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ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL
James Rachels
Atenção: este livro foi apenas escaneado, não foi corrigido.
TRADUÇÃO
F. J. AZEVEDO GONÇALVES
REVISÃO CIENTÍFICA
DESIDÉRIO MURCHO
SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA
gradiva
Título original inglês: The Elements of Moral Philosophy
(c) The McGraw-Hill Companies, Inc., 2003 Edição portuguesa: (c) Gradiva - Publicações, L.íta,
2004
Todos os direitos reservados
Tradução: F. J. Azevedo Gonçalves
Revisão científica: Desidério Murcho
Revisão do texto: Soares dos Reis
Capa: pintura: Omnia Vanitas, William Dyce (1806-1864) Design gráfico: Armando Lopes
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Reservados os direitos para a língua portuguesa
por:
Gradiva - Publicações, L.'*'
Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -1399-041 Lisboa
Telefs. 21 397 40 67/8 - 21 39713 57 - 21 395 34 70
Fax 21 395 34 71 - Email: [email protected]
URL: http://www.gradiva.pt
1.a edição: Janeiro de 2004 Depósito legal n.° 203 318/2003
Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO E GUILHERME VALENTE
com o apoio científico do
CENTRO PARA o ENSINO DA FILOSOFIA
(Sociedade Portuguesa de Filosofia)
gradiva
Editor: Guilherme Valente
índice
Prefácio 9
Sobre a quarta edição (americana) 11
1. O que é a moralidade? 13
1.1 O problema da definição 13
1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa 14
1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary 19
1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer 23
1.5 Razão e imparcialidade 27
1.6 A concepção mínima de moralidade 31
2. O desafio do relativismo cultural 33
2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes 33
2.2 Relativismo cultural 35
2.3 O argumento das diferenças culturais 37
2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural 40
2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece 43
2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum. 45
2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis 47
2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural 51
3 O subjectivismo em ética 55
3.1 A ideia de base do subjectivismo ético 55
3.2 A evolução da teoria 57
3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples 58
3.4 A segunda fase: emotivismo 61
3.5 Existirão factos morais? 65
3.6 Haverá provas em ética? 68
3.7 A questão da homossexualidade 71
4. Dependerá a moralidade da religião? 77
4.1 A suposta ligação entre moralidade e religião 77
4.2 A teoria dos mandamentos divinos 80
4.3 A teoria da lei natural 84
4.4 Religião e questões morais particulares 90
5. Egoísmo psicológico 97
5.1 Será o altruísmo possível? 97
5.2 A estratégia de reinterpretação de motivos 99
5.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico 103
5.4 Esclarecer algumas confusões 107
5.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico 110
6. Egoísmo ético 115
6.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome? 115
6.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético 119
6.3 Três argumentos contra o egoísmo ético 127
7- A abordagem utilitarista 135
7.1 A revolução na ética 135
7.2 Primeiro exemplo: eutanásia 139
7.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos 143
8- O debate sobre o utilitarismo 151
8.1 A versão clássica da teoria 151
8.2 Será a felicidade a única coisa que importa? 153
8.3 As consequências são a única coisa que importa? 155
8.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta? 160
8.5 A defesa do utilitarismo 162
9. Haverá regras morais absolutas? 171
9.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe 171
9.2 O imperativo categórico 175
9.3 Regras absolutas e o dever de não mentir 178
9.4 Conflitos entre regras 182
9.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant 184
10. Kant e o respeito pelas pessoas 189
10.1 A ideia de dignidade humana 189
10.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição 193
10.3 O retributivismo de Kant 196
11. A ideia de contrato social 203
11.1 O argumento de Hobbes 203
11.2 O dilema do prisioneiro 209
11.3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral 214
11.4 O problema da desobediência civil 218
11.5 Dificuldades da teoria 222
12. O feminismo e a ética dos afectos 227
12.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobrea ética? 227
12.2 Implicações para o juízo moral 237
12.3 Implicações para a teoria ética 242
13. A ética das virtudes 245
13.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta 245
13.2 As virtudes 248
13.3 Algumas vantagens da ética das virtudes 261
13.4 O problema da incompletude 263
14. Como seria uma teoria moral satisfatória? 269
14.1 Moralidade sem húbris 269
14.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos 273
14.3 Utilitarismo de estratégias múltiplas 277
14.4 A comunidade moral 281
14.5 Justiça e equidade 283
14.6 Conclusão 285
Sugestões de leitura 287
Notas sobre fontes 299
índice analítico 307
Prefácio
Sócrates, um dos primeiros e melhores filósofos morais, afirmou que a ética trata de "um
assunto de grande importância: saber como devemos viver". Este livro é uma introdução à
filosofia moral, concebida neste sentido lato.
O tema é, naturalmente, demasiado vasto para ser abrangido num pequeno livro, pelo que
tem de haver uma maneira de decidir o que incluir e o que deixar de fora. Fui guiado pelo
seguinte pensamento: Imagine-se alguém que nada sabe a respeito do tema, mas deseja
perder uma modesta porção de tempo a aprender. Quais são asprimeiras coisas, e as mais
importantes, que essa pessoa precisa de aprender? Este livro é a minha resposta a essa
pergunta. Não tento abranger todos os temas desta área; nemmesmo tento dizer tudo
quanto poderia ser dito sobre os temas tratados. Tento, isso sim, discutir as ideias mais
importantes que um principiante deve enfrentar.
Os capítulos foram escritos de modo a poderem ser lidos independentemente uns dos outros
- são, com efeito, ensaios díspares sobre tópicos diferentes. Assim, alguém interessado no
egoísmo ético pode ir directamente ao sexto capítulo e encontrar aí uma introdução
independente a essa teoria. Quando lidos em sequência, no entanto, os capítulos
9
contam uma história mais ou menos contínua. O primeiro capítulo apresenta uma
"concepção mínima" do que é a moral; os capítulos do meio abrangem as mais importantes
teorias gerais da ética (com algumas digressões, quando adequadas); e o capítulo final
apresenta a minha própria perspectiva sobre como seria uma teoria moral satisfatória.
O objectivo do livro não é oferecer um relato arrumado e unificado da "verdade" sobre os
temas em discussão. Isso seria uma forma pobre de apresentar o tema. A filosofia não é
como a física. Na física há um vasto corpo de verdade estabelecida, que nenhum físico
competente disputaria e que os principiantes têm de aprender pacientemente a dominar. (Os
professores de Física raramente pedem aos alunos para tomarem decisões quanto às leis da
termodinâmica.) Há, é claro, desacordos entre os físicos e controvérsias por resolver, mas
estas decorrem geralmente sobre o pano de fundo de um acordo substancial. Na filosofia,
pelo contrário, tudo é controverso - ou quase tudo. Filósofos "competentes" discordam
até mesmo sobre questões fundamentais. Uma boa introdução não tenta ocultar esse facto
algo embaraçoso.
Encontra-se aqui, portanto, uma panorâmica de ideias, teorias e argumentos opostos. As
minhas próprias perspectivas influenciam inevitavelmente a apresentação. Não tentei
esconder o facto de achar algumas das ideais apresentadas mais apelativas que outras, e é
óbvio que um filósofo com uma avaliação diferente poderia apresentar ideias diferentes de
outra forma. Mas tentei apresentar as teorias opostas de forma justa, e quando apoiei ou
rejeitei uma delas tentei dar alguma razão para a aceitar ou rejeitar. A filosofia, como a
própria moralidade, é primeiro que tudo um exercício de racionalidade - as ideias que
devem prevalecer são as que tiverem as melhores razões do seu lado. Se este livro for bem
sucedido, o leitor ou leitora aprenderá o suficiente para poder começar a avaliar, por si, para
que lado pende a balança da razão.
10
Sobre a quarta edição (americana)
Os leitores familiarizados com a edição anterior deste livro podem querer saber o que foi
alterado. Não há capítulos novos, mas há algumas secções novas; e todos os capítulos foram
corrigidos de uma maneira ou outra, pela remoção de coisas menos felizes e pela adição de
clarificações. Alguns dos exemplos perderam actualidade, pelo que foram actualizados ou
substituídos. No capítulo l, há nova informação sobre o caso Tracy Latimer; há também uma
secção nova sobre o caso recente das gémeas siamesas. Em vários outros capítulos
acrescentei material ilustrativo. Acrescentei material novoao capítulo sobre regras morais
absolutas. No capítulo 14, há uma secção nova que desenvolve de forma mais completa
"como seria uma teoria moral satisfatória".
Howard Pospesel fez muitas sugestões que me ajudaram imenso; é um prazer agradecer-lhe.
Um muito obrigado também para Monica Eckman da MacGraw-Hill, uma redactora
admirável.
11
Capítulo 1
O que é a moralidade?
Não estamos a discutir um tema sem importância, mas sim como devemos viver.
SÓCRATES, A República, de Platão (ca. 390 a. C.)
1.1 O problema da definição
A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática da natureza da
moralidade e do que esta requer de nós - ou, nas palavras de Sócrates, de "como devemos
viver", e porquê. Seria útil se pudéssemos começar com uma definição simples e
incontroversa de moralidade, mas isso é impossível. Há muitas teorias rivais, cada uma
expondo uma concepção diferente do que significa viver moralmente, e qualquer definição
que vá além da formulação simples de Sócrates é susceptívelde ofender uma ou outra
dessas teorias.
Isto deve colocar-nos de sobreaviso, mas não temos de ficarparalisados. Neste capítulo vou
descrever a "concepção mínima" de moralidade. Como o nome sugere, a concepção mínima
é um núcleo que qualquer teoria moral
13
deveria aceitar, pelo menos como ponto de partida. Vamos começar por examinar algumas
controvérsias morais recentes, todas relacionadas com crianças deficientes. As
características da concepção mínima emergirão da nossa consideração destes exemplos.
1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa
Theresa Ann Campo Pearson, conhecida publicamente como "Bebé Teresa", é uma criança
com anencefalia nascida na Florida em 1992. A anencefalia éuma das mais graves
deformidades congénitas. Os bebés anencefálicos são por vezes referidos como "bebés sem
cérebro", e isto dá basicamente ideia do problema, mas não é uma imagem inteiramente
correcta. Partes importantes do encéfalo - cérebro e cerebelo - estão em falta, bem como
o topo do crânio. Estes bebés têm, no entanto, o tronco cerebral e por isso as funções
autónomas como a respiração e os batimentos cardíacos são possíveis. Nos EUA, a maior
parte dos casos de anencefalia são detectados durante a gravidez e abortados. Dos não
abortados, metade nascem mortos. Cerca de trezentos em cadaano nascem vivos e em geral
morrem em poucos dias.
A história da bebé Teresa nada teria de notável não fosse opedido invulgar feito pelos seus
pais. Sabendo que a bebé não poderia viver por muito tempo e, mesmo que pudesse
sobreviver, nunca iria ter uma vida consciente, os pais da bebé Teresa ofereceram os seus
órgãos para transplante. Pensaram que os seus rins, fígado,coração, pulmões e olhos
deveriam ir para crianças que pudessem beneficiar deles. Osmédicos acharam uma boa
ideia. Pelo menos duas mil crianças em cada ano necessitam de transplantes e nunca há
órgãos disponíveis suficientes. Mas os órgãos não foram retirados, porque na Florida a lei
não permite a remoção de órgãos até o dador estar morto. Quando,
14
nove dias depois, a bebé Teresa morreu, era demasiado tardepara as outras crianças - os
órgãos não podiam ser transplantados por se terem deteriorado excessivamente.
As histórias dos jornais sobre a bebé Teresa suscitaram umaonda de debates públicos. Teria
sido correcto remover os órgãos da criança, causando-lhe dessa forma morte imediata, para
ajudar outras crianças? Vários eticistas profissionais - pessoas empregadas por
universidades, hospitais, e escolas de direito, cujo trabalho consiste em pensar nestas coisas
- foram solicitados pela imprensa para comentar o tema. Surpreendentemente, poucos
concordaram com os pais e os médicos. Apelaram, ao invés, para princípios filosóficos
consagrados para se oporem à remoção dos órgãos. "Parece simplesmente demasiado
horrível usar pessoas como meio para os objectivos de outras pessoas", afirmou um desses
peritos. Outro explicou: "É imoral matar para salvar. É imoral matar a pessoa A para salvar
a pessoa B." Um terceiro acrescentou: "O que os pais estão realmente a pedir é: matem este
bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser usados por outra pessoa. Bom, isso é
de facto uma proposta horrenda."
Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se. Os eticistas pensavam que sim, enquanto
os pais da bebé e os médicos pensavam que não. Mas não estamos apenas interessados no
que as pessoas pensam. Queremos conhecer a verdade da questão. Teriam os pais razão ou
não, de facto, ao oferecerem os órgãos da bebé para transplante? Se queremos descobrir a
verdade temos de perguntar que razões, ou argumentos, podemser concedidos a cada uma
das partes. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais ou para justificar a ideia
de que o pedido estava errado?
O argumento do benefício. A sugestão dos pais baseava-se naideia de que, uma vez que
Teresa ia morrer em breve, os seus órgãos de nada lhe serviam. As outras crianças, no
entanto, poderiam beneficiar deles. Assim, o raciocínio
15
parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar alguém sem fazer mal a outra pessoa,
devemos fazê-lo. Transplantar os órgãos beneficia as outrascrianças sem prejudicar a
bebé Teresa. Logo, devemos transplantar os órgãos.
Será isto correcto? Nem todos os argumentos são sólidos; por isso, não queremos apenas
saber que argumentos podem ser aduzidos em defesa de uma dada posição, mas também se
esses argumentos são bons. Em geral, um argumento é sólido se as suas premissas são
verdadeiras e a conclusão resulta logicamente delas. Neste caso, poderíamos interrogar-nos
sobre a proposição segundo a qual Teresa não seria prejudicada. Afinal de contas, ela
morreria; isso não é mau para ela? Mas, se reflectirmos, parece claro que nestas
circunstâncias trágicas os pais tinham razão - estar viva não lhe servia de nada. Estar vivo
só é um benefício quando permite a alguém realizar actividades e ter pensamentos,
sentimentos, e relações com outras pessoas- por outras palavras, se permite a alguém ter
uma vida. Na ausência destas condições, a mera existência biológica não tem valor algum.
Por isso, mesmo que Teresa pudesse continuar viva por mais alguns dias, isso nada lhe traria
de bom. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras pessoas beneficiariam em mante-
la viva, mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar disso.)
O argumento do benefício fornece, pois, uma poderosa razão para o transplante dos órgãos.
Quais são os argumentos do lado contrário?
O argumento de que as pessoas não devem ser usadas como meios. Os eticistas que se
opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro baseava-se na ideia de que é
errado usar pessoas como meio para os fins de outras pessoas. Retirar os órgãos de Teresa
teria sido usá-la em benefício de outras crianças; portanto, não se deve fazê-lo. Será este um
argumento sólido? A ideia de que não devemos "usar" pessoasé obviamente apelativa, mas
16
trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? "Usar
pessoas" implica geralmente violar a sua autonomia - a capacidade de decidirem por si
mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e valores. A
autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação, impostura ou fraude.
Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém, quando na verdade estou apenas interessado
em conhecer a sua irmã; ou posso mentir a alguém para conseguir um empréstimo; ou posso
tentar convencer alguém de que gostará de assistir a um concerto noutra cidade, quando
quero apenas que me leve até lá. Em todos estes casos estoua manipular alguém de modo a
obter algo para mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são
forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que razão é errado "usar
pessoas"; é errado porque a impostura, a coerção e o enganosão errados.
Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou coerção. Será que
estaríamos a "usá-la" num outro sentido moralmente significativo? Iríamos, é claro, usar os
seus órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um
transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo sem a sua permissão. Esse facto tornaria
o acto errado? Se estivéssemos a fazê-lo "contra" os seus desejos, isso poderia justificar a
nossa oposição; seria uma violação da sua autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser
autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar quaisquer decisões.
Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões, e outrostêm que o fazer em seu lugar,
podem adoptar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: O
que serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa, parece não
haver objecções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos, seja qual for a nossa
decisão, os seus interesses não serão afectados. Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.
17
A segunda linha de orientação apela para as preferências daprópria pessoa. Poderíamos
perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é
frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são
incapazes de exprimi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou um testamento).
Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá.
Não podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A
conclusão é que ficamos na contingência de fazer o que consideramos melhor.
O argumento do erro de matar. Os eticistas recorreram igualmente ao princípio de que é
errado matar uma pessoa para salvar outra. Retirar os órgãos de Teresa seria matá-la para
salvar outros, afirmaram eles; por isso, retirar os órgãos seria errado.
Será este argumento sólido? A proibição de matar é certamente uma das regras morais mais
importantes. No entanto, poucas pessoas pensam que matar é sempre errado - a maioria
das pessoas pensa que algumas excepções são por vezes justificadas. Á questão é, pois,
saber se retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como uma excepção à regra.
Há muitas razões a favor desta ideia, sendo a mais importante que ela morrerá de qualquer
maneira, independentemente do que fizermos, ao passo que retirar-lhe os órgãos permitiria
pelo menos fazer algum bem a outros bebés. Qualquer pessoa que aceite isto tomará como
falsa a primeira premissa do argumento. Em geral é errado matar uma pessoa para salvar
outra, mas isso nem sempre é assim.
Mas há outra possibilidade. Talvez a melhor maneira de entender toda a situação fosse
encarar desde logo a bebé Teresa como morta. Se isto pareceinsensato, recorde-se que a
"morte cerebral" é hoje amplamente aceite como critério para declarar as pessoas
legalmente mortas. Quando
18
o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez, houve resistências baseadas na
ideia de que alguém pode estar cerebralmente morto mas muita coisa continua a funcionar
no seu interior - com assistência mecânica o coração pode continuar a bater, pode-se
continuar a respirar, e assim por adiante. Mas a morte cerebral foi por fim aceite e as
pessoas acostumaram-se a encará-la como "verdadeira" morte.Isto foi sensato porque
quando o cérebro pára de funcionar deixa de haver esperançade vida consciente.
As anencefalias não satisfazem os requisitos técnicos da morte cerebral tal como é
actualmente definida; mas talvez a definição devesse ser reelaborada para as incluir. Afinal
de contas, os anencefálicos também não têm perspectivas de vida consciente, pela razão
profunda de que não têm cérebro ou cerebelo. Se a definiçãode morte cerebral fosse
reformulada para incluir os anencefálicos, acabaríamos por nos acostumar à ideia de que
estes infelizes bebés são nado-mortos e deixaríamos, por isso, de encarar a extracção dos
seus órgãos como uma forma de os matar. O argumento baseadona ideia de que matar é
errado seria então contestável.
Parece pois, no todo, que o argumento a favor do transplante dos órgãos da bebé Teresa é
mais forte do que estes argumentos contra o transplante.
1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary
Em Agosto de 2000, uma jovem de Gozo, uma ilha junto de Malta, descobriu que estava
grávida de gémeos siameses. Sabendo que as instalações de saúde de Gozo não estavam
equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento, ela e o marido foram para o
Hospital St. Mary, em Manchester, Inglaterra, para fazer aío parto das bebés. As crianças,
conhecidas como Mary e Jodie, estavam
19
ligadas pelo baixo abdómen. As suas espinhas dorsais encontravam-se fundidas, e
partilhavam um coração e um par de pulmões. Jodie, a mais forte, fornecia sangue à sua
irmã.
Ninguém sabe quantos pares de gémeos siameses nascem por ano. São raros, embora o
nascimento recente de três pares no Oregon tenha suscitado a ideia de que o seu número
está a crescer. ("Os Estados Unidos têm um excelente serviço de saúde mas os registos são
muito pobres", afirmou um médico.) As causas do fenómeno não são bem conhecidas, mas
sabemos com certeza que os gémeos siameses são uma variantede gémeos idênticos.
Quando o conjunto de células (o "pré-embrião") se divide, três a oito dias após a
fertilização, surgem os gémeos idênticos; quando a divisão se arrasa mais alguns dias, pode
ficar incompleta e os gémeos podem ficar ligados.
Alguns pares de gémeos siameses não têm problemas. Chegam àidade adulta e por vezes
casam e têm os seus próprios filhos. Mas o panorama apresentava-se algo cinzento para
Mary e Jodie. Os médicos afirmaram que, sem intervenção, morreriam dentro de seis meses.
A única esperança era uma operação para separá-las. Isto salvaria Jodie, mas Mary morreria
de imediato.
Os pais, católicos devotos, não permitiram a operação baseando-se na ideia de que isso
anteciparia a morte de Mary. "Pensamos que a natureza deve seguir o seu curso", afirmaram
os pais. "Se é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam, assim seja." O hospital,
convencido da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo menos uma das crianças,
solicitou permissão aos tribunais para separar as bebés contra o desejo dos pais. Os tribunais
concederam permissão, e a 6 de Novembro a operação foi realizada. Tal como se esperava,
Jodie sobreviveu e Mary morreu.
Ao meditar neste caso, devemos separar a questão de quem deveria tomar a decisão da
questão de qual deve ser a
20
decisão. Podemos pensar, por exemplo, que a decisão devia caber aos pais, caso em que nos
oporemos à intromissão dos tribunais. Mas continua em aberto a questão independente de
saber qual seria para os pais (ou qualquer outra pessoa) a escolha mais sensata. Vamos
concentrar-nos nesta última questão: Nas circunstâncias descritas, seria correcto ou errado
separar as gémeas?
O argumento de que devem ser salvas tantas vidas quanto possível. O argumento óbvio a
favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar um bebé ou deixar
ambos morrer. Não é claramente melhor salvar um deles? Esteargumento é tão atraente que
muitas pessoas concluirão, sem mais, que isto resolve o problema. No auge da controvérsia
sobre o caso, quando os jornais estavam cheios de históriasacerca de Jodie e Mary, o
Ladies Home Journal encomendou uma sondagem para descobrir o que os americanos
pensavam. A sondagem mostrou que 78% aprovava a operação. As pessoas estavam
obviamente persuadidas pela ideia de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. No
entanto, os pais de Jodie e Mary pensavam que há um argumento ainda mais forte do lado
contrário.
O argumento da santidade da vida humana. Os pais amavam as duas filhas e pensavam que
seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra. Naturalmente, não eram os únicos a
defender esta perspectiva. A ideia de que toda a vida humana tem valor, independentemente
da idade, raça, classe social ou deficiência, está no centro da tradição moral ocidental. É
especialmente enfatizada em obras religiosas. Na ética tradicional, a proibição de matar seres
humanos inocentes é tida como absoluta. Não importa se o assassinato visa servir um
propósito meritório; simplesmente não pode fazer-se. Mary éum ser humano inocente, não
podendo por isso ser morta.
21
Será este argumento sólido? Por uma razão surpreendente, osjuizes que avaliaram o caso
em tribunal pensaram que não. Negaram a pertinência do argumento tradicional neste caso.
O juiz Robert Walker afirmou que a realização da operação não mataria Mary. Ela seria
simplesmente separada da irmã e depois "morreria, não por ser intencionalmente morta, mas
porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida". Poroutras palavras, a causa da
sua morte não seria a operação mas a sua própria debilidade. Os médicos parecem ter
favorecido também esta perspectiva. Quando a operação foi finalmente realizada,
executaram todos os procedimentos para tentarem manter Maryviva - "concedendo-lhe
todas as possibilidades" - mesmo sabendo da inutilidade do esforço.
O argumento do juiz pode parecer um pouco sofístico. Poderíamos pensar, seguramente,
que pouco importa dizer que a morte da Mary é causada pela operação ou pela debilidade
do seu corpo. De qualquer das maneiras ela vai morrer, e a sua morte acontecerá mais cedo
do que se não tivesse sido separada da irmã.
Há, no entanto, uma objecção mais natural ao argumento da santidade da vida que não
depende de um argumento tão forçado. Podemos responder que não é sempre errado matar
seres humanos inocentes. Em situações raras pode mesmo ser correcto. Em particular se: a)
o ser humano inocente não tem futuro por estar condenado a morrer em breve
independentemente do que façamos; b) o ser humano inocente não quer continuar a viver,
talvez por estar tão-pouco desenvolvido mentalmente que nãopode de todo ter desejos; e c)
se matar o ser humano inocente permitir salvar a vida de outros, que podem desenvolver-se
e ter uma vida boa e plena - nestas circunstâncias, pouco frequentes, pode justificar-se
matar um inocente. E claro que muitos moralistas, sobretudoos pensadores religiosos, não
se deixarão convencer. No entanto, esta é uma linha de pensamento que muitas pessoas
podem achar persuasiva.
22
1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer
Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral, foi morta pelo pai em
1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradariade Saskatchewan, no Canadá.
Numa manhã de domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam na missa, Robert Latimer
pôs Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com o fumo do escape. Na
altura da morte, Tracy pesava menos de dezoito quilos; diz-se que tinha "um nível mental
idêntico ao de um bebé de três meses". A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por
encontrar Tracy morta ao chegar a casa, e acrescentou que "não tinha coragem" para o
fazer.
O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e osjurados não quiseram tratá-lo
com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado dehomicídio de segundo grau e
recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e cinco anos de prisão. O
juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão
domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e
ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimerestá ainda detido, cumprindo
uma pena de vinte e cinco anos.
Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algode errado? Este caso envolve
muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer
é que a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele por isso o direito de a matar. Em sua
defesa pode responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha
quaisquer perspectivas de uma "vida" em qualquer sentido além do puramente biológico. A
sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido, pelo que matá-la
foi um acto de misericórdia. Considerando estes argumentos,parece que talvez o senhor
Latimer tenha agido de forma defensável. Houve, no entanto,outros argumentos avançados
pelos seus críticos.
23
O argumento contra a discriminação dos deficientes.
Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes
encararam o facto como um insulto. O presidente de Saskatoon Voice of People with
Disabilities, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: "Ninguém tem o direito de decidir se a
minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a grande questão." Tracy foi morta por ser
deficiente, afirmou, e isso é inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas
e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa.
Que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de pessoas é,
naturalmente, um assunto sério. E inaceitável porque implica tratar algumas pessoas de
forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar.
Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local de trabalho.
Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega simplesmente porque o patrão não
gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de recusar empregar
alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto istoé ofensivo, poderíamos
perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. É menos capaz de fazer o
trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de
beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir,
então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.
Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma
diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser
empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar facilmente
por que motivo isto não é desejável, a "discriminação" não é arbitrária e não é uma violação
dos direitos da pessoa deficiente.
Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de discriminação de deficientes?
O senhor Latimer
24
argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. "As pessoas andam a dizer
que isto é uma questão relacionada com deficiência", afirmou, "mas estão enganadas. Isto
diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de mutilação e tortura". Antes
da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção cirúrgica às
costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas. "Tendo em conta a
combinação de um tubo para alimentação, varetas nas costas,a perna cortada e bamba e
ainda as chagas causadas pela permanência na cama", afirmouo pai, "como podem as
pessoas dizer que ela era uma menina feliz"? No julgamento,três dos médicos de Tracy
deram o seu testemunho sobre a dificuldade de controlar as suas dores. O senhor Latimer
negou, por isso, que ela tenha sido morta por causa da paralisia cerebral; foi morta por causa
da dor e por não haver esperança para ela.
O argumento da derrapagem. Isto conduz naturalmente a outroargumento. Quando o
Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters,
directora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se
"agradavelmente surpreendida" pela decisão. "Teria sido na verdade uma bola de neve e um
abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive equem morre", afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert
Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta.
No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa,
iremos dar a uma "derrapagem" inevitável, e no final toda avida terá perdido o seu valor.
Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida,
o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros
"inúteis" da sociedade? Neste
25
contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam "purificar a raça", e a implicação é
que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.
Tem-se usado "argumento da derrapagem" do mesmo género em relação a todo o tipo de
questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram
criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos
envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é
possível verificar, em retrospectiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu
com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira"bebé proveta", houve uma
série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a
sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento
rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento
deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia
acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá
origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação
podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores - os inclinados a
defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões sãoirrealistas, enquanto os
predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento éatreito a usos abusivos. Se não
concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela,
podemos sempre fazer uma previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais
implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode
ser utilizado para contestar quase tudo. Essa
26
é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.
1.5 Razão e imparcialidade
O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral? Para começar, podemos
tomar nota de dois aspectos principais: primeiro, os juízosmorais têm de se apoiar em boas
razões; segundo, a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo.
Raciocínio moral. Os casos da bebé Teresa, Jodie e Mary e Tracy Latimer, bem como
muitos outros que serão discutidos neste livro, podem despertar sentimentos fortes. Estes
sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem, pois, ser objecto de
admiração. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta da verdade: quando temos
sentimentos fortes relativamente a uma questão, é tentador pressupor que sabemos pura e
simplesmente o que a verdade não pode deixar de ser, sem mesmo termos de tomar em
consideração os argumentos do lado contrário. Infelizmente,não podemos confiar nos
nossos sentimentos, por mais fortes que sejam. Os nossos sentimentos podem ser irracionais:
podem não ser mais do que resultados de preconceito, egoísmo ou condicionamento
cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das pessoas diziam-lhes, por exemplo, que os
membros de outras raças eram inferiores e que a escravaturafazia parte do próprio plano
divino das coisas.) Além disso, os sentimentos de pessoas diferentes dizem-lhes
frequentemente coisas opostas: no caso de Tracy Latimer, o sentimento forte de algumas
pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma penalonga, enquanto outras têm o
sentimento igualmente forte de que ele nunca devia ter sidoacusado. Estes sentimentos não
podem, no entanto, estar ambos correctos.
27
Assim, se queremos descobrir a verdade, temos de tentar deixar que os nossos sentimentos
sejam guiados, tanto quanto possível, pelos argumentos que se podem fornecer a favor de
cada uma das perspectivas opostas. A moralidade é, antes demais e acima de tudo, uma
questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a acção moralmente
correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.
Este não é um aspecto de somenos importância sobre uma pequena gama de perspectivas
morais; é um requisito lógico geral que tem de ser aceite por qualquer pessoa,
independentemente do seu posicionamento sobre qualquer questão moral em particular. A
ideia fundamental pode enunciar-se de forma simples. Suponha-se que se afirma que alguém
devia fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado). Pode-se legitimamente
perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se não
se puder dar qualquer boa razão, pode-se rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.
Neste aspecto, os juízos morais são diferentes das expressões de gosto pessoal. Se alguém
afirma "eu gosto de café", não necessita ter uma razão paratal - está meramente a declarar
um facto sobre si mesmo, nada mais do que isso. Uma "defesaracional" do facto de gostar
ou não de café é algo que não existe, não havendo por isso discussão possível do caso.
Desde que uma pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de forma precisa, o que diz tem de
ser verdade. Além do mais, não há nisso qualquer implicaçãode que as outras pessoas
tenham de ter o mesmo gosto; se todas as outras pessoas do mundo detestarem café, isso
não importa. Por outro lado, se alguém afirma que algo é moralmente errado, necessita ter
razões para tal, e se as suas razões forem sólidas, as outras pessoas têm de reconhecer a sua
força. Pela mesma lógica, se não tiver boas razões para o que diz, está simplesmente a
produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe atenção.
28
Naturalmente, nem todas as razões passíveis de ser apresentadas são boas razões. Há bons e
maus argumentos, e muita da perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir uns
de outros. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para
avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspectos pertinentes.
A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. E frequente isto não ser tão fácil
como parece. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe
em estabelecer os "factos" - as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem
mesmo os especialistas concordam entre si. Outro problema éo preconceito humano. É
frequente querer acreditar numa versão dos factos por apoiar os nossos preconceitos. Os
que reprovam a acção de Robert Latimer, por exemplo, quererão acreditar nas previsões do
argumento da derrapagem; os que o compreendem não vão querer acreditar nessas
previsões. É fácil imaginar outros exemplos do mesmo género: pessoas que não querem dar
dinheiro para a caridade consideram com frequência que as organizações de caridade são
esbanjadoras, mesmo quando não têm grandes provas disso; e as pessoas que não gostam de
homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de pedófilos,
apesar das provas em contrário. Mas os factos existem independentemente dos nossos
desejos, e o pensamento moral responsável começa quando tentamos ver as coisas como
elas são.
Depois de os factos terem sido estabelecidos tão bem quantopossível, os princípios morais
entram em jogo. Nos nossos três exemplos estavam envolvidosum conjunto de princípios:
que não devemos "usar" as pessoas; que não devemos matar uma pessoa para salvar outra;
que devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas acções; que toda a vida
é sagrada; e que é errado discriminar os deficientes. A maioria dos argumentos morais
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consiste na aplicação de princípios aos factos de casos particulares, e por isso o que importa
saber é se os princípios são sólidos e se estão a ser aplicados de forma inteligente.
Seria bom se houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os maus.
Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podemfalhar de diversas maneiras,
como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobreos bebés deficientes; e
devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas de
erro. Mas isso não é surpreendente. A aplicação mecânica demétodos rotineiros nunca é um
substituto satisfatório para a inteligência crítica, seja em que área for. O pensamento moral
não é excepção.
O requisito de imparcialidade. Praticamente todas as teorias morais importantes incluem a
ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste em considerar os interesses de cada indivíduo
como igualmente importantes; do ponto de vista moral, não há pessoas privilegiadas.
Portanto, cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante
como o nosso. Ao mesmo tempo, a exigência de imparcialidadeelimina qualquer esquema
que trate os membros de determinados grupos como de certa forma inferiores, como os
negros, os judeus e outros foram por vezes tratados.
O requisito de imparcialidade está estreitamente ligado à ideia de que os juízos morais têm
de ser apoiados em boas razões. Considere-se a posição de um racista branco, por exemplo,
que defende ser correcto que os empregos melhores sejam reservados para as pessoas
brancas. Ele sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais empresas e
os responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os negros ficam
restringidos a tarefas sobretudo subalternas; ele apoia ainda as disposições sociais por meio
das quais esta situação se perpetua. Podemos agora perguntar pelas razões para isto;
podemos
30
perguntar por que motivo se pensa que isto está certo. Haverá alguma coisa nos brancos que
os torne mais adequados para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão eles
inerentemente mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam mais
consigo mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem tais
cargos à sua disposição? Em cada um destes casos a respostaparece ser não; e se não
houver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneiradiferente, a discriminação é
inaceitavelmente arbitrária.
O requisito de imparcialidade não é, pois, mais do que uma condenação da arbitrariedade no
tratamento das pessoas. É uma regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferente
de outra quando não há uma boa razão para o fazer. Mas se isto explica o que está errado
no racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos especiais não é racista tratar
as pessoas de maneira diferente. Suponha-se que um realizador de cinema estava a fazer um
filme sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma razão muito boa para não recrutar
Tom Cruise para o papel de protagonista. É claro que a escolha deste actor não faria
sentido. Por haver uma boa razão para isso, a "discriminação" do realizador não seria
arbitrária, não sendo por isso vulnerável a críticas.
1.6 A concepção mínima de moralidade
A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a moralidade é, pelo
menos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão -isto é, para fazer aquilo a
favor do qual existem melhores razões - dando simultaneamente a mesma importância aos
interesses de cada indivíduo que será afectado por aquilo que fazemos.
Isto oferece, entre outras coisas, uma imagem do que significa ser um agente moral
consciente. O agente moral
31
consciencioso é alguém preocupado imparcialmente com os interesses de quantos são
afectados por aquilo que ele, ou ela, fazem; alguém que cuidadosamente filtra os factos e
examina as suas implicações; que aceita princípios de conduta somente depois de os
examinar, para ter a certeza de que são sólidos; que está disposto a "dar ouvidos à razão"
mesmo quando isso significa ter de rever convicções prévias; alguém que, por fim, está
disposto a agir com base nos resultados da sua deliberação.
É claro que, como seria de esperar, nem todas as teorias éticas aceitam este "mínimo".
Como teremos oportunidade de ver, este retrato do agente moral tem sido posto em causa
de várias maneiras. No entanto, as teorias que rejeitam a concepção mínima debatem-se com
sérias dificuldades. A maioria dos filósofos apercebeu-se disto, e por isso a maior parte das
teorias da moralidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção mínima. Não
discordam sobre o mínimo mas sobre como poderemos alargá-lo, ou talvez modificá-lo, de
maneira a alcançar uma concepção moral inteiramente satisfatória.
32
Capítulo 2
O desafio do relativismo cultural
A moralidade varia em todas as sociedades, e é apenas um termo cómodo para os hábitos que uma sociedade
aprova.
RUTH BENEDICT, Padrões de Cultura (1934)
2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes
Dário, um rei da antiga Pérsia, ficou intrigado com a diversidade de culturas que encontrou
nas suas viagens. Tinha descoberto, por exemplo, que os calatinos (uma tribo de indianos)
tinham o hábito de comer os cadáveres dos pais. Os Gregos, é claro, não faziam isso -
cremavam os mortos e encaravam a pira funerária como a forma natural e adequada de
dispor dos mortos. Dário pensava que uma maneira sofisticada de entender o mundo tem de
incluir uma avaliação deste tipo de diferenças entre culturas. Um dia, para ensinar esta lição,
convocou alguns gregos que por acaso estavam na sua corte eperguntou-lhes quanto
queriam para comer os cadáveres dos seus pais. Eles ficaram
33
chocados, como Dário sabia que ficariam, e responderam que nenhuma quantia os poderia
persuadir a fazer tal coisa. Dário chamou então alguns calatinos e, na presença dos gregos,
perguntou-lhes quanto queriam para queimar os cadáveres dosseus pais. Os calatinos
ficaram horrorizados e disseram a Dário para nem sequer referir uma coisa tão horrível.
Esta história, relatada por Heródoto na sua História, ilustra um tema recorrente na
bibliografia das ciências sociais: culturas diferentes têm códigos morais diferentes. O que se
pensa ser correcto num grupo pode ser inteiramente odioso para os membros de outro
grupo e vice-versa. Devemos comer os corpos dos mortos ou queimá-los? Se fôssemos
gregos, uma das respostas pareceria obviamente correcta; mas se fôssemos calatinos a
resposta contrária pareceria igualmente certa.
É fácil dar outros exemplos do mesmo género. Pense-se nos esquimós (entre os quais o
grupo mais vasto é o inuíte). São um povo remoto e inacessível. Com uma população de
apenas cerca de vinte e cinco mil pessoas, vivem em povoados espalhados sobretudo ao
longo da orla da América do Norte e da Gronelândia. Até ao começo do século xx, o mundo
exterior pouco sabia a seu respeito. Os exploradores começaram então a trazer consigo
histórias estranhas. Os costumes esquimós revelaram-se muito diferentes dos nossos. Os
homens tinham com frequência mais de uma mulher, e partilhavam-na com os convidados,
concedendo-as para passar a noite em sinal de hospitalidade. Além disso, no seio de uma
comunidade um homem dominante podia exigir e obter acesso sexual regular às esposas de
outros homens. As mulheres, no entanto, podiam quebrar estes acordos abandonando pura e
simplesmente os maridos e ligando-se a novos companheiros -podiam, isto é, desde que os
seus antigos maridos decidissem não causar sarilhos. Tudo somado, a prática esquimó era
um esquema volátil em quase nada semelhante àquilo a que chamamos casamento.
34
Mas não eram apenas os seus casamentos e práticas sexuais que eram diferentes. Os
esquimós pareciam igualmente ter menos respeito pela vida humana. O infanticídio, por
exemplo, era comum. Knud Rasmussen, um dos mais famosos de entre os primeiros
exploradores, relatou o seu encontro com uma mulher que tinha dado à luz vinte crianças
mas tinha morto dez delas à nascença. As bebés do sexo feminino, descobriu Rasmussen,
eram especialmente susceptíveis de ser aniquiladas, e isto era deixado simplesmente à
decisão dos pais, sem que tal acarretasse qualquer estigma social. Também os idosos,
quando se tornavam demasiado fracos para ajudar a família, eram deixados ao frio e à neve
para morrer. Parecia pois haver, nesta sociedade, muito pouco respeito pela vida.
Para o público em geral estas eram revelações perturbadoras. O nosso próprio modo de vida
parece tão natural e correcto que para muitos de nós é difícil conceber outras pessoas a
viver de modo tão diverso. E quando ouvimos falar de tais coisas, tendemos imediatamente
a categorizar as outras pessoas como "retrógradas" ou "primitivas". Mas para os
antropólogos nada havia de particularmente surpreendente nos esquimós. Desde o tempo de
Heródoto que os observadores mais perspicazes se acostumaram à ideia de que as
concepções de certo e errado diferem de cultura para cultura. Se partimos do princípio de
que as nossas ideias éticas serão partilhadas por todos os povos em todos os tempos,
estamos apenas a ser ingénuos.
2.2 Relativismo cultural
Esta observação - "culturas diferentes têm códigos morais diferentes" - pareceu a muitos
pensadores ser a chave para compreender a moralidade. A ideia de verdade universal em
ética, afirmam, é um mito. Tudo quanto existe são os costumes de sociedades diferentes.
Não se pode
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dizer que estes costumes estão "correctos" ou "incorrectos", pois isso implicaria ter um
padrão independente de certo e errado pelo qual poderíamos julgá-los. Mas tal padrão não
existe; todos os padrões são determinados por uma cultura. O grande pioneiro da sociologia,
William Graham Sumner, em 1906, colocou a questão assim:
A maneira "certa" é a maneira que os antepassados utilizavam e nos foi transmitida. A tradição é a
sua própria garantia. Não está submetida à verificação pelaexperiência. A noção do que é certo está
nos hábitos do povo. Não reside além deles, não provém de origem independente, para os pôr à
prova. O que estiver nos hábitos populares, seja o que for,está certo. Isto é assim porque são
tradicionais, e por isso contêm em si a autoridade dos espíritos ancestrais. Quando abordamos os
hábitos populares a nossa análise chega ao fim.
Esta linha de pensamento persuadiu provavelmente mais pessoas a serem cépticas sobre
ética que qualquer outra coisa. O relativismo cultural, como tem sido chamado, desafia a
nossa crença habitual na objectividade e universalidade da verdade moral. Afirma, com
efeito, que não existe verdade universal em ética; existem apenas os vários códigos morais e
nada mais. Além disso, o nosso próprio código moral não temum estatuto especial; é apenas
um entre muitos. Como veremos, esta ideia de base é na realidade um conjunto de vários
pensamentos diferentes. É importante separar os vários elementos da teoria porque, durante
a análise, algumas partes revelam-se correctas enquanto outras parecem estar erradas. Para
começar, podemos distinguir as seguintes afirmações, todas elas apresentadas por
relativistas culturais:
1. Sociedades diferentes têm códigos morais diferentes;
2. O código moral de uma sociedade determina o que é correcto no seio dessa sociedade,
isto é, se o código
36
moral de uma sociedade afirma que certa acção é correcta, então essa acção é correcta, pelo
menos nessa sociedade;
3. Não há qualquer padrão objectivo que se possa usar para ajuizar um código social como
melhor do que outro;
4. O código moral da nossa própria sociedade não tem estatuto especial, é apenas um entre
muitos;
5. Não há uma "verdade universal" em ética, isto é, não há verdades morais aceites por
todos os povos em todos os tempos;
6. E mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outros povos. Deveríamos adoptar
uma atitude de tolerância face às práticas de outras culturas.
Apesar de poder parecer que estas seis proposições fazem naturalmente parte de um todo,
são independentes umas das outras, na medida em que algumaspodem ser falsas ainda que
outras sejam verdadeiras. Nos pontos seguintes vamos tentaridentificar o que está correcto
no relativismo cultural, mas vamos também denunciar o que está errado.
2.3 O argumento das diferenças culturais
O relativismo cultural é uma teoria sobre a natureza da moralidade. À primeira vista parece
bastante plausível. No entanto, como todas as teorias do género, pode ser avaliada mediante
análise racional; e quando analisamos o relativismo cultural, descobrimos que não é tão
plausível como inicialmente parecia ser.
A primeira coisa que precisamos fazer notar é que no âmago do relativismo cultural está
uma certa forma de argumento. A estratégia usada pelos relativistas culturais é
37
argumentar a partir de factos sobre as diferenças entre perspectivas culturais a favor de uma
conclusão sobre o estatuto da moralidade. Convidam-nos, assim, a aceitar este raciocínio:
1. Os Gregos acreditavam que comer os mortos estava errado,enquanto os Calatinos
acreditavam que comer os mortos estava certo;
2. Logo, comer os mortos não é objectivamente certo nem objectivamente errado. É apenas
uma questão de opinião que varia de cultura para cultura.
Ou, alternativamente:
1. Os esquimós nada vêem de errado no infanticídio, enquanto os americanos pensam que o
infanticídio é imoral;
2. Logo, o infanticídio não é objectivamente certo nem objectivamente errado. É apenas
uma questão de opinião, que varia de cultura para cultura.
Estes argumentos são claramente variações de uma ideia fundamental. São ambos casos
especiais de um argumento mais geral, que afirma:
1. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes;
2. Logo, não há uma "verdade" objectiva na moralidade. Certo e errado são apenas
questões de opinião e as opiniões variam de cultura para cultura.
Podemos chamar a isto o argumento das diferenças culturais.Para muitas pessoas é
persuasivo. Mas, de um ponto de vista lógico, será sólido?
Não é sólido. O problema é que a conclusão não se segue da premissa - isto é, mesmo que
a premissa seja
38
verdadeira a conclusão pode continuar a ser falsa. A premissa diz respeito àquilo em que as
pessoas acreditam - em algumas sociedades as pessoas acreditam numa coisa; noutras
sociedades acreditam noutra. A conclusão, no entanto, diz respeito ao que na verdade se
passa. O problema é que este tipo de conclusão não se seguelogicamente deste tipo de
premissa.
Considere-se de novo o exemplo dos gregos e dos calatinos. Os gregos acreditavam que é
errado comer os mortos; os calatinos acreditavam que é correcto. Será que daqui se
entende, do simples facto de não estarem de acordo, que nãoexiste verdade objectiva no
caso? Não, não se entende; pois poderia acontecer que a prática fosse objectivamente certa
(ou errada) e que uma ou outra das posições estivesse simplesmente errada.
Para tornar este aspecto mais claro, considere-se um tema diferente. Em algumas sociedades
as pessoas acreditam que a Terra é plana. Noutras sociedades, como a nossa, as pessoas
acreditam que a Terra é (aproximadamente) esférica. Segue-se daqui, do mero facto de as
pessoas discordarem, que não há "verdade objectiva" em geografia? Claro que não; nunca
chegaríamos a tal conclusão porque percebemos que, nas suascrenças sobre o mundo, os
membros de algumas sociedades podem simplesmente estar errados. Não há qualquer razão
para pensar que se o mundo é redondo, todos têm de saber disso. Da mesma maneira, não
há qualquer razão para pensar que se existe uma verdade moral, todos têm de conhecê-la. O
erro fundamental no argumento das diferenças culturais é que tenta derivar uma conclusão
substancial sobre um tema partindo do mero facto de as pessoas discordarem a seu respeito.
Trata-se, até agora, de uma simples questão lógica e é importante não a interpretar
erradamente. Não estamos a dizer (ainda não, pelo menos) que a conclusão do argumento é
falsa. Isso é ainda uma questão em aberto. O objectivo do reparo lógico é apenas fazer notar
que a conclusão
39
não se segue da premissa. Isto é importante, porque para determinar se a conclusão é
verdadeira necessitamos de argumentos para a apoiar. O relativismo cultural propõe este
argumento, que infelizmente se revela falacioso. Portanto, não prova nada.
2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural
Mesmo que o argumento das diferenças culturais seja falso, o relativismo cultural pode ser
verdadeiro. Como seria se fosse verdadeiro?
Na passagem citada, William Graham Sumner resume a essênciado relativismo cultural.
Sumner afirma que não há uma medida de certo e errado, alémdos padrões de uma
sociedade: "A noção de certo está nos hábitos da população.Não reside além deles, não
provém de origem independente, para os pôr à prova. O que estiver nos hábitos populares,
seja o que for, está certo." Suponha que tomávamos isto a sério. Quais seriam algumas das
consequências?
1. Deixaríamos de poder afirmar que os costumes de outras sociedades são moralmente
inferiores aos nossos. Isto, é claro, é um dos principais aspectos sublinhados pelo
relativismo cultural. Teríamos de deixar de condenar outrassociedades simplesmente por
serem "diferentes". Enquanto nos concentrarmos apenas em certos exemplos, como as
práticas funerárias dos gregos e calatinos, isto pode parecer uma atitude sofisticada e
esclarecida.
No entanto, seríamos também impedidos de criticar outras práticas menos benignas. Imagine
que uma sociedade declarava guerra aos seus vizinhos com o intuito de fazer escravos. Ou
suponha que uma sociedade era violentamente anti-semita e os seus líderes se propunham
destruir os judeus. O relativismo cultural iria impedir-nosde
40
dizer que qualquer destas práticas estava errada. (Nem sequer poderíamos dizer que uma
sociedade tolerante em relação aos judeus é melhor que uma sociedade anti-semita, pois isso
implicaria um tipo qualquer de padrão transcultural de comparação.) A incapacidade de
condenar estas práticas não parece muito esclarecida; pelo contrário, a escravatura e o anti-
semitismo afiguram-se erradas onde quer que ocorram. No entanto, se tomássemos a sério o
relativismo cultural teríamos de encarar estas práticas sociais como algo imune à crítica;
2. Poderíamos decidir se as acções são certas ou erradas pela simples consulta dos
padrões da nossa sociedade. O relativismo cultural propõe uma maneira simples para
determinar o que está certo e o que está errado: tudo o quenecessitamos é perguntar se a
acção está de acordo com os códigos da nossa sociedade. Suponhamos que em 1975 um
residente da África do Sul se perguntava se a política de apartheid do seu país - um
sistema rigidamente racista - era moralmente correcta. Tudoo que teria que fazer era
perguntar se esta política se conformava com o código moralda sua sociedade. Em caso de
resposta afirmativa, não haveria motivos de preocupação, pelo menos do ponto de vista
moral.
Esta implicação do relativismo cultural é perturbadora porque poucos de nós pensam que o
código moral da nossa sociedade é perfeito - não é difícil pensar em várias maneiras de a
aperfeiçoar. No entanto, o relativismo cultural não se limita a impedir-nos de criticar os
códigos de outras sociedades; não nos permite igualmente criticar a nossa. Afinal de contas,
se certo e errado são relativos à cultura, isto tem de ser verdade tanto relativamente à nossa
própria cultura como relativamente às outras;
3. A ideia de progresso moral é posta em dúvida. Pensamos habitualmente que pelo menos
algumas das mudanças sociais são melhorias. (Apesar de, naturalmente, outras mudanças
poderem piorar as coisas.) Ao longo da maior
41
parte da história ocidental o lugar das mulheres na sociedade esteve severamente
circunscrita. Não podiam ter bens; não podiam votar; e estavam em geral sob o controlo
quase absoluto dos seus maridos. Recentemente, muitas destas coisas mudaram, e a maioria
das pessoas pensa que isto é um progresso.
Mas se o relativismo cultural estiver correcto, poderemos legitimamente pensar que é um
progresso? Progresso significa substituir uma maneira de fazer as coisas por uma maneira
melhor. Mas qual o padrão pelo qual avaliamos estas novas maneiras como melhores? Se as
velhas maneiras estavam de acordo com os padrões culturais do seu tempo, então o
relativismo cultural diria que é um erro julgá-las pelos padrões de uma época diferente. A
sociedade do século xvm era diferente da que temos agora. Afirmar que fizemos progressos
implica o juízo de que a sociedade de hoje é melhor, e issoé justamente o tipo de juízo
transcultural que, segundo o relativismo cultural, é impossível.
A nossa concepção de reforma social terá igualmente de ser reconsiderada. Reformadores
como Martin Luther King, Jr. tentaram mudar as suas sociedades para melhor. Obedecendo
aos constrangimentos impostos pelo relativismo cultural há uma maneira de poder fazer isto.
Se uma sociedade não está a viver de acordo com os seus ideais, pode considerar-se que o
reformador está a agir bem; os ideais da sociedade são os padrões pelos quais julgamos o
mérito das suas propostas. Mas ninguém pode contestar os ideais em si, pois esses ideais são
por definição correctos. Portanto, segundo o relativismo cultural, a ideia de reforma social
só faz sentido desta maneira limitada.
Estas três consequências do relativismo cultural levaram muitos pensadores a rejeitá-lo
frontalmente como implausível. Faz realmente sentido, afirmam, condenar certas práticas,
como a escravatura, onde quer que ocorram. Faz sentido pensar que a nossa própria
sociedade fez
algum progresso cultural, embora deva admitir-se, simultaneamente, que é ainda imperfeita e
necessita de reformas. Uma vez que o relativismo cultural supõe, prossegue o argumento,
que estes juízos não fazem sentido, não pode estar correcto.
2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece
O ímpeto original do relativismo cultural resulta da observação de que as culturas diferem de
forma dramática nas suas perspectivas do que é certo e errado. Mas até que ponto diferem
realmente? É verdade que há diferenças. No entanto, é fácilsobrevalorizar a dimensão
dessas diferenças. Quando examinamos o que parece uma diferença drástica, descobrimos
com frequência que as culturas não diferem tanto quanto parece.
Imagine-se uma cultura na qual as pessoas acreditam ser errado comer vacas. Pode até ser
uma cultura pobre, na qual não há comida suficiente; mesmo assim, as vacas são intocáveis.
Tal sociedade pareceria ter valores muito diferentes dos nossos. Mas será que tem? Ainda
não perguntámos a razão pela qual estas pessoas se recusam a comer vacas. Suponha-se que
é por acreditarem que depois da morte as almas dos seres humanos habitam os corpos dos
animais, especialmente das vacas, podendo uma vaca ser a alma da avó de alguém. Vamos
continuar a dizer que os valores deles são diferentes dos nossos? Não; a diferença está
noutro lado. A diferença reside nos nossos sistemas de crenças, e não nos nossos valores.
Concordamos que não devemos comer a nossa avó; limitamo-nosa discordar sobre se a
vaca é (ou poderia ser) a nossa avó.
O que se pretende mostrar é que os costumes de uma sociedade são o produto de muitos
factores interligados. Os valores sociais são apenas um deles. Outras questões,
42
43
como as crenças religiosas e factuais dos seus membros, bemcomo as circunstâncias físicas
nas quais têm de viver, são igualmente importantes. Não podemos, portanto, concluir que há
um desacordo quanto aos valores, só porque os costumes diferem. Pode, pois, haver menos
desacordo quanto aos valores do que parece.
Pensemos mais uma vez nos esquimós, que frequentemente matam crianças perfeitamente
normais, especialmente raparigas. Não aprovamos tais coisas; na nossa sociedade um pai
que tivesse morto uma criança seria preso. Parece, pois, haver uma grande diferença nos
valores das nossas duas culturas. Mas imaginemos que perguntamos a razão pela qual os
esquimós fazem isso. A explicação não é eles terem menos afecto pelos seus filhos ou menos
respeito pela vida humana. Uma família esquimó protegerá sempre os seus filhos se as
condições o permitirem. Mas eles vivem num meio extremamente duro, onde a comida
escasseia. Um postulado fundamental do pensamento esquimó é: "A vida é dura e a margem
de manobra pequena." Uma família pode querer alimentar os filhos mas não poder fazê-lo.
Como em muitas outras culturas "primitivas", as mães esquimó alimentam os seus filhos
durante um período de tempo muito mais longo do que as mãesda nossa cultura. A criança
é alimentada ao peito da mãe durante quatro anos, por vezesmais. Por isso, mesmo nas
melhores épocas, há limites para o número de filhos que umamãe pode manter. Além disso,
os esquimós são um povo nómada - impossibilitados de se dedicarem à agricultura, têm de
viajar em busca de comida. As crianças têm de ser transportadas ao colo, e uma mãe só
pode levar um bebé na sua parca enquanto viaja ou realiza as tarefas diárias. Os outros
membros da família ajudam como podem.
Os bebés do sexo feminino são mais prontamente rejeitados porque, primeiro, nesta
sociedade os homens são os principais fornecedores de comida - são eles os caçadores, de
acordo com a divisão tradicional do trabalho - e
44
torna-se obviamente importante manter um número suficiente de fornecedores de comida.
Mas há igualmente uma segunda razão importante. Uma vez quea taxa de mortalidade dos
caçadores é elevada, o número de homens adultos que morrem prematuramente ultrapassa
em muito o das mulheres que morrem cedo. Assim, se os bebésmasculinos e femininos
sobrevivessem em números iguais, a população feminina adulta ultrapassaria em muito a
população masculina. Examinando as estatísticas, um autor concluiu que "se não fosse o
infanticídio de crianças do sexo feminino [...] haveria, nos grupos de esquimós,
aproximadamente uma vez e meia mais mulheres do que homens produtores de comida".
Portanto, entre os esquimós, o infanticídio não é sinal de uma atitude fundamentalmente
diferente perante as crianças. É, pelo contrário, um reconhecimento de que por vezes são
necessárias medidas drásticas para assegurar a sobrevivência da família. Apesar disso, matar
a criança não é a primeira opção. A adopção é comum; os casais sem filhos ficam
especialmente felizes por encarregar-se dos "excedentes" dos casais mais férteis. Matar é
apenas o último recurso. Sublinho isto para mostrar que os dados em bruto dos
antropólogos podem induzir em erro; podem fazer as diferenças entre culturas parecer
maiores do que são. Os valores dos esquimós não são de modoalgum diferentes dos nossos.
Acontece apenas que a vida os obriga a escolhas que nós nãotemos de fazer.
2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum
Não deveria surpreender que, apesar das aparências, os esquimós protejam as suas crianças.
Como poderia ser de outra maneira? Como poderia sobreviver um grupo que não
valorizasse as suas crianças? É fácil de ver que, de
45
facto, todos os grupos culturais têm de proteger as suas crianças. Os bebés são indefesos e
não podem sobreviver se não forem acarinhados durante anos.Portanto, se um grupo não
cuidasse das suas crianças, elas não sobreviveriam e ninguém tomaria o lugar dos membros
mais velhos do grupo. Passado algum tempo, o grupo extinguir-se-ia. Isto significa que
qualquer grupo cultural que continue a existir tem de cuidar das suas crianças. As crianças
que não são acarinhadas têm de ser a excepção e não a regra.
Um raciocínio semelhante mostra que há outros valores que têm de ser mais ou menos
universais. Imagine-se o que seria de uma sociedade que nãovalorizasse a verdade. Quando
uma pessoa falasse com outra, não poderia partir-se do princípio de que estaria a dizer a
verdade, pois poderia facilmente estar a mentir. Nessa sociedade não haveria qualquer
motivo para dar atenção ao que os outros dizem. (Pergunto que horas são e alguém
responde "quatro horas". Mas não posso presumir que a pessoa está a dizer a verdade;
poderia facilmente ter dito a primeira coisa que lhe tivesse passado pela cabeça. Não tenho,
pois, qualquer razão para dar atenção à sua resposta. De facto, não faz qualquer sentido ter-
lhe sequer perguntado.) A comunicação seria então extremamente difícil, se não mesmo
impossível. E uma vez que as sociedades complexas não podemexistir sem comunicação
entre os seus membros, a vida em sociedade tornar-se-ia impossível. Daqui se conclui que
em qualquer sociedade complexa tem de haver uma presunção em favor da boa-fé. Pode,
naturalmente, haver excepções a esta regra: pode haver situações nas quais se considere
permissível mentir. No entanto, estas serão excepções a umaregra que está em vigor na
sociedade.
