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EM NOME DA SOLIDARIEDADE: ANTECEDENTES, FUNDAMENTOS E DESAFIOS DA ATUAL INTERVENÇÃO NA CRISE HAITIANA Marcus Maurer de Salles * 1. O QUE HÁ DE NOVO NO HAITI? “Toda civilização é singular. Porém, na América Latina, o Haiti ocupa uma categoria apenas sua.” O Choque de Civilizações. Samuel Huntington Na noite de 29 de fevereiro de 2004, o presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, pressionado por alguns membros da comunidade internacional e por um amplo movimento interno de oposição, subiu os degraus do avião que iria conduzi-lo à África do Sul, rumo a um exílio no qual se encontra até hoje. Em se tratando da Pérola das Antilhas, tal fato em si não chega a surpreender pelo ineditismo, pois em 30 de setembro de 1991, o mesmo Aristide já havia sido destituído por um golpe militar. Num país absolutamente carente de tradição democrática, com uma trajetória política marcada pela sucessão ininterrupta de golpes e contragolpes, opressão, despotismo e violência, o movimento que derrubou Aristide nas duas ocasiões foi apenas mais um elo acrescentado na crônica corrente da autocracia que aprisiona o povo haitiano. Da independência, em 1804, até 2004, ano do segundo exílio de Aristide, o Haiti teve 40 governantes. Dentre eles, um suicidou-se; 28 foram destituídos ou levados a renunciar; quatro foram assassinados e seis tiveram morte natural durante o cumprimento dos mandatos. Ou seja, em 200 anos de existência como Estado independente, o Haiti teve apenas um chefe de Estado que chegaria ao termo do seu mandato constitucional. Com uma história política sui generis, o país conheceu apenas duas eleições razoavelmente honestas: a primeira ocorreu em 1957, com a eleição de François Duvalier, o Papa Doc, e a segunda foi em 1990, com a eleição do padre Aristide. Definitivamente, o Haiti tem os conceitos ocidentais de representatividade, justiça e democracia como valores desconhecidos. O Haiti possui uma história peculiar em relação aos demais vizinhos da região por ser a primeira colônia latino-americana a alcançar sua independência e a única a conquistá-la a partir de uma revolta de escravos, tornando-se a primeira república negra do mundo fora do continente africano. No entanto, o país não apresentou o mesmo grau de pioneirismo nas etapas conseqüentes de sua afirmação como nação independente. Ao final do século XVIII, a Pérola das Antilhas era a colônia mais rica das Américas. Atualmente, pelo fato dos governantes passarem mais tempo arquitetando golpes e * Marcus Maurer de Salles é Mestre em Integração Latino-Americana, com ênfase em Direito da Integração, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Brasil. Atualmente, coordena o Departamento de Direito Internacional e Línguas Estrangeiras da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), onde é professor de Relações Internacionais, Organizações Internacionais e Direito Comunitário Europeu. Agradecimento. As reflexões deste artigo devem-se, em larga medida, ao convívio com o Prof. Dr. Ricardo Seitenfus, observador das missões OEA – DEMOC (1991) e ONU – MINUSTAH (2004) e pesquisador dedicado ao Haiti de longa data, a quem agradeço profundamente, mais do que pelos valiosos ensinamentos, pelas provocações e questionamentos acerca do tema. 1

EM NOME DA SOLIDARIEDADE: ANTECEDENTES, FUNDAMENTOS E DESAFIOS DA ATUAL INTERVENÇÃO NA CRISE HAITIANA

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EM NOME DA SOLIDARIEDADE: ANTECEDENTES, FUNDAMENTOS E DESAFIOS DA ATUAL INTERVENÇÃO NA CRISE HAITIANA

Marcus Maurer de Salles*

1. O QUE HÁ DE NOVO NO HAITI?

“Toda civilização é singular. Porém, na América Latina, o Haiti ocupa uma categoria

apenas sua.” O Choque de Civilizações. Samuel

Huntington

Na noite de 29 de fevereiro de 2004, o presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, pressionado por alguns membros da comunidade internacional e por um amplo movimento interno de oposição, subiu os degraus do avião que iria conduzi-lo à África do Sul, rumo a um exílio no qual se encontra até hoje. Em se tratando da Pérola das Antilhas, tal fato em si não chega a surpreender pelo ineditismo, pois em 30 de setembro de 1991, o mesmo Aristide já havia sido destituído por um golpe militar. Num país absolutamente carente de tradição democrática, com uma trajetória política marcada pela sucessão ininterrupta de golpes e contragolpes, opressão, despotismo e violência, o movimento que derrubou Aristide nas duas ocasiões foi apenas mais um elo acrescentado na crônica corrente da autocracia que aprisiona o povo haitiano. Da independência, em 1804, até 2004, ano do segundo exílio de Aristide, o Haiti teve 40 governantes. Dentre eles, um suicidou-se; 28 foram destituídos ou levados a renunciar; quatro foram assassinados e seis tiveram morte natural durante o cumprimento dos mandatos. Ou seja, em 200 anos de existência como Estado independente, o Haiti teve apenas um chefe de Estado que chegaria ao termo do seu mandato constitucional. Com uma história política sui generis, o país conheceu apenas duas eleições razoavelmente honestas: a primeira ocorreu em 1957, com a eleição de François Duvalier, o Papa Doc, e a segunda foi em 1990, com a eleição do padre Aristide. Definitivamente, o Haiti tem os conceitos ocidentais de representatividade, justiça e democracia como valores desconhecidos. O Haiti possui uma história peculiar em relação aos demais vizinhos da região por ser a primeira colônia latino-americana a alcançar sua independência e a única a conquistá-la a partir de uma revolta de escravos, tornando-se a primeira república negra do mundo fora do continente africano. No entanto, o país não apresentou o mesmo grau de pioneirismo nas etapas conseqüentes de sua afirmação como nação independente. Ao final do século XVIII, a Pérola das Antilhas era a colônia mais rica das Américas. Atualmente, pelo fato dos governantes passarem mais tempo arquitetando golpes e

* Marcus Maurer de Salles é Mestre em Integração Latino-Americana, com ênfase em Direito da Integração, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Brasil. Atualmente, coordena o Departamento de Direito Internacional e Línguas Estrangeiras da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), onde é professor de Relações Internacionais, Organizações Internacionais e Direito Comunitário Europeu. Agradecimento. As reflexões deste artigo devem-se, em larga medida, ao convívio com o Prof. Dr. Ricardo Seitenfus, observador das missões OEA – DEMOC (1991) e ONU – MINUSTAH (2004) e pesquisador dedicado ao Haiti de longa data, a quem agradeço profundamente, mais do que pelos valiosos ensinamentos, pelas provocações e questionamentos acerca do tema.

