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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de Pós-graduação em Filosofia
LIBERDADE E HISTÓRIA A PARTIR DA
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE MERLEAU-PONTY
Clio Francesca Tricarico
São Paulo - SP
2010
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
Programa de Pós-graduação em Filosofia
LIBERDADE E HISTÓRIA A PARTIR DA
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE MERLEAU-PONTY
Clio Francesca Tricarico
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
São Paulo - SP
2010
Tricarico, Clio Francesca
Liberdade e história a partir da Fenomenologia da Percepção de
Merleau-Ponty / Clio Francesca Tricarico. - São Paulo, 2010.
146 f. ; 30 cm.
Orientador: Hélio Salles Gentil
Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São
Paulo, 2010.
1. Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961 2. Temporalidade -
filosofia 3. Liberdade - história I. Gentil, Hélio Salles II.
Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Filosofia. III. Título
Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878
“Dedico este trabalho aos meus pais, meus primeiros inspiradores no pensar e à Nair, por me libertar quando me mostrou que eu podia.”
“Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Hélio Salles Gentil pela paciência, pela gentileza, pelo precioso
acompanhamento e pela hábil condução na arte de orientar.
Agradeço também a todo o corpo docente do
Curso de Graduação e Pós-graduação em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, pelo
rico aprendizado.
Agradeço ainda à CAPES e à Universidade São Judas Tadeu pelo apoio financeiro sem o qual,
este trabalho não seria possível.
Agradeço particularmente ao meu irmão, Leandro, pelas discussões e ao Reginaldo pelo
encorajamento que foi fundamental para o meu retorno ao âmbito acadêmico.
Agradeço, por fim, à minha família e aos meus
amigos, por todo apoio, auxílio e paciência.”
“...apenas o herói vive até o fim sua relação com os homens e com o mundo, e não convém que um outro fale em seu
nome. ‘Teu filho está preso no incêndio, tu o salvarás... Se há um obstáculo, venderias teu braço por um auxílio. Tu
habitas em teu próprio ato. Teu ato é tu... Tu te transformas... Tua significação se mostra, ofuscante. Este é teu dever, é tua raiva, é teu amor, é tua fidelidade, é tua invenção... O
homem é só um laço de relações, apenas as relações contam para o homem.’”
(Merleau-Ponty)
RESUMO Este trabalho tem como objetivo explorar as concepções de liberdade e história, que surgem a partir da concepção de temporalidade elaborada por Merleau-Ponty em sua obra Fenomenologia da Percepção. Procuramos mostrar como o autor constrói sua concepção de liberdade considerando a relação de mútua constituição entre sujeito e mundo. Nessa mútua constituição, o sujeito, concebido como tempo, realiza sua liberdade como um contínuo movimento de retomada de seu contexto histórico e de abertura ao porvir dando um novo sentido à situação na qual está inserido. Essa relação de interdependência entre sujeito e mundo faz com que Merleau-Ponty não possa admitir uma liberdade absoluta, apontando então para a concepção de uma liberdade “condicionada”, inserida numa história que, ao mesmo tempo, ultrapassa o sujeito e é constituída por ele em suas decisões. Palavras-chave: Merleau-Ponty. Liberdade. História. Temporalidade. Subjetividade.
ABSTRACT This study has as main objective to explore the conceptions of liberty and history, which were created from the conception of temporality, elaborated by Merleau-Ponty, in his work Phenomenology of Perception. Our aim is to show how the author works the conception of freedom considering the (of mutual constitution) relation between subject and world. In this mutual constitution, the subject, conceived as time, exerts his freedom as a continuous movement of recovering his historical context and of opening to the future, giving a new meaning to the situation in which his inserted. This relation of mutual dependence between subject and world makes Merleau-Ponty to refuse an absolute freedom, pointing to a conception of freedom which can be labeled as “conditional”, inserted in a history which, at the same time, surpasses the subject and is formed by him in his decisions. Keywords: Merleau-Ponty. Freedom. History. Temporality. Subjectivity.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................ 007
Capítulo 1: A subjetividade .................................................................................... 010
1.1 O corpo e a percepção .................................................................. 011
1.1.1 A fala ..................................................................................... 017
1.2 O sujeito pré-reflexivo .................................................................... 022
1.2.1 O fluxo anônimo e o campo fenomenal ................................. 027
1.2.2 O cogito tácito ....................................................................... 034
1.3 O cogito e a intencionalidade ........................................................ 042
Capítulo 2: A temporalidade .................................................................................. 052
2.1 A percepção do tempo .................................................................. 053
2.2 O tempo como dimensão do nosso ser ......................................... 057
2.3 A presença ..................................................................................... 065
Capítulo 3: A história ............................................................................................. 070
3.1 A sedimentação ............................................................................. 073
3.2 O ser histórico e a intersubjetividade ............................................. 090
3.3 A discussão com Marx .................................................................. 096
3.4 O instante e a situação: a iniciativa ............................................... 106
Capítulo 4: A liberdade .......................................................................................... 114
4.1 Causalidade x casualidade ............................................................ 114
4.2 A liberdade condicionada .............................................................. 122
Conclusão ............................................................................................................. 139
Bibliografia ............................................................................................................. 143
7
Introdução
O objetivo deste trabalho é examinar as concepções de liberdade e história
que surgem a partir da noção de temporalidade desenvolvida por Merleau-Ponty em
sua obra Fenomenologia da percepção. Nesta, como se sabe, Merleau-Ponty
estabelece um diálogo com muitos filósofos, tais como Descartes, Husserl, Hegel,
Heidegger, Bergson, Marx e Sartre; as breves explanações constantes nesta
dissertação relativas às concepções desses outros filósofos têm caráter pontual,
tendo sido extraídas, em sua maior parte, de obras introdutórias sobre esses
pensadores, tomadas apenas com o intuito de melhor esclarecer as ideias de
Merleau-Ponty. Obviamente, um estudo mais aprofundado dessas concepções e
desse diálogo permitiria uma compreensão ainda maior do pensamento do autor;
porém, esta tarefa escapa ao alcance deste trabalho.
A questão inicial que se colocou para esta investigação foi: é possível um
ser histórico ser livre?
Partindo da concepção de temporalidade de Merleau-Ponty, é possível
desconstruir o conceito de sujeito/consciência cartesiano, indo ao encontro da ideia
fenomenológica de um acesso direto aos objetos, não mediado por representações
mentais - a consciência que é sempre “consciência de” algo (a intencionalidade:
denominação dada na fenomenologia de Husserl para esta “consciência de” -
conceito que retomaremos no decorrer desta dissertação), procurando compreender
as vivências humanas da maneira como elas se apresentam na relação entre sujeito
e mundo. A investigação de Merleau-Ponty não tem um caráter especulativo acerca
de objetos “exteriores” ao sujeito; ao invés disso, consiste em mergulhar nas
dimensões com as quais se constituem as percepções do sujeito, um sujeito que co-
existe com o mundo, existindo por meio da corporeidade e da temporalidade.
A existência consiste na estrutura temporal na qual se entrelaçam imanência
e transcendência1.
_______________ 1 Apenas para esclarecer, apresentamos de modo breve, os sentidos de imanência e transcendência a que nos referimos aqui; para tanto, transcrevemos dois trechos das definições de Nicola Abbagnano que apontam para os sentidos de imanência e transcendência trabalhados e criticados na Fenomenologia da percepção por Merleau-Ponty: Imanência: “resolução da realidade na consciência; [...] Essa terminologia, que é seguida por Schelling, atribui ao adjetivo ‘imanente’ a característica do idealismo absoluto, para o qual nada existe fora do Eu.” Transcendência: “ato de estabelecer uma relação que exclua a unificação ou a identificação dos termos; [...] Com referência à T. do ser ou da coisa em relação à consciência que a apreende ou ao ato de conhecimento que é seu objeto, a própria consciência ou o ato de conhecimento foram chamados de transcendentes em sentido ativo. Assim, Husserl fala de percepção transcendente, que tem a coisa por objeto e em relação à qual a coisa é transcendente, o que difere da percepção imanente, que tem por objeto as experiências conscientes que são imanentes à própria percepção.”
8
A transcendência é acessada pela subjetividade por meio de sua
corporeidade e de sua percepção; a percepção desse mundo e de si mesma se
desdobra em uma temporalidade. Merleau-Ponty irá definir o sujeito como tempo,
como “rede de intencionalidades”, como veremos.
No pensamento de Merleau-Ponty, nada pode estar fora dessa estrutura
existencial porque sujeito, tempo e mundo são indissociáveis para poderem existir. É
desta maneira que Merleau-Ponty tira o sujeito de seu mundo isolado; o sujeito não
só tem acesso às “coisas” como também aos outros sujeitos, formando-se assim,
como veremos, uma intersubjetividade.
Partindo dessa elaboração da intersubjetividade, pode-se delinear uma
concepção de história de Merleau-Ponty que se constitui na interação entre as
experiências humanas vividas temporalmente no mundo, ou seja, a história é
constituída nas relações que se fazem na intersubjetividade.
A investigação nesta dissertação percorreu um caminho para esclarecer
como, com suas novas concepções de subjetividade, temporalidade e história,
Merleau-Ponty elabora sua concepção de liberdade, dentro de um projeto filosófico
que apreende a existência como sendo a estrutura onde se dão as relações
intersubjetivas por meio da intercorporeidade, articulando uma “rede de
intencionalidades” e constituindo a história. Desta maneira, os dois primeiros
capítulos apresentam as concepções de subjetividade e temporalidade,
fundamentais, no nosso entender, para a compreensão das concepções de história
e liberdade no pensamento do autor.
O ser humano tem a sua existência entrelaçada ao contexto histórico no qual
está inserido e sobre o qual age; sua existência consiste nas relações de “sentidos”
que “troca” com o mundo. Sob esta perspectiva, perguntamos: Como o ser que é
constituído em meio a essa teia de intencionalidades, em meio a uma história que
preexiste no mundo, tem a possibilidade de liberdade? Como Merleau-Ponty
compreende a liberdade e sua relação com essa história preexistente? Se, por meio
da corporeidade e da temporalidade, fazemo-nos enquanto fazemos a história,
pode-se ainda pensar numa liberdade incondicionada?
A hipótese de trabalho dessa dissertação foi a de que um exame dos
conceitos primordiais trabalhados por Merleau-Ponty na Fenomenologia da
percepção permitiria estabelecer uma noção de liberdade coerente com uma
concepção da existência do sujeito no mundo, dando um novo sentido à
9
contingência. Essa concepção de liberdade tem como aspecto principal o
engajamento do sujeito no mundo; sob este aspecto, a liberdade somente é possível
em um campo que se constitui na relação entre o sujeito e o mundo histórico-
cultural, envolvendo todas as sedimentações acumuladas no passado e os novos
sentidos que são gerados pela ação desse sujeito em sua situação presente.
Tentando dissolver as oposições entre intelectualismo e empirismo e as
dicotomias geradas por essas oposições, Merleau-Ponty nos mostrará uma
concepção de liberdade que não se opõe ao determinismo, se assim o podemos
dizer, excluindo a liberdade e o determinismo absolutos, afirmando uma liberdade
“condicionada”, cujo sentido esperamos ter contribuído para esclarecer com esse
trabalho.
10
Capítulo 1: A subjetividade
“TRADUZIR-SE
Uma parte de mim é todo mundo:
outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão: outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta:
outra parte se espanta.
Uma parte de mim
é permanente: outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem:
outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte - que é uma questão
de vida ou morte - será arte?”
(Ferreira Gullar)
A filosofia de Merleau-Ponty procura traçar um caminho do meio entre os
pensamentos intelectualista e empirista e, para tanto, coloca como seu cerne a
investigação da existência, dando primazia à ideia de percepção. Nesse caminho do
meio, no pensamento de Merleau-Ponty, vai se delineando a ideia de um sujeito que
não pode ser concebido nem somente como consciência, nem somente como corpo:
consciência e corpo, para Merleau-Ponty, estão unidos de modo inextricável. Esta
união inextricável é uma das noções que tentaremos explicitar no decorrer deste
capítulo.
11
A distinção entre consciência e corpo como elementos substancialmente
separados vem principalmente do pensamento de Descartes, a partir da noção do
Cogito, onde ele estabeleceu o dualismo com base na ideia de que o pensamento
seria substancialmente imaterial (a consciência é reduzida à res cogitans) com
atividade espontânea (relacionada assim à liberdade) e o corpo corresponderia à
substância material (a res extensa) sendo passiva e determinada pela natureza.
Para dissolver esta distinção, Merleau-Ponty dedica toda a primeira parte da
Fenomenologia da percepção para apresentar sua concepção de corpo e um
capítulo, na terceira parte, para examinar a noção cartesiana do cogito.
Para se compreender a subjetividade segundo Merleau-Ponty, além das
noções de corpo e de consciência, será necessário explicitar as noções do que ele
chama de “pré-reflexivo” e de “campo fenomenal”; a síntese destes elementos se
dará pela temporalidade, o que explicitaremos melhor no capítulo 2 desta
dissertação.
Assim, procuraremos inicialmente, a partir das noções de corpo e de pré-
reflexivo de Merleau-Ponty, compreender sua noção de subjetividade.
1.1 O corpo e a percepção
Na Fenomenologia da percepção, no capítulo “A síntese do corpo próprio”,
Merleau-Ponty diz que “não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas
antes à obra de arte.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 208) A citação, a princípio, mais
parece a evocação de um poema; porém, a análise é bem mais profunda e
consistente.
A noção de corpo em Merleau-Ponty pode ser considerada essencial à sua
ideia de estrutura existencial: espaço e corpo formam uma única estrutura
indissociável. Em sua tese A ambiguidade na Fenomenologia da percepção de
Maurice Merleau-Ponty, Leandro Neves Cardim explicita essa ideia; diz Cardim:
A relação entre a espacialidade de posição e a espacialidade de situação ou, mais precisamente, entre o espaço exterior homogêneo e o espaço corporal, pode ser entendida da seguinte maneira: quando nos referimos ao espaço exterior e homogêneo trata-se de ter em mente o espaço tal como ele se apresentava para Descartes (a extensão partes extra partes). Como a palavra “sobre” só faz sentido para um sujeito que está situado por seu corpo em relação ao mundo, não posso reduzir o espaço orientado ao espaço externo e homogêneo. Este não é condição suficiente para o espaço corporal. A relação entre ambos deve ser pensada como uma preparação do espaço inteligível no espaço corporal e a partir do próprio
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sensível é que deve ser feita sua gênese. É graças ao corpo próprio que existe espaço para nós. (CARDIM, 2007, p. 47)
A explicação de Cardim aponta para um fator importante que iremos explicitar
mais detalhadamente no decorrer desta dissertação que consiste no sentido
inteligível com o qual apreendemos tudo o que percebemos. Por ora, esta ideia já
nos serve para mostrar a diferença entre as concepções de espaço de Descartes e
de Merleau-Ponty, na qual se fundamenta a noção de corpo próprio deste último.
Toda experiência, todas as percepções que vivenciamos advêm do que
Merleau-Ponty chama de “corpo próprio”. Nele, vivenciamos uma “inter-
sensorialidade”, ou seja, temos uma “visão” interior, uma experiência de nosso
próprio corpo, uma percepção que nos faz sentir os nossos membros com todas as
percepções sensoriais misturadas e ao mesmo tempo: quando sinto o meu braço, eu
o experimento, sem nem ao menos precisar estar com os olhos abertos ou tocá-lo.