Eis mais um exemplo do mesmo género: Poderia existir uma sociedade na qual não houvesse
a proibição do homicídio? Como seria? Suponhamos que as pessoas eram livres de matar
outras pessoas, e ninguém pensava haver
46
algo de mal nisso. Numa tal "sociedade" ninguém poderia sentir-se seguro. Todos teriam de
estar permanentemente em guarda. Aqueles que quisessem sobreviver teriam de evitar
outras pessoas tanto quanto possível. Isto acabaria por levar os indivíduos a tentarem
tornar-se tão auto-suficientes quanto possível - afinal de contas, a associação com outros
seria perigosa. A sociedade a uma escala mais lata ruiria. As pessoas poderiam,
naturalmente, unir-se em grupos mais pequenos com outras emque pudessem confiar. Mas
repare-se no significado disto: estariam a formar sociedades mais pequenas nas quais seria
de facto aceite uma regra contra o homicídio. A proibição do assassínio é, pois, uma
característica de todas as sociedades.
Há aqui urna conclusão teórica geral, a saber, há algumas regras morais que todas as
sociedades têm em comum, pois essas regras são necessárias para a sociedade poder
existir. As regras contra a mentira e o homicídio são dois exemplos disso, pois, de facto,
encontramos estas regras instituídas em todas as culturas viáveis. As culturas podem diferir
relativamente aos que encaram como excepções legítimas às regras, mas esta discordância
existe contra um acordo de fundo nas questões fundamentais.Logo, é um erro sobrestimar
as diferenças entre culturas. Nem todas as regras morais podem variar de sociedade para
sociedade.
2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis
Em 1966, uma rapariga de dezassete anos chamada Fauziya Kassindja chegou ao Aeroporto
Internacional de Newark e pediu asilo. Tinha fugido do seu país natal, o Togo, pequena
nação do oeste africano, para escapar ao que ali as pessoaschamam "excisão". A excisão é
uma intervenção desfiguradora por vezes chamada "circuncisão feminina", embora tenha
poucas semelhanças com essa prática
47
judaica. É mais frequentemente referida, pelo menos nos jornais de países ocidentais, como
"mutilação genital feminina".
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a prática está disseminada por vinte e seis
países africanos, sendo em cada ano objecto de "excisão" dois milhões de raparigas.
Nalguns casos a excisão é parte de um elaborado ritual tribal, realizado em pequenas aldeias
tradicionais, e as raparigas anseiam submeter-se a ele porque isso assinala a sua aceitação no
mundo adulto. Noutros casos, a prática é realizada por famílias citadinas em jovens que lhe
resistem desesperadamente.
Fauziya Kassindja era a mais jovem de cinco filhas de uma família muçulmana devota. O seu
pai, proprietário de uma bem sucedida empresa de camionagem, opunha-se à excisão, e tinha
a capacidade de se opor à tradição por causa da sua riqueza. As suas primeiras quatro filhas
casaram sem ser mutiladas. Mas quando Fauziya tinha dezasseis anos, ele morreu
subitamente. Fauziya ficou então sob tutela do avô, que ajustou para ela um casamento e se
preparava para a submeter à excisão. Fauziya ficou aterrorizada e a mãe e a irmã mais velha
ajudaram-na a fugir. A mãe, tendo ficado sem recursos, tevede pedir desculpas formais e
submeter-se à autoridade do patriarca que ofendeu.
Entretanto, na América, Fauziya foi detida durante dois anos enquanto as autoridades
decidiam o que fazer. Por fim foi-lhe concedido asilo, mas não sem antes se tornar o centro
de uma controvérsia sobre a forma como devemos encarar as práticas culturais de outros
povos. Uma série de artigos no New York Times favoreceu a ideia de que a excisão é uma
prática bárbara merecedora de condenação. Outros observadores mostraram-se relutantes
em ser tão peremptórios - vive e deixa viver, afirmaram; afinal de contas, é provável a
nossa cultura parecer igualmente estranha para eles.
Vamos supor que estamos inclinados a afirmar que a excisão é má. Estaríamos nós apenas a
impor os padrões da nossa própria cultura? Se o relativismocultural estiver
48
correcto, isso é tudo quanto podemos fazer, pois não há um padrão culturalmente neutro a
que possamos apelar. Mas, será isto verdade?
Haverá um padrão culturalmente neutro de certo e errado? Hánaturalmente muito que dizer
contra a excisão. É dolorosa e tem como resultado a perda permanente do prazer sexual. Os
seus efeitos, a curto prazo, incluem hemorragias, tétano e septicemia. Por vezes, a mulher
morre. Os efeitos de longo prazo incluem infecção crónica, cicatrizes que dificultam a
marcha e dores contínuas.
Qual é, pois, o motivo pelo qual se tornou uma prática social tão alargada? Não é fácil
responder. A excisão não tem benefícios sociais aparentes. Ao contrário do infanticídio entre
os esquimós, não é necessária à sobrevivência do grupo. Nemé uma questão religiosa. A
excisão é praticada por grupos de várias religiões, entre elas o islamismo e o cristianismo,
nenhuma das quais a recomenda.
Apesar disso, aduzem-se em sua defesa uma série de razões. As mulheres incapazes de
prazer sexual são supostamente menos propensas à promiscuidade; assim, haverá menos
gravidezes indesejadas em mulheres solteiras. Acresce que as esposas, para quem o sexo é
apenas um dever, têm menor probabilidade de ser infiéis aosmaridos; e uma vez que não
irão pensar em sexo, estarão mais atentas às necessidades dos maridos e filhos. Pensa-se,
por outro lado, que os maridos apreciam mais o sexo com mulheres que foram objecto de
excisão. (A falta de prazer sexual das mulheres é considerada irrelevante.) Os homens não
querem mulheres que não foram objecto de excisão por serem impuras e imaturas. E, acima
de tudo, é uma prática realizada desde tempos imemoriais, enão podemos alterar os
costumes antigos.
Seria fácil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar estes argumentos. Mas podemos fazer
notar uma característica importante de toda esta linha de raciocínio: tenta justificar a excisão
mostrando que é benéfica - homens,
49
mulheres e respectivas famílias são alegadamente beneficiados quando as mulheres são
objecto de excisão. Poderíamos, pois, abordar este raciocínio, e a excisão em si,
perguntando até que ponto isto é verdade: será a excisão, no todo, benéfica ou prejudicial?
Na verdade, este é um padrão que pode razoavelmente ser usado para pensar sobre qualquer
tipo de prática social: podemos perguntar se a prática promove ou é um obstáculo ao bem-
estar das pessoas cujas vidas são por ela afectadas. E, como corolário, podemos perguntar
se há um conjunto alternativo de práticas sociais com melhores resultados na promoção do
seu bem-estar. Se assim for, podemos concluir que a práticaem vigor é deficiente.
Mas isto parece justamente o tipo de padrão moral independente que o relativismo cultural
afirma não poder existir. E um padrão único que pode ser invocado para ajuizar as práticas
de qualquer cultura, em qualquer época, nomeadamente a nossa. É claro que as pessoas não
irão, em geral, encarar este princípio como algo "trazido do exterior" para os julgar, porque,
como as regras contra a mentira e o homicídio, o bem-estar dos seus membros é um valor
inerente a todas as culturas viáveis.
Por que razão, apesar de tudo isto, pessoas prudentes podemter relutância, mesmo assim,
em criticar outras culturas. Apesar de se sentirem pessoalmente horrorizadas com a excisão,
muitas pessoas ponderadas têm relutância em afirmar que está errada, pelo menos por três
razões. Primeiro, há um nervosismo compreensível quanto a "interferir nos hábitos culturais
das outras pessoas". Os europeus e os seus descendentes culturais da América têm uma
história pouco honrosa de destruição de culturas nativas emnome do cristianismo e do
iluminismo. Horrorizadas com estes factos, algumas pessoas recusam fazer quaisquer juízos
negativos sobre outras culturas, especialmente culturas semelhantes àquelas que foram
prejudicadas
50
no passado. Devemos notar, no entanto, que há uma diferençaentre a) considerar uma
prática cultural deficiente; e b) pensar que deveríamos anunciar o facto, dirigir uma
campanha, aplicar pressão diplomática ou enviar o exército.No primeiro caso, tentamos
apenas ver o mundo com clareza, do ponto de vista moral. O segundo caso é completamente
diferente. Por vezes poderá ser correcto "fazer qualquer coisa", mas outras não.
As pessoas sentem também, de forma bastante correcta, que devem ser tolerantes face a
outras culturas. A tolerância é, sem dúvida, uma virtude - uma pessoa tolerante está
disposta a viver em cooperação pacífica com quem encara as coisas de forma diferente. Mas
nada na natureza da tolerância exige que consideremos todasas crenças, todas as religiões e
todas as práticas sociais igualmente admiráveis. Pelo contrário, se não considerássemos
algumas melhores do que outras, não haveria nada para tolerar.
Por último, as pessoas podem sentir-se relutantes em ajuizar por que não querem mostrar
desprezo pela sociedade criticada. Mas, uma vez mais, trata-se de um erro: condenar uma
prática em particular não é dizer que uma cultura é no seu todo desprezível ou inferior a
qualquer outra cultura, incluindo a nossa. Pode mesmo ter aspectos admiráveis. Na verdade,
podemos considerar que isto é verdade no que respeita à maioria das sociedades humanas -
são misturas de boas e más práticas. Acontece apenas que a excisão é uma das más.
2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural
Afirmei no início que iríamos identificar tanto o que está certo como o que está errado no
relativismo cultural. Mas até agora fiquei-me pelos seus erros: afirmei que repousa sobre um
argumento inválido, que as suas
51
consequências o tornam à partida implausível, e ainda que adimensão do desacordo moral é bem
menor do que o relativismo cultural pressupõe. Tudo isto constitui, na verdade, uma
completa rejeição da teoria. No entanto, continua a ser umaideia muito sedutora, e o leitor
pode sentir que tudo isto é um pouco injusto. A teoria deveter alguma coisa a seu favor,
pois a não ser assim porque razão se tornaria tão influente? Penso, na verdade, que há
alguma coisa correcta no relativismo cultural, e quero agora passar a dizer o que é. Há duas
lições que devemos aprender com a teoria, ainda que acabemos por rejeitá-la.
Primeiro, o relativismo cultural alerta-nos, de maneira correcta, para os perigos de pressupor
que todas as nossas preferências estão fundadas numa espécie de padrão racional absoluto.
Não estão. Muitas das nossas práticas (mas não todas) são particularidades exclusivas da
nossa sociedade, e é fácil perder de vista esse facto. Ao recordar-nos isso, a teoria presta um
bom serviço.
As práticas funerárias são um caso exemplar. Os calatinos eram, segundo Heródoto,
"homens que comiam os seus pais" - uma ideia chocante, pelomenos para nós. Mas comer
a carne dos mortos podia ser encarado como um sinal de respeito. Podia ser tomado como
um acto simbólico que declara: queremos que o espírito desta pessoa permaneça em nós.
Talvez fosse esta a ideia dos calatinos. Numa tal maneira de pensar, enterrar os mortos
poderia ser encarado como um acto de rejeição, e queimar o cadáver como um sinal claro de
desprezo. Se isto é difícil de imaginar, então talvez precisemos de alargar a nossa
imaginação. É claro que podemos sentir uma repugnância visceral perante a ideia de comer
carne humana, quaisquer que sejam as circunstâncias. Mas, edepois? Esta repugnância pode
ser apenas, como dizem os relativistas, uma questão de hábito na nossa sociedade.
Há muitas outras matérias sobre as quais tendemos a pensar em termos de objectivamente
certo ou errado e que
52
mais não são do que convenções sociais. Poderíamos fazer uma lista muito longa. Devem as
mulheres cobrir os seios? A exposição pública dos seios é escandalosa na nossa sociedade,
enquanto noutras passa despercebida. Objectivamente falando, não é correcta nem
incorrecta - não há uma razão objectiva para considerar nenhum dos costumes melhor. O
relativismo cultural começa com a preciosa observação de que muitas das nossas práticas
são apenas isto; produtos culturais. Mas depois engana-se, ao inferir do facto de algumas
práticas serem assim que todas têm de ser assim.
A segunda lição relaciona-se com a necessidade de manter o espírito aberto. No processo de
crescimento, cada um de nós adquiriu algumas convicções fortes: aprendemos a aceitar
alguns tipos de conduta e a rejeitar outros. Podemos, ocasionalmente, ver essas convicções
postas à prova. Por exemplo, podem ter-nos ensinado que a homossexualidade é imoral, e
podemos sentir-nos muito desconfortáveis junto de pessoas gay e encará-las como estranhas
e "diferentes". Então alguém sugere que isto pode ser um mero preconceito; que a
homossexualidade não tem nada de mal; que os homossexuais são apenas pessoas como as
outras que, sem o terem escolhido, se sentem atraídas por pessoas do mesmo sexo. Mas, por
termos convicções tão fortes sobre o assunto, pode ser difícil tomar isto a sério. Mesmo
depois de ouvir os argumentos, podemos manter o sentimento inabalável de que os
homossexuais são, de alguma forma, um grupo repugnante.
O relativismo cultural, ao sublinhar que as nossas perspectivas morais podem reflectir
preconceitos da nossa sociedade, fornece um antídoto para este tipo de dogmatismo.
Quando conta a história dos Gregos e Calatinos, Heródoto acrescenta:
Se se propusesse, fosse a quem fosse, que escolhesse de entre todas as tradições culturais as
melhores, cada um, depois de reflectir maduramente, escolheria a sua, convencido que está de que a
tradição em que nasceu é de longe a melhor.
53
Perceber isto pode levar-nos a uma maior abertura de espírito. Podemos compreender que
os nossos sentimentos não são necessariamente percepções daverdade - podem não ser
mais do que o resultado do condicionamento cultural. Assim,quando ouvimos alguém
sugerir que um aspecto do nosso código social não é realmente o melhor, e damos por nós a
resistir a esta sugestão, podemos parar e recordar isto. Podemos ficar então mais abertos à
descoberta da verdade, seja ela qual for.
Podemos, pois, compreender a atracção do relativismo cultural, apesar de a teoria ter sérias
insuficiências. É uma teoria atraente porque se baseia na observação pertinente de que
muitas das práticas e atitudes por nós consideradas tão naturais são na verdade apenas
produtos culturais. Além disso, manter este pensamento firmemente em vista é importante se
quisermos evitar a arrogância e manter o espírito aberto. Isto são aspectos importantes, que
não devem ser tomados de forma ligeira. Mas podemos aceitarestes aspectos sem aceitar
toda a teoria.
54
Capítulo 3
O subjectivismo em ética
Imagine-se qualquer acção reconhecidamente viciosa: homicídio voluntário, por exemplo. Examinemo-la
sob todas as perspectivas, e vejamos se conseguimos encontrar esse facto ou realidade que chamamos vício.
[...] Nunca conseguimos descobri-lo até voltarmos a reflexão para nós mesmos e descobrirmos um
sentimento de reprovação, que nasce em nós, perante essa acção. Eis uma questão de facto; mas é objecto do
sentimento e não da razão.
DAVID HUME, Tratado da Natureza Humana (1740)
3.1 A ideia de base do subjectivismo ético
Em 2001 realizou-se uma eleição municipal em Nova Iorque, equando chegou o momento
do desfile anual do Orgulho Gay todos os candidatos democratas e republicanos
compareceram para desfilar. "Não há um único candidato que se possa descrever como mau
nas questões que nos dizem respeito", afirmou Matt Foreman,director executivo do Empire
State Pride Agenda, uma organização de defesa dos direitos dos homossexuais. Acrescentou
ainda
55
que, "noutras partes do país, as posições aqui defendidas seriam extremamente impopulares
nas urnas, se não mesmo fatais". O Partido Republicano Nacional parece concordar;
pressionado pelos conservadores religiosos fez da oposição aos direitos dos homossexuais
uma parte do seu posicionamento a nível nacional.
O que pensam realmente as pessoas de outras partes do país?O instituto de sondagens
Gallup Poli tem perguntado aos americanos desde 1982: "Pensa que a homossexualidade
deveria ser considerada um estilo de vida alternativo aceitável?" Nesse ano, 34% respondeu
afirmativamente. O número tem vindo, no entanto, a aumentar, e em 2000 uma maioria -
52% - afirmou pensar que a homossexualidade deveria ser considerada aceitável. Isto
significa, é claro, que quase outros tantos pensam de formadiferente. As pessoas de ambos
os lados têm convicções fortes. O reverendo Jerry Falwell falou em nome de muitos quando
afirmou numa entrevista para a televisão: "A homossexualidade é imoral. Os chamados
'direitos dos homossexuais' não são de modo algum direitos,porque a imoralidade não é
correcta." Falwell é baptista. A perspectiva católica é mais elaborada, mas admite também
que o sexo gay não é permissível. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, gays e lésbicas
"não escolhem a sua condição homossexual" e "devem ser aceites com respeito, compaixão
e sensibilidade. Qualquer sinal de discriminação injusta a seu respeito deve ser evitado". Não
obstante, "os actos homossexuais são intrinsecamente doentios" e "não podem ser
aprovados em circunstância alguma". Portanto, para ter vidas virtuosas, as pessoas
homossexuais devem ser castas.
Que atitude devemos tomar? Poderíamos dizer que a homossexualidade é imoral, ou então
que nada tem de mal. Mas há uma terceira alternativa. Poderíamos dizer algo como isto:
As pessoas têm opiniões diferentes, mas no que concerne à moral não há "factos", e ninguém está
"certo". As pessoas simplesmente sentem de forma diferente,e é tudo.
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Este é o pensamento de base por detrás do subjectivismo ético. O subjectivismo ético é a
ideia segundo a qual as nossas opiniões morais se baseiam nos nossos sentimentos e nada
mais. Nesta perspectiva, o "objectivamente" certo ou erradoé coisa que não existe.
E um facto que algumas pessoas são homossexuais e outras heterossexuais; mas não é um
facto que uma coisa seja boa e outra má. Por isso, quando alguém como Falwell afirma que
a homossexualidade está errada, não está a afirmar um factosobre a homossexualidade. Está
apenas, isso sim, a afirmar algo sobre os seus sentimentos face a ela.
O subjectivismo ético não é, naturalmente, apenas uma ideiasobre a avaliação da
homossexualidade. Aplica-se a todas as questões morais. Para dar um exemplo diferente, é
um facto que os nazis exterminaram milhões de pessoas inocentes; mas, segundo o
subjectivismo ético, não é um facto que o que fizeram foi mau. Quando dizemos que as suas
acções foram más estamos apenas a dizer que temos sentimentos negativos em relação a
elas. O mesmo se aplica a qualquer outro juízo moral.
3.2 A evolução da teoria
O desenvolvimento de uma teoria filosófica percorre frequentemente vários estádios. De
início a ideia será apresentada de uma forma crua e simples, e muitas pessoas achá-la-ão
atraente por uma razão ou outra. Mas a ideia é então submetida a uma análise crítica e
descobre-se que tem defeitos. Apresentam-se argumentos contra ela. Nessa altura, algumas
pessoas podem ficar tão impressionadas com as objecções queabandonam totalmente a
ideia, concluindo que não pode estar correcta. Outras, no entanto, podem continuar a
confiar na ideia de base e tentarão, por isso, aprimorá-la,dando-lhe uma formulação
melhorada
57
que não seja vulnerável às objecções. Durante algum tempo poderá parecer que se salvou a
teoria. Mas podem então encontrar-se novos argumentos que lançam dúvidas sobre a nova
versão da teoria. Uma vez mais, as novas objecções podem levar algumas pessoas a
abandonar a ideia, enquanto outras mantêm a f é e tentam salvar a teoria formulando ainda
outra versão nova e "melhorada". O processo de revisão e crítica começará então de novo.
A teoria do subjectivismo ético desenvolveu-se justamente desta maneira. Começou como
uma ideia simples - nas palavras de David Hume, a ideia de que a moralidade é uma
questão de sentimento e não de facto. Mas à medida que se apresentavam objecções à
teoria, e que os seus defensores tentavam responder-lhes, ateoria evoluiu para algo muito
mais sofisticado.
3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples
A versão mais simples da teoria, que expõe a ideia principal mas não tenta aprimorá-la por aí
além, é esta: Quando uma pessoa afirma que algo é moralmente bom ou mau isso significa
que ele ou ela aprovam, ou desaprovam, essa coisa, e nada mais que isso. Por outras
palavras:
X é moralmente aceitável X está correcto X é bom Deve-se fazer X
Eu (o interlocutor) aprovo X
E pela mesma ordem de ideias:
X é moralmente inaceitável
X está errado
X é mau
Não se deve fazer X
Eu (o interlocutor) desaprovo X
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Podemos chamar subjectivismo simples a esta versão da teoria. Exprime a ideia básica do
subjectivismo ético numa forma elementar e simples, e muitas pessoas acharam-na atraente.
No entanto, o subjectivismo simples está aberto a várias objecções, porque tem implicações
contrárias ao que sabemos (ou pelo menos contrárias ao que pensamos saber) sobre a
natureza da avaliação moral. Eis duas das mais proeminentesobjecções.
O subjectivismo simples não dá conta da nossa falibilidade.Ninguém é infalível.
Estamos por vezes errados nas nossas avaliações e quando o descobrimos podemos querer
corrigir os nossos juízos. Mas, se o subjectivismo simples estivesse correcto, isso seria
impossível, porque o subjectivismo simples pressupõe que somos infalíveis.
Considere-se outra vez Falwell, que considera a homossexualidade imoral. Segundo o
subjectivismo simples, Falwell está simplesmente a afirmar que desaprova a
homossexualidade. É claro que há a possibilidade de não estar a falar sinceramente - é
possível que ele não desaprove realmente a homossexualidade, mas esteja simplesmente a
responder às expectativas da sua audiência conservadora. Noentanto, se supusermos que
está a falar sinceramente - se supusermos que Falwell desaprova mesmo a
homossexualidade -, segue-se então que o que ele diz é verdade. Enquanto estiver
honestamente a representar os seus sentimentos não pode estar enganado.
Mas isto contradiz o facto elementar de nenhum de nós ser infalível. Por vezes estamos
errados. Portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
O subjectivismo simples não dá conta do desacordo.
O segundo argumento contra o subjectivismo simples baseia-se na ideia de que esta teoria
não pode explicar a existência de desacordo moral. Matt Foreman não pensa que a
homossexualidade seja imoral. Perante isto, parece que
59
ele e Falwell discordam. Mas repare-se o que o subjectivismo simples sugere quanto a esta
situação.
Segundo o subjectivismo simples, quando Foreman afirma que a homossexualidade não é
imoral está simplesmente a declarar a sua atitude - está a dizer que ele, Foreman, não
desaprova a homossexualidade. Falwell discordaria disso? Não, Falwell estaria de acordo
que Foreman não desaprova a homossexualidade. Simultaneamente, quando Falwell afirma
que a homossexualidade é imoral, está apenas a dizer que ele, Falwell, a desaprova. Como
poderia alguém discordar disso? Assim, segundo o subjectivismo simples, não há desacordo
entre eles; cada um deveria admitir a verdade do que o outro está a dizer. No entanto,
parece evidente que algo não está certo aqui, pois Falwell e Foreman discordam realmente
sobre a questão de saber se a homossexualidade é imoral ou não.
Há uma espécie de frustração eterna implícita no subjectivismo simples: Falwell e Foreman
estão em profundo desacordo; no entanto, não podem sequer apresentar as suas posições de
forma a debater o tema em conjunto. Foreman pode tentar negar o que Falwell afirma, mas,
segundo o subjectivismo simples, apenas consegue mudar de assunto.
O argumento pode ser resumido assim: Quando uma pessoa afirma "X é moralmente
aceitável" e alguém diz "X é moralmente inaceitável", estãoem desacordo. No entanto, se o
subjectivismo simples estivesse correcto não haveria desacordo entre eles. Logo, o
subjectivismo simples não pode estar correcto.
Estes argumentos, e outros semelhantes, mostram que o subjectivismo simples é uma teoria
falhada. Não pode ser sustentada, pelo menos de uma forma tão rígida. Perante tais
argumentos, alguns pensadores preferiram rejeitar o subjectivismo ético no seu todo.
Outros, no entanto, esforçaram-se por produzir uma versão melhorada da teoria que não
fosse vulnerável a tais objecções.
60
3.4 A segunda fase: emotivismo
A versão melhorada é uma teoria que se tornou conhecida como "emotivismo".
Desenvolvida principalmente pelo filósofo americano CharlesL. Stevenson (1908-1979), o
emotivismo tornou-se uma das teorias éticas mais influentesdo século xx. É muito mais
subtil e sofisticada do que o subjectivismo simples.
O emotivismo começa com a observação de que a linguagem é usada de várias maneiras.
Um dos seus usos principais é a afirmação de factos, ou pelo menos a afirmação do que
pensamos serem factos. Podemos, assim, dizer:
"Abraham Lincoln foi presidente dos Estados Unidos." "Tenhoum .encontro às quatro
horas." "A gasolina custa 0,970 cêntimos por litro." "Shakespeare é o autor de Hamlet."
Em cada caso estamos a dizer algo que é verdadeiro ou falso, e o propósito da elocução é,
normalmente, comunicar informação ao ouvinte.
No entanto, há outros propósitos para os quais a linguagem pode ser usada. Suponha-se que
digo: "Fecha a porta!" Esta elocução não é verdadeira nem falsa. Não é uma afirmação de
tipo algum; é uma ordem, o que é algo diferente. O seu propósito não é transmitir
informação; o seu propósito é, antes, levar alguém a fazer qualquer coisa. Não estou a tentar
alterar as crenças de alguém; estou a tentar influenciar-lhe a conduta.
Considere-se elocuções como as seguintes, que não são nem afirmações de factos nem
ordens:
"Um viva por Abraham Lincoln!"
"Ai de mim!"
"Quem me dera que a gasolina não fosse tão cara!"
"Que se dane o Hamlet."
61
Estes são tipos comuns de frases que entendemos com bastante facilidade. Mas nenhuma
delas é "verdadeira" ou "falsa". (Não faz sentido dizer : "É verdade que um viva por
Abraham Lincoln" ou "É falso que ai de mim"). Estas frases não são, recorde-se, usadas
para afirmar factos. São usadas, isso sim, para exprimir asatitudes do interlocutor.
É preciso notar claramente a diferença entre relatar uma atitude e exprimir essa mesma
atitude. Se alguém disser "Gosto de Abraham Lincoln", está a comunicar o facto de ter uma
atitude positiva em relação a Lincoln. Isto é uma afirmaçãode facto, que é verdadeira ou
falsa. Por outro lado, se alguém gritar: "Um viva por Lincoln!", não está a declarar qualquer
tipo de facto, nem mesmo um facto sobre as suas atitudes. Está a exprimir uma atitude, mas
não a relatar que a tem.
Com estes reparos em vista, voltemos agora a atenção para alinguagem moral. Segundo o
emotivismo, a linguagem moral não é uma linguagem de afirmação de factos; não é
normalmente usada para transmitir informação. O seu propósito é diferente. É usada,
primeiro, como um meio de influenciar o comportamento das pessoas. Se alguém diz "Não
deves fazer isso", essa pessoa está a tentar impedir outra de o fazer. A elocução é, pois,
mais parecida a uma ordem do que a uma afirmação de facto; é como se a pessoa tivesse
dito: "Não faças isso!" Em segundo lugar, a linguagem moralé usada para exprimir (e não
para relatar) a atitude de alguém. Afirmar: "Lincoln era umhomem bom", não é o mesmo
que afirmar "Eu gosto de Lincoln", mas é como dizer "Um viva por Lincoln!"
A diferença entre o emotivismo e o subjectivismo simples deve agora ser óbvia. O
subjectivismo simples interpretava as afirmações éticas como afirmações de facto de um tipo
especial - nomeadamente, como relatos da atitude do interlocutor. Segundo o
subjectivismo simples, quando Falwell afirma "A homossexualidade é imoral", isto significa
o mesmo que "Eu (Falwell) desaprovo a homossexualidade"
62
- uma afirmação de facto sobre a atitude de Falwell. O emotivismo, por seu lado,
nega que esta elocução declare qualquer facto, mesmo um facto sobre o próprio
interlocutor. Em vez disso, o emotivismo interpreta a elocução de Falwell como equivalente
a algo como "A homossexualidade - que horror!", ou "Não se envolva em actos
homossexuais!", ou ainda "Quem me dera não existisse homossexualidade ".
Isto pode parecer uma distinção picuinhas e trivial com a qual não vale a pena preocuparmo-
nos. Mas do ponto de vista teórico trata-se, na realidade, de uma diferença importante. Uma
forma de verificar isso é considerar novamente os argumentos contra o subjectivismo
simples. Embora esses argumentos fossem muito embaraçosos para o subjectivismo simples
não afectam em nada o emotivismo.
1. O primeiro argumento era que se o subjectivismo simples está correcto, então somos
todos infalíveis no que respeita aos juízos morais; mas nósnão somos, por certo, infalíveis;
portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
Este argumento só é eficaz porque o subjectivismo simples interpreta os juízos morais como
afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. "Infalível"significa que os juízos de
alguém são sempre verdadeiros; e o subjectivismo simples atribui aos juízos morais um
significado que será sempre verdadeiro desde que o interlocutor seja sincero. É por isso que,
nessa teoria, as pessoas acabam por ser infalíveis. O emotivismo, por outro lado, não
interpreta os juízos morais como afirmações verdadeiras ou falsas; e por isso o mesmo
argumento não funciona contra ele. Uma vez que as ordens e as expressões de atitudes não
são verdadeiras nem falsas as pessoas não podem ser "infalíveis" em relação a elas;
2. O segundo argumento tinha que ver com o desacordo moral.Se o subjectivismo simples
estiver correcto, então quando uma pessoa afirma "X é moralmente aceitável" e
63
outra pessoa afirma "X é moralmente inaceitável" não estão realmente a discordar. Estão,
na verdade, a falar de coisas inteiramente diferentes - cada uma está a fazer uma afirmação
sobre a sua atitude, com a qual a outra poderá prontamente concordar. Mas, prossegue o
argumento, as pessoas que dizem estas coisas estão realmente em desacordo, e por isso o
subjectivismo simples não pode estar correcto.
O emotivismo sublinha que há mais de uma maneira pela qual as pessoas podem discordar.
Compare-se estes dois tipos de desacordo:
Primeiro: Uma pessoa pensa que Lee Harvey Oswald agiu sozinho no assassinato de John Kennedy, e
outra pensa que houve conspiração. Isto é um desacordo sobre os factos - uma pessoa pensa ser
verdadeiro algo que outra pensa ser falso.
Segundo: Uma pessoa defende legislação para controlo de armas de fogo e outra opõe-se a isso.
Neste caso não são as crenças das pessoas que estão em conflito mas sim os seus desejos - uma
quer que aconteça algo que a outra não quer. (Ambas podem estar de acordo sobre todos os factos
que rodeiam a controvérsia sobre o controlo de armas de fogo e mesmo assim tomar posições
diferentes quanto ao que querem ver realizado.)
No primeiro tipo de desacordo, acreditamos em coisas diferentes, não podendo ambas ser
verdadeiras. No segundo, queremos coisas diferentes, não podendo ambas realizar-se.
Stevenson chama desacordo de atitude ao último tipo de desacordo, e distingue-o do
desacordo sobre atitudes. Duas pessoas podem concordar em todos os juízos que fazem
sobre atitudes: concordam que uma se opõe ao controlo de armas, e que a outra é a favor.
Mas mesmo assim não estão de acordo nas suas atitudes. Os desacordos morais, afirma
Stevenson, têm esta forma: são desacordos de atitude. O subjectivismo simples não podia
explicar o
64
desacordo moral porque este desaparecia, uma vez que interpretava os juízos morais como
afirmações sobre atitudes.
O subjectivismo simples era uma tentativa de captar a ideiade base do subjectivismo ético e
exprimi-la de uma forma aceitável. Meteu-se em sarilhos porque presumiu que os juízos
morais são declarações sobre atitudes. O emotivismo era melhor porque se libertou da
pressuposição problemática e a substituiu por uma perspectiva mais sofisticada do
funcionamento da linguagem moral. Mas, como veremos de seguida, o emotivismo teve
também as suas dificuldades. Um dos seus principais problemas era não poder dar conta do
lugar da razão na ética.
3.5 Existirão factos morais?
Um juízo moral - ou qualquer outro tipo de juízo de valor- tem de ser apoiado em boas
razões. Se alguém disser que uma determinada acção seria errada, pode-se perguntar por
que razão seria errada e, se não houver uma resposta satisfatória, pode-se rejeitar esse
conselho por ser infundado. Neste aspecto, os juízos moraissão diferentes de meras
expressões de preferência pessoal. Se alguém diz "eu gosto de café", não necessita ter uma
razão para isso; poderá estar a declarar o seu gosto pessoal e nada mais. Mas os juízos
morais requerem o apoio de razões, sendo, na ausência dessas razões, meramente
arbitrários.
Qualquer teoria adequada da natureza da avaliação moral deveria, portanto, ser capaz de dar
conta das relações entre os juízos morais e as razões que os sustentam. Foi justamente neste
aspecto que o emotivismo fracassou.
Quais eram os pressupostos do emotivismo quanto a razões? Recorde-se que para o
emotivismo um juízo moral é como uma ordem - é basicamente um meio verbal de tentar
influenciar as atitudes e conduta de uma pessoa.
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A concepção das razões que naturalmente acompanha esta ideia de base é que as razões são
quaisquer considerações que tenham o efeito desejado, que influenciem as atitudes e
comportamentos da forma desejada. Mas repare-se no que istosignifica. Suponha-se que
estou a tentar convencer alguém de que Goldbloom é um homemmau (estou a tentar
influenciar a atitude dessa pessoa face a ele) e essa pessoa resiste. Sabendo que essa pessoa
é um fanático, digo "O Goldbloom, como sabe, é judeu". Issomuda tudo; a atitude da
pessoa muda, e concorda que Goldbloom é um patife. Poderia então parecer que, para o
emotivismo, o facto de Goldbloom ser judeu é, pelo menos nalguns contextos, uma razão a
favor do juízo de que é um homem mau. De facto, Stevenson defende justamente esta
perspectiva. Na sua obra clássica Ethics and Language (1944), afirma: "Qualquer afirmação
sobre qualquer facto que qualquer interlocutor considere susceptível de alterar atitudes
pode ser aduzida como uma razão a favor ou contra um juízo ético."
Era óbvio que algo tinha corrido mal. Não pode ser verdade que qualquer facto possa contar
como razão a favor de qualquer juízo. Primeiro de tudo, o facto tem de ser relevante para o
juízo, e a influência psicológica não traz necessariamente consigo relevância. (O facto de
alguém ser judeu não é relevante no momento de avaliar a sua maldade, independentemente
das associações psicológicas no espírito de quem quer que seja.) Há uma lição pequena e
outra grande a retirar daqui. A pequena é que uma determinada teoria, o emotivismo, parece
estar errada e, com ela, toda a concepção do subjectivismo ético fica em causa. A grande
está relacionada com a importância da razão na ética.
Hume sublinhava que se examinarmos as acções malévolas - "homicídio voluntário, por
exemplo" - não encontramos "matéria de facto" que corresponda à maldade. Excluindo as
nossas atitudes, o universo não contém tais factos. Esta tomada de consciência tem
frequentemente sido entendida como motivo de desespero, porque as pessoas
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presumem que isto deve significar que os valores não têm estatuto "objectivo". Mas porque
razão deveria a observação de Hume surpreender-nos? Os valores não são o tipo de coisas
que possam existir como existem as estrelas e os planetas. (Concebido desta maneira, qual
seria o aspecto de um "valor"?) Um erro fundamental no qualincorrem muitas pessoas
quando pensam sobre este assunto é partir do princípio de que há apenas duas
possibilidades:
1. Há factos morais da mesma maneira que há factos sobre estrelas e planetas; ou
2. Os nossos valores não são mais que a expressão dos nossos sentimentos subjectivos.
Isto é um erro porque descura uma terceira possibilidade crucial. As pessoas não têm apenas
sentimentos, têm também razão, e isso faz uma grande diferença. Pode pois ser que
3. As verdades morais são verdades da razão; isto é, um juízo moral é verdadeiro se for
sustentado por razões melhores que os juízos alternativos.
Assim, se quisermos entender a natureza da ética, devemos atentar nas razões. Uma verdade
em ética é uma conclusão apoiada por razões: a resposta correcta a uma questão moral é
simplesmente a resposta que tem do seu lado o peso da razão. Tais verdades são objectivas
no sentido em que são verdadeiras independentemente do que possamos querer ou pensar.
Não podemos tornar algo bom ou mau pelo simples desejo de que seja assim, porque não
podemos simplesmente querer que o peso da razão esteja a favor ou contra algo. Isto
explica igualmente a nossa falibilidade: podemos enganar-nos sobre o que é bom ou mau
porque podemos estar enganados sobre o que a razão recomenda. A razão diz o que diz,
alheia às nossas opiniões e desejos.
67
3.6 Haverá provas em ética?
Se o subjectivismo ético não é verdadeiro, porque razão se sentem algumas pessoas atraídas
por ele? Uma das razões tem que ver com o facto de a ciência fornecer o nosso paradigma
de objectividade, e quando comparamos a ética à ciência, à ética parecem faltar as
características que tornam a ciência tão irresistível. Por exemplo, a inexistência de provas
em ética parece uma grande deficiência. Podemos provar que o mundo é redondo, que não
existe o maior número primo e que os dinossauros viveram antes dos seres humanos. Mas
poderemos provar que o aborto é certo ou
errado?
A ideia geral de que os juízos morais não se podem provar éapelativa. Qualquer pessoa que
já tenha debatido um tema como o aborto sabe como pode ser frustrante tentar "provar"
que o seu ponto de vista é correcto. No entanto, se examinarmos esta ideia mais de perto,
revela-se dúbia.
Suponha-se que examinamos um assunto muito mais simples queo aborto. Um aluno
considera injusto um determinado teste aplicado por um professor. Trata-se, claramente, de
um juízo moral - a justiça é um valor moral essencial. Estejuízo pode ser provado? O
estudante poderia referir que o teste abrangia em pormenor assuntos sem importância,
ignorando outros que o professor tinha considerado importantes. O teste incluía ainda
perguntas sobre alguns assuntos que não tinham sido tratados nem nas aulas teóricas nem
nas práticas. Além disso, o teste era tão longo que nem os melhores alunos podiam terminá-
lo no tempo permitido (e foi cotado partindo do princípio de que deveria ser feito até ao
fim).
Suponha-se que tudo isto é verdade. E suponha-se ainda que o professor, quando lhe são
pedidas explicações, não tem argumentos para se defender. Na verdade, o professor, que é
muito inexperiente, parece confuso com toda
68
a situação e não parece ter uma ideia clara do que estava afazer. Assim sendo, não terá o
aluno provado que o teste foi injusto? Que mais poderíamos desejar a título de prova? É
fácil imaginar outros exemplos para estabelecer a mesma coisa:
Jones é um homem mau. Tem o hábito de mentir; manipula as pessoas; engana-as quando pensa
poder fazê-lo sem ser descoberto; é cruel para os outros; eassim por diante;
O Dr. Smith ê irresponsável. Baseia os seus diagnósticos emavaliações superficiais; bebe antes de
executar cirurgias delicadas; recusa ouvir os conselhos de outros médicos; e assim por diante;
Uma determinada vendedora de automóveis é desonesta. Esconde os defeitos dos automóveis;
aproveita-se de pessoas sem recursos pressionando-as a pagar preços exorbitantes por automóveis
que sabe terem problemas; coloca anúncios publicitários enganadores em qualquer jornal que aceite
publicá-los; e assim por diante.
O processo de apresentar razões pode ainda ser levado um passo mais adiante. Se uma das
nossas razões para afirmar que Jones é um homem mau é ele mentir habitualmente, podemos
prosseguir e explicar por que motivo mentir é mau. Mentir émau, primeiro, porque
prejudica as pessoas. Se alguém dá uma falsa informação a outra pessoa e essa pessoa
confiar nela, as coisas podem correr mal de diversas maneiras. Segundo, mentir é mau por
ser uma violação da confiança. Confiar noutra pessoa significa ficarmos vulneráveis e
desprotegidos. Quando se confia em alguém, acredita-se simplesmente no que essa pessoa
diz, sem tomar precauções; e quando essa pessoa mente, aproveita-se da nossa confiança. É
por isso que ser enganado constitui uma ofensa tão íntima epessoal. Por fim, a regra
exigindo que não se minta é necessária para a sociedade poder existir - se não pudéssemos
partir do princípio de que as outras pessoas dirão a verdade, a comunicação
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tornar-se-ia impossível e, se a comunicação fosse impossível, a sociedade seria impossível.
Portanto, podemos apoiar os nossos juízos em boas razões, epodemos oferecer explicações
do porquê de essas razões terem importância. Se podemos fazer tudo isto, e ainda mostrar
que nada de semelhante pode ser feito pelo lado contrário, que mais "provas" poderia
alguém desejar? É absurdo afirmar, perante tudo isto, que os juízos éticos não podem ser
mais que "meras opiniões".
No entanto, a impressão de que os juízos morais são "insusceptíveis de prova" é
extraordinariamente persistente. Por que motivo acreditam as pessoas nisto? Podem
mencionar-se três pontos.
Primeiro, quando se exige provas as pessoas têm muitas vezes em mente um padrão
inadequado. Estão a pensar em observações e experiências científicas; e se não há
observações e experiências similares em ética, concluem quenão há provas. Mas em ética o
pensamento racional consiste em fornecer razões, analisar argumentos, estabelecer e
justificar princípios, e outras coisas que tais. O facto deo raciocínio ético ser diferente do
raciocínio científico não o torna deficiente.
Segundo, quando pensamos em "provar a correcção das nossas opiniões éticas", tendemos a
pensar automaticamente nas questões mais difíceis. A questão do aborto, por exemplo, é
muito complicada e difícil. Se pensarmos apenas em questõescomo esta, torna-se fácil
acreditar que as "provas" em ética são impossíveis. Mas poderia dizer-se o mesmo das
ciências. Há matérias complicadas sobre as quais os físicosnão conseguem chegar a acordo;
se nos concentrássemos apenas nelas poderíamos concluir quenão há provas em física. Mas,
é claro, há muitos assuntos mais simples sobre os quais todos os físicos competentes estão
de acordo. De modo semelhante, em ética há muitos assuntos mais simples sobre os quais
todas as pessoas razoáveis estão de acordo.
70
Por fim, é fácil misturar duas coisas que são na realidade muito diferentes:
1. Provar a correcção de uma ideia;
2. Persuadir alguém a aceitar as nossas provas.
Podemos ter um argumento exemplar que alguém recusa aceitar. Mas isso não significa que
tenha de estar alguma coisa errada com o argumento ou que a"prova" seja, de alguma
forma, inatingível. Pode apenas significar que alguém está a ser teimoso. Quando isto
acontece não deveria surpreender-nos. Em ética é de esperarque as pessoas por vezes
recusem dar ouvidos à razão. Afinal de contas, a ética podeexigir a realização de coisas que
não queremos fazer, sendo, pois, muito previsível que tentemos evitar ouvir as suas
exigências.
3.7 A questão da homossexualidade
Para concluir podemos voltar ao debate sobre a homossexualidade. Se atendermos às razões
relevantes, o que descobrimos? O facto mais pertinente é que os homossexuais seguem o
único tipo de vida que lhes dá oportunidade de ser felizes.O sexo é um impulso
particularmente forte - não é difícil perceber porquê - e poucas pessoas são capazes de
conceber uma vida feliz sem a satisfação das suas necessidades sexuais. Não devemos, no
entanto, centrar-nos apenas no sexo. Mais de um escritor gay afirmou já que a
homossexualidade não se centra em saber com quem se tem sexo; mas sim em saber quem se
ama. Um vida boa, para gays e lésbicas, assim como para qualquer outra pessoa, pode
significar viver com alguém que se ama, com tudo o que issoenvolve. Além disso, as
pessoas não escolhem a sua orientação sexual; tanto homossexuais como heterossexuais
descobrem ser o que são sem
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terem tido qualquer voto na matéria. Assim, afirmar que as pessoas não deveriam exprimir a sua
homossexualidade é, com frequência, condená-las a uma vida de infelicidade. Se pudesse demonstrar-
se que gays e lésbicas representam um tipo qualquer de ameaça para o resto da sociedade, isso seria
um poderoso argumento a favor do lado contrário. Na verdade, as pessoas que partilham a
perspectiva de Falwell têm defendido com frequência esta ideia. Mas, quando examinadas de forma
desapaixonada, essas ideias têm sempre revelado não ter base factual. Além da natureza das suas
relações sexuais, não há qualquer diferença, entre homossexuais e heterossexuais de índole moral ou
na participação na sociedade. A ideia de que os homossexuais são de alguma forma perniciosos,
revela-se um mito muito semelhante à ideia de que os negrossão preguiçosos ou os judeus avarentos.
Õ processo contra a homossexualidade reduz-se, assim, à afirmação habitual de que é "contrária à
natureza", ou à afirmação frequentemente avançada por conservadores religiosos de que é uma
ameaça dos "valores da família". Quanto ao primeiro argumento, é difícil saber o que fazer dele,
porque a noção de "contrário à natureza" é muito vaga. O que significa exactamente? Existem pelo
menos três significados possíveis.
Primeiro, "contrário à natureza" pode ser tomado como uma noção estatística. Neste sentido, uma
qualidade humana não é natural se não é partilhada pela maior parte das pessoas. A
homossexualidade seria contrária à natureza neste sentido, mas o mesmo poderia dizer-se de ser
canhoto. Isto não constitui, claramente, um motivo para a considerar má. Pelo contrário, as
qualidades raras são frequentemente boas;
Segundo, o significado de "contrário à natureza" poderia ser ligado à ideia da finalidade de uma
coisa. As várias partes do nosso corpo parecem servir finalidades particulares. A finalidade dos olhos
é ver, e a finalidade do cora-
72
cão é bombear sangue. De modo idêntico, a finalidade dos nossos órgãos genitais é a procriação: o
sexo serve para fazer meninos. Poderia então defender-se que o sexo homossexual é contrário à
natureza porque é uma actividade sexual separada da sua finalidade natural.
Isto parece exprimir o que muitas pessoas pensam quando contestam a homossexualidade por ser
contrária à natureza. No entanto, se o sexo homossexual fosse condenado por esta razão, um sem-
número de outras práticas sexuais seria igualmente condenado: a masturbação, o sexo oral e até
mesmo o sexo praticado por mulheres após a menopausa. Estaspráticas seriam tão "contrárias à
natureza" (e, presumivelmente, tão más) como o sexo homossexual. Mas não há qualquer razão para
aceitar estas conclusões, porque toda esta linha de raciocínio é incorrecta. Baseia-se no pressuposto
de que é errado usar partes do nosso corpo para algo mais do que as suas finalidades naturais, e
isto é certamente falso. A "finalidade" dos olhos é ver; será, portanto, errado usar os olhos para
namoriscar ou fazer um sinal? Da mesma maneira, a "finalidade" dos dedos pode ser agarrar e
mexer; será por isso errado estalar os dedos para acompanhar a música? Seria fácil dar outros
exemplos. A ideia de que é errado usar as coisas para outras finalidades que não as "naturais" não
pode ser defendida convenientemente, logo esta versão do argumento falha;
Terceiro, uma vez que a expressão contrário à natureza soa a algo sinistro, poderia ser entendida
simplesmente como termo de avaliação. Talvez signifique algo como "contrário àquilo que uma
pessoa deveria ser". Mas se é isso que "contrário à natureza" significa, então, dizer que algo é errado
porque é contrário à natureza seria fazer uma afirmação frívola. Seria como dizer que isto ou aquilo
é errado porque é errado. Este tipo de observação não fornece, naturalmente, qualquer razão para
condenar coisa alguma.
A ideia de que a homossexualidade é contrária à natureza, ede que tem algo de errado, é irresistível
para
73
muitas pessoas. No entanto, tudo indica que não é um argumento sólido. Se não pudermos
encontrar uma explicação melhor para "contrário à natureza"toda esta linha de raciocínio
terá de ser rejeitada.
Mas, e quanto à afirmação, frequentemente defendida por fundamentalistas religiosos, de
que a homossexualidade é contrária aos "valores da família"? Falwell, entre outros, afirma
com frequência que a sua condenação da homossexualidade fazparte do seu apoio "à
família", assim como a sua condenação do divórcio, do aborto, da pornografia e do
adultério. Mas como se opõe ao certo a homossexualidade aosvalores familiares? A luta
pelos direitos dos homossexuais acarreta uma série de propostas destinadas a facilitar a
homossexuais e lésbicas, a constituição de famílias - há reivindicações para o
reconhecimento social de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, para o direito à
adopção de crianças, e outras mais. Os activistas homossexuais acham irónico que os
proponentes dos valores da família queiram negar-lhes precisamente esses direitos.
Há outro argumento, especificamente religioso, que tem de ser mencionado, a saber, que a
homossexualidade é condenada na Bíblia. No Levítico 18:22 lê-se: "Não podes deitar-te
com homem como com mulher; é uma abominação." Alguns comentadores afirmaram que,
ao contrário das aparências, a Bíblia não é assim tão severa para a homossexualidade; e
explicam como cada passagem relevante (ao que parece existem nove) deve ser entendida.
Mas suponhamos que a Bíblia ensina realmente que a homossexualidade é uma abominação.
O que podemos inferir daí? Os livros sagrados ocupam, naturalmente, um lugar venerado na
vida religiosa, mas há dois problemas em confiar no texto literal para orientação. Um dos
problemas é prático e o outro é teórico.
O problema prático é que os textos sagrados, especialmente os mais antigos, dão-nos muito
mais do que pedimos. Poucas pessoas terão realmente lido o Levítico, mas,
74
os que o fizeram, verificaram que além de proibir a homossexualidade, fornece instruções
pormenorizadas para tratar a lepra, requisitos detalhados sobre sacrifícios pelo fogo e
procedimentos complexos para lidar com mulheres menstruadas. Há um número
surpreendente de regras sobre as filhas de sacerdotes, inclusivamente a anotação de que se a
filha de um sacerdote "se prostituir" deverá ser queimada viva (21:9). O Levítico proíbe a
ingestão de gorduras (7:23), proíbe uma mulher de ir à missa até 42 dias depois de dar à luz
(12:4-5) e proíbe ainda ver o nosso tio despido. Esta última circunstância é, por acaso,
igualmente chamada uma abominação (18:14, 26). Diz também que a barba deve ter uma
forma quadrada (19:27) e que devemos comprar escravos em Estados vizinhos (25:44). Há
muito mais, mas isto basta para ilustrar a ideia.
O problema é que não podemos concluir que a homossexualidade é uma abominação
simplesmente porque isso é dito no Levítico, a menos que estejamos igualmente dispostos a
concluir que as outras instruções são exigências morais; alguém que tentasse viver segundo
todas estas regras no século xxi ficaria maluco. Poderíamos, é claro, conceder que as regras
sobre a menstruação, e as outras, eram características de uma cultura antiga, e não são
obrigatórias para nós hoje em dia. Isso seria sensato. Mas se dissermos isso, a porta fica
aberta para dizer o mesmo sobre as regras contra a homossexualidade.
Seja como for, nada pode ser moralmente certo ou errado apenas porque uma autoridade
assim o afirma. Se os preceitos num texto sagrado não são arbitrários, tem de haver uma
razão que os explique - devemos poder perguntar por que razão a Bíblia condena a
homossexualidade e ter uma resposta. Essa resposta daria então a verdadeira explicação do
motivo pelo qual é errada. Este é o problema "teórico" de que falei: na lógica do
pensamento moral, a referência ao texto é abandonada e a razão por detrás da afirmação (se
houver alguma) toma o seu lugar.
75
Mas o que está em causa não é a homossexualidade. O que está em causa é a natureza do
pensamento moral. O pensamento e a conduta morais consistemem pesar razões e ser
guiado por elas. Mas ser guiado pela razão é muito diferente de seguir os sentimentos.
Quando sentimos algo intensamente, podemos ser tentados a ignorar a razão e seguir os
sentimentos. Mas ao fazer isso, estaremos a fazer uma escolha completamente fora do
âmbito do pensamento moral. É por isso que, ao centrar-se em atitudes e sentimentos, o
subjectivismo ético parece seguir na direcção errada.
76
xxx
Capítulo 4
Dependerá a moralidade da religião
O bem consiste em fazer sempre o que Deus quer em qualquer momento.
EMJL BRUNNER, The Divine Imperatme (1947)
Eu respeito as divindades. Mas não me baseio nelas.
MUSASHI MIYAMOTO, no Templo Ichijoji
(CA. 1608)
4.1 A suposta ligação entre moralidade e religião
Em 1984 o governador Mário Cuomo, de Nova Iorque, anunciou que iria nomear um painel
especial para o aconselhar em questões éticas. O governadorsublinhou que, "gostemos ou
não, estamos cada vez mais envolvidos em questões de vida ou de morte". Como exemplos,
mencionou o aborto, o problema das crianças deficientes, o direito à morte e a reprodução
assistida. O propósito do painel seria fornecer ao governador "assistência especializada"
77
para pensar sobre as dimensões morais destas e doutras matérias.
Mas quem, exactamente, deveria ocupar um lugar num tal painel? A resposta diz-nos muito
sobre quem, nos EUA, é considerado a voz da moralidade. A resposta é: representantes da
religião organizada. Segundo o New York Times, o "Mr. Cuomoafirmou, durante uma visita
ao St. Francis College, em Brooklyn, que tinha convidado católicos romanos, protestantes e
líderes judaicos para integrar o grupo".
Poucas pessoas, pelo menos nos Estados Unidos, ficariam surpreendidas. Entre as
democracias ocidentais, os EUA são um país invulgarmente religioso. Nove em dez
americanos afirmam acreditar num Deus pessoal; na Dinamarcae Suécia os números são
apenas de um em cinco. Não é invulgar os padres e sacerdotes serem tratados como peritos
em moralidade. A maioria dos hospitais, por exemplo, tem comités de ética, e estes comités
incluem normalmente três tipos de membros: profissionais desaúde para aconselhar sobre
matérias técnicas, advogados para tratar dos problemas legais e representantes religiosos
para lidar com as questões morais. Quando os jornais queremcomentários sobre as
dimensões éticas de um caso, dirigem-se ao clero, e o clerotem todo o prazer em dar uma
resposta. Presume-se que padres e sacerdotes são conselheiros sábios que darão conselhos
morais sensatos quando for necessário.
Porque motivo são os clérigos olhados desta forma? A razão não é terem provado ser
melhores ou mais sábios que as outras pessoas - enquanto grupo, não parecem ser nem
melhores nem piores do que as outras pessoas. Há uma razão mais profunda para serem
encarados como se tivessem um conhecimento moral especial. No pensamento popular, a
moralidade e a religião são inseparáveis: as pessoas pensamhabitualmente que a moralidade
só pode ser compreendida no contexto da religião. Por isso,uma
78
DEPENDERÁ A MORALIDADE DA RELIGIÃO'
vez que os sacerdotes são porta-vozes da religião, presume-se que têm de ser também porta-
vozes da moral.
Não é difícil ver por que motivo as pessoas pensam assim. Quando visto de uma perspectiva
não-religiosa, o universo parece um lugar frio e sem sentido, destituído de valor ou
objectivo. No seu ensaio "A Free Man's Worship", escrito em1902, Bertrand Russell
exprimiu o que chamou a visão "científica" do mundo:
Que o Homem é o produto de causas desconhecedoras do fim que estavam a atingir; que a sua
origem, crescimento, esperanças e medos, os seus amores e crenças, são o mero resultado da
disposição acidental de átomos; que nenhum fogo, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de
pensamento ou sentimento podem preservar uma vida individual para lá da sepultura; que todos os
esforços de todas as idades, toda a devoção, toda a inspiração, todo o brilho solar do génio humano,
estão condenados à extinção na vasta morte do sistema solar, e que todo o templo das conquistas
humanas terá inevitavelmente de ser enterrado sob os destroços de um universo em ruínas - todas
estas coisas, se não são indisputáveis, estão, ainda assim,tão próximas da certeza, que nenhuma
filosofia que as rejeite pode esperar perdurar. Somente apoiada nestas verdades, só nas sólidas
fundações do desespero inflexível, pode a habitação da almaser doravante construída de forma
segura.
De uma perspectiva religiosa, no entanto, as coisas têm umaaparência muito diferente. O
judaísmo e o cristianismo ensinam que o mundo foi criado por um Deus de amor e todo-
poderoso para nos conceder uma morada. Por outro lado, fomos criados à sua imagem, para
ser seus filhos. O mundo não é, assim, destituído de sentido e propósito. É, isso sim, o palco
no qual os planos e objectivos de Deus são concretizados. Oque poderia, pois, ser mais
natural do que pensar que a "moralidade" é uma parte da perspectiva religiosa do mundo,
enquanto o mundo do ateu não tem qualquer lugar para os valores?
79
4.2 A teoria dos mandamentos divinos
Nas principais tradições teístas, incluindo o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, Deus é
concebido como um legislador que estabeleceu regras para nós obedecermos. Ele não nos
obriga a obedecer-lhes. Fomos criados como seres livres, podendo por isso escolher aceitar
ou rejeitar os seus mandamentos. Mas se quisermos viver como devemos viver, temos de
seguir as leis divinas. Esta concepção foi elaborada por alguns teólogos e transformada
numa teoria sobre a natureza do bem e do mal conhecida comoteoria dos mandamentos
divinos. Esta teoria afirma, essencialmente, que "moralmente certo" significa "ordenado por
Deus" e "moralmente errado" significa "proibido por Deus".
Esta teoria tem várias características atraentes. Solucionade imediato o velho problema
sobre a objectividade da ética. A ética deixa de ser uma questão de sentimento pessoal ou
uso social. Saber se algo é certo ou errado torna-se perfeitamente objectivo: é correcto se
Deus o ordena, e errado se deus o proíbe. Além disso, a teoria dos mandamentos divinos
sugere uma resposta para a questão perene de saber por que razão vale a pena
preocuparmo-nos com a moralidade. Porque não esquecer a "ética" e preocuparmo-nos
apenas connosco mesmos? Se a imoralidade é a violação dos mandamentos de Deus, há uma
resposta fácil para isso: no dia do juízo final teremos de prestar contas.
A teoria enfrenta, no entanto, problemas sérios. Naturalmente, os ateus não a aceitam,
porque não acreditam na existência de Deus. Mas mesmo para os crentes há dificuldades. O
problema principal foi primeiro detectado por Platão, o filósofo grego que viveu 400 anos
antes do nascimento de Jesus.
Os escritos de Platão tinham a forma de diálogos, normalmente entre Sócrates e um ou mais
interlocutores. Num desses diálogos, o Eutifron, há uma discussão sobre se "correcto"
poderá ser definido como "aquilo que os deuses
80
ordenam". Sócrates mostra-se céptico e pergunta: "Um comportamento é correcto porque
os deuses o ordenam, ou os deuses ordenam-no porque é correcto?" Esta é uma das
perguntas mais famosas da história da filosofia. O filósofobritânico Antony Flew sugere que
"um bom teste da aptidão de uma pessoa para a filosofia é averiguar se consegue
compreender a sua força e significado".
O seu significado é que se aceitarmos a concepção teológicade correcto e errado, somos
apanhados num dilema. A pergunta de Sócrates exige que clarifiquemos o que queremos
dizer. Há duas coisas que podemos querer dizer, e ambas desembocam em problemas.
