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Para citar este capítulo de Livro: LARA, Larissa. M. ; VIEIRA, Alba. P. . Em foco ... o corpo que dança: experiências docentes e intersubjetividades desafiadas. In: Larissa Michelle Lara. (Org.). Abordagens socioculturais em educação física. Maringá: EDUEM, 2010, p. 137-182. EM FOCO ... O CORPO QUE DANÇA: EXPERIÊNCIAS DOCENTES E INTERSUBJETIVIDADES DESAFIADAS Larissa Michelle Lara Alba Pedreira Vieira Introdução Em meio a corpos, respirações e olhares atentos inicia-se o jogo artístico. A protagonista é uma boneca viva, trajada apenas com uma malha cor da pele rente ao corpo. Perto dela há um cabideiro com roupas e acessórios (pulseiras, brincos, maquiagem, plumas). As pessoas recebem o Manual do Usuário com a seguinte saudação inicial: “Parabéns! Você acaba de adquirir uma Play Mate TM , a sua companheira de brincadeiras!”. O manual dá instruções para aproveitar as possibilidades de entretenimento que o produto oferece, e ensina as regras a ser respeitadas por cada jogador: não tocar em determinadas partes do corpo da boneca, não abaixar seu tronco ou cabeça drasticamente, não molhá-la, não lançá-la contra a parede ou pessoas, entre outras. Avisa, ainda, que em casos de maus tratos ela pára de funcionar. Assim, pouco a pouco, as pessoas vão chegando para brincar, colocando roupas, perucas, pulseiras, sapatos. A boneca, em cada cena, vai assumindo diferentes formas – dança, brinca, irrita-se, sorri, enlouquece. Ao final, fala. Não como boneca. Expressa sua humanidade, como estudante, artista, indagadora, fazendo a crítica ao uso comercial/sexual da mulher, à sua configuração como objeto de desejo masculino e brinquedo de mercado. Figura 1- Manual do Usuário Play Mate 1 . 1 Trabalho desenvolvido por Camila Canto, apresentado no I Encontro Multidisciplinar de Pesquisadores em Dança, realizado em 14 e 15 de setembro de 2007, na UNESP-SP. Cf. CANTO, C. Play Mate. In: ENGRUPE – ENCONTRO

EM FOCO ... O CORPO QUE DANÇA: EXPERIÊNCIAS DOCENTES E INTERSUBJETIVIDADES DESAFIADAS

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Para citar este capítulo de Livro:

LARA, Larissa. M. ; VIEIRA, Alba. P. . Em foco ... o corpo que dança: experiências docentes e intersubjetividades desafiadas. In: Larissa Michelle Lara. (Org.). Abordagens socioculturais em educação física. Maringá: EDUEM, 2010, p. 137-182.

EM FOCO ... O CORPO QUE DANÇA: EXPERIÊNCIAS DOCENTES E INTERSUBJETIVIDADES DESAFIADAS

Larissa Michelle Lara Alba Pedreira Vieira

Introdução

Em meio a corpos, respirações e olhares atentos inicia-se o jogo artístico. A protagonista é uma boneca viva, trajada apenas com uma malha cor da pele rente ao corpo. Perto dela há um cabideiro com roupas e acessórios (pulseiras, brincos, maquiagem, plumas). As pessoas recebem o Manual do Usuário com a seguinte saudação inicial: “Parabéns! Você acaba de adquirir uma Play MateTM, a sua companheira de brincadeiras!”. O manual dá instruções para aproveitar as possibilidades de entretenimento que o produto oferece, e ensina as regras a ser respeitadas por cada jogador: não tocar em determinadas partes do corpo da boneca, não abaixar seu tronco ou cabeça drasticamente, não molhá-la, não lançá-la contra a parede ou pessoas, entre outras. Avisa, ainda, que em casos de maus tratos ela pára de funcionar. Assim, pouco a pouco, as pessoas vão chegando para brincar, colocando roupas, perucas, pulseiras, sapatos. A boneca, em cada cena, vai assumindo diferentes formas – dança, brinca, irrita-se, sorri, enlouquece. Ao final, fala. Não como boneca. Expressa sua humanidade, como estudante, artista, indagadora, fazendo a crítica ao uso comercial/sexual da mulher, à sua configuração como objeto de desejo masculino e brinquedo de mercado.

Figura 1- Manual do Usuário Play Mate1.

                                                            1 Trabalho desenvolvido por Camila Canto, apresentado no I Encontro Multidisciplinar de Pesquisadores em Dança, realizado em 14 e 15 de setembro de 2007, na UNESP-SP. Cf. CANTO, C. Play Mate. In: ENGRUPE – ENCONTRO 

O ensinar a jogar com Play Mate é o educar para respeitar e conviver ludicamente,

brincando, criando, compondo as cenas da vida. É esse jogo colaborativo que, diretamente, marca o

início de interesses comuns das pesquisadoras, de cenas que pressupõem cooperação para acontecer,

numa parceria textual, de escrita, de diálogo, de pesquisa, de conhecimento e comunicação. Tais

conexões buscam a compreensão da ação pedagógica em dança, ao mesmo tempo em que exploram

elementos da subjetividade docente2. Nesse exercício lúdico, elaboramos, juntas, tema, subtítulos,

objetivos, e compusemos o texto por partes, mesclando nossos estilos e estabelecendo um processo

comunicativo e intersubjetivo.

A escrita deu-se como que por contato-improvisação, quando os conteúdos, a forma, a

necessidade de expressar e comunicar em dança, o diálogo corporal, vão surgindo, pouco a pouco,

na interação, embora, aqui, numa interação virtual. Guia nossa parceria o entendimento de que,

apesar dos delineamentos iniciais, definitivamente, não conhecíamos os resultados dessa jornada

investigativa. Dentre as vantagens da escrita colaborativa, destacamos a disponibilização, ao leitor,

de mais de uma visão sobre o mesmo objeto de estudo.

Compartilhando as experiências com o ensino de dança na universidade e sentindo afinidade

nas perspectivas investigativas, sentimo-nos motivadas a realizar um estudo em parceria.

Defendendo a idéia de que o ensino da dança pode ser melhor qualificado, inclusive em nível

superior, por meio do diálogo e não do embate entre profissionais de ambas as áreas, é que nos

propusemos a coreografar este texto.

As elaborações acadêmicas focam a dança a partir das realidades das duas autoras, que se

mesclam, se (con)fundem e se enriquecem na composição coletiva, marcada por cerca de dez e doze

anos, respectivamente, de trabalho no ensino superior. A tentativa é identificar desafios, limites e

progressos nestas experiências pedagógicas para nutrir reflexões que possam contribuir com a

intervenção nas áreas de educação física e dança. Daí que o ensino dessa manifestação cultural é

discutido não a partir de uma perspectiva puramente teórica, mas tendo como propulsor inicial

histórias de vida vivenciadas na prática educativa.

Ao desenvolvermos algumas idéias por meio de histórias ou narrativas de nossa experiência,

vislumbramos caminhos em que teoria e prática possam ser integradas para se transformarem

continuamente. A consciência sobre a própria práxis (entendida como ação pensada, refletida e

dialogal) pode contribuir para a identificação e (re)construção de significados da ação docente.

Nosso trabalho é orientado pela autoetnografia que, segundo Humphreys (2005), é aquela

em que o investigador é incluído ativamente na pesquisa, reforçando a união do pessoal ao cultural.

Busca-se conectar ambas as investigadoras como escritoras e possibilitar ao leitor uma conta

                                                                                                                                                                                                     MULTIDISCIPLINAR DE PESQUISADORES EM DANÇA, 1., 2007, São Paulo. Cd-rom... São Paulo: Instituto de Artes da UNESP, 2007.

2 A subjetividade docente a que nos referimos diz respeito às características próprias de cada professor/pesquisador a partir dos entendimentos que têm do mundo, das coisas que o cercam, das suas formas de apreensão do conhecimento. Essa subjetividade tende a ser ampliada por meio de uma ação comunicativa, pelas trocas e experiências que levam ao desencadeamento de um processo intersubjetivo, quando o eu mescla-se ao outro e fusiona-se.

autobiográfica que permita o envolvimento com a narrativa descritiva. Trata-se de uma investigação

das experiências que revelam, na pesquisa, como atenta Richardson (2000), políticas e ideologias

escondidas em nossos escritos.

Em complemento, esperamos levantar problemas e possibilidades de intervenção na

formação de profissionais de dança e educação física, em especial, pelo viés sociocultural, no

sentido de contribuir com uma ação responsável que potencialize os conhecimentos sobre corpo,

gestualidade, manifestações dançantes, técnicas corporais, entre outros, instigando reflexões sobre

esse campo de atuação. Buscamos encontrar espaços na arte e nas ciências humanas e sociais,

incentivando ações que se configuram como essenciais ao processo educativo.

O texto encontra-se organizado, basicamente, em três partes. A primeira traz considerações

acerca da dança no contexto educacional a partir da memória de sua inserção como conhecimento

da formação superior e das dificuldades próprias desse momento. A segunda foca o ensino de dança

na universidade por meio dos problemas encontrados em nossas experiências docentes, como a

ruptura teoria e prática, a dificuldade de perceber o corpo como construção cultural, o sexismo, o

apelo às danças midiáticas, entre outros, materializados, especialmente, nas falas discentes. A

terceira parte caracteriza-se pelos relatos das experiências com o ensino de dança, bem como os

conteúdos desenvolvidos e os caminhos norteadores desse processo.

A Play Mate, que ora propusemos, transcende nossa experiência pessoal. Ganha corpo nas

interações que passaremos a estabelecer aqui; novas intersubjetividades. Assim como o jogo

colaborativo se traduz em arte e crítica, nossos escritos pretendem configurar caminhos de uma

ação docente responsável, refletida, dinâmica e artística, que galga o coletivo, a experiência, a

criação, assim como a apreciação minuciosa, a análise e a intervenção. O “Manual do Usuário” que

apresentamos não está pronto, mas em constante reconstrução. Precisamos iniciar o jogo.

Colocamos a música, a peruca, as pulseiras, o sapato ... O restante é com você. Brinquemos!

Dança, educação e dimensão sociocultural

Pensar a dança pelo viés educacional e artístico, pautado na valorização do potencial

criativo, crítico, autônomo e de pesquisa, não arraigado à mera reprodução de movimentos, parecia

ser algo distante da realidade, sobretudo no início do século XX. Isso porque o desenvolvimento da

dança na sociedade não se deu à margem de todos os acontecimentos históricos, políticos e

culturais, mas permeando-os, modificando-os, e sendo, por eles, modificado. Nessa racionalidade, o

sistema nacional de ensino, quando orientado para uma forma de acesso ao conhecimento que se dá

pelo professor como detentor do saber, capaz de conduzir os alunos a sair da ignorância (deixar de

ignorar algo, conhecer), direciona a mesma linha de pensamento para o acesso a outros

aprendizados, como o das práticas corporais3.