Percebemos o espaço, desde que somos esse corpo e isto somente é possível não
porque estamos localizados num espaço absoluto, como na concepção de Newton,
mas porque somos no espaço, fazendo parte dele. De fato, como diz Merleau-
Ponty: “Ser corpo [...] é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está
primeiramente no espaço: ele é no espaço.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205)
Ser um corpo é o que possibilita ao sujeito vivenciar a dimensão espaço-
temporal, interagindo de modo direto com o mundo; essa interação consiste na
própria existência, no nosso viver no mundo. Nessa interação, segundo Merleau-
Ponty, tudo que se apresenta a nós, se apresenta com um sentido; o sentido nasce
da relação entre sujeito e mundo, primordialmente, por meio da expressão
(explicitaremos a relação entre sentido e expressão no item 1.1.1). Inicialmente, para
dar uma ideia de sua concepção de sentido, Merleau-Ponty se utiliza de vários
exemplos no que concerne à expressão, incluindo a arte. Na arte, se realizam os
mais diversos tipos de expressão e, ao entrar em contato com qualquer obra de arte,
vivenciamos o que Merleau-Ponty quer mostrar: seja num quadro, num poema ou
numa música, as sensações que a obra nos propicia vem de todo o seu conjunto,
de sua totalidade. Ao olharmos para um quadro, para captarmos o seu sentido, não
distinguimos as cores, da tinta ou do movimento do pincel; ao ouvirmos uma
sinfônica, não destacamos os instrumentos de seus sons; do mesmo modo “a fala
significa não apenas pelas palavras, mas ainda pelo sotaque, pelo tom, pelos gestos
e pela fisionomia, e assim esse suplemento de sentido revela não mais os
13
pensamentos daquele que fala, mas a fonte de seus pensamentos e sua maneira de
ser fundamental”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 209) Numa outra passagem,
Merleau-Ponty faz novamente uma analogia para mostrar no que consiste a relação
entre a fala e o pensamento, dizendo que um pensamento sem fala seria o mesmo
que uma música sem sons. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 258)
Do mesmo modo, é o corpo: não se dissocia do corpo o seu espaço
circundante. O corpo percebe o seu espaço circundante por meio de sua própria
expressão, de seu movimento e das expressões que se apresentam, não se
distinguindo essas expressões das coisas que as expressam: a percepção apreende
a coisa e sua respectiva expressão de modo misturado, de um só golpe. Como diz
Merleau-Ponty: “Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são
indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do
expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua
significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que
nosso corpo é comparável à obra de arte.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 209)
A estrutura existencial na concepção de Merleau-Ponty consiste na
intersecção que o autor mostra haver entre corpo e espírito, signo e significação,
sujeito e mundo. Não existem as partes separadamente; a cisão é uma manobra
intelectual do que existencialmente é indissociável. Merleau-Ponty diz ainda acerca
da relação entre corpo e expressão:
Pode-se dizer que o corpo é “a forma escondida do ser próprio” ou, reciprocamente, que a existência pessoal é a retomada e a manifestação de um dado ser em situação. Portanto, se dizemos que a cada momento o corpo exprime a existência, é no sentido em que a fala exprime o pensamento. Para aquém dos meios de expressão convencionais, que só manifestam meu pensamento ao outro porque, em mim como nele, já estão dadas significações para cada signo, e que nesse sentido não realizam uma verdadeira comunicação, é preciso reconhecer, veremos, uma operação primordial de significação em que o expresso não existe separado da expressão e em que os próprios signos induzem seu sentido no exterior. É dessa maneira que o corpo exprime a existência total, não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque a existência se realiza nele. Esse sentido encarnado é o fenômeno central do qual corpo e espírito, signo e significação são momentos abstratos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 229)
Entendemos que para Merleau-Ponty somos essa relação, essa estrutura
espaço-temporal que se faz por meio do nosso corpo, ou melhor, que isso é
possível porque somos o nosso corpo. Nossas intenções são indissociáveis de
nossos gestos, que são indissociáveis de nossas percepções, que são indissociáveis
de nossos sentimentos e pensamentos. Tudo é um só conjunto e ocorre num só
14
movimento; não temos a percepção de nós mesmos, como teríamos de um objeto
no modelo intelectualista. No intelectualismo, por exemplo na apreensão de um
cubo, percebemos uma face, depois a outra e, finalmente, o sintetizamos em nosso
pensamento; mas, para Merleau-Ponty, a percepção se dá de um só golpe,
abarcando todas as perspectivas sensoriais e intelectivas, o que vem a ser então
uma síntese que é perceptiva. Segundo Merleau-Ponty, não ocorre aqui uma
interpretação dos dados sensoriais realizada pela intelectualidade, e sim uma
vivência da percepção intelectiva (percepção e intelecto misturados, sem
delimitação de onde termina uma e inicia o outro). No corpo se dá a “relação
orgânica que existe entre sujeito e mundo”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 211) A
ideia da percepção e da intelecção estarem “misturadas” no corpo vai fundamentar a
concepção do que Merleau-Ponty denomina “corpo próprio”.
Posteriormente, em O filósofo e sua sombra, Merleau-Ponty procurará
explicitar ainda mais como se dá a percepção do corpo próprio; diz ele:
Quando minha mão direita toca a esquerda, sinto-a como uma “coisa física”, mas no mesmo instante, se eu quiser, um acontecimento extraordinário se produz: eis que minha mão esquerda também se põe a sentir a mão direita, es wird Leib, es empfindet
2. A coisa física se anima, ou, mais exatamente, permanece como era, o acontecimento não a enriquece, e entretanto, uma potência exploradora vem pousar sobre ela ou habitá-la. Assim, porque eu me toco tocando, meu corpo realiza “uma espécie de reflexão”. Nele e por ele não há somente um relacionamento em sentido único daquele que sente com aquilo que ele sente: há uma reviravolta na relação, a mão tocada torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato está espalhado pelo corpo, que o corpo é “coisa sentiente”, “sujeito-objeto” [...] Minha mão direita assistia ao surgimento do tato ativo em minha mão esquerda. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 247–249)
A percepção do corpo próprio irá estabelecer outro ponto fundamental, uma
percepção que se torna banal no decorrer de nossa vida por parecer óbvia, mas que
em sua origem mais primitiva dá início à identificação de outros seres como sendo
seres similares a nós: a percepção de outro corpo que não é o meu, mas que é
similar ao meu. Na percepção que sinto ao minha mão direita tocar a minha mão
esquerda e na percepção que sinto ao minha mão tocar outra mão que não é minha,
ocorre uma identificação de outro corpo que é semelhante ao meu, mas que porém
não é o meu. É o que Merleau-Ponty esclarece na sequência do texto acima:
_______________ 2 Em alemão: “É o órgão, ele se sente.”
15
Não é de maneira diversa que o corpo de outrem se anima diante de mim quando aperto a mão de um outro homem, ou quando a olho somente. Aprendendo que meu corpo é “coisa sentiente”, que é excitável (reizbar) – ele e não somente minha “consciência” – preparei-me para compreender que há outros animalia e, possivelmente, outros homens. É preciso notar bem que nisto não há comparação, nem analogia, nem projeção ou “introjeção”. Se, apertando a mão de um outro homem, tenho a evidência de seu ser-aí, é porque ela se coloca no lugar de minha mão esquerda. No aperto de mãos, meu corpo anexa o corpo de outra numa “espécie de reflexão” cuja sede, paradoxalmente, é ele próprio. Minhas duas mãos são “co-presentes” ou “co-existem” porque são as mãos de um só corpo; o outro aparece por extensão dessa co-presença. Ele e eu somos os órgãos de uma só intercorporiedade. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 247 – p.249)
Minha percepção do meu corpo ao tocar-me é diferente da percepção que
tenho ao tocar outro objeto ou outro corpo (similar ao meu). Pela percepção consigo
distinguir algo que sou eu de algo que não sou eu; porém, interagindo com este
“outro”, percebo uma “similaridade” quando se trata de outro corpo como o meu.
Quando pego um livro, tenho a percepção de uma coisa diversa de mim; porém,
quando toco uma mão que não é a minha, reconheço de imediato a sensação que
tenho ao tocar a minha mão, mas sinto que essa não é a minha mão. Desta forma,
não preciso utilizar de um processo intelectivo para concluir que estou
provavelmente diante de outro sujeito; na realidade, eu o sinto como outro sujeito, a
partir da percepção corporal, o que vai se completar com a observação de seu
comportamento. Esse recíproco reconhecimento faz com que ao mesmo tempo em
que o outro se apresente como uma coisa (no sentido de que não sou eu), se
apresente também como outro similar a mim e correlativamente é da mesma
maneira que sou percebido por outro sujeito.
Desta maneira, poder-se-ia dizer que, para o outro, sou uma coisa e para mim
sou um sujeito (no sentido que tenho acesso à minha consciência e à do outro não),
o mesmo ocorrendo comigo em relação a ele. Mas como posso ser ao mesmo
tempo coisa e consciência? Esta ideia irá ao encontro da argumentação de Merleau-
Ponty de que o sujeito não pode ser inteiramente consciência, nem inteiramente
coisa. No Capítulo V, da Primeira parte da Fenomenologia da percepção, “O corpo
como ser sexuado”, Merleau-Ponty diz:
Nunca me torno inteiramente uma coisa no mundo, falta-me sempre a plenitude da existência como coisa, minha própria substância foge de mim pelo interior e alguma intenção sempre se esboça. Enquanto possui “órgãos dos sentidos”, a existência corporal nunca repousa em si mesma, ela é sempre trabalhada por um nada ativo, continuamente ela me faz a proposta de viver, e o tempo natural, a cada instante que advém, desenha sem cessar a forma vazia do verdadeiro acontecimento. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 228)
16
No processo perceptivo do sujeito, de seu corpo próprio e de outros corpos,
Merleau-Ponty aponta para um fator primordial: o tempo. Toda a percepção que
tenho, no instante presente, é vazia se não a concateno com as percepções dos
instantes anteriores. Só reconheço a percepção de uma mão similar à minha porque
guardo em mim essa sensação; misturados à percepção atual encontram-se
sentidos e significações previamente adquiridas.
Mas isso não poderia ser entendido como um reducionismo do ser humano ao
corpo? Para Merleau-Ponty, a um homem a quem faltassem as mãos ou a visão, ele
deixaria de ser um homem, por não possuir a possibilidade de plenitude de sua
percepção intelectiva? Certamente não; é importante compreender que a noção de
corpo próprio de Merleau-Ponty não se restringe ao corpo-objeto empírico. O corpo
para Merleau-Ponty é o conjunto de toda a sorte de relações entre o sujeito e
mundo, entendendo estas relações não só como sensíveis, mas também como
psíquicas, intelectivas, culturais etc. Assim sendo, o corpo próprio de Merleau-Ponty,
não é somente o corpo da anatomia, nem o objeto-instrumento pelo qual uma
consciência cartesiana receberia as impressões sensoriais sobre as quais elaboraria
suas respectivas representações. Ele é o meio pelo qual se dá a relação sujeito-
mundo. Merleau-Ponty afirma:
O corpo é nada mais, nada menos, a condição de possibilidade da coisa. Indo-se dele para ela, não se vai do princípio à conseqüência, nem do meio ao fim: assiste-se a uma espécie de propagação, encaixe ou seguimento que prefigura a passagem do solus ipse ao outro, da coisa “solipsista” à coisa inter-subjetiva. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 254)
Carregamos a ideia cartesiana de uma distinção entre o que seria a essência
do homem (cogito) e seu corpo; no entanto, não existe uma primazia essencial de
uma substância sobre a outra, mesmo porque, em Merleau-Ponty, não poderíamos
falar em duas substâncias distintas que comporiam o ser humano. Em Merleau-
Ponty, essência e predicados, necessidade e contingência se relacionam
dialeticamente para constituir a estrutura existencial e o corpo próprio. Essa unidade
que abarca experiência, intelectualidade, intencionalidade e multiplicidade de
sentidos e significações, é a expressão da existência, não de modo representativo,
mas de modo vivido.
Dentre todas as expressões inerentes ao corpo, a fala será privilegiada por
Merleau-Ponty, pois é por meio dela que se dará o intercâmbio de significações
17
entre sujeitos, propiciando uma sedimentação no decorrer de sua existência e ao
mesmo tempo uma superação dessa sedimentação; a fala consistirá num elemento
fundamental para se explicar a concepção de intersubjetividade e
consequentemente também como se darão os processos históricos para Merleau-
Ponty. Portanto, nos parece importante explicar brevemente no que consiste a fala
para o autor.
1.1.1 A fala
A fala, para Merleau-Ponty, não é uma ação no sentido de expressar a
intenção de um sujeito que quer exteriorizar seu pensamento; ela é,
primordialmente, uma expressão “espontânea”, genuína, inerente ao nosso modo de
ser e, como vimos acima, não é “separada” do corpo: ela também é parte da
estrutura existencial do corpo próprio. Desta maneira, a fala não pode ser, nem só
instrumento lingüístico, nem só som; ela carrega em si a expressão e a
inteligibilidade em um só movimento. Merleau-Ponty diz: “A fala, no sentido geral, é
um ser de razão.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 238) Mas não uma razão
“puramente abstrata” e sim uma razão imersa no mundo.
Para Merleau-Ponty, não existe a fala sem a interação sujeito-mundo. O
processo “percepção e nomeação da coisa percebida” acontece como que de um só
golpe: o pensamento enquanto não expresso em linguagem é “confuso”; o
pensamento ainda não formulado em palavras resta sem sentido para o próprio
autor do pensamento. Isso nos faz compreender que a fala não se reduz somente a
um “invólucro” que contém o nosso pensamento, mas sim que a fala é parte
constituinte do pensamento. Além disso, ela se desenvolve na relação que temos
com o mundo, de onde tiramos as significações que darão sentido ao nosso
pensamento.
Ocorre na fala, a apreensão da palavra, num primeiro momento, com um
significado “geral” sobre o qual, no decorrer do discurso (o contexto onde essa
palavra está inserida), poderão ser agregados novos sentidos, a partir da interação
com o outro. Como diz Merleau-Ponty:
O fato é que temos o poder de compreender para além daquilo que espontaneamente pensamos. Só podem falar-nos uma linguagem que já compreendemos, cada palavra de um texto difícil desperta em nós pensamentos que anteriormente nos pertenciam, mas por vezes
18
essas significações se unem em um pensamento novo que as remaneja a todas, somos transportados para o centro do livro, encontramos a sua fonte [...] Existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos pensamentos próprios. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 243)
Merleau-Ponty refaz a analogia da linguagem com as demais expressões
artísticas para melhor se compreender esse processo:
Toda linguagem se ensina por si mesma e introduz seu sentido no espírito do ouvinte. Uma música ou uma pintura que primeiramente não é compreendida, se verdadeiramente diz algo, termina por criar por si mesma seu público, quer dizer, por secretar ela mesma sua significação [...] Há portanto, tanto naquele que escuta ou lê como naquele que fala e escreve, um pensamento na fala que o intelectualismo não suspeita. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 244)
O “pensamento que o intelectualismo não suspeita” consistiria, na perspectiva
de Merleau-Ponty, em seu sentido que é indeterminado em “si mesmo” e que
somente vai se formando no decorrer da fala, pela apreensão de alguém. A fala
significa algo, “falando”; falando, o pensamento se faz presente no mundo. A fala é,
nas palavras do autor, a “presença do pensamento no mundo sensível”. (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 247) Assim entendido, o pensamento deixa de ser interior; o
pensamento é exterior uma vez que só existe no mundo, materializado em palavras.