1. Primeiro, poderíamos querer dizer que a conduta correctaé correcta porque Deus a
ordena. Por exemplo, segundo o Livro do Êxodo 20:16, Deus ordena que digamos a
verdade. Aceitando esta opção, a razão pela qual devemos dizer a verdade é simplesmente
Deus tê-lo ordenado. Para lá do mandamento divino, dizer a verdade não é bom nem mau. É
a ordem de Deus que torna a veridicidade correcta.
Mas isto dá origem a problemas, pois retrata as ordens divinas como arbitrárias. Isso
significa que Deus poderia com a mesma facilidade ter-nos dado mandamentos diferentes.
Poderia ter-nos ordenado para sermos mentirosos, e nesse caso mentir, em vez de dizer a
verdade, seria correcto. (Poderíamos ser tentados a responder: "Mas Deus nunca nos
mandaria mentir." Mas, porque não? Se ele apoiasse de factoa mentira, Deus não estaria a
ordenar-nos a realização do mal, pois os seus mandamentos tornariam a mentira correcta.)
Recordemos que, segundo esta perspectiva, a honestidade nãoera correcta antes de Deus a
ordenar. Portanto, ele poderia não ter mais razões para a ordenar do que para ordenar o seu
contrário; por isso, do ponto de vista moral, o seu mandamento é arbitrário.
Outro problema é que, nesta perspectiva, a doutrina da bondade de Deus perde o sentido. É
importante para os crentes Deus não ser apenas todo-poderoso e omnisciente,
81
mas também bom; mas, se aceitarmos a ideia de que bom e mause definem por referência à
vontade de Deus, esta noção perde o sentido. O que poderia querer dizer a afirmação de que
os mandamentos de Deus são bons? Se "X é bom" significa "X é ordenado por Deus",
então, "os mandamentos de Deus são bons" significaria apenas "os mandamentos de Deus
são ordenados por Deus", um truísmo vazio. Em 1686, Leibnizobservou no seu Discurso
de Metafísica:
Assim, ao afirmar-se que as coisas não são boas por regra alguma de bondade, mas unicamente pela
vontade de Deus, destrói-se, parece-me, sem se dar conta, todo o amor de Deus e toda a sua glória.
Pois porquê louvá-lo pelo que fez, se seria igualmente de louvar se tivesse feito precisamente o
contrário?
Assim, se escolhermos a primeira das duas opções de Sócrates, ficamos aparentemente com
consequências que até as pessoas mais religiosas considerariam inaceitáveis.
2. Há uma maneira de evitar estas consequências perturbadoras. Podemos seguir a segunda
das opções de Sócrates. Não precisamos afirmar que a conduta correcta o é por ser
ordenada por Deus. Podemos afirmar, ao invés, que Deus nos ordena que façamos certas
coisas porque são correctas. Deus, que é infinitamente sábio, apercebe-se de que é
preferível a veridicidade ao logro, e por isso ordena-nos que sejamos verazes; vê que matar
é errado, e por isso ordena que não matemos; e assim por diante para todas as regras
morais.
Se aceitarmos esta opção, evitamos as consequências incómodas que arruinaram a primeira
alternativa. Os mandamentos de Deus não são arbitrários; são o resultado do seu sábio
discernimento do que é melhor. A doutrina da bondade de Deus fica preservada: afirmar que
os seus mandamentos são bons significa que ele ordena apenas o que, em perfeita sabedoria,
verifica ser o melhor.
82
Infelizmente, esta segunda opção conduz, no entanto, a um problema diferente, igualmente
perturbador. Ao seguir esta opção, abandonámos a concepção teológica de correcto e
errado - quando dizemos que Deus ordena que sejamos verazesporque a veridicidade é
correcta, estamos a reconhecer um padrão de bem e mal moralque é independente da
vontade de Deus. A rectidão existe prévia e independentemente dos mandamentos de Deus,
e é a razão mesma dos mandamentos. Assim, se queremos saberpor que devemos ser
verazes, a resposta "Porque Deus no-lo ordena" não é esclarecedora, pois podemos ainda
perguntar "Mas porque razão Deus o ordena?" e a resposta a essa questão fornecerá a
razão pela qual a veridicidade é uma coisa boa.
Tudo isto pode ser resumido no argumento seguinte:
1. Suponhamos que Deus ordena a realização do bem moral. Então ou a) as acções
correctas são correctas porque ele as ordena ou b) ele ordena-as porque são correctas;
2. Se seguirmos a opção a, os mandamentos de Deus são, do ponto de vista moral,
arbitrários; além disso, a doutrina da bondade de Deus perde todo o sentido;
3. Se seguirmos a opção b, teremos então reconhecido um padrão de bem e mal moral
independente da vontade de Deus. Teremos, com efeito, abandonado a concepção teológica
de bem e mal moral;
4. Logo, temos de encarar os mandamentos de Deus como arbitrários e abandonar a
doutrina da bondade de Deus, ou admitir que há um padrão debem e mal moral
independente da sua vontade e abandonar a concepção teológica de bem e mal moral;
5. Do ponto de vista religioso, é inaceitável encarar os mandamentos de Deus como
arbitrários ou abandonar a doutrina da bondade de Deus;
83
6. Logo, mesmo do ponto de vista religioso, tem de se aceitar um padrão de bem e mal
moral independente da vontade de Deus.
Muitas pessoas religiosas pensam que têm de aceitar uma concepção teológica de bem e mal
moral porque seria ímpio não o fazer. Sentem, de alguma forma, que, se acreditam em Deus,
devem afirmar que o bem e o mal moral se definem relativamente à sua vontade. Mas este
argumento sugere outra coisa: sugere que, pelo contrário, aprópria teoria dos mandamentos
divinos conduz a resultados ímpios, pelo que uma pessoa devota não a deveria aceitar. De
facto, alguns dos maiores teólogos, como São Tomás de Aquino (1225-1274), rejeitaram a
teoria justamente por esta razão. Pensadores como S. Tomás ligam a moralidade e a religião
de maneira diferente.
4.3 A teoria da lei natural
Na história do pensamento cristão, a teoria ética dominantenão é a teoria dos mandamentos
divinos. Essa honra cabe à teoria da lei natural. Esta teoria tem três partes principais.
1. A teoria da lei natural apoia-se numa certa concepção domundo. Nesta concepção, o
mundo é uma ordem racional com valores e fins inerentes à sua própria natureza. Esta
concepção teve origem nos Gregos, cujo modo de entender o mundo dominou o
pensamento Ocidental durante mais de 1700 anos. A característica central desta concepção
era a ideia de que tudo na natureza tem uma finalidade.
Aristóteles incorporou esta ideia no seu sistema de pensamento por volta do ano 350 a. C.
quando afirmou que, para compreender o que quer que seja, se devem fazer quatro
perguntas: O que é? De que é feito? Como chegou
à existência? E para que serve? (As respostas poderiam ser:Isto é uma faca, é feita de metal,
foi fabricada por um artesão e é usada para cortar.) Aristóteles pressupôs que a última
pergunta - para que serve? - podia ser sensatamente colocada a propósito do que quer
que fosse. "A natureza", afirmou, "pertence à classe de causas que agem para um fim".
Parece óbvio que artefactos como facas têm finalidades porque os artesãos têm em mente
uma finalidade quando os fazem. Mas o que dizer dos objectos naturais que não foram
fabricados? Aristóteles pensava que também eles têm finalidades. Um dos seus exemplos era
que temos dentes de maneira a podermos mastigar. Exemplos biológicos como este são
bastante persuasivos; cada parte dos nossos corpos parece, intuitivamente, ter uma
finalidade especial - os olhos são para ver, o coração parabombear o sangue, e assim por
diante. Mas a asserção de Aristóteles não dizia apenas respeito aos seres orgânicos. Em sua
opinião tudo tem uma finalidade. Aristóteles pensava, para dar um tipo diferente de
exemplo, que a chuva cai para as plantas poderem crescer. Embora possa parecer estranho
para um leitor moderno, Aristóteles dizia isto muito a sério. Considerou outras alternativas,
como por exemplo a chuva cair "por necessidade" e isso ajudar as plantas apenas por
"coincidência", e rejeitou-as.
O mundo é, portanto, um sistema ordenado e racional, ocupando cada coisa o seu lugar
próprio e servindo a sua finalidade especial. Há uma hierarquia clara: a chuva existe em
função das plantas, as plantas existem em função dos animais e os animais existem - é claro
- em função das pessoas, cujo bem-estar é o objectivo de toda esta organização.
Temos de pensar, em primeiro lugar, que as plantas existem para benefício dos animais, segundo, que
todos os outros animais existem para benefício do Homem, osanimais
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85
domesticos pelo uso que deles pode fazer bem como pela comida que fornecem; e quanto aos animais
selvagens, na sua maioria, embora não na totalidade, podem ser usados para alimentação ou ser úteis
de outras formas; pode-se fabricar roupas e instrumentos a partir deles. Se, pois, estamos certos ao
pensar que a Natureza nada faz sem um fim em vista, sem um objectivo, tem de ser verdade que a
Natureza fez todas as coisas especificamente para benefíciodo Homem.
Isto parece extraordinariamente antropocêntrico. Aristóteles pode ser perdoado, no entanto,
se tivermos em consideração que, virtualmente, todos os pensadores importantes da nossa
história tiveram em mente ideias idênticas. Os seres humanos são uma espécie notavelmente
vaidosa.
Os pensadores cristãos posteriores acharam esta visão do mundo perfeitamente conveniente.
Só faltava uma coisa: Deus era necessário para completar o quadro. (Aristóteles tinha
negado que Deus fosse parte necessária do quadro. Para ele,a visão do mundo que
delineámos não era religiosa; era simplesmente uma descrição de como as coisas são.) Os
pensadores cristãos disseram, pois, que a chuva cai para ajudar as plantas porque isso é o
que o Criador quis, e os animais são para uso humano porquefoi para isso que Deus os
criou. Os valores e as finalidades eram, pois, concebidos como parte fundamental da
natureza das coisas, porque se pensava que o mundo tinha sido criado de acordo com um
plano divino.
2. Um corolário desta forma de pensar é que "as leis da natureza" não se limitam a
descrever o modo como as coisas são, especificam ainda comoas coisas devem ser. As
coisas são como devem ser quando servem as suas finalidadesnaturais. Quando não o
fazem, ou não podem fazê-lo, é porque as coisas correram mal. Os olhos que não podem ver
são defeituosos e a seca é um mal natural; o mal de ambas éexplicado por referência à lei
natural. Mas há igualmente implicações para a conduta humana. As regras morais
86
são agora encaradas como se derivassem de leis da natureza.Diz-se que alguns tipos de
comportamento são "naturais", enquanto outros são "contrários à natureza"; e actos
"contrários à natureza" são tidos como moralmente errados.
Considere-se, por exemplo, o dever de beneficência. Temos aobrigação moral de ter
consideração pelo bem-estar do próximo assim como do nosso.Porquê? Segundo a teoria
da lei natural, a beneficência é algo natural em nós, tendoem conta o tipo de criaturas que
somos. Somos por natureza criaturas sociais que querem e necessitam da companhia de
outras pessoas. Faz igualmente parte da nossa constituição natural ter consideração pelos
outros. Quem não tem consideração pelos outros - quem realmente não se importa, em
absoluto - é visto como alguém com perturbações; na terminologia da psicologia moderna,
é visto como um sociopata. Uma personalidade malévola é defeituosa, tal como os olhos são
defeituosos se não puderem ver. E, pode ainda acrescentar-se, isto é verdade porque fomos
criados por Deus com uma natureza especificamente "humana",como parte de seu plano
global para o mundo.
A aceitação da beneficência é relativamente incontroversa. A teoria da lei natural tem
também sido usada, no entanto, para apoiar perspectivas morais mais controversas. Os
pensadores religiosos têm tradicionalmente condenado práticas sexuais "desviantes", e a
justificação teórica para a sua oposição tem-se baseado muito frequentemente na teoria da
lei natural. Se tudo tem uma finalidade, qual é a finalidade do sexo? A resposta óbvia é a
procriação. A actividade sexual não relacionada com fazer meninos, pode por isso ser
encarada como "contrária à natureza", e práticas como a masturbação e o sexo oral - para
não falar da homossexualidade - podem ser condenadas por esta razão. Esta maneira de
pensar sobre o sexo data pelo menos de S. Agostinho, no século iv, e surge explicitamente
87
nas obras de São Tomás de Aquino. (Para uma discussão crítica deste argumento sobre o
sexo, ver a secção 3.7 deste livro.) A teologia moral da Igreja católica baseia-se na teoria da
lei natural. Esta linha de pensamento está por detrás de toda a sua ética sexual.
À excepção da Igreja católica, a teoria da lei natural tem poucos defensores hoje em dia. É
geralmente rejeitada por duas razões. Primeiro, parece envolver uma confusão entre "ser" e
"dever ser". No século xvm David Hume sublinhou que o que ée o que deve ser são noções
diferentes do ponto de vista lógico, e nenhuma conclusão sobre uma se segue da outra.
Podemos dizer que as pessoas estão naturalmente dispostas aser beneméritas, mas disso não
se conclui que devem ser beneméritas. De modo semelhante, acontece que o sexo produz de
facto bebés, mas daí não se conclui que o sexo deva ou não deva ser praticado
exclusivamente para esse propósito. Os factos são uma coisa; os valores outra. A teoria da
lei natural parece fundi-los.
Segundo, a teoria da lei natural passou de moda (embora isso evidentemente não prove que
é falsa) porque a perspectiva do mundo na qual se baseia não está em conformidade com a
ciência moderna. O mundo tal como descrito por Galileu, Newton e Darwin não tem lugar
para "factos" sobre o certo e o errado. As suas explicaçõesdos fenómenos naturais não
fazem qualquer referência a valores ou finalidades. O que acontece acontece apenas,
acidentalmente, em consequência de leis de causa e efeito. Se a chuva beneficia as plantas, é
apenas porque as plantas evoluíram pelas leis da selecção natural num clima chuvoso.
A ciência moderna dá-nos, pois, uma imagem do mundo como umreino de factos, onde as
únicas "leis naturais" são as leis da física, química e biologia, funcionando cegamente e sem
finalidade. Os valores, sejam eles o que forem, não são parte da ordem natural. Quanto à
ideia de que "a natureza fez todas as coisas especificamente em
88
benefício do Homem", isso é apenas vaidade humana. Desde que aceitemos a visão do
mundo da ciência moderna, seremos, pois, cépticos quanto à teoria da lei natural. Não é por
acaso que a teoria não é um produto do pensamento moderno mas da Idade Média.
3. A terceira parte da teoria trata da questão do conhecimento moral. Como podemos
determinar o que está correcto e errado? A teoria dos mandamentos divinos afirma que
devemos consultar os mandamentos de Deus. A teoria da lei natural dá uma resposta
diferente. As "leis naturais" que especificam o que devemosfazer são leis da razão, que
somos capazes de entender porque Deus, o autor da ordem natural, nos fez seres racionais
com o poder de entender essa ordem. Portanto, a teoria da lei natural sanciona a ideia
familiar de que o melhor é seguir a linha de conduta com asmelhores razões do seu lado.
Para usar a terminologia tradicional, os juízos morais são "ditames da razão". São Tomás de
Aquino, o maior dos teóricos da lei natural, escreveu na sua obra-prima Suma Teológica
que, "desacreditar os ditames da razão equivale a condenar os mandamentos de Deus".
Isto significa que o crente não tem acesso privilegiado à verdade moral. O crente e o não
crente estão na mesma posição. Deus concedeu a ambos os mesmos poderes de raciocínio;
e, por isso, crente e não crente podem de modo igual ouvir a razão e seguir as suas
directivas. Como agentes morais, funcionam da mesma maneira, apesar de a falta de fé dos
não crentes os impedir de perceber que Deus é o autor da ordem racional da qual participam
e que os seus juízos morais exprimem.
Num sentido importante, isto torna a moralidade independente da religião. A crença
religiosa não afecta o cálculo do que é melhor, e os resultados da investigação moral são
religiosamente "neutros". Desta forma, mesmo podendo discordar acerca da religião, os
crentes e os não crentes habitam o mesmo universo moral.
89
4.4 Religião e questões morais particulares
Algumas pessoas religiosas poderão achar a discussão anterior insatisfatória. Parecer-lhes-á
demasiado abstracta para ter alguma importância para as suas vidas morais. Para eles, a
relação entre moralidade e religião é uma questão prática eimediata que se centra em
problemas morais particulares. Não interessa se o bem e malmorais são "definidos" em
termos da vontade divina ou se as leis morais são leis da natureza: sejam quais forem os
méritos destas teorias, continuam a existir os ensinamentosmorais da religião sobre
questões particulares. Os ensinamentos das Escrituras e da Igreja são encarados como
autoridades, determinando as posições morais que temos de assumir. Para referir apenas um
exemplo, muitos cristãos pensam não ter alternativa senão opor-se ao aborto porque é
condenado pela Igreja e (presumem eles) pelas Escrituras.
Existirão, de facto, posições claramente religiosas, sobre as grandes questões morais, que os
crentes sejam obrigados a aceitar? A ser assim, serão essasposições diferentes das
perspectivas que outras pessoas podem alcançar pela simplestentativa de raciocinar para
descobrir o melhor caminho a seguir? A retórica do púlpito sugere que a resposta a ambas as
questões é "sim". Mas há várias razões para pensar de outraforma.
Em primeiro lugar, é frequentemente difícil descobrir uma orientação moral específica nas
Escrituras. Os nossos problemas não são os mesmos que os judeus e primeiros cristãos
enfrentaram há muitos séculos; não é por isso surpreendenteque as Escrituras possam nada
dizer sobre questões morais que a nós nos parecem prioritárias. A Bíblia contém uma série
de preceitos gerais, como a ordem de amar o nosso próximo etratar os outros como
gostaríamos de ser tratados, que podem ser considerados relevantes para várias questões.
Mas, apesar de valiosos, esses preceitos não dão respostas precisas sobre qual deve ser
90
exactamente a nossa posição sobre os direitos dos trabalhadores, a extinção das espécies, o
financiamento da investigação médica, etc.
Outro problema é que em muitos casos as Escrituras e a tradição da Igreja são ambíguas. As
autoridades discordam, deixando o crente na posição embaraçosa de ter de escolher o
elemento da tradição a aceitar e a autoridade na qual acreditar. Lido de forma simples, o
Novo Testamento, por exemplo, condena a riqueza, e há uma longa tradição de abnegação e
dádiva caridosa que confirma este ensinamento. Mas há igualmente uma figura obscura do
Antigo Testamento, chamada Jabes, que pediu a Deus para "expandir as minhas
propriedades" (I Crónicas 4:10), e Deus concedeu-Ihe o pedido. Um livro recente instando
os cristãos a adoptar Jabes como modelo tornou-se um campeão de vendas.
Assim, quando as pessoas afirmam que as suas convicções morais derivam dos seus
compromissos religiosos estão frequentemente enganadas. Na realidade, o que acontece é
algo de muito diferente. Elas estão primeiro a tomar decisões sobre questões morais e só
depois a interpretar as Escrituras, ou a tradição da Igreja, de modo a apoiarem a conclusão
moral a que já chegaram. É claro que isto não acontece sempre, mas parece justo afirmar
que acontece com muita frequência. Â questão das riquezas éum exemplo disso; o aborto é
outro.
No debate sobre o aborto, as questões religiosas nunca estão longe do centro da discussão.
Os conservadores religiosos defendem que o feto é um ser humano desde o momento da
concepção, e por isso afirmam que matá-lo é na realidade uma forma de homicídio. Não
pensam que deva ser a mãe a escolher se quer fazer um aborto, porque isso seria como dizer
que ela é livre de cometer um homicídio.
A premissa fundamental do argumento conservador é de que o feto é um ser humano desde
o momento da concepção. O ovo fertilizado não é apenas um ser humano potencial mas um
ser humano de facto, com direito pleno
91
à vida. Os liberais, é claro, negam isto - afirmam que, pelo menos durante as primeiras
semanas de gravidez, o embrião é menos que um ser humano completo.
O debate sobre a humanidade do feto é muito complicado, masaqui interessa-nos apenas
uma pequena parte do problema. Os cristãos conservadores afirmam por vezes que,
independentemente da forma como o pensamento secular encarao feto, a perspectiva cristã
é que o feto é um ser humano desde o seu início. Mas será esta perspectiva obrigatória para
os cristãos? Que provas podem ser fornecidas para demonstrar isto? Para responder a isto,
podemos apelar para as Escrituras ou para a tradição da Igreja.
As Escrituras. É difícil derivar uma proibição do aborto das Escrituras cristãs ou judaicas.
A Bíblia não fala claramente do assunto. Há certas passagens, no entanto, que são
frequentemente citadas pelos conservadores porque parecem sugerir que os fetos têm um
estatuto humano pleno. Uma das passagens mais frequentemente citadas é do primeiro
capítulo do Livro de Jeremias, no qual Deus afirma: "Antes de te formar no seio já te
conhecia, e antes de nasceres consagrei-te." Estas palavrassão apresentadas como se fossem
a confirmação da posição conservadora por parte de Deus: são tomadas como significando
que o não-nascido, à semelhança do já nascido, são "consagrados" a Deus. No seu
contexto, no entanto, estas palavras significam obviamente algo muito diferente.
Suponhamos que é lida toda a passagem na qual ocorrem essaspalavras:
Foi-me dirigida a palavra do Senhor nestes termos: "Antes que fosses formado no ventre de tua mãe,
Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu teconsagrei, e te constitui profeta entre as
nações." E eu respondi: "Ah! Senhor Javé, não sou um orador, porque sou ainda muito novo!" Mas o
Senhor replicou: "Não digas: sou ainda muito novo - porquanto irás aonde Eu te enviar, e dirás o
que Eu te ordenar. Não os temas, porque estarei contigo para te livrar", palavra do Senhor.
92
Nem o aborto nem a santidade da vida, ou qualquer outra coisa do género, está a ser
discutida nesta passagem. Em vez disso, Jeremias está a afirmar a sua autoridade corno
profeta. Ele diz, com efeito: "Deus autorizou-me a falar emseu nome; apesar de eu ter
resistido, ordenou-me que falasse." Mas Jeremias coloca a questão de forma mais poética;
afirma que Deus pretendeu que ele fosse profeta mesmo antesde ele, Jeremias, ter nascido.
Isto acontece com frequência quando as Escrituras são citadas em relação a algumas
questões morais controversas. Algumas palavras são destacadas de uma passagem
relacionada com algo completamente diverso da questão em presença, e essas palavras são
então interpretadas de uma forma que apoia uma posição moral da nossa preferência.
Quando isto acontece é correcto dizer que uma pessoa está a"seguir os ensinamentos
morais da Bíblia"? Ou será mais correcto dizer que essa pessoa está a procurar nas
Escrituras apoio moral para o ponto de vista que pensa de antemão estar correcto,
projectando então a conclusão desejada nas Escrituras? Se isto for verdade, trata-se de uma
atitude particularmente ímpia - uma atitude que parte do princípio de que o próprio Deus
tem de partilhar as nossas opiniões morais. No caso da passagem de Jeremias, é difícil ver
como um leitor imparcial poderia pensar que as palavras têmalguma coisa que ver com o
aborto, mesmo por implicação.
A passagem das Escrituras que se aproxima mais de um juízo específico sobre o estatuto
moral dos fetos ocorre no capítulo 21 do Êxodo. Este capítulo faz parte de uma descrição
detalhada da lei dos antigos israelitas. Aqui diz-se que a pena para punir o homicídio é a
morte; mas diz-se igualmente, no entanto, que se for causado um aborto a uma mulher
grávida a pena é apenas uma multa, a ser paga ao seu marido. O assassinato não era uma
categoria que incluísse fetos. A Lei de Israel encarava aparentemente os fetos como menos
que um ser humano pleno.
93
A tradição da Igreja. Mesmo havendo uma base tão pequena nas Escrituras para o justificar,
a postura contemporânea da Igreja é fortemente contrária aoaborto. Quem frequenta
habitualmente a igreja pode ouvir clérigos, padres e bisposa denunciar o aborto nos termos
mais contundentes. Não admira, pois, que muitas pessoas sintam que o seu compromisso
religioso as obriga a oporem-se ao aborto.
Mas vale a pena notar que a Igreja nem sempre teve esta posição. De facto, a ideia de que o
feto é um ser humano "desde o momento da concepção" é uma ideia relativamente nova,
mesmo na Igreja católica. São Tomás de Aquino defendia que um embrião não tem alma até
várias semanas depois do início da gravidez. São Tomás aceitava o ponto de vista de
Aristóteles de que a alma é a "forma substancial" do ser humano. Não precisamos entrar
nesta noção algo técnica a não ser para sublinhar que uma das suas implicações é que não
podemos ter uma alma humana até o nosso corpo ter uma formareconhecidamente humana.
S. Tomás sabia que um embrião humano não tem uma forma humana "desde o momento da
concepção", e derivou daí a conclusão indicada. O ponto de vista de São Tomás sobre o
assunto foi oficialmente aceite péla Igreja no Concílio de Viena, em 1312, e até hoje nunca
foi oficialmente repudiado.
No entanto, no século xvn, uma perspectiva curiosa do desenvolvimento do feto acabaria
por ser aceite, e isto teve consequências inesperadas para o modo como a Igreja encara o
aborto. Observando óvulos fertilizados pelos microscópios primitivos, alguns cientistas
pensaram ter visto pessoas pequeninas, perfeitamente formadas. Chamaram "homúnculos" a
estas pessoas pequenas, e isso consolidou a ideia de que desde o início o embrião humano é
uma criatura inteiramente formada que apenas necessita crescer até estar pronta para o
nascimento.
Se o embrião tem uma forma humana desde o momento da concepção, segue-se daí,
segundo a filosofia de
94
Aristeles e S. Tomás, que pode ter uma alma humana desde o momento da concepção. A Igreja
tirou esta conclusão e abraçou o ponto de vista conservadorsobre o aborto. O
"homúnculo", diz-se, é claramente um ser humano, e por issoé errado matá-lo.
No entanto, à medida que o nosso entendimento da biologia progrediu, os cientistas
começaram a perceber que esta ideia do desenvolvimento do feto estava errada. Não há
qualquer homúnculo; isso era um erro. Sabemos hoje que o pensamento original de S.
Tomás estava correcto - os embriões começam por ser um aglomerado de células; a
"forma humana" chega mais tarde. Mas quando o erro biológico foi corrigido, o ponto de
vista moral da Igreja não voltou atrás. Tendo adoptado a teoria de que o feto é um ser
humano "desde o momento da concepção", a Igreja não a abandonou e agarrou-se à sua
visão conservadora do aborto. Não obstante o Concílio de Viena, manteve essa posição até
hoje.
Uma vez que tradicionalmente a Igreja não encarava o abortouma questão moral séria, a lei
Ocidental (desenvolvida sob influência da Igreja) não tratou tradicionalmente o aborto como
um crime. À luz da lei inglesa, o aborto era tolerado mesmoquando executado numa
gravidez avançada. Nos Estados Unidos, não houve leis proibindo-o até bem adentro do
século xix. Assim, quando o Supremo Tribunal dos EUA declarou a proibição absoluta do
aborto inconstitucional, em 1973, não estava a inverter umalonga tradição de opiniões
legais e morais. Estava apenas a restaurar uma situação legal que tinha existido até muito
recentemente.
A intenção de passar em revista esta história não é insinuar que a posição contemporânea da
Igreja está errada. Apesar de quanto foi dito aqui, a sua posição pode estar correcta. Quero
apenas sublinhar um aspecto fundamental da relação entre a autoridade religiosa e os juízos
morais. A tradição da Igreja, bem como as Escrituras, é reinterpretada
95
por cada geração para apoiar os seus pontos de vista morais. O aborto é apenas um
exemplo disso. Poderíamos igualmente ter usado como exemploas mudanças nas
perspectivas morais e religiosas sobre a escravatura, o estatuto das mulheres ou a pena de
morte. Em cada caso, as convicções morais das pessoas não são tanto derivadas da sua
religião como sobrepostas a ela.
Os vários argumentos deste capítulo apontam para uma conclusão comum. Não se deve
definir o correcto e errado em termos da vontade de Deus; amoralidade é uma questão de
razão e consciência, e não de fé religiosa; e, em qualquer dos casos, as considerações
religiosas não fornecem soluções definitivas para os problemas morais específicos com os
quais nos defrontamos. Numa palavra, moralidade e religião são diferentes. Uma vez que
esta conclusão é contrária ao senso comum, pode parecer anti-religiosa a alguns leitores.
Deve, por isso, sublinhar-se que esta conclusão não foi alcançada por meio do
questionamento da validade da religião. Os argumentos considerados não presumem que o
cristianismo ou qualquer outro sistema teológico sejam falsos; estes argumentos mostram
apenas que, mesmo que esses sistemas sejam verdadeiros, a moralidade continua a ser uma
questão independente.
96
Capítulo 5
Egoísmo psicológico
Mas a época do cavalheirismo passou. A dos sofistas, economistas e calculadores triunfou.
EDMUND BURKE, Reflections on the Revolution in France (1790)
5.1 Será o altruísmo possível?
Raoul Wallenberg, um homem de negócios sueco que poderia ter permanecido na segurança
de sua casa, passou os últimos dias da Segunda Guerra Mundial em Budapeste. Wallenberg
ofereceu-se para integrar a missão diplomática sueca nessa cidade depois de ouvir relatos
sobre Hitler e a sua "solução final para o problema judaico". Uma vez aí, pressionou com
sucesso o governo húngaro no sentido de parar as deportações para campos de
concentração. Quando o governo húngaro foi substituído por um regime fantoche nazi e as
deportações recomeçaram, Wallenberg emitiu "passes de protecção suecos" para milhares
de judeus, insistindo que todos mantinham ligações com a Suécia e estavam sob a protecção
do seu governo. Ajudou várias
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pessoas a encontrar refúgio. Sempre que eram reunidos grupos para execução, Wallenberg
interpunha-se entre eles e os nazis afirmando aos alemães que teriam de o matar primeiro.
Na parte final da Guerra, quando reinava o caos e os outrosdiplomatas fugiram, Wallenberg
permaneceu. Foi-lhe atribuída responsabilidade no salvamento de cerca de doze mil pessoas.
Quando a Guerra terminou, desapareceu, e durante muito tempo ninguém soube o que lhe
tinha acontecido. Pensa-se hoje que tenha sido morto, não pelos alemães, mas pelas forças
de ocupação soviéticas. A história de Wallenberg é mais dramática do que a maioria, mas
não é, de modo algum, única. O governo israelita documentouseis mil casos de gentios que
protegeram judeus durante o Holocausto, e existem sem dúvida milhares de outros.
A moralidade requer que sejamos altruístas. Até que ponto devemos ser altruístas é uma
questão de difícil resposta. (Várias teorias morais foram criticadas ou por exigirem
demasiado ou por pedirem pouco.) Talvez não tenhamos de sertão heróicos como Raoul
Wallenberg, mas espera-se, ainda assim, que estejamos atentos às necessidades dos outros
pelo menos até certo ponto.
E as pessoas ajudam-se, de facto, entre si, de formas mais ou menos significativas. Fazem
favores umas às outras. Constróem abrigos para os deserdados. Fazem voluntariado em
hospitais. Doam órgãos e oferecem sangue. Mães sacrificam-se pelos filhos. Bombeiros
arriscam a vida para salvar pessoas. Freiras passam as suasvidas a trabalhar entre os pobres.
A lista poderia continuar sem parar. Muitas pessoas oferecem dinheiro para apoiar causas
nobres, quando podiam guardá-lo para si. Peter Singer contaque, certo dia,
recebi o boletim informativo da Australian Conservation Foundation, o principal grupo australiano
de defesa do meio ambiente. Incluía um artigo da autoria docoordenador
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financeiro da fundação, no qual relatava urna viagem para agradecer a um doador que regularmente
enviava donativos de mil ou mais dólares. Quando chegou ao endereço em questão pensou ter-se
enganado, pois estava frente a uma casa suburbana muito modesta. Mas não havia qualquer engano:
David Allsop, empregado do departamento estatal de obras públicas, doa cinquenta por cento dos
seus rendimentos para causas ambientais.
Estas são histórias notáveis, mas deveremos aceitá-las peloque parecem? Serão de facto
estas pessoas tão altruístas como parecem? Neste capítulo vamos examinar alguns
argumentos que defendem que ninguém é jamais verdadeiramente altruísta. Isto pode
parecer absurdo tendo em conta os exemplos que acabámos de enumerar. Contudo, há uma
teoria da natureza humana, em tempos muito corrente entre filósofos, psicólogos e
economistas, e ainda defendida por muitas pessoas comuns, que afirma que não somos
capazes de ser altruístas. Segundo esta teoria, conhecida como egoísmo psicológico, todas
as acções humanas são motivadas pelo egoísmo. Podemos acreditar que somos nobres e
abnegados, mas isso é apenas uma ilusão. Na verdade importamo-nos apenas connosco
mesmos.
Poderá o egoísmo psicológico ser verdadeiro? Porque razão tantas pessoas têm aceitado
esta ideia perante tantas provas em contrário?
5.2 A estratégia de reinterpretação de motivos
Todos sabemos que por vezes as pessoas parecem agir com altruísmo; mas talvez as
explicações "altruísticas" do comportamento sejam demasiadosuperficiais - pode parecer
que as pessoas são altruístas, mas se olharmos mais profundamente, poderemos descobrir
que algo mais está a acontecer. Geralmente não é difícil descobrir que o com-
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portamento "altruísta" está na verdade ligado a um tipo qualquer de benefício para quem
age.
Segundo alguns dos amigos de Raoul Wallenberg, antes de ir para a Hungria ele estava
deprimido e infeliz, sentindo que a sua vida não tinha grande importância. Por isso, encetou
a realização de acções que o transformassem numa figura heróica. A sua procura de uma
vida mais significativa foi espectacularmente bem sucedida - aqui estamos nós, mais de
meio século após a sua morte, falando a seu respeito. A Madre Teresa, a freira que passou a
vida a trabalhar entre os pobres de Calcutá, é frequentemente citada como o exemplo
perfeito de altruísmo - mas é claro que a Madre Teresa acreditava que seria bem
recompensada no Céu. (Na verdade não teve de esperar muito pela sua recompensa; recebeu
o Prémio Nobel da Paz em 1979.) Quanto a David Allsop, que oferece cinquenta por cento
dos seus rendimentos para apoiar causas ambientais, Singer salienta que "o próprio David
trabalhara anteriormente como activista, e afirma sentir-seprofundamente satisfeito por
poder agora fornecer o apoio financeiro para outros continuarem o trabalho".
Assim, o comportamento "altruísta" está na realidade ligadoa coisas como o desejo de ter
uma vida mais significativa, o desejo de reconhecimento público, sentimentos de satisfação
pessoal e a esperança de uma recompensa divina. Por cada acto de aparente altruísmo
podemos encontrar uma maneira de justificá-lo e substituí-lo por uma explicação em termos
de motivos mais egocêntricos. Esta técnica de reinterpretarmotivos é genérica e pode ser
repetida vezes e vezes sem conta.
Thomas Hobbes (1588-1679) pensava que o egoísmo psicológicoestava provavelmente
correcto, mas não se deu por satisfeito com uma abordagem tão fragmentária. Não é
teoricamente elegante lidar com cada exemplo separadamente,ocupando-nos primeiro de
Raoul Wallenberg, depois da Madre Teresa, depois de David Allsop e assim por
100
diante. Se o egoísmo psicológico é verdadeiro, deveríamos poder fornecer uma explicação
mais abrangente dos motivos humanos, que confirmasse a teoria de uma vez por todas. Foi
isso mesmo que Hobbes tentou fazer. O seu método consistiu em catalogar os tipos gerais
de motivos, concentrando-se especialmente nos "altruístas",e mostrando como todos
podiam ser compreendidos em termos egoístas. Uma vez completado este projecto, teria
eliminado sistematicamente o altruísmo do nosso entendimento da natureza humana. Eis
dois exemplos de Hobbes em acção.
1. Caridade. Este é o motivo mais geral que atribuímos às pessoas quando pensamos que
agem em função da sua preocupação pelos outros. O Oxford English Dictionary dedica
quase quatro colunas à "caridade". É definida quer como "o amor cristão pelo nosso
semelhante" quer como a "benevolência para com o próximo". Mas, se esse amor ao
próximo na realidade não existe, o comportamento caritativotem de ser entendido de uma
forma radicalmente diferente. No seu ensaio "Da Natureza Humana", Hobbes descreve-o
assim:
Não pode haver maior argumento para um homem, provando o seu próprio poder, do que saber-se
capaz não apenas de realizar os seus desejos, como ainda deajudar outros homens nos seus: e é nisso
mesmo que consiste a concepção do que se chama caridade.
A caridade é, assim, o prazer de cada um na demonstração dos seus próprios poderes. Um
homem caridoso está a provar a si mesmo, e ao mundo, que possui mais recursos que os
outros: não é só capaz de cuidar de si mesmo, tem ainda o suficiente para ajudar quantos
não têm a mesma capacidade que ele. Por outras palavras, está apenas a exibir a sua
superioridade.
Hobbes sabia, naturalmente, que um homem caridoso pode não pensar estar a fazer isso.
Mas nós não somos os
101
melhores juizes das nossas próprias motivações. É perfeitamente natural que interpretemos as nossas
acções de um modo lisonjeiro para nós (um egoísta psicológico não esperaria outra coisa), e é
lisonjeiro pensar que somos "altruístas". A perspectiva de Hobbes visa fornecer a explicação real do
porquê das nossas acções, e não a adulação superficial na qual desejamos naturalmente acreditar;
2. Piedade. O que é ter piedade dos outros? Poderíamos pensar que é compadecermo-nos deles,
sentirmo-nos infelizes com os seus infortúnios. E, agindo em função deste pesar, poderíamos tentar
ajudá-los. Hobbes pensa que tudo isto está muito bem, até onde pode estar, mas não vai
suficientemente fundo. A razão pela qual nos sentimos incomodados com os infortúnios dos outros é
pensarmos que a mesma coisa nos podia acontecer a nós. A "piedade", afirma, "consiste em imaginar
ou fantasiar as nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades de ou
trem".
Do ponto de vista teórico, esta explicação da piedade revela-se mais poderosa do que parece à
primeira vista. Pode explicar com muita clareza alguns aspectos peculiares do fenómeno. Pode
explicar, por exemplo, por que sentimos maior piedade quando uma pessoa boa sofre do que quando
sofre uma pessoa má. Na descrição de Hobbes, a piedade requer um sentido de identificação com a
pessoa que sofre - sinto piedade de alguém quando me imagino no seu lugar. Mas uma vez que cada
um de nós pensa ser uma boa pessoa, não nos identificamos com os que pensamos serem maus. Por
conseguinte, não nos apiedámos dos malévolos da mesma formaque nos apiedámos dos bons. Os
nossos sentimentos de piedade variam em função directa da virtude da pessoa que sofre porque o
nosso sentido de identificação varia da mesma forma.
A estratégia de reinterpretar motivos é um método de raciocínio persuasivo; fez muitas pessoas ter a
sensação de que o egoísmo psicológico pode estar certo. Apela sobre-
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tudo a um certo cinismo em nós, a uma suspeita de que as pessoas não são tão nobres como parecem.
Mas não é um método de raciocínio decisivo, pois não pode provar que o egoísmo psicológico está
correcto. O problema é que mostra apenas que é possível interpretar os motivos de forma egoísta;
nada faz para mostrar que os motivos egoístas são mais profundos ou verdadeiros do que as
explicações altruísticas que pretendem substituir. No máximo, a estratégia mostra que o egoísmo
psicológico é possível. Necessitamos ainda de argumentos para provar que é verdadeiro.
5.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico
Há dois argumentos gerais que foram adiantados com frequência em defesa do egoísmo psicológico.
São argumentos "gerais" na medida em que cada um tenta estabelecer de um só golpe que todas as
acções, e não apenas uma classe limitada de acções, são motivadas pelo egoísmo. Como poderemos
ver, nenhum dos argumentos resiste muito bem ao escrutínio.
O argumento de que fazemos sempre o que mais desejamos fazer. Se descrevemos as acções de uma
pessoa como egoístas e as de outra como não egoístas estamos a descurar o facto crucial de que em
ambos os casos, partindo do princípio de que a acção é realizada de forma voluntária, a pessoa está
apenas a fazer o que mais deseja fazer. Se Raoul Wallenbergescolheu partir para Budapeste, e
ninguém o coagiu, isso apenas mostra que ele preferia ir doque permanecer na Suécia - e porque
haveria de ser elogiado pela sua "generosidade" quando se limitou a fazer o que mais desejava? A
sua acção foi ditada pelos seus próprios desejos, o seu sentido do que queria fazer. Assim, não agiu
altruistamente. E, uma vez que se pode dizer o mesmo de
103
qualquer alegado acto altruísta, podemos concluir que o egoísmo psicológico tem de ser
verdadeiro.
Este argumento tem duas falhas principais. Primeiro, baseia-se na ideia de que as pessoas
nunca fazem voluntariamente senão o que desejam fazer. Mas isto é redondamente falso.
Por vezes fazemos coisas que não queremos fazer, porque sãoum meio necessário para um
fim que queremos atingir, por exemplo, não queremos ir ao dentista, mas vamos na mesma
para evitar dor de dentes. Este tipo de caso pode, não obstante, ser encarado como
consistente com o espírito do argumento, porque os fins (como evitar dor de dentes) são
desejados.
Mas há igualmente coisas que fazemos, não porque o desejamos, e nem mesmo porque são
meios para um fim que queremos atingir, mas porque sentimosque devemos fazê-las. Por
exemplo, alguém pode fazer uma coisa porque prometeu fazê-la, e sente-se, por isso,
obrigado, mesmo não desejando fazê-la. Tem sido por vezes sugerido que em tais casos
realizamos a acção porque, afinal de contas, queremos manter as nossas promessas. Não
obstante, isso não é verdade. Se prometi fazer algo mas nãoo quero fazer, então é pura e
simplesmente falso dizer que quero manter a minha promessa.Em tais casos sentimos um
conflito precisamente porque não queremos fazer o que nos sentimos obrigados a fazer.
Se os nossos desejos e o nosso sentido de obrigação estivessem sempre em harmonia, este
seria um mundo feliz. É uma experiência demasiado comum sentirmo-nos puxados em
direcções diferentes pelo desejo e pela obrigação. Tanto quanto sabemos, Wallenberg pode
ter tido essa experiência: talvez quisesse ficar na Suécia,mas sentiu que tinha de ir para
Budapeste. Seja como for, do facto de ter ido não se segue que desejasse ir.
O argumento tem ainda uma segunda falha. Suponha-se que admitíamos, em benefício da
argumentação, que agimos sempre segundo os nossos mais fortes desejos.
104
Mesmo dando isto por adquirido não se seguiria que Wallenberg agiu de forma egoísta ou
em benefício próprio. Pois se desejava ajudar outras pessoas, mesmo com riscos para si, isso
é precisamente o que o torna não egoísta. Que outra coisa poderia ser a generosidade a não
ser ajudar os outros, mesmo com alguns custos para si mesmo? Outra forma de pôr a
questão é afirmar que o objecto de um desejo determina se este é ou não egoísta. O mero
facto de alguém agir segundo os seus desejos não significa que esteja a agir de forma
egoísta; tudo depende do que essa pessoa deseja. Se apenas se preocupa com o seu bem-
estar e não pensa nos outros, então é um egoísta; mas se também deseja ver os outros
felizes, e age segundo esse desejo, então não é egoísta.
Por conseguinte, este argumento falha de quase todas as formas possíveis: as premissas não
são verdadeiras, e mesmo que fossem, a conclusão não se seguiria delas.
O argumento de que fazemos o que nos faz sentir bem.
O segundo argumento geral em defesa do egoísmo psicológico apela para o facto de quase
todas as acções ditas altruístas produzirem um sentido de auto-satisfação na pessoa que as
realiza. Agir "altruistamente" faz as pessoas sentirem-se bem consigo mesmas, e isso é o seu
verdadeiro objectivo.
Segundo um jornal do século xix, este argumento foi em tempos defendido por Abraham
Lincoln. O Monitor, de Springfield, Illinois, noticiou que
Lincoln afirmou certa vez a um companheiro de viagem num coche antigo que todos os homens eram
instados pelo egoísmo a fazer o bem. O companheiro de viagem contestava esta posição quando
estavam a atravessar uma ponte sobre uma zona pantanosa. Aoatravessar a ponte, olhavam para
uma velha porca selvagem que fazia na margem ruídos horríveis porque as suas crias tinham entrado
no lodaçal e estavam em risco de se afogar. Quando a velha carruagem come-
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çou a subir a colina, Lincoln gritou: "Cocheiro, poderia parar um momento?" Lincoln saltou da
carruagem, correu de volta ao pântano, retirou os porquinhos da água enlameada e colocou-os de
novo na margem. Quando regressou, o seu companheiro afirmou: "Então Abe, onde fica o egoísmo
neste pequeno episódio?" "Pela sua saúde, Ed, aquilo foi a própria essência do egoísmo. Não teria
tido paz de espírito durante o resto do dia se tivesse deixado aquela velha porca em sofrimento por
causa dos porquinhos. Fi-lo para obter paz de espírito, percebe?"
Lincoln era um grande homem, mas, nesta ocasião pelo menos,não foi um grande filósofo. O seu
argumento é vulnerável ao mesmo tipo de objecções do anterior. Porque razão devemos pensar,
apenas porque alguém obtém satisfação do auxílio aos outros, que isso faz dele um egoísta? Não é a
pessoa altruísta precisamente a que de facto tem satisfaçãono auxílio aos outros, enquanto o egoísta
não tem? Se Lincoln conseguiu "paz de espírito" depois de salvar os porquinhos, isso mostrará que é
egoísta ou, pelo contrário, que é compassivo e dotado de bom coração? (Se uma pessoa fosse
verdadeiramente egoísta, porque haveria de incomodar-se como sofrimento dos outros, ainda para
mais tratando-se de porcos?) Por analogia, pode considerar-se puro sofisma afirmar que alguém é
egoísta apenas porque deriva satisfação do auxílio aos outros. Se dissermos isto rapidamente,
enquanto pensamos noutra coisa, talvez pareça correcto; masse falarmos pausadamente e estivermos
atentos ao que dizemos, parece francamente tonto.
Suponhamos, além disso, que perguntamos por que razão uma pessoa obtém satisfação ao auxiliar
os outros. Porque será que nos sentimos bem ao doar dinheiro para apoiar um abrigo para pessoas
sem lar, quando podíamos gastar esse dinheiro connosco mesmos? A resposta tem de ser, pelo menos
em parte, que somos o tipo de pessoa que se importa com o que acontece aos outros. Se não nos
importamos com isso, doar o dinheiro parecerá um desperdício e não
106
uma fonte de satisfação. Vai fazer-nos sentir parvos e não santos.
Há uma lição geral a retirar deste caso, relacionada com a natureza do desejo e seus objectos.
Desejamos todo o género de coisas - dinheiro, um carro novo, jogar xadrez, casar e assim por
diante - e uma vez que desejamos essas coisas, podemos obter satisfação ao consegui-las. Mas o
objecto do nosso desejo não é a satisfação - não é isso queprocuramos. O que procuramos é
simplesmente o dinheiro, o carro, o xadrez ou o casamento. Acontece o mesmo com o auxílio aos
outros. Temos primeiro de querer ajudá-los antes de podermos obter satisfação com isso. Os bons
sentimentos são um derivado; não são o que buscamos. Por isso, ter esses sentimentos não é uma
marca de egoísmo.
5.4 Esclarecer algumas confusões
Um dos mais poderosos motivos na elaboração de uma teoria éo desejo de simplicidade. Quando
estamos empenhados em explicar uma coisa, gostaríamos de descobrir uma explicação tão simples
quanto possível. Isto é certamente verdade nas ciências - quanto mais simples é uma teoria
científica, tanto maior é o seu poder de atracção. Considerem-se fenómenos tão diversos como os
movimentos planetários, as marés e a forma como caem os objectos quando largados de um ponto
elevado. Estes fenómenos parecem ser, à partida, muito diferentes; e pareceria serem necessários
princípios diferentes para os explicar. Quem podia pensar que poderiam ser todos explicados por um
único princípio? No entanto é isso mesmo que faz a teoria da gravidade. A capacidade da teoria para
unir fenómenos diversos sob um mesmo princípio explicativo é uma das suas grandes virtudes. Cria
ordem a partir do caos.
Da mesma forma, quando pensamos sobre a conduta humana, gostaríamos de descobrir um princípio
para
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explicar tudo. Queremos uma fórmula única e simples, se conseguirmos descobrir uma, capaz
de unir os diversos fenómenos do comportamento humano, da mesma forma que as fórmulas
simples na física unem fenómenos aparentemente diferentes. Sendo óbvio que a preocupação
connosco próprios é um factor de importância esmagadora na motivação, pode considerar-
se natural ponderar a possibilidade de toda a motivação poder ser explicada nesses termos.
E assim se explica a persistência da ideia do egoísmo psicológico.
Mas a ideia fundamental subjacente ao egoísmo psicológico não pode sequer ser expressa
sem confusões; e uma vez esclarecidas estas confusões a teoria deixa de parecer plausível.
Primeiro, as pessoas tendem a confundir egoísmo com interesse próprio. Quando pensamos
nisso, vemos que não são de modo algum a mesma coisa. Se vou ao médico quando me
sinto mal, estou a agir em função do meu interesse próprio,mas ninguém pensaria chamar-
me "egoísta" por causa disso. De modo semelhante, lavar os dentes, trabalhar afincadamente
no meu emprego e obedecer à lei, são tudo acções realizadasno meu interesse próprio, mas
nenhum destes exemplos ilustra uma conduta egoísta. O comportamento egoísta é o
comportamento que ignora os interesses dos outros em circunstâncias nas quais não deviam
ser ignorados. Assim, comer uma refeição normal em circunstâncias normais não é egoísta
(apesar de ser, sem dúvida, do nosso interesse próprio); mas seríamos egoístas se
acumulássemos comida enquanto outros passavam fome.
Uma segunda confusão mistura o comportamento em função do interesse próprio com a
procura de prazer. Fazemos muitas coisas porque gostamos deas fazer, mas isso não
significa que estejamos a agir em função do interesse próprio. Um homem que continua a
fumar cigarros mesmo depois de ter conhecimento da relação entre o fumo e o cancro não
está certamente a agir segundo o seu interesse
próprio, nem mesmo pelos seus próprios padrões - o interesse próprio ditaria que parasse
de fumar- e não está também a agir de forma altruísta. Ele fuma, sem dúvida, pelo prazer
de fumar, mas isso apenas mostra que a procura indisciplinada do prazer e a defesa do
interesse próprio são coisas diferentes. Reflectindo nisto,Joseph Butler, o principal crítico
do egoísmo no século xvni, afirmou: "O que há a lamentar não é que os homens, no mundo
de hoje, se ocupem demasiado do seu próprio bem ou interesses, pois não se ocupam o
suficiente."
Tomados em conjunto, os dois últimos parágrafos mostram quea) é falso que todas as
acções sejam egoístas e b) é falso que todas as acções sejam realizadas em função do
interesse próprio. Quando lavamos os dentes, pelo menos em circunstâncias normais, não
estamos a agir de forma egoísta; por conseguinte, nem todasas acções são egoístas. E
quando fumamos cigarros não estamos a agir no nosso própriointeresse; portanto, nem
todas as acções são realizadas por interesse próprio. Vale a pena notar que estes dois
aspectos não dependem de exemplos de altruísmo; mesmo não existindo comportamentos
altruístas, o egoísmo psicológico continuaria a ser falso.
Uma terceira confusão consiste na suposição comum, mas falsa, de que a preocupação pelo
nosso próprio bem-estar é incompatível com uma genuína preocupação pelos outros. Sendo
óbvio que todas as pessoas (ou quase todas) desejam o seu próprio bem-estar, poderia
pensar-se que ninguém pode estar realmente preocupado com obem-estar dos outros. Mas
isto é uma dicotomia falsa. Não há qualquer inconsistência em desejar que todos, incluindo
nós mesmos e os outros, sejam felizes. Na verdade, os nossos interesses podem por vezes
entrar em conflito com os interesses de outras pessoas, e podemos então ter de fazer
escolhas difíceis. Mas mesmo nestes casos optamos por vezespelos interesses dos outros,
especialmente quando os outros são nossos amigos ou familiares. É importante notar,
108
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no entanto, que a vida nem sempre é assim. Podemos por vezes ajudar os outros com custos
mínimos, ou mesmo nenhuns, para nós próprios. Nessas circunstâncias nem mesmo o mais
forte interesse próprio nos impede necessariamente de agir generosamente.
Uma vez esclarecidas estas confusões, parecem existir poucas razões para considerar o
egoísmo psicológico uma teoria plausível. Pelo contrário, parece francamente implausível.
Se observarmos com espírito aberto o comportamento das pessoas, verificamos que é
motivado em grande parte pelo, interesse próprio, mas não de forma alguma no seu todo.
Pode realmente existir uma fórmula simples, ainda por descobrir, que explique o
comportamento humano na sua totalidade, mas o egoísmo psicológico não é essa fórmula.
5.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico
A discussão anterior pode parecer implacavelmente negativa.Se o egoísmo psicológico é
tão obviamente confuso, pode-se perguntar, e se não há argumentos plausíveis em sua
defesa, porque razão tantas pessoas inteligentes se sentiram atraídas por essa ideia? É uma
boa pergunta. Parte da resposta está na necessidade quase irresistível de simplicidade
teórica. Outra parte reside na atracção pelo que parece umaatitude obstinada e deflacionista
face às pretensões humanas. Mas há uma razão mais profunda:o egoísmo psicológico tem
sido aceite por muitas pessoas porque o consideram irrefutável. E, num certo sentido, têm
razão. Mas noutro sentido a imunidade da teoria à refutaçãoé o seu defeito mais profundo.
Para explicar isto, permita-se-me que conte uma história (verdadeira) que pode parecer
muito afastada do nosso tema. Há alguns anos, os membros deum grupo de investigadores
liderados pelo Dr. David Rosenham, professor de Psicologia e Direito na Universidade de
Stanford,
110
conseguiram introduzir-se em vários hospitais psiquiátricosfazendo-se passar por doentes. Os
funcionários dos hospitais ignoravam que eles eram especialistas; pensavam que os
investigadores eram doentes como os outros.
Os investigadores eram perfeitamente normais, seja qual foro significado do termo, mas a
sua simples presença nos hospitais criou o pressuposto de que estavam mentalmente
perturbados. Apesar de se comportarem com normalidade - nada fizeram para se fingir
doentes - descobriram rapidamente que tudo quanto faziam era interpretado pelos médicos
como sinal do problema mental que tinham inscrito nos formulários de admissão. Quando
um deles era apanhado a tomar notas, eram anotadas nos seusrelatórios as seguintes
observações: "O paciente envolve-se num comportamento de escrita." Durante uma
entrevista, um "paciente" confessou que apesar de ter maiorproximidade com a mãe
quando era criança se ligou mais ao pai à medida que cresceu - uma mudança
perfeitamente normal. Mas isto foi interpretado como prova de "relações instáveis na
infância". Mesmo os seus protestos e declarações de normalidade foram voltados contra
eles. Um dos verdadeiros pacientes alertou-os: "Nunca digama um médico que estão bem.
Ele não vai acreditar. Isso chama-se 'fuga para a saúde'. Digam-lhe que continuam doentes,
mas sentem-se muito melhor. Isso chama-se perspicácia."
Do pessoal dos hospitais, ninguém deu pelo logro. Os verdadeiros pacientes, no entanto,
perceberam tudo. Um deles disse a um investigador: "Você não é louco. Está a investigar o
hospital." E de facto estava.
Porque razão os médicos não perceberam? A experiência revelou algo sobre o poder de um
pressuposto dominante: uma vez aceite uma hipótese, tudo pode ser interpretado para a
apoiar. Quando a ideia de que os pacientes falsos tinham perturbações mentais foi admitida
como pressuposto dominante, os seus comportamentos não importa-
111
vam. Fizessem o que fizessem, isso seria interpretado de modo a adaptar-se ao pressuposto. Mas o
"sucesso" desta técnica não provou que a hipótese estivessecorrecta. Era sinal, isso sim, de que algo
correu mal.
A hipótese de que os pacientes falsos sofriam de perturbações mentais era defeituosa porque era
insusceptível de ser testada. Se uma hipótese pretende dizer algo de factual sobre o mundo, então
tem de haver condições imagináveis que possam verificá-la eoutras que possam refutá-la. Caso
contrário, não tem qualquer sentido. Se a hipótese for que todos os cisnes são brancos, por exemplo,
podemos olhar para os cisnes para ver se há verdes, azuis ou de qualquer outra cor. Mesmo que não
encontremos cisnes verdes ou azuis, sabemos como seria encontrar algum. A nossa conclusão deve
basear-se nos resultados destas observações. (De facto, há cisnes pretos, pelo que a hipótese é falsa.)
Suponha-se ainda que alguém afirma: "O Shaquille O'Neal nãoconsegue entrar no meu
Volkswagen." Sabemos o que isto significa, pois podemos imaginar as circunstâncias que tornariam
a afirmação verdadeira e as que a tornariam falsa. Para testar a afirmação, levamos o carro até ao
Sr. O'Neal, convidamo-lo a entrar, e vemos o que acontece. Se for de uma maneira, a afirmação é
verdadeira; se for de outra, é falsa.
Deveria ter sido possível aos médicos examinar os pacientesfalsos, olhar os resultados, e afirmar:
"Esperem lá, nada há de errado com estas pessoas." (Recorde-se que os pacientes falsos agiram com
normalidade; nada fizeram para fingir qualquer tipo de sintomas psiquiátricos.) Mas os médicos não
estavam a agir dessa forma. Para eles, nada podia ser admitido contra a hipótese de que os
"pacientes" estavam doentes.
O egoísmo psicológico comete o mesmo erro. Uma vez admitidoo pressuposto dominante de que
todo o comportamento visa o interesse próprio, pode-se interpretar tudo quanto ocorre para se
adequar a esse pressuposto. Mas
112
qual é o problema? Se não há qualquer padrão imaginável de comportamento ou motivação que
possa contradizer a teoria - se nem mesmo podemos imaginar o que seria um acto não egoísta-,
então a teoria é vazia.
Há, naturalmente, uma forma de contornar este problema, tanto para os médicos como para o
egoísmo psicológico. Os médicos poderiam ter estabelecido uma forma razoável de distinguir entre
pessoas mentalmente saudáveis e pessoas com doenças mentais; podiam, depois, ter observado os
pacientes falsos para ver a que categoria pertenciam. De modo análogo, alguém tentado a acreditar
na veracidade do egoísmo psicológico poderia estabelecer uma forma razoável de distinguir o
comportamento motivado pelo interesse próprio do comportamento que ignora o interesse próprio e
depois observar como as pessoas agem de facto para ver as categorias às quais se adequam. É claro
que alguém que fizesse isto veria que as motivações das pessoas são das mais diversas. As pessoas
agem por avidez, fúria, luxúria, amor e ódio. Fazem certas coisas porque estão assustadas,
ciumentas, curiosas, felizes, preocupadas e inspiradas. Porvezes são egoístas e por vezes generosas.
Por vezes são mesmo heróicas, como Raoul Wallenberg. Perante tudo isto, não se pode manter o
pensamento de que há apenas um motivo. Se o egoísmo psicológico for defendido de forma
susceptível de ser testada, os resultados do teste serão que a teoria é falsa.
113
Capítulo 6
Egoísmo ético
Alcançar a sua própria felicidade é o objectivo moral mais elevado do ser humano.