                                                            3 As práticas corporais são, aqui, entendidas como manifestações culturais realizadas pelos sujeitos históricos a partir das necessidades de expressão do corpo, tematizadas e (re)significadas no contexto da educação física a partir de jogos, danças, lutas, ginásticas, brincadeiras, tendo por foco uma abordagem na dimensão das ciências humanas e sociais. Tal

Pode-se observar que, em relação ao trato com a dança na educação física, seu ensino,

quando concretizado, é pautado na instrução pelo professor e na execução pelos alunos,

reproduzindo fielmente os movimentos realizados pelo docente. Por muitos anos e, em grande parte

das escolas, a dança é vista como forma de atividade física, assim como o futebol ou o basquete,

exceto pelo fato de que usa música em vez de bola. Tal viés constitui-se tão forte historicamente

que, mesmo hoje, a idéia sobressalente em muitas pessoas é que fazer dança e apresentá-la é

reproduzir seqüências de movimento. Isso se dá mesmo em meio à ruptura desse ensino tradicional

rumo a formas diferenciadas de se ensinar dança.

Se na educação do século XX passamos por períodos de questionamento da pedagogia

tradicional rumo a outras formas de educar, ainda a-críticas, como adverte Saviani (1994), seja pela

pedagogia nova ou tecnicista, na educação física não foi diferente. O foco numa educação física

pautada em dados empíricos e num paradigma biomédico, da aptidão física e saúde, que se deu,

fortemente, com diferentes nuanças, até a década de 80 do século passado, fez com que o ensino das

práticas corporais tivesse essa orientação. Assim, o ensino de dança, quando materializado, foi

norteado pela reprodução de movimentos, pela separação dos sexos (dança para mulheres), pelo

fortalecimento do corpo feminino para gerar filhos saudáveis à Pátria, para proporcionar espaços de

sociabilidade, para melhorar o ritmo corporal, entre outros aspectos. Isso pode ser evidenciado em

Soares ao fazer incursões pelo pensamento de Fernando de Azevedo, quando afirma que natação e

dança seriam exemplos de exercícios físicos e esportes mais adequados à “[...] delicadeza do

organismo das mães”. Em relação à dança, Azevedo reforça “[...] o fato de ela desenvolver também

a ‘graça’, um dos maiores encantos da mulher” (SOARES, 1994, p. 146), ampliando a flexibilidade

do tronco, fortalecendo as paredes abdominais e a bacia pelviana, algo importante para a

maternidade.

Pela história da educação física, percebe-se que somente a ginástica, a princípio, foi incluída

na escola, embora a dança, assim como os jogos, a recreação, fossem citados dentro dos exercícios

ginásticos e, mais especificamente, após a II Guerra Mundial, o esporte, vinculado ao rendimento e

à produção. A dança, quando, raramente, vista nos sistemas de ensino, foi tratada como simples

atividade, posto que isto retirava do profissional a responsabilidade de dominar este corpo de

conhecimento. A educação física, “[...] ao voltar-se para a dança, por exemplo, atenta para o

movimento corporal nela presente, mas desvincula seu estudo e ensino da compreensão do

significado que o dançar possui em suas distintas maneiras de se manifestar” (CASTELLANI

FILHO, 1993, p. 123).

Partindo de pesquisa realizada com professores de dança no Brasil, Vieira et al (2002)

afirmam que diferentes visões foram desenvolvidas na década de 40 por professores de dança e

                                                                                                                                                                                                     conceito, com outros vieses, foi preconizado por Silva, Damiani et al., podendo ser conferido em SILVA, A. M.; DAMIANI, I. R. (Org.). Práticas corporais: gênese de um movimento investigativo em educação física. Florianópolis: Nauemblu Ciência e Arte, 2005.

bailarinos (por exemplo, Maria Duschenes e Tatiana Hélène Leskova), europeus que fugiam da II

Guerra Mundial. Alguns deles também traziam consigo a idéia da eugenia (purificação da raça), tão

presente nas concepções de Hitler, e que acabou se difundindo por toda a Europa. Buscavam, então,

na dança, uma forma de aperfeiçoamento corporal, semelhante ao que ocorreu com a ginástica na

época do movimento higienista. Em outra pesquisa historiográfica, Vieira et al (2003) entrevistaram

nomes importantes no cenário da dança brasileira, principalmente, mineira, como Arnaldo

Alvarenga. A experiência de Alvarenga exemplifica o preconceito em relação à presença masculina

na dança, na década de 70 do século XX.

No Transforma [companhia de dança mineira] na época que eu entrei, em 1974, tinha 65 mulheres para um homem, tanto que quando eu entrei, eu dancei escondido; só depois de um ano que eu dei conta de colocar isso. Na escola você era olhado torto; em casa a família não aceitava. Até que você consiga assumir [que dança], falar, vestir a camisa na rua ... isso é muito complicado. Uma mulher adolescente na dança já não era bem vista; para um homem, então, imagina. Hoje aceita-se; você coloca menino para estudar balé pequeno. Na época não existia isso; balé era para menina e luta para homem. Eu me lembro uma vez que nós fizemos uma apresentação em um estádio, que tinham três homens e nove mulheres. Quando a gente entrou o estádio inteiro gritou: ‘bicha, bicha’.4

O início de um processo que culminaria na redemocratização do país e maior liberdade de

pensamento intensificou modificações sociais no sentido da construção de uma teoria crítica da

educação. É quando a educação física, pautada no rendimento, na seleção dos melhores, na aptidão

física, na superação individual, passa a ser questionada, dando origem a novas contribuições

teóricas que marcam, fortemente, o início de outra fase da área. Destacamos, nesse primeiro

momento, as reflexões realizadas por Medina (1983), Bruhns (1985), Oliveira (1983), entre outros.

No campo da dança na educação física, é mister lembrar o trabalho pioneiro de Claro (1988)

quando estrutura o que chama de método dança-educação física, discutindo formação profissional,

consciência corporal, experimentação com técnicas ortodoxas e alternativas, entre outros aspectos.

Embora ainda sem uma proposição para o trato com a dança na escola a partir de uma

sistematização de elementos da cultura do corpo, tais contribuições lançam novos olhares que

possibilitam repensar a educação física. Contudo, o marco de uma primeira sistematização dos

conteúdos da educação física escolar dá-se com o Coletivo de Autores (1992), quando a dança é

visualizada com o mesmo grau de importância que outras manifestações corporais, integrando o que

os autores denominaram de cultura corporal. Era o início de uma percepção de trabalho com dança

que se dava na escola a partir de ciclos de escolarização e que envolviam danças de livre

interpretação, danças de interpretação técnica, danças voltadas a temas sociais, entre outros. A partir

de então, outras propostas para a educação física apontam direções a orientar o processo

educacional, a exemplo dos encaminhamentos dados por Betti (1991), Grupo de Trabalho                                                             4 Entrevista realizada em 2003, na cidade de Belo Horizonte-MG, como parte da coleta de dados para a pesquisa coordenada por Alba Pedreira Vieira com apoio do Programa PIBIC/FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) intitulada “Dança Moderna em Minas Gerais (1960-1980): a visão de seus construtores ”.

Pedagógico (1991), Kunz (1994), Daolio (2003), entre outros, sendo a dança presente em algumas

dessas obras, com mais ou menos destaque.

A partir das diferentes proposições teóricas, estudiosos passam a identificar distintos

percursos metodológicos da educação física brasileira que se tornam referenciais centrais no trato

com a educação física escolar. Entretanto, nem sempre estes referenciais objetivam pensar em

meios de contribuir com orientações no que toca a sistematização dos conhecimentos na escola,

dificultando sua materialização no cotidiano da educação. É o que constataram Lara et al (2007) ao

pesquisarem como dança e ginástica são tratadas nas abordagens metodológicas desenvolvidas por

professores/pesquisadores da educação física brasileira. As autoras demonstram que algumas dessas

abordagens teóricas buscam elucidar, por vezes, questões de caráter histórico-cultural e/ou didático

para orientar a prática docente sem se voltarem para a organização dos conhecimentos ao longo das

séries escolares, salvo na abordagem crítico-superadora. Nem todos citam a dança como

conhecimento a ser trabalhado na educação física escolar e, os que o fazem, apontam a dificuldade

de uma dança materializada na escola numa perspectiva pedagógica crítica. Assim, as investigações

apontam, ainda:

[...] uma educação física carente de conhecimentos elucidativos sobre o trato e a sistematização da dança e da ginástica na escola, em se tratando das abordagens metodológicas estudadas, conforme elucidações de seus proponentes. Atenta para o fato de que outros profissionais estão pesquisando e procurando cobrir essa lacuna, por vezes seguindo a mesma linha desses proponentes, embora seus escritos ainda não sejam por vezes, conhecidos e difundidos em cenário nacional (LARA et al., 2007, p. 168).

Mesmo sendo constatada essa carência, o fato é que pensar a dança a partir das abordagens

críticas em educação física é lançar olhares para uma forma de não reprodução do movimento, de

valorização das diferentes culturas, dos diferentes corpos, da alteridade como categoria central na

relação com o outro. É atentar para um corpo criador, criativo, artístico, questionador da realidade

existente. É perceber que trabalhar com a gestualidade é muito mais que trabalhar o gesto em si,

pois instiga à busca das teias de relações que envolvem determinado fenômeno, partindo de

descrições densas e complexas. É entender que a arte, as ciências humanas e sociais dão base para

um mergulho profícuo no tocante à construção de uma outra história na educação física, que passa a

redimensionar o paradigma que, tradicionalmente, direcionou a área, repensando o ensino de dança

na formação superior.

Por mais de seis décadas, a dança tem sido abordada na formação universitária,

principalmente, como conteúdo em cursos de educação física, embora sem muita projeção nos

meios escolares. Foi primeiramente ministrada como disciplina em curso superior de educação

física na Universidade do Brasil, por Maria Helena Pabst de Sá Earp, mais conhecida como

Helenita. Em 1940, ela tomou posse na cadeira de Rítmica da Escola Nacional de Educação Física

da Universidade do Brasil (ENEFD), atual Escola de Educação Física e Desportos da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Helenita também foi a responsável pela criação do sistema

denominado Fundamentos da Dança (VIEIRA, GENEGN, 2001).

