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1 Educação Integral no Programa Saúde na Escola: uma análise na perspectiva de um educador Éverton Vasconcelos de Almeida, Me. [email protected] Resumo Apesar de todas as dificuldades conjunturais enfrentadas pela escola, ela segue guardando um papel fundamental para a promoção de políticas públicas que visam promover melhorias na sociedade. A partir das anotações realizadas no Seminário do Programa Saúde na Escola (PSE): uma Rede de Corresponsabilidades na Atenção Básica, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina em parceria com o Governo Federal, através das Secretarias de Estado da Saúde (SES), Educação (SED) e Assistência Social (SEAS), foram selecionadas palavras chaves que serviram de base para pensar a relação entre a perspectiva do pensamento sistêmico/teoria da complexidade com os discursos oficiais presentes tanto nos documentos do PSE como, também, nos discursos utilizados em prol do engajamento dos profissionais da educação à implantação e implementação do Programa. Ainda que na descrição do programa seja apresentada a proposta da educação integral, os documentos orientadores não apresentam qual a visão de educação integral, quais os aportes teóricos, concepções e finalidades. Palavras Chaves: Educação Integral, Intersetorialidade, Saúde e Educação; INTRODUÇÃO A compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana. Edgar Morin (p.88) Este trabalho pretende analisar, à luz da Teoria da Complexidade, do Pensamento sistêmico e da Ecopedagogia, a forma como certas palavras-chaves desse arcabouço são apropriadas pelo sistema vigente e repetidas nos discursos oficiais, nos documentos que direcionam as políticas educacionais no âmbito da Secretaria Estadual de Educação do Estado de Santa Catarina. Neste sentido, o enfoque será refletir sobre a seguinte questão: de que forma as políticas públicas se apropriaram dos conceitos da teoria da complexidade, do pensamento sistêmico e da Ecopedagogia para reforçar os discursos hegemônicos? Para procurar compreender estes conceitos que são bastante abarcadores e envolvem muitos elementos a serem pensados, o recorte será dado através do embasamento nos trabalhos de Edgar Morin e Fritjof Capra.

Educação Integral no Programa Saúde na Escola: uma análise na perspectiva de um educador

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Educação Integral no Programa Saúde na Escola: uma

análise na perspectiva de um educador

Éverton Vasconcelos de Almeida, Me.

[email protected]

Resumo

Apesar de todas as dificuldades conjunturais enfrentadas pela escola, ela segue guardando um papel

fundamental para a promoção de políticas públicas que visam promover melhorias na sociedade. A partir

das anotações realizadas no Seminário do Programa Saúde na Escola (PSE): uma Rede de

Corresponsabilidades na Atenção Básica, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina em

parceria com o Governo Federal, através das Secretarias de Estado da Saúde (SES), Educação (SED) e

Assistência Social (SEAS), foram selecionadas palavras chaves que serviram de base para pensar a relação

entre a perspectiva do pensamento sistêmico/teoria da complexidade com os discursos oficiais presentes

tanto nos documentos do PSE como, também, nos discursos utilizados em prol do engajamento dos

profissionais da educação à implantação e implementação do Programa. Ainda que na descrição do

programa seja apresentada a proposta da educação integral, os documentos orientadores não apresentam

qual a visão de educação integral, quais os aportes teóricos, concepções e finalidades.

Palavras Chaves: Educação Integral, Intersetorialidade, Saúde e Educação;

INTRODUÇÃO

A compreensão do outro requer a consciência

da complexidade humana.

Edgar Morin (p.88)

Este trabalho pretende analisar, à luz da Teoria da Complexidade, do Pensamento

sistêmico e da Ecopedagogia, a forma como certas palavras-chaves desse arcabouço são

apropriadas pelo sistema vigente e repetidas nos discursos oficiais, nos documentos que

direcionam as políticas educacionais no âmbito da Secretaria Estadual de Educação do

Estado de Santa Catarina. Neste sentido, o enfoque será refletir sobre a seguinte questão:

de que forma as políticas públicas se apropriaram dos conceitos da teoria da

complexidade, do pensamento sistêmico e da Ecopedagogia para reforçar os discursos

hegemônicos? Para procurar compreender estes conceitos que são bastante abarcadores e

envolvem muitos elementos a serem pensados, o recorte será dado através do

embasamento nos trabalhos de Edgar Morin e Fritjof Capra.

