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ECOGOVERNAMENTALIDADE E MUDANÇA DO CLIMA NO BRASIL: OS DISCURSOS OFICIAIS BRASILEIROS E O PROCESSO
DE REGULAÇÃO DO CLIMA
Tiago Miguel D’Ávila Martins de Freitas1
∗ Augusto Cesar Salomão Mozine∗
2∗
Versão preliminar. Capítulo do livro:
MAURICIO JUNIOR, Alceu; CUNHA, Ricarlos Almagro (org.). Direito e regulação. Curitiba: CRV, 2015, v.1, 256 p.
ISBN: 978-85-444-0507-9
1. INTRODUÇÃO
A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC) de
1992 e o seu Protocolo de Quioto de 1997 estabeleceram compromissos vinculativos
internacionais para redução de gases com efeito de estufa (GEE) de modo a evitar “mudanças
climáticas perigosas”. O Brasil, considerado país em desenvolvimento, não tem esse
compromisso, dado o princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” (art.3o
§1o). O país adotou, contudo, um Plano Nacional sobre Mudança do Clima em 2008, tendo o
Parlamento aprovado no fim de 2009 uma Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº
12.187), vinculando voluntariamente o Brasil a uma redução de GEE de 36,1% a 38,9% até
2020 e que inclui medidas de mitigação tais como o aumento da eficiência energética, a
redução do desmatamento e a reflorestação, a gestão de resíduos, e melhorias na pecuária e na
indústria manufatureira, entre outros.
Este trabalho parte da assunção de que os esforços Brasileiros incluídos nesta Política
podem ser classificados em categorias de governamentalidade1. Governamentalidade é aqui
∗1 Graduado em Biologia Ambiental pela Universidade de Lisboa, mestre em Política Internacional pela Université de Paris XI, Doutorando em Geografia pelo King’s College London, Bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT/Portugal. ∗∗2 Graduado em Relações Internacionais e em Direito pela Universidade Vila Velha, Mestre e Doutor em
Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Bolsista da Coordenação e Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, dos Cursos de Graduação em Direito e Relações Internacionais e Assessor para Pesquisa e Pós-Graduação e Professor da Universidade Vila Velha.
entendida como a indução na sociedade Brasileira de um “regime de verdade” – uma
perspectiva ontológica – pelo governo e instituições políticas, de modo a legitimar certas
ações de gestão coletiva relacionados com o cumprimento dos objetivos do regime de
mudanças climáticas, visando a satisfação de interesses – políticos, econômicos, de poder.
A noção de governamentalidade – ou mentalidade de governo – sublinha a forma
como o pensamento relativo a práticas de governo é coletivo e dado como adquirido, i.e. não
comumente questionado por seus praticantes (DEAN, 1999, p. 6). Governo é aqui
considerado, no seguimento de Foucault, como a “conduta da conduta”, por isso não limitado
ao Estado, mas exercido em todos os níveis da sociedade. Como concerne o moldar da
conduta humana – agindo nos governados como um locus de ação e liberdade – governo
implica não apenas meras relações de poder e autoridade, mas também questões do “eu” e de
identidade (DEAN, 1999, p. 12). É nesse sentido que, nas questões ambientais, a análise de
governamentalidade – ou ecogovernamentalidade – nos permite perceber como posições
adotadas por “sujeitos ambientais” surgem como resultado do envolvimento em lutas de poder
sobre recursos naturais e em relação a novas instituições e mudanças nos jogos de interesse
(AGRAWAL, 2005).
Cada indivíduo pensa sobre o exercício da autoridade com base em teorias, ideias,
filosofias e formas de conhecimento que se constituem a nível cultural e social. Questões
normativas detém assim um importante papel na definição de condutas e, por conseguinte, na
legitimação de políticas. Nas questões ambientais, tanto ao nível das negociações
internacionais como em políticas domésticas, normas internacionais de ambiente2 podem ser
mais ou menos absorvidas por regimes de governo, e.g. a norma de cosmopolitismo –
aprofundando o sentimento de pertença a uma comunidade internacional e homogeneizando a
política mundial3 – ou a de ambientalismo neoliberal – dando aos mecanismos de mercado
grande importância na proteção ambiental4.
1 Os termos Governamentalidade e Ecogorvernamentalidade serão tratados neste ensaio de forma sinônima, sendo que o primeiro será referido conforme sua concepção filosófica em Foucault e o segundo conforme sua aplicação à questão ambiental – no sentido posto por Agrawall – mais especificamente às mudanças climáticas. 2 Segundo Ogley (1996: 166), normas internacionais de ambiente são mudanças realizadas e limitações aceites no comportamento, hábitos e práticas de atores humanos (desde o Estado, a empresas e indivíduos), como resultado de crenças sobre as desvantagens que de outro modo aconteceriam ao ambiente global. 3 Ver, por exemplo a crítica de Doyle e Chaturvedi (2010) à noção de “alma global” nas negociações internacionais do clima. 4 A norma internacional de ambientalismo neoliberal (BERNSTEIN, 2000), estabeleceu-se no portfólio de combate às mudanças climáticas em várias nações e consiste na aceitação de mecanismos de mercado como adjuvantes da proteção ambiental, em detrimento de métodos de comando e controle. No regime internacional de mudanças climáticas esta norma é criticada como favorecendo a “comodificação do clima”, ou uma “acumulação por descarbonização” resultante de uma “colonização de carbono” (BACKSTRAND; LOVBRAND, 2006), onde países industrializados compensam as suas emissões através do investimento em países em desenvolvimento.
Para Foucault (apud DEAN, 1999, p. 12), governamentalidade também tem um
sentido histórico, pois marca a emergência de uma forma distintamente diferente de pensar
sobre e exercer o poder em algumas sociedades, ligada à descoberta de uma nova realidade, a
economia, e preocupada com um novo objeto, a população. Aparece nas sociedades ocidentais
no século XVIII quando a arte de governo do Estado se torna uma atividade distinta.
A biopolítica surge neste contexto como um tipo particular de governamentalidade em
que o objetivo do governo é usar e aperfeiçoar as forças e capacidades da população como
indivíduos vivos, através de aparatos de segurança, regulamentos e normalização estatística,
com a população como objeto de conhecimento das ciências humanas e econômicas.
O advento das questões ambientais fez o conceito de biopolítica de Foucault ser
alargado para abarcar tudo o que é necessário para manter a “vida”, ampliando-a a todo o
planeta, através da criação de diferentes práticas e regulações ambientais. Também chamada
de “governamentalidade verde” (OELS, 2005), normaliza o comportamento individual através
da imposição de códigos de conduta “amigos do ambiente” aos corpos individuais e
policiando a fitness de sobrevivência de todos os organismos. Segundo Malette (2011, p. 16):
[...] podemos ampliar a problematização da governamentalidade moderna ao sugerir que os problemas da ‘vida’, do ‘ambiente’ e do ‘governo’ coincidem agora com a emergência da ‘ecopolítica’, cristalizando, assim, uma relação de poder/saber que reorganiza profundamente de maneira relacional os três movimentos constitutivos da governamentalidade moderna: governo, população e economia política.
Este “biopoder alargado” é acompanhado por uma matematização da “natureza” – o
que segue, no surgimento da biopolítica, a importância política das estatísticas para o
“controle” da população, segundo Foucault – levando ao surgimento de diferentes
racionalidades e tecnologias ecológicas que moldam as “reivindicações de verdades” sobre
formas de conduta ecológicas através das quais é esperado que os indivíduos racionais se
governem a si e aos outros (MALETTE, 2011).
Mais recentemente surge o governo liberal avançado (DEAN, 199; OELS, 2005) que,
coexistindo muitas vezes com a biopolítica, acabou por transformar o espaço discursivo onde
as questões ambientais são discutidas. O governo liberal avançado deve ser compreendido no
contexto do surgimento e intensificação do neoliberalismo nos anos 1970s e 1980s, e se
caracteriza por apresentar o mercado como o princípio organizador das organizações,
incluindo o Estado, empregando as forças de mercado para garantir a liberdade da “excessiva”
intervenção estatal e criando sujeitos calculistas e responsáveis que necessitam de aumentar a
sua competitividade numa luta constante por auto-otimização (OELS, 2005).
Nas questões ambientais o governo liberal avançado reflete-se na predominância do
discurso de modernização ecológica – neste contexto utilizamos a versão “fraca”5. Este
discurso se concentra na eficiência ambiental do desenvolvimento industrial e exploração de
recursos e acaba por ser apenas superficialmente ambiental (BLOWERS, 1997; CHRISTOFF,
2000). A modernização ecológica tornou-se o discurso dominante, enaltecendo os custos
econômicos de tomar ações de proteção do ambiente e sem abordar as questões na base da
crise ambiental (HAJER, 1995). No regime internacional de mudança do clima, o privilegiar
de soluções baseadas nos mercados como cotas comerciáveis e Implementação Conjunta é um
indicativo deste discurso de modernização ecológica.
Oels (2005) tentou perceber em que tipo de governamentalidade se baseava o regime
internacional de mudança do clima e conclui tratar-se de uma transição de biopoder para
governo neoliberal avançado, pois identificou indícios dos dois tipos de governamentalidade.
O objetivo da CQNUMC de estabilização dos gases com efeito de estufa na atmosfera em
níveis que previnam perigo poderia assim ser classificado como indício de biopolítica,
enquanto que os mecanismos de mercado do Protocolo de Quioto, as parcerias entre atores no
setor privado, ONGs e governos subnacionais e os compromissos voluntários e estratégias de
envolvimento de atores privados são exemplo de governo liberal avançado.
Fora do âmbito internacional, permanece incerto, contudo, se nas esferas locais e
nacionais as políticas de mudanças climáticas ainda são principalmente enquadradas dentro de
uma governamentalidade de biopoder. Para Oels (2005), que estudou estas questões no
âmbito internacional, é premente realizar mais estudos para enriquecer esta análise com casos
empíricos, através de estudos de caso.