Conforme estudos realizados por Correia (1998), a dança era trabalhada na ENEFD como

conteúdo da disciplina de Rítmica, sendo exclusiva para mulheres, caracterizada como importante

para a formação física feminina e saúde das futuras mães. Somente em 1969, a dança passa a ser

obrigatória para ambos os sexos, ministrada no curso de licenciatura em educação física da referida

instituição. Entretanto, receava-se a “efeminização” que ela poderia gerar, se trabalhada com os

meninos. Assim, por mais que elementos inovadores figurassem no ensino da época, em especial,

pela base em Émile Jacques Dalcroze, a dança, era apêndice dos estudos da Rítmica, não figurando

como corpo de conhecimento próprio, sobretudo pelo viés da arte/educação.

Paulatinamente, a dança vai sendo reconhecida como campo próprio de conhecimento e

inserida nos cursos superiores de formação em educação física, com as mais variadas

nomenclaturas, tais como: dança; rítmica e dança; fundamentos de rítmica e dança; metodologia do

ensino de dança; expressão corporal; vivências em dança; arte do movimento; dança educacional;

dança educativa moderna; pedagogia do movimento-dança; coreografia; dança moderna; introdução

à coreografia; danças folclóricas; fundamentos das atividades rítmicas; tópicos em dança5. Vai

ganhando contornos, também, como área de conhecimento próprio em Curso Superior, na forma de

licenciatura e bacharelado em dança, embora paradoxal (no que tange à licenciatura) mediante a

inexistência da disciplina dança no currículo escolar, sendo sugerido seu desenvolvimento em arte e

educação física.

Autores como Miranda (1994), Nanni (1997), Verenguer (1996) e Brasileiro (2002/2003)

apontam que a dança, no Brasil, ainda, não é tratada na maioria das escolas. Essa realidade parece

ser comum em vários relatos de pesquisadores que se envolvem com o campo da formação, direta

ou indiretamente inseridos no contexto da escola. As carências em termos de ensino não tocam

somente essa manifestação cultural, mas perpassam, de modo geral, os conteúdos que tematizam o

corpo. Como ressalta Amaral (2002), essas linguagens – que lidam com a questão da corporeidade –

são as mais esquecidas no espaço da educação.

Apesar dessa lacuna, os licenciados em dança têm conquistado seu espaço e estão atuando

como professores nas escolas. Como exemplo, temos os egressos do curso de licenciatura em dança

da Universidade Federal de Viçosa (UFV) que ingressam em escolas de ensino básico por meio de

concursos públicos na área de arte ou educação artística (nomenclatura antiga). Porém, assim como

muitos dos licenciados em educação física não se sentem à vontade para desenvolver

conhecimentos em dança nas suas aulas (BRASILEIRO, 2002/2003), os licenciados em dança

podem não se sentir à vontade e não ter formação suficiente para desenvolver uma ou mais das

outras linguagens artísticas, como previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte (2000),

                                                            5 Consulta feita ao currículo Lattes de alguns professores do ensino superior, usando as palavras-chave dança e educação física. Disponível em: http://www.cnpq.br. Acesso em: 15 jul. 2008.

principalmente, artes visuais, já que teatro e música são conteúdos geralmente trabalhados nos

cursos superiores de dança6.

Mesmo mediante essa problemática que envolve a formação e atuação profissional dos

licenciados em educação física e em dança, as formações em nível superior em dança vêm se

disseminando. O primeiro curso superior de dança foi criado na Bahia, em 1956, na Universidade

Federal da Bahia/UFBA (MOLINA, 2008). Adiante, dois fatos marcaram a área da dança: a

inclusão, em 1998, da dança nos Parâmetros Curriculares Nacionais em Arte, e o aumento

significativo do número de cursos superiores de Dança no Brasil, sendo, hoje, em torno de 15. Por

serem fatos recentes, cabe, aqui, expor uma inquietação, embora sem respostas advindas de

investigações: Será que foi a inclusão da dança nos PCNs de Arte que gerou o aumento no número

de cursos superiores nessa área ou foi o aumento de cursos fez com que o governo olhasse para a

necessidade de sistematizar tais conhecimentos?7

Por mais que novas configurações tenham sido dadas à dança como meio educacional, com

relevantes contribuições teóricas de Marques (1999, 2003), Barreto (2004), Strazzacappa (2006) e,

apesar da dança estar na matriz curricular de cursos de educação física já há algumas décadas, seus

percalços são evidentes. Mesmo que seja, ainda, contemplada em documentos oficiais, como os

Parâmetros Curriculares Nacionais da SEED, tanto de arte (2000) como de educação física (2000),

bem como em documentos estaduais, a exemplo das Diretrizes Curriculares da Educação Básica do

Paraná – educação física (2008) – e do Conteúdo Básico Comum (CBC) (2005), de Minas Gerais,

as dificuldades de trato com esse conhecimento perpassam a atuação do professor, fazendo com que

a legalidade não vá ao encontro da legitimidade, gerando rupturas, assim como a teoria seja

desvinculada da prática. Nesse rumo, quais problemas norteiam a formação em educação física e

dança que dificultam uma mudança no campo da ação docente?

Sendo a dança conhecimento presente tanto na formação em educação física quanto,

especificamente, na formação em dança, indicando o quão rico seria um trabalho interdisciplinar, a

realidade revela que, nem sempre, a convivência entre profissionais dessas duas áreas foi pacífica.

Lutando, talvez, corporativamente, por reservas de mercado, e pautando-se em teorias ideológicas

que desconsideram o princípio da alteridade, os professores acabam esquecendo que os desafios são

comuns e que transcendê-los envolve esforço coletivo.

Um dos fatores que dificulta o desenvolvimento do ensino da dança na universidade, seja

como disciplina ou área independente, é sua associação direta com o corpo, tabu para muitas

pessoas que trabalham com educação. Como lembra Bannon e Sanderson (2000, p. 11):                                                             6 Não cabe e nem é nosso intuito discutir, neste texto, a profundidade dessa questão, e nem se são somente licenciados em música, artes visuais e teatro que devem ser responsáveis pelo ensino dos conteúdos que lhe competem. 7 No caso específico da criação dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Dança da Universidade Federal de Viçosa, os interesses foram originários de impulsos locais mediante a visibilidade que a dança passou a ter como disciplina específica do curso de educação física, como tema de especializações, como interesse acadêmico de pessoas que trabalhavam com dança em diferentes espaços sociais e como trabalhos de extensão, pesquisa, festivais e mostras. Entretanto, o incentivo dado, em 1999, pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), para expansão do número de alunos e de cursos das universidades públicas, aliado a essa visibilidade local, levaram a administração superior a propor a criação de um curso superior de dança, iniciado em 2002, e reconhecido em 2005.

[…] reflexões sobre a natureza da experiência educacional têm resultado em desafios à tradição dualística do sistema de conhecimento ocidental, a fim de promover a identidade do sujeito como o centro da educação. A aceita divisão ‘tradicional’ entre atividades da razão e as atividades do que pode ser chamado de ‘eus sensitivos’ tem implicações políticas na posição da dança como uma disciplina acadêmica.

Trabalhar “com” e “o” corpo (seu próprio e o de seus alunos) é um desafio para os

professores que desenvolvem dança na universidade. Além da baixa valorização das questões

relativas ao corpo, como anteriormente citado, os cursos em nível superior, tanto de educação física

como de dança, tipicamente assumem que os professores desse fênomeno cultural precisam ser

“bons”, se não “excelentes”, dançarinos e coreógrafos. Para evitar perpetuar o velho adágio de que

aqueles que podem fazem; aqueles que não podem, ensinam, até que ponto insistimos que nós

mesmos e/ou nossos educandos se tornem bons executores de passos de dança?

Explorar questões sobre o que professores precisam saber e são capazes de fazer não é um

exercício meramente teórico para nós. Em nosso cotidiano, como professoras universitárias,

questionamo-nos sobre nossas práticas pedagógicas ao mesmo tempo em que vemos nossos

egressos lutarem com a realidade do ensino da dança nas escolas públicas e privadas brasileiras.

Mesmo para os professores preparados e talentosos existirão lutas, juntamente com (in)satisfações.

Os problemas complexos e as vidas dos muitos estudantes apresentam desafios formidáveis. Nosso

papel, no exercício da docência, de estímulo à capacidade de autonomia do aluno, é elemento

fundante da construção de sua habilidade e motivação para vencer desafios. Alguns elementos das

nossas próprias práticas pedagógicas são apresentados e discutidos visando compartilhar e

coletivizar como forma de ampliar saberes.

Dança e ensino superior – Foco 1

O ensino de dança na universidade constitui laboratório essencial que alimenta nossas

pesquisas e intervenções junto à formação docente. É por meio da relação estabelecida com o aluno,

ou seja, com quem se dispõe a participar dos vários jogos cênicos propostos, que vamos

experimentando diferentes ações didáticas – desafios corpóreos, racionalidades intelectivas e ético-

estéticas que perpassam o processo educacional. Tais experiências, em suas dádivas e infortúnios,

constituem momentos de constante reconstrução do conhecimento. Representam a interlocução

entre teoria e prática, entre discente e docente, entre formação inicial e continuada.

Os anos vividos como educadoras, bailarinas, diretoras artísticas e estudiosas da dança

trazem sempre desafios. Não é mais tão fácil ser seduzido, como antes, por qualquer gesto dançante.

O ato da crítica e do olhar que esmiúça determina outra racionalidade. A experiência estética aflora

diferentemente. Nem sempre é infante, lúdica, de fruição. Por vezes é adulta, sisuda, técnica. Daí a

necessidade de uma eterna (re)construção dessa experiência que permita viver o jogo tensional entre

a entrega e o controle.

Ensinar é compartilhar, dialogar, aprender junto e olhar o outro, não como apanhado de

ossos, órgãos e músculos, mas como ser sensível, racional, cultural, com potencial para criar, ter

autonomia e conquistar liberdade. Essa é condição ímpar para que possamos entender um pouco dos

sujeitos com os quais atuamos, sendo conquistados por eles e também conquistando, num ato de

amar/educar.

As experiências construídas ao longo de anos possibilitaram-nos registros em nosso

diário, essenciais para discutirmos os problemas da ação docente na formação inicial. Os relatos

revelam alguns problemas encontrados no ensino de dança na universidade e que parecem se

repetir, ano a ano, porém, com a perspectiva no novo. Envolvem, certamente, valores que tocam

aspetos religiosos e aspectos da vida acadêmica (universitária), conhecimentos que podem ser

conflitantes na realidade do aluno, quiçá, preconceituosos e limitadores. Ainda, retratam um

entendimento tradicional de dança a partir dos estereótipos inculcados pela sociedade, sobretudo no

tocante à forma, à técnica e ao método, que merece ser desconstruído para dar abertura a novas

construções. O Quadro 1 apresenta alguns desses registros.

