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Educação Integral no Programa Saúde na Escola: uma
análise na perspectiva de um educador
Éverton Vasconcelos de Almeida, Me.
Resumo
Apesar de todas as dificuldades conjunturais enfrentadas pela escola, ela segue guardando um papel
fundamental para a promoção de políticas públicas que visam promover melhorias na sociedade. A partir
das anotações realizadas no Seminário do Programa Saúde na Escola (PSE): uma Rede de
Corresponsabilidades na Atenção Básica, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina em
parceria com o Governo Federal, através das Secretarias de Estado da Saúde (SES), Educação (SED) e
Assistência Social (SEAS), foram selecionadas palavras chaves que serviram de base para pensar a relação
entre a perspectiva do pensamento sistêmico/teoria da complexidade com os discursos oficiais presentes
tanto nos documentos do PSE como, também, nos discursos utilizados em prol do engajamento dos
profissionais da educação à implantação e implementação do Programa. Ainda que na descrição do
programa seja apresentada a proposta da educação integral, os documentos orientadores não apresentam
qual a visão de educação integral, quais os aportes teóricos, concepções e finalidades.
Palavras Chaves: Educação Integral, Intersetorialidade, Saúde e Educação;
INTRODUÇÃO
A compreensão do outro requer a consciência
da complexidade humana.
Edgar Morin (p.88)
Este trabalho pretende analisar, à luz da Teoria da Complexidade, do Pensamento
sistêmico e da Ecopedagogia, a forma como certas palavras-chaves desse arcabouço são
apropriadas pelo sistema vigente e repetidas nos discursos oficiais, nos documentos que
direcionam as políticas educacionais no âmbito da Secretaria Estadual de Educação do
Estado de Santa Catarina. Neste sentido, o enfoque será refletir sobre a seguinte questão:
de que forma as políticas públicas se apropriaram dos conceitos da teoria da
complexidade, do pensamento sistêmico e da Ecopedagogia para reforçar os discursos
hegemônicos? Para procurar compreender estes conceitos que são bastante abarcadores e
envolvem muitos elementos a serem pensados, o recorte será dado através do
embasamento nos trabalhos de Edgar Morin e Fritjof Capra.
2
A partir da observação participante realizada no Seminário do Programa Saúde na
Escola (PSE): uma Rede de Corresponsabilidades na Atenção Básica, promovido no
início do ano de 2014 pelo Governo do Estado de Santa Catarina em parceria com o
Governo Federal, através das Secretarias de Estado da Saúde (SES), Educação (SED) e
Assistência Social (SEAS), foram selecionadas palavras chaves que serviram de base para
pensar a relação entre a perspectiva do pensamento sistêmico/teoria da complexidade com
os discursos oficiais presentes tanto nos documentos do PSE como, também, nos
discursos utilizados em prol do engajamento dos profissionais da educação à implantação
e implementação do Programa.
Apesar de todas as dificuldades conjunturais enfrentadas pela escola, ela segue
guardando um papel fundamental para a promoção de políticas públicas que visam
promover melhorias na sociedade. Neste sentido, é possível tomar como exemplo o
Programa Saúde na Escola, instituído pelo Governo Federal em 2007, com a finalidade
de integrar intersetorialmente as áreas da Saúde e da Educação. Segundo o sítio1 do
programa na internet, “as políticas de saúde e educação voltadas às crianças, adolescentes,
jovens e adultos da educação pública brasileira se unem para promover saúde e educação
integral”.
Ainda que na descrição do programa seja apresentada a proposta da educação
integral, os documentos orientadores não apresentam qual a visão de educação integral,
quais os aportes teóricos, concepções e finalidades. Para se chegar a tais conceitos será
apresentado uma análise do Projeto Escola Pública Integrada (EPI), do governo do Estado
de Santa Catarina, a fim de perceber quais as relações se encontram entre o que o
Programa Saúde na Escola pretende, o que foi apresentado no seminário PSE: uma Rede
de Corresponsabilidades na Atenção Básica, e suas relações com a educação integral
contida no Projeto EPI da Secretaria de Estado da Educação.