Assim, este trabalho propõe abordar o contexto brasileiro, com uma análise da relação
entre o conteúdo da Política e do Plano Nacional sobre Mudança do Clima e os discursos do
Poder Executivo na CQNUMC no período de 2008-2012. A produção científica sobre esta
Política brasileira é muito escassa, tanto no que concerne à sua implantação e aos resultados
obtidos até agora, como também em relação ao próprio processo de formulação desta política
e ao seu contexto de governamentalidade. Sendo um país não-Anexo I, sem compromissos de
redução de emissões, é pertinente compreender como a constituição desta política aconteceu,
5 CHRISTOFF (2000) identifica duas variantes do discurso de modernização ecológica: uma “fraca” consistindo num discurso tecnocrático e neoliberal que não envolve nenhum re-pensamento fundamental da sociedade e suas instituições; e uma “forte”, de cariz reflexivo e que adota uma abordagem crítica aos limites dos paradigmas políticos dominantes e ao modo como instituições modernas lidam com as questões ambientais.
qual a sua racionalidade e justificativa e como se enquadra na evolução descrita por Oels
(2005) no regime internacional do clima, de biopoder para governo liberal avançado.
Por outro lado, e assumindo que houve uma mudança no foco da política ambiental
frente à priorização de grandes projetos de desenvolvimento do segundo mandato de Lula da
Silva para o governo Dilma Rousseff, busca-se averiguar em que medida há uma conexão ou
uma distensão no discurso oficial brasileiro sobre mudanças climáticas, comparando-se ao
que, de fato foi concretizado no Regime Nacional de Mudanças Climáticas.
Nesse sentido, fez-se uma análise crítica-comparativa dos discursos presidenciais e
ministeriais elaborados para as COPs da CQNUMC de 2008, ano da aprovação do Plano
Nacional de Mudança do Clima, até 2012, comparando-os com o teor da Política e do Plano
Nacional sobre Mudança do Clima e de seus instrumentos regulamentadores.
Não delineando, inicialmente, nenhuma metodologia para a análise de regimes, Dean
(1999) propõe uma metodologia flexível – evitando-se assim posturas demasiado inflexíveis
face às categorias de biopoder e de governo liberal avançado, tendo em conta as
heterogeneidades encontradas em cada estudo de caso – e explorando os objetivos dos
regimes de verdade – aqui sendo importante o objetivo dito e o não dito – a sua justificativa,
os seus campos de visibilidade, as tecnologias empregues, o tipo de saberes preconizados e
como as identidades são formadas (DEAN, 1999; OELS, 2005).
Com uma metodologia do tipo qualitativo, este estudo procedeu a análise de
documentos e a entrevistas semi-estruturadas a funcionários do Ministério do Meio Ambiente
(MMA). Uma análise crítica-comparativa dos discursos presidenciais e ministeriais
elaborados para as COPs da CQNUMC no período 2008-2011, comparando-os com o teor da
Política e do Plano Nacional de Mudança Climática e de seus instrumentos regulamentadores
permitiu perceber como a ecogovernamentalidade da mudança do clima no Brasil se enquadra
nos discursos internacionais Brasileiros sobre essa problemática.
Exploramos então até que ponto as ações previstas no Plano Nacional sobre Mudança
do Clima refletem um regime de ecogovernamentalidade, concebido como “qualquer tentativa
de moldar, com certo grau de deliberação, aspectos do nosso comportamento de acordo com
determinados conjuntos de normas, para uma diversidade de fins” (DEAN, 1999, p. 10).
O presente estudo, ao enquadrar a política Brasileira num contexto de
governamentalidade permite esclarecer que tipo de regimes de verdade e tecnologias de poder
estão implicados nessa política e como isso reflete os resultados das negociações
internacionais no seio da CQNUMC. Partindo da questão “Como a agência coletiva é
considerada na formulação deste regime de mudanças climáticas?”, propusemos uma
narrativa dos esforços institucionais Brasileiros para legitimar uma ideia de ‘controle
ambiental’ e progresso ecológico, através do cumprimento, por estratégias económicas e
tecnológicas, de uma política normativa contida no Plano.
2. POLÍTICA OU POLÍCIA? A ECOGOVERNAMENTALIDADE DA MUDANÇA CLIMÁTICA
O debate sobre governamentalidade e sua aplicação ao entendimento de questões de
gestão dos mecanismos de regulação ambiental – o que Agrawal (2005) chamou de
environmentality ou ecogovernamentalidade – representa um aspecto de ampliação da esfera
de análise das políticas de meio ambiente, tomando em consideração a dicotomia
poder/conhecimento, as instituições implicadas nas questões ambientais e as subjetividades
dos indivíduos.
A amplitude de tal discussão, contudo, deve levar em conta o âmbito da produção e
reprodução da própria política, seus diversos níveis e escalas e as relações de poder
envolvidas. Com isso, centrar o estudo sobre Mudanças Climáticas no Brasil sob o ponto de
vista de uma biopolítica requer, inicialmente, trabalhar com indagações do tipo: Qual o
âmbito da Política? Onde se dá o plano de sustentação dos mecanismos de harmonização
social? A quem importa a adoção de medidas capazes de garantir a vida?
A resposta a essa problemática, ao menos no que diz respeito às sociedades modernas,
parece concentrar-se e mesmo reduzir-se no aparato de Estado. Contudo, em uma visão mais
ampla e levando-se em conta a sociedade contemporânea, uma abordagem mais aprofundada
permite ampliar esse enfoque para uma série de grupos, instituições e organizações que
ultrapassam o limite do próprio Estado em si. Se, em um primeiro momento, o debate sobre a
governamentalidade se concentra no Estado, ente totalizador, que congrega as estratégias de
disciplina e controle (FOUCAULT, 2002) como forma de garantir a vida e permitir a morte; o
aprofundamento das discussões sobre a relação saber-poder em termos de meio ambiente,
resulta em uma argumentação sobre as capacidades de poder de outros atores em atuar na
produção de regimes de verdade (FOUCAULT, 2008) principalmente em questões ambientais
(OELS, 2005; AGRAWAL, 2005). Novas formas de governança com mais mercado e menos
governo, mais sociedade civil e menos Estado (ANDONOVA, 2010; OELS; 2005) ampliam-
na. Segundo Dean (2003: 29), esta tendência leva a que seja necessário investigar como
diferentes “locais” são constituídos como autoritativos e com poder, como diferentes agentes
se constituem com poderes específicos e como diferentes domínios são constituídos
governáveis e administráveis.
Mas será esse, apenas, o âmbito da Política? E, mais profundamente, ao se falar em
como tomar medidas para agregar escalas múltiplas de reprodução de práticas de gestão, as
atitudes dessa entidade extrapolariam o âmbito da Política ou nem chegariam a promovê-la?
E, assim, em que medida outros atores seriam capazes de contribuir ou mesmo competir com
o Estado na promoção de um regime de verdades sobre meio ambiento e, para o caso
específico deste ensaio, para o regime de mudanças climáticas?
Nessa perspectiva, ao se trazer o discurso sobre Mudanças Climáticas, considerando-
se os níveis global, nacional e local, para o âmbito dos regimes de verdade e, além disso,
relacioná-lo com a produção e a reprodução da biopolítica, depara-se com a questão da
relação entre poder e conhecimento (AGRAWAL, 2004; DEAN, 1999; OELS, 2005). Há que
se levar em conta, dessa maneira, que:
Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a contagem que é feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto uma outra é apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta. (RANCIÈRE, 1996, p. 36, grifos do autor).
A Política seria, assim, o espaço do entendimento, no sentido da possibilidade de
discussão e de manifestação do (livre) pensamento de forma inteligível (NIETZSCHE, 2000),
de modo a permitir quantificá-lo e qualificá-lo em ação social individual e coletiva, ou seja, a
manifestação equilibrada das relações de poder-saber. Todo o resto, todas as outras formas de
expressão “do consentimento ou revolta”, se designariam como “Polícia”, ou seja, uma
permissibilidade acrítica da ação alheia sobre a própria vida, apresentada sob a forma de mera
satisfação ou descontentamento, ou seja, a submissão a um regime de verdade.
Dessa forma, em termos de governamentalidade, a Política designa a possibilidade de
enfrentamento de ideias inteligíveis pela prerrogativa de produzir entendimento. Ao contrário,
a Polícia, seria:
[...] o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição [...]. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos de dizer, que faz que tais corpos [os indivíduos de um rebanho] sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa (RANCIÈRE, 1996, p. 41-42).
Neste sentido, há dois meios a serem considerados: o da Política, concebido como o do
confronto de poderes advindos da expressão do conhecimento de forma compreensível; e o da
Polícia, visto como o espaço do exercício de controle e de disciplinarização da vida e da
morte, como um meio de produzir ordem a um conjunto capaz apenas de submeter-se em uma
expressão de consentimento ou revolta (FOUCAULT, 2002). Para usar a leitura de Oels
(2005), o âmbito da biopolítica representaria, nas sociedades atuais, a liberdade de ação
discursiva do sujeito em meio a um regime de verdade pré-estabelecido.
Nesse contexto, de um lado vê-se a Política como confronto pela capacidade de se
expressar em igualdade, de se fazer entender em meio à formação do regime de verdade. Por
outro lado, a Polícia se desvenda como a efetiva utilização de um determinado discurso – pelo
Estado, por instituições, ou por outros atores – para atribuir mecanismos de controle sobre
uma sociedade incapaz de confronto, uma vez que esta não dispõe da habilidade de expressão,
além da liberdade de escolha de como se modelar nos mecanismos e tecnologias de gestão de
corpos.
Ou seja, na Política ocorre o combate pela prerrogativa de livre-expressão, na Polícia,
se exerce a dominação, entendida como “[...] o poder ou a autoridade de utilizar pessoas como
meios” (SLOTERDIJK, 1999, p. 46). Dessa maneira, ao se referir à biopolítica na criação de
regimes globais de gestão, como ocorre no de mudanças climáticas, em termos de regimes
nacionais, deve-se compreender em que medida essa atuação se dá em forma de Política ou
Polícia. Acaso se tome a política pública como uma ação de debate, de expressão do
conhecimento, como forma de buscar soluções através do livre confronto/conformação de
saberes para a afirmação da igualdade, poder-se-ia tratá-la como Política. Contudo, se seu
âmbito se dá na tentativa de formatação de mecanismos de controle da produção e reprodução
social como forma de garantir a vida, tem-se que se configura como uma função de Polícia.
Dessa forma, cabe ressaltar que em se verificando um discurso direcionado a manter a
vida e permitir a morte, identifica-se uma Polícia que tem como fim último:
[...] a preocupação com as relações entre a espécie humana, os seres humanos enquanto espécie, enquanto seres vivos, e seu meio, seu meio de existência – sejam os efeitos brutos do meio geográfico, climático, hidrográfico [...]. E, igualmente, o problema desse meio, na medida em que não é um meio natural e em que repercute na população; um meio que foi criado por ela. (FOUCAULT, 2002, p. 292).