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contragolpes ao invés de procurar dar o mínimo de governabilidade ao país, este se tornou o Estado mais pobre do continente. Incrivelmente, a comunidade internacional sempre agiu com condescendência e indiferença para com os ditadores haitianos. Sob o pretexto da autodeterminação dos povos e do principio de direito internacional decorrente, a não-intervenção em assuntos internos, os Estados relutaram durante décadas a intervir na crise haitiana. Finalmente, no início da década de 90, a comunidade latino-americana, impulsionada pela redemocratização que tomava conta do continente, decidiu tentar pôr um fim na história de tirania haitiana. Durante quatro anos, a Organização dos Estados Americanos (OEA), em conjunto com a Organização das Nações Unidas (ONU), levou adiante a primeira intervenção multilateral nas Américas. Assumindo a função de mediadora da crise, a OEA tinha como objetivo único e exclusivo restaurar o governo democraticamente eleito e levar de volta ao poder Jean-Bertrand Aristide. Qualquer atuação que fosse além seria considerada pelos Estados americanos uma excessiva violação à autodeterminação haitiana. No entanto, não tardou para que, após a recolocação do padre Aristide no poder, o ciclo de despotismo voltasse a girar. Desde 1º de junho de 2004, data em que se iniciou a atual intervenção da ONU em razão do segundo exílio de Aristide, houve uma radical mudança de perspectiva da comunidade internacional em relação ao seu papel diante do Haiti, se comparada com a intervenção de 1991. Do mero restabelecimento da “ordem” democrática, passou-se a uma visão mais ampla, na qual a estabilidade política é conseqüência de uma estruturação muito mais ampla e profunda da sociedade, da economia e do Estado haitiano. A presente pesquisa parte da premissa que a comunidade internacional finalmente deu-se conta que a mera condução política ao status quo ante não auxiliara em nada a solução da crise haitiana. Obviamente, os problemas dos quais padece o Haiti têm raízes muito mais profundas que a mera formalidade da ocupação do cargo presidencial. Consequentemente, uma intervenção multilateral, para surtir alguma solução razoavelmente duradoura, necessita ir muito além do que apenas fantasiar o Haiti de Estado Democrático de Direito. Para demonstrar tal premissa, o presente artigo pretende demonstrar, através de uma abordagem histórica do direito e da política internacional, que o relacionamento do Haiti com a comunidade internacional pode ser dividido em três momentos, razão pela qual este artigo divide-se em três capítulos, cada qual correspondente a um determinado período da história das relações internacionais haitianas. O primeiro momento abrange desde sua independência como república negra até o golpe militar que retirou Aristide do poder em 1991. Durante este período, sob o manto da autodeterminação, há um total descaso e abandono por parte da comunidade internacional para com a nação haitiana. A segunda fase do relacionamento Haiti – comunidade internacional inicia logo após o golpe, por força do requerimento de Aristide para que fosse restaurado o regime democrático no Haiti. Neste momento, há um importante corte paradigmático nas relações internacionais haitianas. De lá para cá, nunca mais os Estados latino-americanos deixaram o Haiti abandonado à sua própria sorte. O terceiro e atual período da história da Haiti iniciou em 2004, com a iniciativa

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internacional levada adiante pela ONU. Aqui há uma nova mudança de paradigma e, pela primeira vez na história haitiana, há uma intervenção que projeta iniciativas de médio e longo prazo, visando construir em bases sólidas o Estado haitiano. Como discussão de fundo, o presente artigo busca dar um novo tratamento ao termo “intervenção”. Crê-se que a importância de teorizar a intervenção está na necessidade de encontrar novos fundamentos para sua utilização no século XXI, com o intuito, talvez, de construir uma teoria da intervenção solidária, capaz de inspirar uma guerra contra a miséria, levada adiante pela comunidade internacional, em oposição à teoria da intervenção preventiva, que inspira a atual guerra contra o terror, liderada unilateralmente pelos EUA. 2. A AUTODETERMINAÇÃO DE UMA NAÇÃO ABANDONADA

“O pior dos pecados contra nossos semelhantes não é odiá-los, mas ser

indiferente a eles. Na verdade, eu vos digo, esta é a essência da desumanidade.”

O discípulo do Diabo. George Bernard Shaw Escravos, enfim, livres! Cristóvão Colombo desembarcou no atual território haitiano em seis de dezembro de 1492, onde construiu a primeira fundação européia no Novo Mundo, o Forte da Natividade. A ilha de Hispaniola, assim batizada por Colombo, foi habitada por completo pelos espanhóis. No entanto, sua parte ocidental foi progressivamente ocupada por piratas franceses, a partir de 1692. Em 1647, a França reivindicou a posse de 27.750 km² da ilha e através do Tratado de Ryswick, o atual território do Haiti foi oficialmente reconhecido como colônia francesa e batizado de Saint Domingue. Conquistado o território, foi necessário povoá-lo e explorá-lo. Para tanto, foi levado adiante uma das mais extraordinárias e desumanas experiências de enxerto populacional nas Américas, por meio do seqüestro e tráfico de escravos negros oriundos da África. Em 1780, contavam-se cerca de 500 mil escravos africanos a serviço de 28 mil brancos e 30 mil mulatos livres. A título de comparação, a parte espanhola da ilha possuía apenas 40 mil habitantes. A exploração de café, açúcar, cacau e algodão tornaram Santo Domingo fonte de grande riqueza para a França, motivo pelo qual ficou conhecido como a Pérola das Antilhas. No entanto, com a Revolução Francesa, seguida da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, foi aceso o estopim das sangrentas rebeliões que culminariam no fim da escravatura em 1794 e, mais tarde, em 1804, a proclamação de independência do Haiti. Para manter a escravatura e apaziguar as insurreições que se generalizariam por toda a ilha, a França enviou, em 1792, um exercito de seis mil homens. Neste momento, surge a figura de Toussaint Louverture, o grande líder da resistência haitiana, mentor de um movimento capaz de causar a primeira derrota na história de um exército europeu

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para um comandante negro. Em 1801, Louverture transforma-se no líder absoluto da ilha, redige uma constituição, a primeira carta constitucional da América Latina, atribuindo-se o título de governador e general vitalício, além de abolir expressamente a escravidão. Em 1802, com Napoleão Bonaparte a frente da França, é promulgada lei que restabelece a escravidão em todos os seus territórios, como parte de uma grande estratégia de reconstrução do Império francês na América. Desta vez, 34 mil soldados são enviados à ilha. No entanto, apesar de capturar Louverture e formalmente restabelecer a escravidão, o exercito de Bonaparte é derrotado e finalmente forçado a assinar sua rendição incondicional. A independência do povo haitiano é oficialmente proclamada em 1º de fevereiro de 1804. No entanto, para os haitianos, libertar-se dos senhores brancos não significou libertar-se da opressão. As cicatrizes do violento processo de colonização e descolonização do Haiti demonstraram-se muito mais profundas. As cicatrizes da colonização O Haiti é o único Estado independente formado por africanos fora da África, constituindo-se na única república negra nas Américas. Ao longo da história, o absoluto predomínio da raça negra configurou uma experiência inusitada de organização social e estatal no Novo Mundo: 95% da população é negra, 4,9% mulata e tão somente 0,1% branca. Ocorre que, ao se formar no século XIX, o Estado haitiano renegou a cultura nacional e assumiu o papel de senhor “com direito de vida e morte sobre seus escravos”, se empenhando em manter inalterado o modelo de governo opressor instalado no decorrer da colonização francesa. A emancipação haitiana compreendeu não somente a luta contra a metrópole, mas também contra a opressão social. Após a expulsão dos colonizadores, o escravagismo persistiu no Haiti, deixando intacto o abismo entre a sociedade haitiana e o Estado, seu novo “senhor”. Pode se afirmar que esta crônica separação entre o Estado e a nação haitianos é uma das principais responsáveis pela tendência de seu país ao despotismo. Entre o Estado e o povo não a diálogo: há ameaça, violência e opressão. A causa principal desse fenômeno está na divisão da sociedade haitiana, que remete à época colonial, em dois pólos que nunca lograram associar-se até os dias atuais: de um lado, a elite econômica, integrada pela minoria mulata, oficiais militares e comerciantes e, do outro, a camada pobre da população, constituída fundamentalmente por negros. Quando os descendentes mulatos dos colonizadores franceses, alfabetizados, com mentalidades “europeizantes”, ascenderam socialmente, estes constituíram uma classe que se distinguira da massa da população negra, esta analfabeta, praticante de vodu e ciosa de suas origens africanas. Enquanto os primeiros puderam enriquecer e transformar-se em proprietários de terra, os segundos, trazidos da África para formar a força de trabalho nas grandes plantações de cana-de-açúcar e café, não tiveram perspectivas melhores de vida que não de servirem como escravos a seus senhores brancos. Ao final do século XIX, sem lideres expressivos ou confiáveis para conduzir a política nacional, fortalecer a economia e instalar um sistema administrativo