PSE - PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA
O Programa Saúde na Escola (PSE) foi instituído através do Decreto Nº 6.286, de
5 de dezembro de 2007, tendo como eixo central a proposta de intersetorialidade entre os
Ministérios da Saúde e Educação na promoção da saúde da população através das escolas
1 http://dab.saude.gov.br/portaldab/pse.php Acessado em 01/07/2014
3
públicas. De iniciativa do Governo Federal, o Decreto foi assinado pelo então Presidente
da República Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Ministro da Educação Fernando Haddad e
pelo Ministro da Saúde José Gomes Temporão. Segundo o Decreto que institui o
programa, em seu artigo primeiro:
Art. 1º Fica instituído, no âmbito dos Ministérios da Educação e da Saúde, o
Programa Saúde na Escola - PSE, com finalidade de contribuir para a formação
integral dos estudantes da rede pública de educação básica por meio de ações
de prevenção, promoção e atenção à saúde.
Como o PSE configura-se como proposta intersetorial, Ministério da Educação
(MEC) e Ministério da Saúde (MS) apresentam o programa de maneira muito semelhante,
buscando representar as ações de forma conjunta, numa espécie de alinhamento do
discurso. Conforme o Portal do MEC na internet, o PSE “visa à integração e articulação
permanente da educação e da saúde, proporcionando melhoria da qualidade de vida dos
educandos”. Para o MEC, o objetivo principal do programa está em:
[...] contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de ações de
promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos à saúde e atenção à saúde,
visando o enfrentamento das vulnerabilidades que comprometem o pleno
desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens da rede pública de ensino.
(Portal do MEC, 2013)
O Ministério da Saúde apresenta uma linguagem muito semelhante, quando se
refere aos objetivos do programa. A fim de orientar sua implementação, foi elaborado um
material denominado “Passo a Passo PSE Programa Saúde na Escola: tecendo caminhos
da intersetorialidade” (2011). Embora esse manual passo a passo seja assinado na capa
por ambos os ministérios, na ficha catalográfica, é o Ministério da Saúde que consta como
elaborador da proposta. Segundo o MS (2011, p.6):
O Programa Saúde na Escola (PSE) vem contribuir para o fortalecimento de
ações na perspectiva do desenvolvimento integral e proporcionar à
comunidade escolar a participação em programas e projetos que articulem
saúde e educação, para o enfrentamento das vulnerabilidades que
comprometem o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens
brasileiros. Essa iniciativa reconhece e acolhe as ações de integração entre
saúde e educação já existentes e que têm impactado positivamente na qualidade
de vida dos educandos.
Ao analisarmos os objetivos que MEC e MS apresentam, é possível perceber que
ambos trazem a categoria da integralidade a partir de distintas leituras do conceito de
4
integral. Apesar da proximidade dos discursos, faz-se necessário a diferenciação da
aplicabilidade da palavra integral, mesmo que se pretenda um objetivo em comum.
Enquanto que, para o setor da educação a palavra está associada a ideia de formação, para
o setor da saúde, está associada a ideia de desenvolvimento. Ainda, poderíamos afirmar
ser irrelevantes tal diferenciação, uma vez que no formar-se está contido o desenvolver-
se e que não há um desenvolvimento pleno sem formar-se integralmente. O que entra em
questão é a diferenciação entre ambos os setores, na forma em que ambos se apresentam,
dos lugares em que os dois setores se forjam, se concentram e se defendem. Mesmo que
se pretenda integrar saúde e educação, os setores falam de locais distintos, com
finalidades igualmente distintas, mantendo o sentido fragmentado das organizações
institucionais.