AYN RAND, The Virtue of Selfishness (1961)
6.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome?
Todos os anos milhões de pessoas morrem por subalimentação e problemas de saúde com
ela relacionados. Um padrão comum entre as crianças de países pobres é a morte por
desidratação causada por diarreias com origem na subnutrição. O director executivo do
Fundo das Nações Unidas de Apoio às Crianças (UNICEF) estima que cerca de quinze mil
crianças morram desta forma todos os dias. Isso equivale a 5 475 000 crianças por ano. Se
adicionarmos as que morrem de outras causas evitáveis, o número ultrapassa os dez milhões.
Mesmo que esta estimativa seja demasiado alta, o número dasque morrem é chocante.
115
Para quem vive em países abastados, isto coloca um problemagrave. Gastamos dinheiro connosco
mesmos, não apenas nas necessidades da vida mas em luxos sem conta - em bons automóveis,
roupas elegantes, aparelhagens, desportos, filmes, e assim por diante. No nosso país, mesmo pessoas
com rendimentos modestos beneficiam de tais coisas. O problema é que podíamos abdicar dos nossos
luxos e, em vez disso, doar o dinheiro para o combate à fome. O facto de não o fazermos revela que
encaramos os nossos luxos como mais importantes do que as suas vidas.
Porque razão permitimos que morram pessoas à fome quando poderíamos salvá-las? Poucos de nós
pensam de facto que os nossos luxos sejam assim tão importantes. A maioria de nós, se interrogados
directamente, ficaria provavelmente um pouco embaraçada, e diria que provavelmente devíamos
fazer mais para ajudar. A explicação para o facto de não o fazermos é que, pelo menos em parte,
raramente pensamos no problema. Vivendo as nossas vidas confortáveis, estamos afastados do
problema. As pessoas com fome estão a morrer a alguma distância de nós; não as vemos, e podemos
mesmo evitar pensar nelas. Quando acontece pensarmos nelas,é apenas de forma abstracta, como
estatísticas. Infelizmente para os que têm fome, as estatísticas não têm muito poder para nos
comover.
Reagimos de forma diferente quando há uma "crise", quando uma grande massa de pessoas num
dado local passa fome, como na Etiópia em 1984, ou na Somália em 1992. Nessa altura, é notícia de
primeira página e os esforços de auxílio são mobilizados. Mas quando os necessitados estão
dispersos, a situação não parece tão urgente. As 5 475 000 crianças têm a infelicidade de não
estarem todas juntas em Chicago, por exemplo.
Mas, deixando de lado a questão sobre o motivo de nos comportarmos assim, qual é o nosso dever?
O que devemos fazer? Podemos pensar nisto como a perspectiva de "senso comum" sobre a questão:
a moralidade supõe que
116
equilibremos os nossos próprios interesses com os interesses dos outros. E compreensível, naturalmente,
que olhemos pelos nossos próprios interesses, e ninguém pode ser acusado por atender às suas
necessidades básicas. Mas ao mesmo tempo as necessidades dos outros também são importantes, e
quando podemos ajudar os outros - especialmente quando issonão representa grande sacrifício para
nós mesmos - devemos fazê-lo. Assim, se tivermos dez euros a mais, e se doá-los a uma agência de
combate à fome puder ajudar a salvar uma criança, então a moralidade de senso comum diria que
devemos dar o dinheiro.
Esta maneira de pensar implica um pressuposto geral sobre os nossos deveres morais: parte-se do
princípio de que temos deveres morais para com as outras pessoas, e não apenas deveres que nós
mesmos criamos, fazendo uma promessa ou contraindo uma dívida, por exemplo. Temos deveres
"naturais" para com os outros simplesmente porque são pessoas que podem ser auxiliadas ou
prejudicadas pelo que nós fazemos. Se uma dada acção favorecesse (ou prejudicasse) outras
pessoas, isso seria uma razão para devermos (ou não devermos) realizar essa acção. O pressuposto
de senso comum é que, do ponto de vista moral, os interesses das outras pessoas contam por si.
Mas o que para uma pessoa é senso comum é para outra uma ingénua banalidade. Alguns pensadores
defenderam que não temos, de facto, quaisquer deveres "naturais" para com as outras pessoas. O
egoísmo ético é a ideia de que cada pessoa tem a obrigação exclusiva de lutar pelos seus interesses. E
diferente do egoísmo psicológico, uma teoria da natureza humana dedicada ao estudo de como as
pessoas realmente se comportam. O egoísmo psicológico afirma que as pessoas de facto lutam pelos
seus próprios interesses. O egoísmo ético, pelo contrário, é uma teoria normativa - isto é, uma
teoria sobre como devemos comportar-nos. Independentemente de como nos comportamos, o egoísmo
ético afirma que o nosso único dever é fazer o melhor para nós mesmos.
117
É uma teoria que levanta desafios. Contradiz algumas das nossas crenças morais mais
profundas -convicções que, em qualquer caso, a maior parte das pessoas tem - e não é
fácil de refutar. Vamos examinar os argumentos mais importantes a favor e contra esta
teoria. Se verificarmos que é verdadeira, terá naturalmentea maior importância. Mas mesmo
que se revele falsa, há ainda assim muito que aprender com a sua análise, pois podemos
alcançar uma melhor compreensão das razões pelas quais temos de facto obrigações para
com os outros.
Mas antes de nos debruçarmos sobre os argumentos, devemos ser um pouco mais claros
sobre o que esta teoria diz ou não diz ao certo. Em primeiro lugar, o egoísmo ético não diz
que devemos defender os nossos próprios interesses bem comoos interesses dos outros.
Isso seria uma perspectiva vulgar, de senso comum. O egoísmo ético é o ponto de vista
segundo o qual o nosso único dever é promover os nossos próprios interesses. Para o
egoísmo ético há apenas um princípio fundamental de conduta, o princípio do interesse
próprio, e este princípio resume todos os nossos deveres e obrigações naturais.
No entanto, o egoísmo ético não diz que devemos evitar acções que ajudam os outros. Pode
acontecer em várias circunstâncias que os seus interesses coincidam com os interesses dos
outros, pelo que ao ajudar-se a si mesmo estaria, desejando-o ou não, a ajudá-los. Ou pode
dar-se o caso de que o auxílio aos outros seja um meio eficaz para obtermos alguma
vantagem para nós mesmos. O egoísmo ético não proíbe tais acções; na verdade, pode
mesmo recomendá-las. A teoria insiste apenas que em tais casos o benefício para os outros
não é o que torna a acção correcta. O que a torna correcta é, pelo contrário, o facto de ser
realizada em proveito próprio.
Por fim, o egoísmo ético não pressupõe que ao lutarmos pelos nossos próprios interesses
tenhamos sempre de fazer o que queremos, ou aquilo que nos dá maior prazer a curto
118
prazo. Alguém pode querer beber em excesso, fumar cigarros,consumir drogas ou
desperdiçar os melhores anos da sua vida nas corridas de automóveis. O egoísmo ético
torceria o nariz a tudo isto, independentemente do prazer momentâneo que possa trazer. O
egoísmo ético afirma que uma pessoa deve fazer o que é de facto em seu próprio interesse a
longo prazo. Sanciona o egoísmo, mas não sanciona a parvoíce.
6.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético
Que argumentos podem ser apresentados para apoiar esta doutrina? A teoria é, infelizmente,
mais vezes afirmada do que defendida - muitos dos seus defensores pensam que a sua
verdade é evidente por si, não sendo necessários argumentos. Quando é defendida, três
linhas de raciocínio são usadas com mais frequência.
O argumento de que o altruísmo se autoderrota. O primeiro argumento tem diversas
variantes, cada uma delas sugerindo a mesma ideia geral:
- Cada um de nós está intimamente familiarizado com as suaspróprias necessidades e
desejos. Além disso, cada um de nós está na melhor posição para procurar efectivamente a
realização desses desejos e necessidades. Acresce que só conhecemos os desejos e
necessidades das outras pessoas de forma imperfeita, e não estamos bem colocados para as
satisfazer. Logo, é razoável pensar que se nos propuséssemos ser "os guardiões dos nossos
irmãos", iríamos com frequência confundir tudo e acabar porfazer mais mal do que bem;
- Acresce que a política de "cuidar dos outros" é uma intromissão ofensiva na privacidade
das outras pes-
119
soas; é essencialmente uma política baseada em metermo-nos na vida alheia;
- Tornar as outras pessoas o objecto da nossa "caridade" é degradante para elas; priva-as da
sua dignidade e amor-próprio. A oferta de caridade diz, comefeito, que elas não são
competentes para tratar de si mesmas; e a afirmação é auto-realizável. As pessoas deixam de
ter confiança em si mesmas e tornam-se passivamente dependentes dos outros. Essa é a
razão pela qual os beneficiários da "caridade" se mostram com tanta frequência ressentidos
e não gratos.
Assim sendo, considera-se que a política de "cuidar dos outros" se autoderrota. Se
queremos fazer o que é melhor para as pessoas, não devemos adoptar as chamadas políticas
altruísticas de comportamento. Pelo contrário, se cada pessoa cuidar dos seus próprios
interesses é mais provável que todos fiquem melhor. Como afirma Robert G. Olson no seu
livro The Morality of Self-Interest (1965), "O indivíduo tem mais probabilidades de
contribuir para o melhoramento social lutando racionalmentepelos seus próprios interesses
de longo prazo". Ou, nas palavras de Alexander Pope,
E assim Deus e a Natureza formaram o quadro geral Ordenandoque o amor de si e da sociedade seja
igual.
E possível contestar este argumento num sem-número de aspectos. É claro que ninguém
apoia a inépcia, a intromissão, ou que as pessoas sejam privadas do seu amor-próprio. Mas
será isso que fazemos quando alimentamos crianças com fome?Uma criança esfomeada na
Somália será realmente prejudicada quando nos "intrometemos" na "sua vida" ao fornecer-
lhe alimentos? Parece pouco provável. Mas podemos deixar delado este aspecto, pois,
120
considerada enquanto argumento a favor do egoísmo ético, esta linha de pensamento tem um
defeito ainda mais grave.
O problema é que não é, de todo, um argumento a favor do egoísmo ético. O argumento
conclui que devemos adoptar determinadas políticas de comportamento; e à superfície
parecem políticas egoístas. No entanto, a razão pela qual se diz que devemos adoptar estas
políticas é decididamente não egoísta. Diz-se que devemos adoptar essas políticas porque
fazê-lo promoverá "o aperfeiçoamento da sociedade" - mas segundo o egoísmo ético isso
é algo que não nos deve preocupar. Expresso de forma completa, com todas as cartas na
mesa, o argumento afirma o seguinte:
1) Devemos fazer o que melhor promover os interesses de todos;
2) A melhor forma de promover os interesses de todos é cadaum de nós adoptar a política
de cuidar exclusivamente dos seus próprios interesses;
3) Logo, cada um de nós deve adoptar a política de cuidar exclusivamente dos seus próprios
interesses.
Se aceitamos este raciocínio, então não somos egoístas éticos. Mesmo que acabemos por
nos comportar como egoístas, o nosso princípio fundamental é de beneficência - estamos a
fazer o que pensamos poder auxiliar todos, e não apenas o que pensamos nos irá beneficiar a
nós. Em vez de egoístas, acabamos por nos revelar altruístas com uma perspectiva peculiar
do que de facto promove o bem-estar geral.
O argumento de Ayn Rand. Ayn Rand não é muito lida por filósofos, em grande parte
porque as ideias principais associadas ao seu nome - que o capitalismo é um sistema
económico moralmente superior, e que a moralidade requer respeito absoluto pelos direitos
dos indivíduos - são
121
desenvolvidas de forma mais rigorosa por outros autores. Não obstante, foi uma figura
carismática que atraiu admiradores fiéis durante a sua vidae, hoje, duas décadas após a sua
morte, a indústria Ayn Rand continua a fortalecer-se. Entreos autores do século xx, a ideia
do egoísmo ético está provavelmente mais estreitamente associada a Ayn Rand que a
qualquer outra pessoa.
Ayn Rand encarava a ética do "altruísmo" como uma ideia completamente destrutiva quer
na sociedade como um todo, quer nas vidas dos indivíduos a ela devotados. O altruísmo
conduz, na sua maneira de pensar, a uma negação do valor doindivíduo. Diz a uma pessoa:
A tua vida é apenas algo que'pode ser sacrificado. "Se um ser humano aceita a ética do
altruísmo", escreve ela, "a sua primeira preocupação não é como viver a sua vida, mas como
sacrificá-la". Os que promovem a ética do altruísmo são mais que desprezíveis - são
parasitas que, em vez de se esforçarem para erguer e manteras suas vidas, sugam aqueles
que o fazem. Escreve ela:
Parasitas, vadios, saqueadores, bestas e rufiões não têm qualquer valor para um ser humano - nem
pode [um ser humano] ganhar coisa alguma com o facto de viver numa sociedade adaptada às
necessidades, exigências e protecção deles, uma sociedade que o trata a si como animal sacrificial e o
penaliza pelas suas virtudes de forma a recompensá-/os pelos seus vícios, ou seja: uma sociedade
baseada na ética do altruísmo.
Quando diz "sacrificar a sua própria vida" Rand não quer dizer algo tão dramático como
morrer. A vida de uma pessoa é feita, em parte, de projectos empreendidos e de bens ganhos
e criados. Assim, exigir a uma pessoa que abandone os seus projectos ou desista dos seus
bens é um esforço para "sacrificar a sua vida".
Rand também insinua que há uma base metafísica para a éticaegoísta. É a única ética que,
de alguma forma, toma
122
a sério a realidade da pessoa individual. Rand lamenta "atéque ponto o altruísmo corrói a
capacidade de os homens compreenderem [...] o valor de uma vida individual; isso revela um
espírito do qual foi varrido a realidade de um ser humano".
Que fazer, então, das crianças com fome? Poderia argumentar-se que o próprio egoísmo
ético "revela um espírito do qual foi varrido a realidade de um ser humano" - neste caso, o
ser humano que está a morrer de fome. Mas Rand cita de forma aprovadora a resposta dada
por um dos seus seguidores: "Quando, certa vez, Barbara Brandon foi questionada por um
estudante sobre o que irá acontecer aos pobres, ela respondeu: 'Se você quer ajudá-los, não
será impedido'."
Todas estas afirmações são, penso, parte de um só argumentoque pode ser resumido desta
forma:
1) Uma pessoa só tem uma vida para viver. Se valorizamos o indivíduo - isto é, se o
indivíduo tem valor moral- então devemos concordar que a sua vida tem uma importância
suprema. Afinal de contas, é só isso que temos e só isso que somos;
2) A ética do altruísmo encara a vida do indivíduo como algo que devemos estar prontos a
sacrificar para o bem dos outros. Logo, a ética do altruísmo não toma a sério o valor do
indivíduo humano;
3) O egoísmo ético, que permite a cada pessoa encarar a suavida como tendo um valor
fundamental, leva a sério o indivíduo humano - é, na realidade, a única filosofia que o faz;
4) Logo, o egoísmo ético é a filosofia que devemos aceitar.
Um problema deste argumento, como o leitor poderá já ter notado, é pressupor que temos
apenas duas opções: ou aceitamos a "ética do altruísmo" ou aceitamos o egoísmo
123
ético. Faz-se então a escolha parecer óbvia ao retratar "a ética do altruísmo" como uma
doutrina demente que apenas um idiota poderia aceitar - diz-se que a "ética do altruísmo"
é a perspectiva segundo a qual os nossos próprios interesses não têm qualquer valor, pelo
que devemos estar prontos a sacrificar-nos totalmente sempre que qualquer pessoa o peça.
Se esta fosse a' alternativa, qualquer outra perspectiva, mesmo o egoísmo ético, pareceria
boa por comparação.
Mas isso dificilmente pode considerar-se uma boa representação das escolhas. Aquilo a que
chamámos a perspectiva de senso comum situa-se entre os dois extremos. Afirma que os
nossos próprios interesses e os interesses dos outros são ambos importantes e devem ser
sopesados. Por vezes, quando apoiamos os diferentes interesses, verificamos que devemos
agir em função dos interesses dos outros; outras vezes, verificamos que devemos cuidar de
nós mesmos. Portanto, mesmo rejeitando a visão extrema da "ética do altruísmo", daí não se
entende que devemos aceitar a outra visão extrema do egoísmo ético, pois há um meio-
termo disponível.
O egoísmo ético enquanto compatível com a moralidade de senso comum. A terceira linha
de argumentação faz uma abordagem de tipo diferente. O egoísmo ético é habitualmente
apresentado como uma filosofia moral revisionista, isto é, uma filosofia segundo a qual as
nossas ideias morais de senso comum estão erradas e precisam ser alteradas. É possível, no
entanto, interpretar o egoísmo ético de uma forma muito menos radical, como uma teoria
que aceita a moralidade de senso comum e fornece uma explicação surpreendente dos seus
fundamentos.
A interpretação menos radical afirma o seguinte: A moralidade comum consiste em obedecer
a certas regras. Devemos evitar fazer mal aos outros, dizera verdade, cumprir as nossas
promessas, e assim por diante. À primeira vista, estes deveres parecem ter pouco em comum
- são apenas
124
um conjunto de regras separadas. No entanto, do ponto de vista teórico, podemos perguntar
se não haverá uma unidade subjacente à mistura de diferentes deveres. Talvez exista um
pequeno número de princípios fundamentais para explicar o resto, assim como na física há
princípios básicos que unificam e explicam fenómenos diversificados. Do ponto de vista
teórico, quanto mais pequeno o número de princípios básicosmelhor. O ideal seria um
princípio fundamental, a partir do qual derivasse tudo o resto. O egoísmo ético seria, então,
a teoria segundo a qual todos estes deveres são em última instância derivados de um
princípio fundamental de interesse próprio.
Entendido desta forma, o egoísmo ético não é uma doutrina assim tão radical. Não põe em
causa a moralidade de senso comum; apenas tenta explicá-la e sistematizá-la. E consegue ser
surpreendentemente bem sucedido. Pode fornecer explicações plausíveis dos deveres
mencionados e mais ainda:
- O dever de não fazer mal aos outros: Se nos habituamos a fazer coisas prejudiciais aos
outros, as pessoas não sentirão relutância em fazer coisas que nos prejudiquem. Seremos
evitados e desprezados; os outros não quererão ser nossos amigos nem nos farão favores
quando precisarmos. Se as nossas ofensas aos outros forem muito sérias, podemos até
acabar na cadeia. Assim, evitar magoar os outros é algo quenos beneficia a nós mesmos;
- O dever de não mentir: Se mentirmos aos outros, sofreremos todos os efeitos* nefastos de
uma má reputação. As pessoas vão desconfiar de nós e evitarem manter contactos
connosco. Vamos precisar com frequência que as pessoas sejam sinceras connosco, mas
dificilmente poderemos esperar que se sintam obrigadas a ser sinceras connosco se nós não
fomos sinceros com elas. Assim, temos vantagens em não mentir;
125
- O dever de cumprir as promessas: É no nosso próprio interesse entrar em acordos
mutuamente benéficos com outras pessoas. Para beneficiar desses acordos, precisamos
poder confiar em que elas vão cumprir a sua parte do contrato, precisamos de poder confiar
que vão cumprir as promessas que nos fizeram. Mas dificilmente poderemos esperar que os
outros cumpram as suas promessas para connosco se nós não mantemos as nossas para com
eles. Logo, do ponto de vista do interesse próprio, devemoscumprir as nossas promessas.
Prosseguindo esta linha de raciocínio, Thomas Hobbes sugeriu que o princípio do egoísmo
ético conduz a nada mais nada menos que a Regra de Ouro: Devemos "ajudar os outros"
porque se o fizermos será mais provável que eles "nos ajudem a nós".
Será que este argumento consegue estabelecer o egoísmo ético como uma teoria moral
viável? Trata-se, na minha opinião pelo menos, da melhor tentativa para o fazer. Mas há dois
problemas sérios com o argumento. Em primeiro lugar, não prova tudo o que precisa de
provar. Na melhor das hipóteses, mostra apenas que na maiorparte das vezes é benéfico
para nós evitar fazer mal aos outros. Não mostra que isso ésempre vantajoso para nós. E
não poderia fazê-lo, pois, apesar de poder ser usualmente vantajoso evitar fazer mal aos
outros, por vezes não o é. Por vezes podemos tirar benefícios de tratar mal outra pessoa.
Nesse caso, a obrigação de não fazer mal à outra pessoa nãopoderia ser deduzida dos
princípios do egoísmo ético. Assim, parece que nem todas asnossas obrigações morais
podem ser explicadas em termos de serem deriváveis do interesse próprio.
Mas, pondo de lado esse aspecto, há um problema ainda mais fundamental. Suponhamos
que é verdade, por exemplo, que doar dinheiro para o combate à fome nos
126
pode, de alguma forma, beneficiar. Não se segue daí que esta seja a única razão, ou mesmo
a razão fundamental, pela qual fazer isso é bom. A razão fundamental poderia ser, por
exemplo, ajudar as pessoas com fome. O facto de que fazer isso é também no nosso próprio
interesse poderia ser apenas uma consideração secundária e menos importante. Assim,
apesar de o egoísmo ético afirmar que o interesse próprio éa única razão pela qual devemos
ajudar os outros, nada no argumento agora descrito apoia realmente isso.
6.3 Três argumentos contra o egoísmo ético
A filosofia moral está assombrada pelo egoísmo ético. Não éuma doutrina popular; os
filósofos mais importantes rejeitaram-na frontalmente. Mas nunca esteve longe dos seus
pensamentos. Apesar de nenhum pensador importante a ter defendido, quase todos sentiram
a necessidade de explicar por que razão a rejeitavam, como se a possibilidade de essa
doutrina poder estar correcta fosse uma presença constante,ameaçando asfixiar as outras
ideias. À medida que eram debatidos os méritos das várias "refutações", os filósofos
voltaram a ela uma e outra vez.
Curiosamente, os filósofos não prestaram muita atenção ao que poderíamos pensar que é o
argumento mais óbvio contra o egoísmo ético, a saber, que iria justificar acções perversas -
desde que, é claro, essas acções beneficiem a pessoa que aspratica. Eis alguns exemplos,
tirados de vários jornais: Para aumentar os seus lucros, umfarmacêutico aviou receitas para
pacientes de cancro usando medicamentos diluídos. Um enfermeiro violou duas pacientes
enquanto estavam inconscientes. Um paramédico deu a dois pacientes de urgências injecções
com água esterilizada em vez de morfina, de modo a poder vender a morfina. Um bebé
ingeriu ácido dado pelos pais que assim queriam forjar motivos para um processo criminal,
alegando que a papa
127
do bebé estava contaminada. Uma menina de treze anos foi raptada por um vizinho,
algemada e mantida num abrigo subterrâneo durante 181 dias,durante os quais foi
submetida a abusos sexuais.
Suponhamos que, ao fazer estas coisas, alguém podia de facto obter algum benefício para si
mesmo. Isso implica, naturalmente, evitar ser apanhado. Mas, podendo escapar às malhas da
lei, não teria o egoísmo ético de afirmar que tais acções são permissíveis? Isto parece
suficiente, só por si, para desacreditar a doutrina. Penso que é uma acusação válida;
contudo, poderia dizer-se que há uma petição de princípio neste argumento contra o
egoísmo ético, porque ao afirmar que estas acções são malévolas, estamos a apelar para uma
concepção não egoísta de maldade. Podemos, pois, perguntar se não haverá qualquer outro
problema com o egoísmo ético, face ao qual não se incorra em petição de princípio.
Assim, alguns filósofos tentaram mostrar que há problemas lógicos mais profundos com o
egoísmo ético. Os argumentos que se seguem são típicos das refutações que eles
propuseram.
O argumento de que o egoísmo ético não pode resolver conflitos de interesse. No seu livro
The Moral Point of View (1958), Kurt Baier defende que o egoísmo ético não pode estar
correcto porque não pode oferecer soluções para conflitos de interesses. Só precisamos de
regras morais, afirma, porque os nossos interesses por vezes entram em conflito - se nunca
se opusessem, então não haveria problemas a resolver e por isso não haveria necessidade do
tipo de orientação que a moralidade oferece. Mas o egoísmo ético não ajuda a resolver
conflitos de interesses; apenas os exacerba. Baier defende esta ideia por meio de um
exemplo curioso:
Suponhamos que B e K são candidatos à presidência num certopaís e suponhamos que serve os
interesses de cada candidato ser eleito, mas apenas um podeconsegui-lo. Serviria
128
então os interesses de B e seria contra os interesses de K se B fosse eleito, e vice-versa, e portanto
serviria os interesses de B mas seria contra os interesses de K se K fosse derrotado, e vice-versa. Mas
disto seguir-se-ia que B deveria derrotar K, que é errado Bnão o fazer, que B não "fez o seu dever"
até derrotar K; e vice-versa. De modo análogo, K, sabendo que a sua própria derrota serve os
interesses de B e, por isso, prevendo as tentativas de B para a assegurar, deve envidar esforços para
malograr os intentos de B. Seria errado para si não o fazer. "Não teria cumprido o seu dever" até ter
a certeza de ter vencido B [...]
Isto é obviamente absurdo. Pois a moralidade é concebida justamente para se aplicar a tais casos, isto
é, nos casos em que há conflito de interesses. Mas se o ponto de vista da moralidade fosse o do
interesse próprio, então nunca poderia haver soluções morais para conflitos de interesses.
Será que este argumento prova que o egoísmo ético é inaceitável? Prova, se a concepção de
moralidade para a qual faz apelo for aceite. O argumento dápor adquirido que uma
moralidade adequada deve fornecer soluções para conflitos de interesses de tal modo que
todos possam viver juntos de forma harmoniosa. O conflito entre B e K, por exemplo,
deveria ser resolvido de tal modo que nunca mais estivessemem desavença um com o outro.
(Nunca mais teriam o dever de fazer algo que o outro tem o dever de impedir.) O egoísmo
ético não faz isso, e se pensamos que uma teoria ética devia fazê-lo, então o egoísmo ético
não nos parecerá aceitável.
Mas um defensor do egoísmo ético poderia responder que não aceita esta concepção de
moralidade. Para ele, a vida é essencialmente uma longa série de conflitos na qual cada
pessoa luta para triunfar; e o princípio que ele aceita - oprincípio do egoísmo ético -
concede a cada pessoa o direito de fazer o seu melhor para vencer. Nesta perspectiva, o
moralista não é como um juiz no tribunal, a resolver disputas. É, ao invés, como o árbitro do
boxe, que insta cada um dos lutadores a darem o seu melhor.Por isso, o
129
conflito entre B e K será "solucionado" não pela aplicação de um princípio ético mas pela
vitória de um deles na luta. O egoísta não fica embaraçado com este facto. Pelo contrário,
pensa que é apenas uma perspectiva realista da natureza dascoisas.
O argumento de que o egoísmo ético é inconsistente no planológico. Alguns filósofos, entre
eles Baier, dirigiram ao egoísmo ético uma acusação ainda mais grave. Argumentaram que
conduz a contradições lógicas. Se isto é verdade, então o egoísmo ético é de facto uma
teoria errada, pois nenhuma teoria pode ser verdadeira se for autocontr aditória.
Considere-se de novo B e K. Tal como Baier explica a dificuldade de B e K, é do interesse
de B matar K, e é obviamente no interesse de K evitá-lo. Mas, afirma Baier,
se K impedir B de o liquidar, o seu acto tem de ser classificado simultaneamente como errado e não
errado - errado porque impede B de fazer o que deve fazer, o seu dever, sendo errado B não o fazer;
e não errado porque é o que K deve fazer, o seu dever, sendo errado K não o fazer. Mas um mesmo
acto não pode ser (logicamente) ao mesmo tempo errado e nãoerrado no plano moral.
Vejamos: será que este argumento prova que o egoísmo ético é inaceitável? À primeira vista
parece persuasivo. No entanto, é um argumento complicado, pelo que precisamos de o
delinear identificando cada passo individualmente. Ficaremos depois numa posição mais
vantajosa para o avaliar. Explicitado de forma completa, tem o aspecto seguinte:
1) Suponha-se que o dever de cada pessoa é fazer o que melhor defende os seus interesses;
2) Liquidar K, é o melhor para os interesses de B;
3) Impedir B de o liquidar, é o melhor para os interesses de K;
130
4) Logo, o dever de B é liquidar K, e o dever de K é impedir B de o fazer;
5) É errado impedir^alguém de cumprir o seu dever;
6) Logo, é errado para K impedir B de o liquidar;
7) Logo, é simultaneamente errado e não errado para K impedir B de o liquidar;
8) Mas nenhum acto pode ser ao mesmo tempo errado e não errado; isso é uma
autocontradição;
9) Logo, o pressuposto do qual partimos -que é o dever de cada pessoa fazer o que melhor
defende os seus interesses - não pode ser verdadeiro.
Quando se exprime o argumento desta maneira podemos ver o seu defeito oculto. A
contradição lógica - segundo a qual é ao mesmo tempo erradoe não errado para K impedir
B de o liquidar - não se segue pura e simplesmente dos princípios do egoísmo ético.
Segue-se desses princípios juntamente com a premissa adicional expressa no ponto 5, a
saber, que "é errado impedir alguém de cumprir o seu dever". Não somos, pois, obrigados
pela lógica do argumento a rejeitar o egoísmo ético. Podíamos, pelo contrário, rejeitar
simplesmente esta premissa adicional, e a contradição seriaevitada. Isso seria certamente o
que o egoísta ético faria, pois ele nunca iria dizer, sem restrições, que é sempre errado
impedir alguém de cumprir o seu dever. Ele diria, ao invés,que saber se devemos impedir
alguém de cumprir o seu dever depende inteiramente de saberse daí advém alguma
vantagem para nós. Pensemos ou não que esta é uma perspectiva correcta, ela é, pelo
menos, uma perspectiva consistente, e portanto esta tentativa de condenar o egoísta por
autocontradição fracassa.
O argumento de que o egoísmo ético é inaceitavelmente arbitrário. Chegamos finalmente ao
argumento que me parece chegar mais perto de uma refutação imediata completa do
egoísmo ético. É também o argumento mais
131
interessante, porque permite vislumbrar o motivo pelo qual os interesses das outras pessoas
devem ter importância para nós. Mas, antes de apresentar este argumento, precisamos
atentar brevemente num aspecto geral dos valores morais. Assim, ponhamos de lado o
egoísmo ético por um momento para reflectir neste assunto com ele relacionado.
Há toda uma família de perspectivas morais que têm em comumo seguinte: Todas implicam
dividir as pessoas em grupos e em afirmar que os interessesde alguns grupos têm mais
importância do que os de outros. Õ racismo é o exemplo maisóbvio; o racismo divide as
pessoas em grupos segundo a raça e concede mais importânciaaos interesses de uma raça
do que aos outros. O resultado prático é que os membros de uma raça são melhor tratados
do que os outros. O anti-semitismo funciona da mesma forma,e o nacionalismo também. As
pessoas influenciadas por estas perspectivas pensam, com efeito, que "a minha raça é mais
importante", "os que acreditam na minha religião são mais importantes" ou "o meu país é
mais importante", e assim por diante.
Podem tais pontos de vista ser defendidos? As pessoas que aceitam estas perspectivas não
estão, normalmente, muito interessadas em argumentações - os racistas, por exemplo,
raramente tentam apresentar bases racionais para as suas convicções. Mas suponhamos que
o faziam. O que poderiam dizer?
Há um princípio geral que barra o caminho a uma tal defesa,a saber: Só podemos justificar
o tratamento diferenciado das pessoas se pudermos mostrar que há uma diferença factual
entre elas que seja relevante para justificar a diferença de tratamento. Por exemplo, se uma
pessoa é aceite numa faculdade de Direito e outra é rejeitada, isto poderia ser justificado
sublinhando que a primeira se formou com distinção na escola secundária e teve bons
resultados no teste de admissão, enquanto a segunda abandonou a escola e não fez o teste.
No entanto, se ambas as
pessoas completaram os estudos secundários com distinção e tiveram bons resultados no
exame de admissão - se em todos os aspectos relevantes são igualmente qualificadas -,
então é meramente arbitrário admitir uma e não a outra.
Devemos, pois, perguntar o seguinte: Pode um racista apontar uma diferença entre,
digamos, brancos e negros, que possa justificar tratá-los de maneira diferente? Os racistas
tentaram por vezes fazer isso descrevendo os negros como estúpidos, falhos de ambição, e
outras coisas que tais. Se isso fosse verdade, poderia justificar-se tratá-los de forma
diferente, pelo menos em algumas circunstâncias. (Este é o propósito de fundo dos
estereótipos racistas, oferecer as "diferenças relevantes" necessárias para justificar as
diferenças de tratamento.) Mas naturalmente isso não é verdade, e de facto não há tais
diferenças genéricas entre as raças. Portanto, o racismo é uma doutrina arbitrária, pois
advoga o tratamento diferenciado das pessoas apesar de não existirem entre elas diferenças
que o justifique.
O egoísmo ético é uma teoria moral do mesmo género. Advoga que cada pessoa divida o
mundo em duas categorias de pessoas - nós e todos os outros- e que encare os
interesses dos do primeiro grupo como mais importantes do que os interesses dos do
segundo grupo. Mas, pode cada um de nós perguntar, qual é afinal a diferença entre mim e
todos os outros que justifica colocar-me a mim mesmo nesta categoria especial? Serei mais
inteligente? Gozarei mais a minha vida? Serão as minhas realizações mais notáveis? Terei
necessidades e capacidades assim tão diferentes das necessidades e capacidades dos outros?
Em resumo, o que me torna tão especial? Ao não fornecer umaresposta, o egoísmo ético
revela-se uma doutrina arbitrária, no mesmo sentido em que o racismo é arbitrário. Além de
explicar a razão pela qual o egoísmo ético é inaceitável, isto lança também alguma luz sobre
a questão de saber por que devemos importar-nos com os outros.
132
133
Devemos importar-nos com os interesses das outras pessoas pela mesma razão que nos
importamos com os nossos; pois os seus desejos e necessidades são comparáveis aos nossos.
Consideremos, uma última vez, as crianças a morrer à fome que poderíamos alimentar
desistindo de alguns dos nossos luxos. Porque razão deveríamos preocupar-nos com elas?
Preocupamo-nos connosco mesmos, é claro - se estivéssemos amorrer à fome faríamos
quase tudo para obter comida. Mas qual é a diferença entre nós e eles? A fome afecta-os
menos? Serão de alguma forma menos merecedores do que nós? Se não conseguimos
descobrir qualquer diferença relevante entre nós e eles, devemos então admitir que se as
nossas necessidades devem ser satisfeitas, então também as suas o devem ser. É esta tomada
de consciência, de que estamos em plano de igualdade uns com os outros, que constitui a
razão mais profunda pela qual a nossa moralidade deve incluir algum reconhecimento das
necessidades dos outros, e a razão pela qual, portanto, o egoísmo ético fracassa enquanto
teoria moral.
134
7
A abordagem utilitarista
Tendo em conta a nossa perspectiva actual, é surpreendente que a ética cristã tenha aceitado ao longo dos
séculos, quase de forma unânime, a doutrina sentenciosa de que "o fim não justifica os meios". Temos de
perguntar, agora, "se o fim não justifica os meios, o que os justifica?" A resposta é, obviamente, "Nada!".
JOSEPH FLETCHER, Moral Responsibility (1967)
7.1 A revolução na ética
Os filósofos gostam de pensar que as suas ideias podem mudar o mundo. Geralmente, trata-
se de uma vã esperança: escrevem livros que são lidos por pensadores como eles, enquanto
o resto da humanidade prossegue a sua vida, indiferente. Algumas vezes, uma teoria
filosófica pode, no entanto, alterar a forma como as pessoas pensam. O utilitarismo, uma
teoria proposta por David Hume (1711-1776) mas cuja formulação definitiva coube a
Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), é um desses casos.
135
A ABORDAGEM UTILITARISTA
Os finais dos séculos xvm e xix produziram uma surpreendente série de mudanças e
tumultos sociais. O moderno Estado-nação começou a emergir na sequência da Revolução
Francesa e da derrocada do Império napoleónico; as revoluções de 1848 mostraram a
persistência do poder das novas ideias de "liberdade, igualdade e fraternidade"; na América,
foi criado um país novo com um tipo novo de Constituição, ea sua guerra civil sangrenta
acabaria por pôr fim, finalmente, à escravatura na civilização ocidental; entretanto, a
Revolução Industrial dava origem a uma completa reestruturação da sociedade.
Não é de surpreender que no meio de toda esta mudança as pessoas pudessem começar a
pensar de forma diferente sobre a ética. As velhas maneirasde pensar eram colocadas em
causa, abrindo-se ao debate. Contra este pano de fundo, a argumentação de Bentham para
uma nova concepção de moralidade teve uma poderosa influência. A moralidade, defendia
Bentham, não é uma questão de agradar a Deus, nem uma questão de fidelidade a regras
abstractas. A moralidade é apenas um esforço para trazer a este mundo tanta felicidade
quanto possível.
Bentham defendia que há um princípio moral essencial, a saber, "o princípio da utilidade".
Este princípio requer que, sempre que temos a possibilidadede escolher entre acções ou
políticas sociais alternativas, escolhamos aquela que, no seu todo, tem melhores
consequências para todos os envolvidos. Ou, como ele disse no livro Princípios da Moral e
da Legislação, publicado no ano da Revolução Fran-
cesa:
Pelo princípio de utilidade designa-se aquele princípio pelo qual todas as acções se aprovam ou
desaprovam em função da tendência que pareçam ter para aumentar ou diminuir a felicidade de quem
tem os seus interesses em causa; ou, o que é a mesma coisa dita por outras palavras, para promover
ou opor-se à felicidade.
Bentham era líder de um grupo de filósofos radicais cujo objectivo era reformar as leis e as
instituições de Inglaterra segundo as linhas utilitaristas.Um dos seus seguidores era James
Mill, o distinto filósofo, historiador e economista escocês. O filho de James Mill, John Stuart
Mill, viria a tornar-se o principal defensor da teoria moral utilitarista na geração seguinte,
pelo que o movimento benthamista não perdeu força alguma mesmo depois da morte do seu
fundador.
Bentham teve a felicidade de ter estes discípulos. A arguição de John Stuart Mill era, no
mínimo, ainda mais elegante e persuasiva que a do mestre. No seu pequeno livro
Utilitarismo (1861), Mill apresenta a ideia principal da teoria da seguinte maneira. Primeiro,
imaginamos a possibilidade de um determinado estado de coisas que gostaríamos de ver
concretizado - um estado de coisas no qual todas as pessoassejam tão felizes e abastadas
quanto possível:
De acordo com o princípio da maior felicidade [...] o fim último, relativamente ao qual e em função
do qual todas as outras coisas são desejáveis (quer consideremos o nosso próprio bem quer o bem de
outras pessoas), é uma existência tanto quanto possível isenta de dor, e tão rica quanto possível de
prazeres.
A regra fundamental da moralidade pode, pois, ser enunciadade forma simples. É agir de
modo a realizar este estado de coisas, na medida em que seja possível:
Sendo este, segundo a opinião utilitarista, o fim da acção humana, é também necessariamente o
padrão da moralidade, que pode por isso ser definido, como as regras e preceitos da conduta humana,
pela observância dos quais uma existência como a descrita pode ser, na máxima extensão possível,
garantida a toda a Humanidade, e não apenas a ela, mas, tanto quanto a natureza das coisas o
permite, a todas as criaturas sencientes.
136
137
Ao decidir o que fazer, devemos, pois, perguntar qual o curso de acção que irá promover a
maior felicidade para todos os que serão afectados pelos nossos actos. A moralidade exige
que façamos o que é melhor desse ponto de vista.
À primeira vista, isto pode não parecer uma ideia particularmente radical; de facto, pode
parecer um truísmo suave. Quem poderia contestar a proposição de que devemos opor-nos
ao sofrimento e promover a felicidade? No entanto, Bentham e Mill estavam, à sua maneira,
a liderar uma revolução tão radical quanto qualquer uma dasduas outras grandes revoluções
intelectuais do século xix, as de Marx e Darwin. Para entender o radicalismo do princípio de
utilidade temos de considerar o que deixa de fora da sua representação da moralidade: são
abandonadas quaisquer referências a Deus ou a regras moraisabstractas "estabelecidas nos
céus". A moralidade deixa de ser entendida como fidelidade a um tipo de código legado pela
divindade ou a um conjunto de regras inflexíveis. O objectivo declarado da moralidade é a
felicidade dos seres deste mundo, e nada mais; e é-nos permitido - ou mesmo exigido -
fazer o que for necessário para promover essa felicidade. Isso era, naquele tempo, uma ideia
revolucionária.
Além de filósofos, como referi, os utilitaristas eram reformadores sociais. Pretendiam que a
sua doutrina não tivesse apenas efeitos no pensamento mas também na prática. Para ilustrar
isto, vamos examinar brevemente as implicações da sua filosofia em duas questões práticas
bastante diferentes: a eutanásia e o tratamento de animais não-humanos. Estas matérias não
esgotam, de forma alguma, as aplicações práticas do utilitarismo; nem são necessariamente
as questões que os utilitaristas considerariam mais urgentes. Mas dão, de facto, uma boa
indicação do tipo de abordagem característica do utilita-
rismo.
138
A ABORDAGEM UTILITARISTA
7.2 Primeiro exemplo: eutanásia
Matthew Donnelly era um físico que trabalhou com raios X durante trinta anos. Talvez
devido à exposição excessiva à radiação, contraiu cancro e perdeu parte da sua maxila, o
lábio superior, o nariz, a mão esquerda e ainda dois dedos da mão direita. Além disso, ficou
cego. Os médicos do Sr. Donnelly disseram-lhe que tinha cerca de um ano de vida, mas ele
decidiu que não queria continuar a viver em tal estado. Sentia dores permanentes. Um
cronista afirmou que "nos piores momentos, deitado na cama,de dentes cerrados, viam-se
gotas de suor a correr-lhe pela fronte". Sabendo que ia morrer de qualquer das maneiras, e
desejando escapar à sua desgraça, Donnelly pediu aos seus três irmãos para o matarem. Dois
recusaram, mas o último não. O irmão mais novo, Harold Donnelly, de 36 anos, levou para
o hospital uma pistola de calibre 30 e matou Matthew.
Isto é, infelizmente, uma história verdadeira, e levanta naturalmente a questão de saber se
Harold Donnely fez mal. Por um lado, podemos pensar que foimotivado por sentimentos
nobres; amava o irmão e apenas desejava libertá-lo do sofrimento. Além disso, Matthew
pedira para morrer. Tudo isto clama por um juízo indulgente. No entanto, segundo a
tradição moral dominante da nossa sociedade, o que Harold Donnelly fez é inaceitável.
A tradição moral dominante da nossa sociedade é, naturalmente, a tradição cristã. O
cristianismo defende que a vida humana é uma dádiva de Deus, pelo que só Deus pode
decidir quando acabará. A Igreja antiga proibia todo o tipode homicídio, pois acreditava
que os ensinamentos de Jesus neste assunto não permitiam excepções à regra. Mais tarde,
foram admitidas algumas excepções, sobretudo para permitir a pena capital e o acto de
matar em situação de guerra. Mas outros tipos de morte, nomeadamente o suicídio e a
eutanásia, continuaram proibidos. Para resumir a doutrina da Igreja, os teólogos formularam
uma
139
regra afirmando que o homicídio intencional de pessoas inocentes é sempre errado. Esta
concepção moldou, mais do que qualquer outra ideia, por si só, as atitudes ocidentais acerca
da moralidade e do acto de matar. É por isso que nos sentimos tão relutantes em desculpar
Harold Donnely, mesmo que ele possa ter agido movido por sentimentos nobres. Ele matou
intencionalmente uma pessoa inocente; logo, segundo a nossatradição moral, o que fez está
errado.
O utilitarismo faz uma abordagem muito diferente. Levar-nos-ia a perguntar: tendo em conta
as alternativas ao dispor de Harold Donnelly, qual delas teria as melhores consequências
globais? Qual acção produziria o maior equilíbrio entre felicidade e infelicidade para todos
os envolvidos? A pessoa mais atingida seria, é claro, o próprio Matthew Donnely. Se Harold
não o matar, continuará a viver, talvez durante mais um ano, cego, mutilado e em dor
permanente. Quanta infelicidade implica isso? É difícil dizer ao certo; mas o testemunho do
próprio Matthew Donnelly é que se sentia tão infeliz nestascondições que preferia a morte.
Matá-lo ofereceria uma fuga a esse sofrimento. Logo, os utilitaristas concluem que a
eutanásia pode, num caso como este, ser moralmente correcta.
Apesar de este tipo de argumento ser muito diferente daquilo que encontramos na tradição
cristã - como disse antes, não depende de concepções teológicas e não dá lugar a "regras"
inflexíveis -, os utilitaristas clássicos não pensavam estar a advogar uma filosofia ateia ou
anti-religiosa. Bentham afirma que a religião iria aprovar,e não condenar, o ponto de vista
utilitarista se os seus apoiantes levassem a sério a sua ideia de Deus como criador
benevolente. Escreve Bentham:
Os ditames da religião coincidiriam, em todos os casos, comos da utilidade, se o Ser, que é objecto
da religião, fosse universalmente concebido como tão benevolente que é, supos-
140
A ABORDAGEM UTILITARISTA
tamente, sábio e poderoso [...] Mas entre os devotos da religião (entre os quais a multifacetada
fraternidade dos cristãos é apenas uma pequena parte) parece haver poucos (não direi quão poucos)
verdadeiros crentes na sua benevolência. Chamam-lhe benevolente em palavras, mas não querem com
isso dizer que o seja na realidade.
A moralidade da morte misericordiosa pode ser um exemplo relevante. Bentham poderia
perguntar como pode um Deus benevolente proibir a morte de Matthew Donnelly. Se
alguém dissesse que Deus é bondoso mas exige que o Sr. Donnelly sofra durante mais um
ano antes de morrer, isto seria dizer exactamente o que Bentham afirmou com a frase
"Chamam-lhe benevolente em palavras, mas não querem com isso dizer que o seja na
realidade".
No entanto, a maioria das pessoas religiosas não concordam com Bentham, e a nossa
tradição moral, bem como a nossa tradição legal, evoluíram sob influência do cristianismo.
A eutanásia é ilegal em todos os países ocidentais com excepção da Holanda. Nos Estados
Unidos é simplesmente considerada homicídio, e Harold Donnelly foi por isso devidamente
preso e acusado. (Não sei o que aconteceu em tribunal, apesar de ser comum em tais casos o
arguido ser considerado culpado de um crime menor e condenado a uma pena mais leve.) O
que diria o utilitarismo sobre isto? Se, na perspectiva utilitarista, a eutanásia é moralmente
aceitável, deveria também tornar-se legal?
Esta questão está ligada a outra, mais geral, sobre qual deveria ser a finalidade da lei.
Bentham estudou Direito, e concebia o princípio de utilidade como um guia para as pessoas
comuns e os legisladores tomarem decisões morais. A finalidade da lei é a mesma da
moralidade: deve promover o bem-estar de todos os cidadãos.Bentham considerava óbvio
que se a lei deve servir este propósito, não deve restringir a liberdade dos cidadãos mais do
que o
141
necessário. Em particular, nenhum tipo de actividade deve ser proibido, a menos que, ao
realizá-lo, uma pessoa prejudique os outros. Bentham opunha-se, por exemplo, a leis
regulando a conduta sexual "consentida entre adultos", porque esta conduta não prejudica
terceiros, e porque tais leis diminuem a felicidade em vez de a aumentar. Mas foi Mill querft
deu a este princípio a sua expressão mais eloquente, quandoescreveu no seu ensaio Sobre a
Liberdade (1859):
O único fim para a realização do qual a humanidade está autorizada, individual e colectivamente, a
interferir com a liberdade de acção de qualquer um dos seusmembros, é a autodefesa. O único
propósito para a realização do qual o poder deve ser devidamente exercido sobre qualquer membro de
uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é prevenirque seja feito mal a outros. O seu
próprio bem, físico ou mofai, não é garantia suficiente [...] Sobre si mesmo, sobre o seu corpo e
espírito, o indivíduo é soberano.
Desta forma, para os utilitaristas clássicos, as leis proibindo a eutanásia não são apenas
contrárias ao bem-estar geral, são igualmente restrições injustificáveis sobre o direito das
pessoas de controlar as suas próprias vidas. Quando Harold Donnelly matou o seu irmão,
estava a ajudá-lo a pôr termo à sua vida de uma maneira queele tinha escolhido. Não foi
feito mal algum a ninguém mais, e por isso não dizia respeito a mais ninguém. A maioria dos
americanos parece concordar com este ponto de vista, pelo menos quando é para eles uma
questão prática. Num estudo realizado em 2000 pelos National Institutes of Health, 60%
dos doentes terminais considerou que a eutanásia, ou o suicídio assistido, deveria estar
disponível quando solicitada. Em coerência com a sua filosofia, diz-se que o próprio
Bentham solicitou a eutanásia nos seus últimos dias, emboranão saibamos se o pedido foi
satisfeito.
142
A ABORDAGEM UTILITARISTA
7.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos
O tratamento dos seres não-humanos não tem sido tradicionalmente encarado como uma
questão moral de grande importância. A tradição cristã afirma que só o ser humano é feito à
imagem de Deus e que os meros animais nem mesmo têm alma. Assim, a ordem natural das
coisas permite aos seres humanos usar os animais para qualquer propósito que entendam.
São Tomás de Aquino resumiu a perspectiva tradicional quando escreveu o seguinte:
Desta forma se refuta o erro daqueles que afirmaram ser pecaminoso para o Homem matar animais
irracionais: pois, pela providência divina, eles são destinados na ordem natural das coisas para o uso
do Homem. Assim, não é errado para o Homem fazer uso deles,quer matando-os quer de qualquer
outra forma.
Mas não será errado ser cruel para os animais? Tomás de Aquino aceita que é, mas afirma
que a razão disso tem que ver com o bem-estar do ser humano, e não com o bem-estar dos
animais em si:
Se alguma passagem das Sagradas Escrituras parece proibir-nos a crueldade para com os animais
irracionais, por exemplo, matar um pássaro com as suas crias, isto é assim ou para afastar os
pensamentos do Homem da crueldade para com outros homens, por receio de que sendo cruel para os
animais uma pessoa se torne cruel para os seres humanos; ouporque o mal feito a um animal conduz
a danos temporais no Homem, para quem faz a acção ou para outro.
As pessoas e os animais estão, portanto, em categorias morais separadas. Estritamente
falando, os animais não têm qualquer posição moral própria.Temos liberdade para os tratar
de qualquer maneira que nos pareça vantajosa.
143
Quando é formulada de forma tão crua, a doutrina tradicional pode deixar-nos um pouco
inquietos: parece bastante extrema na sua falta de consideração pelos animais, muitos dos
quais são, afinal, criaturas sensíveis e inteligentes. No entanto, basta apenas um pouco de
reflexão para verificar até que ponto a nossa conduta é efectivamente guiada por esta
doutrina. Comemos animais; usamo-los como objecto de experiências nos laboratórios;
usamos as suas peles em roupas e as suas cabeças como adornos de parede; fazemos deles
objecto de divertimento em jardins zoológicos e em touradas; e há, além disso, um desporto
muito popular que consiste em seguir-lhes a pista e matá-los apenas por divertimento.
Se nos sentimos incomodados com a "justificação" teológica destas práticas, os filósofos
ocidentais ofereceram-nos grande abundância de justificações seculares. Diz-se várias
coisas: que os animais não são racionais, que carecem da capacidade de falar, ou,
simplesmente, que não são humanos - e todas estas afirmações são consideradas razões
pelas quais os seus interesses estão fora da esfera de consideração moral.
Os utilitaristas, no entanto, não aceitariam nada disto. Nasua perspectiva, o que importa
não é se um indivíduo tem uma alma, é racional, ou qualqueroutra coisa. O que importa é
saber se é capaz de ter experiência da felicidade e da infelicidade, do prazer e da dor. Se um
indivíduo pode sofrer, então temos o dever de tomar isso emconta quando decidimos o que
fazer, mesmo que o indivíduo em questão não seja humano. Defacto, Bentham defende que
saber se o indivíduo é humano ou não-humano é tão irrelevante como saber se é negro ou
branco. Escreve Bentham:
Poderá chegar o dia em que o resto da criação animal adquira esses direitos que nunca deveriam ter-
lhes sido sonegados pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é
razão para que um ser humano seja
144
A ABORDAGEM UTILITARISTA
abandonado sem remédio ao capricho de quem o faça sofrer. Poderá chegar o dia no qual seja
reconhecido que o número de pernas, a vilosidade da pele oua terminação do os sacrum são razões
igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível à mesma sorte. Que outra coisa deveria
traçar a fronteira? Será, talvez, a faculdade racional, ou a capacidade discursiva? Mas um cavalo ou
um cão adultos são incomparavelmente mais racionais, e bem mais sociáveis, do que um bebé com
um dia, uma semana ou mesmo um mês. Mas suponhamos que não era assim; de que serviria? A
questão não é saber se podem usar a razão ou se podem falarmas antes se podem sofrer.
Uma vez que tanto os seres humanos como os não-humanos podem sofrer, temos iguais
razões para não maltratar qualquer deles. Se um ser humano é torturado, porque razão é
isso errado? Porque ele sofre. Por analogia, se um ser não-humano é torturado, também
sofre, e por isso é igualmente errado e pela mesma razão. Para Bentham e Mill, esta linha de
raciocínio era decisiva. Humanos e não-humanos têm igual direito à consideração moral.
No entanto, esta perspectiva pode parecer tão extrema, na direcção oposta, como a
perspectiva tradicional que não concede aos animais qualquer lugar independente no plano
da moralidade. Devem os animais ser de facto encarados comoiguais aos seres humanos?
Em alguns aspectos, Bentham e Mill pensavam que sim, mas tiveram o cuidado de sublinhar
que isso não significa que animais e humanos tenham de ser sempre tratados da mesma
maneira. Há diferenças factuais entre eles que com frequência justificam diferenças de
tratamento. Por exemplo, uma vez que os seres humanos têm capacidades intelectuais que
faltam aos animais, são capazes de sentir prazer em coisas que os seres não-humanos são
incapazes de fruir - os seres humanos podem fazer matemática, apreciar literatura, e assim
por diante. De modo análogo, as suas capacidades supe-
145
riores podem torná-los capazes de frustrações e desapontamentos de que os outros animais
não podem ter experiência. Por isso, o nosso dever de promover a felicidade implica o dever
de promover esses prazeres especiais para eles, bem como deprevenir qualquer tipo de
infelicidade à qual são vulneráveis. Ao mesmo tempo, no entanto, na medida em que o bem-
estar dos outros animais é afectado pela nossa conduta, temos o dever moral estrito de
tomar isso em conta, contando o seu sofrimento de modo igual ao de um sofrimento
semelhante de que um ser humano tenha experiência.
Os utilitaristas contemporâneos têm por vezes resistido a este aspecto da doutrina clássica, e
isso não é surpreendente. O nosso "direito" de matar, fazerexperiências ou usar os animais
de outras formas que queiramos parece à maioria de nós tão óbvio que é difícil acreditar que
estamos realmente a comportar-nos tão mal como Bentham e Mill insinuaram. No entanto,
alguns utilitaristas contemporâneos avançaram argumentos poderosos para mostrar que
Bentham e Mill tinham razão. O filósofo Peter Singer, num livro com o estranho título de
Libertação Animal (1975), insistiu, seguindo os princípios estabelecidos por Bentham e
Mill, que o nosso tratamento dos animais não-humanos é profundamente incorrecto.
Singer pergunta como podemos justificar experiências como aseguinte:
Na Universidade de Harvard, R. Solomon, L. Kamin, e L. Wynne testaram os efeitos de choques
eléctricos no comportamento de cães. Colocaram quarenta cães num dispositivo chamado
"shuttlebox" que consiste numa caixa dividida em dois compartimentos, separados por uma barreira.
De início, a barreira foi colocada à altura do dorso dos cães. Foram desferidos centenas de choques
eléctricos intensos nas patas dos cães através de uma rede no chão. Inicialmente, os cães conseguiam
escapar ao choque se aprendessem a saltar a barreira e passar para o outro compartimento. No
sentido de "desen-
146
A ABORDAGEM UTILITARISTA
corajar" um cão de saltar, os especialistas forçaram o cão a saltar cem vezes para a rede
electrificada. Afirmaram que quando o cão saltava dava um "guincho agudo de antecipação que se
transformava num ganido quando aterrava na rede electrificada". Por fim, bloquearam a passagem
entre os compartimentos com uma placa de vidro e testaram de novo o mesmo cão. O cão "saltava e
embatia com a cabeça de encontro ao vidro". Inicialmente, os cães revelaram sintomas tais como
"defecar, urinar, ganir e guinchar, tremer, atacar o aparelho" e assim por diante, mas após dez ou
doze dias de testes os cães que foram impedidos de escapar aos choques deixaram de resistir. Os
especialistas afirmaram-se "impressionados" com este facto,e concluíram que a combinação da
barreira de vidro e dos choques nas patas era "muito eficaz" na eliminação dos saltos dos cães.
O argumento utilitarista é bastante simples. Devemos julgaras acções como certas ou
erradas conforme causam mais felicidade ou infelicidade. Oscães desta experiência estão
obviamente a ser submetidos a um sofrimento terrível. Há algures um ganho compensatório
em felicidade que o justifique? Está-se a prevenir uma infelicidade maior, para outros
animais ou para os seres humanos? Se não, a experiência nãoé moralmente aceitável.
Podemos fazer notar que este tipo de argumento não implica que todas as experiências deste
género são imorais - sugere que se avalie cada uma individualmente, segundo os seus
próprios méritos. A experiência com os cães, por exemplo, era parte de um estudo da "falta
de energia adquirida", um tópico considerado muito importante pelos psicólogos. Os
psicólogos afirmam que o conhecimento dos mecanismos da falta de energia adquirida trará
benefícios de longo prazo para os doentes mentais. O princípio utilitarista não diz, por si só,
qual a verdade acerca de experiências em concreto; mas insiste que o mal feito aos animais
exige uma justificação. Não podemos simplesmente presumir que tudo é permitido só
porque não são humanos.
147
Mas criticar tais experiências é muito fácil para a maioriade nós. Uma vez que não nos
dedicamos a tais investigações, podemos sentir-nos superiores ou farisaicos. Singer sublinha,
no entanto, que ninguém está isento de culpa neste campo. Todos estamos envolvidos em
actos de crueldade tão graves como os perpetrados em qualquer laboratório, porque todos
(ou pelo menos a maioria de nós) comemos carne. Os factos sobre a produção de carne são
pelo menos tão pungentes como os relativos à experimentaçãocom animais.