Nesse contexto, quando se refere à questão da biopolítica relacionada às mudanças
climáticas, seus vários níveis discursivos podem perpassar tanto pela Política como pela
Polícia, conforme seus atores se encontrem, respectivamente, na produção ou reprodução
desse regime de verdade.
Desse ponto de vista, a problemática de uma governamentalidade ambiental
(AGRAWAL, 2004; LEMOS; AGRAWAL, 2006; OELS; 2005) se insere como um espaço de
intervenção e de relações de poder-saber, que se justifiquem pela prerrogativa de manter a
vida e impedir a morte do grupo social, e de tecnologias utilizadas para que isso se opere.
Nesse contexto, a biopolítica surge, no regime de mudanças climáticas, como uma
preocupação em garantir o controle da ação humana sob o pretexto de manutenção das formas
de vida da espécie, através dos regimes nacionais.
Dessa forma, no contexto nacional, a governamentalidade se organiza como ação
policial na medida em que se constitui um mecanismo para que o Estado, imbuído da gestão
de um regime de verdade global, possa exercer o poder de garantir a vida e permitir a morte.
Essa estratégia de controle instaura-se na sociedade, circundando e regulando todos os
âmbitos da vida e, gradativamente, reduzindo o âmbito da liberdade aos limites de tal
discurso. É a partir do regime nacional que, sob o pretexto da garantia da cidadania e da
manutenção da ordem democrática, nada mais se pode fazer a não ser difundir o
consentimento às ações das instituições acreditadas como detentoras legítimas dos meios de
harmonização social e garantia da vida, ou seja, aquelas instituições públicas ou privadas
(OELS, 2005) acreditadas como legítimas pelo Regime Internacional de Mudanças
Climáticas.
Nesta perspectiva, ao tratar a sociedade como população a ser gerida, o regime
nacional de mudanças climáticas busca apenas a aplicação de uma “tecnologia” que visa
mensurar o potencial de manutenção da vida e retardamento da morte que determinada
política pública é capaz garantir. Isso se dá a partir da consideração da natureza dos
fenômenos capazes de afetar a conservação do rebanho. Seu foco:
São fenômenos coletivos, que só aparecem com seus efeitos econômicos e políticos, que só se tornam pertinentes no nível da massa. São fenômenos aleatórios e imprevisíveis [...]. E, enfim, são fenômenos que se desenvolvem essencialmente na duração, que devem ser considerados num certo limite de tempo relacionado longo; são fenômenos de série. (FOUCAULT, 2002, p. 293).
Dessa maneira, vê-se que a ordem do que deve ser controlado está, em certa medida,
tão fora do alcance da longevidade e da ação individual, que dispensa qualquer modo de
subjetivação. A aceitação não só da biopolítica tal qual é formatada, mas também do
fenômeno que se faz crer ser o seu motor, desloca-se, assim, do âmbito do conhecimento para
o da moral, entendido como regime de verdade, enclausurando a todos:
[...] unânimes na crença na moral da compaixão em comum, como se ela fosse a moral em si, fosse a altura, a altura alcançada do homem, a única esperança do
futuro, o meio de consolação dos presentes, a grande remissão de toda a culpa desde sempre: - unânimes todos eles na crença em uma comunidade como redentora, no rebanho, portanto, em ‘si’... (NIETZSCHE, 2000, p. 322, grifos do autor).
Essa situação transforma o regime nacional de mudanças climáticas na engrenagem de
reprodução dessa moral e, mais que isso, reverbera como uma forma de expandir toda a lógica
de uma hiperpolítica, não só pela manutenção se seus mecanismos antigos – disciplinares –
mas também pela introdução de novos artifícios para a garantia de sua lógica. Dessa forma:
Nos mecanismos implantados pela biopolítica, vai se tratar sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medidas globais; vai se tratar igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal indivíduo, na medida em que é o indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de global [...]. E trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população, global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeóstase, assegurar compensações (FOUCAULT, 2002, p. 293).
Vista dessa maneira, a governamentalidade ambiental busca gerir a “anomalia social”
através do controle do indicador em um nível aceitável à manutenção da vida e retardamento
da morte. Utiliza-se para isso do espaço público, como espaço de regulação, cuja prerrogativa
de “fazer viver” se dá por meio da gestão do índice a níveis aceitáveis, contudo, só “faz viver”
na medida em que se justifique em termos de custos de manutenção do rebanho – desde que
seja possível garantir a sustentabilidade do desenvolvimento econômico (OELS, 2005).
Assim:
[...] são postas em relevo e banhadas de luz as propriedades que servem para facilitar a existência dos que sofrem [...] pois estas são aqui as propriedades mais úteis e quase os únicos meios para tolerar a pressão da existência. A moral de escravo é essencialmente moral utilitária. Aqui está o foco para o nascimento daquela célebre oposição ‘bom’ e ‘mau’ – no mal é sentida a potência e periculosidade, algo de terrível, refinado e forte, que não deixa lugar para o desprezo. (NIETZSCHE, 2000, p. 335).
Como se vê, o regime de verdade surge como forma de homogeneizar os
individualismos passíveis de verbalização. Sua função é criar mecanismos de controle da
vida. Assim, a produção da biopolítica é, antes de tudo, a produção de confiança no índice,
nos mecanismos de controle, alicerçada na garantia do desconhecimento de como, mesmo, se
formula essa engenhosidade regulatória.
A diferença tênue entre Política e Polícia anteriormente apresentada, na caracterização
de uma governamentalidade ambiental, tem por objetivo discutir em que medida as ações
públicas, seja em âmbito internacional, seja em nacional, levam em conta preceitos básicos de
uma democracia baseada nas possibilidades de diálogo e opinião, na igualdade e na
heterogeneidade de pensamento, há muito esquecidos. Tratar, nessa perspectiva, os Regimes
Nacional e Internacional de Mudanças Climáticas, vai além do objetivo de entendê-los como
meras ações de Polícia, mas de, analisando sua configuração, entender o discurso em questão
inserido no caso brasileiro e como isso afeta o âmbito da biopolítica. De fato, conforme
destaca Rancière:
Não se deve esquecer, também que, se a política emprega uma lógica totalmente
heterogênea à da polícia, está sempre amarrada a ela. a razão disso é simples. A política não
tem objetivos ou questões que lhe sejam próprios. Seu único princípio, a igualdade, não lhe é
próprio e não tem nada de político em si mesmo. Tudo o que faz é dar-lhe uma atualidade sob
a forma de caso, inscrever, sob forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem
policial (1996, p.44).
Dessa maneira, busca-se entender em que medida as ações propostas no Brasil para
colocar o regime nacional em consonância com o internacional se configuram como Polícia
puramente ou, também, como espaço de Política. Assim, há que se compreender como Brasil
vem estendendo sua mão ao futuro de uma ação orientada à questão das mudanças climáticas,
concentrando o olhar na formulação da Política Nacional de Mudanças Climáticas – PNMC –
desde sua primeira proposta até sua promulgação em formato de lei ordinária em dezembro de
2009.
3. OS ANTECEDENTES DA POLÍTICA E DO PLANO NACIONAL DE MUDANÇA DO CLIMA
A formulação da PNMC e a elaboração do Plano de Mudança do Clima aconteceram
num contexto de transição dentro do Executivo e da posição internacional do Brasil no
referente a mudanças climáticas. Nas negociações internacionais de mudança do clima o
Brasil sempre adotou uma posição defensiva, proclamando o paradigma da soberania,
evitando referências às florestas – o “calcanhar de Aquiles” do país – e sua inclusão, por
exemplo, no Protocolo de Quioto, e nunca aceitou compromissos de redução de emissões,
refugiando-se no princípio das responsabilidades diferenciadas e de necessidade de
desenvolvimento (JOHNSON, 2001; CARVALHO, 2012; HOCHSTETLER; VIOLA, 2011).
No entanto, sempre foi um defensor do multilateralismo e da importância da CQNUMC e das
metas de redução de GEEs de países industrializados no protocolo de Quioto, assim como dos
mecanismos de flexibilidade deste Protocolo, como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
(MDL) do qual o Brasil foi um dos principais idealizadores em 1997.
Dá-se, então, uma virada na estratégia Brasileira que começou no mandato de Marina
na Silva como Ministra do Meio Ambiente e sendo concretizada mais tarde pelo Ministro
Minc: a adopção de compromissos voluntários de redução de GEEs (HOCHSTETLER;
VIOLA, 2011). Para esta evolução ter acontecido vários fatores parecem ter contribuído. Em
primeiro lugar os resultados obtidos de redução do desmatamento após implantação do Plano
para a Prevenção e Controlo do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM) em 2004/5 –
mandato Marina Silva – fazendo com que o “calcanhar de Aquiles” das florestas – mudanças
de uso da terra são o maior emissor no país e foco de muita atenção internacional,
principalmente no que concerne à Amazônia – passasse a oportunidade e instrumento de soft
power. Por outro lado, o apoio inicial do Presidente Lula da Silva a Marina da Silva, figura
carismática do movimento ambientalista brasileiro e cuja escolha pode ser vista como um
sinal de que Lula estaria tentando “estender a mão” aos ambientalistas. (HOCHSTETLER;
VIOLA, 2011).
Para além disso, verificou-se uma proeminência de grupos sociais que apoiavam
medidas para a mudança do clima por razões instrumentais – imagem de combate à mudança
do clima vista como ‘bom negócio’ pelo setor privado – assim como um aumento do apoio da
opinião pública para ações de mudança do clima – e as questões ambientais posteriormente
figurando pela primeira vez com proeminência numa eleição presidencial em 2010
culminando com uma votação de 19 milhões de votos para a ex-ministra do ambiente Marina
Silva e o Partido Verde. Estes acontecimentos refletem também um aumento de poder do
Ministério do Meio Ambiente (MMA) em detrimento do Itamaraty – que tem uma cultura
própria dentro do Estado, conservadora e soberanista – e Ministério da Ciência e Tecnologia
(MCT) que até então tinham primazia nas decisões finais sobre a atuação do Brasil na
CQNUAC (HOCHSTETLER; VIOLA, 2011; CARVALHO, 2012).