Ainda que a proposta de intersetorialidade específica entre saúde e educação esteja
assentada numa perspectiva de complexidade e inter-relação de ambos, há uma intensa
preservação dos lugares educação / saúde, presente nos discursos oficiais do PSE. O
Decreto Nº 6.286 que institui o programa deixa bastante evidente a ideia de que o
programa trata de uma ação preventiva de saúde através da escola. Nos objetivos
elencados pelo Decreto, há uma via única de sentido, onde a escola é o território em
disputa, sendo ocupado pelo setor da saúde a fim de promover a prevenção, a melhoria
das condições de saúde da população. Conforme o Artigo 2° do Decreto, são objetivos do
PSE:
I - promover a saúde e a cultura da paz, reforçando a prevenção de agravos à
saúde, bem como fortalecer a relação entre as redes públicas de saúde e de
educação;
II - articular as ações do Sistema Único de Saúde - SUS às ações das redes de
educação básica pública, de forma a ampliar o alcance e o impacto de suas
ações relativas aos estudantes e suas famílias, otimizando a utilização dos
espaços, equipamentos e recursos disponíveis;
III - contribuir para a constituição de condições para a formação integral de
educandos;
IV - contribuir para a construção de sistema de atenção social, com foco na
promoção da cidadania e nos direitos humanos;
V - fortalecer o enfrentamento das vulnerabilidades, no campo da saúde, que
possam comprometer o pleno desenvolvimento escolar;
VI - promover a comunicação entre escolas e unidades de saúde, assegurando
a troca de informações sobre as condições de saúde dos estudantes; e
VII - fortalecer a participação comunitária nas políticas de educação básica e
saúde, nos três níveis de governo.
Nesta via de sentido único, portanto, o setor da educação encontra-se a serviço do
setor da saúde. A escola oportuniza os espaços necessários para que se promovam ações
5
que futuramente resultem na diminuição das demandas de saúde da população, através da
prevenção. Embora haja uma contrapartida do setor da saúde para a educação, através da
ideia de que crianças saudáveis aprendem melhor, as demandas da educação se
relacionam mais com o campo político ideológico, do princípio e conceito atribuído à
formação integral, do que uma demanda mais específica como é a da saúde. Esta análise
não pretende desqualificar o PSE, ou afirmar que a prevenção da saúde de crianças e
adolescentes não seja algo de fundamental para o desenvolvimento humano. Ao contrário,
é urgente que o país resolva os problemas que a falta de cuidado com a saúde e o
desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, problemas estes que refletem o
mau desempenho durante o processo de escolarização.
No campo político, promover a prevenção da saúde na escola significa, promover
a formação de futuros trabalhadores saudáveis, assim como, no campo econômico,
desonerar o Estado dos gastos com saúde, através da utilização otimizada dos recursos na
prevenção de doenças. Mesmo que os discursos oficiais representam uma camada
aparente de benefícios e que as dificuldades de saúde da população mais necessitada
batam à porta dos profissionais de ambos os setores, é preciso reconhecer que tais
políticas estão em consonância com uma agenda que está mais a serviço dos interesses
econômicos do que dos interesses de formação/desenvolvimento humana(o) integral.
SEMINÁRIO DO PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA (PSE): UMA REDE DE
RESPONSABILIDADES NA ATENÇÃO BÁSICA
O Seminário teve como objetivo unir profissionais de saúde e da educação da
Grande Florianópolis num mesmo espaço, para que experiências das Unidades Escolares
e Postos de Saúde que já estavam trabalhando no âmbito do programa fossem
compartilhadas e, assim, estimular a implantação e implementação de ações a serem
realizadas pelos profissionais de ambos os setores, dentro do Programa Saúde na Escola,
nas localidades que ainda não possuem projetos dentro do PSE. A finalidade do evento
estava em estimular a adesão de profissionais, gestores educacionais, professores e
demais profissionais do setor da saúde e assistência social. Conforme seu edital de
convocação encaminhado às escolas, os objetivos do seminário foram:
- Apoiar os profissionais de saúde e educação na implantação e implementação
das ações do Programa Saúde na Escola;
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- Fortalecer a intersetorialidade das Secretarias municipais de Saúde, Educação
e Assistência Social para a consolidação das ações do Programa Saúde na
Escola;