Relatos discentes – de 1997 a 2008 1. “Professora, essa música é Ênia? Se for, não posso fazer. Ênia cultua o diabo”. 2. “Lá vem a macumbeira com essas danças de orixás”. 3. “Quando vamos, efetivamente, ter aula de dança?” (refere-se às aulas práticas) 4. “Nós não vamos aprender funk e axé”? 5. “Professora, coreografar uma dança não é fazer tudo igual?” 6. “Nós não vamos vestir roupa justa e usar sapatilha não, né?” (aluno do sexo masculino) 7. “Posso apresentar meu solo no banheiro? Não quero que ninguém veja.” 8. “Eu não sei improvisar! Fiz aula de técnica minha vida toda e só sei repetir movimentos criados pela professora”. 9. “Isso não tem nada a ver com dança, não! (alunos na aula de qualidade de movimento, de Laban) 10. “É muito difícil coreografar no coletivo. Os movimentos que eu crio sempre são excluídos”. (aluna com experiência técnica)

Quadro 1- Comentários de alunos universitários em experiências com danças.

Dentre os problemas comuns encontrados, poderíamos assinalar os seguintes: ruptura

teoria e prática, dificuldade de entender o corpo como construção cultural, apelo às danças

midiáticas, dificuldade de perceber a aula como tempo-espaço de formação, sexismo e

resistência a trabalhos coletivos. Tais dificuldades no trato com a dança não constituem

empecilhos para a formação, mas desafios que instigam, constantemente, re-elaborações na

tentativa de construção de outros paradigmas que possam inferir de modo direto na consciência dos

alunos. Discutir estes problemas auxilia a pensar melhor sobre eles e, até mesmo, a identificar

outros que carecem de análise e encaminhamentos.

A ruptura teoria e prática está intensamente presente no ensino de dança na educação

superior, pautada numa concepção enviesada de que fazer dança é fazer aula prática. Tal paradigma

faz com que os alunos procurem o fazer em detrimento do pensar, desvinculando a tensão presente

e necessária para uma atuação profissional diferenciada da tradicional educação bancária de que

fala Freire (1987). Ler é, no cotidiano dos alunos, tarefa de poucos e para poucos, o que conduz, em

muitos casos, ao delineamento de monólogos em vez de diálogos ou, então, de inúmeros achismos

que levam a uma discussão que se perde no “Ah, mas é assim que eu penso. Não concordo com o

que esse autor tal escreve”8. Em alguns casos, os alunos não têm conhecimento mínimo das

propostas e idéias do autor, desconhecimento agravado pelo fato de que a leitura prévia de textos a

ser trabalhados nas aulas é simplesmente ignorada. O comentário “Eu sou da prática e não da teoria.

Eu sou do estúdio e não do caderninho”9 é um discurso elaborado nesses casos.

A dificuldade de entender o corpo como construção cultural também é observada com

freqüência. Historicamente, o foco no corpo como “instrumento” do dançarino, ao contrário do

sujeito que dança, estabeleceu padrões de perfeição que passaram a ser pré-requisitos. O corpo

configurou-se como aquele que reproduz movimentos, que executa, que tem habilidades, tais como:

coordenação, leveza e agilidade, bem como biótipo apropriado. As diferenças são ignoradas para a

valorização do igual, para o ressaltar da técnica, alcançada com o treino e com o auxílio de uma

condição inata. O homem como produto e produtor de cultura não é percebido, nem, tampouco, a

diferença como parte essencial da condição de humano. Tais marcas não se dissolvem facilmente.

Encontram-se nos corpos que sonham em sair da universidade dançando, em fazer gestos iguais, em

desenvolver habilidades técnicas pela reprodução mecânica de movimentos e passos pré-

estabelecidos, estranhando o fato de a dança buscar a junção dos diferentes, dos não iguais. Presos

em noções e imagens fixas de corpo ideal, os alunos perdem a referência para seu próprio contexto

cultural atual e seus próprios corpos.

Não apenas a influência das condições inatas figura no corpo, mas também o chamamento

midiático que constrói desejos e gera a necessidade de realizá-los, de consumi-los. O apelo às

danças midiáticas é uma tônica no ensino de dança na universidade. A indústria cultural10 –

mecanismo de sedução e homogeneização dos gostos para o consumo – agrega, em especial, as

manifestações dançantes. Os estilos conhecidos pelos alunos são aqueles que se difundem

facilmente pelos meios de comunicação, que criam necessidades para esse aprendizado, conforme

as ondas que vivem (dança de salão, axé, funk, country, samba). Fazer dança na universidade é

aprender as danças da moda – dançar, brincar, satirizar, aprender as mesmas coreografias para

reproduzir eficazmente. São as Danças dos Famosos na Rede Globo (danças de salão), os bailes

funk no Rio de Janeiro, a dança axé dos carnavais e grupos musicais, a forma country na dança

eleita por grupos sertanejos, o forró universitário, o samba dos pagodeiros, entre outros. Esses

desejos entram na universidade pelo corpo – o dos alunos – e criam expectativas, raramente

supridas a partir do formato que assumem, exemplificado na fala de uma aluna: “Professora, quando                                                             8 Relato de uma aluna em aula de dança. Viçosa, UFV, 2008. 9 Relato de um aluno em aula de dança. Viçosa: UFV, 2000. 10 O conceito de indústria cultural não é mais um conceito novo, sendo bastante discutido e analisado em meio acadêmico. Foi cunhado, em 1947, pelos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer, visando contrapor a idéia de cultura de massa, já que o foco não estava no acesso massivo das pessoas à cultura, mas no consumo, em grande escala, dos produtos que a indústria produzia, tendo na mídia papel essencial para a criação dos desejos e necessidades postas pelo mercado. Cf. ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

eu me formar vou estar sabendo dançar todas as músicas da moda para ser aprovada no teste e ser

dançarina do Faustão? É o meu sonho e o que me trouxe aqui”11. Tal fato leva-nos a questionar:

Como não matar sonhos e conduzir a reflexões que transcendam o senso-comum rumo a uma

consciência filosófica? Como instigar sem destruir? Estas são questões que fazemos com freqüência

e que perpassam as descobertas do cotidiano da educação.

A dificuldade de perceber a aula como tempo-espaço de formação é uma prática comum

no ensino de dança na universidade. O fato dos conhecimentos obtidos em dança serem importantes

no trato pedagógico com outras disciplinas faz com que eles acabem se dando no(s) primeiro(s)

ano(s) do ensino superior (em relação à educação física). Contudo, muitas vezes, o aluno não se

encontra preparado para aproveitar os conhecimentos na condição de professor. Ele se vê como

acadêmico que anseia experimentar, errar, brincar, rir, viver o presente. Há ênfase na busca da

ludicidade e do prazer. Entretanto, faltam-lhe subsídios para observar, registrar, perceber de modo

diferente e maturidade para refletir mais densamente sobre a teoria/prática na condição de

profissional e não apenas como alguém que passa por experiências inusitadas. Predomina o querer

fazer (prática) sem se ater à base teórica. Mesmo nos cursos de graduação em dança, muitos

alunos se vêem como futuros intérpretes e não como professores. Isso traz certo descaso para tudo o

que diz respeito a aprender a ensinar. Os estudantes nem sempre arcam com a responsabilidade pelo

seu processo de aprendizagem e pela construção de significados em relação à sua futura prática

pedagógica. Ao longo da disciplina (no caso do curso de educação física) ou dos semestres (no caso

do curso de dança), parece faltar-lhes não somente maturidade, mas também autonomia para se

tornarem autores do seu próprio processo de aprendizagem – no sentido de se libertarem do fazer

somente a partir do comando e da disciplina externa. Como lembra Freire (1997), nos tornamos

maduros a cada dia que passa ou não, e tanto a maturidade como a autonomia não acontecem numa

determinada data. A autonomia faz parte do processo de maturação.

O trato com a dança na universidade levanta outro problema: o do sexismo. Todas as formas

de movimento estão inscritas e circunscritas pelos contextos socioculturais nos quais eles são

criados. A intensidade e a força dos movimentos, bem como a competitividade nos esportes, por

exemplo, reforçam o poder masculino heterosexual. O vigor masculino prevalece, sendo cultuado

como modelo a ser seguido. Na maioria das culturas ocidentais, a dança de salão, manifestação

cultural caracterizada pelo dançar a dois (entenda-se, homem e mulher) poderia ser chamada de

social, não sexual (por causa da sua associação com o hetero, sexo considerado normal). Contudo, a

apresentação pública de homens em dança artística não tem, comumente, a mesma percepção pelas

pessoas. O homem que dança, artisticamente, tende a ser visto como (homo) sexual, não social e,

portanto, imoral.

Quando os alunos se vêem “obrigados” a cursar a disciplina de dança (isso em relação ao

curso de educação física, em que a dança se configura como uma das muitas manifestações culturais

com as quais eles se deparam), são confrontados com novas maneiras de se expressar por meio de                                                             11 Relato de uma aluna em aula de dança. Viçosa: UFV, 2003.

seus corpos. Preocupados, talvez, em manter seus gestos dentro dos padrões de gênero

determinados pela sociedade, os alunos deixam de perceber o potencial da dança para problematizar

papéis de gênero culturalmente construídos, em particular, a masculinidade, a sexualidade e a

heterossexualidade. Receando parecer homofóbicos ou assumir o discurso politicamente correto de

que um educador não pode/deve ter discriminação, baseando-se, apenas, na orientação sexual do

seu aluno, os estudantes não têm consciência das suas próprias inseguranças em relação aos ditos

movimentos efeminados. As subjetividades nômades, discutidas por Braidotti (2006), em oposição

à idéia de identidade, podem auxiliar a perceber as associações entre dança e homossexualidade

masculina. Ainda, as diferenças de gênero, étnicas e culturais, podem ser entendidas para além de

suas oposições hierárquicas e binárias.

A resistência a trabalhos coletivos é algo bastante presente nas aulas de dança. Será acaso

ou reflexo da sociedade individualista em que vivemos? Nem sempre os alunos entendem que um

trabalho coletivo exige trocas mútuas (duos, trios, e grupos maiores). Aprender a ouvir a voz e

opinião do(s) colega(s) quando se cria e se movimenta, juntos, e a respeitar as limitações corporais e

técnicas do outro, nem sempre é encarado como uma tarefa de cada integrante. Em vez de rodízio

de lideranças, há predomínio de algumas vozes e silenciamento de outras. Por vezes, os alunos

esperam que essas lideranças exerçam o comando. Gostam de ser comandados ou não conhecem

formas diferenciadas de agir em grupo? Como foram criados? Para obedecer, dizer sim, fazer,

reproduzir?