2

A partir da observação participante realizada no Seminário do Programa Saúde na

Escola (PSE): uma Rede de Corresponsabilidades na Atenção Básica, promovido no

início do ano de 2014 pelo Governo do Estado de Santa Catarina em parceria com o

Governo Federal, através das Secretarias de Estado da Saúde (SES), Educação (SED) e

Assistência Social (SEAS), foram selecionadas palavras chaves que serviram de base para

pensar a relação entre a perspectiva do pensamento sistêmico/teoria da complexidade com

os discursos oficiais presentes tanto nos documentos do PSE como, também, nos

discursos utilizados em prol do engajamento dos profissionais da educação à implantação

e implementação do Programa.

Apesar de todas as dificuldades conjunturais enfrentadas pela escola, ela segue

guardando um papel fundamental para a promoção de políticas públicas que visam

promover melhorias na sociedade. Neste sentido, é possível tomar como exemplo o

Programa Saúde na Escola, instituído pelo Governo Federal em 2007, com a finalidade

de integrar intersetorialmente as áreas da Saúde e da Educação. Segundo o sítio1 do

programa na internet, “as políticas de saúde e educação voltadas às crianças, adolescentes,

jovens e adultos da educação pública brasileira se unem para promover saúde e educação

integral”.

Ainda que na descrição do programa seja apresentada a proposta da educação

integral, os documentos orientadores não apresentam qual a visão de educação integral,

quais os aportes teóricos, concepções e finalidades. Para se chegar a tais conceitos será

apresentado uma análise do Projeto Escola Pública Integrada (EPI), do governo do Estado

de Santa Catarina, a fim de perceber quais as relações se encontram entre o que o

Programa Saúde na Escola pretende, o que foi apresentado no seminário PSE: uma Rede

de Corresponsabilidades na Atenção Básica, e suas relações com a educação integral

contida no Projeto EPI da Secretaria de Estado da Educação.

PSE - PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA

O Programa Saúde na Escola (PSE) foi instituído através do Decreto Nº 6.286, de

5 de dezembro de 2007, tendo como eixo central a proposta de intersetorialidade entre os

Ministérios da Saúde e Educação na promoção da saúde da população através das escolas

1 http://dab.saude.gov.br/portaldab/pse.php Acessado em 01/07/2014

3

públicas. De iniciativa do Governo Federal, o Decreto foi assinado pelo então Presidente

da República Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Ministro da Educação Fernando Haddad e

pelo Ministro da Saúde José Gomes Temporão. Segundo o Decreto que institui o

programa, em seu artigo primeiro:

Art. 1º Fica instituído, no âmbito dos Ministérios da Educação e da Saúde, o

Programa Saúde na Escola - PSE, com finalidade de contribuir para a formação

integral dos estudantes da rede pública de educação básica por meio de ações

de prevenção, promoção e atenção à saúde.

Como o PSE configura-se como proposta intersetorial, Ministério da Educação

(MEC) e Ministério da Saúde (MS) apresentam o programa de maneira muito semelhante,

buscando representar as ações de forma conjunta, numa espécie de alinhamento do

discurso. Conforme o Portal do MEC na internet, o PSE “visa à integração e articulação

permanente da educação e da saúde, proporcionando melhoria da qualidade de vida dos

educandos”. Para o MEC, o objetivo principal do programa está em:

[...] contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de ações de

promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos à saúde e atenção à saúde,

visando o enfrentamento das vulnerabilidades que comprometem o pleno

desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens da rede pública de ensino.

(Portal do MEC, 2013)

O Ministério da Saúde apresenta uma linguagem muito semelhante, quando se

refere aos objetivos do programa. A fim de orientar sua implementação, foi elaborado um

material denominado “Passo a Passo PSE Programa Saúde na Escola: tecendo caminhos

da intersetorialidade” (2011). Embora esse manual passo a passo seja assinado na capa

por ambos os ministérios, na ficha catalográfica, é o Ministério da Saúde que consta como

elaborador da proposta. Segundo o MS (2011, p.6):

O Programa Saúde na Escola (PSE) vem contribuir para o fortalecimento de

ações na perspectiva do desenvolvimento integral e proporcionar à

comunidade escolar a participação em programas e projetos que articulem

saúde e educação, para o enfrentamento das vulnerabilidades que

comprometem o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens

brasileiros. Essa iniciativa reconhece e acolhe as ações de integração entre

saúde e educação já existentes e que têm impactado positivamente na qualidade

de vida dos educandos.