- Discutir processos de trabalho na perspectiva de rede na comunidade escolar;
Na abertura do evento, uniram-se os representantes das Secretarias de Saúde e
Educação em falas bastante consonantes. Os bons índices do Estado de Santa Catarina
em ambos os setores foram apresentados sem maiores aprofundamentos a seu respeito,
apenas evidenciando esse fato como um indicador de sucesso da gestão. Também se fez
presente nestas falas um regionalismo exacerbado pela afirmação de que “no sul temos e
convivemos com pessoas de bom nível [sic]”2, também uma certa exaltação aos
profissionais que se dispuseram a participar do seminário, destacando o
comprometimento, com ênfase na importância da qualidade pessoal dos profissionais e
que naquele espaço estavam reunidas pessoas comprometidas com a mudança. Porém,
minha participação no seminário se deu mais por uma disponibilidade funcional, já que
as escolas eram obrigadas a enviar pelo menos um representante, e eu era o único
professor da escola que poderia ali estar sem afetar o andamento das aulas, fato que se
distanciava do interesse pessoal ou até mesmo da unidade escolar, na implementação do
PSE na comunidade. É possível identificar essa chamada dos profissionais no manual
“Passo a passo para adesão” ao PSE, lançado no primeiro semestre de 2014, onde o
programa é classificado como “uma estratégia de integração da saúde e educação para o
desenvolvimento da cidadania e da qualificação das políticas públicas brasileiras. Sua
sustentabilidade e qualidade dependem de todos nós!” (MS; MEC, 2011, p.3)
Ao avançarem as falas de abertura, o discurso embutido e que soava sutilmente –
ao mesmo tempo que se enalteciam as qualidades pessoais dos profissionais – era o da
responsabilização dos professores e dos médicos pelo fracasso dos sistemas de saúde e
educação. Ao centralizarem o discurso nos profissionais (sujeitos às intempéries materiais
do próprio sistema), chamando-os à responsabilidade3, convocando-os à participação,
colocava-se luz sobre os problemas enfrentados pelo sistema de forma localizada, com a
ideia de que a solução seria apresentada nos dias do evento e que havia a necessidade de
adesão dos profissionais para se promover o sucesso.
2 Anotações pessoais na conferência de abertura do Seminário. 3 Fala do representante da Secretaria de Estado da Educação: “ Professor: assuma sua reponsabilidade!
[sic]”
7
A cada apresentação realizada, como metodologia de análise, fui selecionando
palavras-chaves que se repetiam como clichês acadêmicos e que auxiliassem na
compreensão do que estava sendo apresentado naquele evento. Estas palavras
evidenciaram um caminho que possibilitou a busca por um referencial teórico que
permitisse uma discussão acerca dos temas essenciais abordados, e que permitissem um
olhar mais aprofundado sobre as intenções da política programática apresentada através
do PSE, que se propõe, no campo da educação, à uma formação integral. As palavras
foram organizadas em um quadro conceitual, relacionando-se umas com as outras através
de oposições e proximidades, pensadas a partir da ideia de contradição, de
(in)compatibilidades, dispostas em torno de uma palavra central, conforme a imagem
abaixo:
A ideia de rede foi apresentada como eixo central de aplicabilidade do Programa
Saúde na Escola. Conceituada como “a sinergia através da convergência de ações no
âmbito das Políticas Públicas, configurando uma relação imbricada de esforços
governamentais, empresariais e civis”4, não houve um aprofundamento teórico na
conceituação da categoria REDE, deixando em aberto a visão de possíveis autores que
abordam essa temática. Essa rasa conceituação apresentada no seminário, trouxe uma
ideia de rede de forma genérica e generalizada, centrada na empiria de que ela permite
ações sem grandes aportes financeiros, uma vez que um setor pode contribuir com o que
falta no outro setor, de que o mau uso do potencial humano é o principal problema das
redes de saúde e educação, já que os recursos financeiros são disponibilizados, mas mal
empregados. Aparentemente se apresenta uma relação de rede colaborativa,
4 Anotações pessoais na conferência de abertura do Seminário. Slide apresentado pela Secretaria de
Estado da Saúde Jane Lane
8
desresponsabilizando a gestão central, o que indiretamente resulta na culpabilização dos
profissionais quando há falhas, excluindo a política pública de sua responsabilidade
diante do fracasso, mas enaltecendo-a diante do sucesso.
No quadro, então, aparece a Intersetorialidade em oposição a complexidade.
