ―horrendos‖ noticiados, informa que as

gazetas ―enchem-se todas de tédio, / fazem caras e caretas / Por não ver ao mal remédio‖.

A partir da oitava estrofe, essa persona, além de se mostrar como uma das ―alminhas

bem nascidas‖, também se propõe a consolar as gazetas ao sugerir que busquem por livros

contendo ―decisões de vinte e quatro / (Há sessenta anos!)‖. Essa referência se reporta à

decisão imperial tomada há exatos 63 anos. A data é informada na décima sétima estrofe:

Vou consolá-las. É uso Das alminhas bem nascidas

Dar, contra o pesar intruso

Consolações repetidas.

172

Eu (em tão boa hora o diga, Que me não minta esta pena!)

Tenho aquela corda amiga

Que, em pena, dá eco à pena.

Inda quando a rima saia,

Como essa, um pouquinho dura, (Ou esta da mesma laia)

É rima que dói, mas cura.

As consolações — ou antes A consolação é uma;

Trepa tu pelas estantes,

Busca, arruma, desarruma:

E, se tens livros contendo

Decisões de Vinte e Quatro

(Há sessenta anos!) vai lendo Um aviso áspero e atro.

Entre a décima terceira e décima sexta estrofes, é recuperada a decisão tomada na

década de 1820, quando se puniam as práticas dos negros capoeiras. O cronista faz, pois,

referência à ordem de 28 de maio de 1824, adotada pelo governo do Império do Brasil. Essa e

outras decisões se encontram reunidas na Collecção das Decisões do Governo do Império

do Brazil de 1824, publicada pela Imprensa Nacional, em 1886. Sob o número 122, a medida

dá as seguintes providências contra os negros denominados capoeiras:

Constando que os negros denominados capoeiras continuam com insolência

a fazer desordens nas ruas desta cidade: Manda S. M. o Imperador, pela

Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, que o Conselheiro Intendente Geral da Polícia, em execução das suas Imperiais Ordens a este respeito, e

para que de uma vez cessem tais distúrbios, faça castigar imediatamente a

qualquer escravo, que for encontrado em tais desordens, seja quem for seu senhor, com a pena, que estiver em uso, e até com o dobro quando pela

gravidade delas se fizer necessário maior castigo: S. M., recomendando a

maior energia neste objeto, confia que o referido Conselheiro, por meio de prontas e eficazes medidas, conseguirá extirpar de todo tais abusos, tão

contrários à segurança e tranquilidade dos habitantes desta capital.

Palácio do Rio de Janeiro em 28 de Maio de 1824 – Clemente Ferreira

França. (BRASIL, 1824, p. 87)

Essas informações são retomadas em uma espécie de paródia, na publicação. Esse

elemento satírico é de uso recorrente na escrita de Machado de Assis, conforme aponta Sá

Rego (1989). Nessa crônica, em específico, além da clara convivência entre prosa e verso,

ainda vemos a hibridização entre o texto cronístico (estilo baixo) e a decisão imperial (estilo

alto), como demonstraremos nas estrofes a seguir. Nelas, são referidas as decisões tomadas

por Sua Majestade, afirmando requerer uma paz ―como à que tinham dantes‖. No entanto,

outras de suas considerações parecem desmentir a proposição:

173

Lê isto: ―Para que cessem De uma vez os capoeiras,

Que as ruas entenebrecem,

Com insolentes canseiras,

―Manda o imperador, que sabe

E quer pôr a isto cobro, Dar a pena que lhes cabe,

E se for preciso, em dobro.

―Recomenda neste caso Que haja a maior energia,

Para que em estreito prazo

Acabe a patifaria;

―E seja restituída

A paz aos bons habitantes,

De modo que tenham vida Igual à que tinham dantes‖.

Na crônica, tal qual a resolução Imperial, são referidas as seguintes informações:

manda aplicar pena, ―e se for preciso, em dobro‖. A fim de acabar com ―os abusos‖ ou ―a

patifaria‖ como referida no texto machadiano, pede-se que a pena se faça com maior energia.

Só assim será possível extirpar abusos ―contrários à segurança e tranquilidade dos habitantes

desta capital‖, menção que parece ser retomada da seguinte forma nos versos machadianos:

―E seja restituída / A paz aos bons habitantes, / De modo que tenham vida / Igual à que

tinham dantes‖. Depois disso, na décima sétima e décima oitava estrofes são feitas as

seguintes considerações:

Ora, se este aviso expresso (Que é de vinte e oito de maio)

Teve tão ruim sucesso

Que inda fulge o mesmo raio,

Concluo que o capoeira

Nasceu com a liberdade,

Ou deu a nota primeira Se tem mais que a mesma idade.

O ―aviso‖ teve ruim sucesso, pois o mesmo raio ainda resplandecia. Isto é, passados

tantos anos, o decreto que visava por fim à capoeiragem não obteve o resultado esperado.

Sendo assim, conclui-se que o capoeira nasceu junto à liberdade, ou anteriormente a ela;

talvez, porque muito antes dos povos de África serem escravizados, essa ―espécie de dança‖

já fazia parte de suas culturas, como apontamos aqui.