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competente, o Haiti mergulhou num espiral de violência e anarquia política que só seria interrompida em 1915, com uma intervenção militar unilateral por parte dos Estados Unidos (EUA). Após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, os EUA adotaram uma política de segurança nacional com a finalidade de assumir o controle da Bacia do Caribe e na América Central, estabelecendo áreas estratégicas na região. Neste período, ocupam além do Haiti, Cuba, República Dominicana e Panamá. Há alguns elementos positivos da ocupação norte-americana no Haiti que podem ser apontados: a pacificação da vida política, a ordenação das finanças públicas e o início de uma tímida modernização econômica, com a introdução de empresas transnacionais e o desenvolvimento de novas atividades econômicas, como a hotelaria, a indústria de cimento e a exploração de bauxita. No entanto, o fenômeno mais marcante deste período é o fortalecimento da cisão entre mulatos e negros. A presença das forças estrangeiras abriu profunda ferida no espírito nacionalista da população negra, que sempre tiver na sua luta vitoriosa contra os colonizadores brancos seu motivo maior e talvez único orgulho. Além disso, durante a ocupação dos EUA, os negros foram mantidos à margem do processo político, tendo sido o comando da nação confiado a governantes mulatos. Após 19 anos de ocupação, em razão da política de boa vizinhança, o presidente Franklin D. Roosevelt, põe fim à presença norte-americana e condena o Haiti de volta ao abandono. Novamente, inicia-se uma era de instabilidade política, sob domínio da burguesia mulata e dos militares. A Dinastia Duvalier Em 1945, uma nova elite intelectual negra começara a se organizar politicamente nos principais centros acadêmicos e culturais de Porto Príncipe, dentre eles, um tímido médico de província, o doutor François Duvalier, que num futuro próximo, iria revolucionar a política haitiana. No mesmo ano, Dumarsais Estimé ascende ao poder e pela primeira vez um representante da maioria negra governa o Haiti. Logo em seguida, em 1950, Estimé seria derrubado por um golpe de Estado orquestrado pelas Forças Armadas haitianas, que conduziria ao poder o Coronel Paul Magloire. Agindo na clandestinidade, François Duvalier organizou uma violenta campanha contra o governo Magloire, que culminaria na renúncia do Coronel em 1956. Levantando a bandeira da valorização da negritude da nação haitiana, François Duvalier, ou Papa Doc como ficou conhecido, lançou sua candidatura à presidência prometendo colocar seu governo a serviço da afirmação dos valores e tradições da população negra, numa inteligente proposta que asseguraria o apoio em massa da população à sua candidatura. Em setembro de 1957, Papa Doc venceu as eleições com 70% dos votos válidos, no primeiro exercício de sufrágio universal até então realizado no Haiti. Passada a euforia da posse, os discursos inflamados de Duvalier tornarem-se palavras vazias de um mandatário que desejava unicamente medir e consolidar sua força. Em menos de um ano, a Constituição haitiana estaria sendo flagrantemente desrespeitada, seus adversários políticos perseguidos e assassinados, os sindicatos desmontados e o país mergulhado em pânico pela ação dos tontons macoutes, uma

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milícia de “voluntários da segurança nacional” da qual se utilizaria o ditador para manter sua tirania sobre a população. A título de ilustração, em 1959, os paramilitares eram estimados em 25 mil homens, um número quatro vezes maior que o quadro das Forças Armadas. Seus 14 anos de governo despótico ficaram marcados pelos abusos de sua tirania e a violência com que reprimiu toda e qualquer oposição que ameaçasse a realização de seu objetivo maior: perpetuar-se no poder. Com a mesma obstinação que reduziu o exército a impotência, Duvalier investiu contra os “obstáculos constitucionais” que se apresentavam em seu caminho. Em 1961, dissolveu a Assembléia Nacional, fazendo-se reeleger por mais seis anos; em 1964, aboliu a Constituição e aprovou uma nova Carta que lhe conferia presidência vitalícia. Em 1971, pouco antes de sua morte, Papa Doc forçou o legislativo a aprovar a redução da idade mínima de 40 para 18 anos para o exercício do cargo presidencial, permitindo-lhe nomear seu filho Jean-Claude Duvalier para sucedê-lo. Assim, “legalizada” a “Dinastia Duvaleir”, foi necessário “legitimá-la”. Para tanto, foi realizado um referendo popular claramente manipulado, com 2,3 milhões de votos favoráveis e nenhum contrário ao futuro governo de Baby Doc. Após a morte de Papa Doc, o despotismo duvalierista se manteria inalterado por 15 anos pelo seu primogênito, o qual, sem o tino, a experiência e as ambições políticas do pai, tenderia a seguir as diretrizes traçadas pelo antigo regime. No final da década de 70, Jean-Claude simulou a introdução de uma fase de liberalização das instituições políticas, não indo além da libertação de presos políticos, julgamento de alguns macoutes e de uma retórica oficial mais recheada de valores democráticos. A incoerência das medidas democratizantes acabou por descontentar ao mesmo tempo a linha dura duvalierista e a oposição, desejosa de reformas políticas mais profundas. Pressionado pela opinião pública internacional e ameaçado internamente por levantes populares em diversas cidades haitianas, Baby Doc acabou por fugir do país em 07 de fevereiro de 1986. Nesse momento, uma força de oposição, formada pelas elites negras progressistas, estudantes, artistas e burguesia comercial, começou a se organizar, deixando para muitos uma porta aberta para a esperança da democratização do Haiti. Ascensão e queda de Jean-Bertrand Aristide Em 1987, foi promulgada uma nova constituição de cunho amplamente democrático, onde foram consagrados direitos e deveres fundamentais dos cidadãos, reconheceu o créole como língua oficial, estabeleceu mandato de cinco anos e limite de idade mínima de 35 anos para ocupar o cargo presidencial, dentre outras reformas institucionais bastante significativas para um Estado atormentado pelo autoritarismo. Com base numa destas inovações da Constituição de 1987, o então governante General Henri Namphy comprometeu-se com a realização de eleições presidenciais ainda no mesmo ano. Onze candidatos apresentaram-se para as eleições presidenciais de 1990. Um deles, o sacerdote Jean-Bertrand Aristide, lançou candidatura de ultima hora, apoiado pela Frente Nacional para a Mudança e a Democracia, uma pequena coalizão de partidos anti-duvalieristas. Militante da Teologia da Libertação, o padre Aristide destacou-se pelos seus sermões inflamados que proferia numa pequena capela situada no subúrbio de Porto