Como gerar uma intersetorialidade entre áreas que possuem complexidades distintas?
Interdependência em oposição a autonomia. Quais as possibilidades de interdependência
existentes entre setores autônomos? Sistema colaborativo em oposição a competências.
Quais as colaborações podem ser desenvolvidas entre as áreas de saúde e educação, uma
vez que a escola é o território a ser ocupado e que cada área possui competências distintas?
Sinergia em oposição com parcerias. Como tornar uma parceira sinérgica entre
trabalhadores do serviço público com diferentes identidades profissionais?
A partir destes questionamentos geradores, buscou-se na literatura, à luz do
pensamento sistêmico e da teoria da complexidade, não suas respostas objetivas, – já que
são questionamentos que devem nos conduzir à reflexão – mas uma forma de
compreensão do modelo de escola atual e assim identificar a necessidade conceitual de
tais políticas adentrarem os espaços escolares a fim de implementarem uma
formação/desenvolvimento integral.
Complexidade – Estagnação da escola – Currículo escolar -
Pensamento sistêmico
A escola, em seu modelo atual, com a divisão por disciplinas, com a fragmentação
do conhecimento, tem enfrentado uma série de problemas que lhe impedem de avançar
no sentido da formação humana integral. O sistema curricular vigente, apesar de ter
servido aos interesses da produção do conhecimento no passado, já não encontra um
horizonte tão promissor quando observado a partir da perspectiva da integralidade do
sujeito, das transformações sociais, do avanço das tecnologias de informação e
comunicação e do sistema capitalista neoliberal.
Acompanhando o pensamento de Capra (2012), que critica a permanência da visão
mecanicista do século XVII na ciência, economia e política, embora o método cartesiano-
newtoniano tenha promovido grandes avanços para o pensamento humano, ele reduziu a
9
percepção do todo a pequenas partes. Essa fragmentação se estendeu às instituições, à
sociedade e às ideias, gerando crises que hoje reverberam na natureza e na vida cotidiana,
tais como o consumismo, a violência, a poluição, as crises energéticas, a crise de
princípios e de direitos humanos básicos, ao que ele chama de “crise de percepção”5.
Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos
biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para
descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva
ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece.
Precisamos, pois, de um novo 'paradigma'... (CAPRA, 2012, p.16)
São muitas as críticas que tratam da inoperância da escola, da sua pouca eficiência.
Os discursos mais comuns tratam da sua ineficiência para a formação crítica cidadã, da
sua baixa serventia na formação dos estudantes, alinhada a uma responsabilização do
humano diante da suposta ineficiência do sistema escolar. Os baixos índices nas
avaliações internacionais colocam como central a baixa produtividade dos professores,
que por sua vez direcionam a responsabilidade ao pouco interesse dos estudantes e na
ausência de participação dos pais e responsáveis na vida escolar dos meninos e meninas.
A fragmentação não está apenas na forma como os conteúdos curriculares são
apresentados pela escola, mas principalmente nos reflexos que esta forma de pensamento
gera no campo social.
O eixo principal da crítica à escola fragmentada atual se dá no âmbito das relações
com o conhecimento, uma vez que a linearidade do pensamento cartesiano-newtoniano,
assentado na escolarização através de um currículo orientado por disciplinas, não tem
servido para desenvolver uma compreensão da complexidade da existência humana. É
necessário que o pensamento saia de uma perspectiva linear, para uma perspectiva da
complexidade, para uma consciência ecológica que possibilita a compreensão do todo
que envolve a formação humana integral. Segundo Capra (2012):
O pensamento racional é linear, ao passo que a consciência ecológica decorre
de uma intuição de sistemas não-lineares. Uma das coisas mais difíceis de
serem entendidas pelas pessoas em nossa cultura é o fato de que se fazemos
algo que é bom, continuar a fazê-lo não será necessariamente melhor. (p.40)
Apesar de o pensamento cartesiano-newtoniano ter significado, no passado, um
grande avanço para a ciência e para o entendimento da ciência, ao colocar a razão como