É no contexto desta transição geral que, em 2007, no Executivo, foi criada uma
secretaria de mudança climática, tendo o Decreto no 6.263 de 21 de Novembro de 2007
instituído o Comitê Interministerial de Mudança do Clima e orientado a elaboração do Plano
Nacional de Mudança do Clima em 2008.
Segundo um servidor da secretaria de Mudanças Climáticas do MMA, o plano foi
elaborado com a pretensão de dar um recado ao mundo de que o Brasil estaria enfim pronto a
tomar medidas de mitigação das emissões. Sendo um instrumento da Política, surgiu antes
dela, incompleto e à pressa, pois o Ministro do Ambiente e o Presidente da República
queriam, em 2008, levar para a COP14 em Poznan um Plano que mostrasse ao mundo como o
Brasil se predispunha a atuar face à mudança do clima, e tendo em conta que outros países
como a China já tinham anunciado um plano semelhante (SERVIDOR 1, 2012). Os resultados
positivos do combate ao desmatamento davam ao Brasil outra autoridade e mostravam que o
país podia assumir compromissos de redução das emissões em se baseando nesses resultados
positivos – tal era a importância do desmatamento no total de emissões do país – sem
consequências nefastas para o seu crescimento econômico (SERVIDOR 2, 2013). Muito
geral, o Plano constituía uma compilação dos esforços já feitos pelo Brasil ao nível do
combate à mudança do clima, apresentado o grande potencial de mitigação do Brasil e
algumas linhas orientadoras para a ação do Brasil.
Assim, percebe-se que, no contexto da formulação do regime nacional de Mudanças
Climáticas, estes interesses do Estado brasileiro e de alguns grupos sociais, associados aos
jogos políticos dentro e fora do governo, ajudam a perceber melhor o contexto da formação da
política e plano, a sua racionalidade e justificativa, ou melhor, os seus “objetivos não ditos”.
Assim, apesar do seu caráter especulativo, essas informações enriquecem a investigação da
governamentalidade do regime de mudança do clima no Brasil.
4. A POLÍTICA NACIONAL DE MUDANÇA DO CLIMA – PNMC
Quando o Plano foi adotado pelo Executivo e apresentado internacionalmente, os
movimentos no legislativo já tinham começado, entretanto, os trabalhos para aprovar uma lei.
Com respeito a essa temática, é interessante observar que passaram, somente na Câmara dos
Deputados, 28 propostas de normatização de alguma questão envolvendo as mudanças
climáticas e a regulação das emissões de gases do efeito estufa. Dessas, 17 Projetos de Lei –
PL – tratam, em alguma medida, do mesmo assunto que outras e, por isso, foram colocadas
em conjunto para análise das comissões responsáveis. Cabe ressaltar, ainda, que desses
projetos, 11 se referiram à criação de uma Política Nacional de Mudanças Climáticas, ou a
mecanismos a ela relacionados que, hoje, está disposta na forma de Lei Ordinária no. 12.187
de 30 de dezembro de 2009 (BRASIL, 2010b).
Assim, destaca-se que a Política Nacional de Mudanças Climáticas – PNMC –
representa uma forma de organização dos regimes jurídicos nacionais para adoção de ações
públicas, em conjunto ou não com entidades privadas ou do terceiro setor, de redução das
emissões de GEE, ou adoção de medidas de sequestro de carbono da atmosfera. Sua previsão
está na CQNUMC art.4o. §1o. “b” (ONU, 2010a) e no Protocolo de Quioto art.2o §1o “a”
(ONU, 2010b) como obrigação às partes da Convenção-Quadro para aprimorar a
sistematização da mitigação de GEE e prover informações relevantes aos órgãos de controle
do efeito estufa nas searas nacional e internacional.
A primeira tentativa de normatizá-la ocorreu por meio do PL no. 3902/2004 (BRASIL,
2010c), de autoria do deputado Federal Ronaldo Vasconcellos. O projeto de lei constituiu
uma proposta de forte intervenção, pois ia além da determinação da CQNUMC e do Protocolo
de Quioto, uma vez que previa: uma política de substituição gradativa de combustíveis
fósseis; uma política nacional de compensação pela produção de gás carbônico; e uma política
de controle dos desmatamentos e queimadas – que regulamentaria o §4o. do art.225 da
Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 2010a). Esse primeiro esforço,
contudo, não foi muito frutífero, pois, embora proposto imediatamente após a ratificação da
CQNUMC pelo Congresso Nacional, sua tramitação se viu obstada pelo fim da legislatura de
2003 a 2006, culminando no arquivamento automático do projeto.
Com o início das atividades da nova legislatura em 2007, uma série de novos projetos
– mais precisamente 116 – foram apresentados à Mesa da Câmara Federal para apreciação.
Cabe destacar, dentre eles, PL no. 261/2007 (BRASIL, 2010d) de autoria do deputado
Antonio Carlos Mendes Thame. Esta proposta, a rigor, decorreu das discussões na Comissão
de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável ocorridas da legislatura anterior sobre o
PL no. 3902/2004 e que resultaram no projeto substitutivo 5064/2004 (BRASIL 2010e),
também arquivado nas circunstâncias mencionadas, mas que em função da reeleição do
parlamentar, foi reapresentada. Não obstante essa iniciativa, a proposta que obteve principal
foco durante a legislatura vigente, foi a contida no PL no. 18/2007 (BRASIL, 2010f) do
deputado Sarney Filho.
Sua tramitação iniciou-se já no primeiro mês de trabalhos da Câmara Federal e a ela
foram apensados, ao longo dos três últimos anos, os demais projetos que foram propostos à
revelia deste. Em função dessa grande quantidade de projetos e em resposta a requerimentos
parlamentares7 é criada em março de 2008 uma Comissão Especial para análise da questão,
cujos trabalhos vão até outubro de 2009, quando é apresentado um projeto substitutivo ao PL
6 São eles: Projeto de Lei – PL – no. 18/2007; PL no. 261/2007; PL no. 354/2007; PL no. 479/2007; PL no. 759/2007; PL no. 1378/2007; PL no. 2056/2007; PL no. 2843/2008; PL no. 3258/2008; PL no. 3535/2008; PL no. 5999/2009. Para acesso aos textos integrais e tramitação de cada projeto CF. Brasil – Câmara dos Deputados. Disponíveis em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: fevereiro de 2010. 7 São três os principais requerimentos feitos à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, o Req. no. 6/2007, o Req. no. 16/2007 e o Req. no. 44/2007. Esses requerimentos foram movidos, principalmente, pela “comoção” causada pelo Relatório no. 4 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, que fez previsões catastróficas sobre as consequências das mudanças climáticas nos próximos 100 anos. Sobre o assunto Cf. respectivamente: <www.camara.gov.br> e <www.ipcc.org.br>.
no. 18/2007 e, enfim, a proposta é encaminhada para votação em plenário que ocorre já no
mês de novembro de 2009 (BRASIL, 2010f).
O que mais causa assombro, é que em quase três anos de tramitação do projeto – dos
quais um ano e meio se passou na Comissão Especial – não há relato de nenhuma audiência
pública realizada pela Câmara dos Deputados, nem mesmo a consulta a especialista na área. O
assunto é tomado, no âmbito da criação da Política Pública de Mudanças Climáticas, como
mera regulamentação dos acordos internacionais, sem ao menos buscar algum entendimento
sobre que medidas poderiam ser previstas já na criação da política pública com ênfase na
realidade da sociedade brasileira. Dessa forma, todo o processo legislativo no âmbito da
Câmara se dá baseado em um enunciado de verdade, esquecendo-se da advertência de
Foucault de que:
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (1979ª, p. 12).
Tomando por base a advertência acima, vê-se que, inclusive, há a afirmação de um
regime de verdade, através da adoção desse discurso externo à sociedade brasileira e que, não
obstante essa situação, continuou por não observar o princípio básico da Política de afirmação
da igualdade através do discurso inteligível, uma vez que em seguida à aprovação pela
Câmara, a proposta também é aprovada pelo Senado Federal sem nenhuma discussão
adicional que envolvesse alguma representatividade da sociedade além daquela decorrente do
sufrágio (BRASIL, 2010f). Dessa forma, ao eco intenso mugido, a Política Nacional de
Mudanças Climáticas é promulgada em 30 de novembro de 2009 e, certamente, deve ter
ocorrido sob um silencioso sussurro das palavras de Nietzsche:
Digamos logo, mais uma vez, o que já dissemos uma centena de vezes: pois hoje os
ouvidos, para tais verdades – para nossas verdades –, não têm boa vontade. Sabemos, já o
bastante, como soa ofensivo quando, em geral, alguém inclui o homem, sem cosméticos e sem
alegoria, entre os animais; mas é quase como culpa que nos é imputado que, precisamente em
referência aos homens das ‘ideias modernas’, usamos constantemente as expressões
‘rebanho’, ‘instinto de rebanho’, e semelhantes. (2000, p. 321, grifos do autor).
Ademais, os projetos em tramitaram no Congresso Nacional e resultaram na
instituição da PNMC não avançaram em propostas de vinculação da sociedade ao problema
ambiental crescente, uma vez que se esqueceu de um requisito básico da adoção de uma
norma: sua legitimidade decorre do entendimento, em termos de reconhecimento
(BOURDIEU, 2007), e aceitação – primeiro Política, depois Polícia – pela sociedade daquilo
que é regulamentado.
Há que se ressaltar, outrossim, que não há nas ações previstas pela PNMC, além da
previsão taxativa de possibilidade de incorporação de entidades da Sociedade Civil
Organizada, previstas no inciso 5 do Art. 5º. da lei 12187/2009 (BRASIL, 2010b), qualquer
previsão de incorporação as sociedade nas discussões sobre como implantar essas ações –
muito menos sua expansão para o espaço público – tornando essa política pública uma
questão de governamentalidade, no sentido foucaultiano de:
[...] conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por uma forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 1979b, p. 291-292).
Nessa perspectiva, de uma forma geral, o Regime Nacional de Mudanças Climáticas
apenas conta com a determinação de ações policiais, baseadas em um discurso de verdade
instaurado internacionalmente. Assim, a PNMC busca instaurar uma descontinuidade nos
modos de vida da população, utilizando, assim uma imagem simbólica de superpotência da
Ciência que no espaço público torna-se incontestável e que visa imprimir na sociedade uma
mudança que, contudo:
Não é portanto uma mudança de conteúdo, nem tampouco uma alteração da forma teórica. O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente [e impressas na política pública] e, conseqüentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. (FOUCAULT, 1979a, p. 4, grifos do autor).