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Príncipe. Em um país onde a quase totalidade da população sempre esteve condenada ao silencio político e à marginalização social, a figura franzina e aparentemente humilde do sacerdote, seu estilo messiânico, suas pregações populistas e seu clamor por justiça social encontraram resposta na camada mais carente da população, assegurando-lhe estrondosa vitória no primeiro turno das eleições de 1990, com 67,48% dos votos de 1,6 milhão de eleitores. Aristide assumiu o governo de um Estado miserável, sem dúvida o mais frágil e debilitado do mundo ocidental. Há muito, o Haiti apenas sobrevivia movido pela ajuda financeira internacional, responsável, em 1991, por uma dívida acumulada da ordem de US$ 851 milhões, que onerava o país com uma sangria anual de US$34 milhões apenas a título de amortização e juros. Na busca de recursos, Aristide empenhou-se juntos a paises doadores e entidades financeiras internacionais para que novos empréstimos fossem liberados. Seus esforços foram bem sucedidos, tendo concluído acordos com o FMI, BID, Banco Mundial e ONU que somados, ultrapassavam US$ 500 milhões em empréstimo. Aristide inquietava as classes econômicas e políticas dominantes bem como os militares. Ao tomar posse, prometeu moralizar a máquina governamental, afastando os macoutes e duvalieristas dos cargos públicos. Dentre as ações levadas a cabo pelo Presidente haitiano, a que mais inquietou a oposição, em especial os militares, foi a decisão de formar uma guarda militar para zelar por sua segurança pessoal. Com o auxílio técnico dos governos francês e norte-americano, Aristide começara a organizar o chamado Serviço de Segurança do Presidente – SSP – que seria integrado por 58 componentes, dos quais 20 militares e 38 civis. A iniciativa foi interpretada pelo alto comando das Forças Armadas como um ato inconstitucional, por contrariar a proibição de formação de qualquer corpo armado além dos constitucionalmente previstos: as Forças Armadas e as forças policiais. Mais do que com o aspecto da constitucionalidade, os militares estavam preocupados com a possibilidade de formação de um exercito paralelo que, a semelhança dos tontons-macoutes da época duvalierista, pudesse neutralizar a ação das Forças Armadas, retirando-lhe o poder de influir sobre os destinos políticos da nação. Além da SSP, outro ponto fundamental para articular o golpe militar que retiraria Aristide do poder era a forte relação entre os militares haitianos e o tráfico internacional de drogas. Desde a época da Dinastia Duvalier, sobretudo com Baby Doc, os militares organizam e protegem o narcotráfico originário dos cartéis colombianos, fazendo do Haiti o segundo maior distribuidor de drogas do Ocidente, com um volume de quatro toneladas de cocaína transitando mensalmente em solo haitiano, gerando 200 milhões de dólares ao ano para cúpula das Forças Armadas. A gota d’água para o golpe militar foi o discurso de Aristide na Assembléia Geral da ONU, em 26 de setembro de 1991. Aristide incitou o povo a recorrer à violência para combater as forças da opressão por meio do “suplício do colar”, prática de longo tempo conhecida dos haitianos, que consistia em imobilizar a vitima, amarrando-lhe os braços, para incendiá-la com um pneu banhado em gasolina que lhe era colocado em torno do seu corpo, em forma de “colar”. Quatro dias após tal discurso e sem sequer ter completado oito meses de mandato, o padre Aristide foi deposto e a incipiente vida democrática do Haiti era interrompida por um novo golpe militar.

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Aristide partiu para um prolongado exílio de três anos nos EUA, assumindo o poder Raoul Cédras, comandante em chefe da Forças Armadas. A derrubada do presidente Aristide provoca reação sem precedentes no hemisfério, mobilizando a totalidade dos 34 Estados que hoje se fazem representar na Organização dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de restaurar a frágil democracia haitiana. Finalmente, encerrar-se-ia um período de quase dois séculos de abandono e indiferença da comunidade internacional para com a nação haitiana. 3. A RESTAURAÇÃO DE UMA FRÁGIL DEMOCRACIA

“Será que nunca faremos nada senão confirmar a incompetência da América

Católica que sempre precisará de ridículos tiranos?”

Podres poderes. Caetano Veloso A inédita reação hemisférica A deposição do Presidente Aristide apresentou-se como o primeiro teste para o regime de defesa da democracia no sistema interamericano, instituído pelo Compromisso de Santiago com a Democracia e a Renovação do Sistema Interamericano, através da qual foi definida a democracia como regime de governo do continente. Dois dias após o golpe militar de 30 de setembro de 1991, o secretário geral da OEA, dando cumprimento aos mecanismos do Compromisso de Santiago, solicitou a convocação do Conselho Permanente, que se reuniu naquela tarde, em sessão extraordinária, para deliberar sobre a “interrupção abrupta e irregular do processo constitucional democrático ou do legitimo exercício de poder de um governo democraticamente eleito” que se desenrolara no Haiti. Através da resolução 567, os Governos americanos condenaram o golpe militar, exigiram que a Constituição haitiana e o Governo legitimamente constituído fossem respeitados, além de convocar uma reunião ad hoc de ministros das Relações Exteriores, para tratar da crise haitiana. Nesta Reunião de Ministros, foi emanado um instrumento inédito nas relações internacionais, através da resolução ministerial 1/91, por ter sido a primeira vez em que um foro multilateral emanou um pleito de reversão de um golpe de Estado. Em seu primeiro parágrafo operativo, a resolução exigiu “a plena vigência do estado de direito e do regime constitucional e a imediata restauração do Presidente Jean-Bertrand Aristide no exercício de sua legitima autoridade”. Visando a restauração do poder de Aristide, o coletivo da organização tomou as seguintes decisões: congelar os bens e bloquear as contas bancárias, no exterior, dos autores do golpe; retirar todos os embaixadores de Porto Príncipe; não reconhecer o governo de fato; e finalmente, impor um embargo comercial, como forma de pressionar os golpistas a recuar em suas posições. Até então, não se previa a hipótese de medidas coercitivas. Há tão somente a busca de uma solução pacífica à crise.

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Assumia-se, assim, no plano multilateral, uma posição multilateral inédita no quadro de uma questão de natureza interna. A crise que se desencadeara no Haiti em 30 de setembro de 1991 não se enquadrava no modelo de uma situação de conflito entre dois ou mais Estados, que pudesse validar um papel de mediação da OEA ao abrigo do artigo 24 da Carta. Menos ainda, alcançava proporções de ameaça a paz ou a segurança internacionais de outro Estado membro ou região, de modo a justificar a invocação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, o TIAR, ou o encaminhamento do assunto para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mesmo assim, os Estados americanos conduziram a Organização a um envolvimento direto, autorizando-a a formular uma exigência em matéria de política interna e a indicar, inclusive, meios multilaterais de pressão. Para estar em conformidade com a Carta da OEA e com o direito internacional, a atuação da Organização não poderia impor medidas coercitivas de caráter mandatário de natureza militar ou impor sanções de natureza política ou econômica, cuja competência exclusiva é do Conselho de Segurança, segundo o capítulo VII da Carta da ONU. Dentre uma das determinações da resolução 1/91 estava o envio de uma missão de altas autoridades responsáveis por expressar aos detentores do poder a condenação hemisférica ao golpe de Estado e transmitir-lhes as medidas adotadas no âmbito interamericano. Na ótica dos golpistas, tal reação, sem dúvida incomum e ousada, representava uma ingerência indevida nos assuntos internos do Haiti, uma agressão à soberania e uma violação ao compromisso internacional de não-intervenção. O grupo das altas autoridades viajou no dia 4 de outubro para Porto Príncipe e, sem entrar na capital haitiana por razões de segurança, ficou confinado a uma sala de aeroporto, de onde foram forçados a fazer a comunicação que lhes competia. Os militares mantiveram-se irredutíveis diante do requerimento internacional de retorno do presidente deposto, a quem acusavam de despreparo para o cargo presidencial, desrespeito à constituição, incitação do povo à violência, abuso e poder e violação dos direitos humanos. Com o fracasso da missão de altas autoridades, a OEA emanou a resolução 2/91, através da qual constituiu uma missão de observadores civis, denominada OEA-DEMOC. A esta missão foi confiada a incumbência de contribuir para o restabelecimento e o fortalecimento das instituições democráticas haitianas, a plena vigência da Constituição, o respeito pelos direitos humanos e de apoiar a administração da justiça e o funcionamento apropriado das instituições que tornariam possível a realização desses objetivos. No exercício de seus mandatos, OEA-DEMOC empreendeu, de novembro de 1991 a fevereiro de 1992, uma série de tratativas, com vistas a facilitar a conclusão de um acordo entre autoridades haitianas, no qual fossem estabelecidas as condições de base para o retorno e a reassunção do presidente destituído e o desfecho da crise. Na realidade, carente de autoridade para impor medidas de forças contra os golpistas, a OEA só tinha mesmo esta saída: facilitar as negociações entre as partes em conflito. Nove meses haviam decorrido desde a destituição do Presidente Jean-Bertrand Aristide sem que as exigências regionais de reversão do golpe de Estado houvessem sido atendidas. O quadro era perturbador. O embargo comercial, na época o mais forte instrumento de que dispunha a OEA para fazer a defesa da democracia haitiana, era ineficaz. Neste contexto, onde as possibilidades de atuação do foro interamericano se