o centro do desenvolvimento da ciência, ao proporcionar a quebra de paradigma do
5 Capra, 2012.
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pensamento cristão, movido pelo dogma religioso, com o avanço da humanidade, essa
forma de estruturar a ciência e consequentemente o pensamento humano, conduziu a
sociedade a se auto compreender de maneira linear, reverberando numa processo de
formação altamente antiecológico. No momento em que se parte para se pensar as partes,
se perde a possibilidade de compreensão do todo complexo presente no estudo das
ciências naturais. O sistema conduziu o mundo a pensar na intervenção e não na
prevenção. Na lógica mecanicista, se faz o que se pensa que deve ser feito, como
dispositivos acionados para cumprir expectativas forjadas numa era patriarcal, centrada
na "noção do homem como dominador da natureza e da mulher", na "crença no papel
superior da mente racional (...) apoiadas e encorajadas pela tradição judaico-cristã, que
adere à imagem de um deus masculino, personificação da razão". (Capra, 2012, p. 40)
O currículo escolar, através de sua separação por disciplinas, serve ainda como
ponto de partida para o desenvolvimento da escolarização. A supremacia do
conhecimento fragmentado em disciplinas impede frequentemente a relação entre as
partes e o todo, e "deve ser substituída por um modo de conhecimento capaz de apreender
os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu conjunto. (...) É preciso ensinar os
métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as influências recíprocas entre as
partes e o todo em um mundo complexo." (Morin, 2012, p.16)
Diante desse panorama da complexidade, o modelo educacional vigente fica com
suas finalidades em xeque. Conduzir a formação das futuras gerações dentro de uma
escola focada no objetivismo produtivo, que conduz ao pensamento fragmentado, que
pensa suas finalidades apenas para a formação de jovens que alimentem um desejo de
futuro incerto (Hernández, 2006) e que gera uma experiência social competitiva e
igualmente fragmentada, vai de encontro aos anseios de uma educação que contemple a
formação humana integral, “em outra lógica que não responda à uma expectativa do dia
de amanhã ou se adaptar de maneira subordinada à triunfante economia de mercado”
(Hernández, 2006, p.46). No âmbito da saúde, pensar os jovens como futuros
trabalhadores que tenham como ponto de partida a prevenção, a partir da compreensão da
totalidade de sua natureza humana, de seu corpo, é uma tentativa de superação da
formação fragmentada, focada no remediar a doença.
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APLICABILIDADE DO PSE E A EDUCAÇÃO INTEGRAL
A intersetorialidade proposta no PSE, iniciada pelo Decreto interministerial da
saúde e educação, é uma inciativa positiva se pensada a partir da superação do modelo
fragmentado de gestão dos sistemas. Se pretende unir esforços para desenvolver uma
formação humana que de atenção às questões básicas de saúde e educação para mobilizar
a formação de indivíduos que se compreendam em desenvolvimento, considerando suas
relações com o todo complexo da existência humana, a partir do cuidado da saúde. Mas
qual seria a concepção de educação integral que se pretende aplicar através do PSE?
Os documentos elaborados sobre o programa não dão uma indicação clara sobre
a concepção de Educação Integral que se pretende alcançar. Ao contrário disso, os
discursos oficiais são difusos e não esclarecem qual a política norteadora para a educação,
não tratam das bases teórico-metodológicas que a proposta, especificamente, se assenta.
A proposta se alinha, então com as propostas já existentes nas redes de ensino. Em sua
aplicabilidade, o Programa Saúde na Escola abre as portas da escola para que
profissionais da Saúde e também da Assistência Social desenvolvam trabalhos de cunho
pedagógico preventivo. Neste sentido, foi necessário buscar nos documentos do Estado
de Santa Catarina a proposição de Educação Integral.
Numa das dimensões do programa, ações pedagógicas são elaboradas por
profissionais da educação visando avaliações diagnósticas que permitam ações no campo
da saúde. Por outro lado, ações de saúde através prevenção de doenças e de assistência
social através promoção da cultura da paz auxiliam no desenvolvimento pedagógico. Mas
como realizar tais ações diante do modelo de escola praticado? Modelo na qual o
currículo, a relação com o tempo e sua estrutura de aplicabilidade encontram-se
distorcidos – se relacionarmos com a crise de percepção que evidencia Fritjof Capra6.