Ao analisarmos os objetivos que MEC e MS apresentam, é possível perceber que

ambos trazem a categoria da integralidade a partir de distintas leituras do conceito de

4

integral. Apesar da proximidade dos discursos, faz-se necessário a diferenciação da

aplicabilidade da palavra integral, mesmo que se pretenda um objetivo em comum.

Enquanto que, para o setor da educação a palavra está associada a ideia de formação, para

o setor da saúde, está associada a ideia de desenvolvimento. Ainda, poderíamos afirmar

ser irrelevantes tal diferenciação, uma vez que no formar-se está contido o desenvolver-

se e que não há um desenvolvimento pleno sem formar-se integralmente. O que entra em

questão é a diferenciação entre ambos os setores, na forma em que ambos se apresentam,

dos lugares em que os dois setores se forjam, se concentram e se defendem. Mesmo que

se pretenda integrar saúde e educação, os setores falam de locais distintos, com

finalidades igualmente distintas, mantendo o sentido fragmentado das organizações

institucionais.

Ainda que a proposta de intersetorialidade específica entre saúde e educação esteja

assentada numa perspectiva de complexidade e inter-relação de ambos, há uma intensa

preservação dos lugares educação / saúde, presente nos discursos oficiais do PSE. O

Decreto Nº 6.286 que institui o programa deixa bastante evidente a ideia de que o

programa trata de uma ação preventiva de saúde através da escola. Nos objetivos

elencados pelo Decreto, há uma via única de sentido, onde a escola é o território em

disputa, sendo ocupado pelo setor da saúde a fim de promover a prevenção, a melhoria

das condições de saúde da população. Conforme o Artigo 2° do Decreto, são objetivos do

PSE:

I - promover a saúde e a cultura da paz, reforçando a prevenção de agravos à

saúde, bem como fortalecer a relação entre as redes públicas de saúde e de

educação;

II - articular as ações do Sistema Único de Saúde - SUS às ações das redes de

educação básica pública, de forma a ampliar o alcance e o impacto de suas

ações relativas aos estudantes e suas famílias, otimizando a utilização dos

espaços, equipamentos e recursos disponíveis;

III - contribuir para a constituição de condições para a formação integral de

educandos;

IV - contribuir para a construção de sistema de atenção social, com foco na

promoção da cidadania e nos direitos humanos;

V - fortalecer o enfrentamento das vulnerabilidades, no campo da saúde, que

possam comprometer o pleno desenvolvimento escolar;

VI - promover a comunicação entre escolas e unidades de saúde, assegurando

a troca de informações sobre as condições de saúde dos estudantes; e

VII - fortalecer a participação comunitária nas políticas de educação básica e

saúde, nos três níveis de governo.

Nesta via de sentido único, portanto, o setor da educação encontra-se a serviço do

setor da saúde. A escola oportuniza os espaços necessários para que se promovam ações

5

que futuramente resultem na diminuição das demandas de saúde da população, através da

prevenção. Embora haja uma contrapartida do setor da saúde para a educação, através da

ideia de que crianças saudáveis aprendem melhor, as demandas da educação se

relacionam mais com o campo político ideológico, do princípio e conceito atribuído à

formação integral, do que uma demanda mais específica como é a da saúde. Esta análise

não pretende desqualificar o PSE, ou afirmar que a prevenção da saúde de crianças e

adolescentes não seja algo de fundamental para o desenvolvimento humano. Ao contrário,

é urgente que o país resolva os problemas que a falta de cuidado com a saúde e o

desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, problemas estes que refletem o

mau desempenho durante o processo de escolarização.

No campo político, promover a prevenção da saúde na escola significa, promover

a formação de futuros trabalhadores saudáveis, assim como, no campo econômico,

desonerar o Estado dos gastos com saúde, através da utilização otimizada dos recursos na

prevenção de doenças. Mesmo que os discursos oficiais representam uma camada

aparente de benefícios e que as dificuldades de saúde da população mais necessitada

batam à porta dos profissionais de ambos os setores, é preciso reconhecer que tais

políticas estão em consonância com uma agenda que está mais a serviço dos interesses

econômicos do que dos interesses de formação/desenvolvimento humana(o) integral.