Há que se destacar, por fim, a grande ênfase desse regime de verdade na necessidade
de criação de mecanismos econômicos e de gestão técnica e controle do aquecimento global
através da adoção de novas tecnologias, novas formas de uso econômico dos recursos naturais
e criação de metas internacionais de redução das emissões de gases do efeito estufa. Nesse
contexto, tem-se que, em específico, essa diretriz não eleva sua atenção além da criação da
obrigação e da difusão de um discurso, que, por sua complexidade torna-se incontestável. Sua
função é apenas:
A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem policial [que] depende
tanto da suposta espontaneidade das relações sociais quanto da rigidez das funções de Estado.
A polícia é, na sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou a ausência de
parcela das partes. (RANCÈRE, 1996, p. 42).
Não há, de fato, preocupação com a ordem de relações e ações sociais que a execução
desse instrumento de polícia possa resultar. Há, sim, uma ênfase na necessidade de que o
Brasil atue frente ao problema do aquecimento global através da criação, implantação e
expansão de mecanismos regulatórios de metas de emissão de gases, sempre ressaltando que
isso deve ocorrer provocando uma mudança no sistema produtivo, na forma de ordenamento
das relações sociais por meio do aprimoramento da tecnologia, sem, contudo, prever qualquer
debate social amplamente difundido para tratar como isso pode ser realizado. Dessa forma, a
pura e simples aceitação da implantação de uma Política Nacional de Mudanças Climática,
sob a justificativa de expressão da democracia representativa, demonstra um perverso
momento da Política brasileira caracterizado pela vontade de impotência.
Dessa forma, a Política foi adoptada em 2009 pela Lei n.o 12.187 de 29 de Dezembro
de 2009, tendo o Presidente Lula assinado a lei em Janeiro de 2010, vetando três das suas
provisões8: artigo 3º, VI – o dispêndio público com as ações de enfrentamento das alterações
climáticas não sofrerá contingenciamento de nenhuma espécie durante a execução
orçamentária – sob indicação dos Ministérios da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e
Gestão e a Advocacia Geral da União9; o artigo 4 III – ao estímulo ao desenvolvimento e ao
uso de tecnologias limpas e ao paulatino abandono do uso de fontes energéticas que utilizem
combustíveis fósseis – assim como o artigo 10, pelo MME, por razões de segurança
energética. Este último veto poderá estar relacionado com o fato de o Brasil ter descoberto
importantes jazidas de petróleo no pré-sal em Dezembro de 2007. Posteriormente deu-se a
regulamentação da política pelo decreto no 7.390 de 9 de Dezembro de 2010, estabelecendo os
planos setoriais a desenvolver e que têm sido entretanto sucessivamente apresentados.
Em seu artigo 3º, a Política refere que as ações dela decorrentes terão em conta os
princípios de precaução, da prevenção, da participação cidadã do desenvolvimento sustentável
e das responsabilidades comuns porém diferenciadas no âmbito internacional. Quanto à
justificativa para a existência desta política, o mesmo artigo 3º refere à necessidade comum de
8 Mensagem de Veto n1.123 de 29 de dezembro de 2009. 9 “O dispositivo carreia comando com mandamentos genéricos sobre finanças públicas, matéria afeta a Lei Complementar, conforme previsto no art. 163, I, da Constituição Federal. Ademais, o dispositivo contraria o princípio presente na Lei de Responsabilidade Fiscal de que as prioridades de cada exercício devam ser definidas por meio das leis de diretrizes orçamentárias.”
atuar face ao problema da mudança do clima, em nome da justiça intergeracional: “I - todos
têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos
impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático” (BRASIL,
2010b).
Contudo, tem que haver “razoável” consenso científico para que sejam tomadas
medidas de mitigação: prever, evitar e minimizar as causas da mudança climática com origem
antrópica identificadas no território nacional (3.II). Por outro lado, esse enfrentamento do
problema da mudança do clima deve ser realizado de acordo com os preceitos do
desenvolvimento sustentável: “IV - o desenvolvimento sustentável é a condição para enfrentar
as alterações climáticas e conciliar o atendimento às necessidades comuns e particulares das
populações e comunidades que vivem no território nacional” (BRASIL, 2010b).
Nesse sentido, os objetivos da Política: “Art. 4º Deverão estar em consonância com o
desenvolvimento sustentável a fim de buscar o crescimento econômico, a erradicação da
pobreza e a redução das desigualdades sociais” (BRASIL, 2010b). De fato, é nesse âmbito
que aparece o primeiro objetivo da política, a compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a proteção do sistema climático. Só depois se segue o objetivo de
redução das emissões antrópicas de gases com efeito de estufa e o fortalecimento das
remoções antrópicas por sumidouros de gases de efeito estufa – e.g. manutenção de florestas.
Seguem então os restantes objetivos de adaptação do país à mudança do clima,
preservação dos recursos ambientais, proteção de Unidades de Conservação, reflorestamento
e recuperação de áreas degradadas e o desenvolvimento do Mercado brasileiro de Emissões.
Os dois últimos objetivos são instrumentos para a mitigação das emissões que beneficiam
determinados setores e mercados, mas que acabam sendo transformados em objetivo, i.e.
passam de meios a fins. O reflorestamento e recuperação de áreas degradadas, por exemplo,
através da plantação de monoculturas florestais e da conversão de pastagens degradadas em
terrenos produtivos para o agronegócio e silvicultura industrial, abre novas perspectivas de
mercado e é fator de consolidação da retórica ambiental do agronegócio Brasileiro face às
criticas de ambientalista e também do governo Brasileiro face às críticas internacionais sobre
a expansão agrícola na Amazônia e consequente desmatamento. Por serem primariamente
objetivos de construção ou favorecimento de mercados, constituindo oportunidades de
negócio para determinados setores e instrumentos de mobilização de um marketing “verde”
no Brasil, são uma indicação de governo liberal avançado.
A visibilidade dada ao desenvolvimento sustentável, que surge na Política como a
premissa principal, sustenta a atitude voluntária e pró-ativa do Brasil, que, mesmo não tendo
compromissos de redução de emissões na CQNUMC, se compromete a reduzir suas emissões,
i.e., o Brasil se compromete a reduzir as suas emissões, mas priorizando o desenvolvimento
(sustentável): “Art. 3º. inc. IV. O desenvolvimento sustentável é a condição para enfrentar as
alterações climáticas e conciliar o atendimento às necessidades comuns e particulares das
populações e comunidades que vivem no território nacional” (BRASIL, 2010b)
A grande ênfase colocada nas questões sociais e de equidade e ao crescimento
económico, parece obscurecer questões relacionadas com o papel do consumo de recursos
naturais e sua redução, assim como a relevância dos combustíveis fosseis no setor dos
transportes e sendo o veto ao progressivo abandono de combustíveis fosseis uma indicação de
qual é a prioridade governativa em tempos de pré-sal. Os planos setoriais trarão certamente
indicações mais concretas, mas no que diz respeito à Política Nacional, as questões de
mobilidade, eficiência dos transportes, e transportes alternativos ao carro e camião,
permanecem de certo modo ignoradas, sendo apenas claro que, para a “consolidação de uma
economia de baixo consumo de carbono”, a Política identifica como prioritárias ações no
transporte público urbano e nos sistemas modais de transporte interestadual de cargas e
passageiros, sem contudo especificar.
Esta “consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono” prioriza ainda a
geração e distribuição de energia elétrica, a indústria de transformação e de bens de consumo
duráveis, as indústrias químicas finas e de base, a indústria de papel e celulose, a mineração, a
indústria da construção civil, os serviços de saúde e a agropecuária, tendo em vista atender
metas gradativas de redução de emissões antrópicas quantificáveis e verificáveis,
considerando as especificidades de cada setor, inclusive por meio do Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo (MDL) e das Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas
(NAMAs). Aqui nota-se uma coexistência de aspetos de biopoder – normalização, controle e
metas das emissões dos vários setores, quantificáveis e verificáveis – com de governo liberal
avançado – mecanismos de mercado como adjuvantes, ou mesmo atores principais neste
processo: o MDL e as NAMAs de quantificação de carbono.
Em relação às tecnologias usadas, o plano nacional e os planos setoriais, os registros e
inventários de emissões, a educação ambiental e divulgação, o monitoramento climático e os
indicadores, os padrões ambientais e metas específicas, as dotações específicas no orçamento
da união, e a ação coordenada a várias escalas refletem um governo do tipo biopoder. Por
outro lado, são exemplos de tecnologias de governo liberal avançado os mecanismos
financeiros (Fundo Clima), as medidas fiscais, linhas de créditos, mecanismos financeiros e
económicos da CQNUMC, o mercado brasileiro de redução de emissões, operacionalizado
em bolsas de mercadorias e futuros, e as parceiras entre governo e privados a várias escalas.
Privilegiando formas de conhecimento relacionadas às ciências ambientais e do clima,
por um lado, e à economia, gestão e engenharia ambiental, valorização de serviços ambientais
e quantificação de carbono, por outro, a Política também nesse contexto é um exemplo de
transição de biopoder para governo liberal avançado, tal como Oels (2005) verificou para o
regime internacional de mudança do clima.
Finalmente, essa mesma transição pode ser encontrada na formação de identidades
desta Política, em que, por um lado se formam indivíduos “globais” com o “dever de atuar em
benefício das presentes e futuras gerações”, o que é nitidamente biolítica; e por outro, o
aspeto calculista das oportunidades do mercado de carbono indica uma tendência de governo
liberal avançado, mas vestindo a roupagem da retórica do “desenvolvimento sustentável”.
5. O PLANO NACIONAL DE MUDANÇA DO CLIMA
Não obstante esse histórico da formulação da Política nacional de Mudanças
climáticas, tem-se que o Plano Nacional encontra outro ambiente de formulação. Gestado no
contexto da Comissão Interministerial de Mudanças Climáticas, o documento, datado de
2008, resultou de um processo que aglutinou a participação da Comissão Mista Especial de
Mudanças Climáticas do Congresso Nacional, da III Conferência Nacional do Meio Ambiente
e do Fórum Nacional de Mudanças Climáticas. Esses três grupos, tiveram por finalidade
congregar espaços de debate, informação e mobilização da sociedade em torno da formulação
do Plano Nacional de Mudanças Climáticas (BRASIL, 2008).