Diante disso, a Escola Pública Integrada surge como uma possibilidade de
desenvolvimento de uma formação/desenvolvimento numa perspectiva da integralidade.
O Projeto EPI, elaborado pela Secretaria de Estado da Educação, Ciência e
Tecnologia (SED) apresenta os “princípios conceituais e operacionais” norteadores do
“processo de implantação das Escolas Públicas Integradas (EPIs) em Santa Catarina”,
6 Para uma compreensão complementar ao livro de Fritjof Capra, ver o filme Mindwalk (1990) do diretor
Bernt Capra – título do filme no Brasil: “O ponto de mutação”.
12
pautada no “conceito de escola integrada à sua comunidade e seus recursos educativos,
em currículo em tempo integral e na gestão compartilhada da educação pública entre
estado e município” (Santa Catarina, 2005, p.2).
Participaram das discussões que geraram o projeto a equipe técnica da SED,
Gerentes Regionais de Ensino, gestores de escola e demais profissionais da educação.
Segundo o documento, a proposta “busca ressignificar substancialmente o conceito de
ESCOLA, (...) articulando as categorias ‘Escola’ como espaço social de aprendizagem;
de ‘Pública’ como direito inalienável e intransferível de todos e de ‘Integrada’ como
prática articuladora de todas as experiências coletivas do processo de formação humana”.
(Santa Catarina, 2005, p.2-3)
O documento apresenta como meta “ampliar progressivamente a oferta de
educação escolar para até oito horas diárias através de atividades curriculares integradas”.
Um destaque a ser dado é a ênfase na gestão compartilhada entre estado e municípios,
evidenciando a proposta como, sendo também, um mecanismo facilitador da
Intersetorialidade.
A proposta de Educação Integral está diretamente ligada ao currículo em tempo
integral. Pensada em três dimensões, a dimensão didático-pedagógica é entendida através
do “oferecimento de múltiplas oportunidades de aprendizagem” como condição
necessária “para a formação humana plena”, incorporando “atividades para o
desenvolvimento de competências cognitivas e atitudinais necessárias para a formação
cidadã. Na dimensão social e política da educação, “a escola é o espaço de
democratização da educação” onde “o currículo deve incluir atividades de formação
humana amplas e diversificadas”, visando a ampliação do tempo pedagógico. Já na
dimensão político-programática, o projeto visa “contribuir para o desenvolvimento
regional e local”, trazendo a descentralização e a democracia participativa, a flexibilidade
para a organização e funcionamento da escola, e a política catarinense de municipalização
como elementos integrantes do projeto, que também está vinculado à “meta nacional de
ampliação do tempo pedagógico, com tempo integral” para 2010, além de outras metas
do MEC (Santa Catarina, 2005, p.4-5)
O projeto EPI apoia-se nos fundamentos teórico-metodológicos da proposta
curricular de SC, devendo, as escolas, “compartilhar a mesma essência educativa ao
desenvolver atividades específicas de acordo com o PPP de cada escola, (...) entendido
como um processo democrático de tomada de decisões”. (Santa Catarina, 2005, p.6)
13
O Currículo é compreendido, não como um elemento neutro da ação educativa,
mas como “uma construção histórico-social refletida no Projeto Político Pedagógico.
Apresenta em destaque indicando que o currículo na EPI deve contemplar as categorias
da totalidade, flexibilidade, gestão educativa, concepção de avaliação e concepção
sócio-histórica de aprendizagem. Sobre a hierarquização das disciplinas, indica que a
organização curricular deve “evitar a fragmentação em disciplinas tradicionais em um
turno e atividades ‘novas ou diversificadas’ em outro turno”. Indica também que “é
importante manter equilíbrio entre atividades de caráter mais lúdico e aquelas com
características acadêmicas” (Santa Catarina, 2005, p.7).