A maior parte das pessoas pensa, de forma vaga, que embora o matadouro possa ser um
local desagradável, os animais criados para abate são, aparte isso, suficientemente bem
tratados. Mas, afirma Singer, nada poderia estar mais longeda verdade. As crias de vitela,
por exemplo, passam as suas vidas em celas tão pequenas quenão conseguem voltar-se ou
mesmo deitar-se de forma confortável - mas do ponto de vista dos produtores isso é bom,
porque o exercício enrijece os músculos, reduzindo a "qualidade" da carne; além disso,
conceder aos animais um espaço vital adequado teria custos proibitivos. Nestas celas, os
vitelos não conseguem realizar acções tão básicas como limpar-se, o que desejam por
natureza fazer, porque não há espaço para poderem voltar a cabeça. É evidente que as
vitelas sentem falta das mães e, como os bebés humanos, precisam de algo para mamar:
pode ver-se que tentam em vão sugar quaisquer arestas nas suas celas. Para manter a sua
carne branca e saborosa, são alimentados com uma dieta líquida insuficiente em ferro e
forragem. Naturalmente, desenvolvem o desejo ardente destascoisas. O desejo dos vitelos
por ferro torna-se tão forte que se puderem voltar-se na cela lambem a sua própria urina,
embora normalmente sintam repugnância em fazê-lo. A pequenacela, que impede o animal
de se voltar, resolve este "problema". O desejo de forragemé especialmente forte, uma vez
que sem ela o animal não consegue formar uma massa de ali-
148
A ABORDAGEM UTILITARISTA
mentos para ruminar. Não se pode colocar qualquer palha para os animais dormirem, pois
seriam levados a comê-la e isso afectaria a carne. Por isso, para estes animais, o matadouro
não é o fim desagradável de uma existência feliz. É uma vida tão terrível que o processo de
abate pode na verdade revelar-se uma libertação misericordiosa.
Uma vez mais, e tendo em conta estes factos, o argumento utilitarista é bastante simples. O
sistema de produção de carne causa grande sofrimento aos animais. Uma vez que não
precisamos de os comer - as refeições vegetarianas são igualmente saborosas e nutritivas-
o bem que é feito não compensa, quando colocado na balança,o mal provocado. Logo, é
errado. Singer conclui que devemos tornar-nos vegetarianos.
O que é mais revolucionário em tudo isto é simplesmente a ideia de que os interesses dos
animais não-humanos contam. Normalmente, partimos do princípio, como ensina a tradição
da nossa sociedade, que só os seres humanos são dignos de consideração moral. O
utilitarismo põe em causa esta suposição básica e insiste que a comunidade moral tem de ser
alargada para incluir todas as criaturas cujos interesses são afectados pelo que fazemos. Os
seres humanos são especiais em muitos aspectos; e uma moralidade adequada tem de
reconhecer isso. Mas também é verdade que somos apenas uma espécie entre muitas que
habitam este planeta; e a moralidade tem igualmente de reconhecer isso.
149
Capítulo 8
O debate sobre o utilitarismo
A doutrina utilitarista consiste nisto: a felicidade é desejável, e a única coisa desejável, enquanto finalidade;
todas as outras coisas são desejáveis como meios para esse fim.
JOHN STUART MILL, Utilitarismo (1861)
O Homem não luta para obter a felicidade; só os Ingleses fazem isso.
FRIEDRICH NIETZSCHE, O Crepúsculo dos ídolos (1889)
8.1 A versão clássica da teoria
O utilitarismo clássico, a teoria de Bentham e Mill, pode ser resumido em três proposições:
Primeiro, deve-se julgar que as acções são moralmente certas ou erradas somente em função
das suas conseqüências. Nada mais importa. Segundo, ao avaliar as consequências, a única
coisa que interessa é a quantidade de felicidade ou infeli-
151
cidade criada. Tudo o mais é irrelevante. Terceiro, a felicidade de cada pessoa conta da
mesma maneira. Como explica Mill,
a felicidade que forma o padrão utilitarista do que é correcto na conduta não é a felicidade do próprio
agente, mas a de todos os implicados. Entre a felicidade doagente e a dos outros, o utilitarismo exige
que o agente seja tão estritamente imparcial como um espectador desinteressado e benévolo.
Assim, as acções correctas são as que produzem o maior equilíbrio possível de felicidade e
infelicidade, sendo a felicidade de cada pessoa contabilizada como igualmente importante.
Esta teoria tem sido imensamente atraente para filósofos, economistas e outros que teorizam
sobre o processo de decisão humano. Continua a ser largamente aceite, apesar de ter sido
posta em causa por uma série de argumentos aparentemente devastadores. Estes argumentos
antiutilitaristas são tão numerosos e tão persuasivos que muitos chegaram à conclusão de
que a teoria tem de ser abandonada. Mas o facto notável é que tantos não a tenham
abandonado. Apesar dos argumentos, muitos e muitos pensadores recusam-se abandonar a
teoria. De acordo com estes utilitaristas contemporâneos, os argumentos antiutilitaristas
provam apenas que a teoria clássica precisa de ser aperfeiçoada; afirmam que a ideia
essencial é sólida e deveria ser preservada, mas reformulada de uma forma mais satisfatória.
Vamos examinar de seguida alguns destes argumentos contra outilitarismo e avaliar se a
versão clássica da teoria pode ser revista de forma satisfatória para lhes fazer frente. Estes
argumentos têm interesse não apenas para avaliar o utilitarismo mas em si mesmos, pois
levantam algumas questões fundamentais de filosofia moral.
152
8.2 Será a felicidade a única coisa que importa?
A pergunta "Que coisas são boas?" é diferente da pergunta "Que acções são correctas?",
mas o utilitarismo responde à segunda remetendo para a primeira. As acções correctas,
afirma o utilitarismo, são as que produzem o maior bem. Maso que é bem? A resposta
utilitarista clássica é "uma coisa e só uma coisa - a felicidade". Como Mill afirmou, "a
doutrina utilitarista consiste nisto: a felicidade é desejável, e a única coisa desejável,
enquanto finalidade; todas as outras coisas são desejáveis como meios para esse fim".
A ideia de que a felicidade é o bem último (e a infelicidade o mal último) é conhecida como
hedonismo. O hedonismo é uma teoria popular e duradoura cuja origem remonta pelo
menos à Grécia Antiga. Sempre foi atraente por causa da suasimplicidade bela e porque
exprime a noção intuitivamente plausível de que as coisas são boas ou más de acordo com a
forma como nos fazem sentir. No entanto, um pouco de reflexão revela sérias falhas nesta
teoria. As falhas revelam-se quando examinamos exemplos como os seguintes:
Uma pianista jovem e prometedora magoa as mãos num acidentede automóvel, ficando
incapacitada para continuar a tocar. Porque razão é isto mau para ela? O hedonismo diria
que é mau porque a torna infeliz. Ela vai sentir-se frustrada e perturbada sempre que pensar
no que poderia ter feito, e isso é a sua desgraça. Mas estamaneira de explicar o infortúnio
parece ver as coisas ao contrário. Não se pode dizer que, ao sentir-se infeliz, ela
transformou uma situação neutra numa situação má. Pelo contrário, a sua infelicidade é uma
resposta racional a uma situação que é desafortunada. Ela podia ter tido uma carreira como
pianista, e agora já não pode. A tragédia é essa. Não poderíamos eliminar a tragédia
levando-a pura e simplesmente a animar-se.
153
O leitor pensa que alguém é seu amigo, mas pelas costas essa pessoa ridiculariza-o. Ninguém o
informa, pelo que não chega a saber. É isto um infortúnio para si? Ó hedonismo teria de responder
que não, porque não lhe é causada qualquer infelicidade. Mas apesar disso sentimos que há algo
errado nisto. O leitor pensa ter um amigo, e está a "ser ridicularizado", apesar de nada saber e não
sofrer qualquer infelicidade.
Estes exemplos apresentam a mesma ideia fundamental. Valorizamos por si mesmas todo o tipo de
coisas, como a criatividade artística e a amizade. Possui-las dá-nos felicidade, mas apenas por já as
considerarmos boas. (Não pensamos que sejam boas por nos fazerem felizes - essa é a maneira
como o hedonismo "volta as coisas ao contrário".) Logo, é uma infelicidade perdê-las,
independentemente de a sua perda ser ou não acompanhada de infelicidade.
Assim, o hedonismo engana-se quanto à natureza da felicidade. A felicidade não é reconhecida como
boa e procurada por si, sendo as outras coisas desejadas apenas como meios para a sua realização.
Ao invés, a felicidade é uma resposta que damos à obtenção de coisas que reconhecemos que são
boas, independentemente e por direito próprio. Pensamos quea amizade é uma coisa boa, e por isso
ter amigos dá-nos felicidade. Isso é muito diferente de primeiro partir em busca da felicidade e depois
decidir que ter amigos poderá fazer-nos felizes, procurandodepois fazer amigos como um meio para
obter esse fim.
É por esta razão que não há muitos hedonistas entre os filósofos contemporâneos. Os partidários do
utilitarismo procuraram, pois, uma maneira de formular a sua visão das coisas sem pressupor uma
descrição hedonista do bem e do mal morais. Alguns, como o filósofo inglês G. E. Moore (1873-
1958), tentaram compilar listas de coisas susceptíveis de ser encaradas como boas em si. Moore
sugeriu que há
154
três coisas que são de forma óbvia intrinsecamente boas - oprazer, a amizade e a fruição estética
- e que as acções correctas são as que aumentam no mundo a quantidade destas coisas. Outros
utilitaristas evitaram a questão de saber quantas coisas são boas em si, deixando-a em aberto e
afirmando apenas que as acções correctas são as que alcançam melhores resultados,
independentemente da forma de medir isso. Outros ainda evitaram a questão de forma diferente,
defendendo apenas que devemos agir de maneira a maximizar asatisfação das preferências das
pessoas. Está para lá do âmbito deste livro discutir os méritos ou deméritos destas variantes do
utilitarismo. Refiro-as apenas para sublinhar que, apesar de o pressuposto hedonista dos utilitaristas
clássicos ter sido largamente rejeitado, os utilitaristas contemporâneos não sentiram dificuldade em
prosseguir na mesma via. Fazem-no insistindo que, antes de mais, o hedonismo nunca foi uma parte
necessária da teoria.
8.3 As consequências são a única coisa que importa?
Seja como for, a ideia de que as consequências são a única coisa que importa é parte necessária do
utilitarismo. A ideia fundamental da teoria é que para determinar se uma acção é correcta, devemos
ter em atenção o que acontecerá em resultado de afazermos. Se viesse a verificar-se que qualquer
outra coisa é igualmente importante para determinar a correcção, o utilitarismo veria então os seus
alicerces arruinados.
Alguns dos argumentos antiutilitaristas mais sérios atacam a teoria justamente neste ponto: insistem
que há várias considerações, além da utilidade, que são importantes para determinar o que é ou não é
moralmente correcto. Eis três desses argumentos.
155
Justiça. Num artigo escrito em 1965 para a revista académica Inquiry, H. J. McCloskey
pedia-nos para ponderar o caso seguinte:
Suponhamos que um utilitarista visita uma área na qual há tensões raciais e que, durante a sua visita,
um Preto viola uma mulher branca, e que em resultado do crime ocorrem confrontos raciais, com
multidões de brancos, com a conivência da Polícia, espancando e matando Pretos, etc. Suponhamos
ainda que o nosso utilitarista está no local do crime quando este é cometido, de tal modo que o seu
testemunho pode levar à condenação de um Preto qualquer. Seele sabe que uma detenção rápida
porá fim aos confrontos e linchamentos, certamente, como utilitarista, terá de concluir que tem o
dever de prestar falso testemunho de maneira a permitir a punição de uma pessoa inocente.
Trata-se, é claro, de um exemplo fictício, apesar de obviamente inspirado na lei de
linchamento que prevaleceu em tempos em algumas partes dos Estados Unidos. Seja como
for, o argumento é que se alguém estivesse nesta situação, deveria, nos parâmetros
utilitaristas, prestar falso testemunho contra uma pessoa inocente. Isto poderia ter algumas
consequências más - um homem inocente poderia ser executado- mas haveria suficientes
consequências boas para contrabalançá-las: os confrontos e linchamentos seriam detidos. O
melhor resultado seria alcançado por meio da mentira: logo,segundo o utilitarismo, mentir é
a coisa a fazer. Mas, prossegue o argumento, seria errado causar a execução de uma pessoa
inocente. Logo, o utilitarismo, que pressupõe a correcção de um tal acto, tem de estar
errado.
Segundo os críticos do utilitarismo, este argumento ilustraum dos defeitos mais graves da
teoria; a saber, que é incompatível com a ideia de justiça.A justiça exige que tratemos as
pessoas com equidade, segundo as suas necessidades e méritos individuais. O exemplo de
McCloskey mostra que os requisitos de justiça e de utilidade podem
156
entrar em conflito. Assim, uma teoria ética segundo a qual a utilidade é tudo o que conta
não pode estar correcta.
Direitos. Eis um caso que não é fictício; é extraído dos registos do Nono Círculo do
Tribunal de Apelação dos EUA (Distrito Judicial do Sul da Califórnia), 1963, no caso York
contra Story:
Em Outubro de 1958, a queixosa [Angelynn York] dirigiu-se ao Departamento de Polícia de Chino
para apresentar queixa de um caso de agressão que sofrera. O acusado, Ron Story, agente daquele
departamento de Polícia, agindo ao abrigo da sua autoridade, informou a queixosa de que era
necessário tirar-lhe fotografias. Story levou então a queixosa para uma sala da esquadra, fechou a
porta e ordenou-lhe que se despisse, o que ela fez. Story ordenou então à queixosa para se colocar em
várias posições indecentes, e fotografou-a nessas posições.Estas fotografias não foram tiradas com
algum propósito legal.
A queixosa protestou contra a necessidade de se despir. Declarou a Story que não havia necessidade
de tirar fotografias dela nua, ou nas posições em que foi mandada colocar-se, porque as contusões
não seriam visíveis nas fotografias.
No final do mês, Story informou a queixosa de que as fotografias não tinham sido divulgadas e que
ele as tinha destruído. Em vez disso, Story fez circular asfotografias entre o pessoal do
Departamento de Polícia de Chino. Em Abril de 1960, dois outros agentes daquele departamento de
Polícia, os acusados Louis Moreno e o arguido Henry Grote, agindo ao abrigo da sua autoridade, e
usando material fotográfico da Polícia situado na esquadra,fizeram mais reproduções das fotografias
tiradas por Story. Moreno e Grote fizeram circular as reproduções entre o pessoal do Departamento
de Polícia de Chino.
A Sr.a York moveu um processo contra estes agentes e ganhou. Os seus direitos legais
tinham sido claramente violados. Mas o que dizer da moralidade do comportamento dos
agentes? O utilitarismo afirma que uma acção é defen-
157
sável se produzir um equilíbrio favorável da felicidade sobre a infelicidade. Isto sugere que
consideremos a quantidade de infelicidade causada à Sr.a York e a comparemos com a
quantidade de prazer proporcionada pelas fotografias ao agente Story e seus cúmplices. É
possível que se tenha causado mais felicidade do que infelicidade. Nesse caso, a conclusão
utilitarista seria, aparentemente, que as suas acções forammoralmente correctas. Mas isto
parece uma maneira perversa de pensar. Porque razão deveriao prazer causado a Story e
seus cúmplices importar? Porque deveria sequer ser tido em conta? Não tinham qualquer
direito de tratar a Sr.a York daquela maneira, e o facto dese terem divertido ao fazê-lo
dificilmente parece uma defesa relevante.
Eis um caso (imaginário) idêntico. Suponhamos que um voyeurespiava secretamente a Sr.a
York espreitando pela janela do seu quarto, e secretamente lhe tirava fotografias quando ela
estava despida. Suponhamos ainda que fazia isto sem se denunciar e que usava as fotografias
apenas para seu prazer pessoal, não as mostrando a mais ninguém. Nestas circunstâncias,
parece evidente que a única consequência da sua acção é um aumento da sua própria
felicidade. Ninguém mais, nem mesmo a Sr.a York, sofre qualquer infelicidade. Como
poderia então o utilitarismo negar que as acções do voyeur são correctas? Mas é óbvio para
o senso comum moral que não são correctas. O utilitarismo parece ser, pois, inaceitável.
A moral da história a retirar deste argumento é que o utilitarismo está em conflito com a
ideia de que as pessoas têm direitos que não podem ser espezinhados apenas porque alguém
antecipa bons resultados. Nestes casos, é o direito da Sr.aYork à privacidade que é violado;
mas não seria difícil pensar em casos similares nos quais outros direitos estão em causa - o
direito à liberdade religiosa, à livre expressão ou mesmo opróprio direito à vida. Pode
acontecer por vezes que bons objectivos sejam servidos por meio da
158
violação destes direitos. Mas não pensamos que os nossos direitos devam ser postos de lado
com tanta facilidade. A noção de um direito pessoal não é uma noção utilitarista. Bem pelo
contrário: é uma noção que estabelece limites à forma como um indivíduo pode ser tratado,
independentemente dos bons objectivos que poderiam ser alcançados.
Razões referentes ao passado. Suponha que prometeu a uma pessoa fazer alguma coisa -
por exemplo, encontrar-se com ela uma tarde na Baixa. Mas quando chega a hora, não lhe
apetece fazê-lo; precisa trabalhar e preferia ficar em casa. O que deve fazer? Suponha que
considera que a utilidade de fazer o seu trabalho ultrapassa ligeiramente a inconveniência
causada ao seu amigo. Apelando para o padrão utilitarista, poderia então concluir que é
correcto ficar em casa. No entanto, isto não parece nada correcto. O facto de ter feito uma
promessa, impõe-lhe uma obrigação à qual não pode escapar facilmente. É claro que se algo
muito importante estivesse em jogo - se, por exemplo, a suamãe tivesse acabado de sofrer
um ataque cardíaco e você tivesse de correr para o hospital- teria uma boa justificação
para faltar ao seu compromisso. Mas um pequeno ganho em utilidade não pode sobrepor-se
à obrigação imposta pelo facto de ter feito uma promessa. Assim, o utilitarismo, que
considera as consequências a única coisa importante, pareceuma vez mais estar errado.
Há uma importante lição geral a tirar deste argumento. Porque razão é o utilitarismo
vulnerável a este tipo de crítica? Porque os únicos tipos de considerações que a teoria
defende como relevantes para determinar a correcção das acções são considerações
relacionadas com o futuro. Devido à sua preocupação exclusiva com as consequências, o
utilitarismo leva-nos a confinar a nossa atenção ao que iráacontecer em resultado das
nossas acções. No entanto, pensamos normalmente que as considerações sobre o passado
são igualmente importantes. (O facto de termos pro-
159
metido encontrar-nos com um amigo é um facto sobre o passado.) Logo, o utilitarismo
parece defeituoso porque exclui as considerações relativas ao passado.
Uma vez compreendido este aspecto, vêm facilmente à ideia outros exemplos de
considerações relativas ao passado. O facto de alguém não ter cometido um crime é uma
boa razão para não ser punido. O facto de alguém lhe ter feito um favor pode ser uma boa
razão para agora fazer um favor a essa pessoa. O facto de alguém ter feito algo para magoar
uma pessoa pode ser uma boa razão para agora a compensar. Tudo isto são factos relativos
ao passado que têm relevância para determinar as nossas obrigações. Mas o utilitarismo
torna o passado irrelevante, e parece deficiente justamentepor essa razão.
8.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta?
A última componente da moralidade utilitarista é a ideia deque devemos tratar o bem-estar
de cada pessoa como igualmente importante - nas palavras deMill, devemos ser "tão
estritamente imparciais como um espectador desinteressado ebenévolo". Isto parece
plausível quando se afirma em abstracto, mas tem implicações problemáticas. Um dos
problemas é que o requisito de "igual consideração" coloca-nos uma exigência excessiva;
outro é que destrói as nossas relações pessoais.
A acusação de que o utilitarismo é demasiado exigente.
Suponha que está a caminho do teatro quando alguém lhe lembra que o dinheiro que se
prepara para gastar podia ser usado para providenciar comida a pessoas com fome ou
vacinas a crianças do Terceiro Mundo. Certamente que essas pessoas precisam mais de
comida e medicamentos do que o leitor precisa de ver uma peça de teatro. Por isso,
160
desiste do seu entretenimento e dá o dinheiro para uma organização de caridade. Mas isso
não põe fim ao caso. Pelo mesmo tipo de raciocínio, o leitor não pode comprar roupas
novas, um carro, computador ou uma máquina fotográfica. Provavelmente deveria mesmo
mudar-se para um apartamento mais barato. Afinal de contas,o que é mais importante - ter
estes luxos ou as crianças terem algo para comer?
Na verdade, a adesão fiel aos padrões utilitaristas requer que abandone os seus recursos até
ter baixado o seu padrão de vida ao nível do das pessoas mais necessitadas que poderia
ajudar. Podemos admirar as pessoas que fazem isto, mas não consideramos que estejam
apenas a fazer o seu dever. Olhamo-las, ao invés, como pessoas santas, cuja generosidade
vai além das exigências do dever. Distinguimos acções impostas moralmente de acções
dignas de admiração mas não estritamente exigidas. (Os filósofos chamam a estas acções
super-rogatórias.) O utilitarismo parece eliminar esta distinção.
Mas o problema não é apenas o utilitarismo requerer que abandonemos a maior parte dos
nossos recursos materiais. Igualmente importante é notar que obedecer aos mandamentos
utilitaristas tornaria impossível a continuação das nossas vidas como indivíduos. A vida de
cada um de nós implica projectos e actividades que lhe dão carácter e significado; estas
coisas são o que torna as nossas vidas dignas de ser vividas. Mas uma ética exigindo a
subordinação de tudo à promoção imparcial do bem-estar geral exigiria que
abandonássemos esses projectos e actividades. Suponha o leitor que é um carpinteiro. Não é
rico, mas ganha o suficiente para viver uma vida confortável; tem dois filhos que adora; e
nos fins-de-semana gosta de actuar com um grupo de teatro amador. Além disso, interessa-
se por história e lê muito. Como poderia haver algo de errado nisso? Mas, segundo os
padrões utilitaristas, o leitor estaria a viver uma vida moralmente inaceitável. Afinal de
161
contas, poderia fazer muito mais pelo bem dos outros se passasse o seu tempo de outras
formas.
Relações pessoais. Na prática, ninguém está disposto a tratar todas as pessoas como iguais,
pois isso requereria que abandonássemos as nossas relações especiais com amigos 0 família.
Todos somos profundamente parciais quanto à família e amigos. Gostamos deles e vamos
até onde for preciso para os ajudar. Para nós, não são apenas membros da grande multidão
da humanidade - são especiais. Mas tudo isto é inconsistente com a imparcialidade.
Quando somos imparciais, a intimidade, o amor e a amizade são lançados janela fora.
O facto de o utilitarismo arruinar as nossas relações pessoais parece a muitos críticos o seu
maior erro. Na verdade, o utilitarismo parece neste ponto ter perdido todo o contacto com a
realidade. Como seria se não tivéssemos mais em conta o nosso marido ou esposa do que
estranhos que nunca vimos antes? A própria ideia é absurda;não só é profundamente
contrária às emoções humanas normais, como a instituição docasamento não poderia sequer
existir à margem de acordos sobre responsabilidades e obrigações especiais. E como seria
tratar os nossos próprios filhos com o mesmo amor concedidoa estranhos? Como John
Cottingham afirmou, "um pai que deixa o filho arder, porqueno edifício em chamas há
alguém cuja futura contribuição para o bem-estar geral promete ser maior, não é um herói; é
(merecidamente) objecto de desprezo moral, é um leproso moral".
8.5 A defesa do utilitarismo
Em conjunto, os argumentos apresentados constituem um processo de acusação esmagador
contra o utilitarismo. A teoria, que inicialmente parecia tão progressista e
162
proxima do senso comum, parece agora indefensável: está em conflito com noções morais
fundamentais como a justiça e os direitos individuais, e parece incapaz de dar conta de
razões relativas ao passado na justificação da conduta. Levar-nos-ia a abandonar as nossas
vidas normais e a estragar as relações pessoais que significam tudo para nós. Não é, pois, de
surpreender que o peso combinado destes argumentos tenha levado muitos filósofos a
abandonar a teoria por completo.
Muitos pensadores continuam, no entanto, a considerar que outilitarismo é, de alguma
forma, verdadeiro. Em resposta aos argumentos enunciados, foram avançadas três defesas
gerais.
A primeira linha de defesa: argumentos imaginários não contam. A primeira linha de defesa
consiste em argumentar que os argumentos antiutilitaristas fazem suposições irrealistas
sobre o funcionamento do mundo. Os argumentos sobre direitos, justiça e razões relativas
ao passado partilham uma estratégia comum. Descreve-se um caso e depois afirma-se que,
do ponto de vista utilitarista, é necessária uma certa acção - prestar falsos testemunhos,
violar os direitos de alguém ou faltar a uma promessa. Afirma-se então que estas coisas não
são correctas. Logo, conclui-se, a concepção utilitarista da correcção não pode estar certa.
Mas esta estratégia só tem sucesso se concordarmos que as acções descritas teriam de facto
as melhores consequências. Mas porque razão concordaríamos com isso? No mundo real,
prestar falso testemunho não tem boas consequências. Suponha-se, no caso descrito por
McCloskey, que o "utilitarista" tentava incriminar o inocente para deter os motins.
Provavelmente não teria êxito; a sua mentira poderia ser descoberta, e a situação ficaria
então ainda pior do que antes. Mesmo no caso de a mentira ter êxito, o verdadeiro culpado
continuaria a monte, livre para cometer outros crimes. Alémdisso, se o culpado viesse a ser
apa-
163
nhado, o que é sempre possível, o mentiroso ficaria em grandes sarilhos, e a confiança no
sistema judicial seria posta em causa. A moral da história é que, embora possamos pensar
que podemos provocar as melhores consequências com um tal comportamento, não
podemos de forma alguma estar certos disso. De facto, a experiência mostra o contrário: a
utilidade não é servida por meio da incriminação de pessoasinocentes.
O mesmo pode dizer-se dos outros casos citados nos argumentos antiutilitaristas. Violar os
direitos das pessoas, faltar às promessas e mentir, têm consequências más. Só na imaginação
dos filósofos acontece de outro modo. No mundo real, os voyeurs são apanhados, tal como
o agente Story e os seus sequazes foram apanhados; e as suas vítimas sofrem. No mundo
real, quando as pessoas mentem, os outros sofrem e as suas reputações são maculadas; e
quando as pessoas faltam às suas promessas, e não retribuemos favores, perdem os amigos.
Logo, longe de ser incompatível com a ideia de que não devemos violar os direitos das
pessoas, ou mentir, ou faltar às nossas promessas, o utilitarismo explica por que motivo não
devemos fazer essas coisas. Além disso, sem a explicação utilitarista, estes deveres
permaneceriam misteriosos e ininteligíveis. O que poderia ser mais misterioso do que a
noção de acções correctas "em si", separada da noção do bemque produzem? Ou o que
poderia ser mais ininteligível do que a ideia de que as pessoas têm "direitos", desligada de
quaisquer benefícios derivados do reconhecimento desses direitos? O utilitarismo não é
incompatível com o senso comum; pelo contrário, o utilitarismo radica no senso comum.
Esta é, pois, a primeira linha de defesa. Até que ponto é eficaz? Infelizmente contém mais
ruído do que substância. Embora se possa defender plausivelmente que a maioria dos actos
de falso testemunho e quejandos têm más consequências no mundo real, não se pode
razoavelmente
164
declarar que todos os actos desse cariz têm más consequências. Certamente poderemos
obter, pelo menos ocasionalmente, bons resultados ao fazer coisas que o senso comum
condena. Logo, pelo menos em alguns casos da vida real, o utilitarismo entrará em conflito
com o senso comum. Além disso, mesmo que os argumentos antiutilitaristas tivessem de
basear-se exclusivamente em exemplos fictícios, esses argumentos manteriam, ainda assim, o
seu poder; pois mostrar que o utilitarismo tem consequências inaceitáveis em casos
hipotéticos é uma forma válida de apontar os seus defeitos teóricos. A primeira linha de
defesa é, portanto, fraca.
A segunda linha de defesa: o princípio de utilidade é um guia para escolher regras e não
actos individuais. A segunda linha de defesa admite que a versão clássica do utilitarismo é
inconsistente com o senso comum e propõe-se salvar a teoriadando-lhe uma nova
formulação que esteja em consonância com as nossas avaliações de senso comum. Ao fazer
a revisão de uma teoria o truque é identificar precisamentequais das suas características
estão a dar problemas e mudar isso, deixando o resto da teoria como estava. O que tem a
versão clássica para originar todos os resultados indesejados?
O aspecto problemático do utilitarismo clássico é, segundo foi dito, a sua pressuposição de
que cada acção individual deve ser avaliada em relação ao princípio de utilidade. Se numa
dada ocasião nos sentirmos tentados a prestar falso testemunho, a teoria clássica da teoria
afirma que saber se isso seria errado depende das consequências dessa mentira em
particular; de modo análogo, saber se devemos manter uma promessa depende das
consequências dessa promessa em particular; e assim sucessivamente, para cada um dos
exemplos referidos. Este é o pressuposto que causou todas as complicações; é isto que
conduz à conclusão de que podemos fazer todo o tipo de coisas questionáveis se tiverem as
melhores consequências.
165
Logo, a nova versão do utilitarismo modifica a teoria de maneira a que as acções individuais
deixem de ser julgadas pelo princípio de utilidade. Em vez disso, perguntamos primeiro que
conjunto de regras é o melhor da perspectiva utilitarista. Que regras preferiríamos ter em
vigor na nossa sociedade, de maneira a fazer prosperar as pessoas? Os actos individuais são
então considerados correctos ou errados segundo são aceitáveis ou não à luz dessas regras.
Chama-se utilitarismo das regras a esta nova versão da teoria, para a distinguir da teoria
original, agora comummente chamada utilitarismo dos actos. Richard Brandt foi talvez o
mais proeminente defensor do utilitarismo das regras; sugeriu que "moralmente errado"
significa que uma acção
seria proibida por qualquer código moral que todas as pessoas racionais tenderiam a apoiar, de
preferência a todos os outros ou a nenhum outro, para a sociedade do agente, se tivessem a
expectativa de passar a vida nessa sociedade.
O utilitarismo das regras não tem dificuldade em lidar com os argumentos antiutilitaristas.
Um utilitarista dos actos, confrontado com a situação descrita por McCloskey, seria tentado
a prestar falso testemunho contra o homem inocente, porque as consequências daquele acto
em particular seriam boas. Mas o utilitarista das regras não raciocinaria dessa maneira.
Perguntaria, primeiro, "que regras gerais de conduta tendema promover a maior
felicidade?" Suponha-se que imaginamos duas sociedades, umana qual a regra "Não prestar
falso testemunho contra inocentes" é fielmente respeitada, e uma na qual esta regra não é
seguida. Em qual das sociedades as pessoas têm mais probabilidades de viver melhor? Do
ponto de vista da utilidade, a primeira sociedade é preferível. Logo, a regra contra a
incriminação de inocentes deveria ser aceite e, fazendo apelo para esta regra, concluímos
que a pessoa do exemplo de McCloskey não deveria testemunhar contra o homem inocente.
166
Um raciocínio análogo pode ser usado para estabelecer regras contra a violação dos direitos
das pessoas, o faltar às promessas, a mentira e tudo o resto. Podem igualmente estabelecer-
se regras para reger as relações pessoais - requerendo lealdade para com os amigos,
preocupação amorosa com os nossos filhos, e assim por diante. Devemos aceitar tais regras
porque segui-las regularmente promove o bem-estar geral. Mas tendo apelado para o
princípio de utilidade para estabelecer as regras, não temos de invocar novamente o
princípio para determinar a correcção de acções particulares. As acções individuais
justificam-se pelo simples apelo para regras já estabelecidas.
Desta forma, não se pode condenar o utilitarismo das regraspor violar o nosso senso
comum moral. Ao transferir a ênfase da justificação dos actos para a justificação das regras,
a teoria foi reconciliada de forma notável com os nossos juízos intuitivos.
A terceira linha de defesa: não se pode confiar no "senso comum". Por último, um pequeno
grupo de utilitaristas contemporâneos respondeu de forma muito diferente aos argumentos
antiutilitaristas. Esses argumentos indicam que a teoria clássica está em conflito com noções
comuns de justiça, direitos individuais, e assim por diante; e este grupo responde: "E daí?"
Em 1961, o filósofo australiano J. J. C. Smart publicou umamonografia intitulada An
Outline of a System of Utilitarian Ethics; reflectindo sobre a sua posição nesse livro, Smart
afirmou:
O utilitarismo tem reconhecidamente consequências incompatíveis com a consciência moral comum,
mas eu tendia a reagir do seguinte modo: "Tanto pior para aconsciência moral comum." Isto é,
estava inclinado a rejeitar a metodologia comum que testa os princípios éticos gerais mediante a
avaliação de como se enquadram nos nossos sentimentos em questões particulares.
167
O nosso senso comum moral não é, afinal de contas, necessariamente fiável. Pode
incorporar vários elementos irracionais, nomeadamente preconceitos recebidos dos nossos
pais, religião e cultura em geral. Porque razão devemos simplesmente presumir que os
nossos sentimentos estão sempre correctos? E porque motivo devemos rejeitar uma teoria
plausível e racional da ética simplesmente porque entra em conflito com esses sentimentos?
Talvez devessem ser os sentimentos, e não a teoria, a ser descartados.
À luz destas considerações, atentemos de novo no exemplo deMcCloskey da pessoa tentada
a prestar falso testemunho. McCloskey defende que seria errado fazer condenar um homem
por um crime que não cometeu, pois tal seria injusto. Mas atenção: um tal juízo serve muito
bem os interesses desse homem, mas que dizer das outras pessoas inocentes que sofrerão se
os motins e os linchamentos continuarem? Esperamos por certo nunca ter de enfrentar uma
situação como esta. Todas as opções são terríveis. Mas se temos de escolher entre a)
assegurar a condenação de uma pessoa inocente, e b) permitir a morte de várias pessoas
inocentes, será assim tão-pouco razoável pensar que a primeira opção, apesar de má, é
preferível à segunda?
Consideremos também novamente a objecção de que o utilitarismo é demasiado exigente
por requerer que usemos os nossos recursos para alimentar crianças com fome em vez de ir
ao cinema, comprar carros e máquinas fotográficas. Será assim tão-pouco razoável acreditar
que prosseguir as nossas vidas de abastança é menos importante que aquelas crianças?
Nesta forma de pensar, o utilitarismo dos actos é uma doutrina perfeitamente defensável e
não necessita ser modificada. O utilitarismo das regras é, pelo contrário, uma versão
desnecessariamente enfraquecida da teoria, que concede maisimportância às regras do que
elas merecem.
Há um problema grave com o utilitarismo das regras, que pode ser esclarecido se
perguntarmos se as suas regras têm excepções. Depois de tersido estabelecido o "código
social ideal" do utilitarismo das regras, devem estas regras ser seguidas em todas as
circunstâncias? Haverá inevitavelmente casos nos quais um acto proibido pelo código
maximizaria no entanto a utilidade, talvez mesmo de forma substancial. O que deverá fazer-
se então? Se o utilitarista das regras afirmar que em tais casos podemos violar o código,
parecerá que regressou ao utilitarismo dos actos. Por outrolado, se diz que não podemos
fazer o acto "proibido", então, como Smart afirmou, a preocupação original do utilitarista
com a promoção do bem-estar foi substituída por uma irracional "adoração das regras". Que
utilitarista é este que deixaria o céu desabar por causa deuma regra?
O utilitarismo dos actos não se entrega a essa adoração dasregras. É considerada, no
entanto, uma teoria radical, que pressupõe que muitos dos nossos sentimentos morais
comuns estão errados. Neste sentido, faz o que a boa filosofia sempre faz - desafia-nos a
repensar questões que tomámos até agora como adquiridas.
Se consultarmos o que Smart chama a nossa "consciência moral comum", parece que muitas
considerações além da utilidade são moralmente importantes.Mas Smart tem razão quando
nos alerta para o facto de "o senso comum" não merecer confiança. Essa pode vir a revelar-
se a contribuição mais importante do utilitarismo. As deficiências do senso comum moral
tornam-se óbvias desde que nos detenhamos um momento a pensar. Muitos brancos
sentiram em tempos que havia uma diferença importante entrenegros e brancos, sendo por
isso os interesses dos brancos mais importantes. Confiando no "senso comum" do seu
tempo, poderiam ter insistido que uma teoria moral adequadadeveria contemplar este
"facto". Hoje em dia, ninguém digno de ser escutado diria tal coisa, mas quem sabe
168
169
quantos outros preconceitos irracionais fazem ainda parte do nosso senso comum moral? No
final do seu estudo clássico sobre as relações raciais intitulado An American Dilemma
(1944), o sociólogo sueco Gunnar Myrdal recorda-nos que:
Deve haver ainda um sem-número de erros do mesmo género tque nenhum homem de hoje detecta,
por causa do nevoeiro no qual estamos envolvidos pelo nossotipo de cultura Ocidental. Influências
culturais estabeleceram pressupostos de partida sobre a mente, o corpo e o universo; colocaram as
perguntas que fazemos; determinaram a interpretação que fazemos destes factos; e dirigem a nossa
reacção a essas interpretações e conclusões.
Poderá dar-se o caso, por exemplo, de as gerações futuras olharem para trás com repulsa
pela maneira como as pessoas abastadas do século xxi gozavam as suas vidas de conforto
enquanto crianças do Terceiro Mundo morriam de doenças facilmente evitáveis? Ou pela
maneira como matávamos e comíamos os animais indefesos? A ser assim, poderiam fazer
notar que os filósofos utilitaristas da época eram criticados como simplistas por defenderem
uma teoria moral que condenava frontalmente tais coisas.
170
Haverá regras morais absolutas?
Não podes fazer mal de que provenha bem.
SÃO PAULO, Carta aos Romanos (circa 50 d. C.)
9.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe
Harry Truman, o 33.° presidente dos Estados Unidos, será sempre recordado como o
homem que tomou a decisão de lançar a bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki.
Quando se tornou presidente, em 1945, a seguir à morte de Franklin D. Roosevelt, Truman
nada sabia do desenvolvimento da bomba; teve de ser posto ao corrente da situação pelos
conselheiros presidenciais. Os aliados estavam a ganhar a Guerra no Pacífico, disseram-lhe,
mas com custos terríveis. Havia planos para uma invasão dasilhas japonesas, que seria ainda
mais sangrenta do que a invasão da Normandia. Usar a bomba atómica em uma ou duas
cidades japonesas podia, no entanto, conduzir a Guerra a umfim rápido, tornando
desnecessária a invasão.
Truman estava a princípio relutante em usar a nova arma. O problema é que cada bomba iria
varrer do mapa
171
uma cidade inteira - não apenas alvos militares, mas tambémhospitais, escolas e casas de
civis. Mulheres, crianças, velhos e outros não-combatentes seriam eliminados juntamente
com os efectivos militares. Apesar de os Aliados terem já bombardeado cidades, Truman
sentia que a nova arma tornava a questão dos não-combatentes ainda mais importante. Além
disso, havia registos de críticas públicas dos EUA aos ataques a alvos civis. Em 1939, antes
de os EUA terem entrado na Guerra, o presidente Roosevelt mandara uma mensagem aos
governos de França, Alemanha, Itália, Polónia e Inglaterra,denunciando os
bombardeamentos de cidades nos termos mais duros. Chamou-lhes "barbarismo desumano":
Os implacáveis bombardeamentos aéreos de civis [...] que mutilaram e mataram milhares de homens,
mulheres e crianças indefesos, destroçaram os corações de todos os homens e mulheres civilizados, e
chocaram profundamente a consciência da Humanidade. Se viera recorrer-se a esta forma de
barbarismo desumano durante o período de trágica conflagração com a qual o mundo se vê agora
confrontado, centenas de milhar de seres humanos inocentes,que não têm qualquer responsabilidade
nas hostilidades ora desencadeadas, e que nem remotamente participam delas, perderão as suas vidas.
Quando decidiu autorizar os bombardeamentos, Truman exprimiu pensamentos semelhantes.
Escreveu no seu diário: "Disse ao secretário da Guerra, o Sr. Stimson, para a usar de
maneira a que objectivos militares, soldados e marinheiros sejam os alvos e não mulheres e
crianças [...] Ele e eu estamos de acordo. O alvo será puramente militar." É difícil saber o
que pensar disto, pois Truman sabia que as bombas iriam destruir cidades inteiras. Não
obstante, é claro que estava preocupado com a questão dos não-combatentes. E igualmente
clara a sua convicção de ter feito a escolha certa. Afirmoua um assistente que, depois de
assinar a ordem, "dormiu como um bebé".
172
Elizabeth Anscombe, falecida em 2001 aos 81 anos de idade, era uma estudante de vinte
anos na Universidade de Oxford quando começou a Segunda Guerra Mundial. Nesse ano,
foi uma das autoras de um panfleto controverso defendendo que o Reino Unido não deveria
entrar na Guerra porque acabaria por combater recorrendo a meios injustos, como ataques a
civis. "A menina Anscombe", como sempre foi conhecida, apesar dos seus cinquenta anos
de casamento e dos seus sete filhos, acabaria por se tornarum dos mais notáveis filósofos do
século xx, e a maior filósofa da história.
A menina Anscombe era igualmente uma católica devota, e a religião era fulcral na sua vida.
As suas perspectivas éticas, sobretudo, reflectiam os ensinamentos tradicionais do
catolicismo. Em 1968 congratulou-se com a declaração do Papa Paulo VI banindo a
contracepção do seio da Igreja e escreveu um panfleto a explicar a razão pela qual o
controlo artificial dos nascimentos é errado. Anos mais tarde, foi detida durante um protesto
junto a uma clínica britânica onde eram realizados abortos.Anscombe aceitava igualmente
os ensinamentos da Igreja quanto à conduta ética na Guerra,o que acabou por colocá-la em
conflito com Truman.
Os caminhos de Harry Truman e Elizabeth Anscombe cruzaram-se quando, em 1956, ele foi
agraciado com um doutoramento honoris causa pela Universidade de Oxford. A distinção
foi uma forma de agradecer a Truman a ajuda da América durante a Guerra. Os que a
propuseram pensaram que não causaria qualquer polémica. MasAnscombe e dois outros
membros da faculdade opuseram-se à atribuição do doutoramento e, apesar de terem
perdido, forçaram a realização de uma votação sobre o que noutras circunstâncias teria sido
uma aprovação automática. Então, enquanto o doutoramento estava a ser conferido,
Anscombe ajoelhou-se fora do salão nobre e rezou.
Anscombe escreveu outro panfleto, desta feita explicando que Truman era um assassino
porque tinha ordenado os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki. Natural-
173
mente, Truman pensava que os bombardeamentos se justificavam - tinham encurtado a
Guerra e salvo vidas. Para Anscombe, isto não bastava. "Pois quando os homens escolhem
matar inocentes como um meio para os seus fins", escreveu, "isso é sempre um assassínio".
Ao argumento de que os bombardeamentos salvaram mais vidas do que ceifaram, retorquiu:
"Vamos lá a ver. Se tivéssemos de escolher entre cozer um bebé e deixar que um desastre
atingisse um milhar de pessoas - ou um milhão, se um milharnão for bastante - o que
faríamos?"
A questão é, segundo Anscombe, que algumas coisas não podemfazer-se, em circunstância
alguma. Pouco importa se poderíamos alcançar um bem maior cozendo uma criança; é
simplesmente imperativo que isso não se faça. (Tendo em conta o que aconteceu aos bebés
em Hiroshima, "cozer um bebé" não é um exemplo assim tão estranho.) Que não podemos
matar intencionalmente pessoas inocentes é uma regra inviolável, mas há outras:
Tem sido característica da ética [hebraico-cristã] ensinar que há certas coisas proibidas
independentemente das consequências que possam daí advir, nomeadamente as seguintes: escolher
matar um inocente com um objectivo qualquer, por mais que seja bom; punir uma pessoa para atingir
outra; a traição (significando com isto obter a confiança de alguém numa questão séria por meio de
promessas de amizade dedicada e depois trair essa pessoa entregando-a aos seus inimigos); a
idolatria; a sodomia; e uma falsa profissão de Fé.
Naturalmente, muitos filósofos não concordam; insistem que qualquer regra pode ser
violada se as circunstâncias assim o exigirem. Anscombe, afirma o seguinte desses filósofos:
É digno de nota que nenhum destes filósofos revela qualquerconsciência de que existe uma tal ética,
que ele está a contraditar: considera-se óbvio, entre eles,que uma proibição como a relativa ao
homicídio não se aplica perante algumas
174
consequências. Mas é claro que o objectivo da rigidez da proibição é a ideia de que não podemos ser
tentados pelo medo ou esperança das consequências.
Anscombe e o marido, Peter Geach, igualmente um distinto filósofo, foram os mais
destacados paladinos, no século xx, da doutrina de que as regras morais são absolutas.
9.2 O imperativo categórico
A ideia de que as regras se aplicam sem excepções é difícilde defender. É bastante simples
explicar por que razão se deve aceitar excepções a uma regra - podemos simplesmente
sublinhar que, em algumas circunstâncias, seguir a regra teria consequências terríveis. Mas
como podemos explicar a razão pela qual não se deve fazer excepções à regra em tais
circunstâncias? É uma missão intimidante. Uma explicação possível seria afirmar que as
regras morais são os mandamentos invioláveis de Deus. Fora isso, que mais pode dizer-se?
Antes do século xx houve um grande filósofo que acreditava no carácter absoluto das regras
morais, e que apresentou um argumento famoso para defender esta perspectiva. Immanuel
Kant (1724-1804) foi uma das figuras fecundas do pensamentomoderno. Defendeu, por
exemplo, que mentir nunca é correcto, sejam quais forem as circunstâncias. Não apelou para
considerações teológicas; defendeu, ao invés, que a razão exige que nunca mintamos. Para
ver como chegou a esta conclusão notável, começaremos por ver a sua teoria geral da ética.
Kant assinalou que a palavra dever é frequentemente usada em sentido não moral. Por
exemplo:
1. Quem quiser tornar-se um jogador de xadrez melhor deve estudar os jogos de Garry
Kasparov;
2. Quem quiser ir para a faculdade de Direito deve inscrever-se nos exames de acesso.
175
Grande parte da nossa conduta é governada por tais "deves".O padrão é: temos um determinado
desejo (ser jogadores de xadrez melhores, ir para a faculdade de Direito); reconhecemos que um certo
percurso nos ajudará a obter o que desejamos (estudar os jogos de Kasparov, fazer a inscrição para
os exames de acesso); e por isso concluímos que devemos seguir o plano indicado.
Kant chamou a isto "imperativos hipotéticos" porque nos dizem o que fazer desde que tenhamos os
desejos relevantes. Uma pessoa que não quisesse melhorar o seu jogo de xadrez não teria qualquer
razão para estudar os jogos de Kasparov; alguém que não quisesse ir para a faculdade de Direito não
teria qualquer razão para fazer os exames de admissão. Uma vez que a força de obrigatoriedade do
"deves" depende de termos ou não o desejo relevante, podemos escapar à sua força renunciando
simplesmente ao desejo. Assim, se deixarmos de querer ir para a faculdade de Direito, podemos
escapar à obrigação de fazer o exame.
Em contraste, as obrigações morais não dependem de desejos específicos que possamos ter. A forma
de uma obrigação moral não é "Se queremos isto ou aquilo, então devemos fazer isto e aquilo". Os
requisitos morais são, ao invés, categóricos: têm a forma, "Deves fazer isto e aquilo, sem mais". A
regra moral não é, por exemplo, que devemos ajudar as pessoas se nos importamos com elas ou se
temos outro objectivo que possamos alcançar ao auxiliá-las.A regra é, pelo contrário, que devemos
ser prestáveis para as pessoas independentemente dos nossosdesejos e necessidades particulares. É
por isso que, ao contrário dos "deves" hipotéticos, não se pode evitar as exigências morais dizendo,
simplesmente, "mas isso não me interessa".
Os "deves" hipotéticos são fáceis de entender. Exigem apenas que adoptemos os meios necessários
para alcançar os fins que procuramos. Por outro lado, os "deves" categóricos são misteriosos. Como
podemos estar obrigados a
176
comportar-nos de uma certa maneira independentemente dos fins que queremos atingir? Grande parte
da filosofia moral de Kant é uma tentativa de explicar comoisso é possível.
Kant defende que, assim como os "deves" hipotéticos são possíveis porque temos desejos, os "deves"
categóricos são possíveis porque temos razão. Os "deves" categóricos são obrigatórios para os
agentes racionais simplesmente porque são racionais. Como pode isto ser? Porque, afirma Kant, os
deves categóricos derivam de um princípio que todos os seres racionais têm de aceitar. Kant chama a
este princípio "imperativo categórico". Na Fundamentação daMetafísica dos Costumes (1785),
Kant exprime o imperativo categórico assim: É uma regra queestabelece o seguinte:
Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempoquerer que se torne lei universal.
Este princípio resume um procedimento para decidir se um acto é moralmente permissível. Quando
estamos a ponderar fazer uma determinada acção, temos de perguntar que regra estaríamos a seguir
se realizássemos essa acção. (Esta será a "máxima" do acto.) Depois, temos de perguntar se
estaríamos dispostos a que essa regra fosse seguida por todos e em todas as situações. (Isso
transformá-la-ia numa "lei universal", no sentido relevante.) A ser assim, a regra pode ser seguida, e
o acto é permissível. No entanto, se não queremos que todasas pessoas obedeçam à regra, então não
podemos seguir a regra, e o acto é moralmente proibido.
Kant dá vários exemplos para explicar como isto funciona. Suponhamos, diz Kant, que um homem
precisa de pedir dinheiro emprestado, e sabe que ninguém lho emprestará a menos que prometa
devolvê-lo. Mas ele sabe igualmente que será incapaz de o devolver. Enfrenta, pois,
177
este problema: deverá prometer pagar a dívida, sabendo que não pode fazê-lo, de maneira a
persuadir alguém a conceder-lhe o empréstimo? Se fizesse isso, a "máxima do acto" (a regra
que estaria a seguir) seria: Sempre que precisares de um empréstimo, promete pagá-lo,
independentemente de pensares ou não que podes de facto pagá-lo. Vejamos; poderia esta
regra tornar-se uma lei universal? É óbvio que não, porque se derrotaria a si mesma. Uma
vez transformada em prática universal, ninguém mais acreditaria em tais promessas, e por
isso ninguém faria empréstimos. Nas palavras do próprio Kant, "ninguém acreditaria no que
lhe fosse prometido, limitando-se a rir perante tal asserção por ser vão fingimento".
Outro dos exemplos de Kant tem que ver com o exercício da caridade. Imaginemos, diz
Kant, que alguém recusa auxiliar os necessitados, dizendo para si: "Que tenho eu a ver com
isso? Deixemos cada um ser feliz como os céus desejam, ou como cada um consegue por si.
Nada tirarei nem invejarei ao próximo; mas não tenho qualquer desejo de contribuir para a
sua riqueza ou para o seu auxílio quando disso tenha necessidade." Trata-se, uma vez mais,
de uma regra que não podemos querer ver transformada em leiuniversal. Pois algures, no
futuro, esse próprio homem precisará da assistência dos outros, e não quererá que os outros
sejam indiferentes ao seu problema.
9.3 Regras absolutas e o dever de não mentir
Ser um agente moral significa, pois, guiar a nossa conduta por "regras universais" - regras
morais válidas, sem excepção, em todas as circunstâncias. Kant pensava que a regra contra a
mentira era uma destas regras. É claro que esta não era a única regra absoluta que Kant
defendia - ele pensava que existiam muitas outras; a moralidade está cheia delas. Mas será
útil concentrarmo-nos na regra con-
tra a mentira, por ser um exemplo adequado aos nossos propósitos. Kant dedicou um
espaço considerável à discussão desta regra, e é claro que tinha convicções particularmente
fortes a seu respeito. Afirmou que mentir é, em quaisquer circunstâncias, "a destruição da
nossa dignidade como seres humanos".
Kant forneceu dois argumentos principais a favor desta perspectiva.
1. A sua razão principal para pensar que mentir é sempre errado era que a proibição de
mentir se segue directamente do imperativo categórico. Não poderíamos querer que a
mentira fosse uma lei universal, pois isso derrotar-se-ia asi mesmo; as pessoas descobririam
rapidamente que não podiam confiar no que os outros dissessem, e por isso ninguém
acreditaria nas mentiras. Há seguramente algo de importanteaqui: para as mentiras serem
bem sucedidas, as pessoas devem em geral acreditar que os outros dizem a verdade; por
isso, o sucesso de uma mentira depende da não existência deuma "lei universal" que a
legitime.
Há, no entanto, um problema com este argumento, que se tornará claro se explicitarmos a
linha de raciocínio de Kant de forma mais completa. Suponhamos que era necessário mentir
para salvar a vida de alguém. Devemos fazê-lo? Kant levar-nos-ia a raciocinar da seguinte
forma:
1) Devemos fazer apenas aquelas acções que estejam em conformidade com regras que
possamos desejar ver adoptadas universalmente;
2) Se mentíssemos, estaríamos a seguir a regra "é permissível mentir";
3) Esta regra não poderia ser adoptada universalmente, porque se derrotaria a si mesma: as
pessoas deixariam de acreditar umas nas outras, e então deixaria de valer a pena mentir;
4) Logo, não devemos mentir.
178
179
O problema desta forma de raciocinar foi bem resumido por Elizabeth Anscombe quando
escreveu sobre Kant, em 1958, na revista académica Philosophy:
As suas convicções rigoristas no que concerne à mentira eram tão intensas que nunca lhe ocorreu que
se pode descrever uma. mentira de forma relevante como sejao que for excepto como apenas uma
mentira (por exemplo, como "uma mentira em tais ou tais circunstâncias"). A sua regra sobre
máximas "universalizáveis" é inútil sem estipulações quantoao que deve contar como descrição
relevante de uma acção tendo em vista a construção de uma máxima sobre ela.
Neste aspecto, Anscombe era o modelo de integridade intelectual: apesar de concordar com
a conclusão de Kant, apontou prontamente o erro no seu raciocínio. A dificuldade surge no
ponto 2 do argumento. Que regra exactamente estaríamos a seguir se mentíssemos? O ponto
crucial é que há muitas maneiras de formular a regra; algumas podem não ser
"universalizáveis" no sentido kantiano, mas outras poderiamsê-lo. Suponha-se que dizíamos
que o leitor seguia esta regra R: "É permissível mentir quando fazê-lo salva a vida de uma
pessoa." Poderíamos querer que R fosse transformada em "leiuniversal", e se o fosse R não
se derrotaria a si mesma;
2. Muitos contemporâneos de Kant pensaram que a sua insistência em regras absolutas era
estranha, e disseram-no. Um crítico desafiou-o com este exemplo: Imagine-se que alguém
está a fugir de um assassino e lhe diz que vai para casa esconder-se. O assassino chega
então, fazendo-se passar por inocente, e pergunta para ondefoi o primeiro homem. O leitor
pensa que se disser a verdade, o assassino descobrirá o homem e matá-lo-á. Suponha-se
ainda que o assassino está já a seguir a direcção certa, e o leitor pensa que se ficar
simplesmente calado ele encontrará o homem e matá-lo-á. O que deve fazer? Podemos
designar isto
180
"O Caso da Pergunta do Assassino". Neste caso, a maioria das pessoas consideraria óbvio
que devemos mentir. Afinal de contas, poderíamos argumentar, o que é mais importante?
Dizer a verdade ou salvar a vida de alguém?
Kant respondeu a isto num ensaio com o título deliciosamente antiquado de "Sobre o
Suposto Direito de Mentir por Motivos Altruístas", no qual debate O Caso da Pergunta do
Assassino e oferece um segundo argumento em defesa da sua perspectiva sobre a mentira.
Escreve Kant:
Depois de responder honestamente à pergunta do assassino sobre o paradeiro da sua pretendida
vítima, pode dar-se o caso de ele ter fugido de modo a não se encontrar com o assassino, e dessa
forma o homicídio pode não ser cometido. Mas se tivéssemos mentido e dito que ele não estava em
casa quando na verdade ele tinha saído sem o sabermos, e seo assassino o tivesse então encontrado
quando se ia embora e o tivesse matado, poderíamos ser justamente acusados de ter causado a sua
morte. Porque se tivéssemos dito a verdade tal como a conhecíamos, talvez o assassino tivesse sido
apanhado pelos vizinhos enquanto revistava a casa e dessa forma o seu acto poderia ter sido evitado.
Logo, quem diz uma mentira, por mais bem intencionado que possa estar, tem de prestar contas pelas
consequências, por mais imprevisíveis que sejam, e de ser castigado por causa delas [...]
Ser veraz (honesto) em todas as deliberações é, portanto, um decreto sagrado e absolutamente
imperioso da razão, que não é limitado por qualquer conveniência.
Pode-se formular este argumento numa forma mais geral: Somos tentados a fazer excepções
à regra contra a mentira porque nalguns casos pensamos que as consequências de dizer a
verdade seriam más e as consequências da mentira seriam boas. No entanto, nunca podemos
ter a certeza das consequências das nossas acções - não podemos saber que se seguirão
bons resultados. Os resultados de uma mentira podem ser inesperadamente maus. Logo, a
melhor política é evitar o mal conhecido, a mentira, e arcar com as conse-
181
quências. Mesmo que as consequências sejam más, não serão culpa nossa, pois teremos feito
o nosso dever.
Pode-se fazer notar que um argumento semelhante se aplicaria à decisão de Truman de
lançar bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. As bombas foram lançadas na
esperança de que a Guerra pudesse terminar rapidamente. MásTruman não tinha a certeza
de que isso iria acontecer. Os japoneses poderiam ter-se entrincheirado, e a invasão poderia
ser mesmo assim necessária. Por isso, Truman estava a apostar centenas de milhar de vidas
na mera esperança de que pudessem seguir-se bons resultados.
Os problemas deste argumento são bastante óbvios - tão óbvios, de facto, que é
surpreendente um filósofo da estatura de Kant não ter sido sensível a ele. Em primeiro lugar,
o argumento depende de uma perspectiva excessivamente pessimista do que podemos saber.
Por vezes, podemos estar bastante confiantes sobre as consequências das nossas acções,
caso no qual não precisamos hesitar por causa da incerteza.Além disso - e isto é uma
questão muito mais interessante, do ponto de vista filosófico -, Kant parece presumir que,
apesar de sermos moralmente responsáveis pelas consequências negativas de mentir, não
seríamos igualmente responsáveis por quaisquer más consequências de dizer a verdade.
Suponha-se que, como resultado de dizer a verdade, o assassino encontrava a sua vítima e a
matava. Kant parece presumir que não teríamos qualquer culpa. Mas poderemos escapar à
responsabilidade assim tão facilmente? Afinal de contas, ajudámos o assassino. Este
argumento não é, pois, muito convincente.
9.4 Conflitos entre regras
A ideia de que as regras morais são absolutas, sem excepção, é implausível à luz de casos
como o da Pergunta do Assassino, e os argumentos de Kant emsua defesa são
182
insatisfatórios. Mas, além do facto de ser implausível, existirão argumentos convincentes
contra a ideia?
O principal argumento contra regras morais absolutas tem que ver com a possibilidade de
casos de conflito. Suponha-se que defendemos ser absolutamente errado fazer A em
quaisquer circunstâncias e igualmente errado fazer B em quaisquer circunstâncias. Que dizer
então do caso no qual uma pessoa é confrontada com a escolha entre fazer à e fazer B,
quando tem que fazer alguma coisa e não há outras alternativas? Este tipo de caso de
conflito parece mostrar que é logicamente insustentável defender que as regras morais são
absolutas.
Haverá alguma forma de dar resposta a esta objecção? Uma maneira de o fazer seria negar
que tais casos ocorram realmente. Peter Geach defendeu justamente esta perspectiva,
apelando para a providência divina. Podemos descrever casosfictícios nos quais não há
maneira de evitar violar uma das regras absolutas, afirmou,mas Deus não permitirá que tais
circunstâncias existam no mundo real. No livro God and the Soul (1969) Geach escreve o
seguinte:
"Mas e se as circunstâncias são de tal ordem que a observância de uma lei divina, a lei proibindo a
mentira, por exemplo, acarreta a violação de outra proibição divina absoluta?" - Se Deus é
racional, não ordena o impossível; se Deus governa todos osacontecimentos por meio da sua
providência, pode garantir que não existam circunstâncias nas quais um homem se vê, sem culpa,
confrontado com uma escolha entre actos proibidos. É claro que tais circunstâncias (com a cláusula
"e não há saída" escrita na sua descrição) são susceptíveisde ser descritas de forma consistente; mas
a providência divina pôde assegurar que não ocorrerão de facto. Contrariamente ao que os descrentes
dizem com frequência, acreditar na existência de Deus altera de facto as nossas expectativas face ao
que poderá acontecer.