No mesmo ano de 1824, foram tomadas outras três deliberações acerca dos capoeiras.

A primeira delas, a 30 de agosto, previa que os negros, presos pela prática da capoeira, fossem

174

enviados para as obras do Dique. Essa pena, que duraria três meses, substituiria os açoites. A

segunda decisão, de 13 de setembro, retifica a anterior, informando que tal punição deveria

ser aplicada tão-somente aos escravos capoeiras e que homens livres deveriam antes receber

uma sentença. Já a última, de 09 de outubro, informa que S. M. o Imperador, além do trabalho

no Dique, manda aplicar o castigo de duzentos açoites ao escravo preso por capoeira.

Mesmo sem mencionar essas informações de forma explícita, a publicação de

Machado de Assis recupera uma decisão tomada há mais de 60 anos e que já almejava pôr fim

à capoeiragem. Aliás, isso nos mostra como a capoeira já há muito tempo era alvo das

autoridades, estando presente em diferentes momentos históricos do país, como se verá nas

três últimas estrofes da publicação:

Valha-nos isto, que ao menos

Consola a gente medrosa, E faz de alguns agarenos

133

Cristã gente gloriosa.

Sete de abril, a Regência, Depois a Maioridade,

Partidos em divergência,

Barulhos pela cidade,

Guerras cruas e compridas,

Exposições, grandes festas, Paradas apetecidas,

Tudo viu a faca e a testa...

Malvólio (GAZETA DE HOLLANDA, 1887, p. 01)

Relembrar o antigo veredito imperial parece ser uma forma de consolar essa ―gente

medrosa‖, fazendo de alguns ―agarenos‖ uma gente Cristã. São citadas, ainda, algumas datas

importantes, tais como: o dia 7 de abril de 1831, Abdicação do Imperador; a Maioridade de

Dom Pedro II, que, a 23 de julho de 1840, entrou no exercício de seu poder real, sendo

coroado a 18 de julho de 1841, aos quinze anos; os ―Partidos em divergência‖, verso

possivelmente alusivo às discussões acerca da Lei do Ventre Livre, de 1871; as ―Guerras

cruas e cumpridas‖, possível alusão à guerra do Paraguai; tal como ―Exposições‖ e ―grandes

festas‖. A esse respeito, por que não pensarmos na Exposição Universal de 1867 em Paris, na

qual o Brasil não participou devido à armada contra o Paraguai? Na ocasião, foi enviado um

133 De acordo com Antônio de Morais da Silva, no Diccionário da Língua Portugueza, agareno tem o seguinte

significado: Adj. Monrisco, Maumethano. Sangue Agareno, jugo Agateno, gente Agarena. Brit. Chron. Sc. §. s.

m. Mouro, ou Turco descendente de Agar , ou Ismael. Ceit. Serm. Chamamos – ou Ismaelitas, que são os

Mouros, ou Turcos. (1823, p. 66). Segundo o Novíssimo Dicionário Latino-Portuguez, Agar era uma serva de

Abrahão, e mãe de Ismael.

175

catálogo para dar a conhecer as riquezas do país, como informado na própria Advertência134

do inventário.

Por conseguinte, Malvólio se revela como um vivo espectador de grandes fatos do

país, demonstrando isso por meio de todo seu gingado na linguagem e de suas artimanhas na

composição da ―gazeta‖, tal qual um capoeira em sua luta combativa. Ao afirmar que ―tudo

viu a faca e a testa‖, o verso ressoa como um modo de desmentir a dita restituição da paz,

tendo em mente as diferentes circunstâncias marcadas por embates, nas quais a capoeiragem

identicamente deixou seu rastro. De modo igual, essa declaração torna agente a capoeira,

transformando-a em uma espécie de testemunha da história, à medida que a imprensa carioca

se mostrava envergonhada e temerosa pelo seu povo.

É pai Silvério quem fala...

Ao tratarmos da figura do pregoeiro dentro da produção machadiana, como não nos

lembrarmos do ―preto das cocadas‖, que entoa seu pregão ―Chora, menina, chora / Chora,

porque não tem / Vintém‖, no capítulo XVIII ―Um plano‖, de Dom Casmurro (2015a, p.

924)? Tão sabido do bairro e da infância de Bentinho e Capitu, o canto é considerado pelo

narrador como uma doce lembrança de seu passado. Para o estudioso John Gledson, em

Machado de Assis: Impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro (1991), a

cena é ―(...) a alusão mais crua à inferioridade social e econômica de Capitu, em relação a

Bento, em todo o livro. E é significativo que seja transmitida por alguém de condição social

inferior à dela. (...)‖ (GLEDSON, 1991, p. 100). No mesmo romance, mais especificamente,

no capítulo CX ―Rasgos da infância‖, a mesma música é rememorada por Bento, na ocasião

em que pede à esposa para tocá-la ao piano.

Um indivíduo de condição social inferior, cujo pregão anunciava a venda de vassouras

e espanadores pelas ruas cariocas, também é relembrado pelo conselheiro Marcondes Aires.