SEMINÁRIO DO PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA (PSE): UMA REDE DE

RESPONSABILIDADES NA ATENÇÃO BÁSICA

O Seminário teve como objetivo unir profissionais de saúde e da educação da

Grande Florianópolis num mesmo espaço, para que experiências das Unidades Escolares

e Postos de Saúde que já estavam trabalhando no âmbito do programa fossem

compartilhadas e, assim, estimular a implantação e implementação de ações a serem

realizadas pelos profissionais de ambos os setores, dentro do Programa Saúde na Escola,

nas localidades que ainda não possuem projetos dentro do PSE. A finalidade do evento

estava em estimular a adesão de profissionais, gestores educacionais, professores e

demais profissionais do setor da saúde e assistência social. Conforme seu edital de

convocação encaminhado às escolas, os objetivos do seminário foram:

- Apoiar os profissionais de saúde e educação na implantação e implementação

das ações do Programa Saúde na Escola;

6

- Fortalecer a intersetorialidade das Secretarias municipais de Saúde, Educação

e Assistência Social para a consolidação das ações do Programa Saúde na

Escola;

- Discutir processos de trabalho na perspectiva de rede na comunidade escolar;

Na abertura do evento, uniram-se os representantes das Secretarias de Saúde e

Educação em falas bastante consonantes. Os bons índices do Estado de Santa Catarina

em ambos os setores foram apresentados sem maiores aprofundamentos a seu respeito,

apenas evidenciando esse fato como um indicador de sucesso da gestão. Também se fez

presente nestas falas um regionalismo exacerbado pela afirmação de que “no sul temos e

convivemos com pessoas de bom nível [sic]”2, também uma certa exaltação aos

profissionais que se dispuseram a participar do seminário, destacando o

comprometimento, com ênfase na importância da qualidade pessoal dos profissionais e

que naquele espaço estavam reunidas pessoas comprometidas com a mudança. Porém,

minha participação no seminário se deu mais por uma disponibilidade funcional, já que

as escolas eram obrigadas a enviar pelo menos um representante, e eu era o único

professor da escola que poderia ali estar sem afetar o andamento das aulas, fato que se

distanciava do interesse pessoal ou até mesmo da unidade escolar, na implementação do

PSE na comunidade. É possível identificar essa chamada dos profissionais no manual

“Passo a passo para adesão” ao PSE, lançado no primeiro semestre de 2014, onde o

programa é classificado como “uma estratégia de integração da saúde e educação para o

desenvolvimento da cidadania e da qualificação das políticas públicas brasileiras. Sua

sustentabilidade e qualidade dependem de todos nós!” (MS; MEC, 2011, p.3)

Ao avançarem as falas de abertura, o discurso embutido e que soava sutilmente –

ao mesmo tempo que se enalteciam as qualidades pessoais dos profissionais – era o da

responsabilização dos professores e dos médicos pelo fracasso dos sistemas de saúde e

educação. Ao centralizarem o discurso nos profissionais (sujeitos às intempéries materiais

do próprio sistema), chamando-os à responsabilidade3, convocando-os à participação,

colocava-se luz sobre os problemas enfrentados pelo sistema de forma localizada, com a

ideia de que a solução seria apresentada nos dias do evento e que havia a necessidade de

adesão dos profissionais para se promover o sucesso.

2 Anotações pessoais na conferência de abertura do Seminário. 3 Fala do representante da Secretaria de Estado da Educação: “ Professor: assuma sua reponsabilidade!

[sic]”

7

A cada apresentação realizada, como metodologia de análise, fui selecionando

palavras-chaves que se repetiam como clichês acadêmicos e que auxiliassem na

compreensão do que estava sendo apresentado naquele evento. Estas palavras

evidenciaram um caminho que possibilitou a busca por um referencial teórico que

permitisse uma discussão acerca dos temas essenciais abordados, e que permitissem um

olhar mais aprofundado sobre as intenções da política programática apresentada através

do PSE, que se propõe, no campo da educação, à uma formação integral. As palavras

foram organizadas em um quadro conceitual, relacionando-se umas com as outras através

de oposições e proximidades, pensadas a partir da ideia de contradição, de

(in)compatibilidades, dispostas em torno de uma palavra central, conforme a imagem

abaixo:

A ideia de rede foi apresentada como eixo central de aplicabilidade do Programa

Saúde na Escola. Conceituada como “a sinergia através da convergência de ações no