Ocorrerão tais casos de facto? Não há dúvida que as regras morais sérias por vezes entram
em confronto.
183
durante a Segunda Guerra Mundial, os pescadores holandeses transportavam, secretamente
nos seus barcos, refugiados judeus para Inglaterra, e os barcos de pesca com refugiados a
bordo eram por vezes interceptados por barcos patrulha nazis. O capitão nazi perguntava
então ao capitão holandês qual o seu destino, quem estava abordo, e assim por diante. Os
pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem. Ora, éclaro que os pescadores
tinham apenas duas alternativas, mentir ou permitir que os seus passageiros (e eles mesmos)
fossem apanhados e executados. Não havia terceira alternativa; não podiam, por exemplo,
manter o silêncio ou fugir aos nazis.
Suponhamos, agora, se assume as regras, "é errado mentir" e"é errado permitir o homicídio
de pessoas inocentes", como absolutas. Os pescadores holandeses teriam que fazer uma
destas coisas; logo, uma perspectiva moral que proíbe absolutamente ambas é incoerente.
Esta dificuldade pode naturalmente ser evitada se defendermos que pelo menos uma destas
regras não é absoluta. Mas é duvidoso que esta saída estejadisponível sempre que haja um
conflito. É também difícil compreender, a nível mais elementar, por que razão algumas
regras morais sérias deveriam ser absolutas, se outras não o são.
9.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant
No livro A Short History ofEthics (1966), Alasdair Maclntyre sublinha que "para muitos que
nunca ouviram falar de filosofia, e muito menos de Kant, a moralidade é aproximadamente o
que Kant disse que era" - isto é, um sistema de regras que devemos seguir partindo de um
sentido de dever, independentemente da nossa vontade e desejos. Mas, ao mesmo tempo,
poucos filósofos contemporâneos defenderiam a ideia centralda sua ética, o imperativo
categórico, tal como foi
184
formulado por Kant. Como vimos, o imperativo categórico está rodeado de problemas
sérios e talvez inultrapassáveis. Não obstante, pode ser umerro abandonar o princípio
kantiano demasiado depressa. Haverá alguma ideia fundamental subjacente ao imperativo
categórico que possamos aceitar, mesmo que não aceitemos a forma particular de Kant a
exprimir? Penso que há, e que o poder desta ideia explica, pelo menos em parte, a enorme
influência de Kant.
Recorde-se que Kant pensa que o imperativo categórico é vinculativo para os agentes
racionais simplesmente porque são racionais - por outras palavras, uma pessoa que não
aceitasse este princípio seria culpada não apenas de ser imoral mas igualmente de ser
irracional. Esta é uma ideia fascinante: pensar que há restrições não só morais como também
racionais ao que uma pessoa de bem pode acreditar e fazer. Mas o que significa isto ao
certo? Em que sentido seria irracional rejeitar o imperativo categórico?
A ideia fundamental está relacionada com o pensamento de que um juízo moral tem de se
apoiar em boas razões - se é verdade que devemos (ou não devemos) fazer tal ou tal coisa,
então tem de existir uma razão pela qual devemos (ou não devemos) fazê-la. Por exemplo,
podemos pensar que não devemos atear fogos florestais porque se destruiriam bens alheios e
morreriam pessoas. A inovação kantiana consiste em fazer notar que quaisquer
considerações que aceitemos como razões num dado caso temostambém de aceitar como
razões noutros casos. Se houver outro caso no qual se destruiriam bens alheios e morreriam
pessoas, também neste caso temos de aceitar isso como uma razão a favor da nossa acção.
De nada serve dizer que aceitamos razões algumas vezes, masnão sempre; ou que as outras
pessoas devem respeitá-las e nós não. As razões morais, se são mesmo válidas, são
vinculativas para todas as pessoas em todos os momentos. Isto é um requisito de
consistência; e Kant tinha razão ao pensar que nenhum ser racional o pode negar.
185
Esta é a ideia kantiana - ou, deveria antes dizer-se, uma das ideias kantianas - que se tem
revelado tão influente. Tem uma série de implicações importantes. Implica que uma pessoa
não pode encarar-se como especial de um ponto de vista moral: não pode pensar de forma
consistente que tem permissão para agir de determinadas maneiras proibidas aos outros, ou
que os seus interesses são mais importantes do que os interesses das outras pessoas. Como
assinalou um comentador, não posso afirmar que é correcto eu beber a sua cerveja e depois
queixar-me quando o leitor bebe a minha. A ideia implica, além disso, que há restrições
racionais ao que podemos fazer: podemos querer fazer uma coisa - digamos, beber a
cerveja de alguém - mas reconhecemos que não podemos consistentemente fazê-lo porque
não podemos ao mesmo tempo aceitar a implicação de alguém poder beber a nossa cerveja.
Se Kant não foi o primeiro e reconhecer isto, foi o primeiro a transformá-lo na pedra basilar
de um sistema moral plenamente desenvolvido. Essa foi a suagrande contribuição.
Mas Kant foi ainda mais longe e afirmou que a consistência requer regras sem excepções.
Não é difícil ver como a sua ideia fundamental o impeliu nessa direcção; mas esse passo não
era mais necessário, e tem desde então causado problemas à sua teoria. Mesmo no seio de
uma estrutura kantiana, as regras não precisam de ser encaradas como absolutas. Tudo o
que a ideia fundamental de Kant exige é que quando violarmos uma regra o façamos por
uma razão que estivéssemos dispostos a ver aceite por todosnuma situação idêntica. No
caso da Pergunta do Assassino, isto significa que só podemos violar a regra de proibição da
mentira se aceitarmos que qualquer pessoa o faça quando confrontada com a mesma
situação. E a maioria de nós concordaria prontamente com isso.
Também Harry Truman teria, sem dúvida, concordado que qualquer pessoa nas mesmas
circunstâncias teria boas razões para lançar a bomba. Assim, mesmo que Truman
186
esteja errado, os argumentos de Kant não o demonstram. Poderíamos dizer, ao invés, que
Truman errou porque dispunha de outras opções cujas consequências teriam sido melhores
- muitas pessoas defenderam, por exemplo, que devia ter negociado o fim da Guerra em
termos que os japoneses pudessem aceitar. Mas afirmar que anegociação teria sido melhor,
por causa das suas consequências, é muito diferente de dizer que a via escolhida por Truman
violou uma regra absoluta.
187
Capítulo 10
Kant e o respeito pelas pessoas
Há alguém que não admire o Homem? GIOVANI Pico DELLA MIRANDOLA,
Discurso sobre a Dignidade do Homem (1486)
10.1 A ideia de dignidade humana
Kant pensava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Naturalmente,
não era o único a pensar assim. Trata-se de uma velha ideia: Desde a Antiguidade, os seres
humanos consideraram-se essencialmente diferentes de todas as outras criaturas - e não
apenas diferentes, mas melhores. De facto, os seres humanosconsideram-se
tradicionalmente muitíssimo fabulosos. Kant certamente que o fez. Do seu ponto de vista, os
seres humanos têm "um valor intrínseco, isto é, dignidade",que lhes dá valor "além de
qualquer preço". Os outros animais, pelo contrário, têm apenas valor na medida em que
servem os propósitos humanos. Nas suas Lições de Ética (1779), Kant escreveu:
Mas no que diz respeito aos animais, não ternos deveres directos. Os animais [...] existem apenas
como meios para um fim. Esse fim é o homem.
189
Podemos, portanto, usar os animais como nos aprouver. Não temos sequer um "dever
directo" de nos refrear de os torturar. Kant admite que provavelmente é errado torturá-los,
mas a razão não é que isso lhes causa sofrimento; a razão éapenas que os seres humanos
poderiam sofrer indirectamente em resultado disso, porque "quem é cruel para os 'animais
torna-se rude igualmente no tratamento dos homens". Assim, na perspectiva de Kant, os
meros animais não têm importância moral. Os seres humanos são, no entanto, uma história
completamente diferente. Segundo Kant, os seres humanos nunca podem ser "usados" como
meios para um fim. Kant foi mesmo ao ponto de sugerir que esta é a lei crucial da
moralidade.
Como vários outros filósofos, Kant pensava que a moralidadepode resumir-se num
princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos osnossos deveres e obrigações.
Chamou a este princípio "imperativo categórico". Na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes (1785) exprimiu-o desta forma:
Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal.
No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante,
na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o
seguinte:
Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um
fim e nunca apenas como um meio.
Os estudiosos têm-se perguntado desde então por que razão pensava Kant que estas duas
regras são equivalentes. Parecem exprimir concepções moraisdiferentes. Serão, como Kant
pensava aparentemente, duas versões da mesma
190
ideia básica, ou são simplesmente ideias diferentes? Não nos vamos deter nesta questão.
Vamos, em vez disso, concentrar-nos na crença de Kant de que a moralidade exige que
tratemos as pessoas "sempre como um fim e nunca apenas comoum meio". O que significa
exactamente isto, e que razão há para pensar que é verdade?
Quando Kant afirmou que o valor dos seres humanos "está acima de qualquer preço" não
tinha em mente apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objectivo sobre o lugar dos
seres humanos na ordem das coisas. Há dois factos importantes sobre as pessoas que
apoiam, do seu ponto de vista, este juízo.
Primeiro, uma vez que as pessoas têm desejos e objectivos, as outras coisas têm valor para
elas em relação aos seus projectos. As meras "coisas" (e isto inclui os animais que não são
humanos, considerados por Kant incapazes de desejos e objectivos conscientes) têm valor
apenas como meios para fins, sendo os fins humanos que lhesdão valor. Assim, se
quisermos tornar-nos melhores jogadores de xadrez, um manual de xadrez terá valor para
nós; mas para lá de tais objectivos o livro não tem valor. Ou, se quisermos viajar, um carro
terá valor para nós; mas além de tal desejo o carro não temvalor.
Segundo, e ainda mais importante, os seres humanos têm "um valor intrínseco, isto é,
dignidade", porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para
tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objectivos e guiar a sua
conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a
encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as criaturas
racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido de dever, fazê-lo.
Isto, pensava Kant, é a única coisa com "valor moral". Assim, se não existissem seres
racionais a dimensão moral do mundo simplesmente desapareceria.
Não faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa valiosa
entre outras. Eles
191
são os seres para quem as meras "coisa" têm valor, e são osseres cujas acções conscientes
têm valor moral. Kant conclui, pois, que o seu valor tem deser absoluto, e não comparável
com o valor de qualquer outra coisa.
Se o seu valor está "acima de qualquer preço", segue-se queos seres racionais têm de ser
tratados "sempre como um fim e nunca apenas como um meio". Isto significa, a um nível
muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência relativamente às outras pessoas:
temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respeitar os seus direitos, evitar
fazer-lhes mal, e, em geral, "empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização
dos fins dos outros".
Mas a ideia de Kant tem também uma implicação um tanto ou quanto mais profunda. Os
seres de que estamos a falar são racionais, e "tratá-los como fins em si" significa respeitar a
sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar
os nossos objectivos, por melhores que esses objectivos possam ser. Kant dá o seguinte
exemplo, semelhante a outro que utiliza para ilustrar a primeira versão do seu imperativo
categórico: Suponha que precisa de dinheiro e quer um empréstimo, mas sabe que não será
capaz de devolvê-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promessa de pagamento de
maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poderáfazer isso? Talvez precise do
dinheiro para um propósito meritório - tão bom, na verdade,que poderia convencer-se a si
mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria
apenas a manipulá-lo e a usá-lo "como um meio".
Por outro lado, como seria tratar o seu amigo "como um fim"? Suponha que dizia a
verdade, que precisava do dinheiro para um certo objectivo mas não seria capaz de devolvê-
lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os
seus próprios poderes racionais, consultar os seus própriosvalores e
192
desejos, e fazer uma escolha livre e autónoma. Se decidissede facto emprestar o dinheiro
para o objectivo declarado, estaria a escolher fazer seu esse objectivo. Dessa forma, o leitor
não estaria a usá-lo como um meio para alcançar o seu objectivo, pois seria agora
igualmente o objectivo dele. É isto que Kant queria dizer quando afirmou que "os seres
racionais [...] têm sempre de ser estimados simultaneamentecomo fins, isto é, somente
como seres que têm de poder conter em si a finalidade da acção".
A concepção kantiana da dignidade humana não é fácil de entender; é provavelmente a
noção mais difícil discutida neste livro. Precisamos de encontrar uma forma de tornar a ideia
mais clara. Para isso, analisaremos com algum detalhe uma das suas aplicações mais
importantes. Isto pode ser bem melhor do que uma discussão teórica árida. Kant pensava
que se tomarmos a sério a ideia da dignidade humana seremoscapazes de entender a prática
da punição de crimes de uma forma nova e reveladora. O resto deste capítulo será dedicado
à análise deste exemplo.
10.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição
Jeremy Bentham, o grande teórico utilitarista, afirmou que:"Toda a punição é danosa: toda
a punição é em si um mal." Com isto queria dizer que a punição implica sempre tratar mal as
pessoas, quer tirando-lhes a liberdade (detenção), os seus pertences (multas) ou mesmo as
suas vidas (pena capital). Uma vez que todas estas coisas são males, exigem uma
justificação. Como poderá ser correcto tratar assim as pessoas?
A resposta tradicional é que a punição se justifica como forma de "retribuir" ao ofensor o
acto malévolo cometido. Os que cometeram crimes, como roubar ou atacar outras pessoas,
merecem ser maltratados. É essencialmente uma questão de justiça: Se alguém faz mal a
outras pessoas, a
193
justiça exige que sofra também algum dano. Como reza o adágio antigo, "Olho por olho,
dente por dente".
Esta perspectiva é conhecida como retributivismo. O retributivismo era, segundo Bentham,
uma ideia inteiramente insatisfatória, porque advogava a imposição de sofrimento sem
qualquer ganho compensatório em felicidade. O retributivismo leva-nos a aumentar, e não a
diminuir, a quantidade de sofrimento no mundo. Isto não é uma implicação "oculta" do
retributivismo. Kant, que era um retributivista, tinha consciência desta implicação e aceitou-
a abertamente. Na Crítica da Razão Prática (1788), escreveu:
Quando alguém que se compraze em incomodar e vexar as pessoas que gostam da paz recebe por fim
uns merecidos açoites, isso é certamente um mal, mas todo& o aprovam e consideram um bem em si,
ainda que nada mais resulte daí.
Assim, punir pessoas pode aumentar a quantidade de sofrimento no mundo; mas, segundo
Kant, isso não faz mal, pois o acréscimo de sofrimento é suportado pelo criminoso que,
afinal de contas, o merece.
O utilitarismo faz uma abordagem completamente diferente. Segundo o utilitarismo, o nosso
dever é fazer tudo quanto aumente a quantidade de felicidade no mundo. A punição é,
claramente, "um mal" porque torna alguém - a pessoa que é punida - infeliz. Por isso,
Bentham afirma que a punição, "a ser admitida, deveria sê-lo na medida em que prometa
excluir um mal maior". Por outras palavras, pode justificar-se apenas se vier a ter resultados
bons que, sopesados, superem o mal cometido.
Assim, para o utilitarista, a questão é saber se por meio da punição dos criminosos se serve
uma finalidade boa, além de lhes causar sofrimento. Os utilitaristas responderam
tradicionalmente pela afirmativa. Há duas formas pelas quais a prática de punir os infractores
da lei beneficia a sociedade.
194
Primeiro, punir os criminosos ajuda a prevenir o crime, ou pelo menos reduz o nível de
actividade criminosa numa sociedade. As pessoas que se sentem tentadas a comportar-se
mal, podem ser dissuadidas de o fazer se souberem que serãopunidas. Naturalmente, a
ameaça de punição nem sempre será eficaz. Por vezes as pessoas violarão a lei de qualquer
maneira. Mas haverá menos delinquência se existir a ameaça de punição. Imagine como seria
se a polícia não estivesse preparada para prender ladrões; teríamos de ser uns românticos
incuráveis para não reconhecer que haveria muito mais assaltos. Uma vez que a conduta
criminosa causa infelicidade às vítimas, ao prevenir o crime (pela imposição de punições)
estamos a prevenir a infelicidade - de facto, estamos sem dúvida a prevenir mais
infelicidade do que a que causamos. Assim, havendo um ganhonítido de felicidade, os
utilitaristas considerariam a punição justificada.
Segundo, um sistema bem concebido de punição poderia ter umefeito de reabilitação dos
malfeitores. Os criminosos são frequentemente pessoas com problemas emocionais, com
dificuldade de funcionar bem em sociedade. Têm com frequência uma educação deficiente e
são incapazes de manter um emprego. Tendo isto em conta, porque não responder ao crime
atacando os problemas que lhe estão na origem? Se alguém viola as leis sociais, é um perigo
para a sociedade e pode, antes de mais, ser detido para se xemover o perigo. Mas enquanto
está detido, os seus problemas devem ser tratados mediante terapia psicológica,
oportunidades educacionais, ou treino profissional, de acordo com as suas necessidades. Se
puder por fim ser devolvido à sociedade como um cidadão produtivo em vez de um
criminoso, os beneficiários serão ele próprio e a sociedade.
O resultado lógico desta maneira de pensar é que devemos abandonar a noção de punição e
substitui-la pela noção mais humana de tratamento. Karl Menninger, o distinto
195
psicólogo, chegou a esta mesma conclusão quando escreveu, em 1959:
Nós, os agentes da sociedade, temos de pôr fim ao jogo de pagar na mesma moeda no qual o
malfeitor se envolveu estupidamente e nos envolveu a todos.Nós não somos levados, como ele, a agir
de forma impulsiva e selvagem. O conhecimento traz poder, edetendo o poder não há necessidade de
manter a vingança temerosa dos antigos sistemas penais. Em seu lugar, devemos colocar um
programa terapêutico sereno e digno para, se possível, reabilitar os perturbados, proteger a sociedade
durante o período de tratamento e preparar o seu regresso, orientado à cidadania útil, logo que isso se
possa fazer.
Estas ideias utilitaristas dominaram a lei anglo-americana no século passado, e hoje a teoria
utilitarista da punição constitui a ortodoxia dominante. Asprisões, em tempos meros lugares
de isolamento, foram reconcebidas (pelo menos em teoria) como centros de reabilitação,
incluindo psicólogos, bibliotecas, programas educativos e treino vocacional. A mudança de
pensamento foi tão grande que o termo prisão já não é bem aceite; a nomenclatura preferida
é instituição correccional, e as pessoas que aí trabalham são funcionários correccionais.
Convém notar as implicações da nova terminologia - os detidos não estão lá para ser
"punidos" mas sim "corrigidos". Na realidade, as prisões continuam a ser brutais e, com
demasiada frequência, os programas de reabilitação têm sidodesencorajadoramente mal
sucedidos. Não obstante, os programas são, supostamente, reabilitadores. A vitória da
ideologia utilitarista foi virtualmente completa.
10.3 O retributivismo de Kant
Como todas as ortodoxias, a teoria utilitarista da punição suscitou opositores. Muita da oposição é
de natureza prática; apesar dos esforços, os programas de reabilitação
196
não têm funcionado muito bem. Na Califórnia, por exemplo, tem-se feito mais para
"reabilitar" criminosos do que em qualquer outro lugar; no entanto, a taxa de reincidência é
aí mais elevada do que na maioria dos outros estados norte-americanos. Mas alguma da
oposição é também baseada em considerações inteiramente teóricas que recuam pelo menos
a Kant.
Kant rejeitou "as contorções de serpente do utilitarismo" porque, afirmou, a teoria é
incompatível com a dignidade humana. Em primeiro lugar, leva-nos a calcular como usar as
pessoas como meios para um fim, e isto não é permissível. Se prendemos um criminoso de
maneira a manter o bem-estar da sociedade, estamos apenas ausá-lo em benefício dos
outros. Isto viola a regra fundamental de que "um homem nunca deve ser usado apenas
como um meio para servir os fins de outro".
Além disso, o objectivo da "reabilitação", apesar de parecer nobre, não passa na verdade de
uma tentativa de transformar as pessoas no que pensamos quedevem ser. Como tal, é uma
violação dos seus direitos de seres autónomos para decidir por si que género de pessoas
querem ser. Temos de facto o direito de responder à sua maldade "retaliando-os" por isso,
mas não temos o direito de violar a sua integridade tentando manipular as suas
personalidades.
Desta forma Kant distanciou-se das justificações utilitaristas da punição. Defendeu, ao invés,
que a punição deve ser governada por dois princípios. Primeiro, as pessoas devem ser
punidas simplesmente porque cometeram crimes, e por nenhumaoutra razão:
A punição judicial nunca pode ser administrada meramente como um meio para promover outro bem,
para o criminoso em si ou para a sociedade, mas tem de ser imposta em todos os casos apenas porque
o indivíduo ao qual é infligida cometeu um crime.
197
E, segundo, Kant afirma que é importante punir o criminoso de forma proporcional à seriedade do
seu crime. Pequenas punições podem bastar para crimes menores, mas as grandes punições são
necessárias em resposta a crimes maiores:
Mas qual é a forma e a medida da punição que a justiça pública toma como seu princípio e padrão?
É apenas o princípio de igualdade, pelo qual o prato da balança da Justiça é levado a não pender
mais para um lado do que para o outro [...] Pode pois dizer-se: "Se difamas outra pessoa, difamas-te
a ti mesmo; se atacas outra pessoa, atacas-te a ti mesmo; se matas outra pessoa, matas-te a ti
mesmo." Isto é [...] o único princípio que [...] pode definitivamente estabelecer a qualidade e
quantidade de uma pena justa.
Este segundo princípio leva Kant a apoiar inevitavelmente apena capital; pois em resposta a
um homicídio, apenas a morte é uma pena suficientemente severa. Numa passagem célebre,
Kant afirma:
Mesmo que uma sociedade civil resolvesse dissolver-se com oconsentimento de todos os seus
membros -como pode supor-se no caso de um povo habitando uma ilha que resolvesse separar-se e
espalhar-se pelo mundo -, o último homicida que estivesse na prisão deveria ser executado antes de
a resolução ser levada avante. Isto deve ser feito para quetodos compreendam a remuneração dos
seus actos, e para que a culpa de sangue não permaneça entre o povo; pois de outra forma todos
serão encarados como participantes no homicídio enquanto violação pública da Justiça.
Vale a pena notar que o utilitarismo foi condenado por violar os dois princípios kantianos.
Nada há na ideia de base do utilitarismo que estabeleça limites à punição dos culpados, ou
que limite a extensão da punição em função do que é merecido. Se o propósito da punição é
preservar
198
o bem-estar geral, como afirma o utilitarismo, pode por vezes acontecer que o bem-estar
geral seja servido mediante a "punição" de alguém que não cometeu um crime, uma pessoa
inocente. De modo análogo, pode acontecer que o bem-estar geral seja promovido mediante
uma punição excessiva - uma punição maior poderá ter um efeito dissuasor maior. Mas
ambas as coisas são, aparentemente, violações da justiça, que o retributivismo não
permitiria.
Mas os dois princípios de Kant não constituem uma argumentação em favor da punição ou
uma justificação da mesma. Apenas descrevem os limites quanto ao que a punição justa
pode envolver: Só os culpados podem ser punidos, e a ofensafeita a uma pessoa punida tem
de ser comparável à ofensa que ela infligiu aos outros. Precisamos ainda de um argumento
para mostrar que a prática da punição, concebida desta forma, seria uma coisa moralmente
boa. Notámos já que Kant encara a punição como uma questão de justiça. Kant afirma que
se os culpados não forem punidos, não será feita justiça. Isto é um argumento. Mas Kant
fornece ainda um argumento adicional, baseado na sua concepção de que as pessoas devem
ser tratadas como "fins em si". Este argumento adicional é a contribuição específica de Kant
para a teoria do retributivismo.
Ao que tudo indica, é improvável que pudéssemos descrever apunição de um indivíduo
como uma forma de "respeitá-lo enquanto pessoa" ou como "tratá-lo enquanto fim em si".
Como poderia o acto de retirar a uma pessoa a sua liberdade, enviando-a para a prisão, ser
uma forma de mostrar "respeito" por ela? No entanto, é exactamente isso que Kant sugere.
Este filósofo insinua ainda, de forma mais paradoxal, que executar alguém pode também ser
uma forma de tratá-lo como "um fim". Como pode isto ser assim?
Recordemos que, para Kant, tratar alguém como "um fim em si" significa tratá-lo como um
ser racional. Temos pois de perguntar o que significa tratar alguém como um ser racional.
Um ser racional é alguém capaz de raciocinar
199
E, segundo, Kant afirma que é importante punir o criminoso de forma proporcional à seriedade do
seu crime. Pequenas punições podem bastar para crimes menores, mas as grandes punições são
necessárias em resposta a crimes maiores:
Mas,qual é a forma e a medida da punição que a justiça pública toma como seu princípio e padrão?
É apenas o princípio de igualdade, pelo qual o prato da balança da Justiça é levado a não pender
mais para um lado do que para o outro [...] Pode pois dizer-se: "Se difamas outra pessoa, difamas-te
a ti mesmo; se atacas outra pessoa, atacas-te a ti mesmo; se matas outra pessoa, matas-te a ti
mesmo." Isto é [...] o único princípio que [...] pode definitivamente estabelecer a qualidade e
quantidade de uma pena justa.
Este segundo princípio leva Kant a apoiar inevitavelmente apena capital; pois em resposta a
um homicídio, apenas a morte é uma pena suficientemente severa. Numa passagem célebre,
Kant afirma:
Mesmo que uma sociedade civil resolvesse dissolver-se com oconsentimento de todos os seus
membros - como pode supor-se no caso de um povo habitando uma ilha que resolvesse separar-se e
espalhar-se pelo mundo -, o último homicida que estivesse na prisão deveria ser executado antes de
a resolução ser levada avante. Isto deve ser feito para quetodos compreendam a remuneração dos
seus actos, e para que a culpa de sangue não permaneça entre o povo; pois de outra forma todos
serão encarados como participantes no homicídio enquanto violação pública da Justiça.
Vale a pena notar que o utilitarismo foi condenado por violar os dois princípios kantianos.
Nada há na ideia de base do utilitarismo que estabeleça limites à punição dos culpados, ou
que limite a extensão da punição em função do que é merecido. Se o propósito da punição é
preservar
198
o bem-estar geral, como afirma o utilitarismo, pode por vezes acontecer que o bem-estar
geral seja servido mediante a "punição" de alguém que não cometeu um crime, uma pessoa
inocente. De modo análogo, pode acontecer que o bem-estar geral seja promovido mediante
uma punição excessiva - uma punição maior poderá ter um efeito dissuasor maior. Mas
ambas as coisas são, aparentemente, violações da justiça, que o retributivismo não
permitiria. Mas os dois princípios de Kant não constituem uma argumentação em favor da
punição ou uma justificação da mesma. Apenas descrevem os limites quanto ao que a
punição justa pode envolver: Só os culpados podem ser punidos, e a ofensa feita a uma
pessoa punida tem de ser comparável à ofensa que ela infligiu aos outros. Precisamos ainda
de um argumento para mostrar que a prática da punição, concebida desta forma, seria uma
coisa moralmente boa. Notámos já que Kant encara a punição como uma questão de justiça.
Kant afirma que se os culpados não forem punidos, não será feita justiça. Isto é um
argumento. Mas Kant fornece ainda um argumento adicional, baseado na sua concepção de
que as pessoas devem ser tratadas como "fins em si". Este argumento adicional é a
contribuição específica de Kant para a teoria do retributivismo.
Ao que tudo indica, é improvável que pudéssemos descrever apunição de um indivíduo
como uma forma de "respeitá-lo enquanto pessoa" ou como "tratá-lo enquanto fim em si".
Como poderia o acto de retirar a uma pessoa a sua liberdade, enviando-a para a prisão, ser
uma forma de mostrar "respeito" por ela? No entanto, é exactamente isso que Kant sugere.
Este filósofo insinua ainda, de forma mais paradoxal, que executar alguém pode também ser
uma forma de tratá-lo como "um fim". Como pode isto ser assim? Recordemos que, para
Kant, tratar alguém como "um fim em si" significa tratá-lo como um ser racional. Temos
pois de perguntar o que significa tratar alguém como um serracional. Um ser racional é
alguém capaz de raciocinar
199
sobre a sua conduta e decidir livremente o que fazer, com base na sua própria concepção do
que é melhor. Por ter estas capacidades, um ser racional é responsável pelas suas acções.
Precisamos recordar a diferença entre:
1. Tratar alguém como um ser responsável;
2. Tratar alguém como um ser que não é responsável pela suaconduta.
Os meros animais, carentes de razão, não são responsáveis pelas suas acções; tal como não
o são as pessoas com doenças mentais e sem controlo sobre si rríesmas. Em tais casos seria
absurdo "responsabilizá-las". Não poderíamos com propriedade sentir gratidão ou
ressentimento relativamente a elas, pois não são responsáveis por qualquer bem ou mal que
causem. Além disso, não podemos esperar que percebam o porquê de os tratarmos como
tratamos, assim como não podemos esperar que percebam as razões do seu próprio
comportamento. Não podemos, pois, deixar de manipulá-los, em vez de os tratar como
indivíduos autónomos. Quando batemos num cão que urinou no tapete, por exemplo,
podemos fazê-lo numa tentativa de evitar que volte a fazê-lo; mas estamos apenas a tentar
"treiná-lo". Não poderíamos discutir com ele, mesmo que o desejássemos. O mesmo
acontece relativamente aos seres humanos com perturbações mentais.
Por outro lado, os seres racionais são responsáveis pelo seu comportamento e por isso
podem prestar contas do que fazem. Podemos sentir gratidão quando se portam bem e
ressentimento quando se portam mal. Recompensa e punição - e não "treino" ou outra
forma de manipulação - são as expressões naturais desta gratidão ou ressentimento. Por
isso, ao punir pessoas estamos a responsabilizá-las pelas suas
200
acções de uma forma que não podemos aplicar aos meros animais. Estamos a reagir a elas
não como pessoas "doentes" ou que não têm controlo sobre si, mas como pessoas que
escolheram livremente executar os seus actos malévolos.
Além disso, ao lidar com agentes responsáveis podemos adequadamente permitir que a sua
conduta determine, pelo menos em parte, a forma como lhes respondemos. Se alguém foi
amável connosco, podemos responder retribuindo a amabilidade; e se alguém foi
desagradável, podemos também tomar isso em conta ao decidircomo lidamos com essa
pessoa. Porque razão não haveríamos de fazê-lo? Porque razão haveríamos de tratar todas
as pessoas da mesma maneira, independentemente da forma como elas escolheram
comportar-se?
Kant dá a este último aspecto uma inflexão peculiar. Na suaopinião, há uma razão lógica
mais profunda para pagar às outras pessoas "na mesma moeda". Aqui entra em jogo a
primeira formulação do imperativo categórico. Quando decidimos o que fazer, proclamamos
de facto o desejo de ver a nossa conduta erigida em "lei universal". Logo, quando um ser
racional decide tratar as pessoas de certa maneira, decretaque em seu juízo essa é a forma
como as pessoas devem ser tratadas. Por isso, se em resposta o tratamos da mesma forma,
não estamos a fazer mais do que tratá-lo como ele decidiu que as pessoas devem ser
tratadas. Se ele trata mal os outros, e nós o tratamos mal,estamos a obedecer à sua própria
decisão. (E, é claro, se ele trata bem os outros, e o tratamos bem em troca, estamos também
a obedecer à escolha que fez.) Estamos a permitir-lhe decidir como deve ser tratado e por
isso estamos, num sentido perfeitamente claro, a respeitar o seu juízo, ao permitir que este
controle a maneira como o tratamos. Por isso, Kant afirma com respeito ao criminoso: "A
sua má acção arrasta consigo a punição sobre si."
Associando a punição com a ideia de tratar as pessoas como seres racionais, Kant deu à
teoria retributiva uma
201
nova densidade. O que em última instância pensamos da teoria dependerá do que pensamos
sobre as grandes questões identificadas por Kant - quanto ao que pensamos sobre a
natureza do crime e dos criminosos. Se os infractores da lei são, como sugere Menninger,
"personalidades perturbadas", "forçadas a realizar acções impulsivas e selvagens" sobre as
quais não têm controlo, então o modelo terapêutico terá umamaior atracção do que a
atitude mais severa de Kant. De facto, o próprio Kant insistiria em que, se os criminosos não
são agentes responsáveis, não faz sentido indignarmo-nos com o seu comportamento e
"puni-los" por causa dele. Mas na medida em que sejam encarados como pessoas
responsáveis, sem desculpas, que simplesmente escolheram violar os direitos dos outros sem
qualquer motivo racionalmente aceitável, o retributivismo kantiano continuará a ter um
grande poder persuasivo.
202
Capítulo 11
A ideia de contrato social
As paixões que inclinam os seres humanos a favor da paz sãoo medo da morte; o desejo das coisas
necessárias a uma vida confortável; e a esperança de que o seu engenho permita alcançá-las. E a razão
sugere cláusulas de paz convenientes, sobre as quais os homens podem ser levados a acordo. Estas cláusulas
são o que costuma chamar-se as Leis da Natureza.
THOMAS HOBBES, Leviathan (1651)
11.1 O argumento de Hobbes
Imagine-se que afastamos todas as bases tradicionais da moralidade. Suponha-se, primeiro,
que não existe qualquer Deus para emitir mandamentos e recompensar a virtude; e, segundo,
que não há "factos morais" integrados na natureza das coisas. Suponha-se ainda que
negamos o carácter naturalmente altruísta dos seres humanose encaramos as pessoas como
essencialmente motivadas pela defesa dos seus próprios interesses. Qual é, pois, a origem da
203
moralidade? Se não podemos apelar para Deus, aos factos morais ou ao altruísmo natural, restará
alguma coisa sobre a qual a moralidade se possa fundar?
Thomas Hobbes, o mais distinto filósofo britânico do séculoxvii, tentou mostrar que a
moralidade não depende de qualquer dessas coisas. A moralidade deveria ser entendida, ao
invés, como a solução de um problema prático que se coloca a seres humanos com
interesses próprios. Todos queremos viver tão bem quanto possível; mas ninguém pode
prosperar sem uma ordem social pacífica e cooperante. E nãopodemos ter uma ordem
social pacífica e cooperante sem regras. As regras morais são apenas, pois, as regras
necessárias para nos permitir obter os benefícios da vida em sociedade. É essa a chave para a
compreensão da ética e não Deus, o altruísmo ou os "factos morais".
Hobbes começa por perguntar como seria se não houvesse regras sociais e nenhum
mecanismo comummente aceite para as impor. Imaginemos, se quisermos, que não havia
governos - nem leis, polícias ou tribunais. Nesta situação,cada um de nós seria livre de
fazer o que quisesse. Hobbes chamou a isto estado de natureza. Como seria isto?
Hobbes pensava que seria horrível. No Leviathan escreveu que não haveria
maneira de ser empreendedor, pois o fruto do trabalho seriaincerto: e consequentemente a terra não
seria cultivada; não haveria navegação nem utilização dos produtos que podem ser transportados por
mar; nem edifícios confortáveis; nem instrumentos para auxiliar a deslocação e remoção de coisas
que requerem, muita força; nem conhecimento da face da Terra; nem mecanismos para contar o
tempo; nem artes; nem letras; nem sociedade; e, o que é o pior, haveria um medo contínuo e o perigo
de morte violenta; e a vida do homem seria solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.
204
Porque razão seriam as coisas tão más? Não é porque as pessoas são más. E, isso sim, por
causa de quatro factos fundamentais relativos às condições da vida humana:
- Primeiro, há o facto da igualdade de necessidades. Cada um de nós precisa das mesmas
coisas básicas de modo a sobreviver - comida, vestuário, abrigo. Apesar de podermos
diferir em algumas das nossas necessidades (os diabéticos precisam de insulina, os outros
não), somos todos essencialmente iguais;
- Segundo, há o facto da escassez. Não vivemos no Paraíso, onde o leite corre em regatos e
todas as árvores estão pejadas de frutos suculentos. O mundo é um local duro e inóspito,
onde as coisas de que precisamos para sobreviver não existem em quantidade abundante.
Temos de trabalhar duramente para as produzir, e mesmo assim muitas vezes não temos o
suficiente;
- Se não há suficientes bens essenciais para sobrevivermos,quem os irá providenciar? Uma
vez que cada um de nós quer viver, e viver tão bem quanto possível, cada um de nós deseja
tanto quanto puder obter. Mas conseguiremos triunfar sobre os outros, que também querem
os bens escassos? Hobbes pensa que não, por causa do terceiro facto sobre a nossa
condição, o facto da igualdade essencial dos poderes humanos. Ninguém é superior a todos
os outros, em força e engenho, de maneira a poder vencê-losindefinidamente. É claro que
algumas pessoas são mais espertas e mais fortes do que outras; mas mesmo as mais fortes
podem ser derrotadas por outras actuando em conjunto;
- Se não podemos prevalecer por meio da força, que esperança nos resta? Poderemos, por
exemplo, confiar na caridade ou boa-vontade das outras pessoas para nos ajudar? Não
podemos. O quarto e último facto é o altruísmo limitado. Mesmo que as pessoas não sejam
totalmente egoístas, importam-se, apesar
205
de tudo, demasiado consigo mesmas; e não podemos simplesmente presumir que sempre que
os nossos interesses vitais entram em conflito com os delas, elas se afastarão.
Quando juntamos estes factos, emerge um retrato sinistro. Todos1 precisamos das mesmas
coisas básicas, e não as há em quantidade suficiente para sobrevivermos. Logo, seremos
colocados numa espécie de competição por elas. Mas nenhum de nós tem capacidade para
triunfar sobre a concorrência, e ninguém - ou quase ninguém- estará disposto a abdicar
da satisfação das suas necessidades em favor dos outros. O resultado é, nas palavras de
Hobbes, um "estado de guerra constante de um contra todos".E trata-se de uma guerra que
ninguém pode esperar vencer. Uma pessoa razoável que queirasobreviver, tentará recolher
o que precisa e preparar-se para o defender dos atacantes. Mas os outros farão a mesma
coisa. São estas as razões pelas quais a vida no estado de natureza seria intolerável.
Hobbes não pensava que tudo isto fosse mera especulação. Sublinhou que isto é o que
acontece de facto quando os governos caem, como durante umainsurreição civil. As
pessoas começam desesperadamente a armazenar comida, a armar-se e a afastar-se dos seus
vizinhos. (O que faria o leitor se amanhã de manhã ao acordar descobrisse que por causa de
uma qualquer catástrofe o governo tinha caído, não havendo leis, polícia ou tribunais em
funcionamento?) Além disso, entre si, as nações do mundo, sem uma lei internacional
actuante, estão numa situação muito parecida à dos indivíduos no "estado de natureza", e
estão constantemente a atacar-se, armadas e desconfiadas.
Para as pessoas escaparem ao estado de natureza, é claro que têm de encontrar maneiras de
cooperar entre si. Numa sociedade estável e cooperante, a quantidade de bens essenciais
pode aumentar e ser distribuída por quantos tenham
206
deles necessidade. Mas são necessárias duas coisas para isto poder acontecer. Primeiro, tem
de haver garantias de que as pessoas não farão mal umas às outras - as pessoas têm de
poder trabalhar juntas sem medo de ataques, roubos ou traições. E, segundo, as pessoas têm
de poder confiar umas nas outras quanto ao cumprimento dos seus acordos. Só então pode
haver uma divisão do trabalho. Se uma pessoa se dedica à cultura da terra e outra passa o
tempo a ajudar os doentes, enquanto uma terceira constrói casas, esperando cada uma
partilhar os benefícios criados pelas outras, cada pessoa na cadeia tem de poder confiar que
os outros farão o que deles se espera.
Uma vez estabelecidas estas garantias, pode desenvolver-se uma sociedade na qual todos
tenham melhores condições de vida do que no estado de natureza. Há então lugar para os
"produtos importados por via marítima, edifícios confortáveis, artes, letras", e outras coisas
que tais. Mas - e esta é uma das ideias principais de Hobbes - para isto acontecer, tem de
se estabelecer um governo, com o seu sistema de leis, polícia e tribunais, de maneira a
assegurar que as pessoas poderão viver com um receio mínimode ataques e que terão de
manter os seus compromissos. O governo é uma parte indispensável do sistema.
Para escapar ao estado de natureza as pessoas têm, pois, deconcordar no estabelecimento
de regras para governar as suas relações, e têm de concordar no estabelecimento de um
intermediário - o Estado - com o poder necessário para aplicar estas regras. Segundo
Hobbes, tal acordo existe de facto, e torna possível a vidaem sociedade. A este acordo, do
qual cada cidadão é parte, chama-se contrato social.
Além de explicar os propósitos do Estado, a teoria do contrato social explica a natureza da
moralidade. Estão ambos estreitamente ligados: O Estado existe para aplicar as regras mais
importantes necessárias para a vida em sociedade, enquanto a moralidade consiste em todo
o conjunto de regras que facilita a vida em sociedade.
207
l
Só no contexto do contrato social podemos tornar-nos seres beneficentes, porque o contrato
cria as condições sob as quais podemos dar-nos ao luxo de cuidar dos outros. No estado de
natureza é cada um por si; aí, seria estúpido alguém adoptar a política de "olhar pelos
outros", porque só se poderia fazer isso à custa de colocarpermanentemente os seus
próprios interesses em risco. Mas em sociedade o altruísmo torna-se possível. Ao libertar-
nos do "medo contínuo de uma morte violenta", o contrato social liberta-nos para cuidar
dos outros. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o filósofo francês que depois de Hobbes
está mais estreitamente identificado com esta teoria, foi ao ponto de afirmar que nos
tornamos tipos diferentes de criaturas quando iniciamos relações civilizadas com os outros.
Na sua obra mais famosa, O Contrato Social (1762), Rousseauescreveu:
Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no Homem uma mudança admirável [...]
Só então, quando a voz do dever toma o lugar dos impulsos físicos e o direito o lugar do apetite, é
que o Homem, até então apenas preocupado consigo mesmo, se vê forçado a agir segundo outros
princípios, e a consultar a sua razão antes de dar ouvidos às suas inclinações [...] As suas faculdades
são então exercitadas e desenvolvidas, as suas idéias alargam-se, os seus sentimentos enobrecem-se,
toda a sua alma se eleva a um ponto tal que se os abusos desta sua nova condição não o degradassem
com frequência a um ponto muito inferior ao da condição da qual saiu, seria levado a abençoar
continuamente o momento feliz que o retirou dela para sempre e que, de um animal estúpido e sem
imaginação, fez um ser inteligente e um Homem.
E o que exige a "voz do dever" deste novo homem? Exige-lhe que coloque de lado as suas
"inclinações" privadas e egocêntricas em favor de regras que promovam imparcialmente o
bem-estar de todos sem distinção. Mas ele só pode fazer isto porque os outros concordaram
fazer a mesma
coisa - esta é a essência do "contrato". Podemos pois resumir a concepção do contrato
social da forma seguinte:
A moralidade consiste no conjunto de regras, governando a forma de as pessoas se
tratarem entre si, que todas as pessoas racionais acordam aceitar, para benefício mútuo,
na condição de os outros seguirem também essas regras.
11.2 O dilema do prisioneiro
O argumento de Hobbes é uma das formas de chegar à teoria do contrato social. Mas há
outra linha de pensamento, no entanto, que impressionou também muitos filósofos
recentemente. Esta linha de pensamento está ligada com um problema na teoria da decisão
conhecido como o "dilema do prisioneiro". O dilema do prisioneiro pode ser inicialmente
apresentado sob a forma de um quebra-cabeças; talvez o leitor queira ver se consegue
resolvê-lo antes de saber a resposta.
Suponha que vive numa sociedade totalitária e um dia, para sua grande surpresa, é detido e
acusado de traição. A polícia afirma que tem conspirado contra o governo em conluio com
um homem de nome Smith, que foi igualmente detido e está preso noutra cela. O
interrogador exige a sua confissão. O leitor protesta a suainocência; nem sequer conhece
Smith. Mas isto de nada serve. Torna-se em breve claro que os seus captores não estão
interessados na verdade; por razões que só eles conhecem, querem apenas condenar alguém.
E propõem-lhe o acordo seguinte:
- Se Smith não confessar, mas o leitor confessar e testemunhar contra ele, será libertado.
Poderá ir em liberdade, enquanto Smith, que não cooperou, ficará preso dez anos;
- Se Smith confessar e o leitor não o fizer, a situação ficará invertida - ele será libertado e
o leitor condenado a dez anos;
208
209
- Se ambos confessarem, no entanto, cada um será condenado a cinco anos;
- Mas se nenhum confessar, não haverá provas suficientes para condenar qualquer dos dois.
Poderão mantê-los detidos durante um ano, mas depois terão de libertá-los.
Por fim, comunicam-lhe que Smith teve a mesma proposta; maso leitor não pode comunicar
com ele e não tem maneira de saber o que Smith vai fazer.
O problema é o seguinte: Partindo do princípio que o seu objectivo é passar o menor tempo
possível na cadeia, o que deve fazer? Confessar ou não confessar? Para os objectivos deste
problema o leitor deve esquecer ideias como as relativas a manter a sua dignidade, lutar
pelos seus direitos e coisas do género. O problema não é sobre isso. Deve também esquecer
a preocupação de auxiliar Smith. Este problema diz estritamente respeito ao cálculo do que
é do seu melhor interesse fazer. A questão é: O que poderá libertá-lo mais rapidamente?
Confessar ou não confessar?
Pode parecer à primeira vista que a questão não pode ser respondida a menos que saibamos
o que Smith vai fazer. Mas isso é uma ilusão. O problema tem uma solução perfeitamente
clara: Faça Smith o que fizer, o leitor deve confessar. Isto pode ser demonstrado pelo
seguinte raciocínio:
1. Ou Smith irá confessar ou não;
2. Suponhamos que Smith confessa. Então, se o leitor confessar será condenado a cinco
anos, enquanto se não confessar apanhará dez. Logo, se ele confessar, o leitor ficará melhor
se confessar também;
3. Suponhamos, por outro lado, que Smith não confessa. Nesse caso, o leitor fica na
seguinte posição: Se confessar será libertado, enquanto se não confessar ficará detido um
ano. É claro, então, que mesmo que Smith não confesse será melhor para si fazê-lo;
210
4. Logo, o leitor deve confessar. Isso vai colocá-lo em liberdade mais cedo,
independentemente do que Smith fizer.
Até agora tudo bem. Mas há um problema. Lembre-se que a Smith foi proposto um acordo
semelhante. Partindo do princípio que Smith não é estúpido,chegará à conclusão, a partir do
mesmo raciocínio, de que deve confessar. Assim, o resultadoserá que ambos vão confessar,
e isto significa que ambos serão condenados a penas de cinco anos. Mas se tivessem ambos
feito o contrário, cada um teria saído em liberdade ao fim de apenas um ano. É este o
problema. Por terem procurado racionalmente defender os seus próprios interesses, ambos
acabarn em piores circunstâncias do que se tivessem agido de forma diferente. E isto que faz
do dilema do prisioneiro um dilema. É uma situação paradoxal. O leitor e Smith obteriam
melhores resultados se fizessem simultaneamente o que não corresponde aos melhores
interesses individuais de cada um.
Se pudesse comunicar com Smith poderia, naturalmente, chegar a acordo com ele. Poderia
acordar que nenhum dos dois iria confessar; poderiam então obter a sentença de um ano.
Por meio da cooperação obteriam melhores resultados do que agindo individualmente. A
cooperação não concede a nenhum o resultado óptimo -liberdade imediata - mas permite
obter para os dois um resultado melhor do que cada um poderia alcançar sem cooperação.
Seria fundamental, no entanto, que qualquer acordo entre osdois pudesse ser fiscalizado,
porque se Smith renunciasse e confessasse, ao mesmo tempo que o leitor mantinha o
acordo, então o leitor acabaria por cumprir a sentença máxima de dez anos enquanto Smith
sairia em liberdade. Assim, para que seja racional para o leitor cumprir a sua parte do
acordo, terá de ter garantias de que Smith cumpriria a sua parte. (E naturalmente ele teria o
mesmo receio sobre a sua possível renúncia.) Só um acordo susceptível de ser fiscalizado
poderá oferecer uma saída do dilema, para qualquer dos dois.
211
A moralidade como solução para um problema do tipo do dilema do prisioneiro. O dilema
do prisioneiro não é apenas um quebra-cabeças inteligente. Apesar de a história que
contámos ser fictícia, o padrão que ilustra ocorre freqüentemente na vida real. Situações do
tipo do dilema do prisioneiro ocorrem sempre que se verificam duas condições:
1. Tem de ser uma situação na qual os interesses das pessoas são afectados não apenas pelo
que elas mesmas fazem mas também pelo que fazem os outros;
2. Tem de ser uma situação na qual, paradoxalmente, todos acabem pior se tentarem
individualmente defender os seus próprios interesses do quese fizerem simultaneamente o
que não serve os seus interesses individuais.
Este tipo de situação acontece na vida real com mais freqüência do que poderíamos pensar.
Consideremos, por exemplo, a escolha entre duas estratégiasde vida. Primeiro, poderíamos
defender exclusivamente os nossos próprios interesses - em cada situação poderíamos
fazer o que nos beneficiasse, não tendo em conta como os outros poderiam ser afectados
por isso. Chamemos a isto "agir de forma egoísta". Em alternativa, poderíamos preocupar-
nos com o bem-estar das outras pessoas bem como com o nosso, mantendo o equilíbrio
entre ambos, abdicando por vezes dos nossos interesses em benefício de terceiros.
Chamemos a esta estratégia "agir com benevolência".
Mas não somos apenas nós quem tem de decidir como viver. Asoutras pessoas têm também
de escolher que política adoptar. Há quatro possibilidades:Primeiro, podemos ser egoístas
enquanto as outras pessoas são benevolentes; segundo, os outros podem ser egoístas
enquanto
212
somos benevolentes; terceiro, podemos ser todos egoístas; equarto, podemos ser todos
benevolentes. Que resultados obteríamos em cada uma destas situações? Apenas do ponto
de vista da prossecução do nosso bem-estar, poderíamos avaliar as possibilidades desta
forma:
- O leitor estaria melhor na situação em que é egoísta enquanto os outros são benevolentes.
Obteria os benefícios da sua generosidade, sem ter de retribuir o favor. (Nesta situação
seria, na terminologia da teoria da decisão, um "borlista".);
- A segunda melhor situação seria aquela em que todos são benevolentes. O leitor deixaria
de ter a vantagem de poder ignorar os interesses das outraspessoas, mas pelo menos teria as
vantagens que advêm do tratamento respeitoso dos outros. (Esta é a situação da
"moralidade comum".);
- Uma situação má, mas não a pior de todas, seria aquela emque todos fossem egoístas. O
leitor tentaria proteger os seus próprios interesses, apesar de ter pouco apoio dos outros.
(Este é o "estado de natureza" de Hobbes.);
- Por fim, o leitor ficaria pior numa situação na qual fosse benevolente para os outros
enquanto os outros são egoístas. Os outros poderiam atraiçoá-lo quando isso lhes fosse
vantajoso, mas o leitor não teria liberdade para fazer o mesmo. Seria prejudicado em todas
as circunstâncias. (Podemos dizer que nesta situação seria um "papalvo".)
Isto é exactamente o tipo de aparato que dá origem ao dilema do prisioneiro. Baseando-nos
nesta avaliação das situações, o leitor deve adoptar a estratégia egoísta:
1. Ou as outras pessoas respeitarão os seus interesses ou não;
213
2. Se respeitarem de facto os seus interesses, o leitor ficará melhor não respeitando os deles, pelo
menos sempre que isso for vantajoso para si. Esta será a situação óptima - o leitor é um borlista;
3. Se não respeitarem os seus interesses, seria então uma tolice da sua parte respeitar os deles - isso
colocá-lo-ia' na pior situação possível. Seria um papalvo;
4. Logo, independentemente do que as outras pessoas fizerem, o leitor fica em melhor situação
adoptando a política de cuidar de si próprio. O melhor é ser egoísta.
E chegamos agora ao problema: As outras pessoas podem, é claro, raciocinar da mesma forma, e o
resultado será que acabamos por voltar ao estado de natureza de Hobbes. Todos serão egoístas,
dispostos a apunhalar todos os outros sempre que virem nisso alguma vantagem para si mesmos.
Nesta situação, cada um de nós está obviamente em piores condições do que se houvesse cooperação.
Para escapar ao dilema precisamos de outro acordo fiscalizável, desta feita um acordo para obedecer
às regras do respeito mútuo em sociedade. Tal como antes, acooperação não garantiria o melhor
resultado (ser egoístas enquanto os outros são benevolentes), mas levaria a um resultado melhor do
que o obtido se cada um de nós lutasse de forma independente pelos seus interesses. Precisamos, nas
palavras de David Gauthier, de "negociar a moralidade". Podemos fazê-lo se conseguirmos
estabelecer sanções suficientes para garantir que, se respeitarmos os interesses dos outros, eles têm
igualmente de respeitar os nossos.
11.3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral
A teoria contratualista da moral é, como vimos, a ideia de que a moralidade consiste num conjunto de
regras que
214
regem a forma como as pessoas devem tratar-se entre si, regras que todas as pessoas racionais
concordam aceitar, para benefício mútuo, na condição de os outros seguirem igualmente as regras.
A força desta teoria deve-se, em grande medida, ao facto defornecer respostas simples e plausíveis a
algumas questões difíceis que sempre deixaram os filósofos perplexos.
1. Que regras morais estamos obrigados a seguir e como se justificam tais regras? A ideia central
é que as regras moralmente obrigatórias são as necessárias à vida em sociedade. É óbvio, por
exemplo, que não poderíamos viver juntos de forma satisfatória se não aceitássemos regras proibindo
o homicídio, a agressão, o roubo, a mentira, a quebra de promessas e outras que tais. Estas regras
justificam-se mostrando simplesmente que são necessárias sequisermos cooperar para benefício
mútuo. Por outro lado, algumas regras geralmente vistas como morais - como a proibição da
prostituição, da sodomia e da promiscuidade sexual - não são obviamente justificáveis desta forma.
Em que medida é ameaçada a vida social pelo facto de duas pessoas se envolverem em práticas
sexuais privadas? Se esta conduta não nos ameaça de forma alguma, então está para lá do âmbito do
contrato social e não nos diz respeito. Essas regras têm, pois, apenas uma força duvidosa sobre nós;
2. Porque motivo é razoável seguir as regras morais? Concordamos seguir as regras morais porque
é vantajoso viver numa sociedade na qual as regras são aceites. Naturalmente, pode por vezes ser
imediatamente vantajoso violar as regras. No entanto, não érazoável desejar um acordo no qual as
pessoas possam violar as regras sempre que lhes seja vantajoso fazê-lo - o objectivo do contrato
social é justamente podermos confiar que as pessoas cumpremas regras, excepto, eventualmente, nas
emergências mais extremas. Só então poderemos sentir-nos seguros. O nosso próprio cumprimento
constante é o preço razoável que pagamos de maneira a assegurar o cumprimento dos outros;
215
l
3. Em que circunstâncias podemos infringir as regras? Esta é uma questão algo mais
complicada. A idéia central aqui é a reciprocidade - concordamos obedecer às regras na
condição de os outros também obedecerem. Assim, quando alguém viola a condição de
reciprocidade, liberta-nos, pelo menos até certo ponto, dasnossas obrigações para com ele.
Suponhamos que alguém recusa auxiliar-nos, em circunstâncias nas quais podia claramente
ajudar. Então, se mais tarde necessitar do nosso auxílio, podemos sentir que não é nosso
dever dar-lhe a mão.
O mesmo aspecto essencial explica por que razão é permissível punir os que violaram a lei
criminal. Quem viola a lei é tratado de forma diferente do cidadão comum - ao punir quem
viola a lei, tratamo-lo de formas usualmente não permitidas. Como pode justificar-se tal
coisa? A resposta tem duas partes. Em primeiro lugar, a intenção do Estado é aplicar as
regras primárias indispensáveis à vida em sociedade. Para vivermos juntos sem medo, não
pode deixar-se ao critério do indivíduo decidir se vai ou não atacar outras pessoas, roubá-las
ou algo semelhante. Ligar sanções à violação destas regras é o único meio viável de impô-
las. Segue-se daí que temos de punir. Mas porque razão é permissível punir? Ã resposta é
que o criminoso violou a condição fundamental da reciprocidade: Admitimos que as regras
da vida social limitem o que podemos fazer apenas na condição de os outros aceitarem as
mesmas restrições ao que podem fazer. Logo, ao violar as regras em relação a nós, os
criminosos libertam-nos da nossa obrigação perante eles e expõem-se à retaliação.
Por fim, há uma circunstância ainda mais dramática na qual podemos violar as leis morais.
Em circunstâncias normais a moralidade exige que sejamos imparciais, isto é, que não
atribuamos maior importância aos nossos interesses do que aos interesses dos outros. Mas
suponha que enfrenta uma situação na qual tem de escolher entre a sua própria morte e a
morte de cinco outras pessoas.
216
A imparcialidade exigiria, aparentemente, que escolha a suaprópria morte; afinal de contas, eles são
cinco e o leitor apenas um. Estará moralmente obrigado a sacrificar-se?
Os filósofos sentiram-se com freqüência pouco à vontade comeste tipo de exemplo;
sentiram instintivamente que há, de alguma forma, limites ao que a moralidade pode exigir
de nós. Por isso disseram, tradicionalmente, que tais acções heróicas são super-rogatórias -
isto é, são acções acima e para além do exigido pelo dever,admiráveis quando ocorrem, mas
não estritamente exigidas. No entanto é difícil explicar o motivo pelo qual tais acções não
são estritamente exigidas. Se a moralidade exige decisões imparciais, e uma razão imparcial
decreta ser melhor morrer um do que cinco, porque razão nãosomos obrigados a sacrificar-
nos?
A teoria do contrato social tem uma explicação. É racional aceitar o contrato social porque
é vantajoso para nós. Desistimos da nossa liberdade incondicional, mas em troca obtemos os
benefícios da vida em sociedade. No entanto, se o contrato nos exige então que dêmos a
vida, não estamos melhor do que estávamos no estado de natureza; e deixamos de ter
qualquer razão para respeitar o contrato. Há, por isso, um limite natural ao auto-sacrifício
que se pode esperar de alguém: Não podemos exigir um sacrifício tão profundo que negue o
próprio objectivo do contrato. A teoria do contrato social explica assim uma faceta da
moralidade que noutras teorias é um mistério;
4. Tem a moralidade uma base objectiva? Existirão "factos" morais? Serão os juízos morais
objectivamente verdadeiros? Os filósofos interrogam-se há muito se as nossas opiniões
morais representam algo mais do que os nossos sentimentos subjectivos ou os costumes da
nossa sociedade. Sentiram que a moralidade tem de ser algo mais do que hábitos e
sentimentos, mas é difícil dizer o que seja esse algo. Se há "factos" morais, que tipo de
coisas podem ser?