Nos relatos de experiência apresentados pelos municípios que já praticam a
intersetorialidade, dentro do Seminário, foi possível identificar que a intersetorialidade,
expressada pela ideia de rede, é um desafio em que a escola é convidada (através de
decreto) a se inserir com a finalidade de auxiliar na expansão deste conceito, que está
mais próximo do campo da saúde. As “redes de atenção básica da saúde” encontram na
escola um lugar chave, um ponto de partida para alcançar as comunidades com eficiência,
uma vez que a escola, através da política programática do Estado, é o lugar comum da
agenda política.
Com o foco voltado para a escola, ao mesmo tempo em que se determina um alto
grau de importância a ela, se torna necessário resolver suas dificuldades expressadas pelo
modelo vigente. Busca-se, então, na proposta de educação de tempo integral a ampliação
do tempo da escola, necessário para a implementação da agenda política. O debate da
Educação Integral pode significar o fortalecimento do status atual da escola,
principalmente se pensarmos que é necessário refletir e transformar a escola, pesar seu
currículo como percurso e não como fim, mobilizar a relação com o espaço da escola.
Quando profissionais de saúde e educação são designados a compartilhar suas
funções, com professores organizando atividades pedagógicas que sirvam de coleta de
dados para profissionais de saúde e assistência social, ou profissionais da saúde e
assistência social ocupando o espaço da escola para desenvolver atividade pedagógicas
que auxiliem na prevenção de doenças e cultura da paz, o currículo passa a ser o ponto
crítico a ser pensado. O currículo não pode ser visto apenas como um aspecto isolado das
unidades escolares, pois é a figura central que determinará as dimensões que se pretende
para a educação integral.
14
A grande contradição do que se evidencia através da proposta de formação integral
que vem a reboque do Programa Saúde na Escola é que, apesar da aparente
democratização da escola, solução das emergenciais demandas de saúde, da superação da
vulnerabilidade social através da promoção da cultura da paz, da ampliação da função
social da escola e a valorização dos territórios e culturas, o que caminha conjuntamente
com esse discurso consensual de benefícios sociais é uma agenda política neoliberal, que
exclui radicalmente qualquer possibilidade de crítica, já que raramente a sociedade se
colocará contrária ao desenvolvimento saudável das crianças e jovens.
O conceito de rede passa a ser um elemento abarcador. A intersetorialidade
pretendida pela agenda política do PSE encontra terreno fértil na teoria da complexidade
e no pensamento sistêmico. “Quanto mais estudamos o mundo vivo, mais nos percebemos
de que a tendência para a associação, para o estabelecimento de vínculos, para viver uns
dentro de outros e cooperar, é uma característica especial dos organismos vivos” (Capra
2012, p. 272). A relação entre os setores na promoção da intersetorialidade, entre os
indivíduos que compõem os setores dilui a responsabilidade pelo desenvolvimento da
política, divide não apenas as ações positivas durante a realização, mas as consequências
das ações. Diante de um insucesso do modelo, a superação do fracasso depende dos
profissionais engajados. A superação que a agenda invisível traz é o fato de que a
integralidade das relações entre setores permita uma invisibilidade da fragmentação
praticado pelo modelo neoliberal.
Ainda que a escola, com todas as dificuldades que enfrenta a partir do esgotamento
de seu modelo e da fragmentação do currículo, ela se apresenta como uma instituição de
fundamental importância aos interesses hegemônicos. A apropriação de certas palavras
chaves do pensamento sistêmico coloca nos discursos oficiais uma aura de pungente
magnetismo consensual, na tentativa de inviabilizar qualquer pensamento crítico que se
proponha a questionar os interesses existentes por detrás da implementação. Os discursos
oficiais sugerem a necessidade de enfrentamento das demandas materiais das
comunidades através da escola, dos sistemas de saúde e da assistência social, por meio da
adesão dos profissionais que, seduzidos pelo discurso aparente e envolvidos pelas
necessidades, acabam com poucas alternativas de reflexão. O desafio premente que se
impõe, tanto aos profissionais da saúde, educação e assistência social, está em
compreender quais os interesses dessa agenda e a serviço de quem que a política
programática, implementada pelo Estado, responde.
15
Referencial Teórico:
CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente.
30ªed. São Paulo: Cultrix, 2012.
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