âmbito das Políticas Públicas, configurando uma relação imbricada de esforços

governamentais, empresariais e civis”4, não houve um aprofundamento teórico na

conceituação da categoria REDE, deixando em aberto a visão de possíveis autores que

abordam essa temática. Essa rasa conceituação apresentada no seminário, trouxe uma

ideia de rede de forma genérica e generalizada, centrada na empiria de que ela permite

ações sem grandes aportes financeiros, uma vez que um setor pode contribuir com o que

falta no outro setor, de que o mau uso do potencial humano é o principal problema das

redes de saúde e educação, já que os recursos financeiros são disponibilizados, mas mal

empregados. Aparentemente se apresenta uma relação de rede colaborativa,

4 Anotações pessoais na conferência de abertura do Seminário. Slide apresentado pela Secretaria de

Estado da Saúde Jane Lane

8

desresponsabilizando a gestão central, o que indiretamente resulta na culpabilização dos

profissionais quando há falhas, excluindo a política pública de sua responsabilidade

diante do fracasso, mas enaltecendo-a diante do sucesso.

No quadro, então, aparece a Intersetorialidade em oposição a complexidade.

Como gerar uma intersetorialidade entre áreas que possuem complexidades distintas?

Interdependência em oposição a autonomia. Quais as possibilidades de interdependência

existentes entre setores autônomos? Sistema colaborativo em oposição a competências.

Quais as colaborações podem ser desenvolvidas entre as áreas de saúde e educação, uma

vez que a escola é o território a ser ocupado e que cada área possui competências distintas?

Sinergia em oposição com parcerias. Como tornar uma parceira sinérgica entre

trabalhadores do serviço público com diferentes identidades profissionais?

A partir destes questionamentos geradores, buscou-se na literatura, à luz do

pensamento sistêmico e da teoria da complexidade, não suas respostas objetivas, – já que

são questionamentos que devem nos conduzir à reflexão – mas uma forma de

compreensão do modelo de escola atual e assim identificar a necessidade conceitual de

tais políticas adentrarem os espaços escolares a fim de implementarem uma

formação/desenvolvimento integral.

Complexidade – Estagnação da escola – Currículo escolar -

Pensamento sistêmico

A escola, em seu modelo atual, com a divisão por disciplinas, com a fragmentação

do conhecimento, tem enfrentado uma série de problemas que lhe impedem de avançar

no sentido da formação humana integral. O sistema curricular vigente, apesar de ter

servido aos interesses da produção do conhecimento no passado, já não encontra um

horizonte tão promissor quando observado a partir da perspectiva da integralidade do

sujeito, das transformações sociais, do avanço das tecnologias de informação e

comunicação e do sistema capitalista neoliberal.

Acompanhando o pensamento de Capra (2012), que critica a permanência da visão

mecanicista do século XVII na ciência, economia e política, embora o método cartesiano-

newtoniano tenha promovido grandes avanços para o pensamento humano, ele reduziu a

9

percepção do todo a pequenas partes. Essa fragmentação se estendeu às instituições, à

sociedade e às ideias, gerando crises que hoje reverberam na natureza e na vida cotidiana,

tais como o consumismo, a violência, a poluição, as crises energéticas, a crise de

princípios e de direitos humanos básicos, ao que ele chama de “crise de percepção”5.

Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos

biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para

descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva

ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece.

Precisamos, pois, de um novo 'paradigma'... (CAPRA, 2012, p.16)

São muitas as críticas que tratam da inoperância da escola, da sua pouca eficiência.

Os discursos mais comuns tratam da sua ineficiência para a formação crítica cidadã, da

sua baixa serventia na formação dos estudantes, alinhada a uma responsabilização do

humano diante da suposta ineficiência do sistema escolar. Os baixos índices nas

avaliações internacionais colocam como central a baixa produtividade dos professores,

que por sua vez direcionam a responsabilidade ao pouco interesse dos estudantes e na

ausência de participação dos pais e responsáveis na vida escolar dos meninos e meninas.

A fragmentação não está apenas na forma como os conteúdos curriculares são

apresentados pela escola, mas principalmente nos reflexos que esta forma de pensamento

gera no campo social.