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esgotavam, a alternativa do envolvimento das Nações Unidas no quadro da política haitiana começava a tomar forma. A universalização da crise A crise haitiana foi levada pela primeira vez a debate no seio da Organização das Nações Unidas no dia 4 de outubro de 1991. Nos debates de então, os países discutiram um projeto de resolução que se apoiava em dois argumentos para justificar o eventual envolvimento do Conselho de Segurança na crise político-institucional do país caribenho: primeiro, as Nações Unidas haviam participado do processo eleitoral no Haiti, em 1990; e segundo, o capítulo VIII da Carta da ONU – que dispõe sobre a relação entre os organismos regionais e o Conselho de Segurança - oferecia amparo para que o tema fosse tratado por aquele órgão. No entanto, tal projeto de resolução não foi levado adiante. Nesse primeiro movimento para universalizar a crise haitiana, ficou claro que, além de não haver consenso em favor da inclusão do tema na agenda daquele órgão, o fundamento do capítulo VIII não era cabível na época. Conforme dispõe o artigo 52 daquele capítulo, a transferência do manejo de uma situação de crise para a égide do Conselho só deveria ocorrer quando esgotados os recursos regionais para o tratamento do assunto. No caso em questão, faltavam dois elementos essenciais: a crise nunca havia sido tratada como ameaça a paz e segurança internacionais e a OEA não declarou o esgotamento de seus recursos para o manejo da crise. Já em novembro de 1992, a iniciativa de universalizar a questão foi da própria OEA, através da resolução 594/92, onde foi formulado à Assembléia Geral um pedido de cooperação com a ONU. Através da referida resolução, a OEA instou os Estados membros das Nações Unidas a que, de acordo com a Carta da ONU, e por intermédio do Secretário-Geral daquela organização, renovassem seu apoio às medidas adotadas regionalmente com vistas ao restabelecimento da ordem institucional no Haiti, ao funcionamento das instituições políticas no país e à aplicação de um embargo no fornecimento de equipamentos militares, armas, munições, petróleo e derivados. Como foi desejada pela grande maioria dos Estados americanos, a resolução fazia um pedido de ajuda às Nações Unidas, mas mantinha o protagonismo do papel da OEA, não fazendo qualquer menção a participação do Conselho de Segurança no desfecho da crise. No entanto, o protagonismo hemisférico encerrou-se no final de 1992, por incitativa de Aristide, que levou a OEA a aprovar a resolução 4/92 da OEA, através da qual foi proposto um empreendimento coordenado OEA – ONU. A cooperação OEA - ONU Com a aprovação da resolução 4/92, introduziu-se um modelo inédito de associação entre a OEA e a Assembléia Geral da ONU, em que as instituições multilaterais passaram a atuar sem superposição de competências na busca do mesmo propósito, promover uma solução pacífica e negociada para a crise haitiana. Ao atuar nas áreas de negociação política, atendimento dos refugiados, assistência humanitária e aplicação do embargo comercial, cada organização participaria dentro de diferentes marcos jurídicos: a OEA, atuando ao amparo das disposições do direito interamericano

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que a credenciaram a agir em defesa da democracia; e a ONU, respaldada pelo direito internacional que lhe confere missão em prol dos direitos humanos. Os secretários-gerais das duas organizações nomeiam um procurador comum, na pessoa de Dante Caputo, ex-ministro das Relações Exteriores argentino. Na condição de mediador, Caputo não se radica em Porto Príncipe, permanece em Nova Iorque e nomeia um emissor para instalar-se no Haiti. Tal decisão acaba por comprometer a neutralidade de todo o processo de mediação, eis que opta por fica permanentemente próximo de Aristide e afasta-se da possibilidade de dialogar diretamente com os detentores do poder real no Haiti. Durante o ano de 1993, instala-se no Haiti um clima de completo desgoverno, que se expressa mediante atentados terroristas, agressões, tortura, detenções arbitrárias, execuções e desaparecimentos forçados de pessoas que se opunham ao regime militar de Raoul Cédras. Diante da crescente deterioração do quadro haitiano, não restou alternativa para a comunidade internacional que não o de tentar a última cartada regional sobre os golpistas, através da resolução 5/93. Neste novo instrumento, não se contemplaram medidas adicionais de pressão, apenas se reafirmou posicionamentos assumidos anteriormente de condenação ao golpe. A OEA havia alcançado os limites máximos permitidos pela sua Carta e pelo direito internacional. Não tinha como inovar, mesmo por que, como a situação já havia fartamente comprovado, a questão que se colocava não era a de identificar novos mecanismos, mas antes fazer com que os já adotados fossem devida e estritamente cumpridos. As dificuldades que enfrentava a OEA, agora não mais isolada, mas em companhia da ONU, depunham contra as possibilidades de êxito do esforço de persuasão multilateral, oferecendo fortes argumentos em favor da radicalização do tratamento da matéria haitiana e, portanto, de seu encaminhamento para a esfera do Conselho de Segurança. O Presidente Aristide, vendo-se pressionado pela comunidade americana e internacional para que participasse de negociações diretas com o principal responsável por sua destituição, resolve encaminhar oficialmente novo pedido de intervenção ao Conselho de Segurança. Utilizando-se do argumento de que a solução da crise estaria a serviço da estabilidade regional e do fortalecimento da paz e da segurança internacionais, o mandatário haitiano fundamentou a atuação do órgão executivo da ONU no capítulo VII da Carta da ONU e solicitou que aquele órgão tornasse as “sanções” adotadas pela Reunião dos Ministros americanos, universais e mandatórias, com especial prioridade para o embargo de produtos petrolíferos, armas e munições. Nesta ocasião, o Conselho de Segurança adota a resolução 841/93, através da qual decide pela universalização do embargo ao Haiti, agora de petróleo e armas, caso Aristide não fosse reconduzido ao poder em uma semana. Com esta medida, o Conselho acaba por alcançar o objetivo que pretendia: provocar em Cédras um súbito interesse em negociar, instalando-se, então, uma longa e penosa negociação, que resultaria mais tarde no Acordo de Governor’s Island. O Acordo de Governor’s Island

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Sob os auspícios das Nações Unidas, entre 27 de junho e 3 de julho de 1993, desenvolveram-se negociações em Nova Iorque, com vistas à conclusão de um acordo político entre o presidente deposto e o governante de fato. Em razão da recusa de Aristide de sentar-se a mesa de negociações com o líder militar que o destituiu, as negociações foram desenvolvidas em separado, instalando-se cada interlocutor em um prédio. Neste contexto, Dante Caputo dedicou-se a buscar as condições para o diálogo político, onde seu papel não seria de mediador, mas de emissário dos dois pólos da crise. Após seis dias de tensas negociações, resultou um acordo, chamado de Acordo de Governor’s Island, batizado com o nome de uma ilha ao sul de Nova Iorque onde foi subscrito o termo. Nele, o governo de fato de Raoul Cédras anuncia sua anuência para com o plano de retomada da legalidade traçado pela ONU que pode ser resumido nos seguintes termos:

a) Aprovação de uma lei de anistia aos militares; b) Renúncia de Cédras, até 15 de outubro; c) Nomeação de um novo primeiro-ministro por Aristide a ser submetido ao

Parlamento; d) Designação de um governo provisório de transição; e) Nomeação de um novo comandante das Forças Armadas, também por

Aristide, tutelada pelas organizações internacionais; f) Reativação da ajuda internacional; g) Retorno de Aristide a Porto Príncipe em 30 de outubro.