Em seu Memorial, na primeira nota, datada de 09 de janeiro de 1888, faz a seguinte

afirmação:

134 A respeito da escravidão no Brasil, é informado que são 1.400.000 escravos em uma população formada por

11.780.000 habitantes. A essa informação, são acrescidas as seguintes declarações: ―Os escravos são tratados

com humanidade, vivendo em geral em boas acomodações e bem alimentados. Possuem até, na maior parte das

fazendas, suas lavouras particulares, de cujos produtos dispõem livremente.

―O trabalho é hoje moderado, e de ordinário só durante o dia, sendo as noites destinadas ao descanso e em parte

a práticas religiosas ou a seus divertimentos‖ (1867, p. 28-29). Para saber mais, conferir: BRASIL. O Império

do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1867.

176

Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de

vassouras e espanadores. ―Vai vassouras! Vai espanadores!‖. Costumo ouvi-

lo outras manhãs, mas desta vez trouxe-me à memória o dia do desembarque, quando cheguei aposentado à minha terra, ao meu Catete, à

minha língua. Era o mesmo que ouvia há um ano, em 1887, e talvez fosse a

mesma boca. (MACHADO DE ASSIS, 2015a, p. 1197)

Já na memória de 24 de maio do mesmo ano, o velho conselheiro, ao devanear uma

proposta de consórcio para a viúva Fidélia, é desperto por seu criado José e pelo canto do

pregoeiro que passa na rua:

Peguei-lhe nas mãos [de Fidélia], e enfiamos os olhos um no outro, os meus

a tal ponto que lhe rasgaram a testa, a nuca, o dorso do canapé, a parede e foram pousar no rosto do meu criado, única pessoa existente no quarto, onde

eu estava na cama. Na rua apregoava a voz de quase todas as manhãs: ―Vai...

vassouras! vai, espanadores!‖. (MACHADO DE ASSIS, 2015a, p. 1220)

Coincidência ou não, muito antes da escrita desses dois romances, Machado de Assis

já havia apresentado aos leitores de ―Gazeta de Holanda‖ um outro pregoeiro de nome pai

Silvério. Na publicação de 27 de setembro de 1887, sob a numeração 29, o cronista deu voz

àquele a quem as discussões acerca da liberdade interessavam mais: o escravo. No texto

composto por 19 quartetos, o narrador dialoga com um preto de ganho. É desse modo, pois,

que o autor expõe as mazelas sociais e a violência a que os escravos estavam sujeitos, mesmo

vivendo sob a condição jurídica denominada por status-liber.

O estado do status-liber brasileiro

A 28 de setembro de 1885, foi promulgada a lei que ficaria conhecida por Lei do

Sexagenário. Ela estabelecia a libertação de escravos com a idade de 60 anos. Foi mais um

passo em prol da abolição depois do fim do tráfico negreiro com a Lei de 1850 e da Lei do

Ventre Livre, em 1871. Mas, como informa a historiadora Joseli Maria Nunes Mendonça, em

―Legislação emancipacionista, 1871 e 1885‖, a lei foi interpretada pelos abolicionistas como

retrógrada, pois surgia como um ―balde de água fria‖ contra o movimento. O objetivo de

abrandar a efervescência da luta, contudo, não foi plenamente alcançado, dado que dois anos

depois do decreto, a escravidão já era considerada uma ―instituição condenada‖. A estudiosa

também dá mais detalhes sobre a determinação:

A Lei dos Sexagenários, como ficou conhecida, estabeleceu a alforria dos escravos que tivessem mais de sessenta anos. Como a de 1871, para

responder à demanda dos senhores por ressarcimento, ela afirmou que os

velhos escravos alforriados, ―a título de indenização pela sua alforria‖,

deveriam ―prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos‖.

177

Definia também novos critérios para a alforria pelo Fundo de Emancipação; proibia a transferência de domicílio dos escravos de uma província a outra;

decretava que os libertos fixassem residência por cinco anos no município

em que foram alforriados. Além disso, estipulava o preço máximo dos escravos, de acordo com a faixa etária, determinando que tal valor fosse

registrado em nova matrícula geral. Os debates parlamentares evidenciam

que a fixação desses valores visava sanear os conflitos que ocorriam no Judiciário em torno do preço a ser pago pelos escravos aos senhores, bem

como frear a tendência de queda do preço de mercado do ―elemento servil‖,

naquela conjuntura de extrema agitação em defesa da emancipação.

(MENDONÇA, 2018, p. 283)

No entanto, se, por um lado, essa nova lei garantia ao escravo o direito à liberdade, por outro,

determinava o momento exato em que o escravo poderia gozá-la, uma vez que ficava sob as

ordens de seu senhor.

Nessa mesma época, são recorrentes as publicações de debates ocorridos no Senado e

na Câmara dos Deputados, dando a conhecer os discursos políticos. A 17 de setembro de

1886, a Gazeta de Notícias, na coluna ―Diário das Câmaras‖, refere-se à sessão realizada no

último dia 15, na Câmara dos Deputados. Na interpelação, o senador Sr. Affonso Celso Júnior

apresentou ao presidente do conselho cinco questões concernentes à condição do escravo, a

saber:

Figura 44 – Gazeta de Notícias, 17 set. 1886, p. 1

Dentre as cinco questões apresentadas, duas delas nos despertam mais o interesse, pois

se referem, especificamente, à condição do status-liber, são elas:

1ª Qual, na opinião do governo, a verdadeira condição dos escravizados

existentes no império, desde que pelo art. 3º §10 da lei n. 2370 [sic] de 28 de

178

setembro de 1885, foi fixado dia certo para entrarem no gozo da sua liberdade?