Observa-se a dificuldade dos líderes que teimam em ouvir e aceitar outros líderes.

Descartam idéias diferentes das suas porque entendem ser o dissenso um caos, ou seja, o que difere

de sua racionalidade dificilmente tem lógica e aceitabilidade. Isso nos leva a perguntar qual a

importância do outro nas relações sociais que estabelecemos. Será que não é urgente refletir sobre o

princípio da alteridade? Qual nosso papel frente à dificuldade de se relacionar com o outro no

trabalho com dança se ele, nas suas particularidades e, por isso mesmo, riqueza, é resistência à

homogeneização alienante?

Embora tenhamos esboçado problemas comuns do ensino de dança na universidade, eles não

se esgotam. O rememorar de algumas situações alude a outras, semelhantes ou eqüidistantes.

Refletir sobre tais problemáticas não é, necessariamente, encontrar respostas, mas instigar a

políticas que possam contribuir com os corpos universitários. É pensar em caminhos possíveis de

ser percorridos na formação docente, visando à transição de uma educação pautada no senso-

comum para a consciência crítica. A percepção dos percalços no ensino de dança na universidade,

aliada ao reconhecimento dos conhecimentos propostos para essa aprendizagem, sinalizam anseios

de configurar outras práticas pedagógicas, talvez, melhores, mais acertadas, ou, simplesmente,

diferentes.

Entendemos que a ruptura teoria e prática no ensino de dança na universidade tende a ser

diminuída quando a própria percepção do corpo for menos dicotômica na formação geral do ser

humano. Enquanto isso não se dá de modo efetivo, o papel do professor é importante no tocante ao

conhecimento da herança socrático-platônica. Discuti-la, assim como o paradigma que norteou o

campo das práticas corporais, é compromisso do educador. Refletir sobre o homem que produz

cultura e não apenas reproduz valores ou consome bens midiáticos é tão fundamental quanto atentar

para o papel do discente como profissional em formação, apto a aproveitar o tempo da aula para

aprender, trocar experiências, dialogar, trabalhar coletivamente e criar espaços de sociabilidade.

Dança e ensino superior – Foco 2

Que corpo é esse? Que forma é essa? Meu Deus, que fôrma. Fôrma sim, que se forma É como querem nossos corpos Enquadrem-se! AH! Órgãos disciplinadores Políticos, educacionais, sociais Por que o enquadramento nas fôrmas Não cede espaço à beleza estética das formas? E você, já se (en) formou? Cuidado! Um dia a fôrma vem cobrir suas formas. (LARA, 2002)

Falar de dança no ensino superior, em maneiras de tratá-la, é sempre uma escolha densa.

Isso porque remete a formas que, por vezes, não se encaixam em determinadas fôrmas. Daí a

necessidade de ver estas “formas” como uma realidade pedagógica possível de ser transformada,

adaptada, reconduzida em outros cenários.

Uma ilusão que contamina o mundo educacional é a da “física da pedagogia”, noção de que

a natureza do processo ensino-aprendizagem se presta a previsões, de que resultados ou

desdobramentos podem ser repetidos, de que existem leis universais que regem os resultados. Aqui,

nossas experiências configuram outros percursos, trilhados a partir de uma condução metodológica

que se refaz sempre. Não no sentido da eterna criação do novo, mas de um renovar gerado por um

intenso processo avaliativo que conduz a verificar escolhas acertadas, limites e possibilidades da

ação docente.

Trabalhar no ensino superior é entender o papel social que se assume perante vidas. O

professor passa a ser o mentor, talvez, até mesmo, o espelho de muitos profissionais que vão atuar

na área, seja no campo da licenciatura ou do bacharelado. Como lembra Dijksterhuis (2005),

espelhar é um fenômeno que pode levar o aluno a se aproximar do professor. O espelho se torna,

então, uma espécie de cola pedagógica entre educador e educando. É o professor quem vai

contribuir com a ação de formar, educar, valorar e, nesse âmbito, incitar à busca das dimensões

necessárias à atuação profissional.

O ensino de dança pressupõe conhecimentos teóricos e práticos necessários à formação, de

modo que o diálogo seja estabelecido, constantemente, e a dicotomia entre saber prático e

conhecimento acadêmico possa ser evitada. Daí sugerirmos conhecimentos que abordem o

entendimento do que seja dança e suas estruturas básicas no fazer, criar e fruir artístico; as

manifestações culturais que ela agrega numa única nomenclatura; sua história (quando se dançou,

que tipos de dança existiram, seu contexto, formas de dançar em épocas remotas e atuais); seus

problemas; seus sentidos/significados para o homem; seus espaços profissionais de atuação; sua

didática; seus modos de fazer pesquisa, ensino e extensão; sua constituição artística, ética e estética.

Os saberes que, necessariamente, são trabalhados na prática, suscitando reflexões teóricas

são: processos de sensibilização, experimentação e criação; expressão corporal; propostas

somáticas; teoria musical; elementos do movimento (coreologia de Rudolf Laban); composição

coreográfica e solística; dança moderna e contemporânea; danças de salão; danças

populares/folclóricas; brincadeiras cantadas; outras manifestações dançantes. As avaliações são

teóricas e práticas, sendo comum a organização de festival ou mostra como parte da avaliação e

encerramento da disciplina.

O início com o trabalho de dança nos cursos de educação física deve prever formas

estratégicas de aproximar o aluno do meio universitário. Além do criar e fazer, trabalha-se o

contexto cultural e histórico da dança, percepção e análise estética, e a natureza e o valor dessa

linguagem artística. Na educação pela/para a dança e por outras manisfetações que envolvem o

estudo do movimento humano, a singularidade corporal do sujeito está no cerne do processo de

aprendizagem. É crucial aprender sobre as características subjetivas e pessoais de si mesmo, assim

como as dos colegas, além de princípios objetivos e técnicos da área de estudo.

Começar o trabalho vagarosamente, com espaço para que o aluno deite seu corpo no chão,

concentre-se em sua respiração, relaxe, retome imagens e as crie, sinta as partes do corpo e as

reconheça, atente para seus sentidos, torna-se essencial. O primeiro contato, sozinho, centrado em

si, estimula o acadêmico a tomar dimensão de seu corpo no tempo-espaço da sala, de suas

condições e limitações. A sensibilização vai se dando de modo gradativo, fazendo com que ele se

reconheça em potencialidade e limitação. É o momento de despertar o corpo, em especial, para os

sentidos corporais: tato, visão, paladar, olfato e audição, alguns deles nem sempre estimulados no

convívio social. Paralelamente a essa viagem intrasubjetiva ocorrem questionamentos e discussões

coletivas: O que é o corpo? O que é o seu corpo? O que é dança? Ela é importante? Por quê? O

registro em portfolio, por exemplo, das experiências vivenciadas em cada aula, abre outros espaços

de reflexão.

Para trabalharmos o respeito pela diversidade, desde os primeiros momentos, os alunos têm

oportunidades de apresentar seus trabalhos e observar a apresentação dos colegas. Há de se chamar

atenção para que eles realmente se vejam e sejam vistos. A observação ocorre por meio de outros

sentidos, além do visual, e envolve também empatia cinestésica, consciência intersubjetiva,

comprometimento e abertura para se apoiar a proposta diferente.

As práticas de educação somática (habilidade de sentir os processos que se desenvolvem

internamente) são formas de trabalho baseadas na consciência pessoal, incluindo maior

compreensão sobre as possibilidades e limites corporais individuais. Essas práticas podem ser

desenvolvidas a partir de princípios básicos da Eutonia, da Técnica de Alexander, do Pilates, dos

métodos de Feldenkrais e Rolfing, de técnicas de massagem, de meditação, entre outras12.

Há muitas abordagens e atividades para a educação somática. Um exemplo inclui propostas

que facilitam o aumento da amplitude das experiências de movimentos, o re-alinhamento da postura

e atividades de sensibilização. Tocar-se, massagear-se, cheirar, perceber o ar, ouvir os barulhos do

ambiente, degustar a própria saliva, trazer imagens (rio, mar, criança brincando, namoro, brinquedo,

cores, entre outros), podem contribuir com a introdução do acadêmico no universo da dança. É o

início da quebra de paradigmas como: tocar o corpo é pecado; dançar é reproduzir formas; dança é

para mulher. A massagem com bola de tênis13, já num trabalho de parceria, em que se massageia e

se é massageado, fecha bem este ciclo, pois antecipa a necessidade do outro e do cuidado com seu

corpo (com sua totalidade).

Ainda na perspectiva do desenvolvimento de consciência sobre si mesmo, de descobrir

traços de personalidade e/ou temas significativos para posterior improvisação e composição

coreográfica, os alunos podem trabalhar em pares, o que diz muito sobre como eles se comunicam

com outras pessoas em dança. Por exemplo, alguns alunos gostam da forma “ação-reação” quando

conversam. Como seria essa conversação em dança? Um faz o movimento e o outro reage; outro

movimento e outra reação, e sucessivamente – essa é a ação-reação dançante. É possível que alguns

alunos gostem de seguir o parceiro; um toma a iniciativa e o outro segue. Há aqueles que somente

copiam porque gostam de copiar ou espelhar a pessoa com a qual está trabalhando. As três

possibilidades são apresentadas e vivenciadas por cada dupla. Segue-se uma reflexão e discussão: O

que eu prefiro? O que a minha preferência diz sobre mim, sobre quem eu sou? A discussão pode se

estender para auxiliá-los a se conscientizarem e articularem suas preferências em relação ao

contexto sociocultural: Sou incentivado, na dança e em outros momentos da minha vida, a copiar ou

ter minhas próprias idéias e iniciativas? Essas discussões permitem refletir relações entre

movimento e identidade, as quais não são unidirecionais nem lineares. O que, talvez, possa ficar

mais claro é que quem sou eu orienta o como eu me movimento e prefiro me movimentar.