Assim, ainda que elaborado no seio da Comissão, pode-se afirmar que o Plano contou
com uma maior amplitude de atores e saberes na formulação de seu discurso sobre mudanças
climáticas. Nesse contexto, faz-se necessário explorar melhor o conteúdo desse documento,
para, por fim, confrontá-lo com a PNMC e os discursos oficiais no Brasil nas COPs.
No âmbito de um Regime Nacional de Mudanças Climáticas, a elaboração de um
Plano Nacional representa uma estratégia de governo. Mais especificamente, um mecanismo
de gestão, em grande parte da vida privada das pessoas, ou, mais especificamente, uma
tecnologia de conformação do corpo. Ainda que gestado em um contexto relativamente
participativo – pois se trata, em primeira instância e um documento técnico da Comissão
Interministerial – o plano caracteriza-se como uma governamentalidade na medida em que
estabelece estratégias de controle da vida, ora vistas como biopoder, ora como governo
liberal.
Dessa forma, é importante entender, acompanhando a classificação proposta por Oels
(2005), em que medida as temáticas desenvolvidas nesse documento estão voltadas a um
controle da vida – biopoder – ou a uma mercantilização a vida – governo liberal. Assim, é
possível entender como se conforma o conjunto e ações que poderão ser confrontadas com a
estratégia discursiva do Governo Brasileiro.
Cabe salientar, que embora seja um plano de estruturação dos setores de maior
visibilidade e relevância com relação às Mudanças climáticas, pelo fato de ter sido elaborado
sem uma Política Nacional que o sustentasse, o Plano representa, em certa medida, um
esforço vão, uma vez que estrutura um regime nacional sem parâmetros determinados. Isso
ocorre, pelo fato de, na esteira das reuniões internacionais das COP’s fazer parte da estratégia
discursiva brasileira a demonstração de “avanço” e “inovação” no ativismo internacional para
gestão das mudanças climáticas.
Nesse sentido, o Plano Nacional de Mudança do Clima, foi apresentado por Lula da
Silva como uma das maiores contribuições de mitigação do mundo, tendo também salientado
que os esforços já realizados pelo Brasil eram um exemplo e que o país queria e podia fazer
ainda mais. Para Lula, o desafio das mudanças climáticas requeria ações de mitigação, apesar
do consenso não ser geral, o que justificaria a adoção do Plano pelo Brasil, focando contudo
em questões de equidade, tendo em conta o princípio das responsabilidades diferenciadas.
Para evitar que as populações mais pobres sofressem ainda mais com as mudanças climáticas
provocadas em grande parte pelo consumo nos países ricos, países como o Brasil, sem
compromissos obrigatórios, deveriam então agir. Lula terminou referindo que o Plano foi
realizado com ampla participação da sociedade e de vários ministérios.
É importante observar, diante disso, que o discurso presidencial contido na
apresentação do documento revela o combate às mudanças climáticas como um regime de
verdade (FOUCAULT, 2002) que engloba todo o âmbito da gestão do Estado. Contudo, o
enfoque brasileiro reitera a questão das responsabilidades diferenciadas e, mais, do combate a
pobreza vinculando as estratégias do Plano a uma questão de desenvolvimento que ora
preveem o fomento econômico, ora o social. Não obstante, ainda que isso represente, em
diferentes medidas, tecnologias de biopoder e de governo liberal, pouco se discorre sobre as
formas de participação da sociedade na execução desse Regime, levantando a questão relativa
à como essa governamentalidade se aproximas mais de uma estratégia política ou policial,
para utilizar os termos postos por Rancière (1995).
Assim, à apresentação do Presidente da República segue-se o Plano propriamente dito,
com os seus princípios, as várias áreas de atuação e o contexto Brasileiro de emissões de
GEEs, com descrições setoriais dos perfis de emissões e das várias medidas já tomadas de
mitigação. O Plano, de fato, pouco mais é do que uma compilação das medidas já tomadas
pelo Brasil ou em elaboração, da descrição do seu potencial de mitigação – fatores positivos
do Brasil em nível da mitigação, como o nível de emissões per capita e por área, bem mais
reduzidos que as grandes economias do mundo – com pouco conteúdo programático ou uma
verdadeira definição de metas, uma vez que seriam os vários planos setoriais que o iriam
posteriormente compor, que teriam esse papel.
O Plano estabelece o problema da mudança climática como um dos mais significativos
desafios a enfrentar pela humanidade – apesar de algumas incertezas, refere o Plano, a base
científica da mudança do clima é forte, de acordo com o quarto relatório do IPCC – que deve
então se unir para enfrentar este problema global, para que a “civilização continue a
prosperar”. Considerando essa também uma questão estratégica para o presente e o futuro do
desenvolvimento nacional, o Plano se institui assim como mecanismo de incentivo do
desenvolvimento de ações no Brasil, colaborativas ao esforço mundial e tendo em vista criar
as condições internas necessárias para o enfrentamento das consequências da mudança do
clima.
Referindo o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas e a
necessidade de desenvolvimento dos países menos desenvolvidos, o Plano refere que o Brasil,
mesmo sem ter obrigações de redução das emissões no seio da CQNUMC, pretende
harmonizar o seu crescimento socioeconômico com os preceitos do desenvolvimento
sustentável e que vem já buscando um caminho de esforço de mitigação da mudança do clima
ao mesmo tempo garantindo o bem-estar de seus cidadãos.
Trata-se de fato, de uma retórica win-win-win, em que o Brasil consegue atingir um
desenvolvimento sustentável ao aumentar o crescimento econômico, reduzir a pobreza e
preservar o ambiente, com um enfoque no aumento da competitividade da economia e dos
produtos brasileiros em um mundo globalizado, assim como nas questões sociais:
A premissa dos esforços do Brasil é o seu compromisso em reduzir a desigualdade
social e a aumentar sua renda buscando uma dinâmica econômica cuja trajetória de emissões
não repita o modelo e os padrões dos países que já se industrializaram (BRASIL, 2008, p. 7).
Perante esses desafios importantes da sociedade brasileira – crescimento econômico e
redução da pobreza – a mitigação do clima deve se adequar a eles e não o contrário. As
escolhas políticas são então “melhor compreendidas pela sociedade”: “[...] escolhas feitas à
medida que a sociedade reconhece o problema, compreende a dinâmica das múltiplas forças
que o provocam, define-se como parte da solução e se vê como beneficiária das decisões
tomadas” (BRASIL, 2008, p. 7).
O Plano elenca depois sete áreas onde concentrar as ações: eficiência econômica,
energias renováveis na matriz eléctrica; biocombustíveis; redução do desmatamento; redução
da perda florestal líquida – reflorestamento; redução da vulnerabilidade à mudança do clima;
e identificação de impactos e estímulo à pesquisa científica. Em sequência, sublinha que para
crescer economicamente, melhorar a competitividade das exportações brasileiras e gerar mais
renda, e preservar o clima ao mesmo tempo, é fundamental melhorar a eficiência econômica
do país. Para tal, o Plano apresenta como medidas um plano nacional de eficiência energética,
melhoramentos tecnológicos – e.g. refrigeradores, aquecimento solar – e melhorarias na
eficiência de vários setores de atividade através de acordos setoriais – agricultura, resíduos
sólidos urbanos, carvão, biocombustíveis – permanece obscuro o papel dos transportes e o
papel do consumo insustentável.
Na secção das energias renováveis na matriz eléctrica, pretende-se manter a sua
elevada contribuição – mantendo assim a posição de destaque do Brasil a nível internacional
com sua matriz elétrica “limpa” – através de leilões específicos para energias renováveis, do
desenvolvimento de mais projetos hídricos, do aumento da cogeração, da redução de perdas, e
do fomento à energia solar e eólica.
Quanto à promoção dos biocombustíveis, o objetivo é encorajar o aumento sustentável
da porção dos biocombustíveis na matriz nacional dos transportes e também promover o
desenvolvimento de um mercado internacional de biocombustíveis. Este pode ser um
indicativo de governo liberal avançado, pois o objetivo principal é o de desenvolver o
mercado internacional e garantir uma posição de destaque do Brasil. A narrativa dos efeitos
benéficos dos biocombustíveis e da necessidade de se estruturar um mercado internacional
consolida a justificativa, permanecendo ausente a preocupação com impactos resultantes no
usa da terra e desmatamento. Acaba por ser a única medida efetivamente destinada à redução
das emissões do setor dos transportes, apesar de aparecer mais como uma medida de
desenvolvimento de um mercado no qual o Brasil teria vantagens. Os meios a utilizar são
mistos, uns de caráter mais biopolítico como os percentuais obrigatórios de bioetanol e
biodiesel na gasolina e diesel, respetivamente e o zoneamento agroecológico da cana de
açúcar que dirige a produção para determinadas áreas. Outros são mais enquadrados em
governo liberal avançado: são os fomentos à indústria de etanol e à competitividade das
cadeias produtivas e dos produtores de cana-de-açúcar.
Na secção da redução do desmatamento, é referido o objetivo de atingir uma redução
sustentável das taxas de desmatamento em todos os biomas, de modo a atingir zero
desmatamento ilegal – o que não quer dizer anular as emissões relativas ao desmatamento já
que, por exemplo, um agricultor no bioma Amazônia pode desmatar até 20% do seu terreno,
esse percentual aumentando em outros biomas, o que provoca emissões de mudança de uso da
terra, apesar de ser perfeitamente legal. Talvez por isso seja dada importância a mecanismos
económicos e financeiros de modo a sustentar alternativas de sustento para as populações
rurais.
A meta de redução de desmatamento é de 40% na média de desmate de 2006 a 2009
em relação à média 1996-2005 e a partir daí de 30% a cada quatro anos. Em Copenhagen, em
2008 (COP15), apoiando-se nos resultados positivos do PPCDAM – que faz parte do Plano,
mas já existia antes deste – o Brasil foi mais além e apresentou a ambição de reduzir o
desmatamento em 80% até 2020, o que confere um nível de redução da taxa de desmatamento
mais intenso que o apresentado no Plano.
Para atingir esse objetivo de redução da taxa de desmatamento, são apontadas medidas
como a promoção da regularização fundiária, que tem elementos de biopolítica, mas também
de governo liberal avançado, pois garante a propriedade privada a ocupantes de terras da
União, já que a regularização fundiária é julgada fundamental para resolver a questão do
desmatamento ilegal.