2º Permanecem rigorosamente escravos ou tornaram-se statu liberi?

Ao longo do discurso, o Sr. Affonso explana sobre a definição do termo jurídico,

advindo do direito romano. Sendo assim, afirma ser o homem no dito estado livre brasileiro,

pleno dos mesmos direitos que o homem livre. Esse argumento foi contestado pelo Dr. J.

Baptista Pereira, membro do Instituto dos Advogados, como será apresentado a seguir. A 30

de setembro de 1887, o advogado publicou o trabalho Da condição actual dos escravos,

especialmente após a promulgação da lei n. 3270 de 28 de Setembro de 1885. Com o

objetivo de justificar o seu ―modesto protesto‖ contra a resolução tomada pelo Instituto que

votou a favor das ideias acerca da condição do escravo, o Dr. Baptista Pereira mostra que o

estado livre se mantinha na mesma condição de escravo. Nos quatro capítulos que compõem a

obra, expõe a condição do status-liber, retomando, mesmo, a sessão parlamentar de 15 de

setembro de 1886. É da seguinte forma que o advogado inicia sua exposição:

A lei n. 3270 de 28 de Setembro de 1885, fixando a idade além da qual cessa

a prestação de serviços no presente e no futuro, e declarando livre o escravo que atingir a 60 anos, extinguiu a escravidão, transformando o escravo no

statuliber da simples terminologia dos romanos. (PEREIRA, 1887, p. 05)

Entretanto, a ideia adotada pelo Instituto é questionada pelo advogado, já que no

Brasil não haveria uma identidade entre o estado livre e o status-liber romano. Para explicar

em linguagem mais singela, o doutor faz referência à ideia de cor local, usada na literatura.

Pelas suas próprias palavras: ―o statuliber brasileiro tem a cor local; não traja as roupagens do

simbolismo romano‖ (PEREIRA, 1887, p. 06, grifos do autor). Em termos jurídicos, a

condição é assim definida por ele:

Abrindo o liv. 40. Tit. 7º do Dig. que se inscreve De — statuliberis — logo

no fr. 1º se nos depara a seguinte definição do jurisconsulto Paulo: statuliber est qui statutam et destinatam in tempus vel conditonem libertatem habet, o

que, em linguagem vernácula, quer dizer: estado livre é aquele a quem é

concedida a liberdade para certo tempo ou sob certa condição. (PEREIRA,

1887, p. 06)

Mas, como contesta o advogado, no Brasil, o statusliber continuaria na condição de

propriedade de seu senhor. Na prática, o escravo era mantido na posição de objeto, dado que

não podia ter nem exercer os mesmos direitos que um homem livre. O Dr. Baptista Pereira

detalha, assim, os pressupostos do direito romano, no qual a posição do statusliber seria a

179

mesma que a do escravo, salvo o fato de não poder ser alienado135

. A partir disso, destaca os

seguintes pontos: o filho do estado livre era escravo; o estado livre é processado e julgado

como escravo e sofre as mesmas penas que este; o estado livre pode ser vendido; o estado

livre, enquanto pende a condição, é escravo do herdeiro; e o estado livre é partilhado como os

outros bens onerados de alguma condição.

O autor também se refere ao recente trabalho do senador Dr. Affonso Celso sobre o

assunto. Nele, o político sustenta que o estado livre não é escravo, estabelecendo, mesmo,

uma aproximação de direitos com a condição do homem livre. As considerações ―importantes

e inatacáveis‖ tecidas por ele são apresentadas nos seguintes termos: o estado livre colhido

em delito não é punido como escravo e sim como homem livre; o estado livre que se deixou

ao herdeiro com a condição de servi-lo, se for por ele alienado, recupera imediatamente a sua

liberdade; e é permitido ao escravo a quem foi conferida liberdade comissariamente disputar

com o senhor o seu direito.

No entender do advogado Baptista Pereira, essa condição nada diferia da situação do

escravo. Não à toa, portanto, que faz as seguintes ponderações:

Se, pois, no regime do nosso direito anterior à lei de 1885, o statuliber, isto

é, o escravo a quem se prometeu a liberdade para certo tempo, ou sob certa

condição, conservou-se escravo, sujeito à obediência e poder do senhor, e coisa de comércio, para que, transformada agora a sua essência, passasse a

ocupar outra posição, seria indispensável ou que a lei tivesse definido essa

posição em condições diversas das que preexistiam, ou que o novo regime fosse incompatível com o anterior.

A lei n. 3270 de 1885 não cuidou de inovar esse regime, muito pelo

contrário acentuou, com mão firme, a condição do escravo que, em que pese

aos meus antagonistas, afoitamente se pôde afirmar, continua em uma posição inferior àquela que imaginaram para o estado livre romano.