A nova tática internacional, no entanto, não produziu os frutos esperados. A poucos meses de sua assinatura, uma sucessão de fatos acabam por colocar o acordo em cheque e transformá-lo em letra morta. As primeiras medidas contempladas no Acordo chegam a ser cumpridas: a nomeação por Aristide, em julho de 1993, de Robert Maval para o cargo de primeiro-ministro; a ratificação do seu nome pela Assembléia Nacional, em agosto; e a suspensão, dos mecanismos de coerção impostos pela comunidade internacional, também em agosto. No entanto, à medida que as primeiras etapas do Acordo eram cumpridas, a violência tomava conta do Haiti, deslanchada pelos attachés, grupo que se levanta como principal opositor ao Acordo, que lançam seus esquadrões da morte numa campanha de intimidação e terror contra os políticos encarregados de fazê-lo vigorar no Haiti. Transcorre o dia 15 sem a renúncia de Cédras. Em 16 de outubro, o Conselho de Segurança aprova um bloqueio naval ao Haiti. No dia 17, Cédras declara não confiar na ONU, acusa o organismo por sua parcialidade e solicita oficiosamente a mediação do Papa João Paulo II. Em 20 de outubro, Cédras começa a turbar a interpretação do Acordo de Governor´s Island, desconhecendo a existência da clausula de sua renúncia e de instalação do governo provisório. Além disso, acusa a ONU e a OEA pela violação do Direito Internacional ao lançarem mão do embargo, pelo fato de que o Haiti não é uma ameaça à paz e segurança internacionais, motivo pelo qual não caberia contra o país uma ação do coletivo internacional. No dia 28, em discurso às Nações Unidas, Aristide finalmente declara que não retornará ao Haiti em 30 de outubro e pede o

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embargo total e completo ao país. O dia 31 amanhece, após mais uma madrugada de tiroteios, agora comemorativos da vitória dos golpistas sobre as Nações Unidas. Ao final de 1993, com o descumprimento do Acordo, a situação em que se encontra o Haiti é insustentável, sobre tudo do ponto de vista da imensurável afronta que os golpistas fazem contra o coletivo internacional. O uso multilateral da força para o restabelecimento da democracia passa a ser cogitado intensamente. O desfecho da crise Em 11 de julho, o conflito agrava-se com a decisão do presidente interino de declarar personae non grata os observadores dos direitos humanos da missão civil OEA/ONU que ainda se encontravam no país, concedendo prazo de 48 horas para que deixassem o Haiti. Neste período, a Missão Civil constata a continuidade da repressão e da violação dos direitos humanos, com o desaparecimento e seqüestro de centenas de adversários do regime militar. Estima-se que mais de 300 mil pessoas tenham migrado internamente ou dele emigrado desde o golpe militar, havendo ainda, denuncias de fuzilamentos de sacerdotes, estupros e extermínio de crianças. A expulsão dos observadores significou o corte total de qualquer contato com a comunidade internacional e constituiu-se no elemento-chave para iniciarem os debates sobre uma intervenção militar. Em 28 de julho, amparado por uma carta de Aristide que solicitava “uma solução rápida e efetiva, sob autoridade das Nações Unidas”, o Conselho se reuniu e aprovou a resolução 940/94. Tal instrumento autorizou os Estados membros a formarem uma força multinacional (UNMIH), sob comando e controle unificados dos EUA, a usarem todos os meios necessários para facilitar a saída da liderança militar do Haiti, o pronto retorno do Presidente Aristide ao país, a recondução das legitimas autoridades do Governo haitiano e o estabelecimento de um clima estável e seguro que possibilitasse a implementação do Acordo de Governor’s Island. A resolução 940 abriu um sério precedente no campo das relações internacionais. Nunca antes o Conselho de Segurança autorizara seus Estados membros a formarem uma força “multinacional” sob outro comando que não o das próprias Nações Unidas, e a utilizarem “todos os meios necessários” para regularizar uma situação que era, de fato, uma questão de natureza interna. Neste sentido, deve se ressaltar que a invocação do capítulo VII da Carta da ONU e a caracterização da crise como uma ameaça à paz e à segurança foi um recurso “forçado” e de consistência jurídica questionável, pelo fato do Haiti não ser um Estado agressor. No entanto, era o único fundamento jurídico à disposição da comunidade internacional para agir frente à crise haitiana. Quando tudo parecia indicar a inevitabilidade de uma intervenção militar, o Presidente Bill Clinton entra em cena e tenta sua última cartada, enviando à Porto Príncipe uma missão negociadora, presidida pelo ex-presidente democrata Jimmy Carter e integrada pelo General Collin Powell e pelo senador Sam Numm, chefe da Comissão de Serviços Militares do Senado norte-americano. Carter logrou obter um acordo com o então “governo provisório” do Haiti, através do qual a invasão militar pode assumir a forma de missão pacífica ou, como ficou conhecida, uma invasão consentida. Assim, em 19 de setembro de 1994, os soldados americanos desembarcaram em Porto Príncipe

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sob aplausos e cantorias da população haitiana. No mesmo mês, após garantir sua impunidade através do Acordo firmado com Carter, o governo militar renunciou e partiu para o exílio. Em 15 de outubro, Jean-Bertrand Aristide retornava ao Haiti e, juntamente com ele, o status quo ante da jovem e frágil democracia haitiana. No entanto, não tardou para que o despotismo despertasse e voltasse a desestabilizar a política haitiana. 4. A NECESSIDADE DE CONSTRUIR UM ESTADO EM RUÍNAS

“Ser solidário é partilhar – quer se queira, quer não, quer se goste, quer não – de uma

mesma história de interdependência, de uma mesma comunidade de destino.”

Pequeno tratado das grandes virtudes. André Comte-Sponville

A segunda queda de Aristide Desde a invasão consentida da UNMIH, em 1994, que possibilitou o retorno do governo democraticamente eleito ao poder, uma sucessão de missões de paz se seguiu no Haiti até 2000. Após a conclusão do mandato da UNMIH, em 1996, houve a UNSMIH (1996-1997), a UNTMIH (1997) e a MIPONUH (1997-2000). Durante este período, houve pequenos avanços na situação haitiana. Restaurou-se em alguma medida, o nível de democracia, com a primeira transição de poder entre dois presidentes eleitos na história do Haiti; começou a se delinear um esboço de sociedade civil organizada, engajada nos desenvolvimentos políticos e culturais do país. No entanto, devido à continuidade da crise política e a concomitante falta de estabilidade institucional, nenhuma reforma estatal mais séria ou profunda foi levada adiante. Nas eleições parlamentares e presidenciais de 2000, Jean-Bertrand Aristide e seu partido venceram com menos de 10% de vantagem sobre seus opositores que, juntamente com a comunidade internacional, contestaram os resultados e acusaram o governo de manipulação. Ao final de 2003, o Presidente Aristide era pressionado por um novo movimento de oposição, composto por partidos políticos, ex-militares e ex-policiais, representantes da sociedade civil organizada, pelo alto Clero e, sobretudo, pelos ex-companheiros de caminhada desiludidos com seu desgoverno. O ex-padre dos pobres se encontrava isolado no governo. Em fevereiro de 2004, o caos retorna às ruas do Haiti. Conflitos armados espalham-se pelo país e gradualmente, os insurgentes tomam controle das cidades nos arredores da capital, cuja tomada parece questão de tempo. Assim, na noite de domingo, 29 de fevereiro de 2004, para evitar um banho de sangue em Porto Príncipe, Jean-Bertrand Aristide renuncia ao cargo de Presidente da República e conduz-se ao segundo exílio de sua vida política. Com a cadeira presidencial interinamente ocupada pelo Presidente da Suprema Corte, Boniface Alexandre, este decide por requerer auxílio ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, que prontamente adota a resolução 1529/2004. Através deste

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instrumento, o Conselho autoriza o envio de uma Força Multinacional Provisória (MIF), com a finalidade de afastar o risco de um golpe militar que estava porvir, manter um ambiente seguro e estável no país e apoiar a continuidade do processo político de forma pacífica e constitucional. Passado o risco do golpe militar, iniciou-se um diálogo para a formação de um governo transitório. Para construir um mínimo de consenso político em torno do governo transitório, foi firmado um Pacto de Transição Política, assinado por representantes de variados grupos políticos e integrantes da sociedade civil, através do qual estabeleceram, dentre outras medidas, a realização de eleições municipais, parlamentares e presidenciais em 2005. Além disso, seguindo a orientação de uma missão multidisciplinar de observadores oriunda da MIF, seria necessário levar adiante uma série de medidas durante o período de transição que não meramente eleitorais. Segurança, desenvolvimento, impunidade, corrupção, reforma judicial, profissionalização das forças policiais, abusos de direitos humanos, são apenas algumas das áreas para as quais deveriam ser implementadas iniciativas internacionais caso a pretensão da comunidade internacional fosse dar uma estabilidade de longo prazo para o Estado haitiano.