Outros métodos de cariz biopolítico são o desenvolvimento de sistemas de
monitorização e fiscalização do desmatamento, o cadastro nacional de florestas públicas, e
atividades de inteligência voltadas para a fiscalização. Por outro lado, outros mecanismos são
notoriamente típicos de um governo liberal avançado: alguns dos estímulos a atividades
sustentáveis – como o REDD: Reducing Emmissions from Deforestation – ou a aplicação de
fundos nacionais e internacionais para a reorganização produtiva. Apoiando-se
fundamentalmente em formas de conhecimento típicas da biopolítica como a detecção remota
– cobertura florestal –, a ciência do clima e a contagem de carbono, esta secção também
reflete, tal como as restantes, um embasamento importante nas ciências econômicas.
Outra seção ligada ao setor florestal preocupa-se com o plantio de florestas como
atividade econômica e pretende dobrar a área de florestas plantadas. Como campos de
visibilidade, frisa os aspetos positivos das florestas plantadas como sumidouros de carbono, a
importância da recuperação de pastos degradados e a utilização de carvão vegetal. Acaba por
não indicar o impacto ambiental das monoculturas florestais – e.g. biodiversidade –
privilegiando o aspeto economicista que considera o plantio de monoculturas florestais,
geralmente exóticas, uma atividade econômica lucrativa. Este não é, pois um objetivo de
proteção das florestas do Brasil e do seu potencial de mitigação. Trata-se de uma
oportunidade económica a desenvolver pelo seu lucro potencial, a que se acresce um eventual
contributo, questionável, de contribuição para as reduções das emissões brasileiras,
nomeadamente em sede de mecanismos como o MDL. Outras medidas enquadradas em
governo liberal avançado por terem como principal objetivo a criação e consolidação de
mercados vis-à-vis a redução das emissões, incluem as linhas de crédito para tornar a
atividade silvícola mais atraente, a diversificação dos produtos e serviços florestais – e.g.
pagamento por “serviços ambientais” – recuperação de pastagens degradadas possibilitando o
avanço mais “ambientalmente correto” de culturas temporárias como a soja, o
desenvolvimento de florestas energéticas, a concessão de florestas públicas à atividade
privada e pactos setoriais. As medidas de cariz biopolítico, menos relevantes e até certo ponto
instrumentos para o bom funcionamento dos mercados a criar, incluem o ordenamento das
atividades florestais, o inventario florestal nacional e o combate ao consumo de madeira
ilegal. O embasamento científico na economia e engenharia florestais, no quadro do governo
liberal avançado, valida o desenvolvimento destes novos mercados.
Quanto ao fortalecimento da adaptação do país à mudança do clima, a ênfase é
colocada no controle e proteção da população, uma forma de biopolítica apoiada em formas
de conhecimento como a engenharia, a ciência do clima, a modelação hidroclimática, e a
modelação da vulnerabilidade e o risco. Preveem-se medidas como a identificação de grupos
populacionais mais frágeis e o fortalecimento de medidas de saneamento ambiental, ações
para promover a resiliência dos grupos mais frágeis, comunicação e educação ambiental,
sistemas de alerta precoce, estimulo e capacitação do sistema de saúde, identificação de
ameaças, de vulnerabilidades e de recursos para a elaboração de planos de prevenção,
preparação e emergência.
Finalmente, a secção de identificação de impactos e estímulo à produção científica
prevê o aumento da produção de conhecimento científico sobre a mudança do clima,
principalmente ao nível dos impactos e medidas de adaptação, notoriamente as ameaças
potenciais das secas e desertificação, sendo escassa a referência à investigação sobre
mitigação. Entre as medidas elencadas, destacam-se os sistemas de alerta precoce de secas e
desertificação, a gestão de bacias hidrográficas, o fortalecimento da agência nacional de
águas, o incentivo a práticas de otimização do uso de água, o reforço do sistema nacional de
gerenciamento dos recursos hídricos para uma gestão mais eficiente da água, entre outras.
Importante para a identificação de riscos climáticos, este desenvolvimento científico apoia as
medidas da secção anterior de fortalecimento da adaptação do país à mudança do clima, de
cariz biopolítico, mas também pode ser considerada como uma base importante para os vários
mercados – agrícola, da água – se poderem se reestruturar face ao desafio da mudança do
clima.
6. OS DISCURSOS DO BRASIL NA CQNUAC
Os discursos oficiais do Brasil na CQNUMC, apesar da sua incoerência face ao Plano
e à PNMC, e dos seus objetivos e públicos diferentes, ajudam a desvendar o “objetivo não
dito” da PNMC, e contêm narrativas e discursos ambientais que podem ser comparados a
elementos da PNMC e Plano, e.g. narrativas viabilizando a existência desses instrumentos e
construindo a sua base de justificação e seus objetivos, assim como discursos ambientais que
refletem determinados tipos de governamentalidade. Podem, enfim, indicar discrepâncias
entre o discurso oficial do Brasil em instâncias internacionais e o regime de
governamentalidade “doméstico” da mudança do clima.
Em, 2008, dias após o lançamento do Plano Nacional pelo Presidente Lula da Silva, o
ministro do Meio Ambiente Carlos Minc participou da conferência de Poznan (COP14), na
Polónia. No seu discurso, frisou que a “única terra que temos pra viver” estava em risco se
não se reduzissem as emissões.
Apesar de evocar o princípio das responsabilidades diferenciadas e que os países
industrializados deveriam fazer mais, acrescentou que os países em desenvolvimento
deveriam também demonstrar seu esforço imediato de redução com ações mensuráveis e
verificáveis. “O Brasil mudou, ousou e apela a todos os países a fazer a sua parte”.
Citou então o exemplo brasileiro, um exemplo a seguir dada a sua matriz eléctrica
limpa e a redução alcançada no desmatamento. O recém lançado Plano Nacional de Mudança
do Clima, segundo Minc resultado de ampla participação da sociedade, foi dado como a prova
de que o Brasil se compromete na mitigação da mudança do clima, destacando a esse respeito
a meta de redução do desmatamento em 70% até 2018, a incorporação de etanol – aumento de
10% ao ano, correspondendo a uma redução de emissões de 500 milhões de toneladas de CO2
em 10 anos – e que o Brasil estaria disposto a cooperar no setor do etanol com outros países
do “Sul”.
Minc referiu ainda a importância da transferência de recursos na CQNUMC e dos
mecanismos de Quioto, frisando a necessidade de aporte de recursos para evitar
desmatamento na Amazônia, onde, segundo ele, vivem 24 milhões de pessoas, dando o
exemplo do Fundo Amazônia .
Um ano mais tarde, em 2009, em Copenhague (COP15), o Presidente Lula da Silva
falou da severidade do problema da mudança do clima e da necessidade de proteger a Terra e
sua principal espécie, o ser humano, citando o Brasil como exemplo de combate à mudança
do clima. Explanando a Política e o Plano Nacionais adoptados pelo país, vincou que, mesmo
sendo um país em desenvolvimento e com dificuldades, decidiu agir, com metas de redução
das emissões, desta feita referindo valores diferentes dos apresentados um ano antes em
Poznan: redução das emissões de 36,1% a 38,9% e uma meta de redução da taxa de
desmatamento de 80% até 2020.
Considerou, no entanto que deveria ser continuada a prioridade ao desenvolvimento
dos países menos desenvolvidos, de acordo com o princípio das responsabilidades
diferenciadas. Para tal, referiu, a questão da ajuda financeira seria primordial, mas que via
com precaução a intervenção dos países ricos nos menos desenvolvidos e que, mesmo sem
recursos externos, o Brasil agiria com seus próprios meios e estaria mesmo disponível para
ajudar outros países.
Na COP16, em Cancun, em 2010, a nova Ministra do Meio Ambiente Izabellla
Teixeira –a novo governo de Dilma Rousseff – enfatizou o compromisso assumido pelo
Brasil com o desenvolvimento sustentável e os resultados obtidos nos últimos anos de
crescimento, diminuição da pobreza e proteção do ambiente, em simultâneo. Dando o
exemplo da diminuição do desmatamento dos últimos anos, referiu que esse feito acaba sendo
o maior contributo para a luta contra as mudanças climáticas e que o Brasil estava disponível
para partilhar a sua experiência de tecnologia para desenvolvimento sustentável com outros
países do “Sul”. Referiu ainda a participação da sociedade no processo de elaboração da
Política Nacional e dos planos setoriais noutros setores não relacionados com o
desmatamento, enaltecendo o estabelecimento do Fundo Amazônia e do Fundo Clima.
A mesma ministra em 2011, em Durban na África do Sul (COP17), voltou a sublinhar
o feito do Brasil de redução do desmatamento e enfatizou o principio das responsabilidades
comuns, mas diferenciadas e o triplo desafio de crescimento econômico, redução da pobreza e
preservação do ambiente. Referindo que os países em desenvolvimento já estariam fazendo a
sua parte, com compromissos voluntários e de acordo com desenvolvimento sustentável, deu
o exemplo do Brasil que tomou uma posição de estabelecimento de metas de redução das
emissões.
Explicitou a PNMA e os planos setoriais, frisando a participação da sociedade no
processo, a elaboração de metas, inventários e monitoramento e a integração das políticas nos
vários setores de atividade e a várias escalas governativas – e.g. políticas sociais integradas
com as ambientais como no caso do alojamento social. Enalteceu ainda a importância dos
mecanismos financeiros como o Fundo Amazônia e Fundo Clima. Defendeu também o
Protocolo de Quioto e a CQNUMC, a continuação dos mecanismos de flexibilidade e o
desenvolvimento de um novo instrumento internacional de mitigação da mudança do clima,
em que todos os países participem, para o período após 2020.
Em Doha, em 2012 (COP18), Izabella Teixeira voltou a defender o multilateralismo, a
CQNUMC e o Protocolo de Quioto como única maneira de enfrentar o desafio da mudança
do clima, que, para a ministra, seria crucial e global. Nesse sentido, defendeu novamente a
extensão do Protocolo para as partes do Anexo I, assim como ações de mais longo prazo para
o pós-2020, uma nova fase do regime, fortalecida pelo principio das responsabilidades
comuns e diferenciadas.