(PEREIRA, 1887, p. 23)

O advogado afirma, então, que a lei deveria ter definido em melhores condições a

situação do escravo ou que esse novo regime fosse diverso do anterior. Ao detalhar a lei, o Dr.

Baptista Pereira elenca pormenores que mereceriam uma maior atenção por parte dos

membros do Instituto dos Advogados, visto que confirmariam sua proposição:

a) manda proceder em todo o Império à matrícula dos escravos;

b) exclui da matrícula os escravos maiores de 60 anos;

c) dispensa de prestação de serviços os escravos maiores de 60 anos, que não forem arrolados;

d) incumbe ao credor hipotecário ou pignoratício dar a matrícula os escravos

constituídos em garantia;

e) cobra pela inscrição e arrolamento de cada escravo 1$000;

135 No Dicionário da Língua Portugueza, de Antônio de Moraes (1823, p. 100-101), alienado é definido nos

seguintes termos: part. pass. de Alienar. Alienado: traspassado por alheação a outro domínio. (...) Privado:

alienado dos sentidos, do juízo; alienado da vista com pranto.

180

f) dota o fundo de emancipação com o produto dos impostos gerais devidos de todas as transações sobre escravos;

g) permite a liberalidade direta de terceiro para a alforria do escravo, exibido

o preço deste; h) declara intransferível o domicílio do escravo, exceto — 1º, se a

transferência do escravo for de um para outro estabelecimento do senhor; 2º,

se o senhor mudar de domicilio; 3º, se o escravo tiver sido adquirido por herança ou adjudicação forçada em outra província; 4º, se o escravo evadir-

se;

i) proíbe que seja alforriado pelo fundo de emancipação o escravo que fugir

da casa do senhor; j) pune os que acoitarem escravos;

k) decreta que o direito dos senhores dos escravos à prestação dos serviços

dos ingênuos, ou à indenização em títulos de renda, cessará com a extinção da escravidão. (PEREIRA, 1887, p. 24, grifos do autor)

O advogado ainda destaca o emprego repetido da palavra escravo, o que atestaria que

a situação jurídica do estado livre seria a mesma de antes, pois, sendo um objeto de contrato,

estaria sujeito à venda, à hipoteca, à adjudicação, etc. É desse modo que afirma serem

idênticas as situações do status-liber romano e o estado livre brasileiro, dado que, em ambos,

o escravo é tido por coisa; também menciona que, para os romanos, o status-liber não estava

sujeito à alienação como no Brasil.

Ademais, o membro do Instituto afirma que o escravo apenas goza da proteção da lei

porque está amparado contra as injustiças e abusos de seu senhor, mas não dispõe de

capacidade jurídica. Apesar de todas as medidas legais tomadas em prol do escravo, o

advogado enfatiza que é conservada de forma imutável a sua condição primitiva, ―(...) a

mácula original, que o fere de incapacidade para a vida civil‖ (PEREIRA, 1887, p. 34). Com

isso, conclui:

Por todas estas razões, em meu humílimo conceito, o voto do Instituto dos Advogados foi exorbitante; legislou, com manifesta incompetência, e sob a

impressão das paixões do dia, que podem emocionar uma assembleia política

deliberante, nunca uma sociedade de jurisperitos que se congregam para

discutir pontos de doutrina e resolver controvérsias jurídicas. (PEREIRA, 1887, p. 34)

É em relação ao posicionamento do Instituto dos Advogados que a personagem pai

Silvério faz referência. Como tantas outras personagens machadianas, esse pregoeiro revela o

cenário social em que vive, sendo não só uma testemunha da escravidão, mas, em especial,

uma voz que apregoa pelos quatro cantos cidade as mazelas de que é vítima enquanto status-

liber. Isso será apresentado em detalhes na próxima subseção.

181

Voilà ce que l‘on dit sur le status-liber dans la « Gazette de Hollande »

A publicação é iniciada pelos seguintes versos ―A semana que há passado... / Deixe

leitor que me escuse‖. Segundo Antônio de Morais, o verbo ―escusar‖ tem por sentido

―desculpar-se‖ ou ―poupar-se de algo‖. É, pois, por meio de um pedido de desculpas que o

narrador inicia sua gazeta. Depois de percorrer cinco estrofes em uma espécie de digressão, o

narrador retoma sua discussão acerca da semana finda. Nessas mesmas estrofes, notamos a

presença de elementos característicos do gênero satírico, como a liberdade de imaginação e

tom de comicidade:

A semana que há passado... Deixe leitor que me escuse,

E de um falar tão usado,

Abuse também, abuse.

Há passado, hão carcomido...

Hão, hão, hão, hão posto em tudo, Hão, hão, hão, hão recolhido...

Estilo de tartamudo.

Ai, gosto! ai, cultura! ai, gosto! Demos um jeito e outro jeito:

Venha dispor e há disposto

Venha dispor e há desfeito136

.

Mas usar de uma maneira

Até reduzi-la ao fio, Não é estilo, é canseira;

Não dá sabor, dá fastio.

Porém... Já me não recordo Do que ia dizer. Diabo!

Naveguei para bombordo,

E fui esbarrar a um cabo.