A impressão que temos de o pensamento ser interior adviria daqueles que nos
recordamos, ou seja, lembramos desses pensamentos já processados anteriormente
e eles apenas habitam outro tempo, sendo presentificados, no momento atual, pela
memória – eles já estão sedimentados. É fazendo-se em linguagem que o
pensamento se constitui. Como diz Merleau-Ponty: “O pensamento e a expressão
constituem-se simultaneamente.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 249) Deste modo,
podemos tentar compreender que o pensamento não é a causa nem o efeito da
fala.
Para Merleau-Ponty, existência e expressão são inseparáveis; nada existe
senão como expresso e a expressão não se reduz a uma aparência ou a uma
representação de uma essência, ela é parte constituinte, ao mesmo tempo em que é
constituída pelo sujeito em contínua relação com o mundo.
Tanto na explanação sobre o corpo próprio, quanto na da fala, observamos o
ponto fundamental para se compreender a noção de percepção de Merleau-Ponty:
aquilo que percebemos não é interpretado pela consciência intelectiva para, depois
disso, adquirir um sentido; o perceber já traz consigo aquilo que o percebido é,
antes de ser pensado. A linguagem assim deixa de ter o caráter de simples
19
representação do objeto, para ser ela mesma uma expressão existencial, antes de
intelectiva.
Segundo Merleau-Ponty, o que possibilita ao homem ser livre é a sua
capacidade de superar o biológico (o natural) quando realiza operações intelectuais,
que Merleau-Ponty nomeia de artificiais, superando assim a determinação da
natureza; não que exista, no homem, uma separação entre o que lhe é natural e o
que lhe é artificial, antes, estas duas esferas se encontram “misturadas”.
Entendemos com isso que tudo aquilo que sentimos e pensamos, na verdade, não é
puramente natural, no sentido de biológico. Como diz Merleau-Ponty:
Os sentimentos e as condutas passionais são inventados, assim como as palavras [...] É impossível sobrepor, no homem, uma primeira camada de comportamentos que chamaríamos de “naturais” e um mundo cultural ou espiritual fabricado. No homem, tudo é natural e tudo é fabricado, como se quiser, no sentido em que não há uma só palavra, uma só conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico – e que ao mesmo tempo não se furte à simplicidade da vida animal, não desvie as condutas vitais de sua direção, por uma espécie de regulagem e por um gênio do equívoco que poderiam servir para definir o homem. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 257)
No modo de ser humano, todas as coisas naturais adquirem um sentido que
não é próprio delas mesmas: o sentido é dado pelas significações humanas. Essas
significações são intercambiadas entre os sujeitos nos mais diversos tipos de
expressão, dentre eles, a fala. E onde estaria a primazia da fala sobre as outras
expressões? É que, segundo Merleau-Ponty, “a fala é a única, entre todas as
operações expressivas, capaz de sedimentar-se e de constituir um saber
intersubjetivo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 258)
Segundo o autor, poder-se-ia dizer que também nas outras expressões
(artísticas, por exemplo) encontraríamos uma forma de interagir com o outro, assim
como de retomar o que foi apreendido e dar-lhe um novo sentido; porém, para
Merleau-Ponty, a fala além de propiciar a escrita como aspecto fundamental para
uma sedimentação, propicia um “código” comum a todos os sujeitos,
independentemente de sua atividade ou expressão específica, que permite a troca
de seus pensamentos e sentimentos: “resta que no caso da fala a operação
expressiva pode ser indefinidamente reiterada, que se pode falar sobre a fala
enquanto não se pode pintar sobre a pintura.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 258)
20
Dada a importância que a fala adquire na relação entre sujeitos no
pensamento de Merleau-Ponty, procuraremos compreender um pouco mais essa
concepção.
Quando ouvimos uma palavra pela primeira vez, ela somente fará sentido
dentro de um contexto que já compreendemos e compartilhamos com outras
pessoas. Não existe nenhuma palavra que pudesse “surgir” de dentro de uma
consciência, como correspondente a um pensamento puro, independente do mundo.
Nesse sentido, a palavra não pode ser reduzida à representação sonora de um
pensamento; ela é a expressão de algo que vivemos: “O elo entre a palavra e seu
sentido vivo não é um elo exterior de associação; o sentido habita a palavra, e a
linguagem ‘não é um acompanhamento exterior dos processos intelectuais’.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 262) Merleau-Ponty parece afirmar que a linguagem
se faz por meio de um “sujeito encarnado” e não de um “sujeito pensante”.
O sentido de uma palavra não é dado pelo seu som, mas pelo entrelaçamento
que articulamos entre esse som e algo que sentimos, percebemos a partir da relação
entre nossos comportamentos. A palavra não está desconectada do gesto corporal
que já expressa uma significação. Mesmo no som articulado para se proferir a
palavra, o tom com que pronunciamos uma palavra pode alterar seu sentido e esse
sentido somente é compreendido porque o compartilhamos num ambiente onde
esse tom, esse gesto já tem uma significação comum. Para Merleau-Ponty, “existem
diferentes camadas de significação, desde a significação visual da palavra até sua
significação conceitual, passando pelo conceito verbal.” (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 265) Essas camadas não estariam “separadas” por umas serem relacionadas à
motricidade e outras à intelecção; no pensamento do autor, elas estão “misturadas”,
interiormente conectadas. Nem o pensamento causa a fala, nem a fala causa o
pensamento: ambos se fazem por uma espontaneidade do sujeito quando intenciona
se relacionar com o mundo.
Nesse mundo, encontramos uma linguagem disponível, com significações já
sedimentadas no decorrer do tempo. Porém, para Merleau-Ponty, a linguagem não
se restringiria a um conjunto de vocábulos fixos e imutáveis que as pessoas
utilizariam apenas para expressar seus pensamentos e se comunicar; ela consistiria
num processo dinâmico, onde uma palavra passa a adquirir um novo sentido. Desta
maneira, Merleau-Ponty faz uma distinção no que ele considera serem dois tipos de
fala: uma “fala falante” e uma “fala falada”.
21
A “fala falada” poderia ser entendida como o conjunto de vocábulos que
mencionamos acima: as significações sedimentadas disponíveis no mundo. Já a
“fala falante” consistiria numa espontaneidade do sujeito que faz com que a sua
intenção significativa se expresse num novo sentido; como diz Merleau-Ponty sobre
a “fala falante”:
A existência polariza-se em um certo “sentido” que não pode ser definido por nenhum objeto natural; é para além do ser que ela procura alcançar-se e é por isso que ela cria a fala como apoio empírico de seu próprio não-ser. A fala é o excesso de nossa existência por sobre o ser natural. Mas o ato de expressão constitui um mundo lingüístico e um mundo natural, ele faz voltar a cair no ser aquilo que tendia para além. Daí a fala falada que desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 267)
A explicação dada por Merleau-Ponty sobre a fala e a expressão elucida de
modo mais consistente a sua ideia do corpo próprio como não sendo composto por
partes isoladas interagindo sob as leis de um sistema; o corpo próprio é uma
unidade que não se fecha em si mesma. Na explicação da fala, se explicita de certa
forma o modus operandi do corpo próprio. Nas palavras do autor: “Para poder
exprimi-lo (o pensamento), em última análise o corpo precisa tornar-se o
pensamento ou a intenção que ele nos significa.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 267)
A noção do corpo próprio na filosofia de Merleau-Ponty, como se sabe, é
fundamental para se compreender a maneira como se dão, para o autor, as
relações entre sujeito e mundo. A existência é entendida como uma unidade onde
as cisões consciência-objeto, percebido-aquele que percebe, significante-
significação são substituídas pelas relações entre as partes, sem a primazia de
nenhuma sobre a outra.
Refutando a cisão cartesiana alma-corpo, ancorando o sujeito num corpo
próprio, Merleau-Ponty pode sustentar a ideia de que nada existe só como coisa ou
só como consciência; aqui se apresentaria uma das ambiguidades3 do ser.
_______________ 3 O conceito de ambiguidade aparece em determinados momentos na leitura de Merleau-Ponty, às vezes, no seu modo de argumentação, outras vezes explicitamente nas próprias palavras do autor, na explanação de alguns de seus conceitos. A questão que se coloca é que esta ambiguidade talvez não seja apenas uma característica pessoal no modo de argumentação do autor e sim, a proposta que ele apresenta como item ontológico intrínseco à própria existência do ser. Merleau-Ponty reforça sempre sua concepção de ser no sentido de não reduzi-lo jamais a nenhuma esfera específica, seja racional, empírica, científica ou psicológica. A multiplicidade não é reduzida à ideia de pluralidade de perspectivas ou entendida pura e simplesmente pela diversidade cultural; o eixo central dessa multiplicidade do ser consiste não só na sua ambiguidade, no seu constante ressurgimento, no seu devir sempre aberto para novos horizontes, mas principalmente, no ser que é uma estrutura existencial que o faz captar o mundo com uma percepção que vai além do simples sentir, uma vez que agrega ao perceber, o sentido intelectivo, emocional e histórico. (cont.)
22
No momento em que tentamos apreender o nosso corpo como um objeto,
tentando “decompô-lo”, explicitá-lo em partes nas categorias do pensamento para
compor uma unidade “clara e distinta”, perdemos seu verdadeiro sentido de
inacabamento; para apreender o corpo (seja o próprio ou de outro), para apreender
essa unidade, segundo Merleau-Ponty, é preciso experimentá-lo, confundir-se
com ele. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 269)
A noção de corpo próprio de Merleau-Ponty explicita a relevância da
percepção na filosofia do autor; as relações perceptivas entre sujeito e mundo
acabam por consistir na própria existência. É de posse dessa noção que podemos
agora procurar compreender o que vem a ser o sujeito de Merleau-Ponty que existe
“antes” de ser uma consciência pensante: o sujeito pré-reflexivo.
1.2 O sujeito pré-reflexivo
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” (José Saramago)
O sujeito de Merleau-Ponty, antes da consciência de si mesmo, tem um
contato “originário” com o mundo por meio de uma percepção “ingênua”, ainda
isenta de significações; é esta ideia que procuraremos explicitar no decorrer deste
capítulo. Poderíamos dizer que, no caminho contrário de Descartes, para Merleau-
Ponty, o primeiro “acontecimento” para o sujeito, ou seja, a primeira relação com o
mundo é a percepção do eu existo, que, nas palavras do autor, como veremos
posteriormente, vem a ser o “eu posso”, em detrimento do “eu penso” cartesiano. Eu
existo antes de me dar conta que “penso”, mesmo que só me dê conta disso (que
existo antes de pensar), quando penso.
_______________ 3 (cont.) A ambiguidade é também bastante explicitada na concepção merleau-pontyana do tempo que é impossível de ser compreendida sem o assentamento na percepção corporal. O ser temporal se constitui reciclando-se continuamente com elementos que não podem ser compreendidos somente sob a perspectiva de um sujeito fechado, nem somente sob a perspectiva de um mundo dado. Essa mútua e recíproca constituição entre subjetividade e mundo se constituiria numa ambiguidade, uma vez que essa recíproca constituição é alimentada pela infinita combinação das múltiplas significações e sentidos gerados não só pela razão, nem só pela percepção, nem só pelos sentimentos e muito menos somente sob a perspectiva de um sujeito isolado: essa “teia” é tecida mediante interações e conflitos, concordâncias e oposições, mas não necessariamente contradições. O mundo, para ser o berço de todas as significações, de modo que elas possam ser absorvidas pela “teia de intencionalidades”, tem a necessidade de ser ambíguo, de existir na ambiguidade, na multiplicidade de sentidos, explicitados por uma conjugação que a cada instante pode fazer surgir uma nova síntese que será dada pela razão em conjunto com a percepção. A concepção de ambiguidade em Merleau-Ponty, no nosso ver, procura abarcar a complexidade de uma identidade impossível de ser apreendida como totalidade: o ser humano. A concepção de ambiguidade foi explicitada na tese de doutorado de Cardim, A ambiguidade na Fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty, onde é possível examiná-la com maior profundidade.
23
Embora tudo pareça acontecer de um só golpe (percebo que existo, penso,
me dou conta que existo antes de pensar, mas para pensar devo primeiro existir),
para discernirmos estas fases do processo, é preciso inserir o elemento
fundamental, a dimensão que propicia todo esse processo: o tempo, a ser melhor
explanado no capítulo 2.
Podemos “destacar” o momento “percebo que existo”, do momento “penso”,
fazendo uma operação intelectiva; porém, nossa percepção de todos esses
momentos é como que instantânea, simultânea. A consciência de estar presente
no mundo se dá pela percepção e isto se dá porque esta consciência está
encarnada no corpo próprio, como vimos anteriormente; ela não se encontra numa
posição onde pudesse observar o mundo “do alto”, numa situação de sobrevôo. A
consciência para Merleau-Ponty é intencionalidade encarnada, a intencionalidade
que somente é possível porque percebe o mundo, ou seja, é uma consciência
perceptiva.
Ocorre um primeiro contato com o mundo que se dá antes de se poder
nominar aquilo que se percebe, antes de se estar em relação com outros sujeitos a
fim de determinar o nome, de se qualificar aquilo que se está percebendo. Esse
primeiro contato, segundo Merleau-Ponty, ocorre pré-reflexivamente e se dá pela
relação por meio da qual o sujeito está “unido”, “interligado” àquilo que intenciona.
Diz Merleau-Ponty:
Eu me perco neste vermelho que está diante de mim, sem qualificá-lo de maneira alguma, parece que essa experiência me faz entrar em contato com um sujeito pré-humano. Quem percebe esse vermelho? Não é ninguém que se possa nomear e que se possa agrupar com outros sujeitos perceptivos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 604)
O sujeito percebe esse vermelho e percebe a si mesmo antes mesmo de
nominar o vermelho ou a si mesmo. Certo que, imediatamente, entra em ação a
reflexão e é somente por meio dela que clarificamos estas distinções; mas, isso não
quer dizer que o nosso conhecimento do mundo se dá a partir das representações
que temos dele: nosso conhecimento parte dessa percepção muda que exprime a
nossa intencionalidade original, que imediatamente será misturada às significações e
multiplicidades de sentidos que advém da intersubjetividade.