O processo de experimentação possibilita que o aluno, previamente sensibilizado para as

atividades corporais, possa realizar vivências diversas que o auxiliarão a entender melhor o universo

da dança. Experimentar é fazer, propor, perceber limitações e possibilidades desse fazer. É

aventurar-se, permitir-se. Daí que brincar com o corpo, fazendo movimentações quadradas e

redondas, grandes e pequenas, lentas e rápidas, com fluência livre e controlada, com uma dinâmica

leve e pesada, em vários níveis (alto, médio e baixo) e direções (cima, baixo, direita, esquerda,

                                                            12 Sobre essas práticas. Cf. RIBEIRO, A. R.; MAGALHÃES, R. Guia de abordagens corporais. São Paulo: Summus, 1997. 13 A massagem com bola de tênis, nos pés, pode ser observada em CLARO, E. Método dança-educação física: uma reflexão sobre consciência corporal e profissional. São Paulo: Robe Editorial, 1988.

diagonais, outros), com ampla variação musical, torna-se primordial. Imaginar que se está dentro de

uma enorme caixa de papelão, devendo tocar todos os seus cantos, e, após, toda a sua superfície, é

brincar com o espaço que envolve o corpo de cada um; é delimitar o espaço pessoal, a kinesfera

(LABAN, 1978). Imaginar que se está empurrando um carro, andando na lua, correndo como

papaléguas, rebatendo bolas de tênis com a raquete (corpo), equilibrando taças, faz com que a

movimentação venha ludicamente. Assim, o uso de imagens como recurso didático-pedagógico

mexe com a racionalidade estético-expressiva, criativa, nem sempre potencializada.

O experimentar não precisa ser individual. Daí que o segundo momento, em dupla, trio,

quarteto ou grupos maiores é importante. A prática possibilita aprender a conviver com as

diferenças, a reconhecer que há formas distintas de ser e valorar as coisas e as pessoas. Assim,

atividades como conduzir o parceiro de olhos fechados pela sala, aproximar-se do outro com

movimentos que envolvam o seu corpo (preenchimento de espaço), movimentar-se com interações

apenas pelo olhar, ser espelho, ser sombra, ser marionete, ser irmão siamês em alguma parte do

corpo, é construir o processo de experimentação, saindo de um movimentar individual e atingindo

dimensões coletivas. A partir de tais elementos é possível pedir para o aluno uni-los, ressignicá-los,

acrescentar outras experiências e deixar o corpo fluir, comunicar-se. Mesmo quando se espelha, ao

se tornar familiar com as nuanças de movimento do colega, os educandos unem-se num processo

mútuo de aprendizado, um realinhamento do “eu” em resposta ao “outro”.

Tendo experimentado e descoberto possibilidades gestuais com seu corpo, sendo instigado a

novas racionalidades corporais, o aluno é desperto para a criação. Esse processo é organizado

coletivamente a partir das cenas que vão se originando das improvisões que faz. É hora de sacar do

baú – imagem didática utilizada – todas as fotos tiradas em sala de aula por professor e alunos, ou

seja, fotos de cenas que, figurativamente, foram registradas por seu diferencial no decorrer do

processo. A composição parte dessas fotos rumo a outras que vão surgindo na improvisação, até que

as várias imagens componham o ato de criar. Temas podem ser dados de modo a gerar outros sub-

temas para discussão e desenvolvimento em grupo, como, por exemplo: um dia na escola; história

do corpo; pão e circo; mamulengos; cultura infantil; corpo(s); etnias; entre outros.

Os processos de sensibilização, experimentação e criação14 são pensados para fins didáticos,

não sendo rigidamente separados, mas intercambiáveis. Encontram-se presentes em todo o período

de formação do aluno. Contudo, aqui, eles ganham um tempo especial para acontecer de modo que

antecipem muitos dos conhecimentos a ser desenvolvidos ao longo das aulas. Ou seja, o aluno vai

experimentar, criar, sensibilizar-se, sempre. É um aprendizado constante. Entretanto, para que

perceba tais possibilidades, esse recorte num tempo-espaço próprio faz-se necessário.

A expressão corporal, como campo de conhecimento peculiar, imprescindível ao trato com a

dança, reforça a necessidade de uma gestualidade expressiva, cênica, que mexa com o inusitado,

que transcenda olhares lineares. É nesse momento que se inicia o primeiro espaço para a criação de

                                                            14 Esses processos podem ser encontrados em ZOTOVICI, S. A. Dança-educação: uma experiência vivida. Conexões: Educação, Esporte, Lazer. Campinas, n. 3, p. 119-128, dez. 1999.

modo mais efetivo, quando os alunos desenvolvem temas propostos pelo professor ou por eles

mesmos como: negro, percussão no corpo, violão, telas, esporte, cinema, janela, entre outros.

Perguntas como: “Professora, mas o que eu vou fazer com janela?” são comuns. Trata-se de um

passo importante para incitá-los à criação, sobretudo quando o professor contribui, perguntando: “O

que é janela para você? Há várias formas de janela? Que janelas fazem parte da sua vida? Quando

as janelas foram e são criadas? Elas cumprem a mesma finalidade, hoje, que em épocas anteriores?”

Várias perguntas são lançadas no sentido de levar os alunos a perceber que as cenas a ser

criadas necessitam ser pesquisadas, e que esse passo é essencial na constituição de um trabalho

denso de expressão corporal. Daí ser prioritário sair do senso-comum acerca de um tema rumo a

formas críticas de tratá-lo. Esse momento, de formação de pequenos grupos (duas a três pessoas),

permite olhar cada um mais diretamente, em sua capacidade de desenvolvimento temático, de se

expressar e criar. Ao descobrir que a dança toma por foco o não-verbal – as pessoas podem falar ou

se comunicar corporalmente –, ela pode ser exercitada como uma válida e autêntica forma de

expressão. No corpo, problematiza-se e resolve-se a seguinte questão: O que eu quero comunicar

com meu trabalho?

Que tal trabalharmos com a Play Mate em nossas aulas? Podemos ter uma ou mais

“bonecas” interagindo com os próprios colegas de sala ou com o público, na universidade (alunos,

professores, funcionários) ou fora dela. O trabalho de pesquisa sobre os vários papéis assumidos

pela mulher na sociedade, bem como sua erotização/banalização como produto a ser consumido,

torna-se fundante do processo. Após, espaços devem ser destinados à criação do personagem de

cada um, da sua boneca, laboratório imprescindível aos diálogos corporais que passarão a ser

desenvolvidos. Roupas e acessórios fazem parte das várias cenas, assim como as músicas que irão

inspirar os trabalhos e criar um tempo-espaço próprio, ritualístico, que favoreça as interações. O

acesso a esses conhecimentos e o entendimento de seus objetivos colocam-se como fundante à

composição do jogo cênico.

A teoria musical, pensada em associação ao campo da dança, vem complementar a formação

do aluno, facilitando a alfabetização corporal. Émile Jacques Dalcroze (1865-1950) já descobrira

esse aspecto em relação a seus alunos, em Genebra, quando percebera que a dificuldade deles em

aprender música não era uma dificuldade nesse aprendizado em si, mas uma deficiência de caráter

geral (corporal). Daí que inicia seu método, conhecido por Rítmica, associando teoria musical à

movimentação corporal.

Saber ouvir uma música, examinar seus acentos, identificar os diferentes gêneros existentes,

reconhecer as músicas que integram a indústria cultural e constituem parte do empobrecimento

estético, reconhecer os gêneros próprios a determinadas culturas, são necessários ao trabalho com

dança. Brincar com a melodia, a harmonia e o ritmo da música, bem como com a intensidade,

duração, timbre e altura dos sons é algo que contribui para alfabetizar o corpo. Ensinar que dançar

uma dada estrutura rítmica não é reproduzi-la tecnicamente, mas é buscar formas diversas de

expressão com o corpo, assim como o inverso, ajuda o aluno a entender a importância de estudar a

duração dos sons (ou do silêncio). Uma gestualidade não linear envolve “quebras”, ou seja,

trabalhar movimentos longos, curtos, rapidíssimos, e isso contribui com o desenvolvimento do

potencial artístico-expressivo do corpo.

Em complemento, o trabalho com a teoria de Rudolf Laban (1879-1958) a partir da

corêutica (organização do movimento no espaço) e da eukenética (expressividade do movimento)

auxilia no processo de alfabetização corporal. O aluno procura conhecer formas de organizar o

corpo e a gestualidade, fazendo movimentos lentos, rápidos, pesados, leves, com fluência livre e

controlada, num espaço direto ou flexível. Pode entender que, dependendo da gestualidade que faça,

será analisado dentro das oito ações básicas de movimento, propostas por Laban (1978), e que

incluem: socar, retorcer, pressionar, cortar o ar, sacudir, deslizar, dar toques ligeiros e flutuar. Por

exemplo: Que ação está presente no ato de quicar a bola? Essa ação é direta ou flexível? É rápida ou

lenta? É leve ou pesada? As respostas ajudam a delimitar, pela teoria de Laban, uma ação de dar

socos. Mas, que outras ações também são dar socos? O que as caracteriza? Como podem ser

criadas? Em quais ações cotidianas ela está presente? Com tais reflexões, saímos de uma concepção

aparentemente técnica para aproximar o aluno da sua própria realidade, reafirmando a necessidade

de tal conhecimento.

A composição coreográfica realizada por meio de técnicas a ser observadas e que incluem,

notadamente, a improvisação, ou seja, a possibilidade de criação a partir de temas, objetos, músicas,

filmes, telas, fotos, cartas, brincadeiras, entre outros, é algo essencial em dança. Criar é ouvir o

outro, não só verbal, mas no seu todo (corpo). É observar que as formas gestuais, quanto mais

diversas num trabalho de composição, melhor. Isso pensando em construções mais aproximadas da

dança contemporânea – expressão dançante que surgiu a partir da segunda metade do século XX e

que tem como características a liberdade de expressão, a valorização do cotidiano, a não linearidade

do processo criativo, as diferentes experiências gestuais e a dinamicidade do desenvolvimento

temático.

Nesse sentido, expressar individualmente, em dupla, em trio, num grande grupo, em círculo,

diagonal, espalhado, em V, em colunas ou fileiras, com movimentação igual (unimoto), com

seqüências que variam em tempo de um grupo para outro (cânone), com a mesma seqüência de

movimentos variando de um grupo para outro em intensidade ou outro (fuga), em nível alto, médio

e baixo, com movimentação pequena, ampla, entre outros, contribui com composições não lineares.