O eixo principal da crítica à escola fragmentada atual se dá no âmbito das relações

com o conhecimento, uma vez que a linearidade do pensamento cartesiano-newtoniano,

assentado na escolarização através de um currículo orientado por disciplinas, não tem

servido para desenvolver uma compreensão da complexidade da existência humana. É

necessário que o pensamento saia de uma perspectiva linear, para uma perspectiva da

complexidade, para uma consciência ecológica que possibilita a compreensão do todo

que envolve a formação humana integral. Segundo Capra (2012):

O pensamento racional é linear, ao passo que a consciência ecológica decorre

de uma intuição de sistemas não-lineares. Uma das coisas mais difíceis de

serem entendidas pelas pessoas em nossa cultura é o fato de que se fazemos

algo que é bom, continuar a fazê-lo não será necessariamente melhor. (p.40)

Apesar de o pensamento cartesiano-newtoniano ter significado, no passado, um

grande avanço para a ciência e para o entendimento da ciência, ao colocar a razão como

o centro do desenvolvimento da ciência, ao proporcionar a quebra de paradigma do

5 Capra, 2012.

10

pensamento cristão, movido pelo dogma religioso, com o avanço da humanidade, essa

forma de estruturar a ciência e consequentemente o pensamento humano, conduziu a

sociedade a se auto compreender de maneira linear, reverberando numa processo de

formação altamente antiecológico. No momento em que se parte para se pensar as partes,

se perde a possibilidade de compreensão do todo complexo presente no estudo das

ciências naturais. O sistema conduziu o mundo a pensar na intervenção e não na

prevenção. Na lógica mecanicista, se faz o que se pensa que deve ser feito, como

dispositivos acionados para cumprir expectativas forjadas numa era patriarcal, centrada

na "noção do homem como dominador da natureza e da mulher", na "crença no papel

superior da mente racional (...) apoiadas e encorajadas pela tradição judaico-cristã, que

adere à imagem de um deus masculino, personificação da razão". (Capra, 2012, p. 40)

O currículo escolar, através de sua separação por disciplinas, serve ainda como

ponto de partida para o desenvolvimento da escolarização. A supremacia do

conhecimento fragmentado em disciplinas impede frequentemente a relação entre as

partes e o todo, e "deve ser substituída por um modo de conhecimento capaz de apreender

os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto. (...) É preciso ensinar os

métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as influências recíprocas entre as

partes e o todo em um mundo complexo." (Morin, 2012, p.16)

Diante desse panorama da complexidade, o modelo educacional vigente fica com

suas finalidades em xeque. Conduzir a formação das futuras gerações dentro de uma

escola focada no objetivismo produtivo, que conduz ao pensamento fragmentado, que

pensa suas finalidades apenas para a formação de jovens que alimentem um desejo de

futuro incerto (Hernández, 2006) e que gera uma experiência social competitiva e

igualmente fragmentada, vai de encontro aos anseios de uma educação que contemple a

formação humana integral, “em outra lógica que não responda à uma expectativa do dia

de amanhã ou se adaptar de maneira subordinada à triunfante economia de mercado”

(Hernández, 2006, p.46). No âmbito da saúde, pensar os jovens como futuros

trabalhadores que tenham como ponto de partida a prevenção, a partir da compreensão da

totalidade de sua natureza humana, de seu corpo, é uma tentativa de superação da

formação fragmentada, focada no remediar a doença.

11

APLICABILIDADE DO PSE E A EDUCAÇÃO INTEGRAL

A intersetorialidade proposta no PSE, iniciada pelo Decreto interministerial da

saúde e educação, é uma inciativa positiva se pensada a partir da superação do modelo

fragmentado de gestão dos sistemas. Se pretende unir esforços para desenvolver uma

formação humana que de atenção às questões básicas de saúde e educação para mobilizar

a formação de indivíduos que se compreendam em desenvolvimento, considerando suas

relações com o todo complexo da existência humana, a partir do cuidado da saúde. Mas

qual seria a concepção de educação integral que se pretende aplicar através do PSE?

Os documentos elaborados sobre o programa não dão uma indicação clara sobre

a concepção de Educação Integral que se pretende alcançar. Ao contrário disso, os

discursos oficiais são difusos e não esclarecem qual a política norteadora para a educação,

não tratam das bases teórico-metodológicas que a proposta, especificamente, se assenta.

A proposta se alinha, então com as propostas já existentes nas redes de ensino. Em sua

aplicabilidade, o Programa Saúde na Escola abre as portas da escola para que

profissionais da Saúde e também da Assistência Social desenvolvam trabalhos de cunho

pedagógico preventivo. Neste sentido, foi necessário buscar nos documentos do Estado

de Santa Catarina a proposição de Educação Integral.