Já é bastante difícil compreender essa percepção originária, falando-se da
percepção do mundo circundante; mais difícil ainda quando tentamos apreender e
compreender a nossa própria consciência, essa consciência perceptiva, quando ela
24
se torna o objeto de nossa investigação. A nossa consciência, para nós, jamais pode
ser percebida como um objeto: ela é o nosso modo de ser no mundo. Somente
conseguimos conceituá-la fazendo um distanciamento, um desdobramento sobre si
mesmo, refletindo sobre o nosso mudo perceber:
Uma vez sobrevinda a reflexão, uma vez pronunciado o “eu penso”, o pensamento de ser tornou-se de tal modo nosso ser que, se tentamos exprimir o que o precede, nosso esforço desemboca na proposta de um Cogito pré-reflexivo. Mas, que é esse contato de si consigo antes que tenha sido revelado? É algo diferente de um exemplo da ilusão retrospectiva? Seu conhecimento é apenas retorno ao que já se sabia através de nossa vida? Mas eu não me sabia de maneira propriamente dita. Que é, então, esse sentimento de si, que não se possui e que ainda não coincide consigo? Já se disse que roubar a consciência da subjetividade é retirar-lhe o ser, que um amor inconsciente não é nada, visto que amar é ver alguém, ações, gestos, um rosto, um corpo como amáveis. Mas o cogito antes da reflexão, o sentimento de si sem conhecimento oferecem a mesma dificuldade. E assim, ou a consciência ignora suas origens ou, então, se quiser alcançá-las, só pode projetar-se nelas. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 231)
Assim, embora o sujeito pré-reflexivo ainda não se exprima em linguagem,
isto não quer dizer que ele não exista antes da linguagem e que não seja o terreno
originário de onde brota a intencionalidade, a “consciência de algo”; e essa
“consciência de” somente é possível porque estamos encarnados num corpo próprio
que percebe o mundo circundante fisicamente. Sem esse contato originário
(mudo), não haveria intencionalidade a ser expressa, pois antes de ser expressa, ela
precisa existir. Certo, também é verdade, que toda existência para existir é preciso
ser expressa de alguma maneira, senão, como percebê-la? Mas, o que Merleau-
Ponty parece querer mostrar é que não existe propriamente uma precedência, nem
da existência, nem da expressão e que para haver possibilidade, tanto de uma,
como da outra, é preciso vivê-las misturadamente como elas são e isso se dá por
meio da consciência perceptiva:
Pois o que se quer dizer exatamente afirmando que o mundo existiu antes das consciências humanas? Quer-se dizer, por exemplo, que a terra saiu de uma nebulosa primitiva em que as condições da vida não estavam reunidas. Mas cada uma dessas palavras, assim como cada uma das equações da física, pressupõe nossa experiência pré-científica do mundo, e essa referência ao mundo vivido contribui para constituir sua significação válida. Nada me fará compreender o que poderia ser uma nebulosa que não seria vista por ninguém. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 579)
Merleau-Ponty trará um exemplo esclarecedor no que concerne a esse
“retorno” ao pré-reflexivo quando explica o que acontece quando nos inserimos em
outra cultura ou quando nos deparamos com um idioma diverso do nosso. Para
25
podermos verdadeiramente apreender os sentidos dessa nova cultura, é preciso que
a “experimentemos” dentro de suas próprias características; não basta traduzirmos
os signos pelos que seriam os “correspondentes” na cultura previamente conhecida,
pois, dessa maneira, apreenderíamos somente uma interpretação dessa nova
cultura, enquanto que, se imergimos nesse novo mundo, apreendemos os sentidos
do modo como eles são percebidos originariamente:
Claro que não é possível, nem necessário, que o mesmo homem conheça por experiência todas as verdades de que fala. Basta que tenha, algumas vezes e bem longamente, aprendido a deixar-se ensinar por uma outra cultura, pois doravante, possui um novo órgão de conhecimento, voltou a se apoderar da região selvagem de si mesmo, que não é investida por sua própria cultura e por onde se comunica com as outras. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 200)
O mesmo ocorre com a linguagem: existe uma intenção que precede a
palavra, como Merleau-Ponty diz ao explicar no que consistiria a “fala falante”: “é
aquela em que a intenção significativa se encontra em estado nascente”.
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 266) É, de certo modo, um sentido mudo daquilo que
queremos expressar (o percebido, o vivido), um sentido ainda não pensado. Para
expressá-lo, iremos nos utilizar das significações existentes no mundo e, ao
expressá-lo, efetuamos a sua ultrapassagem. Para expressá-lo, agregamos a esse
sentido originário, ainda mudo, o artifício da linguagem, efetuando a superação do
mundo natural para o humano. A linguagem é a expressão do humano que melhor
propicia o seu “escape” do mundo natural:
A fala é o excesso de nossa existência sobre o ser natural. Mas o ato de expressão constitui um mundo lingüístico e um mundo cultural, faz voltar a cair no ser aquilo que tendia para além [...] Essa abertura sempre recriada na plenitude do ser condiciona a primeira fala da criança, assim como a fala do escritor, a construção da palavra, assim como a dos conceitos. É essa função que adivinhamos através da linguagem, que se reitera, apóia-se em si mesma ou que, assim como uma onda, ajunta-se e retoma-se para projetar-se para além de si mesma. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 266)
Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty reitera inúmeras vezes que
nascemos num mundo onde a fala já está instituída. Recebemos um sem número de
significados, os quais incorporamos, sem nada acrescentar; diz ele sobre estes
significados: “traduzem-se em outras falas que não exigem de nós nenhum esforço
verdadeiro de expressão e não exigirão de nossos ouvintes nenhum esforço de
compreensão.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 250) Esta linguagem nos perpassa
como que “automaticamente”, sem nos darmos conta, da mesma forma como não
26
nos apercebemos da relevância de nossa interação com os outros sujeitos. Isso faz
com que esqueçamos que a linguagem, de fato, não é automática, que existe uma
ação primeira do humano em direção à expressão, como explica Merleau-Ponty,
quando lembra da primeira fala de uma criança ou de um novo pensamento a ser
expresso por um escritor. Esse movimento original (da criança e do escritor) não
pode ser negligenciado simplesmente porque nos habituamos a utilizar a linguagem
como um instrumento pronto e acabado para a nossa comunicação intersubjetiva
como se ela “fosse” natural. Segundo Merleau-Ponty, para se compreender o
humano, é preciso retornar a essa origem primordial.4
A linguagem é uma das expressões do nosso corpo; o que ocorre na
linguagem pode explicar por analogia como se processam todas as nossas outras
expressões, sempre a partir da percepção que temos do mundo, da maneira como
interagimos com ele. A compreensão desse retorno à origem da fala pode nos ajudar
a compreender esse “fundo” primordial de existência a que se refere Merleau-Ponty
e a noção de consciência perceptiva. O nosso conhecimento não se inicia em uma
operação intelectual; para Merleau-Ponty, nossos pensamentos não trabalham,
primariamente, com representações. Da mesma maneira, a comunicação entre
sujeitos não se embasa simplesmente na troca de significações mutuamente
convencionadas por participarem de uma experiência comum entre esses sujeitos; a
comunicação se dá primeiramente no “tácito”, no viver mútuo desses sujeitos. Diz
Merleau-Ponty:
Não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual, a comunicação entre as consciências não está fundada no sentido comum de suas experiências, mesmo porque ela o funda: é preciso reconhecer como irredutível o movimento pelo qual me empresto ao espetáculo, me junto a ele em um tipo de reconhecimento cego que precede a definição e a elaboração intelectual do sentido. (*) (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 252)
_______________ 4 Posteriormente, em Signos, Merleau-Ponty explicitará ainda mais esta ideia: “Temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda por a nu os fios de silêncio que nela se entremeiam. Há, para as expressões já adquiridas, um sentido direto, que corresponde ponto por ponto com torneios, formas, palavras instituídas. Aparentemente, não há lacuna aqui, nenhum silêncio falante. Mas o sentido das expressões que se estão realizando não pode ser desse tipo: é um sentido lateral ou oblíquo, que se insinua entre as palavras – é uma outra maneira de sacudir o aparelho da linguagem ou da narrativa para arrancar-lhe um som novo. Se quisermos compreender a linguagem em sua operação de origem, teremos de fingir nunca ter falado, submetê-la a uma redução sem a qual ela nos escaparia mais uma vez, reconduzindo-nos àquilo que ela nos significa, olhá-la como os surdos olham aqueles que estão falando, comparar a arte da linguagem com as outras artes de expressão, tentar vê-la como uma dessas artes mudas. É possível que o sentido da linguagem tenha um privilégio decisivo, mas é tentando o paralelo que perceberemos aquilo que talvez o torne impossível ao final. Comecemos por compreender que há uma linguagem tácita e que a pintura fala a seu modo.” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 47) (*) Grifo nosso
27
Esse movimento consiste no próprio modo de ser no mundo; constitui a
relação primordial sujeito-mundo, o fluxo contínuo de renovação de sentido que se
faz na própria interação. Para melhor compreender esse movimento, examinaremos
a seguir os conceitos de “fluxo anônimo” e de “campo fenomenal”.
1.2.1 O fluxo anônimo e o campo fenomenal
No Capítulo III da Introdução da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty
faz uma análise da ideia de atenção. Em meio à crítica que ele faz ao empirismo e
ao intelectualismo, se desenha uma nova concepção para o conceito de atenção,
que pode nos auxiliar a compreender o “fluxo anônimo” inerente à ideia do pré-
reflexivo de Merleau-Ponty.
Segundo o autor, tanto no empirismo quanto no intelectualismo, a percepção
foi jogada para um segundo plano ao invés de exercer papel fundamental para se
compreender a atenção. Para Merleau-Ponty, no empirismo, ocorre a primazia do
mundo objetivo, onde então a atenção seria um ato “desinteressado” por parte do
sujeito que somente aconteceria a partir do estímulo vindo do exterior. Já no
intelectualismo, aconteceria o caminho inverso e a atenção consistiria no ato da
consciência que, observando o objeto, conseguiria extrair dele a representação
correspondente, por meio da abstração. Em ambos os casos, o corpo e a percepção
desempenham um papel secundário, de mero meio de comunicação entre
consciência e mundo. Entretanto, Merleau-Ponty observa que em ambos os casos
deve-se admitir então que existam objetos, no caso do empirismo, que passam
despercebidos e, no caso do intelectualismo, dos quais a consciência se distrai.
Como diz Merleau-Ponty:
O que faltava ao empirismo era a conexão interna entre o objeto e o ato que ele desencadeia. O que falta ao intelectualismo é a contingência das ocasiões de pensar [...] O empirismo não vê que precisamos saber o que procuramos, sem o que não o procuraríamos, e o intelectualismo não vê que precisamos ignorar o que procuramos, sem o que, novamente, não o procuraríamos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 56)
Para Merleau-Ponty, a atenção consiste, como ele diz, numa “intenção ainda
‘vazia’, mas já determinada”. Na concepção de atenção de Merleau-Ponty,
vislumbra-se o que o autor denomina consciência perceptiva, que admite em si
uma passividade e uma atividade em contínua relação: a consciência então nunca é
28
inteiramente ativa (nunca “só consciência”), pois necessita ser solicitada pelos
objetos, assim como nunca é inteiramente passiva (nunca “só coisa”), pois tem em si
um movimento de atirar-se em direção a. Essa relação se dá na e pela percepção.
Segundo o autor, no nosso contato originário com o mundo, nossa percepção ocorre
de modo difuso; ainda não discernimos, nesse primeiro momento, as qualidades dos
objetos de modo explicitamente identificável. O mundo se apresenta como um
horizonte, onde ainda não se delineiam os atributos e as significações das coisas.
Diz Merleau-Ponty ao exemplificar como percebemos as cores:
A primeira percepção das cores propriamente ditas é portanto uma mudança da estrutura da consciência, o estabelecimento de uma nova dimensão da experiência, o desdobramento de um a priori. Ora, é a partir do modelo destes atos originários que a atenção deve ser concebida, já que uma atenção segunda, que se limitaria a trazer de volta um saber já adquirido, nos reenviaria à aquisição. Prestar atenção não é apenas iluminar mais dados preexistentes, é realizar neles uma articulação nova considerando-os como figuras. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 56)
O que Merleau-Ponty parece querer mostrar é que nossa primeira percepção
das cores não identificaria imediatamente o que é o vermelho ou o azul; a atenção
geraria um campo onde vermelho e azul se manifestam, embora ainda não
“nomeados”. Esse talvez possa ser o “primeiro momento”, o contato originário no
qual podemos compreender o fluxo anônimo de que fala Merleau-Ponty; ele
consistiria nessa relação ainda pré-reflexiva entre sujeito e mundo. No caso das
cores, somente num segundo momento, o vermelho e o azul vão se destacar como
figuras em meio ao “campo” das cores. Para o autor, nossa interação original com o
mundo se dá num campo indeterminado, onde todos os objetos permanecem com
sentidos ambíguos; o sentido vai ser o resultado de nossa atenção. Diz Merleau-
Ponty: “Esta passagem do indeterminado ao determinado, essa retomada, a cada
instante, de sua própria história na unidade de um novo sentido, é o próprio
pensamento. ‘A obra do espírito só existe em ato.’” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 59)
Por meio desse ato, desse movimento e pelo ser presente no mundo, a
intencionalidade, noção que explicaremos melhor posteriormente, faz com que o
fluxo anônimo já se manifeste com um sentido; a presença do ser no mundo5 faz
esse movimento de um golpe só.
_______________ 5 A ideia da “presença do ser no mundo” em Merleau-Ponty se aproxima consideravelmente da concepção de ser-no-mundo de Heidegger; ser-no-mundo, termo usado por Heidegger na obra Ser e tempo é, nas palavras do próprio autor: “O ser-em [...] significa uma constituição ontológica da pre-sença e é um existencial. [...] (cont.)
29
Como diz Merleau-Ponty: “Na percepção efetiva e tomada no estado
nascente, antes de toda fala, o signo sensível e sua significação não são separáveis
nem mesmo idealmente.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 68) Nesse sentido, os
objetos se apresentam originariamente como “todo” e como “unidade”, antes de
podermos abstrair qualquer ideia sobre eles: este seria o fluxo anônimo da
existência, o movimento do nosso ser no mundo, antes da reflexão. É como se
considerássemos um “a priori” da coisa percebida, onde no instante em que a
apreendemos, imediatamente já se apresenta um sentido originário, anterior a uma
operação do entendimento.
Nas palavras de Merleau-Ponty: “há uma significação do percebido que ainda
não é o mundo objetivo, um ser perceptivo que ainda não é o ser determinado.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 77) A consciência perceptiva em contato com o
indeterminado, num movimento de atenção/intenção da consciência que parte do
“anônimo” em “direção a”, constituirá um sentido no seu modo de interagir com o
mundo. Desta maneira, o sentido do objeto não é dado por uma consciência pura
que carregaria em si a significação de um objeto percebido no exterior; ao invés
disso, esse sentido e essa significação resultam da relação entre aquele que
percebe e o percebido, numa via de mão dupla. A percepção, então, retoma em
Merleau-Ponty, seu caráter primordial. As qualidades dos objetos deixam de ser
meros atributos alcançados categoricamente pela intelecção quando
compreendemos que indiscernível a elas é o contexto na qual estão inseridas e que
somente as percebemos dentro de um contexto, não sendo possível isolá-las dele,
pois tentando abstraí-las de seu contexto, perdemos seu sentido. Merleau-Ponty
exemplifica: “Uma roda de madeira posta no chão não é, para a visão, aquilo que é
uma roda carregando um peso.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 83) Neste exemplo, o
autor mostra que o conceito “roda” independe do seu contexto, mas a percepção da
“roda”, na experiência que dela temos, seu sentido é intrínseco ao seu contexto: “Ele
(o sentir) é o tecido intencional que o esforço de conhecimento procurará decompor.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 84)
_______________ 5 (cont.) O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, ‘dentro de outra’ porque, em sua origem, o ‘em’ não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie; ‘em’ deriva de innan-, morar, habitar, deter-se; ‘an’ significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão ‘sou’ se conecta a ‘junto’; ‘eu sou’ diz, por sua vez: eu moro, me detenho junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. O ser, entendido como infinito de ‘eu sou’, isto é, como existencial, significa morar junto a, ser familiar com... O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da pre-sença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo.” (HEIDEGGER, 1993, p. 92)
30
A noção de fenômeno tal qual apresentada por Husserl, retomada na noção
de percepção de Merleau-Ponty, dissolve a ideia de passividade e de atividade
como movimentos isolados, na medida em que estabelece o sentir como contínua
relação entre passividade e atividade que atuam ao mesmo tempo no mundo
vivido, constituindo a existência.