Nos laboratórios práticos (salas de aula) podem ser desenvolvidas idéias de movimentos em

vez de se repetir o ensaio de frases de gestos fixos. É importante permitir que nossa visão sobre

composição coreográfica mude ao longo do processo em resposta às outras visões, não apenas em

termos de saudar (e celebrar) as qualidades diferenciadas de cada participante, mas de negociar e

acomodar, no processo de criação, as “viradas” imprevisíveis e os “giros” que oriundam da

complexidade em se trabalhar com um grupo de indivíduos – cada um com sua subjetividade. Em

algum lugar da imprevisibilidade encontram-se possibilidades quando todos se mantêm abertos para

embarcar e aproveitar a “aventura”. Compor dança, como poeticamente confidenciou um estudante,

é procurar caminhos atraentes e convidativos a partir do emaranhado de eventos inesperados. Ricas

experiências pedagógicas de composição em dança acontecem quando todos, educador e

educandos, não agem como observantes passivos de uma cena que se desenrola, mas buscam criar

um ambiente em que poéticas dançantes ocorrem como em uma improvisação estruturada.

Uma experiência pedagógica de criação significativa para os alunos pode aliar texto e

improvisação de movimentos. Os estudantes trazem contos, poemas, letras de música ou escrevem

os seus próprios em oficinas. Por exemplo, pode-se pedir que eles redijam sobre alguém de sua

família ou algo próximo a eles. Dessa forma, subjetividade e histórias/memórias podem aflorar,

uma vez que esse tipo de trabalho estimula os educandos a fazer pontes entre essas histórias e textos

pessoais com seu trabalho artístico e/ou seu trabalho de composição coreográfica ou solística.

Durante o tempo em que estão sozinhos para improvisar, envolvidos cinestesicamente, os alunos

criam frases, gestos, sequências de movimento, e/ou sentimentos, emoções e sensações que os

textos revelam, que as imagens proporcionam, estabelecendo diálogos.

A improvisação é uma maneira de estimular os alunos a achar conexões internas para suas

frases que, muitas vezes, passam por diversas transformações quando se brinca com o tempo, o

nível e a qualidade dos movimentos que as compõem. A desconstrução dessas histórias oferece

terreno fértil para se qualificar, ainda mais, o material de movimento, o qual é (in)corporado de uma

maneira que faz sentido para eles. A narrativa original, muitas vezes, é dissipada, e novas e

emergentes narrativas surgem dos próprios movimentos e das relações entre as diferentes

gestualidades.

Entender o desenvolvimento do contexto sócio-histórico-cultural da dança e seu impacto na

história e cultura geral permite visualizar como os movimentos em dança se relacionam ao

movimento artístico em outras linguagens, e as pontes que se estabeleceram entre dança e sociedade

ao longo dos séculos. Estudos históricos nos permitem compreender a natureza mutante da dança e

da cultura. Eles também auxiliam na problematização de vários aspectos que permeiam a dança,

incluindo questões de gênero.

Pode-se examinar momentos históricos em que a mulher foi banida da dança (executada pela

nobreza e, somente, por homens). Essas análises colocam em xeque qualquer noção do biológico ou

do natural em termos do que alunos de ensino básico escolhem e/ou preferem fazer nas aulas de

educação física. Se o homem já gostou tanto de dançar, por que hoje é diferente? Muito do discurso

do senso comum sobre educação física para crianças e jovens se preocupa com o que garotos e

garotas, normalmente, gostam de fazer, e no que eles são bons. É natural que os meninos sejam

bons e gostem de esportes e as meninas de dança? O que mudou ao longo da história? A natureza

ou a cultura? Podemos, ainda, examinar outros momentos históricos em que todos os homens da

nobreza usavam calças justas (calças à Luiz XIV) no dia-a-dia e, principalmente, para dançar.

Algumas memórias do ensino de dança nos remetem a um caso em que alunos de educação

física se recusaram a fazer uma prova prática com roupa adequada – o que lhes permitiria liberdade

de movimento. Para eles, aquelas eram “calças de gay”; não iriam se fazer de “palhaços”. Contudo,

o que parece não ter ficado claro é que a exigência era para roupa confortável, própria para a

experiência prática, e não justa. A associação, feita por eles, de roupa confortável à roupa “gay”,

reflete o imaginário preconceituoso a que estão atrelados. Assim, até que ponto (futuros)

professores de dança e de educação física têm preservado o poder e a supremacia masculina na

sociedade ao reforçar a idéia de que a dança, e tudo que lhe diz respeito, incluindo o figurino, é

reduto de mulheres e de homossexuais?

Proporcionar aos alunos meios de expressão gestual diferentes dos anteriores é fundamental

à sua formação, ampliando-se, assim, as possibilidades de conhecimento. Citamos, por exemplo, a

dança folclórica/popular e a dança de salão, já que ambas podem responder, diretamente, a dois

espaços de formação (licenciatura e bacharelado). Entretanto, é comum a associação da primeira ao

espaço escolar e, a segunda, ao setor extra-escolar. É o momento de, em relação à primeira

manifestação, entender que essa dança tem características diferentes da dança contemporânea, ainda

mais porque não foca os processos criativos/artísticos. Entretanto, nem por isso é reprodutiva, a-

crítica. O objetivo não está na gestualidade expressiva, na criação coreográfica, mas no

reconhecimento de uma dada cultura, nas suas especificidades, na suas formas de sociabilização, no

sentido/significado produzido pelas comunidades quando dançam.

Trabalhar inúmeras manifestações dançantes influi nesse todo que é o aprendizado corporal,

porque cada manifestação dançante expressa sua singularidade. Implica perguntar: Por que o

fandango parananense é diferente de um lundu marajoara? Por que a tradição do bumba-meu-boi

dá-se, prioritariamente, no nordeste brasileiro? O que diferencia um frevo de um xaxado? Que

características ético-estéticas integram estas manifestações? A festa do boi de Parintins é folclórica?

E o carnaval carioca? São questões que podem gerar densas reflexões no trato com dança.

Em relação à dança de salão, não há como desconsiderar seu atual foco midiático, ainda

mais em programas televisivos de grande audiência e na forma competitiva. É discussão obrigatória

que agrega o campo profissional. O que caracteriza uma dança de salão? Quais os ritmos que

integram essa denominação? O que os ritmos têm a ver com as diferentes culturas? O que diferencia

um samba brasileiro de um tango argentino? Por que o rock norte-americano/britânico integra

também outros países? Pode-se, ainda, problematizar questões de gênero, tais como: Quando a

dança de salão é conhecida como social e quando é vista como sexual? Por que é, geralmente, o

homem que lidera/conduz a dança? Por que a parceria se dá tradicionalmente entre um homem e

uma mulher? Até que ponto essa parceria é associada a relações “normais”, ou seja, heterossexuais?

Assim, extrapola-se a necessidade meramente técnica desse conteúdo rumo a abordagens de gênero

e de cultura que complementam a formação.

Reconhecer outras manifestações dançantes, discuti-las, bem como seu processo histórico,

também constitui parte da ação pedagógica. Por exemplo: O que é o balé clássico? Como esta arte

se constituiu historicamente? É a arte dançante predominante nos dias de hoje? Integra todas as

classes sociais? E a dança de rua, a dança funk, o axé...? Como se constituíram historicamente? Que

desejos perpassam a configuração de tais manifestações? Quem as criou? Que técnicas corporais as

caracterizam? Como se dá a produção teórica nessas manifestações?

Há, para se lembrar, as brincadeiras populares e, mais especificamente, as brincadeiras

cantadas, parte gestualizada e musicalizada importante a integrar o ensino de dança. Isso porque as

brincadeiras representam fonte rica de lucididade, de reconhecimento cultural, de percepção do

outro. Assim, por meio desse brincar, também se produz conhecimento. Perguntas como Que

brincadeira conhecem? Que brincadeiras aprenderam com familiares e amigos? Como fazem tais

brincadeiras? É possível recriá-las? Como?, tornam os alunos co-partícipes do aprendizado,

trazendo seus conhecimentos e compartilhando com os demais colegas.

Relatos pedagógicos auxiliam a entender como o brincar diz muito da nossa história,

exemplificado, aqui, por meio de um aluno do curso de educação física e das histórias que conta.

Chama a atenção o fato desse aluno não conhecer ciranda-cirandinha, escravos de Jó, Terezinha de

Jesus, atirei o pau no gato, entre outras. Os colegas até chegavam a rir, achando improvável tal

realidade. Isso porque, teoricamente, qualquer criança conheceria tais brincadeiras, seja como atores

ou expectadores.

A criação de composições pelos alunos a partir de pesquisa e apresentação prática da

pesquisa, em festivais, é uma vivência a mais na vida do discente. É a experiência de palco, de se

ver como artista. É o momento de pensar em luzes (não, necessariamente, materializadas), em

oportunidade de mostrar o que sabem, vencer resistências, se expor . Pode-se refletir sobre a

importância do trabalho para ambos, quem apresenta e quem assiste a tal apresentação. É fase

importante para alguém que vai atuar como formador – um educador que passou por uma

experiência e que, por isso mesmo, tem a dimensão de sua validade no processo de formação.

Depois da apresentação, os educandos, em discussões em grupo e/ou trabalhos escritos, são

incentivados a expressar suas perspectivas sobre o processo e produto coreográfico, e que poderia

ter sido feito diferentemente, e aperfeiçoado em uma próxima apresentação.

A apreciação ou fruição em dança envolve a educação estética, encontrada, por exemplo, no

assistir a apresentações diversificadas de dança ao vivo, e filmadas com um olhar crítico e

apreciativo que é capaz de discenir diferentes formas (nos vocabulários e culturas que influenciam

essas obras). Desenvolver a habilidade para articular – descrever e analisar – a utilização de

elementos cênicos, tais como figurino, iluminação, som, uso do espaço, do tempo e do corpo, faz-se

crucial. É importante a exposição e, se possível, discussão com artistas – coreógrafos e bailarinos –

para que o contato interativo se concretize. Nesses contatos, entre outros, pode-se esclarecer

aspectos da composição e/ou do produto da obra que ficaram obscuros e, também, (re)conhecer a

quantidade e intensidade de trabalho, tempo e comprometimento requeridos para se desenvolver em

um nível profissional – o que não deve, claro, desencorajar o desenvolvimento de habilidades não-

profissionais.

Todos os conteúdos sugeridos vão além da mera repetição dos movimentos criados pelos

professores. Estratégias de solução de problemas e trabalho colaborativo abrem espaços para que os

educandos assumam maior responsabilidade e reflitam constantemente sobre sua formação. Além

dos estímulos dos professores universitários de dança, cada estudante pode se questionar: Quais

estratégias eu mesmo posso adotar para incentivar reflexões sobre meu processo de aprendizagem?

Como eu posso me tornar meu próprio professor, e o professor universitário de dança o mediador?