Nestes termos, o Conselho de Segurança criou, em 30 de abril, através da

Resolução 1542, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a MINUSTAH, que por diversas razões, constitui-se num modelo sui generis de força multilateral de paz. Uma missão de paz sui generis Pela primeira vez na história da ONU, um grupo de Estados que desempenham um papel secundário no sistema internacional responde a um apelo do Conselho de Segurança para compor uma missão de estabilização. Não há participação de nenhuma Potência, tampouco há força de países que possuem laços históricos com o Haiti, como a França e os Estados Unidos. Dos Estados que integram a missão, a quase totalidade é de países em desenvolvimento, na sua maioria, latino-americanos. Compõem a MINUSTAH os seguintes países latino-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai. Das demais regiões do mundo, fazem parte: Croácia, Jordânia, Malásia, Marrocos, Nepal, Filipinas, Espanha e Sri Lanka. A intervenção atual possui este diferencial. A inédita composição do grupo de Estados mediadores que não possuem interesses políticos, ideológicos, econômicos ou militares com a intervenção comprova o fato de nos encontrarmos diante de um novo modelo de mediação e de solução de conflitos, através de um instrumento coletivo e desinteressado. Além disso, inexistem grandes interesses internacionais em relação ao Haiti. O fato dos Estados que intervêm estarem desinteressados no conflito propriamente dito lhes proporciona uma capacidade suplementar baseada na neutralidade de sua atuação – elemento indispensável à mediação. Eles se encontram acima do conflito, dispondo de uma visão mais completa e abrangente, não tomando partido por razões outras que não as vinculadas à própria dinâmica do conflito e à busca de uma solução. O outro grande diferencial da MINUSTAH, além do fato de ser conduzida por países desinteressados, encontra-se no seu mandato, muito mais amplo que o da missão

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que interveio na crise de 1991. A atual missão parte do pressuposto que a reconciliação política e a reestruturação econômica são peças igualmente indispensáveis a estabilidade e a segurança do Haiti e que, sem a implementação de projetos concretos de desenvolvimento social e econômico, dificilmente será superada a crise política haitiana. Com um mandato prorrogado até 15 de fevereiro de 2006, a MINUSTAH está imbuída de três objetivos: garantir um ambiente estável e seguro; institucionalizar o processo político em bases democráticas e; promover e proteger os direitos humanos através do desenvolvimento sócio-econômico. Estes objetivos constituem os três pilares da missão, o que acaba por configurar um novo modelo de atuação multilateral, inédito até então na história do Haiti. Atualmente a missão conta com 7.500 pessoas ao total, entre militares, civis e voluntários e possui um orçamento aprovado pelas Nações Unidas de US$ 541.30 milhões, disponíveis de julho de 2005 à junho de 2006 Os três pilares de um novo modelo de atuação multilateral - Pacificação e proteção de civis Para garantir um ambiente seguro e estável no país, a missão tem as seguintes atribuições:

a) Monitorar, reestruturar e reformar a Polícia Nacional Haitiana dentro de padrões democraticamente aceitáveis de policiamento;

b) Desenvolver o Programa de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração para todos os grupos armados;

c) Restaurar e manter o Estado de Direito e a segurança púbica através do fortalecimento institucional da Polícia Nacional Haitiana;

d) Proteger tanto o pessoal das Nações Unidas como civis sob ameaça iminente de violência física.

No Haiti, não se trata apenas de pobreza absoluta, nem da ação de organizações paralelas vinculadas ao tráfico de drogas e outros crimes, tampouco de crescente violência urbana ou de escassa presença do Estado. Trata-se da simples ausência de Estado. Da convivência desregrada entre seres humanos abandonados à sua própria sorte, sem nenhuma possibilidade de salvação individual, diante da perspectiva de guerra eterna de todos contra todos. Por isso, a necessidade de pacificação é caráter indispensável de uma intervenção multilateral. A missão deve ser capaz, através da presença de forças civis e militares, de por fim a perspectiva de guerra que prevalece na sociedade haitiana. Neste pilar, a atuação mais importante refere-se ao Programa de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração que, de certa forma, vincula-se com o mandato conferido no segundo pilar, a cerca da democratização do diálogo político. Uma medida que ilustra a atuação da MINUSTAH neste Programa é a obrigação de abstenção à violência, através das quais as facções e grupos políticos que queriam participar do processo eleitoral estão proibidas de usar armas. Segundo relatórios de ONG´s que atuam na crise haitiana, calcula-se que existam mais de 210 mil armas leves ou pequenas nas mãos da população civil no Haiti – a maioria ilegais.

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- Democratização do diálogo político Em relação à democratização do diálogo político, a MINUSTAH tem os seguintes objetivos:

a) Apoiar o processo político e constitucional, sob os princípios da governança democrática e do desenvolvimento institucional;

b) Levar adiante um processo de reconciliação e diálogo nacional; c) Estender a autoridade estatal por todo o território haitiano; d) Organizar, monitorar e levar adiante eleições municipais, parlamentares e

presidenciais. A violenta cultura política haitiana faz com que todo diálogo político seja silenciado pelas armas. Por isso, a mediação política tem o desafio de possibilitar uma transição política capaz de resgatar um mínimo de dignidade a milhões de haitianos e que o processo eleitoral não seja um simples jogo de cena dos partidos políticos locais com a conivência da comunidade internacional. Como problema de fundo em relação a democracia representativa, paira no ar a questão se é possível instaurar a democracia onde não existe cultura democrática, como no caso do Haiti. - Promoção dos direitos humanos e desenvolvimento sócio-econômico Para promover e proteger os direitos humanos através do desenvolvimento sócio-econômico foi atribuído à missão o seguinte mandato:

a) Promover e proteger os direitos humanos, especialmente de crianças e mulheres;

b) Investigar violações de direitos humanos e de direito internacional humanitário, incluindo a situação de refugiados repatriados e de pessoas desaparecidas;

c) Desenvolver uma reforma e o fortalecimento institucional do Poder Judiciário;

d) Contribuir para a promoção do desenvolvimento econômico e social do Haiti, em particular, no longo prazo, para alcançar e manter estabilidade e combater a pobreza;

e) Assistir ao Governo Provisório no planejamento de uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo.