É aqui que surge a ideia de campo fenomenal: na retomada do mundo
vivido, antes do mundo objetivo, no “estado nascente” de todas as relações que se
efetivam no mundo concreto. O fenômeno, entendido aqui como a maneira como a
coisa se apresenta para o sujeito, não se encontra na pura idealidade, ele não habita
somente a esfera subjetiva; o fenômeno se dá num campo onde se tecem as
relações sujeito-objeto e sujeito-sujeito.
Entendido assim, o fenômeno não se dá na interioridade do sujeito, não se
trata da representação advinda da impressão de um objeto exterior; o fenômeno
abarca toda a estrutura na qual o objeto se apresenta, inclui seu sentido, antes
mesmo da reflexão.
Já o fenômeno da percepção, tal qual como é tratado na psicologia, segundo
Merleau-Ponty, é colocado num campo transcendental, pois a psicologia reduz a
experiência vivida a estados da consciência. Bergson já criticava essa ideia, quando
procurava dissolver o dualismo mente-corpo em Matéria e Memória; sua crítica ao
intelectualismo e ao materialismo, segundo Vieillard-Baron, se fundamenta naquilo
que, segundo ele, ambos ignoraram: a percepção e a ação corporal como sendo um
movimento natural não determinado pela intelecção, ideia que será bastante
explorada por Merleau-Ponty. Segundo Vieillard-Baron, Bergson irá retornar à
percepção, investigando como se dão os fenômenos perceptivos e mostrando que
existe uma razão de ser no movimento corporal voltado à manutenção do
organismo, à preservação da vida. Para Bergson, assim, seria inaceitável a ideia de
que o cérebro pudesse construir uma representação da totalidade de mundo, sendo
ele uma parte constituinte desse mundo. Como uma parte poderia apreender o todo
do qual faz parte? Sem nos aprofundar nas questões de Bergson, vale notar sua
concepção de consciência atrelada à noção de duração, como explica Vieillard-
Baron em Compreender Bergson: “A duração bergsoniana é um dado interior da
consciência. É a continuidade temporal que é imediatamente percebida na vida do
espírito. Os momentos se interpenetram e se prolongam uns nos outros, sem que
31
possamos distingui-los. Esta duração é um fator de mudança irreversível e de
imprevisível novidade.”
Na concepção de duração de Bergson, segundo Vieillard-Baron, o dualismo é
apresentado como o movimento de contração e distensão do ser, de modo que no
grau máximo de distensão se encontraria a matéria, enquanto que no grau máximo
de contração se encontraria a reflexão pura. Com essa noção, Bergson irá salientar
o aspecto qualitativo (conexão inteligível entre eventos) da consciência, enquanto
consciência perceptiva, em detrimento do aspecto quantitativo (eventos “isolados”
ordenados em sucessão) de uma consciência entendida como depósito de
representações. Os estados de consciência não seriam mensuráveis
quantitativamente, mas interpenetráveis entre si qualitativamente. Esses “estados de
consciência” ou, no termo usado pelo autor “imagens-recordações” são estudados
na investigação que Bergson faz sobre a memória; as lembranças não consistiriam
em representações armazenadas em algum lugar específico no cérebro, mas seriam
articuladas pela ação da percepção: perceber seria uma forma de lembrar.
Merleau-Ponty irá herdar uma parte do pensamento de Bergson, porém se
distanciando em alguns aspectos. No artigo “As críticas de Henri Bergson e de
Maurice Merleau-Ponty aos enfoques materialistas do problema corpo-mente”,
Verissimo e Furlan sintetizam a crítica que Merleau-Ponty faz a Bergson:
Para Merleau-Ponty, noções bergsonianas como as de ação e de imagens-recordações não alteraram significativamente a psicologia da percepção. De um modo geral, sua opinião é de que a filosofia não possui noções de consciência e de ação que possibilitem uma verdadeira comunicação interior entre elas. A consciência enquanto duração ou enquanto berço de julgamentos permanece sem estrutura e sem natureza. A ação, enquanto expressão natural pura, permanece uma série de eventos exteriores uns aos outros. Consciência e ação, concebidos dessa maneira, estão justapostos e não unidos. A ação a que Bergson se refere é sempre uma ação vital, destinada à manutenção da existência. Assim, os atos propriamente humanos, como o de falar, de vestir-se, de trabalhar, permanecem destituídos de um sentido próprio, além daquele reservado pela biologia. Além disso, a ação, em Bergson, parece, no mais das vezes, reduzida a uma noção motora. Quanto às imagens-recordações, não se pode afirmar que escapam ao tratamento dado a uma espécie de objeto mental, igual a tantos outros criados no âmbito da psicologia. Bergson, envolvido em um esforço para se desvencilhar das concepções materialistas presentes no problema mente-cérebro, parece não ter se afastado de um realismo mentalista. (VERISSIMO e FURLAN, 2009)
Embora Merleau-Ponty critique Bergson, no sentido de não ter conseguido
escapar de um dualismo, mantendo a ação vital vinculada à materialidade e as
imagens-recordações no âmbito da psicologia, deixando permanecer a separação
entre corpo e consciência, a nosso ver, Merleau-Ponty e Bergson se aproximam
32
muito no que concerne à ideia do retorno à percepção como fundamento da relação
sujeito-mundo e na inclusão da temporalidade para se compreender a consciência; o
distanciamento entre os dois autores talvez se dê na ordem da relevância dessas
concepções: para Merleau-Ponty, a temporalidade tem caráter primordial no
movimento da consciência perceptiva, na intencionalidade, e as relações do sujeito
com o mundo abarcam todas as esferas do humano; Bergson parece dar maior
relevância à ação natural do corpo, no sentido de valorizar mais a espontaneidade
orgânica e as respostas que a intelecção dá às necessidades existenciais que se
apresentam, evocando as lembranças úteis para tal. Além disso, em Bergson, o grau
que mais se aproxima de uma consciência pura (com maior grau inclusive de
liberdade, pois, nesse caso, a resistência oferecida pela matéria seria menor) é
alcançado pela interiorização; já Merleau-Ponty dissolve a ideia de interior e exterior
e a graduação de liberdade se estabelece na relação do sujeito com o mundo, pelo
modo de ser desse sujeito temporal.
Com base nas brevíssimas explicações expostas acima, parece-nos que para
Merleau-Ponty, Bergson ignoraria a verdadeira origem do que ele chama de
“imagens-recordações”, conduzindo a experiência a um ato isolado e apenas
possível à introspecção do sujeito; ignoraria a própria essência do fenômeno
perceptivo que se dá no mundo vivido e não apenas no interior do sujeito.
O verdadeiro fenômeno, para Merleau-Ponty, não teria sua origem na
interioridade do sujeito, mas sim no que ele chama de campo fenomenal, ou seja,
na relação imediata sujeito-mundo. Desta maneira, o mundo não é representado, ele
é constituído por essa relação. É com base nessa relação que Merleau-Ponty evoca
o retorno às coisas mesmas por meio da percepção; dissolvendo a separação
representação x representado, as coisas não precisam mais ser examinadas pela
introspecção do sujeito por meio de suas respectivas representações, como no
pensamento objetivo, nem pelo psiquismo como no pensamento de Bergson. Com
base na percepção, o fenômeno passa a ser experimentado do modo como é
percebido no mundo vivido; o fenômeno, no pensamento de Merleau-Ponty consiste
no que é percebido no contato imediato entre consciência e mundo.
Para investigar o modo como opera a percepção, Merleau-Ponty toma de
empréstimo a ideia de estrutura da psicologia da Gestalt, porém, considerando o
contato direto entre sujeito e mundo, ao invés dessa estrutura estar dentro da esfera
da interioridade do psiquismo, onde ela estabeleceria leis que regulariam o modo de
33
perceber, ela passa a ser o solo originário onde a percepção atua, ela passa a ser o
próprio modo do fenômeno aparecer. Merleau-Ponty diz:
Não é porque a “forma” realiza um certo estado de equilíbrio, resolve um problema de máximo e, no sentido kantiano, torna possível um mundo que ela é privilegiada em nossa percepção; ela é a própria aparição do mundo e não sua condição de possibilidade, é o nascimento de uma norma e não se realiza segundo uma norma, é a identidade entre o exterior e o interior e não a projeção do interior no exterior. Portanto, se ela não resulta de uma circulação de estados psíquicos em si, não é mais uma ideia. A Gestalt de um círculo não é sua lei matemática, mas sua fisionomia. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 95)
A operação da razão não se faz como se do irrefletido ela pudesse tirar leis a
priori para conhecer o objeto, como se existisse uma razão universal anterior à
experiência. Ao invés disso, a razão realiza uma operação do entendimento
participando da facticidade (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 95). O sujeito sendo parte
constituinte do mundo vivido somente pode apreender o objeto de modo parcial; sua
razão se encontra dentro do campo e não numa posição superior privilegiada.
Estando dentro do campo, ela não formata as coisas como elas poderiam ou
deveriam ser, mas as experimenta do modo como elas se apresentam e, a partir daí,
elabora suas leis.
Sob essa perspectiva, a reflexão não inibe a percepção, não a anula para
buscar o conhecimento puro; antes, ela necessita dela para exercer sua atividade e
necessita dela do modo como ela vivencia o mundo. Diz Merleau-Ponty: “A
reflexão nunca pode fazer com que eu deixe de perceber o sol a duzentos passos
em um dia de neblina, de ver o sol ‘se levantar’ e ‘se deitar’, de pensar com os
instrumentos culturais preparados por minha educação, meus esforços precedentes,
minha história.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 96)
Da mesma maneira como a razão não consegue abarcar o objeto de modo
total e ainda constitui sua reflexão se utilizando de uma multiplicidade de vivências,
de relações com o mundo, também não pode se auto-apreender por completo, como
se habitasse fora de si mesma. Ela também irá se constituindo em meio às relações
que estabelece com o mundo.
Merleau-Ponty compreende a estrutura da existência com a ideia de mútua
constituição entre sujeito e mundo, ou porque não dizer, entre o “fluxo anônimo” e
seu “campo”, numa ligação inextricável. A “configuração” de um objeto, sua
identificação como um objeto, somente é possível porque ele se encontra num
campo: a atenção/intenção só pode fazer a síntese entre sujeito e mundo, com o
34
surgimento de um sentido dentro dessa estrutura. O que Merleau-Ponty parece
querer dizer é que um lugar circunscrito no espaço necessita de um campo para se
destacar como tal; similar ao que veremos logo mais, um instante pontual necessita
estar num fluxo temporal, do entrelaçamento com o instante anterior e o posterior
para ser. Enquanto não “intencionados”, enquanto não existe um sujeito engajado
em uma situação e, assim, operando a síntese pelo movimento de atenção/intenção,
lugar e instante são indiscerníveis no campo espaço-tempo. Diz Merleau-Ponty: “A
estrutura objeto-horizonte, quer dizer, a perspectiva, não me perturba quando quero
ver o objeto: se ela é o meio que os objetos têm de se dissimular, é também o meio
que eles têm de se desvelar.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 105)
Da mesma maneira que se desvela o objeto, se desvela o sujeito; para que
possa se “destacar” como tal, o sujeito precisa habitar inicialmente um campo pré-
objetivo, ou seja, a passagem de “fluxo anônimo” para “sujeito da percepção” se dá
a partir do campo no qual ele está inserido, por meio de seu corpo, como vimos
acima. Parece-nos que isso é o que vai levar Moutinho dizer que vivemos a
ambiguidade de “oscilar entre a existência pessoal e a existência anônima.”
(MOUTINHO, 2006, p.123) – explicitaremos melhor esta relação entre a existência
pessoal e a existência anônima no capítulo 3.
A reflexão opera num segundo momento e sempre a partir da percepção e
nasce, portanto, de um campo perceptivo ainda anônimo; diz Merleau-Ponty: “a
reflexão radical é consciência de sua própria dependência em relação a uma vida
irrefletida que é sua situação inicial, constante e final.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
11)
Com base nas concepções acima, Merleau-Ponty irá conceber uma noção de
consciência que tem um aspecto pré-reflexivo, o que ele denominará cogito tácito. É
o que tentaremos explicitar a seguir.
1.2.2 O cogito tácito
Vimos que tanto sujeito como mundo se manifestam pela síntese entre “fluxo
anônimo” e “campo fenomenal”. Trata-se de um movimento de “reciprocidade” que
precede a reflexão; essa mútua constituição se dá na existência e não partindo de
uma consciência absoluta que apreenderia o mundo dando-lhe sentidos e
significações, não da ideia de uma consciência que seria “preenchida” por
35
representações advindas do mundo exterior. Merleau-Ponty tece críticas ao cogito
de Descartes, uma delas mostrando que a dúvida hiperbólica não chega a seu
termo, uma vez que negligencia no cogito sua ideia essencial: o cogito de Descartes
já partiria do pensamento expresso, ignorando como ele se dá. Expliquemos: o que
Merleau-Ponty parece querer mostrar é que nos seria impossível mesmo falar em
cogito se essa palavra já não tivesse um sentido para nós; o cogito cartesiano já se
encontraria naquele “segundo momento” que falávamos acima, ele é uma reflexão,
porém sobre um refletido, ignorando a nossa percepção originária, nossa vivência
existencial e a reflexão sobre o irrefletido. Como diz Merleau-Ponty:
...a palavra “Cogito”, a palavra “sum”, podem muito bem ter um sentido empírico e estatístico; é verdade que elas não visam diretamente a minha experiência e fundam um pensamento anônimo e geral, mas eu não lhes reconheceria nenhum sentido, nem mesmo derivado e inautêntico, e não poderia nem mesmo ler o texto de Descartes, se eu não estivesse, antes de toda fala, em contato com minha própria vida e meu próprio pensamento, e se o Cogito falado não encontrasse em mim um Cogito tácito. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 539)
Segundo Merleau-Ponty, houve um esforço de Descartes para chegar a esse
Cogito (tácito) nas Meditações; porém, Descartes teria ignorado que a própria
linguagem da qual se utilizava carregava toda uma herança cultural e que somente
fazia sentido por sua vivência como ser no mundo: Descartes teria negligenciado
seu ser existencial. A linguagem não é constituída pela consciência, não é a mera
representação de um objeto ou de um fato por correspondência; ela vai se
constituindo em meio à existência humana, sendo continuamente apreendida,
retomada, reaprendida, agregando sentidos variáveis e intercambiáveis com o seu
contexto presente e passado. Diz Merleau-Ponty: “É um encontro entre o humano e
o inumano, é como um comportamento do mundo, uma certa inflexão de seu estilo,
e a generalidade do sentido, assim como a do vocábulo, não é a generalidade do
conceito, mas a generalidade do mundo enquanto típico.” (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 540) Analogamente à ideia do sujeito que irrompe do “fluxo anônimo” quando em
relação com o campo fenomenal, existiria para a linguagem um campo onde ela
pudesse se “desenhar”, um silêncio que ela pudesse irromper para existir.