Um dos mais atraentes aspectos da teoria do contrato socialreside no facto de afastar tão
facilmente estas
217
preocupações. Não são necessárias longas explicações. A moralidade não é apenas uma questão
de hábito ou sentimento; tem uma base objectiva. Mas a teoria não precisa de postular
qualquer tipo especial de "factos" para explicar essa base.A moralidade é o conjunto de
regras que quaisquer pessoas racionais aceitariam para benefício mútuo. Podemos
determinar que regras são essas por meio da investigação racional e depois determinar se um
acto particular é moralmente aceitável verificando se está em conformidade com as regras.
Uma vez compreendido isto, as velhas preocupações sobre a "objectividade" da moral
desaparecem, pura e simplesmente.
11.4 O problema da desobediência civil
As teorias morais devem ajudar a compreender questões morais particulares. A teoria do
contrato social baseia-se numa intuição importante sobre a natureza da sociedade e suas
instituições, sendo por isso especialmente adequada para nos ajudar a lidar com questões
envolvendo essas instituições. Em resultado do contrato social temos a obrigação de
obedecer à lei. Mas teremos por vezes justificação para desafiar a lei? Se sim, quando?
Os exemplos modernos e já clássicos de desobediência civil são, é claro, as acções
desenvolvidas no âmbito do Movimento de Independência da índia liderado por Mohandas
K. Gandhi e o movimento americano de direitos cívicos liderado por Martin Luther King, Jr.
Ambos se caracterizaram pela recusa pública, conscienciosa e não violenta de obediência à
lei. Mas os objectivos dos movimentos tinham diferenças importantes. Gandhi e os seus
seguidores não reconheciam o direito de os Britânicos governarem a índia; queriam
substituir o domínio britânico por um sistema inteiramente diferente. Por outro lado, Luther
King e os seus seguidores não questionavam a legitimidade das
instituições fundamentais do governo americano. Opunham-se apenas a leis particulares e
políticas sociais que consideravam injustas - tão injustas,de facto, que sentiam não ter
qualquer obrigação de lhes obedecer.
Na sua Letterfrom the Birmingham City Jau (1963), Luther King descreveu a frustração e
raiva que surgem
quando se vê bandos perversos linchar indiscriminadamente as nossas mães e os nossos pais e afogar
os nossos irmãos e irmãs ao sabor dos seus caprichos; quando se vê polícias cheios de ódio a insultar,
pontapear, brutalizar e até matar os nossos irmãos e irmãs negros com total impunidade; quando se
vê a esmagadora maioria dos nossos vinte milhões de irmãos Pretos asfixiados numa estreita cela de
pobreza no meio de uma sociedade de abastança; quando de súbito damos connosco embaraçados
para explicar à nossa filha de seis anos a razão pela qual não pode ir ao parque de diversões que
acabou de ser publicitado na televisão, e vemos lágrimas rebentar nos seus pequenos olhos quando
lhe dizemos que Funtown está vedado a meninos de cor, e começamos a ver as nuvens deprimentes da
inferioridade a distorcer a sua pequena personalidade.
O problema não era apenas o facto de a segregação racial, com todo o seu cortejo de males,
ser imposta pelos hábitos sociais; era igualmente uma questão legal, uma lei cuja formulação
recusava aos negros qualquer voz. Quando instado a confiar nos processos democráticos
normais, Luther King fez primeiro notar que tinha havido várias tentativas de negociação,
mas esses esforços tiveram pouco sucesso; quanto à "democracia", a palavra não tinha
qualquer sentido para os negros do sul: "Em todo o estado do Alabama todos os tipos de
métodos de conluio são usados para impedir os Pretos de se tornarem votantes recenseados
e há alguns condados sem um único Preto recenseado para votar, apesar de os Pretos
constituírem a maioria da população." Luther King pensava, por isso, que os negros não
218
219
tinham alternativa, tendo de apresentar publicamente o seu caso mediante o desafio às leis
injustas.
Hoje em dia, com Luther King aclamado como um dos gigantes da história americana, e
com o movimento dos direitos civis recordado como uma grande cruzada moral, é
necessário algum esforço para recordar quão controversa foia estratégia de desobediência
civil. Muitos liberais, embora exprimindo simpatia pelos objectivos do movimento, negaram
no entanto que a desobediência à lei fosse um meio legítimode lutar por esses objectivos.
Um artigo publicado em 1965 no New York State Bar Journal exprimiu as preocupações
mais comuns. Depois de garantir aos seus leitores que "muito antes do Dr. King ter nascido,
eu defendia, e defendo ainda, a causa dos direitos civis para todas as pessoas", Louis
Waldman, um eminente advogado de Nova Iorque, afirmou o seguinte:
Os que defendem direitos ao abrigo da Constituição e das leis feitas nos termos por ela estabelecidos
têm de obedecer a essa Constituição e a essas leis, se quiserem que a Constituição sobreviva. Não
podem escolher a gosto; não podem dizer que vão obedecer àsleis que pensam ser justas e rejeitar
obedecer às leis que consideram injustas [...]
O país não pode, portanto, aceitar a doutrina do Dr. King de que ele e os seus seguidores vão
escolher a gosto, sabendo que é ilegal fazê-lo. Considero pois que tal doutrina não é apenas ilegal,
devendo por essa razão ser abandonada; é também imoral, destruidora dos princípios do governo
democrático, e um perigo para os próprios direitos civis que o Dr. King visa promover.
Waldman tinha razão num aspecto: Se o sistema legal é essencialmente decente, então
desafiar a lei é à partida uma coisa má, porque enfraquece o respeito pelos valores que a lei
protege. Para responder a esta objecção, os que advogavam adesobediência civil
precisavam de um argumento para mostrar o motivo pelo qual o desafio à lei era justificado.
Um
220
desses argumentos, usado frequentemente por Luther King, era que os males aos quais se
manifestava oposição eram tão graves, tão numerosos e tão resistentes a soluções por meios
menos drásticos que a desobediência civil se justificava como um "último recurso". O fim
justifica os meios, mesmo que os meios sejam lamentáveis. Isto era, na opinião de muitos
moralistas, uma resposta suficiente à objecção levantada por Waldman. Mas temos ao nosso
dispor uma resposta mais profunda, sugerida pela teoria do contrato social.
Antes de mais, porque razão temos de obedecer à lei? Segundo a teoria do contrato social,
porque cada um de nós participa num acordo complicado por meio do qual ganhamos certos
benefícios em troca da aceitação de certos encargos. Os benefícios são a vida em sociedade:
escapamos ao estado de natureza e vivemos numa sociedade naqual estamos seguros e
usufruímos dos direitos fundamentais ao abrigo da lei. De maneira a obter esses benefícios,
concordamos fazer a nossa parte na manutenção das instituições que os tornam possíveis.
Isto significa que temos de obedecer à lei, pagar os nossosimpostos, e por aí adiante -
estes são os fardos que aceitamos em troca.
Mas, e se as coisas estiverem de tal modo organizadas que aum grupo de pessoas da
sociedade não são reconhecidos os direitos usufruídos pelosoutros? E se, em vez de os
proteger, "polícias cheios de ódio insultam, pontapeiam, brutalizam e matam com total
impunidade"? E se alguns cidadãos forem "asfixiados numa estreita cela de pobreza" ao ser-
lhes negada a oportunidade de adquirir uma educação decenteou empregos decentes? Se a
negação destes direitos estiver suficientemente disseminadae for suficientemente
sistemática, somos forçados a concluir que os termos do contrato social não estão a ser
honrados. Assim, se continuarmos a exigir que o grupo em desvantagem obedeça à lei e
respeite as instituições sociais, estamos a exigir que aceite os encargos impostos pela
organização social apesar de lhe serem negados os seus benefícios.
221
Esta linha de pensamento sugere que, longe de a desobediência civil ser um "último recurso"
indesejável para os grupos socialmente mais marginalizados,é, na verdade, o meio mais
natural e razoável de exprimir descontentamento. Pois quando aos mais desfavorecidos é
recusada uma parte justa dos benefícios da vida social, eles ficam com efeito libertos do
contrato que noutra situação exigiria que apoiassem os acordos que tornam esses benefícios
possíveis. Esta é a razão mais profunda que justifica a desobediência civil, e deve
reconhecer-se o mérito da teoria do contrato social por terexposto este argumento de forma
tão clara.
11.5 Dificuldades da teoria
A teoria do contrato social é uma de quatro grandes opções na filosofia moral corrente. (As
outras são o utilitarismo, o kantismo e a teoria das virtudes.) Não é difícil ver porquê; a
teoria explica em boa medida a vida moral de uma forma económica e sensata. O que poderá
dizer-se contra a teoria? Apresenta-se de seguida as duas objecções que parecem ter mais
peso.
1. A objecção mais comum tem sido que a teoria do contrato social se baseia numa ficção
histórica. Pede-se que imaginemos que as pessoas viveram emtempos isoladas umas das
outras; que acharam esta situação intolerável; e que por fim se congregaram, acordando
seguir as regras sociais de benefício mútuo. Mas isto nuncaaconteceu. É apenas uma
fantasia. Então, qual é a sua relevância? Na verdade, se aspessoas se tivessem juntado desta
forma poderíamos explicar as suas obrigações umas para com as outras como a teoria
sugere: seriam obrigadas a obedecer às regras porque teriamfeito um contrato nesse
sentido. Mas mesmo assim continuaria a haver problemas. Teríamos de enfrentar questões
como as seguintes: O acordo foi unânime? Se não foi, que
222
acontece às pessoas que não assinaram o contrato - não são obrigadas a agir moralmente? Se o
contrato foi consumado há muito tempo, estaremos obrigados a cumprir os acordos dos
nossos antepassados? Se não, como se renova o "contrato" a cada nova geração? E se
alguém disser: "Eu não dei o meu assentimento a tal contrato, e não quero fazer parte
dele?" Mas na verdade nunca existiu tal contrato, e por isso nenhuma explicação sensata se
pode basear nele. Como afirmou com ironia um crítico, o contrato social "não vale o papel
em que não foi escrito".
Em resposta, pode dizer-se que há um contrato social implícito ao qual todos estamos
ligados. Para ser exacto, nenhum de nós alguma vez assinou um contrato "real" - não há
qualquer pedaço de papel assinado. No entanto, há de facto um acordo muito semelhante ao
descrito na teoria do contrato social: Há um conjunto de regras que todos reconhecem como
obrigatórias, e todos beneficiamos do facto de estas regrasserem seguidas. Cada um de nós
aceita os benefícios conferidos por este acordo; e, mais doque isso, esperamos que as outras
pessoas continuem a cumprir as regras e encorajamo-las a fazê-lo. Esta é uma descrição de
facto do estado de coisas; não é uma ficção. E, prossegue oargumento, ao aceitar os
benefícios deste acordo, incorremos na obrigação de fazer anossa parte para o manter -
por outras palavras, para retribuir o que nos foi dado. O contrato é "implícito" porque nos
tornamos parte dele não através das nossas palavras mas simdas nossas acções, à medida
que participamos nas instituições sociais e aceitamos os benefícios da vida em sociedade.
Desta forma, a história do "contrato social" não precisa deser entendida como uma
descrição de acontecimentos históricos. É, ao invés, um instrumento analítico útil, baseado
na idéia de que podemos entender as nossas obrigações morais como se tivessem surgido
desta forma. Considere-se a seguinte situação. Suponha o leitor que chega junto de um
grupo de pessoas envolvidas num jogo
223
complexo. Parece divertido, e por isso junta-se ao grupo. Passado algum tempo, no entanto,
começa a violar algumas das regras, porque isso parece ainda mais divertido. Os outros
protestam; afirmam que se quer jogar, tem de cumprir as regras. O leitor responde que
nunca prometeu cumprir as regras. Eles podem então responder, com razão, que isso é
irrelevante. Talvex ninguém tenha explicitamente prometido obedecer; no entanto, ao juntar-
se ao jogo, cada pessoa implicitamente aceita seguir as regras que tornam o jogo possível. É
como se todos tivessem concordado. A moralidade é assim. O jogo é a vida em sociedade;
derivamos dela enormes benefícios, e não queremos abandonaresses benefícios; mas de
maneira a jogar o jogo e obter os benefícios, temos de seguir as regras.
Não é claro até que ponto os grandes teóricos do contrato social, como Hobbes e Rousseau,
aceitariam esta forma de defender a sua idéia. Mas isso nãoimporta; a resposta parece salvar
a teoria do que seria, de outra forma, uma objecção devastadora;
2. Já fizemos notar que as teorias morais deveriam ajudar alidar com as questões morais
práticas. As teorias importantes fazem isso, mas com demasiada freqüência uma teoria que
esclarece uma questão torna outra mais confusa. Para cada teoria há questões relativamente
às quais as suas asserções parecem exactamente correctas; mas surgem problemas quando,
noutras questões, as implicações da teoria parecem inaceitáveis. Quando referimos o
problema da desobediência civil, a teoria do contrato social parecia inteiramente correcta.
Mas relativamente a outras questões as suas implicações sãomais perturbadoras.
A segunda objecção à teoria do contrato social, que me parece mais forte do que a primeira,
tem que ver com as suas implicações para os nossos deveres face a seres incapazes de
participar no contrato. Os animais não-humanos, por exemplo, não têm as capacidades
necessárias para entrar em qualquer tipo de acordos connosco, implícitos ou explícitos.
Parece
224
pois impossível que devam ser abrangidos por quaisquer "regras de benefícios mútuos"
estipuladas por tal contrato. No entanto, não será moralmente errado torturar um animal,
quando não há para isso qualquer boa razão? E não é isto errado devido à dor causada ao
próprio animal? Mas a idéia de deveres morais relativamentea seres que não são parte do
contrato parece contrária à regra fundamental por detrás dateoria. Assim, a teoria parece
imperfeita.
Hobbes tinha consciência de que, na sua perspectiva, os animais estavam excluídos das
considerações morais. Escreveu que "fazer acordos com animais selvagens é impossível".
Aparentemente isto não o incomodava. Os animais nunca forambem tratados pelos seres
humanos, mas na época de Hobbes eram tidos em muito baixa consideração. Descartes e
Malebranche, dois contemporâneos de Hobbes, haviam popularizado a idéia de que os
animais não podem sentir dor. Para Descartes isto era assimporque, não tendo almas, os
corpos dos animais eram meras máquinas; para Malebranche era necessário que fosse assim
pela razão teológica de que o sofrimento é uma conseqüênciado pecado de Adão, e os
animais não descenderem de Adão. Mas independentemente da razão, a sua perspectiva era
que os animais não podem sofrer, pelo que os animais estão para lá do alcance da
consideração moral. Isso permitiu aos cientistas do século xvii fazer experiências com
animais sem se preocuparem com os seus inexistentes "sentimentos". Nicolas Fontaine, uma
testemunha ocular, descreveu uma visita a um laboratório noseu livro de memórias,
publicado em 1738:
Batiam nos cães com perfeita indiferença, e troçavam daqueles que lamentavam as criaturas como se
sentissem dor. Afirmavam que os animais eram relógios; que os ganidos que emitiam quando lhes
batiam eram apenas o ruído de uma pequena mola que tinha sido tocada, mas que o corpo não tinha
sensações. Pregavam alguns pobres animais em quadros pelas quatro patas para os dissecar e ver a
circulação do sangue, o que era um grande tema de conversa.
225
Se temos o dever de não causar dor desnecessária aos animais, é difícil ver como pode esse
dever ser acomodado no seio da teoria do contrato social. No entanto, como Hobbes,
muitas pessoas podem não achar isso assim tão preocupante, pois podem não encarar a
questão dos deveres para com meros animais particularmente urgente. Mas há outra
dificuldade, do mesmo género, que pode levá-los a hesitar.
Muitos seres humanos têm deficiências mentais tão graves que não podem participar no
género de acordos considerados pela teoria do contrato social. Podem certamente sofrer, e
até viver vidas humanas simples. Mas não são suficientemente inteligentes para compreender
as consequências das suas acções. Podem nem mesmo saber quando estão a magoar os
outros. Logo, não podemos responsabilizá-los pela sua conduta.
Estes seres humanos colocam à teoria exactamente o mesmo problema que os animais não-
humanos. Uma vez que não podem participar nos acordos que, segundo a teoria, dão origem
às obrigações morais, estão para lá do domínio da consideração moral. No entanto,
pensamos ter obrigações morais para com eles. E mais ainda,as nossas obrigações para com
eles são frequentemente baseadas exactamente nas mesmas razões em que baseamos as
nossas obrigações para com os seres humanos normais - a razão primordial pela qual não
devemos torturar pessoas normais, por exemplo, é o facto delhes causar dores terríveis; e
esta é exactamente a mesma razão pela qual não devemos torturar pessoas com deficiências
mentais. A teoria do contrato social pode explicar o nosso dever num caso mas não no
outro.
Este problema não diz respeito a um aspecto menor da teoria; vai directo ao seu cerne.
Logo, a menos que possamos encontrar alguma forma de remediar esta dificuldade, o
veredicto tem de ser que a ideia fundamental da teoria é deficiente.
226
Capítulo 12
O feminismo e a ética dos afectos
Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem com muita frequência dos valores que foram construídos
pelo outro sexo; isto é naturalmente assim. No entanto, sãoos valores masculinos que predominam.
VIRGÍNIA WOOLF, Um Quarto que Seja Seu (1929)
12.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobrea ética?
A ideia de que homens e mulheres pensam de forma diferente tem tradicionalmente sido
usada para justificar a subjugação de umas pelos outros. Aristóteles afirmou que as mulheres
não são tão racionais como os homens, e por isso são naturalmente governadas pelos
homens. Kant concordava, e acrescentou que por essa razão as mulheres "carecem de
personalidade civil" e não devem ter voz na
* Usou-se "ética dos afectos" para traduzir a expressão inglesa original ethics of care, que não se refere à
ética dos cuidados de saúde. (N. do R.)
227
vida pública. Rousseau tentou suavizar a ideia ao sublinharque homens e mulheres apenas
possuem virtudes diversas; mas é claro que no final se verifica que as virtudes dos homens
os tornam adequados para a liderança, enquanto as virtudes das mulheres as tornam ideais
para a casa e a família.
Tendo, em conta este pano de fundo, não surpreende que o florescente movimento feminista
dos anos 1960 e 70 tenha rejeitado em bloco a ideia de diferenças psicológicas entre
mulheres e homens. A concepção dos homens como racionais e das mulheres como
emocionais foi descartada como mero estereótipo. A natureza, afirmava-se então, não faz
qualquer distinção moral ou mental entre ambos os sexos; e quando parece existir tais
diferenças é apenas porque as mulheres foram condicionadas por um sistema opressivo a
comportar-se de forma "feminina".
No entanto, mais recentemente as pensadoras feministas reconsideraram a questão, e
algumas concluíram que as mulheres pensam de facto de maneira diferente dos homens.
Mas, acrescentam, as formas femininas de pensar não são inferiores às dos homens; nem
essas diferenças justificam subordinar alguém a outrem. Pelo contrário, a forma feminina de
pensar contém intuições que têm faltado nas áreas de actividade de dominação masculina.
Assim, dando mais atenção à diferente abordagem das mulheres, pode-se fazer progressos
em áreas onde há muito não existem. A ética é considerada uma candidata preferencial para
este tratamento.
Os estádios de desenvolvimento moral de Kohlberg.
Considere-se o seguinte problema, imaginado pelo psicólogo da educação Lawrence
Kohlberg. A mulher de Heinz estava à beira da morte, e a sua única esperança era um
medicamento descoberto por um farmacêutico que o vendia a um preço exorbitante. A
elaboração do medicamento custava duzentos dólares e o farmacêutico estava a vendê-lo a
dois mil. Heinz conseguiu apenas reunir mil dólares.
228
Ofereceu essa quantia ao farmacêutico e, quando a sua oferta foi rejeitada, Heinz prometeu
pagar o restante mais tarde. Ainda assim o boticário recusou. Em desespero, Heinz pensou
roubar o medicamento. Seria errado fazê-lo?
Este problema, conhecido como "Dilema de Heinz", foi um entre vários usados por
Kohlberg para estudar o desenvolvimento moral das crianças.Kohlberg entrevistou crianças
de várias idades, apresentando-lhes uma série de dilemas e fazendo perguntas concebidas
para obter os seus juízos morais e as razões em seu apoio. Após análise das respostas,
Kohlberg concluiu que há seis níveis de desenvolvimento moral. As crianças começam por
uma concepção egocêntrica de bem moral como tudo quanto permite evitar um castigo,
progredindo depois ao longo de seis estádios para uma perspectiva amadurecida de bem
moral como conformidade com princípios universais. (Pelo menos os mais afortunados
chegam aí. Algumas pessoas ficam encravadas em níveis mais baixos.) Eis os seis estádios:
1. O primeiro é o Estádio da Punição e Obediência, no qual o bem moral é concebido como
a obediência à autoridade e o evitar da punição;
2. A criança progride então para o Estádio dos Objectivos Individuais Instrumentais e da
Troca - aqui o bem é agir de forma a satisfazer as suas próprias necessidades, permitindo
aos outros que façam o mesmo, fazendo "acordos justos" com os outros para garantir a
realização dos objectivos desejados;
3. O seguinte é o Estádio das Expectativas Interpessoais, Relações e Conformidade Mútuas.
O bem é definido como os deveres e responsabilidades que acompanham os papéis sociais
do indivíduo e as suas relações com outras pessoas; uma virtude fundamental é "manter a
lealdade e a confiança entre os parceiros";
4. No Estádio do Sistema Social e da Manutenção da Consciência, a ideia de fazer o seu
dever em sociedade
229
e manter o bem-estar do grupo assume a maior importância. (As exigências das relações
pessoais são subordinadas ao respeito pelas regras do gruposocial.);
5. No Estádio dos Direitos Prévios e do Contrato Social ou Utilidade, o bem consiste em
proteger os direitos, valores e acordos legais essenciais da sociedade. (Nçste estádio e no
seguinte as relações pessoais são subordinadas aos princípios universais de justiça.);
6. Por fim, as pessoas moralmente mais amadurecidas alcançam o Estádio dos Princípios
Éticos Universais, no qual a plena maturidade se manifesta pela fidelidade de uma pessoa
aos princípios abstractos que toda a humanidade deveria seguir.
O dilema de Heinz foi apresentado a um rapaz de onze anos chamado Jake, que considerou
óbvio que Heinz deveria roubar o medicamento. Jake explicou:
Para começar, uma vida humana vale mais do que o dinheiro, e se o farmacêutico ganhar apenas mil
dólares, continua vivo, mas se Heinz não roubar o medicamento, a sua mulher morre.
(Porque razão a vida humana vale mais que o dinheiro?)
Porque o farmacêutico pode ganhar mil dólares mais tarde, pagos por pessoas ricas com cancro, mas
Heinz não pode recuperar a sua mulher.
(E porque não?)
Porque as pessoas são todas diferentes e por isso não seriapossível recuperar outra vez a mulher de
Heinz.
Mas Amy, também de onze anos, encarou a questão de maneira diferente. Deveria Heinz
roubar o medicamento? Em comparação com as declarações directas de Jake, Amy parece
hesitante e evasiva:
Bem, eu penso que não. Penso que poderia haver outras maneiras além do roubo, como por exemplo
se pudesse pedir o dinheiro ou fazer um empréstimo ou coisado género, mas
230
ele não devia roubar o medicamento - mas a mulher dele também não devia morrer... Se ele
roubasse o medicamento, poderia salvar a mulher, mas se roubasse, podia ir para a cadeia, e então a
sua mulher podia piorar outra vez, e ele já não podia arranjar mais medicamentos, e isso podia não
ser bom. Por isso, eles deviam realmente conversar e descobrir outra maneira de arranjar o dinheiro.
O entrevistador faz mais perguntas a Amy, dando claramente a entender que ela não está a
responder - se Heinz não roubar o medicamento, a sua mulhermorre. Mas Amy não
desarma; recusa aceitar os termos em que o problema é colocado. Em vez disso reelabora o
tema como um conflito entre Heinz e o farmacêutico que tem de ser resolvido por meio de
mais debates.
No quadro dos estádios de Kohlberg, Jake parece ter um avanço de um ou dois estádios em
relação a Amy. A resposta dela é típica de pessoas operandoa nível do estádio 3, onde as
relações pessoais são da maior importância - Heinz e o boticário têm de resolver as coisas
entre eles. Jake, por outro lado, apela para os princípios impessoais - "uma vida humana
vale mais que dinheiro". Jake parece estar a funcionar no nível 4 ou 5.
A objecção de Gilligan. Kohlberg começou as suas investigações sobre o desenvolvimento
moral nos anos 1950, quando a psicologia era dominada pelo behaviorismo e a imagem
popular da investigação em psicologia era a de ratos a percorrer labirintos. O seu projecto
humanista e cognitivamente orientado revelava uma forma diferente de levar por diante as
investigações psicológicas. Mas havia um problema com a ideia central de Kohlberg. É
legítimo e interessante estudar as diferentes maneiras de as pessoas pensarem em idades
diferentes - se as crianças pensam de maneira diferente aoscinco, dez e quinze anos, é por
certo importante sabê-lo. Vale igualmente a pena
231
identificar as melhores formas de pensar. Mas isso são projectos diferentes. Um deles implica
observar como as crianças pensam de facto. O outro implica considerar que certas formas de
pensamento são melhores ou piores. Tipos diferentes de provas são relevantes para cada
investigação, e não há razão para presumir à partida que osresultados vão coincidir.
Contrariamente à opinião das pessoas mais velhas, poderia acabar por se verificar que afinal
de contas a idade não traz sabedoria.
A teoria de Kohlberg tem sido um alvo privilegiado para as pensadoras feministas, que têm
dado a esta crítica uma inflexão especial. Em 1982, Carol Gilligan, professora na Harvard
School of Education, tal como Kohlberg, publicou um livro influente intitulado Teoria
Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, no qual questiona especificamente o que
Kohlberg diz sobre Jake e Amy. As duas crianças pensam de forma diferente, afirma, mas a
maneira de Amy pensar não é inferior. Quando confrontada com o Dilema de Heinz, Amy
responde de forma tipicamente feminina aos aspectos pessoais da situação, enquanto Jake,
pensando de forma tipicamente masculina, vê apenas "um conflito entre a vida e a
propriedade que pode ser resolvido por meio de uma dedução lógica".
A resposta de Jake só é considerada de "nível superior" se presumirmos, como faz
Kohlberg, que um princípio ético é superior a uma ética queprivilegia a intimidade, o afecto
e as relações pessoais. Mas porque razão haveríamos de pressupor tal coisa? A maioria dos
filósofos morais privilegiaram uma ética de princípios, masisso apenas porque a maior parte
dos filósofos têm sido homens.
A "forma de pensar masculina" - apelar para princípios impessoais -, abstrai dos detalhes
que concedem a cada situação o seu sabor especial. As mulheres, afirma Gilligan, acham
difícil ignorar esses pormenores. Amy preocupa-se porque "se [Heinz] roubar o
medicamento, pode salvar a sua mulher, mas se roubar, pode ter de ir para a prisão, e
232
então a sua mulher pode piorar e ele já não pode arranjar mais medicamentos". Jake, que
reduz a situação a "uma vida humana vale mais que dinheiro", ignora tudo isso.
Gilligan sugere que a orientação moral primordial das mulheres é cuidar dos outros -
"tomar conta" dos outros de uma forma pessoal, não estando preocupadas apenas com a
humanidade em geral - e satisfazer as suas necessidades. Isto explica por que razão a
resposta de Amy parece, à primeira vista, confusa e incerta. A sensibilidade para as
necessidades dos outros leva as mulheres a "escutar vozes além da sua e a incluir nos seus
juízos outros pontos de vista". Assim, Amy não podia simplesmente rejeitar o ponto de vista
do farmacêutico; podia apenas insistir em mais conversas com ele para tentar de alguma
forma conciliá-lo. "A fraqueza moral das mulheres", afirma Gilligan, "manifesta-se numa
aparente dispersão e confusão de juízo, é assim inseparávelda sua força moral, uma
preocupação avassaladora com relações e responsabilidades".
Outras pensadoras feministas pegaram neste tema e desenvolveram-no, transformando-o
numa perspectiva característica sobre a natureza da ética. Em 1990 Virgínia Held resumiu a
ideia central do feminismo: "Protecção, empatia, sentir comos outros, ser sensível aos
sentimentos de cada um", afirmou, "todos estes aspectos podem ser guias melhores para o
que a moralidade requer em contextos reais do que as regrasabstractas da razão, ou o
cálculo racional - ou podem ser, pelo menos, componentes necessários de uma moralidade
adequada".
Antes de abordarmos as implicações desta ideia para a éticae para a teoria ética, podemos
fazer uma pausa para ponderar quão "feminino" isto realmente é. É verdade que mulheres e
homens pensam de forma diferente sobre a ética? E, a ser verdade, o que explica essa
diferença?
É verdade que as mulheres e os homens pensam de forma diferente? Desde a publicação do
livro de Gilligan tem
233
havido muita investigação sobre a "voz das mulheres", mas continua sem se saber ao certo
se homens e mulheres pensam realmente de forma diversa. Umacoisa parece certa, no
entanto: mesmo que pensem de forma diversa, as diferenças não podem ser muito grandes.
Em primeiro lugar, serão mais diferenças da ênfase que de valores fundamentais. Não é
como se,as mulheres fizessem juízos incompreensíveis para os homens, e vice-versa. Os
homens podem entender o valor de relações de afecto, emparia e sensibilidade com bastante
facilidade, ainda que por vezes tenham de ser relembrados; e podem concordar com Amy
que a solução mais feliz para o Dilema de Heinz seria os dois homens chegarem a acordo.
(Nem mesmo o homem mais réprobo pensa que o roubo seria a melhor coisa que poderia
acontecer.) Por seu lado, as mulheres dificilmente discordarão de noções como a de a vida
humana ter mais valor que o dinheiro. É claro, pois, que osdois sexos não vivem em
universos morais diferentes. Suponha-se que concedemos, no entanto, que há uma diferença
de estilo entre pessoas mais inclinadas para pensar em termos de princípios e pessoas mais
inclinadas a adoptar uma "perspectiva de afectos". Será o primeiro estilo exclusivamente
masculino e o último exclusivamente feminino? Claro que não. Há mulheres devotadas a
princípios e homens que se preocupam e são afectuosos. Assim, mesmo que haja estilos
diferentes no pensamento moral, não há qualquer estilo exclusivamente masculino ou
feminino. Apesar disso, não devemos afastar demasiado apressadamente a noção de que há
perspectivas tipicamente masculinas e femininas. Há inúmeras diferenças gerais entre
homens e mulheres que não se aplicam a todos os indivíduos.As mulheres são tipicamente
mais baixas que os homens, mas isso não significa que todasas mulheres sejam mais baixas
que todos os homens.
* Referência ao título original do livro de Gilligan, In a Different Voice, que foi ignorado na edição portuguesa. (N.do
R.)
234
A diferença no pensamento moral pode ser algo do mesmo género: as mulheres podem
tipicamente sentir mais atracção por uma perspectiva de afectos, apesar de nem todas as
mulheres serem mais afectuosas do que todos os homens. Paramuitas pessoas, entre elas um
grande número de escritoras feministas, isto parece plausível. A sua plausibilidade
aumentaria, no entanto, se pudéssemos explicar por que razão haverá tal diferença. Porque
razão hão-de as mulheres de ser mais afectuosas?
O que poderá explicar tal diferença entre os sexos? Parece haver duas possibilidades. Uma é
que as mulheres pensam de forma diferente por causa do papel social ao qual são destinadas.
Às mulheres têm sido tradicionalmente atribuídas as responsabilidades domésticas; mesmo
que isto não seja mais do que um ultraje sexista, o facto éque as mulheres têm
desempenhado este papel. É fácil ver que ser destacada paratais funções e acabar por
entendê-las como "o seu lugar" pode ter induzido as mulheres adoptar os valores que
acompanham tais responsabilidades. Assim, a ética dos afectos pode ser apenas parte do
condicionamento psicológico que as raparigas recebem rotineiramente. (Esta teoria poderia
ser posta à prova por meio da observação de raparigas educadas em lares não tradicionais.
Continuariam a ser naturalmente afectuosas? E quanto aos rapazes educados de formas não
tradicionais?)
A segunda possibilidade é que existe uma espécie de ligaçãoentre ser mulher e ter uma ética
dos afectos. Que ligação? Uma vez que a diferença óbvia entre os sexos consiste em as
mulheres darem à luz, poderíamos conjecturar que a naturezadas mulheres como mães as
torna de alguma forma afectuosas. Mesmo meninas como a Amy,que aos onze anos não
teve ainda qualquer experiência maternal, poderia estar equipada pela natureza para essa
função, tanto física como psicologicamente.
235
A teoria da psicologia evolucionista poderia explicar como a natureza faz isto. A psicologia
evolucionista, uma teoria controversa desenvolvida na última metade do século xx,
interpreta os traços principais da vida psicológica humana como produtos da selecção
natural - as pessoas têm hoje as emoções e as tendências comportamentais que permitiram
aos seus antepassados sobreviver e reproduzir-se no passadolongínquo. Isto pode ter
produzido padrões diferentes de comportamento e resposta emocional em homens e
mulheres.
Podemos pensar na "luta pela sobrevivência" darwinista comouma competição para
reproduzir na geração seguinte tantas cópias quanto possível dos nossos genes. Quaisquer
traços que nos permitam fazer isso serão preservados nas gerações seguintes; enquanto os
traços que nos colocam em desvantagem na competição tenderão a desaparecer.
Deste ponto de vista, a diferença extraordinariamente importante entre homens e mulheres é
que os primeiros podem ser pais de centenas de filhos durante as suas vidas reprodutivas,
enquanto as mulheres podem apenas ter um filho em cada novemeses. Isto significa que as
estratégias de reprodução óptimas para homens e mulheres serão diferentes. Para os
homens, a estratégia óptima será fecundar tantas mulheres quanto possível, investindo em
cada criança apenas os recursos estritamente necessários para que sobreviva o máximo
número possível. Para as mulheres, a estratégia óptima é investir fortemente em cada criança
e escolher como parceiros homens dispostos a ficar por perto e a fazer um investimento
semelhante. Isto cria naturalmente uma tensão entre os interesses masculinos e femininos, e
isso pode explicar o motivo pelo qual os sexos podem ter desenvolvido atitudes diferentes.
Explica, notoriamente, por que razão os homens são mais promíscuos que as mulheres; mas
ao mesmo tempo explica aquilo em que estamos interessados aqui, a saber, por que razão as
mulheres se
236
sentem mais atraídas do que os homens pelos valores do núcleo familiar.
Este tipo de explicação é frequentemente mal compreendido. Não se trata de defender que
as pessoas conscientemente calculam como propagar os seus genes; ninguém faz isso. Nem
se trata de defender que as pessoas devem calcular as coisas desta forma; do ponto de vista
ético, não devem. O objectivo do argumento é explicar, se pudermos, os fenómenos que
observamos.
12.2 Implicações para o juízo moral
Nem todas as filósofas foram afectadamente feministas; nem todas as feministas aderiram à
ética dos afectos. Não obstante, esta é a perspectiva éticamais proximamente identificada
com a filosofia feminista moderna. Como afirmou Annette Baier, "'Afecto' é a nova palavra
da moda".
Uma das maneiras de entender e avaliar uma perspectiva ética é perguntar que diferença
acarretaria para os nossos juízos morais e se essa diferença seria uma melhoria face às
alternativas. Suponhamos, pois, que adoptamos uma ética dosafectos. Será que isso
originaria juízos morais diferentes do que se adoptássemos uma abordagem com base em
princípios "masculinos"? Eis três exemplos.
Família e amigos. As teorias tradicionais da obrigação são flagrantemente inadequadas para
descrever a vida no meio familiar ou entre amigos. Essas teorias tomam a noção de
obrigação como moralmente essencial: fornecem uma descriçãodo que devemos fazer. Mas,
como Annette Baier faz notar, quando tentamos interpretar como um dever "ser um
progenitor carinhoso", deparamos de imediato com problemas.Um progenitor carinhoso
age por motivos diversos do dever. Se uma pessoa cuidar dosseus filhos por
237
sentir ser esse o seu dever, será um desastre. Os seus filhos vão pressenti-lo e perceber que
não são amados. Os pais que agem por dever são maus pais.
Além disso, as ideias de igualdade e imparcialidade que perpassam as teorias da obrigação
parecem profundamente antagónicas em relação aos valores doamor e da amizade. John
Stuart Mill afirmou que um agente moral tem de ser "tão estritamente imparcial como um
espectador desinteressado e benévolo". Mas este não é o ponto de vista de um pai ou de um
amigo. Não olhamos a nossa família e amigos como meros membros da grande turba da
humanidade. Pensamos neles como seres especiais, e tratamo-los como tal.
A ética dos afectos, por outro lado, é perfeitamente adequada para a descrição de tais
relações. A ética dos afectos não toma a "obrigação" como fundamental; nem requer que
promovamos de forma imparcial os interesses de todos. Começa, ao invés, com uma
concepção da vida moral como uma rede de relações com pessoas específicas, e encara o
"viver bem" como o proteger e cuidar dessas pessoas, satisfazendo as suas necessidades e
mantendo a confiança nelas.
Estes pontos de vista levam a avaliações diferentes sobre oque podemos fazer. Poderei
devotar o meu tempo e recursos a cuidar dos meus amigos e família, mesmo que isto
signifique ignorar as necessidades de outras pessoas que também poderia ajudar? De um
ponto de vista imparcial, o nosso dever é promover os interesses de todos sem distinção.
Mas poucas pessoas aceitam esta perspectiva. A ética dos afectos confirma a primazia que
concedemos naturalmente à nossa família e amigos, e parece por isso uma concepção moral
mais plausível.
Não surpreende que a ética dos afectos pareça fazer um bom trabalho ao explicar a natureza
das nossas relações morais com os amigos e familiares. Afinal de contas, estas relações são a
sua inspiração primeira.
238
Crianças desfavorecidas. Em cada ano mais de dez milhões decrianças morrem de causas
que facilmente poderiam ser prevenidas - doença, subalimentação e água imprópria para
beber. Organizações como a UNICEF trabalham para salvar estas crianças, mas nunca têm
dinheiro suficiente. Ao contribuir para o seu trabalho, poderíamos evitar pelo menos
algumas destas mortes. Com dezassete dólares, por exemplo, a UNICEF pode vacinar uma
criança do Terceiro Mundo contra o sarampo, a poliomielite,a difteria, a tosse convulsa, o
tétano e a tuberculose.
Uma "ética de princípios" tradicional, como o utilitarismo por exemplo, concluiria daqui que
é um dever importante ajudarmos a UNICEF. O raciocínio é simples: quase todos nós temos
recursos que desperdiçamos em coisas relativamente triviais- compramos roupas, carpetes
e televisores luxuosos. Nada disto é tão importante como asvacinas das crianças. Logo,
devemos doar pelo menos alguns dos nossos recursos à UNICEF. É claro que, se tentarmos
dar todos os detalhes e responder a todas as objecções, este raciocínio simples pode tornar-
se complicado. Mas a sua ideia de base é bastante clara.
Poderíamos pensar que uma ética dos afectos chegaria a uma conclusão semelhante - afinal
de contas, não devemos olhar por essas crianças carenciadas? Mas isso falha o alvo. Uma
ética dos afectos centra-se em relações pessoais, de pequena escala. Se não houver tal
relação, o cuidado afectuoso não tem lugar. Nel Noddings, cujo livro Caring: A Feminine
Approach to Ethics and Moral Education é uma das obras maisconhecidas sobre teoria
moral feminista, explica que só se pode ter afecto por alguém se a pessoa que é "objecto de
afecto" puder interagir com a que é "afectuosa", no mínimo recebendo e agradecendo o
afecto dispensado num encontro pessoal. De outra forma não há, na sua perspectiva,
qualquer obrigação: "Não somos obrigados ter afecto se não existir a possibilidade de
consumação no outro." Por esta razão, Noddings conclui que não
239
temos obrigação de ajudar "os necessitados nas regiões remotas da Terra".
Apesar de podermos sentir-nos aliviados por saber que podemos gastar livremente o nosso
dinheiro como desejarmos, é difícil evitar a sensação de que algo está errado aqui.
Transformar as relações pessoais na totalidade da ética parece tão errado como ignorá-las
completamente. Uma abordagem mais sensata da questão poderia ser afirmar que a vida
ética inclui as relações pessoais de afecto e uma preocupação benevolente com as pessoas
em geral. A obrigação de apoiar a UNICEF poderia então considerar-se parte do último
aspecto e não do primeiro. No caso de adoptarmos esta abordagem, interpretaríamos a ética
dos afectos como um complemento de teorias tradicionais da obrigação em vez de como um
substituto. Annette Baier parece ter isto em mente quando escreve que, por fim, "as
pensadoras feministas terão de ligar a sua ética dos afectos com o que tem sido a
preocupação teórica dos homens, a saber, a obrigação".
Animais. Teremos obrigações para com os animais não-humanos? Devemos, por exemplo,
ser vegetarianos? Um argumento baseado em "princípios racionais" afirma que devemos,
porque o negócio de criar e matar animais para alimentação causa-lhes grande sofrimento, e
ao tornarmo-nos vegetarianos poderíamos alimentar-nos sem crueldade. Desde que o
moderno movimento de direitos dos animais começou, em meados dos anos 1970, este tipo
de argumento persuadiu muitas pessoas (provavelmente mais mulheres que homens) a
deixarem de comer carne.
Nel Noddings sugere que esta é uma boa questão "para pôr à prova as noções essenciais nas
quais se baseia uma ética dos afectos". Que noções essenciais são essas? Primeiro, uma tal
ética apela para a intuição e sentimento e não para princípios. Isto conduz a uma conclusão
diferente, pois muitas pessoas não sentem que comer carne seja errado
240
ou que o sofrimento dos animais de criação seja importante.Noddings sublinha que por
sermos humanos as nossas respostas emocionais a outros seres humanos são diferentes das
nossas respostas a seres não-humanos.
Um segunda "noção essencial na qual se baseia uma ética dosafectos" é a ideia de uma
relação individual entre quem tem afecto e quem é objecto de afecto. Como já fizemos
notar, a pessoa objecto de afecto tem de poder participar na relação pelo menos
respondendo ao afecto. Noddings pensa que as pessoas têm este tipo de relação com alguns
animais, nomeadamente de estimação, e isto pode ser o fundamento de uma obrigação:
Quando alguém tem relações próximas com um determinado grupo de animais, acaba por reconhecer
a sua forma característica de comunicar. Os gatos, por exemplo, levantam a cabeça e esticam-se na
direcção daquele a quem se dirigem [...] Quando de manhã entro na cozinha e a minha gata me saúda
do seu lugar favorito na bancada, percebo o seu pedido. Esse é o lugar em que ela se senta e "fala",
procurando, com os seus miados, comunicar o desejo de um prato de leite.
Estabelece-se uma relação, e a atitude de afecto tem de serinvocada. Mas não temos tal
relação com a vaca no matadouro e, por isso, conclui Noddings, apesar de podermos desejar
viver num mundo no qual os animais não sofressem, não temosqualquer obrigação de fazer
algo pelas vacas, nem mesmo evitar comê-las.
Que concluir então? Se usamos esta questão para "testar as noções essenciais nas quais se
baseia a ética dos afectos", será que esta ética passa ou reprova o teste? Os argumentos
contrários a esta ética são impressionantes. Primeiro, intuições e sentimentos não são guias
fidedignos - antigamente, as intuições das pessoas diziam-lhes que a escravatura era
aceitável e que a submissão das mulheres fazia parte dos planos divinos. Segundo, o facto
241
de o animal estar em posição de responder "pessoalmente" pode ter muito que ver com a
satisfação que se obtém em ajudar, mas nada tem que ver comas necessidades do animal ou
com o bem que podemos fazer-lhe. (Algo de muito semelhante se pode dizer, é claro, da
incapacidade da criança distante para agradecer pessoalmente a vacina que recebeu.) Estes
argumentos apelam, é claro, para princípios considerados típicos da forma de pensar
masculina. Logo, se a ética dos afectos for tomada como a totalidade da moralidade, tais
argumentos serão ignorados. Por outro lado, se os afectos são apenas uma parte da
moralidade, os argumentos de princípio mantêm uma força considerável. Os animais de
criação podem entrar na esfera da preocupação moral, não por causa da nossa relação de
afecto para com eles, mas por outras razões.
12.3 Implicações para a teoria ética
É fácil ver a influência da experiência dos homens nas teorias éticas por eles criadas. Os
homens dominam a vida pública e na política e nos negócios as relações que mantemos com
outras pessoas são tipicamente impessoais e contratuais. A relação é com frequência de
rivalidade - os outros têm interesses que entram em conflito com os nossos. Por isso
negociamos; regateamos e fazemos acordos. Além disso, na vida pública as nossas decisões
podem afectar grande quantidade de pessoas que nem sequer conhecemos. Por isso,
podemos tentar calcular, de uma forma impessoal, que decisões terão o melhor desenlace
para a maioria das pessoas. E o que enfatizam as teorias morais dos homens? Deveres
impessoais, contratos, a harmonização de interesses e o cálculo de custos e benefícios.
Não surpreende, pois, que as feministas pensem que a filosofia moral moderna integra uma
perspectiva masculina. As preocupações com a vida privada -área
242
tradicionalmente dominada pelas mulheres - estão quase totalmente ausentes, e a "voz diferente"
de que fala Gilligan está em silêncio. Uma teoria moral quedesse conta das preocupações
das mulheres teria um aspecto muito diferente. No mundo de pequena escala do lar, lidamos
com a família e os amigos, com os quais as nossas relações são pessoais e íntimas. Negociar
e calcular desempenham aí um papel muito menor, enquanto o amor e os cuidados
dominam. Uma vez estabelecido este ponto não há como negar que este aspecto da vida tem
de ter também um lugar na nossa concepção da moralidade. Este aspecto da vida, no
entanto, não é fácil de acomodar no seio das teorias tradicionais. Como já sublinhámos, "ser
um progenitor carinhoso" não é uma questão de cálculo sobrecomo devemos comportar-
nos. O mesmo poderia dizer-se sobre ser um amigo leal ou umcolega de confiança. Ser
carinhoso, leal e de confiança é ser um certo tipo de pessoa, e nem como pai nem como
amigo esse tipo de pessoa é alguém que imparcialmente "cumpre o seu dever".
O contraste entre "ser um certo tipo de pessoa" e "fazer o seu dever" está no âmago de um
conflito mais lato entre dois tipos de teoria ética. A teoria das virtudes encara uma pessoa
com sentido moral como alguém que tem determinados traços de carácter: é amável,
generoso, corajoso, justo, prudente e por aí adiante. As teorias da obrigação, por outro lado,
enfatizam o dever imparcial: retratam tradicionalmente o agente moral como alguém que
escuta a razão, determina a coisa certa a fazer, e fá-la. Um dos principais argumentos a favor
da teoria das virtudes é que parece adequada para incluir os valores quer da vida pública
quer da privada. As duas esferas requerem virtudes diferentes. A vida pública requer justiça
e beneficência, enquanto as virtudes da vida privada incluem o amor e o afecto.
A ética dos afectos revela-se, portanto, uma parte da éticadas virtudes. Muitas filósofas
feministas encaram-na
243
desta forma. Apesar de a teoria das virtudes não ser um projecto exclusivamente feminista,
está tão estreitamente ligado a ideias feministas que Annette Baier classificou os seus
defensores masculinos como "mulheres honorárias". O veredicto sobre a ética dos afectos
dependerá, em última instância, da viabilidade da ética dasvirtudes.
244
Capítulo 13
A ética das virtudes
Os conceitos de obrigação e dever - obrigação moral e devermoral, entenda-se - e do que é moralmente correcto ou
errado, e do sentido moral de "dever", deviam ser abandonados [...] Seria um grande progresso se, em vez de
"moralmente errado", falássemos sempre de um género como "falso", "promíscuo", "injusto".
G.E.M. ANSCOMBE, Modern Moral PMosophy (1958)
13.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta
Ao pensar em qualquer assunto, faz muita diferença começar por umas ou por outras
questões. Na Ética a Nicómaco, de Aristóteles (cerca de 325a. C.), as questões centrais
dizem respeito ao carácter. Aristóteles começa por perguntar: "Em que consiste o bem para
o homem?" E a sua resposta é: "Uma actividade da alma em conformidade com a virtude."
Para entender a ética temos, portanto, de entender o que torna alguém uma pessoa virtuosa,
e
245
Aristóteles, com olho aguçado para os pormenores, dedica muito tempo a discutir virtudes
particulares como a coragem, o autodomínio, a generosidade e a veridicidade. Apesar de
esta forma de pensar sobre a ética estar estreitamente identificada com Aristóteles, não foi
exclusiva dele. Sócrates, Platão e muitos outros pensadoresantigos abordaram a ética
perguntando: "Que traços de carácter tornam alguém uma boa pessoa?" Em resultado disto,
"as virtudes" desempenharam um papel central nas suas discussões.
No entanto, com o correr do tempo, esta forma de pensar acabou por ser negligenciada.
Com a chegada do cristianismo foi introduzido um novo conjunto de ideias. Os cristãos,
como os judeus, eram monoteístas que encaravam Deus como legislador, e para eles a vida
moralmente correcta era a obediência aos mandamentos divinos. Os Gregos haviam
encarado a razão como fonte da sabedoria prática - a vida virtuosa era, para eles,
inseparável da vida racional. Mas Santo Agostinho, pensadorcristão do século iv que se
tornaria muito influente, desconfiava da razão e ensinava que a bondade moral depende da
nossa submissão à vontade de Deus. Logo, quando os filósofos medievais discutiam as
virtudes, era no contexto da lei divina. As "virtudes teológicas" da fé, esperança, caridade e,
é claro, da obediência, acabaram por ter um papel central.
Após o Renascimento, a filosofia moral começou uma vez maisa ser secularizada, mas os
filósofos não regressaram à forma grega de pensar. Em vez disso, a Lei Divina foi
substituída pelo seu equivalente secular, algo designado como lei moral. A lei moral, que se
dizia brotar da razão humana em vez da vontade divina, era concebida como um sistema de
regras especificando as acções correctas. O nosso dever como pessoas morais é, dizia-se,
seguir as suas directivas. Assim, os filósofos morais modernos abordavam o seu tema
fazendo uma pergunta fundamentalmente diferente da feita pelos Antigos. Em vez de
perguntar: "Que traços de carácter tornam uma pessoa boa?",começavam
246
por perguntar: "Qual é a coisa certa a fazer?" Isto empurrou-os numa direcção diferente.
Acabaram por não desenvolver teorias da virtude mas do bem e obrigação morais:
- Cada pessoa deve fazer o que melhor promove os seus interesses. (Egoísmo ético);
- Devemos fazer o que promove a maior felicidade para o maior número. (Utilitarismo);
- O nosso dever é seguir regras que podemos de forma consistente desejar que sejam leis
universais - isto é, regras que estaríamos na disposição dever seguidas por todas as
pessoas em todas as circunstâncias. (Teoria de Kant);
- A coisa certa a fazer é seguir as regras que as pessoas racionais e com interesse próprio
acordem estabelecer para benefício mútuo. (Teoria do contrato social.)
E são estas as teorias conhecidas que dominaram a filosofiamoral moderna a partir do
século xvn.
Devemos regressar à ética das virtudes? No entanto, alguns filósofos apresentaram
recentemente uma ideia radical: defenderam que a filosofia moral moderna está falida e que,
de maneira a salvar a área, devemos voltar à forma de pensar de Aristóteles.
Esta ideia foi avançada em 1958 quando Elizabeth Anscombe publicou um artigo intitulado
"Modern Moral Philosophy" na revista académica Philosophy. Nesse artigo, sugere que a
filosofia moral moderna está errada porque se baseia na noção incoerente de uma "lei" sem
um legislador. Os próprios conceitos de obrigação, dever e correcção moral, nos quais os
filósofos modernos se concentraram, estão inextrincavelmente ligados a esta noção absurda.
Logo, defendeu, devemos deixar de pensar sobre a obrigação,dever e correcção moral e
regressar à abordagem de Aristóteles. As virtudes devem umavez mais desempenhar um
papel central.
247
Na sequência do artigo de Anscombe surgiu um conjunto de livros e ensaios discutindo as
virtudes, e a teoria das virtudes tornou-se em breve uma das grandes opções na filosofia
moral contemporânea. Não há, no entanto, qualquer corpo constituído de doutrina sobre o
qual todos estes autores estejam de acordo. Comparada com teorias como o utilitarismo, a
teoria das virtudes encontra-se ainda num estádio relativamente embrionário. Apesar disso,
há um conjunto comum de preocupações que motivam esta abordagem. Nos pontos
seguintes vamos ver primeiro o aspecto da teoria das virtudes. Depois vamos examinar
algumas das razões que têm sido avançadas para pensar que aética das virtudes é superior a
outras formas mais modernas de abordar o assunto. Por fim, vamos avaliar se um "regresso
à ética das virtudes" é realmente uma opção viável.
13.2 As virtudes
Uma teoria das virtudes deverá ter várias componentes. Primeiro, deverá haver uma
explicação do que é a virtude. Segundo, deverá existir uma lista especificando os traços de
carácter que são virtudes. Terceiro, deverá haver uma explicação daquilo em que consistem
essas virtudes. Quarto, deverá existir uma explicação da razão pela qual é bom uma pessoa
ter essas qualidades. Por fim, a teoria deverá dizer-nos seas virtudes são as mesmas para
todas as pessoas ou se diferem de pessoa para pessoa, ou decultura para cultura.
O que é a virtude? Aristóteles afirmou que a virtude é um traço de carácter manifestado no
agir habitual. O "habitual" é importante. A virtude da honestidade, por exemplo, não é
possuída por alguém que diz a verdade apenas ocasionalmenteou quando isso lhe é
vantajoso. A pessoa honesta é naturalmente veraz; as suas acções "brotam de um carácter
firme e inabalável".
248
Isto é um começo, mas não basta. Não distingue as virtudes dos vícios, pois os vícios são
também traços de carácter manifestados nas acções habituais. Edmund L. Pincoffs, um
filósofo que leccionou na Universidade do Texas, fez uma sugestão que resolve este
problema. Pincoffs sugeriu que as virtudes e os vícios são qualidades a que nos referimos
para decidir se alguém merece ser procurado ou evitado. "Nós preferimos alguns tipos de
pessoas, outros evitamo-los", afirma. "As particularidades na nossa lista [de virtudes e
vícios] podem servir como razões para preferir ou evitar."
Procuramos pessoas por razões diferentes, e isto tem implicação nas virtudes relevantes.
Quando procuramos um mecânico de automóveis, queremos alguém habilidoso, honesto e
consciencioso; ao procurar um professor, queremos alguém com conhecimentos, fluente e
paciente. Assim, as virtudes associadas à reparação de automóveis são diferentes das
virtudes associadas ao ensino. Mas também avaliamos as pessoas enquanto pessoas, de uma
forma mais geral, pelo que temos não apenas o conceito de um bom mecânico ou de um
bom professor mas de uma boa pessoa. As virtudes morais sãoas virtudes das pessoas
enquanto tal. Aproveitando a deixa de Pincoffs, podemos, pois, definir uma virtude como
um traço de carácter, manifestado nas acções habituais, queé bom uma pessoa possuir. E
as virtudes morais são as virtudes que é bom todas as pessoas possuírem.
Quais são as virtudes? Quais são, pois, as virtudes? Quais os traços de carácter que devem
ser desenvolvidos pelos seres humanos? Não há uma resposta breve para isto, mas o que se
segue é uma lista parcial:
Benevolência
Civilidade
Compaixão
Ser consciencioso
Ser cooperante
Coragem
Equidade
Afabilidade
Generosidade
Honestidade
Ser industrioso
Justiça
Paciência
Prudência
Sensatez
Autodisciplina
Autoconfiança
Tacto
249
Cortesia
Ser de confiança
Lealdade Moderação
Ponderação Tolerância
A lista poderia, naturalmente, ser alargada, adicionando-seoutros traços de carácter. Mas
isto é um ponto de partida razoável.
Em que consistem estas virtudes? Uma coisa é afirmar, de uma forma geral, que devemos
ser conscienciosos, compassivos e tolerantes; outra coisa édizer exactamente em que
consistem esses traços de carácter. Cada uma destas virtudes tem as suas próprias
características e levanta os seus próprios problemas. Vamosdar uma vista de olhos rápida a
quatro deles.
1. Coragem. De acordo com Aristóteles, as virtudes são meios entre extremos: a virtude é
"o meio por referência a dois vícios: um de excesso e outrode carência". A coragem é um
meio entre os extremos da cobardia e da temeridade - é cobarde fugir de um perigo; mas é
temerário arriscar em demasia.
Descreve-se por vezes a coragem como uma virtude militar por ser tão obviamente
necessária ao desempenho das funções dos soldados. Os soldados vão para as batalhas; as
batalhas estão pejadas de perigos; logo, sem coragem as batalhas perdem-se. Mas os
soldados não são os únicos que precisam de coragem. Qualquer pessoa que enfrente o
perigo, e em alturas diferentes isso inclui-nos a todos, precisa de coragem. Um estudioso
que passa a sua vida, tímida e segura, a estudar literaturamedieval poderá parecer o exacto
oposto do soldado. No entanto, mesmo ele pode adoecer e necessitar de coragem para
enfrentar uma arriscada operação. Como afirmou Peter Geach:
Coragem é o que todos precisamos no fim da vida, e é constantemente necessária no decurso normal
da vida: às
250
mulheres grávidas, a todos nós porque os nossos corpos são vulneráveis, aos mineiros e pescadores e
metalúrgicos e camionistas.
Enquanto examinamos apenas o "decurso normal da vida", a natureza da coragem não
parece levantar problemas. Mas as circunstâncias menos comuns apresentam tipos de casos
mais problemáticos. Pensemos num soldado nazi que luta com valentia - enfrenta grandes
riscos sem vacilar - mas fá-lo ao serviço de uma causa maléfica. Será corajoso? Geach
pensa que, ao contrário das aparências, o soldado nazi não possui realmente a virtude da
coragem. "A coragem ao serviço de uma causa indigna", afirma, "não é uma virtude; menos
é ainda ao serviço de uma causa maléfica. Na verdade eu prefiro não chamar 'coragem' a
este enfrentar não virtuoso do perigo."
É fácil perceber a ideia de Geach. Chamar a um soldado nazi"corajoso" parece um elogio
do seu desempenho, e nós não desejamos elogiá-lo. Preferíamos que ele se tivesse
comportado de outra forma. Mas mesmo assim não parece muitocorrecto dizer que não é
corajoso - afinal de contas, atentemos na maneira como ele se comporta frente ao perigo.
Para contornar este problema, talvez devêssemos apenas dizer que o soldado revela duas
qualidades de carácter, uma admirável (firmeza ao enfrentaro perigo) e a outra não (a
vontade para defender um regime desprezível). O soldado é realmente corajoso, e a coragem
é uma coisa admirável; mas uma vez que a sua coragem é exibida ao serviço de uma causa
malévola, o seu comportamento é no seu todo perverso;
2. Generosidade. A generosidade é a disponibilidade para gastar os nossos recursos no
auxílio aos outros. Aristóteles afirma que, como a coragem,é também um meio entre dois
extremos: situa-se algures entre a avareza e a extravagância. A pessoa avara dá muito
pouco; a pessoa extravagante dá demasiado. Mas quanto é bastante?