Numa das dimensões do programa, ações pedagógicas são elaboradas por

profissionais da educação visando avaliações diagnósticas que permitam ações no campo

da saúde. Por outro lado, ações de saúde através prevenção de doenças e de assistência

social através promoção da cultura da paz auxiliam no desenvolvimento pedagógico. Mas

como realizar tais ações diante do modelo de escola praticado? Modelo na qual o

currículo, a relação com o tempo e sua estrutura de aplicabilidade encontram-se

distorcidos – se relacionarmos com a crise de percepção que evidencia Fritjof Capra6.

Diante disso, a Escola Pública Integrada surge como uma possibilidade de

desenvolvimento de uma formação/desenvolvimento numa perspectiva da integralidade.

O Projeto EPI, elaborado pela Secretaria de Estado da Educação, Ciência e

Tecnologia (SED) apresenta os “princípios conceituais e operacionais” norteadores do

“processo de implantação das Escolas Públicas Integradas (EPIs) em Santa Catarina”,

6 Para uma compreensão complementar ao livro de Fritjof Capra, ver o filme Mindwalk (1990) do diretor

Bernt Capra – título do filme no Brasil: “O ponto de mutação”.

12

pautada no “conceito de escola integrada à sua comunidade e seus recursos educativos,

em currículo em tempo integral e na gestão compartilhada da educação pública entre

estado e município” (Santa Catarina, 2005, p.2).

Participaram das discussões que geraram o projeto a equipe técnica da SED,

Gerentes Regionais de Ensino, gestores de escola e demais profissionais da educação.

Segundo o documento, a proposta “busca ressignificar substancialmente o conceito de

ESCOLA, (...) articulando as categorias ‘Escola’ como espaço social de aprendizagem;

de ‘Pública’ como direito inalienável e intransferível de todos e de ‘Integrada’ como

prática articuladora de todas as experiências coletivas do processo de formação humana”.

(Santa Catarina, 2005, p.2-3)

O documento apresenta como meta “ampliar progressivamente a oferta de

educação escolar para até oito horas diárias através de atividades curriculares integradas”.

Um destaque a ser dado é a ênfase na gestão compartilhada entre estado e municípios,

evidenciando a proposta como, sendo também, um mecanismo facilitador da

Intersetorialidade.

A proposta de Educação Integral está diretamente ligada ao currículo em tempo

integral. Pensada em três dimensões, a dimensão didático-pedagógica é entendida através

do “oferecimento de múltiplas oportunidades de aprendizagem” como condição

necessária “para a formação humana plena”, incorporando “atividades para o

desenvolvimento de competências cognitivas e atitudinais necessárias para a formação

cidadã. Na dimensão social e política da educação, “a escola é o espaço de

democratização da educação” onde “o currículo deve incluir atividades de formação

humana amplas e diversificadas”, visando a ampliação do tempo pedagógico. Já na

dimensão político-programática, o projeto visa “contribuir para o desenvolvimento

regional e local”, trazendo a descentralização e a democracia participativa, a flexibilidade

para a organização e funcionamento da escola, e a política catarinense de municipalização

como elementos integrantes do projeto, que também está vinculado à “meta nacional de

ampliação do tempo pedagógico, com tempo integral” para 2010, além de outras metas

do MEC (Santa Catarina, 2005, p.4-5)

O projeto EPI apoia-se nos fundamentos teórico-metodológicos da proposta

curricular de SC, devendo, as escolas, “compartilhar a mesma essência educativa ao

desenvolver atividades específicas de acordo com o PPP de cada escola, (...) entendido

como um processo democrático de tomada de decisões”. (Santa Catarina, 2005, p.6)

13

O Currículo é compreendido, não como um elemento neutro da ação educativa,

mas como “uma construção histórico-social refletida no Projeto Político Pedagógico.

Apresenta em destaque indicando que o currículo na EPI deve contemplar as categorias

da totalidade, flexibilidade, gestão educativa, concepção de avaliação e concepção

sócio-histórica de aprendizagem. Sobre a hierarquização das disciplinas, indica que a

organização curricular deve “evitar a fragmentação em disciplinas tradicionais em um

turno e atividades ‘novas ou diversificadas’ em outro turno”. Indica também que “é

importante manter equilíbrio entre atividades de caráter mais lúdico e aquelas com

características acadêmicas” (Santa Catarina, 2005, p.7).