Dando, o exemplo do Brasil que tomou uma posição de compromissos voluntários de
redução de emissões, continuando ao mesmo tempo o seu trajeto de desenvolvendo e de
sustentabilidade, apresentou a PNMC e as suas metas, a participação da sociedade e os
resultados da redução do desmatamento. Considerando estes resultados um sucesso da política
brasileira, frisou a sua composição inter-ministerial e inter-setorial, Enalteceu a criação de
unidades de conservação e os sistemas de monitoramento implantados e referiu a ideia das
concessões de gestão florestal. Voltou ainda a referir a criação de mecanismos financeiros
como o Fundo Amazônia e o Fundo Clima, frisando o papel do primeiro para a cooperação
“Sul-Sul”, referindo no entanto que os países desenvolvidos também deveriam contribuir.
Finalmente, voltou a sublinhar a integração das políticas sociais e ambientais, como exemplo
de verdadeiro desenvolvimento sustentável, desta feita dando os exemplos dos assentamentos
“verdes” e da recuperação de terras degradadas.
Em suma, desde 2008 o Brasil vem defendendo a ideia dos compromissos voluntários
para países em desenvolvimento, justificando-se com a necessidade urgente de agir pelo bem
do futuro da humanidade e dando o exemplo do Brasil que conseguiu diminuir suas emissões,
crescer economicamente e reduzir a pobreza em simultâneo; defendeu o princípio das
responsabilidades diferenciadas, a responsabilização dos países desenvolvidos e a
transferência de recursos para o “Sul”; enalteceu o processo participativo da elaboração da sua
PNMC; enfatizou a importância dos mecanismos financeiros, da gestão florestal e do mercado
de biocombustíveis; publicitou o sucesso obtido com a redução do desmatamento no país;
prestou-se a ajudar outros países em desenvolvimento, numa cooperação “Sul-Sul”, tanto a
nível financeiro como de know-how do “sucesso” Brasileiro.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados indicam que o Regime Nacional de Mudança Climática do Brasil reflete
a transição de biopolítica para governo liberal avançado identificada por Oels (2005) no
Regime Internacional de Mudança Climática. Sendo uma política nacional de controle da
vida, regulando-a no sentido de diminuir emissões, trata-se de uma biopolítica típica,
estendida também ao controle e “matematização”/quantificação dos mecanismos naturais. O
controle das emissões e do desmatamento, as metas, os inventários, os zoneamentos, são
aspetos típicos de biopolítica. Apesar do que é referido nos discursos do executivo na
CQNUMC, a participação da sociedade está longe de ser plenamente atingida, refletindo uma
preponderância do elemento Polícia vis-à-vis da Política.
Paralelamente a esta componente biopolítica, há traços evidentes e importantes de
governo liberal avançado como a adopção de mecanismos económicos e tecnológicos para o
cumprimento de níveis de “eficiência” e maioritariamente moldados por um discurso de
“modernização ecológica”. A própria capitalização da natureza é identificada em várias ações,
principalmente englobando o cumprimento de acordos internacionais e bilaterais relacionados
com o MDL e com o mercado de carbono. Até os mecanismos de biopolítica acima descritos
conduzindo a uma “matematização” da natureza – inventários, zoneamentos – poderiam ser
considerados como sendo parte de uma estratégia de exploração lucrativa da natureza,
possibilitando a construção de mercados como os da silvicultura industrial, do carbono e dos
biocombustíveis. O governo liberal avançado está ainda patente no destaque dado aos
mecanismos financeiros – Fundo Amazônia, Fundo Clima – tanto nos discursos como no
Plano e na PNMC.
Em geral, no contexto das governamentalidades, tanto o Plano como a PNMC
evidenciam uma transição de biopolítica para governo liberal avançado, refletindo o mesmo
tipo de formação de identidades, formas de conhecimento privilegiadas e tecnologias
empregues. Questões de pormenor refletem algumas diferenças que podem ser explicadas
pela incomum sucessão de eventos que conduziu à sua adopção – o Plano apresentado antes
da Política e os planos setoriais que comporiam o Plano Nacional, por enquanto, ainda não se
encontram totalmente finalizados.
No que diz respeito aos discursos oficiais na CQNUMC, estes sustentam a
racionalidade do Plano e PNMC, justificando a sua pertinência com a urgência de agir face ao
problema da mudança do clima e com a possibilidade, com “provas dadas” – o Brasil – dos
países em desenvolvimento continuarem a sua trajetória de desenvolvimento e reduzir as suas
emissões, mesmo o país não tendo obrigatoriedade de reduzir suas emissões no quadro da
CQNUMC. A retórica do desenvolvimento sustentável e o “sucesso” obtido pelo Brasil nesse
campo viabilizam a tomada de compromissos voluntários pelo Brasil que se torna assim uma
parte “responsável” da CQNUMC e contribuindo de fato para a redução global de emissões.
No Plano e na PNMC, todavia, a ênfase é colocada no crescimento econômico e
competitividade do país e na redução da pobreza, aos quais as medidas de redução das
emissões deverão se adaptar, alijando a população de participação no processo e controlando
os índices de emissão, o que pode ser caracterizado com uma estratégia biopolítica.
Os discursos oficiais na CQNUMC acabam também por desvendar os “objetivos não
ditos” do Plano e PNMC: buscar proeminência internacional através do soft power do Brasil,
abrindo mercados no “Sul” para a expansão do know how brasileiro, publicitado como caso de
sucesso na mitigação da mudança climática. A tecnologia agrícola, os biocombustíveis, o
know how florestal são disso exemplo.
Esta vontade de ganhar relevância internacional e autoridade nas questões
internacionais de meio ambiente esteve ainda na origem da invulgar cronologia de elaboração
do regime brasileiro de mudança do clima, em que o Plano foi apresentado antes da Política,
pois o Executivo se apressou em mostrar na COP14 em 2008 o sucesso da experiência
Brasileira pretendendo ganhar reconhecimento internacional por, finalmente, ter assumido
compromissos (voluntários), mesmo sendo um país em desenvolvimento – sendo por isso um
importante contributo para o desbloqueio das negociações no seio da CQNUMC, sobretudo a
divisão entre “Sul” e “Norte”.
O Brasil, sem querer mais ser visto como um mero país em desenvolvimento, mas
como importante player internacional, “dá o exemplo” na CQNUMC, mostrando como atingir
o “desenvolvimento sustentável”, e se mostra disponível para ajudar outros países do “Sul”.
Esta posição de crescente importância do país na CQNUMC tem paralelo em outras instâncias
internacionais e pode ser explicada pelos importantes reordenamentos geopolíticos e
geoeconômicos nas arenas nacional e internacional ocorridos desde o início do século XXI,
em função dos avanços econômicos e sociais pelos quais o Brasil passou nos últimos anos e
da busca de protagonismo internacional empreitada pelos Governos Lula da Silva.
A coexistência no Pano e PNMC de uma biopolítica no controle das emissões da
população e de mecanismos típicos de governo liberal avançado também é patente nos
discursos do Brasil na CQNUMC, sendo de destacar a importância dada aos mecanismos
financeiros e as referencias à gestão florestal.
Os resultados obtidos no controle do desmatamento favoreceram a transformação do
setor florestal de “handicap” a oportunidade, com novos mercados daí resultantes e
possibilitando a atitude mais assertiva do Brasil que conduziu à elaboração de compromissos
voluntários de redução de emissões. O sucesso no controle do desmatamento, observado
apenas até 2009, pode mesmo explicar o aumento da ambição das metas de redução da taxa de
desmatamento de Poznan a Copenhague.
Restam dúvidas, porém acerca da longevidade do trunfo florestal nas negociações
internacionais do clima, uma vez que a partir de 2020 é pouco provável que se consigam
reduções suplementares da taxa de desmatamento, estando esta redução prestes a atingir um
limite. As emissões dos setores industrial e de transportes passariam a ter mais importância,
principalmente devido ao aumento do consumo da população resultante do sucesso das
políticas de redução da pobreza e do crescimento da classe média. O locus de ação passaria
assim a ser outro: a eficiência de setores industriais, transportes e mobilidade e a questão do
consumo. Como o Brasil irá lidar com estas questões e como elas vão influenciar a posição do
Brasil na CQNUMC, permanece em aberto, assim como o tipo de ecogovernamentalidade que
será então será privilegiada.
Por outro lado, não é apenas o cenário de emissões do Brasil que condiciona a
moldagem do regime brasileiro de mudança do clima. Tendo em conta o papel de jogos
políticos no seio do executivo e a influência de setores sociais na evolução da posição
Brasileira na CQNUMC e na elaboração de Plano e PNMC, é de interesse ficar também
atento a como a questão do clima vai evoluir nessas instâncias no futuro. O veto do Ministério
de Minas e Energia na PNMC em relação à menção do progressivo abandono dos
combustíveis fósseis – explicado pelo advento do pré-sal – a diferente influência de
ministérios – Relações Externas e Ciência e Tecnologia em relação ao Ministério do Meio
Ambiente – e de grupos sociais – ambientalismo, empresariado – condicionaram a evolução
verificada na posição internacional do Brasil sobre a mudança do clima, especialmente no que
diz respeito às questões florestais e a compromissos de mitigação de GEEs em países em
desenvolvimento, e consequentemente a evolução do regime brasileiro de mudança do clima.
A atualidade, caracterizada por ambientalistas como momento de “retrocesso” da
política ambiental – e.g. novo código florestal – em muito resultado do aumento do poder e
eficácia de atuação do lobby agrícola no país – e.g. a importante bancada ruralista no
Congresso Nacional – pode erodir os ganhos alcançados na redução do desmatamento. A
necessidade do executivo se apoiar em amplas coalizões – característica do sistema político
brasileiro – incluindo uma parte considerável da bancada ruralista, condiciona a ação do
governo Rousseff. Este executivo, por outro lado, mantém uma postura desenvolvimentista
que privilegia a construção de grandes empreendimentos – e.g. hidrelétricas e estradas na
Amazônia – e a promoção do consumo – e.g. redução da carga fiscal na compra de
automóveis – fazendo com que o Regime de Mudanças Climáticas caracterize-se como uma
estratégia ecogovernamental que prioriza o controle dos índices e a disciplinarização indireta
da população – como em campanhas de redução do consumo – desviando sua ação dos
setores produtivos nos quais deveria se concentrar a ação de redução dos gases do efeito
estufa. Assim, percebe-se no governo Rousseff uma distensão e um afastamento da questão
das mudanças climáticas de uma estratégia ambiental e seu aprofundamento em tecnologias
de controle, por vias de atendimento a pressões dos sistemas produtivos industrial e agrário.
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