Desta maneira, Merleau-Ponty define o cogito de Descartes como um cogito
falado que seria “posterior” ao cogito tácito. “Por baixo” do cogito falado conceitual,
estaria o cogito tácito existencial. Em Merleau-Ponty, o cogito tácito funda uma
subjetividade que não constitui o mundo ou a linguagem; os sentidos da
36
subjetividade, do mundo, da linguagem surgem da mútua relação que se estabelece
entre estes elementos.
No cogito tácito, o pensamento ainda não se pensa a si próprio; trata-se de
uma auto-apreensão enquanto pura existência. No exato instante em que se pensa
a si mesma, a consciência deixa de ser o cogito tácito para ser o cogito de
Descartes. Não é que essa consciência em estado originário não se auto-reconheça
antes que efetue o movimento de reflexão; de fato, se ela não se apercebesse como
consciência, seria uma coisa. O que ocorre é um dar-se conta de si mesmo, porém,
ainda de modo “privado”, sem as significações do pensamento objetivo; no cogito
tácito, ainda não expressei em significações minhas intenções. Mas isto não significa
que no cogito tácito, a consciência coincida consigo mesma, revelando uma
subjetividade absoluta; como diz Moutinho: “...é preciso, de início, que a pertença do
mundo ao sujeito não anule a transcendência e a opacidade da coisa, portanto, toda
síntese só possa ser feita lá na própria coisa, não no sujeito, que o em si não se
reduza ao para nós.” (MOUTINHO, 2006, p. 221) Na realidade, talvez fosse melhor
dizer que a síntese não é feita nem na coisa nem no sujeito e sim, nessa relação.
Vivemos em contínua relação com o mundo e o pensamento se faz nessa
relação. Talvez seja mais fácil compreender essa ideia reportando às primeiras
experiências de um bebê: ele não pensa o andar antes de andar; ele simplesmente
anda. Existe uma intenção original, um impulso verdadeiramente existencial que
precede qualquer reflexão. A partir dessa primeira experiência genuína, vão se
acumulando outras, num movimento de contínua retomada, envolvendo e
agregando, a partir daí, sentidos, pensamentos, significações. Nessas relações se
estabelece um intercâmbio contínuo (cultural, histórico) onde compartilhamos
experiências, antes de conceitos. O mundo assim consiste, nas palavras de
Merleau-Ponty, no “campo de nossa experiência”. A universalidade do mundo não se
encontraria no conceito e sim na intersubjetividade6 vivida; como diz Merleau-Ponty
“nunca o compreenderemos enquanto fizermos do mundo um objeto.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 544) Para o autor, para compreendermos o mundo, portanto, é
preciso admiti-lo como o campo de nossa experiência.
Como nosso perceber é sempre parcial, nunca conseguimos experimentar a
unidade do mundo, assim como não conseguimos experimentar a unidade do Eu. O
Eu universal seria o fundo sobre o qual posso destacar o Eu presente. O cogito _______________ 6 Explicitaremos a concepção de intersubjetividade no capítulo 3.
37
tácito poderia ser visto então como o campo da experiência do Eu, de onde ele
brota.
A partir do surgimento do sujeito no mundo, acontece, nas palavras de
Merleau-Ponty, “uma nova possibilidade de situações.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
545) Merleau-Ponty exemplifica: “Na casa onde nasce uma criança, todos os objetos
mudam de sentido, eles se põem a esperar dela um tratamento ainda indeterminado,
alguém diferente e alguém a mais está ali, uma nova história, breve ou longa, acaba
de ser fundada, um novo registro está aberto.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 545)
A situação é o próprio engajamento do ser no mundo e ela não “advém de”,
nem “desencadeia uma” causalidade; ela é a condição de surgimento do
indeterminado. O entrelaçamento das situações vividas por um sujeito não permite
a separação de momentos ou atos de consciência de maneira isolada, assim como
não admite a existência de coisas separadas no e do mundo. Tudo se faz, “fazendo-
se”. A unidade de uma coisa ou do Eu não é construída intelectivamente fazendo-se
a junção de momentos distintos; mas é vivida pela experiência de modo “coeso”.
Merleau-Ponty exemplifica: “Quando ouço uma melodia, é preciso que cada
momento esteja ligado ao seguinte, sem o que não haveria melodia.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 546) Eu não penso os acordes e os reúno intelectivamente para
sintetizar a melodia; eu ouço a melodia, na qual a sucessão é essencial - eu a vivo,
eu a percebo, eu a sinto, eu a experimento temporalmente. Se eu não estivesse
situado no mundo, seria impossível apreendê-la. É assim que Merleau-Ponty traz a
sua noção ontológica de existência: as ideias, as noções, os conceitos, os
pensamentos não constituem o mundo, nem o sujeito. As ideias de sujeito e de
mundo nascem da situação desse sujeito presente no mundo, em relação com ele
por meio de seu corpo próprio. Diz Merleau-Ponty:
Para mim o Pensamento absoluto não é mais claro do que meu espírito finito, já que é por este que eu o penso. Nós estamos no mundo, quer dizer: coisas se desenham, um imenso indivíduo se afirma, cada existência se compreende e compreende as outras. Só se precisa reconhecer estes fenômenos que fundam todas as nossas certezas. A crença em um espírito absoluto ou em um mundo em si separado de nós é apenas uma racionalização desta fé primordial. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 548)
Poderíamos dizer então que a diferença primordial entre o cogito de
Descartes e o cogito de Merleau-Ponty é que, em Descartes, sob a visão de
Merleau-Ponty, a consciência se apreenderia em sua totalidade coincidindo com o
38
pensamento; neste caso, para apreender o mundo exterior, era preciso que a
consciência já carregasse em si, “antes”, tudo aquilo que fosse conhecer “depois”.
Porém, na visão de Merleau-Ponty, o cogito cartesiano não dá conta de explicar o
que vivenciamos, o que constatamos na nossa experiência de viver; com a noção do
cogito tácito, Merleau-Ponty procura dar conta da auto-apreensão que não abarca a
totalidade de si, uma vez que sempre temos uma visão parcial de tudo e de nós
mesmos. A noção de cogito tácito vem ao encontro do sujeito inacabado que se faz
por meio de seu engajamento num mundo também inacabado, aberto. Como diz
Merleau-Ponty:
De uma maneira geral, não é possível negar que eu tenha muitas coisas a aprender sobre mim mesmo, nem colocar previamente no centro de mim mesmo um conhecimento de mim em que antecipadamente esteja contido tudo o que mais tarde saberei de mim mesmo, depois de ter lido livros e passado por acontecimentos de que presentemente nem mesmo suspeito. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 509)
O cogito tácito, portanto, consiste no campo subjetivo de onde irrompe o
sujeito como identidade expressa a partir do momento em que ele se situa no
mundo, num contínuo “fazendo-se” em relação com o mundo. Sacrini explica: “O
auto-reconhecimento subjetivo sempre é parcial, visto que o sujeito não preexiste às
situações fácticas como totalidade acabada, mas se faz por meio delas.” (FERRAZ,
2006, p. 176)
Porém, aqui, talvez se apresente um problema: se somente me reconheço a
partir do meu engajamento no mundo, se antes disso, sou uma generalidade, como
me apercebo “de imediato” como consciência no cogito tácito? Sacrini expõe
claramente o problema:
Por um lado, o sujeito é aberto a fenômenos que o ultrapassam e pelos quais ele mesmo se ultrapassa, “a cada momento minha vida se precipita em coisas transcendentes, ela se passa inteira no exterior” (MERLEAU-PONTY, 1997c, p. 423). Por outro, tais fenômenos só podem apresentar-se como tais à medida que o sujeito os retoma e os vive como seus, unificando-os sobre a consciência de si. (FERRAZ, 2006, p. 183)
Parece que o problema que se coloca é que Merleau-Ponty admitiria um Si
como “dado” o que se contrapõe à ideia do “fazendo-se” continuamente em relação
com o mundo. A consciência de si mesmo seria afinal posterior ou anterior à
interação com o mundo? Merleau-Ponty instaura assim um paradoxo da
subjetividade. Para compreender este paradoxo, Sacrini procura analisar o problema
39
a partir da linguagem. Para poder refletir sobre si mesmo, o sujeito se utiliza de
significações preexistentes no mundo, as quais não foram criadas por ele; isto não
significa, como diz Sacrini, que “a consciência seria um produto da linguagem”.
Significa que para poder se auto-compreender, o sujeito “procura” nas palavras
existentes no mundo, aquelas que “traduzem” aquilo que ele já é ou aquilo que ele
sente ou pensa naquele momento. A consciência do sujeito não é constituída pela
linguagem, mas necessita dela para expressar-se a si mesma: a linguagem deve ser
entendida como expressão da existência. Diz Sacrini: “A consciência silenciosa
condiciona a linguagem apenas por delimitar a amplitude da experiência possível e
unificar as situações particulares vividas, não por constituí-las.” (FERRAZ, 2006, p.
183)
Dentro do paradoxo, encontramos então, um termo fundante, o Si (o cogito
tácito), a consciência que “condiciona a linguagem”, como diz Sacrini. Porém, este
termo fundante não é uma certeza clara e distinta como em Descartes; como diz
Sacrini, “ele deve ser revelado por meio das diferentes situações vividas.” (FERRAZ,
2006, p. 184)
Retomemos:
Na visão do intelectualismo segundo Merleau-Ponty, a consciência “absoluta”
já deveria conter em si tudo aquilo que apreenderá do mundo e, assim, não existiria
nada possível além do que a consciência já admitisse em si mesma; opostamente,
na visão do empirismo, a consciência “vazia” seria preenchida pelas impressões
advindas do mundo sensível. No primeiro caso, o mundo seria totalmente
determinado pela consciência e no segundo caso, a consciência seria totalmente
determinada pelo mundo. Em ambos os casos, se delineia a noção de causalidade,
somente invertendo-se os papéis do que causa o que.
Porém, com a noção do cogito tácito, do Si como termo fundante, Merleau-
Ponty insere a possibilidade da liberdade e dissolve a ideia de causalidade,
estabelecendo a relação entre sujeito e mundo como sendo existência, fazendo-se
um e outro mutuamente.
Se fôssemos uma consciência absoluta, como no modelo intelectualista,
somente poderíamos apreender outros sujeitos como “coisas”, pois jamais
conseguiríamos, nesse modelo, interagir com outras consciências: admitir a
existência de outras consciências seria contraditório à ideia de uma consciência
absoluta, como explica Merleau-Ponty:
40
Se a única experiência do sujeito é aquela que obtenho coincidindo com ele, se por definição o espírito se furta ao “espectador estranho” e só pode ser reconhecido interiormente, meu Cogito é por princípio único, ele não é “participável” por um outro. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 498)
Se, por outro lado, fôssemos a consciência vazia do empirismo, seríamos
sempre totalmente determinados pelo exterior. Em nenhum dos dois casos, seria
possível acontecer o “novo”. Como se explicaria assim a evolução do ser humano?
Na mútua constituição entre sujeito e mundo, nessa relação de mão dupla,
Merleau-Ponty mostra a ambiguidade do ser no mundo: ao mesmo tempo em que o
sujeito necessita do mundo para existir, o mundo, por sua vez, não existe sem o
sujeito. A constituição do sujeito se faz na relação entre a sua dimensão muda, mas
existencial e ativa enquanto cogito tácito e a sua dimensão corporal expressa e
passiva (no sentido de adquirir as significações existentes) enquanto cogito falado.
O sujeito não se “preenche” exclusivamente das significações que adquire do
mundo; como vimos acima, ele as utiliza para expressar o novo sentido que ele dá
ao que ele está experimentando com base nas vivências já sedimentadas por esse
sujeito. Aqui surge um ponto fundamental: o poder de dar um novo sentido. O
poder de transformar, de acrescentar, de agregar algo que ainda não se encontrava
disponível no mundo se dá na relação do sujeito com o mundo; porém, se o novo
sentido não se encontra disponível no mundo, se ele não é simplesmente dado, se
é somente por meio do sujeito que ele surge, encontrar-se-ia este novo sentido no
sujeito? É certo que se esse sujeito não estivesse em relação com o mundo, ele não
teria como dar esse novo sentido: ele precisa da experiência para expressar a sua
intencionalidade. Mas o que Merleau-Ponty parece querer mostrar é que na esfera
pré-reflexiva, a intenção ainda “muda” já dá um sentido individual ao que está
sendo vivido. De onde viria esse “primeiro sentido”? Certamente não de ideias
inatas e, sob esta concepção, “inatismo” não seria o termo adequado para explicar
esta noção de Merleau-Ponty, mas talvez pudéssemos falar de uma certa
“predisposição” do corpo próprio, desse modo de ser singular desse sujeito que o
faz perceber uma mesma situação que está sendo vivida também por outro sujeito,
de modo singular. Na primeira parte da Fenomenologia da percepção, no capítulo
“O corpo como objeto e a fisiologia mecanicista”, Merleau-Ponty chega a apontar
para a ideia de um certo “inatismo”; diz ele: “meu organismo, como adesão pré-
pessoal à forma geral do mundo, como existência anônima e geral, desempenha,
41
abaixo de minha vida pessoal, o papel de um complexo inato.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 125)
Talvez possamos relacionar esta ideia com o que Merleau-Ponty denomina
“subjetividade indeclinável” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 541); ela é uma
apercepção de si mesma, mas não pode ser confundida com a consciência absoluta
do intelectualismo, uma vez que não carrega em si, o mundo. Antes, depende do
mundo, desse campo de experiência para poder ultrapassá-lo, superá-lo. Podemos
vislumbrar já neste momento que é nessa subjetividade indeclinável que se encontra
a possibilidade de liberdade do ser no mundo, pois nela já se encontraria o poder de
dar um novo sentido.
Outro aspecto importante na concepção de Merleau-Ponty do “Si indeclinável”
(termo usado por Sacrini para a “subjetividade indeclinável”) é que, além do poder de
fazer surgir o novo, ele sustenta a noção de identidade pessoal. Se não tivéssemos
em nós algo que consistisse num tipo de “naturalidade” individual, não
conseguiríamos tecer uma história pessoal; as significações adquiridas do mundo
seriam agregadas de modo “fortuito”, sem apresentar nenhum sentido intrínseco ao
modo de ser singular do sujeito, digamos pela “configuração” do seu corpo próprio.