Nos relatos de experiência apresentados pelos municípios que já praticam a

intersetorialidade, dentro do Seminário, foi possível identificar que a intersetorialidade,

expressada pela ideia de rede, é um desafio em que a escola é convidada (através de

decreto) a se inserir com a finalidade de auxiliar na expansão deste conceito, que está

mais próximo do campo da saúde. As “redes de atenção básica da saúde” encontram na

escola um lugar chave, um ponto de partida para alcançar as comunidades com eficiência,

uma vez que a escola, através da política programática do Estado, é o lugar comum da

agenda política.

Com o foco voltado para a escola, ao mesmo tempo em que se determina um alto

grau de importância a ela, se torna necessário resolver suas dificuldades expressadas pelo

modelo vigente. Busca-se, então, na proposta de educação de tempo integral a ampliação

do tempo da escola, necessário para a implementação da agenda política. O debate da

Educação Integral pode significar o fortalecimento do status atual da escola,

principalmente se pensarmos que é necessário refletir e transformar a escola, pesar seu

currículo como percurso e não como fim, mobilizar a relação com o espaço da escola.

Quando profissionais de saúde e educação são designados a compartilhar suas

funções, com professores organizando atividades pedagógicas que sirvam de coleta de

dados para profissionais de saúde e assistência social, ou profissionais da saúde e

assistência social ocupando o espaço da escola para desenvolver atividade pedagógicas

que auxiliem na prevenção de doenças e cultura da paz, o currículo passa a ser o ponto

crítico a ser pensado. O currículo não pode ser visto apenas como um aspecto isolado das

unidades escolares, pois é a figura central que determinará as dimensões que se pretende

para a educação integral.

14

A grande contradição do que se evidencia através da proposta de formação integral

que vem a reboque do Programa Saúde na Escola é que, apesar da aparente

democratização da escola, solução das emergenciais demandas de saúde, da superação da

vulnerabilidade social através da promoção da cultura da paz, da ampliação da função

social da escola e a valorização dos territórios e culturas, o que caminha conjuntamente

com esse discurso consensual de benefícios sociais é uma agenda política neoliberal, que

exclui radicalmente qualquer possibilidade de crítica, já que raramente a sociedade se

colocará contrária ao desenvolvimento saudável das crianças e jovens.

O conceito de rede passa a ser um elemento abarcador. A intersetorialidade

pretendida pela agenda política do PSE encontra terreno fértil na teoria da complexidade

e no pensamento sistêmico. “Quanto mais estudamos o mundo vivo, mais nos percebemos

de que a tendência para a associação, para o estabelecimento de vínculos, para viver uns

dentro de outros e cooperar, é uma característica especial dos organismos vivos” (Capra

2012, p. 272). A relação entre os setores na promoção da intersetorialidade, entre os

indivíduos que compõem os setores dilui a responsabilidade pelo desenvolvimento da

política, divide não apenas as ações positivas durante a realização, mas as consequências

das ações. Diante de um insucesso do modelo, a superação do fracasso depende dos

profissionais engajados. A superação que a agenda invisível traz é o fato de que a

integralidade das relações entre setores permita uma invisibilidade da fragmentação

praticado pelo modelo neoliberal.

Ainda que a escola, com todas as dificuldades que enfrenta a partir do esgotamento

de seu modelo e da fragmentação do currículo, ela se apresenta como uma instituição de

fundamental importância aos interesses hegemônicos. A apropriação de certas palavras

chaves do pensamento sistêmico coloca nos discursos oficiais uma aura de pungente

magnetismo consensual, na tentativa de inviabilizar qualquer pensamento crítico que se

proponha a questionar os interesses existentes por detrás da implementação. Os discursos

oficiais sugerem a necessidade de enfrentamento das demandas materiais das

comunidades através da escola, dos sistemas de saúde e da assistência social, por meio da

adesão dos profissionais que, seduzidos pelo discurso aparente e envolvidos pelas

necessidades, acabam com poucas alternativas de reflexão. O desafio premente que se

impõe, tanto aos profissionais da saúde, educação e assistência social, está em

compreender quais os interesses dessa agenda e a serviço de quem que a política

programática, implementada pelo Estado, responde.

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Referencial Teórico:

CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente.

30ªed. São Paulo: Cultrix, 2012.

CAPRA, Bernet. Mindwalk (O ponto de mutação). Alemanha, 1990 - Filme: 112

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FREIRE, Paulo. Pedgogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43ªed.

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