Outro rumo... Ah! sim; falava

Da outra semana. Cheia

Esteve de gente escrava, Desde o almoço até a ceia.

(...)

136 No dia seguinte a essa publicação (28 de setembro de 1887), o cronista publicou outros três quartetos, na

―Gazeta de Holanda‖. A crônica seria uma errata, visando corrigir os dois vocábulos grifados. Ainda é

interessante mencionar que, dentro da série, esse texto é uma exceção no uso dos elementos paratextuais, pois, a

não ser o título e a palavra ―Suplementar‖ presentes no alto, não consta nem numeração nem epígrafe: Errata.

Saíram ontem / Dois vocábulos errados... / Que os meus leitores descontem / A dor minha aos meus pecados //

Devem ler por este gosto / Os tais que têm o defeito / ―Venha disposto e há disposto; / ―Venha desfez e há

desfeito.‖ // E não tendo mais que diga / Aqui me fico espreitando / Fortuna ruim que obriga / A andar errando e

emendando. (GAZETA DE HOLLANDA, 1887, p. 02)

182

Pois se os próprios advogados

(E quem mais que eles?) tiveram

Debates acalorados No Instituto, em que nos deram

Uma questão — se, fundado Este regime presente,

Pode ser considerado

O escravo inda escravo ou gente.

Digo mal: — inda é cativo

Ou statu liber? Qual seja

Correu lá debate vivo, Melhor dizemos peleja.

Mas peleja de armas finas,

Sem deixar ninguém molesto: Nem facas, nem colubrinas,

Digesto137

contra Digesto.

Como declara, o ―assunto do momento‖ dizia respeito à ―gente escrava‖. Foram

projetos e mais projetos, planos atrás de outros planos sobre a condição do escravo. A

discussão acalorada no Instituto dos advogados lançou luz sobre uma questão candente,

sobretudo ao colocar em pauta o seguinte apontamento, apresentado em verso pelo cronista:

―fundado / Este regime presente, / Pode ser considerado / O escravo inda escravo ou gente‖.

Qual seria, portanto, o lugar e a condição do escravo? Seria ainda escravo ou poderia ser

considerado gente, posição equivalente à do homem livre? O narrador aparenta simplificar a

discussão ao afirmar: ―Digo mal – inda é cativo / ou statu líber?‖. O debate vivo, ou a peleja

de armas finas como se refere, não deixou ninguém molesto, dado que não foram usadas nem

facas nem balas de artilharia, mas apenas ―Digesto contra Digesto‖. Nas estrofes seguintes, o

cronista chama a atenção para o posicionamento dos advogados:

Uns acham que é este o caso

Do statu liber. Havendo Condição marcada ou prazo,

Não há mais o nome horrendo.

Outros, que não são sujeitos Ferozes nem sanguinários,

Combatem esses efeitos

Com argumentos contrários.

137 Digesto: s. m. Livro das Leis Romanas, que contem os Fragmentos dos Antigos Jurisconsultos, Pandectas,

coleções diferentes dos diversos Códigos Romanos, que contém as opiniões, e sentenças dos Jurisconsultos, e

seus comentários, e ampliações dos Senatus Consultos, Edicto Perpetuo, e dos Pretorios, e que mandou coligir

Justiniano, e lhe deu forma de Lei. V. Código. (MORAIS, 1823, p. 630)

183

Enquanto uns consideram que a condição do status-liber não se assemelha à condição

de escravo, não havendo nem mesmo o emprego do ―nome horrendo‖; outros combatem esses

efeitos com argumentos contrários. Mesmo sem serem mencionados explicitamente esses

argumentos, relembramos aqui os questionamentos do Dr. Baptista Pereira, que considera a

condição do estado livre semelhante à do escravo, uma vez que é mantido como uma

propriedade. Assim, ao supor ser mais acertado ―indagar do interessado‖, o narrador diz ter

chamado ao seu ―poleiro‖138

um preto que passava:

Eu, que suponho acertado,

Sempre nos casos como esses,

Indagar do interessado Onde acha os seus interesses,

Chamei cá do meu poleiro Um preto que ia passando,

Carregando um tabuleiro,

Carregando e apregoando.

E disse-lhe: ―Pai Silvério,

Guarda as alfaces e as couves;

Tenho negócio mais sério, Quero que m'o expliques. Ouves?‖

Contei-lhe em palavras lisas,

Quais as teses do Instituto, Opiniões e divisas.

Que há de responder-me o bruto?