Na percepção de si mesmo, o contínuo movimento de retomada se perfila em torno
de um “fio condutor” que faz com que teçamos a nossa história pessoal, não como
momentos destacados postos em sucessão, mas como vivências entrelaçadas pela
nossa experiência como ser no mundo. O Si indeclinável faz com que a nossa vida
tenha um sentido pessoal. Como diz Sacrini: “A lógica do mundo esposada pelo
corpo é integrada à vida subjetiva justamente pelo caráter indeclinável da
consciência de si, unificadora de toda situação vivida pelo sujeito.”7 (FERRAZ, 2006,
p. 186)
Nessa concepção do Si, portanto, poderíamos levantar a questão se nele já
se encontraria um tipo de “predisposição natural e singular no modo de perceber do
sujeito” de onde surgiria o poder de dar um novo sentido ou ainda aquele “primeiro
sentido original” que, embora “mudo” (enquanto não expresso no mundo), já porta
um leque de intenções pessoais, antes da reflexão. Não adentraremos no exame
desta questão, neste trabalho; porém, parece-nos importante explicitar no que
consistem essas intenções. Para tanto, tentaremos explicitar melhor, a seguir, a
noção de intencionalidade em Merleau-Ponty, com base nas noções acima.
expostas. _______________ 7 Merleau-Ponty procura superar o dualismo consciência-corpo, mergulhando a consciência no corpo
encarnado e faz isso por meio de sua concepção de temporalidade, o que explicaremos melhor no capítulo 2.
42
1.3 O cogito e a intencionalidade
Desde o “cogito” cartesiano, existe uma dificuldade em justificar que a nossa
percepção do mundo exterior não é uma ilusão. A partir do “cogito”, o sujeito tem
consciência de si mesmo e de suas idéias, que são impressões internas advindas de
suas sensações externas, mas que podem ser entendidas como representações
intrínsecas a cada mente isolada; a consciência, assim, estaria “presa” à
interioridade, não existindo a possibilidade dela ter um contato “direto” com o “mundo
exterior”. Tratar-se-ia, primordialmente, de uma consciência de si mesmo e seus
respectivos estados de consciência, sem a “presença” efetiva das coisas percebidas.
Na noção fenomenológica de intencionalidade, surge uma nova concepção de
“consciência”.
A fenomenologia “tira” a consciência dessa caixa fechada que seria a mente,
a partir do conceito de “intencionalidade” no sentido em que consciência é
“consciência de” algo. O sentido de intenção em fenomenologia é diferente do
significado que se tem no senso comum. Enquanto neste último, entende-se
intenção como propósito, ou seja, o pensamento ou a ação direcionada a um
determinado objetivo, na fenomenologia, intenção é o ato de ter “consciência de”
algo. Como diz Sokolowski: “Na fenomenologia, ‘intenção’ significa a relação de
consciência que nós temos com um objeto.” (SOKOLOWSKI, 2004, p. 18) Assim
sendo, não há possibilidade de existir “consciência” sem admitir o acesso direto aos
objetos que se “presentam” no mundo e o ato de “revelação” que ocorre entre o
sujeito/observador e estes objetos para si e para outros.
No prefácio da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty esclarece como
a compreensão fenomenológica deve se distinguir do conceito científico e o quanto
isso está relacionado ao entendimento da concepção husserliana de “consciência”.
A diferença primordial do sentido husserliano de intencionalidade (“consciência de”)
consiste em desconstruir o conceito de consciência cartesiano elaborado na
concepção do “cogito” (“penso, logo existo”). Admitir a hipótese solipsista de que é
inteiramente impossível o acesso ao mundo “exterior”, implicaria em admitir a
impossibilidade da procura pela verdade, uma vez que não existiria um “mundo em
comum” entre os sujeitos, para haver parâmetros onde pudesse se fundamentar
uma busca pela verdade. A partir do conceito de consciência como intencionalidade,
a fenomenologia retoma a possibilidade do ser humano de buscar a verdade, dando
43
uma nova alternativa que visa solucionar o problema da correspondência
representação-representado do pensamento cartesiano. Quanto a este aspecto da
consciência fenomenológica, Sokolowski elucida que:
A doutrina da intencionalidade, então, estatui que cada ato de consciência está direcionado de algum modo a um objeto de algum tipo. A consciência é essencialmente consciência “de” algo ou outrem [...] Se estamos privados da intencionalidade, se não temos um mundo em comum, então não entramos na vida da razão, da evidência e da verdade. Cada um de nós volta-se para seu próprio mundo privado, e na ordem prática fazemos nossas próprias coisas: a verdade não nos faz nenhuma demanda [...] A negação da intencionalidade tem como sua correlata a negação da orientação da mente para a verdade. (SOKOLOWSKI, 2004, p. 18 e 19)
Assim, a fenomenologia resgata a busca do conhecimento, procurando
“compreender as coisas em si mesmas”, sem antepor para tanto, uma consciência
cartesiana (“interior”) que determinaria as causas e efeitos de fatos “exteriores” ao
sujeito. Como diz Merleau-Ponty: “A primeira verdade é ‘Eu penso’, mas sob a
condição de que por isso se entenda ‘eu sou para mim’ estando no mundo [...] O
interior e o exterior são inseparáveis. O mundo está inteiro dentro de mim e eu estou
inteiro fora de mim.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 546)
Este conceito de consciência também difere do cartesiano enquanto a
compreende em seus vários matizes e não num sentido único de impressão de algo;
temos vários “tipos” de “consciência de”. Por exemplo, a percepção direta de um
objeto difere da percepção igualmente sensível que temos da foto deste mesmo
objeto; a memória nos traz presente a percepção de algo que não está presente; ou
ainda, a imaginação pode ser a consciência de algo que não existe no mundo
empírico e assim por diante. Assim, a fenomenologia entende que a maneira de um
objeto “aparecer” faz parte do modo de “ser” deste objeto. Mesmo considerando o
equívoco dos sentidos de perceber um objeto no lugar de outro em determinadas
circunstâncias, isso implica em admitir que, para tanto, foi necessário que algo
semelhante ao que percebemos nos tivesse sido apresentado. Não poderíamos
nunca distinguir entre alucinação e realidade, se não tivéssemos em nós a
capacidade de realizar esta distinção. Portanto, na fenomenologia, não existe nada
que se “presente” que não seja “real”.
Uma boa explicação da concepção de consciência pela intencionalidade pode
ser obtida na apresentação que dela fez Sartre. Sartre critica a visão, segundo ele
ilusória, tanto do realismo quanto do idealismo, de que a consciência consistiria na
captação do mundo exterior pela essência racional do ser humano, transformando
44
essa percepção num “conteúdo” da consciência. Entendida desta maneira, a
consciência seria um tipo de “depósito de conteúdos oriundos da percepção”. Em
contrapartida, Sartre aponta para o conceito husserliano, onde, “a consciência e o
mundo surgem simultaneamente: exterior por essência, o mundo é por essência
relativo a ela.” Esta ideia é elucidada por Sartre com o exemplo da apreensão de
uma árvore:
Vêem esta árvore, seja. Mas estão a vê-la no próprio lugar em que está: à beira do caminho, no meio do pó, só e retorcida pelo calor, a vinte léguas da costa mediterrânea. Não poderia entrar na vossa consciência, porque não é da mesma natureza que ela. Julgareis reconhecer aqui Bergson e o primeiro capítulo de Matière et Mémoire. Mas Husserl não é realista: essa árvore colocada num pedaço de terra gretada não constitui um absoluto que entraria mais tarde em comunicação conosco [...] Conhecer é “estourar para”, arrancar-se da úmida intimidade gástrica para prosseguir, por aí fora, para além de si, para o que se não é, por aí fora, perto da árvore e todavia fora dela, pois escapa-se e repele-me e eu não posso perder-me nela mais do que ela diluir-se em mim: fora dela, fora de mim. [...] O conhecimento ou pura “representação” é apenas uma das formas possíveis da minha consciência “de” esta árvore; posso também gostar dela, receá-la, odiá-la, e esse exceder-se da consciência por ela própria, a que se chama “intencionalidade”, torna a encontrar-se no receio, no ódio, no amor. (SARTRE, 1968)
A consciência então é entendida no sentido de “explodir em direção a”; a
consciência, para Husserl, não é uma substância ou uma essência interior, mas esse
“movimento” de se relacionar com o que ela não é. Não existe a consciência em si,
mas sim a “consciência de” alguma coisa ou outrem. É essa “consciência de” que
Husserl denomina intencionalidade. Este conceito de consciência “intencional” não
se restringe à experiência de algo físico; ele abrange toda e qualquer experiência
possível: percepção, recordação, imaginação, emoção etc. E sempre que qualquer
uma dessas operações se realiza, ela inclui o “de alguma coisa”: não é possível ter
uma percepção em si mesma; uma percepção é sempre percepção de algo ou
alguém, assim como a recordação é recordação de algo ou alguém e assim por
diante. Isto quer dizer que temos vários “tipos” de intencionalidade (“modos” de
consciência); como diz Sokolowski:
Há tipos diferentes de intencionalidades, correlacionados com tipos diferentes de objetos. Por exemplo, nós executamos intencionalidades perceptuais quando vemos um objeto material ordinário, mas devemos intencionar pictorialmente quando vemos uma fotografia ou uma pintura. Devemos mudar nossa intencionalidade; tomar algo como uma fotografia é diferente de tomar algo como um simples objeto. Fotografias são correlatas com intencionalidade pictorial, objetos perceptuais são correlatos com intencionalidade perceptual. (SOKOLOWSKI, 2004, p. 21)
45
Sokolowski observa ainda que “as formas de intencionalidade podem ser
entrelaçadas”, ou seja, por exemplo, para ver uma fotografia usamos dois tipos de
intencionalidade: na perceptual perceberíamos o “papel” da fotografia (sua matéria)
e na pictorial o sentido de “fotografia”. Assim, com a concepção de intencionalidade,
a fenomenologia consegue “dar conta” do modo com que os fenômenos se
relacionam, da maneira como se apresentam: “O modo como as coisas aparecem é
parte do ser das coisas; as coisas aparecem como elas são, e elas são como elas
aparecem.” (SOKOLOWSKI, 2004, p. 23) Desta maneira, a consciência não está
encapsulada em si mesma, indo “para fora” e resgatando o mundo que seria
inacessível na concepção solipsista.
A fenomenologia, portanto, busca o conhecimento a partir do conceito de
“intencionalidade” que, por sua vez, na concepção de Merleau-Ponty, não admite
uma consciência “fora” do mundo e sim, a contínua percepção de um mundo, por um
sujeito que se encontra imerso nele. Esse mundo não é simplesmente “dado” por
aquilo que é observado pelos cinco sentidos e analisado sobre conceitos e juízos
preestabelecidos; é também constituído por toda a sorte de sensações internas,
memórias e fantasias. O “real” está além do que possa estar contido num “mundo
interior” e na percepção de um “mundo exterior”; de fato, o homem está em relação
com tudo o que se apresenta a ele e é sob essa perspectiva que a fenomenologia
tenta retornar as coisas em si mesmas. Esse é o sentido da redução fenomenológica
de Husserl. Como diz Lyotard:
Dizer que a consciência é consciência de algo é dizer que não existe noesis sem noema, cogito sem cogitatum, mas tampouco amo sem amatum etc., em suma que eu estou entrelaçado ao mundo. E lembramos que a redução não significa absolutamente interrupção desse entrelaçamento mas apenas um colocar fora de circuito da alienação pela qual eu apreendo a mim mesmo como mundano e não como transcendental. A rigor, o eu puro isolado de seus correlatos não é nada. (LYOTARD, 1967, p. 57-58)
No prefácio da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty procura
explicitar as noções de redução e de intencionalidade de Husserl, mostrando que,
pela intencionalidade, a consciência deixa de estar isolada do mundo (como no
modelo cartesiano) para estar em contínua relação com o mundo. Retomando a
concepção de cogito cartesiano, Merleau-Ponty lembra que, para Descartes, a
consciência “coincide” com o pensamento e para apreender os objetos exteriores,
utiliza as impressões do mundo sensível captadas pelo corpo transformando-as em
46
representações a serem analisadas, explicadas a fim de serem conhecidas por
essa consciência. Na concepção de intencionalidade de Husserl, segundo Merleau-
Ponty, “trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 3) Isto porque a fenomenologia husserliana é o estudo das essências e,
para realizar este estudo, propõe o retorno às coisas mesmas; e no entendimento de
Merleau-Ponty, “a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na
existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra
maneira senão a partir de sua ‘facticidade’.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 1) Desta
maneira, para se “compreender o homem e o mundo a partir de sua facticidade”,
antes de qualquer análise, é preciso descrever as coisas do modo como elas se
apresentam, descrever a experiência que temos do mundo. Segundo Merleau-Ponty,
o cientista explica o mundo, mas antes de explicá-lo, ele o percebe. Retornar às
coisas mesmas, portanto, seria retornar ao mundo percebido a partir das primeiras
descrições das coisas como elas se apresentam a nós: “como a geografia em
relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um
prado ou um riacho.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4) Segundo Merleau-Ponty, a
análise reflexiva de Descartes e de todo o racionalismo faria o caminho no sentido
inverso: partiria da “geografia” para chegar à “floresta”. No pensamento de Merleau-
Ponty, seria um absurdo conceber que o mundo fosse exclusivamente constituído
pela consciência; segundo o autor, nossa apreensão do mundo se inicia com a
percepção que temos dele. Esclarece Merleau-Ponty: “A percepção não é uma
ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada;
ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 6) Assim, a consciência não conheceria a priori as leis
que regem o mundo, a natureza; seria, primeiramente, percebendo o mundo que se
pode pensá-lo.
Segundo Merleau-Ponty, essa consciência absoluta que realizaria a total
apreensão de si mesma pelo pensamento, o que corresponde à concepção do
cogito de Descartes, não daria conta da percepção do outro como outra consciência,
uma vez que, na concepção do cogito, só se está seguro de ter acesso aos próprios
pensamentos (os do outro não são acessíveis e, portanto, não podem ser
considerados). Desta maneira, a possibilidade da intersubjetividade teria que ser
descartada.
47
Na fenomenologia, porém, a consciência é “consciência de” alguma coisa e,
para ser consciência de alguma “coisa da maneira como ela se apresenta” (isso
inclui outros sujeitos), ela não pode estar, segundo Merleau-Ponty, “isolada” do
mundo, não pode estar “destacada” do espaço e do tempo: “O mundo que eu
distinguia de mim enquanto soma de coisas ou de processos ligados por relações de
causalidade, eu o redescubro ‘em mim’ enquanto horizonte permanente de todas as
minhas cogitationes e como uma dimensão em relação à qual eu não deixo de me
situar.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 9) No pensamento de Merleau-Ponty, o cogito,
na medida em que afirma que “penso o mundo”, revela-me como “ser no mundo”,
pois é impossível pensá-lo sem percebê-lo e o percebemos vivendo nele. No
pensamento do autor, justamente porque somos em contínua relação com o mundo,
é que o que se apresenta como prioritário a ser investigado é essa relação; porém,
por essa relação ser o nosso modo de ser no mundo, ela é tão evidente que, no
nosso cotidiano, passa despercebida.