A dança oferece potencial para que os alunos vivenciem tanto experiências disruptivas e

desconfortantes como prazerosas. Levar em consideração o processo de construção de significados

dos alunos transforma o ato de ensinar. Passa-se de uma série de passos e movimentos pré-

planejados a uma rede multifacetada de processos simultâneos em que o professor não é a única

fonte de significados. Contudo, a falta de autonomia dos estudantes faz com que o professor tenha

necessidade de propor o tempo todo. Sendo o centro das atenções e a fonte a partir da qual tudo

brota, aula após aula, semana após semana, ano após ano, o professor pode se desgastar. Há

necessidade de se estimular a autonomia dos educandos para que eles assumam o seu processo

educativo e nós sejamos, efetivamente, mediadores dessa jornada. A criação refletida,

compartilhada (danças criadas pelos estudantes e “dirigidas” pelo professor), pode auxiliar na

conquista da autonomia, ou seja, na capacidade do aluno em construir seus próprios caminhos, com

consciência e conhecimento.

Considerações finais: intersubjetividades docentes

O texto que nos propusemos a compor, como Play-Mate, objetivou refletir sobre a dança no

ensino superior a partir de experiências docentes, levantando problemas e possibilidades de trato

com o conhecimento, visando à intervenção na formação profissional. Tal reflexão foi orientada no

sentido de potencializar olhares para uma manifestação cultural que não se encerra em si mesma, na

ação gestual, mas que só se concretiza como educação porque é “multi”, ou seja, porque agrega

dimensões culturais, artísticas, filosóficas, históricas, entre outras. Materializa-se, em sua forma

pedagógica, no corpo que se vê para além de dualidades, e que se percebe como um complexo,

como um mosaico, rico justamente na sua diferença.

Esse jogo colaborativo não se encerra aqui. Apenas se inicia, apostando nas novas

construções que venham daqui ser originadas e disseminadas – em escolas, universidades, projetos

sociais ou quaisquer outros espaços em que a dança seja tomada como elemento de educação. As

orientações dadas, nesse texto, para o trato com a dança, partiram de experiências docentes no

ensino superior, entendendo que esse é o momento de formação inicial para atuação na profissão.

Nesse sentido, os conhecimentos apresentados podem ser perfeitamente trabalhados em locais

diversos, respeitando-se as características próprias dos campos de atuação da licenciatura e do

bacharelado, bem como dos objetivos postos a esse fim.

As problemáticas delineadas a partir de nossos relatos perpassaram a ruptura teoria e prática,

a dificuldade de entender o corpo como construção cultural, o apelo às danças midiáticas, a

dificuldade de perceber a aula como tempo-espaço de formação, o sexismo criado culturalmente, a

resistência a trabalhos coletivos, as abordagens pedagógicas no trato com a dança na universidade,

os problemas e conexões focadas como possíveis e necessárias entre dança e educação física, as

contribuições para ressignificar a formação e que tragam o foco da pesquisa e da docência como

espaços de criação. Daí que retomar algumas dessas problemáticas, nesse momento, acrescidas de

outros apontamentos, é sinalizar para arremates que auxiliem a uma percepção apurada e sensível

da ação docente.

Para nós, a arte e, particularmente, a dança, podem ser tratadas como locus privilegiado de

crítica à sociedade contemporânea e como potência criadora de novas imagens que nos ajudam a

pensar sobre outros modos de existir que não os de identidades fixas e estanques. Mas, como

poderiam, efetivamente, contribuir com os modos de ensinar? Como as diferenças de gênero, etnia e

cultura podem ser entendidas para além de oposições hierárquicas e binárias? Como, em nosso

ensino e aprendizado da dança, propor possibilidades de ruptura com as dualidades, tais como:

teoria e prática, técnica e improvisação, processo e produto, hetero e homosexualidade?

Essas questões podem ser tratadas a partir da idéia de corpo re-construção: é no corpo e por

meio dele que são forjadas as sujeições mas, também, que se abrem espaços de subversão

(FOUCAULT, 1977). Pela dança se inventam corpos, se resiste ao poder, se desestabilizam as

representações e discursos tradicionais acerca da sexualidade e de gênero, e se geram desvios

microscópicos que abalam o pensamento.

Ao trabalhar com dança na universidade, seja em cursos superiores de dança ou de educação

física, enfrentamos desafios que tentamos transpor adotando pedagogias reflexivas, flexíveis,

criativas e diferenciadas das chamadas tradicionais. Como lembra Stinson (1998), as limitações da

pedagogia tradicional em dança focam, principalmente, alguns aspectos: os estudantes apenas

copiam ou até mesmo exploram e criam movimentos, mas todos, professores e alunos, sentem-se

felizes. Assim, embora essa abordagem, esclarece a autora, produza corpos dóceis e movimentos

descontextualizados, ela não é a única a apresentar problemas. Stinson sinaliza para as fantasias

problemáticas das chamadas pedagogias críticas, perguntando se não seria muito fácil para nós,

professores, falar em mudar o mundo, na segurança das nossas salas de aula na universidade,

enquanto esperamos que nossos alunos, futuros professores, tornem-se agentes de mudança nas

escolas. Disso decorrem algumas compreensões, sendo uma delas essencial: a necessidade de

incentivarmos e nos engajarmos em debates sobre essa temática. As experiências docentes e os

relatos delas originados podem contribuir para a estruturação do “como” da ação pedagógica.

Os cursos superiores de dança estão ligados, geralmente, a Faculdades, Escolas ou

Departamentos de Arte, e duram, em média, quatro anos. As várias disciplinas de prática

pedagógica em dança contemplam técnicas corporais (por exemplo, ballet, dança moderna e

contemporânea, improvisação, danças brasileiras), arte do movimento, estudo musical, além de

conhecimentos em filosofia e arte, vídeo-dança, produção artística, desenho e atuação teatral,

história da dança, estudos somáticos e outros conhecimentos próprios das áreas de biologia e

educação.

Os cursos superiores de educação física estão vinculados, quase sempre, a Faculdades,

Escolas ou Departamentos, associados a Centros de Saúde ou Humanas, com duração média de

quatro anos. Para que o futuro professor vivencie e investigue, satisfatoriamente, as várias formas

de dança, e tenha confiança em ensiná-las, seria, talvez, necessário ofertar outras disciplinas que

trabalhassem esta manifestação cultural. Mesmo entendendo que esse seria um percurso interessante

para ampliar o campo de experiência do aluno em formação, outros encaminhamentos são possíveis

para suprir esta lacuna, como participação em grupos de ensino e pesquisa em dança, em grupos de

experiências corporais, em eventos, palestras, workshops, cursos, monitorias, estágios, disciplinas

eletivas/optativas, pós-graduação, e outros. Isso pensando que os cursos de educação física têm uma

gama de conhecimentos acerca das práticas corporais que precisa ser contemplada na formação,

impossibilitando a profundidade necessária em qualquer uma delas. O profissional, ao eleger seu

campo de atuação, por vezes, no decorrer do próprio curso, já vai buscando essa base complementar

no sentido de qualificar sua formação.

É certo que o status e a qualidade de ensino da dança no sistema educacional brasileiro

precisa melhorar. Para isso, professores de educação física e de dança podem (ou seria, melhor

dizer, necessitam?) conjugar esforços e conhecimentos. Importantes questões perpassam essa

parceria: Por que e para que os profissionais das duas áreas trabalhariam em projetos inter, multi ou

até mesmo transdisciplinares? Ou, seria melhor que, utilizando um termo de Greiner (2005), tais

profissionais dançassem práticas pedagógicas em duo indisciplinares? O que o graduado em dança e

o graduado em educação física têm a compartilhar um com o outro? No cotidiano escolar, como o

professor graduado em dança contribuiria com o professor graduado em educação física e vice-

versa?

A ação docente, seja em educação física ou dança, tem sido influenciada, também, pelo

aumento das pesquisas em dança, no Brasil, que têm contribuído para mudanças qualitativas no

ensino dessa manifestação cultural. Na atualidade, os estudos em dança têm dialogado com outras

áreas como saúde, psicologia, história, filosofia, estética, terapia, sociologia, educação e gênero.

Fóruns de discussão para disseminar o pensamento, as técnicas, e as pesquisas multidisplinares na

área acontecem via conferências, oficinas, seminários, congressos e encontros. A divulgação dos

trabalhos investigativos ocorre em congressos como: CONBRACE (Congresso Brasileiro de

Ciências do Esporte), ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes

Cênicas), ENAREL (Encontro Nacional de Recreação e Lazer), entre outros. Em 2007 foi criado o

ENGRUPE Dança (Encontro dos Grupos de Pesquisa em Dança), e, em 2008, a ANDA

(Associação Nacional de Pesquisadores em Dança). Em relação ao ensino da dança, algumas

questões merecem investigação mais aprofundada:

a) Que propostas pedagógicas são adotadas para se ensinar dança em ambientes educacionais? Onde elas são desenvolvidas e como?

b) Como avaliar a construção do conhecimento, pelo aluno, em dança?

c) Quais são as implicações de pesquisas no desenvolvimento e na formação cultural do aluno para a aprendizagem da dança?

d) Quais fatores influenciam as decisões dos professores em relação à distribuição do tempo para fazer, criar e fruir dança?

e) Quais meios tecnológicos estão disponíveis para ser usados no ensino da dança? Eles estão sendo usados, e, se sim, onde e como?

f) Quais elementos na formação de professores de dança influenciam suas práticas nos vários estágios de suas carreiras?

Se os alunos reproduzem as estruturas predominantes da sociedade ao pensar seu corpo e

sua gestualidade, o próprio trabalho com dança na universidade pode se tornar um espaço de

resistência, de transformação e de superação das manifestações pré-conceituosas. Nas aulas de

dança, podemos buscar oportunidades de mover-se para além do mero lecionar como fazer, e de

buscar, na gestualidade, formas de educar que explorem significados, linguagens e subjetividades

geradas pelo corpo movente. Pode-se explorar, por exemplo, significados sobre gênero e

sexualidade com expressões como “não gosto de dançar”. Interessa-nos facilitar a jornada de

formação acadêmica dos alunos para que eles trabalhem a partir de um local experiencial

organizado e peculiar em que vão encontrar algo que é único para eles.

As subjetividades serão sempre desafiadas se o que nos incita passa a ser vivido na relação

com o outro. A comunicação, pilar dessa relação, é o que proporciona os aprendizados, bem como a

aceitação do diferente (não meramente consentido, mas dialogado). A gestualidade dançante,

quando pensada por esse viés, não se faz ingênua, nem individualista; tampouco expressa

reprodução. Tem força de denúncia, de protesto, de não banalização. É companheira de

brincadeiras, pois como Play Mate, inspira experiências diversas – caleidoscópios que se traduzem

em descobertas e aprendizados na revolução do corpo.

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