Esse ―chamei cá do meu poleiro‖ parece ser o único momento em que esse narrador

adota um ponto de vista distanciado, recuperando as cinco características da sátira

apresentadas por Sá Rego (1989). Por ora, é esse ponto vista privilegiado que estabelece uma

visão mais abrangente sobre a sociedade oitocentista e é justamente desse alto que apreende

as mazelas que assolam a vida da população, como a condição do status-liber; na crônica,

sintetizada pelas palavras do escravo de ganho. Depois de chamar o preto, identificado como

pai Silvério, o narrador diz ter contado em ―palavras lisas‖, ou seja, em palavras sinceras e,

talvez, mais simples, quais eram as teses do Instituto. Diz ter destacado as opiniões e divisas

de advogados, certamente os mesmos que outrora debateram acaloradamente a condição dos

138 É instigante notar o local em que se encontra o narrador, pois o poleiro é o local onde não só as galinhas se

recolhem como também um lugar de varas atravessadas onde outras aves e pássaros pousam. Logo, como não

nos lembrarmos da comparação feita pelo próprio Machado de Assis acerca do folhetinista e do colibri? Em

1859, no texto intitulado ―O folhetinista‖, além de afirmar ser o ofício a fusão do ―útil e do fútil, parto curioso e

singular do sério, consorciado com o frívolo‖, Machado também considera que o folhetinista ―na sociedade,

ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os

caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política‖. Conferir

Machado de Assis (2015c, p. 1005-1007).

184

escravos, como observamos. Às informações prestadas, o pregoeiro, por ora chamado de

bruto, responde:

— ―Meu senhor, eu, entra ano,

Sai ano, trabalho nisto; Há muito senhor humano,

Mas o meu é nunca visto.

―Pancada, quando não vendo, Pancada que dói, que arde;

Se vendo o que ando vendendo,

Pancada, por chegar tarde.

―Dia santo nem domingo

Não tenho. Comida pouca:

Pires de feijão, e um pingo De café, que molha a boca.

―Por isso, digo ao perfeito Instituto, grande e bravo:

Tu falou muito direito,

Tu tá livre, eu fico escravo‖.

Malvólio

(GAZETA DE HOLLANDA, 1887, p. 01)

Pai Silvério além de informar que ―entra ano, / Sai ano, trabalho nisto‖, também

menciona os constantes castigos físicos de que é vítima: ―Pancada, quando não vendo, /

Pancada que dói, que arde‖ e ―Se vendo o que ando vendendo / Pancada, por chegar tarde‖.

Como mostra Keila Grinberg, em ―Castigos físicos e legislação‖ (2018), somente em 1886 foi

revogada oficialmente a pena de açoites, mas, como bem ilustra a crônica machadiana, os

castigos físicos ainda perduravam no ano de 1887 e perdurariam por muitos anos mais,

vitimando outros tantos pais Silvérios espalhados pelo país. A respeito do mesmo trecho,

Magalhães Júnior (1957) faz a seguinte afirmação:

(...) Nessas quadras, que os biógrafos e comentadores da obra de Machado

de Assis inexplicavelmente desprezam, há um retrato perfeito das condições

do cativeiro, caracterizadas pelo excesso de trabalho dos escravos, sem direito a qualquer descanso, e pelo excesso dos castigos corporais, em

contraste com a escassez de alimentação a que eram reduzidos pelos

senhores cruéis e avarentos. (...) (MAGALHÃES JÚNIOR, 1957, p. 173)

Não obstante as pancadas, o pregoeiro também relata não ter ―dia santo nem

domingo‖, tendo limitada, até mesmo, a sua refeição: ―Comida pouca / Pires de feijão, e um

pingo / De café, que molha a boca‖. Ao tratar da mesma crônica, no posfácio à antologia já

mencionada aqui, Duarte (2007) faz a seguinte afirmação:

Ao destacar a violência física contra o escravo, o escritor novamente

evidencia o alinhamento de sua postura de jornalista com a do escritor de

185

ficção. (...) Ao final, as palavras do negro sintetizam a resposta machadiana às tergiversações de alguns jurisconsultos, àquela altura empenhados em

impor a figura do statu liber, espécie de meio-termo entre a liberdade e o

cativeiro: ―tu ta livre‖; ―eu fico escravo‖. Ao destacar os termos do real antagonismo existente, a crônica repõe o problema em seu devido lugar e

refuta mais uma tentativa de manutenção disfarçada do escravismo.

(DUARTE, 2007, p. 258, grifos do autor)

Mesmo depois das extensas discussões no Instituto dos Advogados, o escravo, mais do

que ninguém, seria a pessoa mais adequada a detalhar as barbaridades de que é vítima

constante. Não é à toa, portanto, que o cronista dá voz a essa figura tão representativa, dado

que, independentemente da denominação jurídica com a qual viesse a ser denominado,

permanecia na condição de propriedade, isto é, de coisa e objeto de outrem. É por isso que o

advogado Baptista Pereira (1887) afirma ser a escravidão ―o concubinato da lei com o crime‖.

Talvez, por esse mesmo motivo, Malvólio observe o mundo de um ponto de vista

privilegiado, o que lhe permitiria apreender melhor o que se passa em seu entorno. Assim, ora

recorrendo à liberdade imaginativa e à mistura do sério e do cômico, ora a uma visão de cima,

o narrador dialoga e dá voz àqueles a quem mais interessavam as discussões sobre a

escravidão. Em palavras mais modestas, mas, nem por isso, menos sinceras, pai Silvério não

só apregoa suas ―alfaces e couves‖, como denuncia a sua triste condição a um espectador que,

sempre interessado e atento, participou da luta observando e tomando nota do alto de seu

poleiro, feito alguém que o faz de seu gabinete.