251
A resposta dependerá até certo ponto da perspectiva geral da ética que aceitamos. Jesus,
outro importante professor da Antiguidade, afirmou que devemos dar tudo que temos para
ajudar os pobres. A posse de riquezas, enquanto os pobres passam fome, era a seu ver
inaceitável. Isto foi considerado pelos que o escutavam um ensinamento muito severo, e foi
em geral rejeitado. É ainda rejeitado pela generalidade daspessoas hoje em dia, mesmo por
quem se considera seu seguidor.
Os utilitaristas modernos são, pelo menos neste aspecto, osdescendentes morais de Jesus.
Defendem que em todas as circunstâncias é nosso dever fazero que terá as melhores
consequências globais para todos os envolvidos. Isto significa que devemos ser generosos
com o nosso dinheiro até se atingir o ponto a partir do qual continuar a dar seria mais
prejudicial para nós do que benéfico para os outros.
Porque razão resistem as pessoas a esta ideia? Pode ser, emparte, uma questão de egoísmo;
não queremos ficar pobres por dar quanto temos. Mas há também o problema de que a
adopção desta política nos impediria de viver vidas normais. Não está em causa apenas
dinheiro mas tempo; as nossas vidas consistem em projectos e relações que requerem um
considerável investimento de ambos. Um ideal de "generosidade", que exige gastar o nosso
dinheiro e tempo como recomendam Jesus e os utilitaristas, implicaria abandonar as nossas
vidas de todos os dias e viver de maneira muito diferente.
Uma interpretação razoável das exigências da generosidade poderia ser, portanto, algo
como isto: devemos ser generosos com os nossos recursos atéao ponto máximo conciliável
com a possibilidade de vivermos as nossas vidas normais de forma minimamente satisfatória.
Mesmo esta leitura vai deixar-nos, no entanto, algumas questões embaraçosas. As "vidas
normais" de algumas pessoas são bastante extravagantes - pensemos numa pessoa rica cuja
vida quotidiana inclui luxos sem os quais se sentiria
252
dispojada. A virtude da generosidade não pode existir, ao que parece, no contexto de uma vida
demasiado sumptuosa, especialmente quando há outras pessoascujas necessidades básicas
não são satisfeitas. Para tornar isto uma interpretação "razoável" das exigências da
generosidade, precisamos de uma concepção da vida quotidiana que não seja em si muito
extravagante;
3. Honestidade. A pessoa honesta é, antes de mais, alguém que não mente. Mas basta isso?
Há, além da mentira, outras maneiras de enganar as pessoas.Geach relata a história de
Santo Atanásio que, "remava num rio quando os seus perseguidores apareceram remando na
direcção contrária: 'Onde está o traidor Atanásio?' 'Não está longe', respondeu o santo
bem-humorado, e passou por eles sem levantar suspeitas."
Geach aprova o logro de Atanásio embora pense que teria sido errado dizer uma mentira.
Mentir, pensa Geach, é sempre proibido: uma pessoa detentora da virtude da honestidade
nem sequer pensará nisso. As pessoas honestas não mentem, epor isso têm de descobrir
outras formas de lidar com situações complicadas. Atanásio foi suficientemente esperto para
o fazer. Disse a verdade, embora de uma forma enganadora.
Torna-se difícil perceber, claro está, por que razão o logro de Atanásio não é igualmente
desonesto. Que princípio não arbitrário aprovaria o acto deenganar pessoas de uma forma e
não de outra? Mas, independentemente do que pensemos sobre isto, a questão de fundo é
saber se a virtude implica adesão a regras absolutas. Relativamente à honestidade,
poderemos distinguir duas perspectivas sobre o assunto:
1. Uma pessoa honesta nunca mente;
2. Uma pessoa honesta nunca mente, excepto nas raras circunstâncias em que existem
razões prementes para o fazer.
253
Não há uma razão óbvia para aceitar a primeira perspectiva.Pelo contrário, existem razões
para favorecer a segunda. Para ver porquê, precisamos de pensar por que razão mentir é à
partida uma coisa má. A explicação poderia ser a seguinte:
A nossa capacidade de viver em comunidades depende das nossas capacidades de
comunicação. Falamos uns com os outros, lemos os escritos uns dos outros, trocamos
informação e opiniões, exprimimos os nossos desejos uns aosoutros, fazemos promessas,
perguntamos e respondemos a perguntas, e muito mais. Sem estes tipos de intercâmbio, a
vida social seria impossível. Mas de maneira a estes intercâmbios serem bem sucedidos,
temos de ser capazes de pressupor que há certas regras em vigor: temos de poder confiar
que todos falarão com honestidade.
Além disso, quando aceitamos a palavra de alguém, ficamos vulneráveis de uma forma
peculiar. Pela aceitação do que dizem e modificando de acordo com isso as nossas crenças,
colocamos o nosso bem-estar nas suas mãos. Se falarem com veracidade, tudo está bem.
Mas se mentirem, acabamos com falsas crenças; se agirmos segundo essas crenças,
acabamos por fazer coisas estúpidas. A culpa é deles. Confiámos neles, e eles não estiveram
à altura. Isto explica a razão por que ser enganado é tão particularmente ofensivo. É, no
fundo, uma violação da confiança. Explica ainda por que razão as mentiras e as "verdades
enganadoras" parecem moralmente indiscerníveis. Ambas podemviolar a confiança da
mesma maneira.
Contudo, nada disto implica que a honestidade seja o único valor importante ou que
tenhamos de lidar honestamente com todos, independentementede quem sejam e do que
pretendam. A autodefesa é igualmente uma questão importante, especialmente face àqueles
que nos fariam mal injustamente. Quando isto entra em conflito com a regra proibindo a
mentira, é razoável pensar que tenha prioridade. Suponha que Santo Atanásio tinha dito aos
seus
254
persiguidores "Não o conheço", e em consequência disso eleso procuravam em vão. Poderiam
eles, mais tarde, queixar-se que Santo Atanásio tinha violado a sua confiança? Parece natural
pensar que eles comprometeram qualquer direito que pudessemter à verdade quando
iniciaram uma perseguição injusta.
4. Lealdade para com família e amigos. No início do diálogode Platão intitulado Eutifron,
Sócrates é informado de que Eutifron, que ele encontrou junto à porta do tribunal, veio
processar o pai por homicídio. Sócrates mostra-se surpreso e pergunta se será correcto um
filho apresentar queixa contra o seu pai. Eutifron não vê qualquer incorrecção: para ele um
homicídio é um homicídio. Infelizmente, a questão fica por resolver à medida que a
discussão entre os dois se desvia para outros assuntos.
A ideia de que há algo de moralmente especial relativamenteà família e amigos é-nos,
naturalmente, familiar. Não tratamos a nossa família e amigos como trataríamos estranhos.
Estamos ligados a eles por amor e afeição e fazemos por eles coisas que não faríamos por
qualquer pessoa. Mas não é apenas uma questão de sermos mais afáveis com as pessoas de
que gostamos. A natureza da nossa relação com família e amigos é diferente das nossas
relações com outras pessoas, e parte da diferença é que os nossos deveres e
responsabilidades são diferentes. Isto parece uma parte essencial daquilo que é a amizade.
Como poderia eu ser amigo do leitor e no entanto não o tratar com especial consideração?
Se fosse preciso provar que os seres humanos são essencialmente criaturas sociais, a
existência da amizade fornecer-nos-ia tudo o que desejássemos. Como afirmou Aristóteles:
"Ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo que tivesse todos os outros bens":
Como poderia a prosperidade ser salvaguardada e preservada sem amigos? Quanto maior é, maiores
são os riscos que acarreta. Também na pobreza e em todos osoutros tipos de
255
infortúnio os homens acreditam que o seu único refúgio é osseus amigos. Os amigos ajudam os
jovens a evitar o erro e aos mais velhos dão a atenção e auxílio necessários para compensar a perda
de capacidade de acção que a doença acarreta.
Os amigos prestam auxílio, é um facto, mas os benefícios daamizade vão muito além da
assistência material. Sem amigos, estaríamos psicologicamente perdidos. Os nossos triunfos
parecem vazios a menos que tenhamos amigos para os partilhar, e os nossos fracassos
tornam-se suportáveis graças à sua compreensão. Até mesmo onosso amor-próprio
depende em grande medida das garantias dos amigos: ao retribuírem o nosso afecto,
confirmam o nosso valor como seres humanos.
Se necessitamos de amigos, necessitamos igualmente das qualidades de carácter que nos
capacitam para ser amigos. No topo da lista está a lealdade. Os amigos são pessoas com
quem se pode contar. Apoiam-se mutuamente mesmo quando as coisas ficam feias, ou
mesmo quando, falando objectivamente, o amigo poderia merecer ser abandonado. Fazem
concessões entre si; perdoam ofensas e refreiam juízos maisduros. Há limites, naturalmente.
Por vezes, um amigo será a única pessoa capaz de nos dizer as verdades mais duras sobre
nós mesmos. Mas as críticas são aceitáveis da parte de amigos porque sabemos que a sua
repreensão não significa rejeição, e mesmo que nos descomponham em privado não nos
embaraçarão à frente de outras pessoas.
Nada disto significa que não tenhamos deveres para com as outras pessoas, mesmo para
com os desconhecidos. Mas são deveres diferentes, associados a virtudes diferentes. A
beneficência generalizada é uma virtude, e pode exigir muito, mas não exige para com os
estranhos o mesmo nível de preocupação que temos com os amigos. A justiça é outra dessas
virtudes; requer um tratamento imparcial para todos. Mas, uma vez que os amigos são
256
leais, as exigências de justiça aplicam-se de forma mais aleatória entre eles.
E por isso que Sócrates se surpreende ao saber que Eutifronvai processar o pai. A relação
que temos com membros da nossa família é ainda mais próximaque a amizade; por isso,
apesar de podermos admirar a paixão de Eutifron pela justiça, podemos ainda assim
espantar-nos com o facto de ter podido tomar face ao pai a mesma atitude que teria com
qualquer outra pessoa que tivesse cometido o mesmo crime. Isto parece estar em
contradição com a estima própria de um filho. Este aspecto é ainda reconhecido pela lei dos
nossos dias: Nos Estados Unidos, bem como noutros países, uma esposa não pode ser
obrigada a testemunhar em tribunal contra o seu marido, e vice-versa.
Porque razão são importantes as virtudes? Dissemos que as virtudes são características de
carácter que é bom as pessoas possuírem. Isto apenas levanta a questão adicional de saber
por que razão as virtudes são desejáveis. Porque razão é uma coisa boa que uma pessoa seja
corajosa, generosa, honesta ou leal? A resposta, é claro, pode variar dependendo da virtude
particular em questão. Assim:
- A coragem é uma coisa boa porque a vida está cheia de perigos e sem coragem não
seríamos capazes de lhes fazer frente;
- A generosidade é desejável porque algumas pessoas vivem necessariamente em piores
condições que outras e necessitam da nossa ajuda;
- A honestidade é necessária porque sem ela as relações entre as pessoas correriam mal de
múltiplas maneiras;
- A lealdade é essencial para a amizade; os amigos apoiam-se mutuamente, mesmo quando
se sentem tentados a voltar as costas.
257
Olhando para esta lista parece que cada virtude tem valor por uma razão diferente.
Aristóteles pensava, no entanto, que é possível dar uma resposta mais geral à nossa questão;
nomeadamente, que as virtudes são importantes porque a pessoa virtuosa terá uma vida
melhor. A ideia não é que os virtuosos ficarão mais ricos -isso não é obviamente assim, ou
pelo menos não é sempre assim. A ideia é que as virtudes são necessárias para orientarmos
bem as nossas vidas.
Para ver o que Aristóteles pretende, considere-se o tipo decriaturas que somos e o tipo de
vida que levamos. A um nível mais geral, somos seres racionais e sociais que querem e
precisam da companhia de outras pessoas. Por isso vivemos em comunidades, entre amigos,
família e outros cidadãos. Neste cenário, qualidades como alealdade, equidade e
honestidade são necessárias para interagir harmoniosamente com todas essas outras pessoas.
(Imagine-se as dificuldades que uma pessoa teria se manifestasse habitualmente as
qualidades opostas na sua vida social.) A um nível mais individual, as nossas vidas podem
incluir trabalhar num determinado tipo de emprego e ter determinados interesses. Outras
virtudes poderão ser necessárias para fazer bem esse trabalho ou dedicar-se a esses
interesses - a perseverança e a diligência podem ser importantes. Uma vez mais, é parte da
nossa condição humana comum que por vezes enfrentemos perigos ou tentações, pelo que a
coragem e o autodomínio são necessários. A conclusão é que,apesar das suas diferenças, as
virtudes têm todas o mesmo tipo geral de valor: são todas qualidades necessárias para uma
vida humana bem sucedida.
As virtudes são iguais para todos? Podemos perguntar, por fim, se é desejável um único
conjunto de características de carácter para todas as pessoas. Devemos falar da pessoa
moralmente boa, como se todas as pessoas boas viessem de umsó molde? Este pressuposto
foi frequentemente
258
contestado. Friedrich Nietzsche, por exemplo, não pensava que existia apenas um tipo de
bondade humana. No seu estilo extravagante, Nietzsche afirma:
Consideremos, por fim, que ingenuidade é ainda afirmar: "O homem deve ser assim e assado!" A
realidade exibe uma riqueza surpreendente de tipos, a exuberância de um pródigo jogo e mudança de
formas; e qualquer moralista insignificante se atreve a dizer: "Não, o homem deve ser de outro
modo." Sabe muito bem como deve ser, este biltre e hipócrita; pinta-se a si na parede e diz: "Ecce
homo!"
Há aqui algo de obviamente pertinente. O académico que dedica a sua vida a compreender a
literatura medieval e o soldado profissional são tipos muito diferentes de pessoas. Uma
mulher vitoriana que nunca mostrava um joelho em público e uma mulher moderna numa
praia têm padrões muito diferentes de recato.
Há, pois, um sentido óbvio no seio do qual se pode pensar que as virtudes diferem de pessoa
para pessoa. Uma vez que as pessoas têm tipos de vida diferentes, personalidades de
géneros diferentes, e ocupam papéis sociais diferentes, as qualidades de carácter que
manifestam podem diferir.
É tentador ir ainda mais longe e afirmar que as virtudes diferem de sociedade para
sociedade. Afinal de contas, o tipo de vida que é possível para um indivíduo dependerá da
sociedade na qual vive. Ã vida de um académico só é possível numa sociedade que tem
instituições, como as universidades, que definem e tornam possível a vida de um académico.
O mesmo poderia dizer-se de um jogador de futebol, um padre, uma gueixa ou um guerreiro
samurai. As sociedades fornecem sistemas de valores, instituições e modos de vida no seio
dos quais se moldam as vidas dos indivíduos. As características de carácter necessários para
desempenhar estes papéis diferem, e por isso os traços
259
necessários para viver de forma bem sucedida diferem também. Assim, as virtudes serão diferentes.
Tendo tudo isto em conta, porque razão não afirmamos simplesmente que a consideração de
determinadas qualidades como virtudes depende das formas devida criadas e mantidas por
determinadas sociedades?
A isto'poderá contrapor-se a ideia de que há virtudes necessárias a todas as pessoas em todas as
épocas. Esta era a concepção de Aristóteles, e provavelmente tinha razão. Aristóteles pensava que,
apesar das diferenças, todos temos muito em comum. "Podemosobservar", afirmava, "quando
viajamos para países distantes, os sentimentos de identificação e filiação que ligam cada ser humano
a todos os outros seres humanos." Mesmo nas sociedades maisdíspares as pessoas enfrentam os
mesmos problemas fundamentais e têm as mesmas necessidades básicas. Assim:
- Todos necessitam de coragem, porque ninguém (nem mesmo o académico) está tão seguro que
possa evitar a ocorrência eventual de perigos;
- Em todas as sociedades há bens para gerir e decisões paratomar sobre o que corresponde a quem, e
em todas as sociedades há pessoas em piores condições que outras; por isso, a generosidade é sempre
um bem precioso;
- Falar com honestidade é sempre uma virtude porque nenhumasociedade pode existir sem
comunicação entre os seus membros;
- Todos precisam de amigos, e para ter amigos temos de saber ser amigos; por isso, todos precisamos
de lealdade.
Este tipo de lista poderia prosseguir - e nas mãos de Aristóteles prossegue - indefinidamente.
Em resumo, pode muito bem ser verdade que em diferentes sociedades as virtudes recebam
interpretações algo
260
diversas, e diferentes tipos de acções sejam contemplados para as satisfazer; e pode ser verdade que
algumas pessoas, por viverem determinados tipos de vidas emdeterminados tipos de circunstâncias,
necessitem de virtudes mais do que outras. Mas não pode sercorrecto dizer simplesmente que a
determinação de um traço particular de carácter como virtude nunca é mais do que uma questão de
convenção social. As virtudes essenciais não são prescritaspor convenção social mas por factos
fundamentais sobre a nossa condição humana comum.
13.3 Algumas vantagens d
Porque razão alguns filósofos pensam que uma ênfase nas virtudes é superior a outras maneiras de
pensar sobre ética? Sugeriu-se uma série de razões. Eis duas das mais importantes.
1. Motivação moral. Primeiro, a ética das virtudes é apelativa porque fornece uma descrição atraente
da motivação moral. As outras teorias parecem deficientes neste campo. Considere-se o seguinte:
O leitor está no hospital a recuperar de uma doença prolongada. Está aborrecido e inquieto, e por
isso fica encantado quando Smith chega para o visitar. Passa um bom bocado à conversa com ele; a
sua visita era justamente o tónico de que precisava. Decorrido algum tempo, diz a Smith como a sua
visita lhe foi agradável - ele é mesmo um tipo excelente e um bom amigo, para se dar ao trabalho de
atravessar a cidade para vir vê-lo. Mas Smith objecta; confessa que está apenas a cumprir o seu
dever. A princípio o leitor pensa que ele está só a ser modesto, mas quanto mais falam, mais claro se
torna que ele está a dizer a verdade. Não veio visitá-lo porque quis ou por gostar dele, mas apenas
por pensar que tem o dever de "fazer o que está certo", e nessa ocasião decidiu que tinha o dever de o
261
visitar - talvez por não saber de alguém com mais necessidade de ser animado ou de alguém mais
próximo.
Este exemplo foi sugerido por Michael Stocker num artigo muito influente surgido no Journal of
Philosophy em
1976. Stocker comenta que certamente o leitor ficaria muitodesiludido ao conhecer a motivação de
Smith; a sua visita parece agora fria e calculista, e perdetodo o valor para si. Pensava que ele era
seu amigo, mas verifica agora que isso não é verdade. Stocker afirma o seguinte sobre o
comportamento de Smith: "Há certamente alguma coisa que falha aqui - uma falha de mérito ou
valor moral."
É claro que nada há de errado com o que Smith fez. O problema é a sua motivação. Valorizamos a
amizade, o amor e o respeito, e queremos que as nossas relações com as outras pessoas sejam
baseadas em consideração mútua. Agir movido por um sentido abstracto de dever, ou por um desejo
de "fazer o que está certo", não é a mesma coisa. Não desejaríamos viver numa comunidade de
pessoas que agissem apenas por tais motivos, nem desejaríamos ser uma dessas pessoas. Logo,
prossegue o argumento, as teorias éticas que enfatizam apenas a correcção da acção nunca poderão
fornecer uma explicação satisfatória da vida moral. Necessitamos para isso de uma teoria que
enfatize as qualidades pessoais como a amizade, o amor e a lealdade - por outras palavras, uma
teoria das virtudes;
2 Dúvidas sobre o "ideal" da imparcialidade. Um tema dominante da filosofia moral moderna tem
sido a imparcialidade - a ideia de que todas as pessoas sãomoralmente iguais, e de que ao
decidirmos o que fazer devemos tratar os interesses de todos como igualmente importantes. (Das
quatro teorias da "acção correcta" enumeradas antes, apenaso egoísmo ético, uma teoria com
poucos adeptos, nega isto/.) John Stuart Mill colocou bem aquestão ao escrever que o "Utilitarismo
exige [que o agente moral] seja tão estritamente imparcial como um espectador benévolo e
desinteressado". O livro que está agora a ler trata também
262
a imparcialidade como um requisito moral fundamental: no primeiro capítulo, a imparcialidade foi
incluída como parte da "concepção mínima" da moralidade.
Pode duvidar-se, no entanto, que a imparcialidade seja realmente uma característica assim tão
importante da vida moral. Consideremos as nossas relações com a família e os amigos. Seremos
realmente imparciais no que respeita aos seus interesses? Edevemos sê-lo? Uma mãe ama os seus
filhos e cuida deles de um modo que não alarga a outras crianças. É completamente parcial para com
elas. Mas haverá algo de errado nisso? Não é exactamente assim que uma mãe deve ser? Além disso,
amamos os nossos amigos e estamos dispostos a fazer por eles coisas que não faríamos por qualquer
outra pessoa. Haverá algo de errado nisso? Pelo contrário, parece que o amor por familiares e amigos
é uma característica inultrapassável da vida moralmente boa. Qualquer teoria que releve a
imparcialidade terá dificuldade em dar conta disto.
Uma teoria moral que enfatize as virtudes pode, no entanto,justificar tudo isto sem dificuldade.
Algumas virtudes são parciais e outras não. O amor e a amizade implicam parcialidade para com os
entes queridos e os amigos; a beneficência para com as pessoas em geral é também uma virtude, mas
é uma virtude de tipo diferente. O que é necessário não é um qualquer tipo geral de imparcialidade,
mas uma compreensão da natureza destas diferentes virtudes e de como se relacionam entre si.
13.4 O problema da incompletude
Os argumentos precedentes constituem uma defesa impressionante de dois aspectos gerais: primeiro,
que uma teoria adequada da ética tem de fornecer uma explicação do carácter moral; e segundo, que
os filósofos morais modernos não conseguiram fazer isto. Estes filósofos não
263
se limitaram a negligenciar a questão; a sua negligência levou-os por vezes a abraçar
doutrinas que distorcem a natureza do carácter moral. Suponha-se que aceitamos estas
conclusões. Que faremos a seguir?
Uma forma de prosseguir seria desenvolver uma teoria combinando as melhores
características da abordagem da acção correcta com intuições retiradas d
- poderíamos tentar aperfeiçoar o utilitarismo, o kantismo e outras teorias como estas,
acrescentando-lhes um tratamento melhor do carácter moral. A nossa teoria total incluiria
então um tratamento das virtudes, que seria proposto apenascomo um complemento a uma
teoria da acção correcta. Isto parece sensato, e se um tal projecto puder ser levado a bom
termo, haveria certamente muito que dizer em sua defesa.
Alguns teóricos das virtudes sugeriram, no entanto, que deveríamos proceder de forma
diferente. Defenderam que se deve considerar a ética das virtudes uma alternativa aos
outros tipos de teorias - uma teoria independente da ética,completa em si. Poderíamos
chamar-lhe "ética radical das virtudes". Será esta perspectiva viável?
Virtude e conduta. Como vimos, as teorias que enfatizam a acção correcta parecem
incompletas porque negligenciam a questão do carácter. A teoria das virtudes remedeia este
problema ao transformar a questão do carácter na sua preocupação central. Mas em
resultado disso, a teoria das virtudes corre o risco de ficar incompleta no sentido oposto. É
frequente que os problemas morais sejam sobre o que devemosfazer. Não é óbvio como
devemos decidir o que fazer, segundo a teoria das virtudes.O que pode esta abordagem
dizer não sobre a avaliação do carácter, mas da acção?
A resposta depende do espírito com que se apresenta a teoria das virtudes. Se uma teoria
das virtudes for apresentada apenas como um complemento a uma teoria da acção
264
correcta, então, quando a avaliação da acção está em causa,os recursos da teoria no seu
todo serão postos em jogo e será recomendada uma versão daspolíticas utilitaristas ou
kantianas (por exemplo). Por outro lado, se a teoria das virtudes for apresentada como uma
teoria independente, com a pretensão de ser completa em si,então têm de se dar passos mais
drásticos. Ou a teoria abandona a noção de "acção correcta"no seu todo ou terá de
fornecer algum tratamento da noção, derivado da concepção de carácter virtuoso.
Apesar de parecer à primeira vista uma ideia louca, alguns filósofos argumentaram de facto
que devemos ver-nos livres de conceitos como "acção moralmente correcta". Anscombe
afirma que "seria um grande progresso" se deixássemos de usar por completo tais noções.
Poderíamos continuar a avaliar a conduta como melhor ou pior, afirma Anscombe, mas
faríamos isso noutros termos. Em vez de dizer que uma acçãofoi "moralmente errada",
deveríamos simplesmente afirmar que não foi "sincera" ou que foi "injusta" - termos
derivados do vocabulário da virtude. Na sua perspectiva, não precisamos de dizer nada mais
do que isto para explicar por que motivo uma acção deve serrejeitada.
Mas não é realmente necessário para os teóricos radicais davirtude abandonar noções como
"moralmente correcto". Pode-se manter estas ideias dando-se-lhes uma nova interpretação
no quadro de referência das virtudes. Isto poderia ser feito da maneira que se segue:
Primeiro, poderia dizer-se que as acções devem ser avaliadas como certas ou erradas do
modo habitual, por referência às razões que podem ser avançadas a favor ou contra elas. No
entanto, as razões referidas serão, todas elas, razões ligadas às virtudes - as razões a
favor da realização de uma acção serão que essa acção é honesta, generosa ou justa, e
outras semelhantes; enquanto as razões contra a sua realização serão que é desonesta,
mesquinha ou injusta, e outras que
265
tais. Esta análise poderia ser resumida dizendo que o nossodever é agir virtuosamente - a "acção
correcta" é, por outras palavras, aquilo que uma pessoa virtuosa faria.
O problema da incompletude. Esboçámos agora mesmo a forma como os teóricos radicais da
virtude compreendem o que devemos fazer. Será essa compreensão suficiente? O problema principal
da teoria é a incompletude.
Para se compreender o problema, considere-se uma virtude típica, como a honestidade. Suponha-se
que uma pessoa se sente tentada a mentir, talvez porque mentir concede alguma vantagem numa
situação determinada. A razão pela qual essa pessoa não deve mentir, segundo a abordagem da ética
radical das virtudes, é porque fazê-lo seria desonesto. Isto parece bastante razoável. Mas o que
significa ser honesto? Não é uma pessoa honesta apenas aquela que segue regras como "não mentir"?
É difícil ver em que consiste a honestidade se não é a disposição para seguir tais regras.
Mas não podemos evitar perguntar por que razão tais regras são importantes. Porque razão não deve
uma pessoa mentir, especialmente quando há alguma vantagem a ser obtida com a mentira?
Precisamos claramente de uma resposta que vá além da simples observação de que fazer isso seria
incompatível com a posse de um determinado traço de carácter; precisamos de uma explicação do
motivo pelo qual é melhor ter este traço do que o seu oposto. Algumas respostas possíveis poderiam
ser que uma política de veridicidade é no todo vantajosa para nós; ou que promove o bem-estar geral;
ou que é necessária a pessoas que têm de viver juntas e confiar umas nas outras. Ã primeira
explicação assemelha-se de forma suspeita ao egoísmo ético;a segunda é utilitarista; e a terceira faz
lembrar formas contratualistas de pensar. Em qualquer dos casos, o simples facto de dar uma
explicação parece levar-nos além dos limites da teoria simples das virtudes.
266
Além disso, é difícil ver como uma teoria simples das virtudes poderia lidar com casos de conflito
moral. Suponha que tem de escolher entre A e B, num caso emque seria desonesto mas delicado
fazer A, e honesto mas indelicado fazer B. (Um exemplo poderia ser dizer a verdade em
circunstâncias nas quais isso pudesse causar sofrimento a alguém.) A honestidade e a delicadeza são
ambas virtudes, existindo por isso razões a favor e contra para cada alternativa. Mas o leitor tem de
fazer uma coisa ou outra - tem de dizer a verdade e ser indelicado, ou não dizer a verdade e ser
delicado. O que deve então fazer? O conselho de agir virtuosamente não oferece, por si, grande
auxílio. Deixa-o apenas a interrogar-se sobre qual das virtudes terá precedência sobre a outra. Para
resolver conflitos destes parece que precisamos de uma orientação geral qualquer, além da que pode
oferecer a teoria radical das virtudes.
Existirá uma virtude que corresponda a toda a razão moralmente boa para fazer algo? O
problema da incompletude indica, por fim, uma dificuldade teórica mais geral para a abordagem
radical da ética das virtudes. Como vimos, segundo esta abordagem, as razões a favor e contra a
realização de uma acção têm que estar sempre associadas a uma ou mais virtudes. A ética das
virtudes radical está, assim, comprometida com a ideia de que por cada boa razão que se possa
propor a favor da realização de uma acção, há uma virtude correspondente que consiste na
disposição para aceitar essa razão e agir de acordo com ela. Mas isto não parece verdade.
Suponha o leitor, por exemplo, que é deputado e tem que decidir como distribuir fundos para a
investigação médica - não há dinheiro suficiente para tudo,e tem que decidir se deve investir-se em
investigação sobre a sida ou em algum outro projecto válido. Suponha que nessa circunstância decide
ser melhor fazer o que beneficiar um maior número de pessoas. Existirá uma virtude que corres-
267
ponda à disposição para fazer isso? Se existe, talvez se lhe deva chamar "agir como um
utilitarista". Ou, para voltar ao nosso exemplo de conflitos morais, haverá uma virtude
relacionada com todos os princípios que se podem invocar para resolver conflitos entre as
outras virtudes? Se há, talvez seja a "virtude" da sabedoria - o mesmo é dizer, a
capacidade de discernir o que é melhor e fazê-lo. Mas isto põe o jogo à mostra. Se
pressupomos tais "virtudes" apenas para adaptar todas as decisões morais à estrutura
escolhida, teremos salvo a ética radical das virtudes, mas à custa de abandonar a sua ideia
central.
Conclusão. Parece melhor, por estas razões, encarar a teoria das virtudes como parte de
uma teoria geral da ética e não como uma teoria completa emsi. A teoria geral incluiria um
tratamento de todas as considerações que figuram no processo de decisão prática,
juntamente com a sua fundamentação racional. A questão é, pois, saber se tal visão geral
pode incluir uma concepção adequada da acção correcta, e uma concepção correspondente
do carácter virtuoso, de maneira a fazer justiça a ambas.
Não vejo razão para isto não ser possível. A nossa teoria geral poderia começar por tomar o
bem-estar humano - ou o bem-estar de todas as criaturas sencientes - como o valor de
maior importância. Poderíamos dizer, do ponto de vista moral, que devemos desejar uma
sociedade onde todas as pessoas possam ter vidas felizes e aprazíveis. Poderíamos então
avançar para a apreciação da questão de saber que tipos de acções e políticas sociais
contribuiriam para este objectivo e que qualidades de carácter são necessárias para criar e
manter vidas individuais. Uma investigação sobre a naturezada virtude podia ser conduzida
com proveito a partir da perspectiva que tal visão alargadafornece. Cada uma poderia
iluminar a outra, e se cada uma das partes da teoria geral tiver de ser ligeiramente ajustada,
aqui e ali, para incluir a outra, tanto melhor para a verdade.
268
Como seria uma teoria moral satisfatória?
Algumas pessoas pensam que não pode haver progresso em Ética, uma vez que já tudo foi dito [...] Eu penso
o contrário [...] Comparada com as outras ciências, a ÉticaNão Religiosa é a mais jovem e menos
desenvolvida.
DEREK PARFIT, Reasons and Persons (1984)
14.1 Moralidade sem húbris
A filosofia moral tem uma história rica e fascinante. Inúmeros pensadores abordaram o tema
a partir de uma imensa diversidade de perspectivas e produziram teorias que, a um tempo,
atraem e repugnam o leitor atento. Quase todas as teorias clássicas contêm elementos
plausíveis, o que dificilmente surpreende, tendo em conta que foram elaboradas por filósofos
de génio indubitável. No entanto, as teorias não são consistentes entre si, e muitas são
vulneráveis a objecções paralisantes. Depois de as examinar,
269
ficamos sem saber o que pensar. Onde está, em última análise, a verdade? É claro que diferentes
filósofos responderiam a esta pergunta de maneiras diferentes. Alguns poderiam mesmo
recusar responder, alegando que não sabemos ainda o suficiente para alcançar a "análise
final". (Neste aspecto, a filosofia moral não está muito pior do qualquer outra área de
investigação humana - não conhecemos a verdade "final" sobre a maioria das coisas.) Mas
sabemos muito, e poderá não ser excessivamente precipitado dizer alguma coisa sobre o que
seria uma teoria moral satisfatória.
Uma concepção modesta dos seres humanos. Uma teoria satisfatória seria, antes de mais,
sensível aos factos sobre a natureza humana, e seria adequadamente modesta sobre o lugar
dos seres humanos no plano geral das coisas. O universo temcerca de quinze milhares de
milhões de anos - esse é o tempo decorrido desde o "big bang" - e a Terra em si foi
formada há cerca de 4,5 milhares de milhões de anos. A evolução da vida no planeta foi um
processo lento, guiado principalmente pela selecção natural. Os primeiros seres humanos
apareceram em data muito recente. A extinção dos grandes dinossauros, há sessenta e cinco
milhões de anos (possivelmente em resultado de uma colisão catastrófica de um asteróide na
Terra), criou espaço ecológico para a evolução dos poucos mamíferos então existentes, e
após outros sessenta e três ou sessenta e quatro milhões deanos uma linha dessa evolução
acabou por nos produzir. Em tempo geológico, chegámos apenas ontem.
Mas, mal chegaram, os nossos Antepassados começaram logo a pensar em si mesmos como
as coisas mais importantes da criação. Alguns imaginaram mesmo que todo o universo tinha
sido feito para seu benefício. Assim, quando começaram a desenvolver teorias sobre o bem e
o mal, defenderam que a protecção dos seus próprios interesses tinha uma espécie de valor
fundamental e objectivo. O resto
270
COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA?
da criação, pensavam, existia para ser usado em seu benefício. Hoje sabemos que não é
assim. Sabemos agora que existimos por acidente evolutivo, como uma espécie entre muitas,
num mundo pequeno e insignificante num pequeno canto do cosmos. Os pormenores desta
imagem são revistos todos os anos, à medida que mais coisassão descobertas; mas os traços
principais parecem solidamente estabelecidos.
Como dá a razão origem à ética. Hume, que só conhecia uma pequena parte desta história,
percebeu, no entanto, que o húbris humana é em boa medida injustificada. "A vida do
homem", escreveu, "não tem mais importância para o universodo que a de uma ostra". Mas
reconheceu igualmente que as nossas vidas são importantes para nós. Somos criaturas com
desejos, necessidades, planos e esperanças; mesmo que "o universo" não dê importância a
estas coisas, nós damos.
O húbris humano é em boa medida injustificada, mas não é inteiramente injustificada.
Comparados com as outras criaturas, temos capacidades intelectuais impressionantes.
Evoluímos como seres racionais. Este facto dá alguma pertinência à nossa opinião exagerada
sobre nós mesmos; e acaba por ser igualmente o que permite que tenhamos uma moralidade.
Porque somos racionais, conseguimos tomar certos factos como razões para nos
comportarmos de uma maneira e não de outra. Conseguimos exprimir essas razões e pensar
sobre elas. Tomamos, por isso, o facto de uma acção ajudar a satisfazer os nossos desejos,
necessidades, etc. - em resumo, o facto de uma acção promover os nossos interesses -
como um motivo a favor da sua realização.
A origem do nosso conceito de "dever" pode encontrar-se nestes factos. Se não
conseguíssemos ponderar razões a favor e contra certas acções, uma noção como essa para
nada nos serviria. Como os animais mais básicos,
271
agiriamos por impulso ou hábito ou, nas palavras de Kant, por "inclinação". Mas a ponderação de
razões introduz um factor novo. Damos connosco impelidos a agir de certas formas em
resultado da deliberação, em resultado de termos pensado sobre o nosso comportamento e
as suas consequências. Usamos a palavra dever para assinalar este novo elemento da
situação: devemos fazer aquilo a favor do qual existem as razões mais sólidas.
Uma vez considerada a moralidade como uma questão de agir com base na razão, emerge
outro aspecto importante. Ao raciocinar sobre o que fazer, podemos ser consistentes ou
inconsistentes. Uma maneira de ser inconsistente é aceitar um facto como razão num
momento, enquanto recusamos aceitar um facto semelhante como razão noutro momento,
apesar de não haver diferenças entre os dois momentos que justifiquem distingui-los. (No
final do capítulo 9 referi este aspecto como a "ideia fundamental de Kant".) Isto acontece
quando uma pessoa coloca injustificadamente os interesses da sua própria raça, ou grupo
social, acima dos interesses correspondentes de outras raças e grupos sociais. O racismo
significa considerar os interesses dos membros de outras raças como menos importantes do
que os interesses dos membros da sua própria raça, apesar de não existir qualquer diferença
geral entre as raças que justifique isto. Trata-se de uma afronta à moralidade porque é, antes
de mais, uma afronta à razão. Podemos fazer reparos semelhantes a outras doutrinas que
dividem a humanidade entre os moralmente favorecidos e os desfavorecidos, como o
egoísmo, o sexismo e o nacionalismo. A conclusão é que a razão requer imparcialidade:
devemos agir de modo a promover os interesses de todos sem distinção.
Se o egoísmo psicológico fosse verdadeiro, isso significaria que a razão exige mais de nós
do que podemos dar. Mas o egoísmo psicológico não é verdadeiro; oferece uma descrição
totalmente falsa da natureza humana e da condi-
272
Capítulo 14
COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA?
cão humana. Evoluímos como criaturas sociais, vivendo em grupos, desejando a companhia
uns dos outros, precisando da cooperação mútua e com capacidade para cuidar do bem-
estar dos outros. Há, pois, uma agradável "adequação" teórica entre a) o que a razão exige,
nomeadamente a imparcialidade; b) os requisitos da vida social, nomeadamente a adesão a
um conjunto de regras que, justamente aplicadas, serviriam os interesses de todos; e c) a
nossa inclinação natural para cuidar dos outros, pelo menosaté certo ponto. Estes três
aspectos funcionam em conjunto para tornar a moral não apenas possível, mas também, num
sentido importante, natural para nós.
14.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos
A ideia de que devemos "promover os interesses de todos semdistinção", é, quando tomada
como uma proscrição do fanatismo, muito apelativa; no entanto, pode objectar-se que tal
máxima ignora o facto de as pessoas terem méritos diferentes. Devemos, pelo menos
durante parte do tempo, tratar os indivíduos como merecem ser tratados, em vez de lidar
com eles como se fossem apenas membros da grande turba da humanidade.
A ideia de que as pessoas devem ser tratadas como merecem está relacionada com a ideia de
que são agentes racionais com o poder de escolher - se as pessoas não fossem racionais e
não tivessem controlo sobre as suas acções, não seriam responsáveis pela sua conduta e não
poderiam ser recompensadas com o bem ou o mal por causa da sua conduta. Os seres
racionais são, no entanto, responsáveis pelo que escolhem livremente fazer, e os que
escolhem comportar-se decentemente para com os outros merecem ser bem tratados,
enquanto os que tratam mal os outros merecem ser maltratados.
273
Isto parece muito severo enquanto não ponderamos em alguns exemplos. Suponha que
Smith tem sido sempre generosa, ajudou-o sempre que pôde, eagora tem problemas e
precisa da sua ajuda. Há agora uma razão especial pela qualela deve ser ajudada, além da
obrigação geral que temos de ser prestáveis para com os outros. Ela não é apenas outro
elemento da multidão, mas uma pessoa determinada que, pela sua conduta anterior, ganhou
o seu respeito e gratidão. Mas pense agora em alguém com a história oposta. Suponha que
Jones é seu vizinho, e recusou sempre auxiliá-lo quando precisou. Certo dia, por exemplo, o
seu carro não pegava, e Jones não lhe deu boleia para o trabalho - não tinha qualquer
desculpa em especial, apenas não se quis incomodar. Imagineque, depois disso, Jones tem
problemas com o carro e tem o descaramento de lhe pedir boleia. Talvez o leitor pense que
deve, ainda assim, ajudá-lo, apesar de ele não ter sido prestável. (O leitor poderia pensar que
isto o ensinaria a ser generoso.) No entanto, se nos concentrarmos no que ele merece, temos
de concluir que merece ser deixado por sua conta. É claro que, se acontecer uma situação na
qual tenha de escolher entre ajudar Smith ou Jones, tem boas razões para escolher Smith.
Adaptar o nosso tratamento dos indivíduos para o combinar com a forma como escolheram
tratar os outros não é apenas uma questão de recompensar osamigos e manter rancores
contra os inimigos. É uma questão de tratar as pessoas comoagentes responsáveis, que
pelas suas próprias escolhas mostram ser merecedores de respostas particulares, e face aos
quais emoções como a gratidão e o ressentimento são adequadas. Há uma diferença
importante entre Smith e Jones; porque razão isso não deveria reflectir-se na forma como
lhes retribuímos? Como seria se nós não adaptássemos as nossas respostas às pessoas desta
maneira?
Antes de mais, estaríamos a negar às pessoas (incluindo a nós mesmos) a capacidade de
merecerem ser bem trata-
274
das pelos outros. Isto é uma questão importante. Porque vivemos com outras pessoas, como
nos desenvencilhamos na nossa vida não depende apenas do que fazemos mas também do
que os outros fazem. Para prosperarmos precisamos obter um bom tratamento por parte dos
outros. Um sistema de acordos em que seja reconhecido o merecimento proporciona-nos
uma forma de fazer isso. Assim, reconhecer os méritos é umaforma de garantir às pessoas o
poder para determinar os seus próprios destinos.
Sem isto, o que faremos? Quais são as alternativas? Poderíamos imaginar um sistema no
qual a única forma de uma pessoa assegurar um bom tratamento por parte dos outros seria
de alguma forma obrigá-los a isso, ou poderíamos imaginar que o bom tratamento é sempre
uma forma de caridade. Mas a prática de reconhecer os méritos é diferente. A prática de
reconhecimento dos méritos dá às pessoas controlo sobre a forma como vão ser tratadas
pelos outros, dizendo-lhes: Se te portares bem, terás direito a ser bem tratado pelos outros.
Terás merecido isso. Sem este controlo, as pessoas ficam impotentes. Respeitar o direito de
as pessoas escolherem a sua própria conduta e ajustar entãoo modo como as tratamos de
acordo com as suas escolhas é, em última instância, uma questão de "respeito pelas
pessoas" num sentido de certa maneira kantiano.
Outros motivos. Há outros aspectos em que a ideia de "promover de forma igual os
interesses de todos" não parece conseguir captar a totalidade da vida moral. (Digo "parece"
porque quero voltar mais tarde à questão de saber se o fracasso é aparente ou real.) É certo
que as pessoas devem por vezes ser motivadas por uma preocupação imparcial com "os
interesses de todos sem distinção". Mas este não é o único motivo moralmente digno de
louvor:
- Uma mãe ama e cuida dos seus filhos: não está preocupada em "promover os seus
interesses"
275
simplesmente por serem pessoas que pode ajudar. A sua atitude para com eles é inteiramente diferente da sua
atitude face a outras crianças. Embora possa pensar que deve ajudar outras crianças sempre que
pode, esse sentimento vagamente benevolente não é de modo algum comparável ao amor que tem
pelos próprios filhos;
- Uma mulher é leal aos seus amigos: uma vez mais, não estápreocupada com os interesses deles
apenas como parte de uma preocupação benévola relativamenteàs pessoas em geral. Eles são seus
amigos, e a amizade torna-os especiais.
Como salientámos no capítulo 13, só um completo idiota em questões filosóficas proporia a
eliminação do amor, da lealdade e coisas semelhantes do nosso entendimento da vida moral. Se tais
motivos fossem eliminados, e em vez disso as pessoas se limitassem a calcular o que seria melhor,
todos perderíamos muito com isso. E, em qualquer dos casos,quem desejaria viver num mundo sem
amor e amizade?
Há, é claro, muitos outros tipos de motivos de valor que entram em jogo à medida que as pessoas vão
vivendo as suas vidas:
- Uma compositora está interessada, acima de tudo, em terminar a sua sinfonia. Luta por esse
objectivo, apesar de poder fazer "mais bem" dedicando-se a outra coisa;
- Um professor devota grande esforço à preparação das suas aulas, apesar de um bem total maior
poder ser alcançado se dirigisse parte da sua energia para outra coisa.
Embora estes não sejam motivos geralmente considerados "morais", são motivos que, do ponto de
vista moral, não
276
devemos querer eliminar da vida humana. O desejo de criar, o orgulho de fazer bem o seu trabalho e
outros motivos semelhantes contribuem quer para a felicidade pessoal (pensemos na alegria de ter
criado algo de belo ou a satisfação de ter feito bem um trabalho), quer para o bem-estar geral
(pensemos como estaríamos muito pior sem música nem bons professores). Devemos ter tão pouca
vontade de eliminá-los como de eliminar o amor e a amizade.
14.3 Utilitarismo de estratégias múltiplas
Com base em algumas observações sobre a natureza humana e arazão, demos uma justificação
esquemática do princípio de que "devemos agir de maneira a promover de forma igual os interesses
de todos". Mas notámos depois que isto não pode ser tudo o que há a dizer sobre as nossas
obrigações morais porque (pelo menos algumas vezes) devemostratar as pessoas segundo o que
merecem individualmente. E sublinhámos ainda que há outros motivos moralmente importantes que
aparentemente nada têm que ver com a promoção imparcial dosinteresses.
É, no entanto, possível pensar que estas diversas preocupações se relacionam entre si. A primeira
vista parece que tratar as pessoas segundo o que merecem é muito diferente de procurar promover de
igual modo os interesses de todos. Mas quando perguntámos omotivo pelo qual o que as pessoas
merecem é importante, a resposta acabou por ser que todos estaríamos muito pior se o
reconhecimento do que as pessoas merecem não fizesse parte do nosso plano moral. E quando
perguntamos por que razão o amor, a amizade, a criatividadeartística e o orgulho na realização do
nosso trabalho são importantes, a resposta é que as nossas vidas seriam muito mais pobres sem
estas coisas. Isto sugere a existência de um padrão único aoperar por detrás da avaliação de todas
estas coisas diferentes.
277
Talvez se dê então o caso de o padrão moral único ser o bem-estar humano (ou, como
afirmou Mill, o bem-estar de "toda a criação senciente" - vou voltar a esta complicação
daqui a pouco). O que é importante é que as pessoas sejam tão felizes e tenham tão boas
condições de vida quanto possível. E este padrão deve ser utilizado para avaliar
variadíssimas coisas, incluindo as acções, políticas, costumes sociais, leis, regras, motivos e
traços de carácter. Quando reflectimos sobre regras, motivos e coisas do género, referimo-
nos ao padrão de bem-estar. Mas isso não significa que devamos ser sempre motivados por
esse padrão no decurso habitual das nossas vidas. As nossasvidas correrão melhor se, em
vez disso, amarmos os nossos filhos, desfrutarmos da companhia dos nossos amigos, nos
orgulharmos do nosso trabalho, mantivermos as nossas promessas, e assim por diante. Uma
ética que valorize "os interesses de todos sem distinção" aceitará esta conclusão.
Isto não é uma ideia nova. Henry Sidgwick, o grande teóricoutilitarista da época Vitoriana,
defendeu a mesma ideia quando escreveu que:
A doutrina de que a Felicidade Universal é o derradeiro padrão não deve ser entendida como se
implicasse que a Benevolência Universal é o único motivo correcto, ou é sempre o melhor, para a
acção [...] não é necessário que o fim que dá o critério dacorrecção moral deva sempre ser o fim para
o qual tendemos conscientemente: e se a experiência mostra que a felicidade geral será atingida de
forma mais satisfatória se os homens agirem com frequência com base em outros motivos que não a
pura filantropia universal, é óbvio que esses motivos serãorazoavelmente preferidos nos princípios
Utilitaristas.
Este pensamento de Sidgwick tem sido citado em defesa de uma perspectiva chamada
"utilitarismo dos motivos", cuja ideia central é que devemos agir com base na combinação
de motivos que melhor promova o bem-estar geral.
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No entanto, a perspectiva mais plausível deste género não se centra exclusivamente nos
motivos; nem inteiramente em acções e regras, como fizeram outras formas de utilitarismo.
A perspectiva mais plausível poderia chama-se utilitarismo de estratégias múltiplas. O fim
derradeiro é o bem-estar geral, mas pode-se defender estratégias diferentes como meio para
alcançar esse fim. Por vezes visamo-lo directamente, como quando um deputado decreta
uma lei para o bem-estar geral, ou um indivíduo calcula queenviar dinheiro para a UNICEF
faria mais facilmente o bem do que outra coisa qualquer. Mas por vezes não pensamos no
bem-estar geral de todo em todo; em vez disso, limitamo-nosa cuidar dos nossos filhos, a
trabalhar nos nossos empregos, a obedecer à lei e a cumpriras nossas promessas.
A acção correcta como a vida de acordo com o melhor plano. Podemos especificar um
pouco mais a ideia por detrás do utilitarismo de estratégias múltiplas.
Suponha-se que tínhamos uma lista inteiramente especificadadas virtudes, motivos e
métodos de tomada de decisão que permitiriam caracterizar uma pessoa cuja vida é
simultaneamente satisfatória para si e contribui positivamente para o bem-estar dos outros.
E suponha-se ainda que isto é a lista óptima para essa pessoa; não há qualquer outra
combinação de virtudes, motivos e métodos de tomada de decisão que cumprisse melhor a
função. Esta lista iria incluir pelo menos o seguinte:
- As virtudes necessárias para fazer a nossa própria vida correr bem;
- Os motivos com base nos quais iremos agir;
- Os compromissos e relações pessoais que teremos para com amigos, família e outros;
- Os papéis sociais que teremos de desempenhar, juntamente com as responsabilidades e
exigências que os acompanham;
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- Os deveres e preocupações associados aos projectos que levaremos por diante, como ser
um músico, um soldado ou um cangalheiro;
- As regras quotidianas que teremos de cumprir a maior parte do tempo sem mesmo pensar;
e
- Uma estratégia, ou grupo de estratégias, sobre quando pensar em abrir excepções às
regras, e os fundamentos para abrir excepções.
A lista incluiria ainda uma especificação das relações entre os outros itens da lista - o que
tem prioridade sobre o quê, como decidir conflitos, e assimpor diante. Poderia ser
extremamente difícil elaborar tal lista. Num plano prático,poderia mesmo ser impossível.
Mas podemos estar bastante seguros de que incluiria um avalà amizade, honestidade e
outras virtudes familiares úteis. Dir-nos-ia para cumprir as nossas promessas, mas nem
sempre, e para nos refrearmos de magoar as pessoas, mas nemsempre; e assim por diante. E
iria provavelmente dizer para deixarmos de viver com luxo enquanto em cada ano milhões
de crianças morrem de doenças que poderiam ser prevenidas.
De qualquer maneira, há uma combinação de virtudes, motivose métodos de tomada de
decisão que é melhor para mim, tendo em conta as minhas circunstâncias, personalidade e
talentos - "melhor" no sentido em que irá optimizar as possibilidades de eu ter uma vida
boa, optimizando ao mesmo tempo as possibilidades de as outras pessoas terem vidas boas.
Chame-se a esta combinação o meu melhor plano. A coisa certa para eu fazer é agir de
acordo com o meu melhor plano.
O meu melhor plano pode ter muito em comum com o do leitor.Presumivelmente, ambos
incluem regras contra a mentira, o roubo e o assassínio, juntamente com acordos sobre
quando fazer excepções a essas regras e os fundamentos, legitimando tais excepções.
Incluirão ambos virtudes como a paciência, a gentileza e o autodomínio. Podem ambos
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conter instruções para a educação das crianças, inclusivamente sobre as virtudes a
desenvolver nelas. E haverá muito mais que o meu plano teráem comum com o seu.
Mas os nossos melhores planos não precisam de ser idênticos. As pessoas têm
personalidades e talentos diferentes. Uma pessoa pode realizar-se como padre enquanto
outra nunca poderia viver assim. Desse modo, as vidas das pessoas poderiam incluir tipos
diferentes de relações pessoais, e pessoas diferentes poderiam precisar de cultivar virtudes
diferentes. As pessoas vivem além disso em circunstâncias diferentes e têm acesso a recursos
diversos - algumas são ricas; outras são pobres; algumas são privilegiadas; outras são
oprimidas e perseguidas. Por isso, a estratégia óptima paraviver poderia ser diferente em
cada caso.
Em cada caso, no entanto, a identificação de um plano como o melhor será uma questão de
avaliar até que ponto promove de igual modo os interesses de toda a gente. Assim, a teoria
geral é utilitarista, apesar de poder frequentemente legitimar que as pessoas ajam com base
em motivos que não parecem de modo algum utilitaristas.
14.4 A comunidade moral
Enquanto agentes morais, devemos preocupar-nos com todos aqueles cujo bem-estar possa
ser afectado pelo que fazemos. Isto pode parecer uma trivialidade piedosa, mas pode
revelar-se na realidade uma doutrina muito dura. No ano quemedeia entre o momento em
que escrevo e a publicação do livro, cerca de um milhão de crianças morrerá de sarampo. As
pessoas dos países abastados poderiam facilmente impedir isto, mas não o farão. As pessoas
sentiriam sem dúvida um maior sentido de obrigação caso as crianças a morrer vivessem nos
seus próprios bairros e cidades, em vez de serem estrangeiros em países distantes.
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Mas nós estamos a considerar teoricamente que a localizaçãodas crianças não importa: todas as
pessoas estão incluídas na comunidade de consideração moral. Se os interesses de todas as crianças,
onde quer que vivam, fossem tomados a sério, isso faria umaenorme diferença no nosso
comportamento.
Se a comunidade moral não se limita a pessoas num local, também não se limita a pessoas numa
dada época. Se as pessoas vão ser afectadas pelas nossas acções agora ou num futuro distante, isso
não faz diferença. A nossa obrigação é avaliar todos os interesses de forma igual. Uma consequência
disto diz respeito às armas de destruição maciça. Com o desenvolvimento de armas nucleares, temos
agora a capacidade de alterar o curso da história de uma forma especialmente dramática. Se o bem-
estar das gerações vindouras for devidamente tido em consideração, é difícil imaginar quaisquer
circunstâncias nas quais o uso em larga escala destas armasse justifique. O ambiente é outra questão
na qual os interesses das gerações vindouras têm lugar de destaque: não temos de pensar que o
ambiente é importante "em si" para ver que a sua destruiçãoé um horror moral; basta ter em conta o
que será das pessoas se as florestas tropicais, as algas marinhas e a camada de ozono forem
destruídas.
Há ainda outra via pela qual a nossa concepção de comunidade moral tem de ser expandida. Como
sublinhámos, os seres humanos são apenas uma das espécies que habita este planeta. Como os seres
humanos, os outros animais têm igualmente interesses que são afectados pelo que fazemos. Quando
os matamos ou torturamos, eles sofrem, tal como sofrem os seres humanos quando são tratados dessa
forma. Bentham e Mill tinham razão em insistir que os interesses dos animais não-humanos têm de
contar nas nossas preocupações morais. Como Bentham sublinhou, excluir certas criaturas das
considerações morais por causa da sua espécie não tem mais justificação do que excluí-las
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por causa da sua raça, nacionalidade ou sexo. A imparcialidade exige a expansão da comunidade
moral não apenas ao longo do espaço e do tempo mas também para lá das fronteiras das espécies.
14.5 Justiça e equidade
O utilitarismo clássico foi criticado por não dar conta dosvalores da justiça e equidade. Poderão as
complexidades que trouxemos à liça ajudar a resolver este problema?
Uma das críticas tinha que ver com a punição. Podemos imaginar casos em que o bem-estar geral é
promovido pelo encarceramento de um inocente. Isto é uma injustiça flagrante, mas, tomando o
princípio de utilidade como padrão último, é difícil explicar por que razão é errado. De uma maneira
mais geral, como Kant fez notar, a "justificação" utilitarista básica da punição é tal que trata os
indivíduos como meros "meios".
Se uma política de tratamento das pessoas como elas merecemse justificar pelos padrões gerais do
utilitarismo, isso pode levar a uma perspectiva da punição algo diferente da que os utilitaristas
habitualmente defenderam. (De facto, a perspectiva da punição daí resultante será próxima da de
Kant.) Ao punir alguém, estamos a tratá-lo de maneira diferente dos outros - a punição implica uma
falha da imparcialidade. Mas isto justifica-se, na nossa perspectiva, pelas acções que a pessoa em
causa realizou. E uma resposta ao que ela fez. E por isso que não é correcto prender uma pessoa
inocente; a pessoa inocente nada fez para merecer ser alvo de um tal tratamento.
A teoria da punição é, no entanto, apenas uma parte do temada justiça. Levantam-se questões de
justiça sempre que uma pessoa é tratada de forma diferente de outra. Suponhamos que um
empregador tem de escolher qual de dois trabalhadores vai promover, pois só pode promover
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um deles. A primeira candidata trabalhou arduamente para a empresa, fazendo trabalho
extraordinário quando era necessário, desistindo das suas férias para ajudar, e assim por
diante. O segundo candidato, por outro lado, fez sempre apenas o mínimo que lhe foi
pedido. (E vamos presumir que não tem uma desculpa; simplesmente escolheu não trabalhar
arduamente.) Naturalmente, os dois trabalhadores serão tratados de maneira muito diferente:
um será promovido; o outro não. Mas isto está correcto, segundo a nossa teoria, porque o
primeiro empregado merece ser posto à frente do outro, tendo em conta as prestações
anteriores de cada um. A empregada mereceu a promoção; o empregado não.
No que concerne à equidade, as acções voluntárias de uma pessoa podem justificar
afastamentos da política básica de "tratamento igual", mas nada mais pode fazê-lo. Isto
contraria uma perspectiva comum sobre este tema. As pessoaspensam com frequência que é
correcto os indivíduos serem premiados pela beleza física, a inteligência superior ou outros
dotes naturais. (Na prática, as pessoas conseguem com frequência melhores empregos e uma
mais larga fatia dos bens da vida apenas porque nasceram com melhores dons naturais.) Mas
quando reflectimos, isto não parece correcto. As pessoas não mereceram os seus dons
naturais; possuem-nos apenas em resultado do que John Rawlschamou "a lotaria natural".
Suponhamos que a empregada do nosso exemplo era ultrapassada na promoção, apesar do
seu esforço, porque o seu colega tinha um talento natural mais útil para exercer o novo
cargo. Mesmo que o empregador pudesse justificar esta decisão evocando as necessidades
da empresa, a empregada sentiria justificadamente que algo injusto tinha acontecido. Ela
trabalhou mais, mas é ele que agora obtém a promoção e os privilégios que a acompanham,
por causa de uma coisa que nada fez para merecer. Isso não é justo. Uma sociedade justa,
segundo a nossa concepção, seria aquela na qual as pessoas
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pudessem progredir nas suas carreiras por meio de trabalho árduo (tendo todas
oportunidade de trabalhar), e não sendo promovidas apenas porque nasceram com sorte.
14.6 Conclusão
Como seria uma teoria moral satisfatória? Apresentei os traços gerais da possibilidade que
me parece mais plausível. No entanto, é importante recordarque inúmeros pensadores de
mérito tentaram criar uma teoria satisfatória, e a históriaconsiderou que apenas foram
parcialmente bem sucedidos. Isto sugere que é sensato não ter pretensões demasiado
grandiosas para a nossa própria perspectiva, qualquer que ela seja. Mas há uma razão para
estar optimista. Como Derek Parfit observou, a Terra continuará habitável durante mais mil
milhões de anos, e a civilização tem agora apenas alguns milhares de anos. Se não nos
destruirmos, a filosofia moral, a par de outros estudos humanos, pode ainda ter um longo
caminho pela frente.
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