O terceiro pilar da MINUSTAH possui uma dimensão de médio e longo prazo. Aqui se encontra o caráter inovador da atual intervenção. Ela consiste, além de imbuir a cultura de respeito aos direitos humanos na sociedade haitiana, na recuperação da infra-estrutura e nos projetos socioeconômicos que objetivam amenizar os gravíssimos problemas com os quais o Haiti se defronta – particularmente no tecido urbano. O Haiti é o único representante do continente americano a integrar a lista dos “países menos avançados” e o mais grave é que a recorrente crise política faz com que este país, já paupérrimo, consiga se empobrecer ainda mais a cada ano. Fundamentos teóricos para uma intervenção solidária É indispensável que a espiral da violência e do empobrecimento na qual ingressou o Haiti seja interrompida. Ora, tal desafio somente poderá ser vencido com a

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colaboração estrangeira. Ocorre que a crise haitiana não representa, de fato, uma ameaça à paz internacional e a segurança regional. Logo, a comunidade internacional carece de fundamentos jurídicos para justificar uma intervenção numa situação dessa natureza, onde a crise social, a instabilidade política e a miséria econômica são os grandes violadores da condição humana no Haiti. O fato da OEA ter justificado sua intervenção em nome da democracia e a ONU, por seu lado, ter justificado em nome dos direitos humanos, é decorrente da ausência de um princípio mais amplo e universal. Nesse sentido, surge o princípio da solidariedade, capaz de justificar uma intervenção em situações de crise interna de países “menos interessantes” para as relações internacionais. A intervenção solidária pode ser definida como sendo a concepção e a aplicação de uma ação coletiva internacional, sob os auspícios do Conselho de Segurança das Nações Unidas, feita por terceiros Estados intervenientes num conflito interno ou internacional, desprovidos de motivações decorrentes de seu interesse nacional e movidos unicamente por um dever de consciência. Deve-se ressaltar que o desinteresse material e/ou estratégico constitui a marca registrada deste modelo de ação externa do Estado-sujeito. Para que tal ausência de interesse seja inconteste é necessário igualmente que o Estado-sujeito não tenha tido no passado qualquer relação especial com o Estado-objeto de intervenção. As clássicas idéias de Kant podem servir para a compreensão filosófica da intervenção solidária, pelo fato desta ocorrer por dever de consciência, pela ausência de ações morais (pressão da opinião pública) ou materiais (existência de algum interesse pontual). Em termos kantianos, a solidariedade é um imperativo categórico. Logo, torna-se dever da comunidade internacional, por força da solidariedade, proporcionar à todos os povos a real oportunidade de construir através de seus próprios Estados, a utopia do desenvolvimento. Poderia se argumentar que o princípio da solidariedade viola o principio da não-intervenção. Ora, a intervenção solidária não é o contrario do princípio da não-intervenção, mas uma exceção a ele, pois o afirma ao ditar seus limites quando indaga sobre qual soberania deve ser defendida: a do povo ou a do ditador? Diante da realidade do dilema haitiano, não há margem para hesitação. Não é possível que, escondido sob o princípio da não-intervenção, permita-se condenar um povo esmagado, depauperado e tornado indigno pela tirania de seus algozes. A comunidade internacional pode – e deve - resgatar a população haitiana desta sua histórica subjugação a soberania dos ditadores. 5. O OCASO DA SOBERANIA DOS DITADORES

“A verdadeira soberania provém da dignidade, da justiça, do direito, da liberdade e do governo da maioria. A soberania que é alicerçada sobre

princípios contrários a estes se resume tão somente na soberania dos tiranos”.

Haiti: a soberania dos ditadores. Ricardo Seitenfus

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Ao longo da primeira intervenção da comunidade internacional na crise haitiana, desde a intervenção em 1991 até a recondução de Aristide ao poder, o grande propósito declarado pela OEA foi sua redemocratização, expressão que, considerando-se a história sui generis do país caribenho, não deixa de soar como um eufemismo. Nem os mais otimistas, ou talvez ingênuos, poderiam imaginar uma mágica “redemocratização” de um país que nunca foi democrático e sempre se destacou pelo absoluto descaso de suas lideranças para com as noções políticas dos países ocidentais. Se redemocratização traz consigo as noções de soberania popular, representatividade, divisão de poderes, liberdade de expressão, pluripartidarismo e respeito aos direitos humanos, obviamente, o empreendimento que a comunidade internacional se propôs a realizar na primeira intervenção foi, de longe, um fracasso. Em 2004, houve uma radical mudança de perspectiva da comunidade internacional em relação ao seu papel diante do Haiti. Do mero restabelecimento da “ordem democrática”, passou-se a uma visão mais ampla, na qual a estabilidade política é conseqüência de uma estruturação muito mais ampla e profunda da sociedade, da economia e do Estado haitiano. A comunidade internacional finalmente deu-se conta que a mera condução política ao status quo ante não auxiliara em nada a solução da crise haitiana. Obviamente, os problemas dos quais padece o Haiti têm raízes muito mais profundas que a mera formalidade da ocupação do cargo presidencial. O Haiti continua a ser o país mais pobre do hemisfério, com 90% de suas terras aráveis esgotadas, uma perversa concentração de renda nas mãos de poucas famílias abastadas, uma taxa de desemprego de quase 70% e um índice de analfabetismo estimado em 80%. Consequentemente, uma intervenção multilateral, para surtir alguma solução razoavelmente duradoura, necessita ir muito além do que apenas fantasiar o Haiti de Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a grande incógnita colocada por este novo modelo de intervenção, ao qual se propõe denominar de intervenção solidária, é saber se essa nova forma de atuação internacional possui a capacidade de ser reestruturante e trazer benefícios duradouros à população do país e à organização de um Estado que responda aos desafios do presente e, principalmente, do futuro. Ou se, ao contrário, ela é simplesmente uma nova roupagem para uma velha prática paternalista que provocou, entre outras conseqüências, uma dependência crônica e uma desresponsabilização social que afeta o conjunto da sociedade e do Estado haitianos. A complexidade da atual transição política no Haiti não deve camuflar os verdadeiros e inadiáveis desafios do país. A indispensável realização de eleições competitivas e leais, previstas para fevereiro de 2006, é apenas a primeira etapa e não um objetivo isolado e conclusivo. Se a ONU se retirar após as eleições, cometerá o mesmo erro do passado. O único caminho que resta para a indispensável busca da eficácia e de resultados concretos consiste em convencer a comunidade internacional a continuar sustentando materialmente esta “segunda fase”, de médio e longo prazo, da MINUSTAH. Diante da extraordinária história de violência política e de descalabro administrativo do Haiti, a construção de um Estado Democrático de Direito não pode

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ser apenas a obra de fuzis. Estes podem tão somente restaurar a ordem pública e nada além. Sua consolidação depende de uma política permanente e profunda, com a participação ativa do exterior, tanto através da cooperação técnica e financeira, que vise transformar a democracia, de valor distante - pra não dizer desconhecido - dos haitianos, em prática cotidiana. Os recorrentes fracassos da comunidade internacional, dividida entre a indiferença e um histórico de intervenções paternalistas, exigem um repensar de sua estratégia de ação no Haiti. Esta a tarefa primeira da intervenção solidária. Até quando permanecerão as forças no país? Até quando estarão dispostos a financiar a indispensável construção do Estado haitiano? Quanto tempo efetivamente constitui esta fase de médio e longo prazo? Até quando a democracia haitiana continuará a ser vigiada? Até que ponto será valido afirmar que tenha se logrado alcançar o ocaso da soberania dos ditadores? Uma verdade resta inequívoca: É dever da comunidade internacional, em nome da solidariedade, libertar os haitianos das correntes do autoritarismo que aprisiona a população há dois séculos e finalmente lograr tornar esta civilização extraordinariamente fascinante em mestre de seu próprio destino. 6. BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 2ª ed. São Paulo: Mandarim, 200. 266p. BOUVIER, Antoine; SASSÒLI, Marco. How does Law protect in War? Genebra: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 1999. 1492p. CAMARA, Irene Pessoa de Lima. Em nome da democracia: a OEA e a crise haitiana – 1991 – 1994. Brasília: Instituto Rio Branco - FUNAG, 1998. 240p. CARDOSO, Afonso José Sena. O Brasil nas operações de paz das Nações Unidas. Brasília: Instituto Rio Branco - FUNAG, 1998. 169p. CASADEVANTE, Carlos; QUEL, Francisco (Org.). Las Naciones Unidas y el Derecho Internacional. Barcelona: Ariel, 1997. 191p. COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 392p. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 110p. FUKOYAMA, Francis. Construção de Estados. Governo e organização mundial no século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. 168p. HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

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