186

Últimas palavras

Esse trabalho teve como objetivo estudar a construção da série de crônicas intitulada

―Gazeta de Holanda‖. Nossa hipótese inicial era que o cronista teria se apropriado do ideal de

panfletos clandestinos, apelidados ―Gazette de Hollande‖ (sobretudo de seu aspecto satírico),

para compor sua ―gazeta‖. Para uma melhor exposição dessa formulação, estruturamos nosso

trabalho em quatro capítulos. No primeiro deles, denominado ―Um cronista versejador‖,

recuperamos estudos voltados não somente para sua produção cronística, como também para a

relação de Machado de Assis com a tradição da sátira luciânica. Alguns dos traços satíricos,

apontados por Enylton de Sá Rego (1989), puderam ser facilmente encontrados na série.

No capítulo seguinte, intitulado ―Uma série singular‖, dedicamos atenção especial

àquelas folhas clandestinas. A apropriação de sua faceta mais provocadora ou, ainda, de seu

tom mais intrometidiço e mexeriqueiro, confirma-se nos dizeres ―Voilà ce que l’on dit de moi

/ Dans la gazette de Hollande!‖, repetido na abertura de cada uma das crônicas. Além desses

recursos, o autor também se valeu da máscara de Malvólio para assinar seus versos. Para sua

compreensão, dialogamos com estudos shakespearianos sobre a personagem homônima da

peça Noite de Reis, numa tentativa de iluminar a escolha dessa referência como pseudônimo.

Já nos dois últimos capítulos,―Sonhos singulares‖ e ―Tu tá livre, eu fico escravo‖, analisamos

um conjunto de crônicas, visando lançar novas possibilidades de leitura para o conjunto.

À vista do que foi exposto ao longo desse estudo, podemos afirmar que Machado de

Assis faz amplo uso de elementos satíricos não somente em sua prosa, mas ainda em sua

produção escrita em verso. Assim, também, mais que meros ornamentos ou adornos textuais,

os recursos paratextuais por ele utilizados contribuem para enriquecer sua produção,

resultando, por ora, em caminhos, ou descaminhos, para leitura, compreensão e interpretação

das crônicas. Como vimos, essas várias vias estão em diálogo direto com outros gêneros

veiculados nos jornais oitocentistas, como reportagens, anúncios, denúncias, reclames, etc.,

numa clara conciliação entre literatura e jornalismo.

De maneira semelhante, vimos que essa arte da palavra que é a crônica, ao mesmo

tempo acompanhada por certa dose de lirismo, parece ter em seus temas o pretexto essencial

para existir. É por meio disso que o cronista encontra meios para divagar, debater, criticar e

provocar aquele que o lê, seja em prosa, seja em verso. Desse modo, ele realiza se não toda,

ao menos em parte, sua missão de se fazer ouvir, sendo, mesmo, o porta-voz e algumas vezes

187

emprestando seu próprio espaço para aqueles que, desprovidos de direitos, possam se

manifestar e também se fazerem ouvir.

Logo, pensar a ―Gazeta de Holanda‖ como uma unidade talvez seja um passo

importante para se compreender mais a respeito da produção cronística de Machado de Assis;

não só aquela escrita em prosa, mas também esta escrita em verso, especialmente por ter sido

nela que se valeu de ricos elementos paratextuais, como um título insinuante e uma epígrafe

provocativa, bem como de um sugestivo pseudônimo para assinar sua versalhada. Para além

desses recursos textuais, o uso de traços característicos da sátira menipeia completa essa

tríade composicional, permitindo-lhe tratar de questões importantes de seu tempo de forma

irônica e descontraída, mantendo, ainda, certa seriedade e muita responsabilidade em suas

declarações. Aspectos esses importantes a um homem da imprensa consciente de seu papel.

Com isso, bem mais que uma distração para o leitor, sua ―Gazeta de Holanda‖ parece

provocar certo riso desconcertante naquele que, ao ser tentado a ler ou a ouvir um de seus

textos, é levado inocentemente a refletir junto ao seu criador sobre assuntos de ampla

repercussão, tal como a ascensão de doutrinas religiosas e científicas ou, até mesmo,

barbaridades humanas, como a escravidão e a condição do negro no Brasil oitocentista. Não é

à toa, portanto, que, dentre tantas séries cronísticas, essa pareça ser não uma exceção à regra,

mas, mais uma entre tantas outras singularidades machadianas.

188

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Arquivos e fontes

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (RJ), disponível em:

https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.

Para os estudos franceses consultar o portal digital da Bibliothèque Nationale de France,

disponível em: https://gallica.bnf.fr/accueil/fr/content/accueil-fr?mode=desktop

Periódicos consultados

A Semana, Rio de Janeiro, 1887.

Corsário, Rio de Janeiro, 1883.

Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1885-1887.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1872.

Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1883-1888.

Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 1886-1888.

Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1867-1881.

La Gazette du Brésil, Rio de Janeiro, 1867-1868.

L’annonéen, écho de L’Ardeche, 1842.

Novidades, Rio de Janeiro, 1887.

196

O Paiz, Rio de Janeiro, 1887-1888.

Semana Illustrada, Rio de Janeiro, 1872.

197

Anexos

Anexo 1

198

Anexo 2

Anexo 3

199

Anexo 4