Para refletir sobre essa relação, portanto, seria preciso “romper nossa
familiaridade com o mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 10); é esse o sentido dado
por Merleau-Ponty à epoché proposta por Husserl (“colocar o mundo entre
parênteses”) na sua concepção de redução fenomenológica.
A fenomenologia de Husserl surge como um neo-cartesianismo que, de um
lado, recusa a mathesis universalis de Descartes e, de outro lado, recusa a ciência a
priori extraída da matemática como modelo, de Kant. O pensamento husserliano
tenta solucionar a questão da correspondência entre representação e objeto
desfazendo a separação ontológica entre o mundo exterior (transcendência) que
está “fora” do sujeito e a própria interioridade do sujeito (imanência), fazendo do
objeto da fenomenologia o “fenômeno puro”: a percepção da percepção, ou seja, o
ato de pensar o que está sendo percebido. A reflexão transcendental, então, não
vai refletir sobre o pensamento, mas sobre o “pensar”; não vai refletir sobre o
percebido, mas sobre o “perceber”.
Não se trata de acessar a objetalidade do mundo em si mesmo, mas de tratar
como objeto transcendente aquilo que se apresenta a nós, da maneira como se
apresenta, ou seja, a “percepção” do mundo (o fenômeno). É assim que Husserl
coloca a questão da existência do mundo “entre parênteses” e, desta maneira, traz a
transcendência para dentro da imanência; na fenomenologia, imanência e
48
transcendência deixam de ter o sentido “real” das ciências positivas para se
transformarem em imanência e transcendência no sentido “ideal”.
Assim, o objeto na atitude transcendental (fenomenológica) é o “fenômeno”
(as percepções que temos do mundo – as “vivências” nas palavras de Husserl). A
imanência na fenomenologia se caracteriza como a consciência em ação, ou seja,
consciência é “consciência de” algo (a intencionalidade). A fenomenologia se
constitui da relação entre essa “consciência de” e o “fenômeno”, fazendo da
transcendência algo que se relaciona com a imanência dentro da própria
subjetividade (sem um “dentro” e um “fora” do sujeito). Eis a redução
fenomenológica: a realidade é produto da constituição intencional. Na atitude
fenomenológica, não há oposição entre idealismo e realismo.
O fundamento absoluto que se constitui com a redução fenomenológica de
Husserl é o que ele chama de “ver puro”; o “ver puro” é a transparência da
consciência para si mesma. Não é mais uma res cogitans que percebe; é já uma
percepção, o ato em ação, a evidência em ato.
Husserl faz assim uma nova versão do cogito cartesiano, que poderia ser
argumentada da seguinte maneira, nas palavras do Prof. Codato8:
“- Eu percebo. (imanência)
- Se eu percebo, eu posso duvidar da coisa percebida, mas não posso
duvidar que percebo.
- Se é certo que percebo, também é certo que percebo algo
(transcendência).”
Estar imerso no mundo e fazer parte dele, “não de forma independente”, ou
seja, somente ser a partir da existência “do” e “no” mundo, torna possível a
intersubjetividade inatingível pelo cogito cartesiano. Como já dissemos acima, no
cogito, só podemos ter certeza da consciência do “eu”; o “eu” do outro é um objeto
de um mundo exterior captado pelo sujeito como “objeto”, nunca podendo ser
percebido efetivamente como “outro sujeito”.
Merleau-Ponty vai fundar um novo cogito, com base na concepção de
intencionalidade de Husserl, porém, divergindo ainda deste, tirando esse cogito da
absoluta idealidade e encarnando-o no mundo; como diz Moutinho:
O cogito merleau-pontiano não é portanto o encontro do pensamento consigo mesmo, ele é antes uma consciência de si mesmo implicada em todo ato, em toda percepção – irrefletida, evidentemente. É dessa forma que Merleau-Ponty pretende garantir ao mesmo tempo a
_______________ 8 Anotações realizadas em aula – 2º semestre/2008 (3º ano Graduação)
49
pertença do mundo ao sujeito e do sujeito a si mesmo: é que se trata aqui de um “cogito pré-reflexivo” no sentido em que Sartre já o indicava, quando implicava na consciência do mundo uma consciência (de) si – o parênteses indicando justamente o caráter não-tético e pré-reflexivo do cogito existencial (SARTRE, 1970, p. 20): “eu sou não dissimulado a mim mesmo”, diz Merleau-Ponty, “porque eu tenho um mundo”. (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 344) (MOUTINHO, p. 20)
Essa percepção imediata de nós mesmos, porém, se dá como seres no
mundo e, portanto, esse “aperceber-se de si mesmo”, retomando a concepção de
redução fenomenológica de Husserl, não permite que uma filosofia que investigue a
“percepção de si de um sujeito” possa se considerar também ela fora do mundo:
A filosofia não deve considerar-se a si mesma como adquirida naquilo que ela pôde dizer de verdadeiro, que ela é uma experiência renovada de seu próprio começo, que toda ela consiste em descrever este começo e, enfim, que a reflexão radical é consciência de sua própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é sua situação inicial, constante e final. (MERLEAU-PONTY, 2006. P. 11)
Segundo Merleau-Ponty, da mesma maneira não se pode tomar a noção de
“essências” de Husserl como algo exclusivamente “ideal”, “fora” do mundo; para
Merleau-Ponty, a redução eidética (retorno às essências) é o movimento necessário
a se fazer no “campo da idealidade para conhecer e conquistar sua facticidade.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 12) Mas isto não pode sobrepujar a experiência que
temos enquanto ser no mundo: “As essências de Husserl devem trazer consigo as
relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e
as algas palpitantes.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 12) Merleau-Ponty não
considera, portanto, que na concepção husserliana de “essências”, estas estejam
separadas da existência; segundo ele, “as essências separadas são as da
linguagem.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 12) Entendemos com isso que, para
Merleau-Ponty, pela linguagem é possível expressar as essências, porém, como
vimos anteriormente, não se trata de uma separação entre essência e expressão: é
no expressar em linguagem que as essências que “repousam na vida
antepredicativa da consciência” vem à existência. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 12)
Desta maneira, buscar a essência do mundo não é alcançar a sua forma
ideal; é buscar “aquilo que de fato ele é para nós antes de qualquer tematização.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 13) O que ele é para nós, segundo Merleau-Ponty, é o
que percebemos dele, estando nele: “O mundo não é aquilo que eu penso, mas
aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com
ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 14)
50
Sob essa perspectiva, Merleau-Ponty define a consciência como “projeto do
mundo, destinada a um mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao
qual ela não cessa de se dirigir.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 15) Segundo o autor,
é nessa ideia que se sustenta a distinção que Husserl faz entre intencionalidade de
ato e intencionalidade operante, sendo a primeira “aquela de nossos juízos e de
nossas tomadas de posição voluntárias” e a segunda, “aquela que forma a unidade
natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
16) Como explica Zuben:
A intencionalidade operante identifica-se com toda atividade do sujeito que deixou de ser propriedade de uma consciência isolada e constituinte, é a própria abertura ao mundo de um sujeito carnal, corporal. Na verdade, a característica primordial de nossa relação com o mundo não é a percepção predicativa, mas a percepção carnal, corporal. (ZUBEN, 1984)
A análise reflexiva da intencionalidade, desse movimento, jamais vai esgotar
ou abarcar a totalidade dessa apreensão natural. Nisto, a intencionalidade difere da
noção de consciência do intelectualismo: os objetos não estão postos ali com uma
natureza imutável diante de uma consciência absoluta que seria capaz de explicá-
los simplesmente pela análise intelectiva; sujeito e objeto estão em relação num
contínuo “fazendo-se mutuamente” de maneira inesgotável, uma vez que ambos
estão em contínua transformação no fluxo temporal. Então, para se compreender
qualquer coisa, sob a perspectiva fenomenológica, é preciso, como diz Merleau-
Ponty:
...reapoderar-se da intenção total – não apenas aquilo que são para a representação as “propriedades” da coisa percebida, a poeira dos “fatos históricos”, as “ideias” introduzidas pela doutrina –, mas a maneira única de existir que se exprime nas propriedades da pedra, do vidro ou do pedaço de cera, em todos os fatos de uma revolução, em todos os pensamentos de um filósofo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 16)
Essa perspectiva fenomenológica coloca o modo de ser no mundo, a maneira
pela qual percebemos esse mundo, como cerne da existência; posteriormente,
vamos entender que a intencionalidade vai fundamentar, inclusive, as dimensões da
história. Da intencionalidade advém a ideia de relação que, em Merleau-Ponty, vai
fundamentar sua concepção de estrutura existencial. Como diz o autor: “O mundo
fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de
minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do
51
outro, pela engrenagem de umas nas outras.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18) E
ainda:
A racionalidade não é um problema, não existe detrás dela uma incógnita que tenhamos de determinar dedutivamente ou provar indutivamente a partir dela: nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências, e ninguém sabe melhor do que nós como ele se dá, já que nós somos este laço de relações. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 19)
A intencionalidade, esse movimento da consciência do sujeito em relação
com o mundo por meio do seu corpo, esse contínuo “explodir em direção ao mundo”
enfim, o modo desse ser no mundo acontece, porém, por meio de uma dimensão
fundamental: a temporalidade. E, para se compreender a temporalidade, para
Merleau-Ponty, como vimos acima, não é o sujeito que vai partir em busca do
conhecimento do tempo como se este fosse um objeto a ser conhecido por uma
consciência absoluta; é retornando à percepção do tempo em sua própria estrutura,
que se poderá compreendê-lo. É o que veremos a seguir.
52
Capítulo 2: A temporalidade
A Mentira é a recriação de uma Verdade. O mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas ténues e delicadas. Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O que não quer dizer que o jogo resulta sempre. Resulte seja o que for ou do que for. A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso. Pelo menos ainda. Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da noção de tempo ou duração ou extensão. A aceleração do tempo pode traduzir-se pela imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se por um máximo de aceleração ou um mínimo de extensão: aceleração tão grande que já não se veja o movimento ou o espaço ou a duração. Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém. Os construtores demolem. No lugar onde estava o sopro, pormos pedras ou palavras: sinónimo de construção. Ou destruição. Ou acção. (Ana Hatherly, em “O Mestre”)
Na Terceira Parte da Fenomenologia da Percepção, no capítulo que trata da
temporalidade, Merleau-Ponty mostra a relação intrínseca que existe entre o tempo
e a subjetividade, sua relação “ontológica”; faz isso inserindo a “percepção” como
aspecto fundamental na investigação do conhecimento humano e sua relação com o
mundo.
Segundo Merleau-Ponty, um dos aspectos básicos que já aponta para um
vínculo entre temporalidade e subjetividade consiste na constatação comum de que
vivemos nossas experiências umas após as outras, sempre com um “antes” e um
“depois”; porém, segundo o autor, outro aspecto apresenta uma “relação muito mais
íntima entre o tempo e a subjetividade”: não somos eternos. (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 549) Por esta razão, o autor conclui que o ser humano só pode ser
temporal, “não por algum acaso da constituição humana”, mas por uma
“necessidade interior” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549); sendo assim, Merleau-
Ponty procurará formular uma concepção para temporalidade que considere essa
comunicação interior entre sujeito e tempo.
Como vimos no capítulo 1, em Merleau-Ponty, qualquer investigação deve
partir da ideia da relação entre sujeito e mundo e da concepção de
53
intencionalidade; desta maneira, segundo Merleau-Ponty, para se analisar o tempo
não seria de modo diferente: não se partirá de concepções advindas de uma
consciência pura que se fará essa análise, mas acessando o tempo pela sua própria
estrutura, da mesma forma que para se compreender o sujeito deve-se considerar a
“intersecção de suas dimensões.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 550) Para Merleau-
Ponty, será acompanhando a dialética interna do tempo que se chegará a uma nova
concepção de sujeito e, para acessá-la, o autor irá iniciar pela percepção que temos
do tempo. É o que veremos a seguir.
2.1 A percepção do tempo
Na percepção do senso comum, o tempo “passa”; é neste sentido que
Merleau-Ponty nos conduz à analogia entre o tempo e o curso de um rio.
Considerando um observador parado à margem de um rio, poderíamos dizer
que a nascente do rio seria o futuro (as águas que estão por vir) e a foz do rio, o
passado (as águas que já passaram), tendo como presente as águas que passam à
sua frente. Essa percepção advém da visão específica de um observador que se
posiciona “parado” à margem, em determinado ponto do curso do rio.
Porém, também é verdade que, enquanto o observador vê a água
“supostamente” presente “passar” à sua frente, a água que está na nascente, está
na nascente “agora”, assim como a água que está escoando na foz, também está
escoando na foz “agora”. Desta maneira, teríamos uma “presença atual do passado”
(a ideia “presente” da água que já passou e que, no mundo, está escoando na foz
agora), bem como uma “presença atual do futuro” (a ideia “presente” da água que
está por vir e que, no mundo, está na nascente agora). Esta última concepção
remete à ideia agostiniana do tempo e sua tríplice presença composta de três
presentes: a memória (o presente do passado), o momento atual (o presente do
presente) e a imaginação ou expectativa (o presente do futuro).
Para Agostinho, não existiriam três tempos (passado, presente e futuro); a
concepção destes três tempos seria dada por aquilo que Agostinho chama de
“distensão da alma”. O tempo como distensão da alma seria apreendido pelo ser
humano fazendo-se a distinção entre o tempo transitório (sucessão de fatos) e o
permanente (eternidade); no tempo psicológico, ocorreria a percepção dos fatos
gravados na memória e das expectativas de eventos futuros, ordenados na forma de
54
sucessão. Assim, a memória consistiria em “presentificar” as lembranças do
passado; o momento atual (o presente) consistiria no estado de atenção que faz a
passagem e, a imaginação consistiria na presentificação das expectativas relativas
ao futuro. Portanto, quando “medimos” o tempo, isto se daria por esta propriedade
humana de “distensão da alma”. O que medimos, na realidade, seriam as
impressões conforme as ordenamos como passagem no espírito e não a efetiva
passagem das coisas no mundo.
Segundo Merleau-Ponty, porém, “a mudança supõe um certo posto onde eu
me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem; não há acontecimento sem alguém a
quem eles advenham, e do qual a perspectiva finita funda sua individualidade.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 551) Sob essa perspectiva, compreendemos que a
analogia feita entre o tempo e o rio somente é coerente porque consideramos que
“alguém” está observando o curso desse rio; assim, compreendido, o tempo não é
um “rio”, ele não “passa” como as águas de um rio. O sentido de “passagem”
somente pode ser dado por “alguém” que está observando esse rio; é na percepção
de alguém que as águas passam. Na analogia com o rio, dependendo de onde
colocamos o observador, o sentido de passado e futuro se inverte: se o observador
está às margens do rio, como dissemos acima, a nascente consistiria nas águas que
ainda estão por vir (futuro) e a foz consistiria nas águas que já passaram à sua
frente (passado); se, ao invés disso, o observador se encontra navegando no rio,
partindo da sua nascente em direção à foz, a nascente consistirá no passado uma
vez que o observador já passou por ela e da mesma maneira a foz consistirá no
futuro, onde o observador ainda irá chegar. Portanto, como diz Merleau-Ponty: “O
tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar.
Ele nasce de minha relação com as coisas.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 551)
As coisas em si mesmas não “passam”; como vimos acima, as águas da
nascente e as da foz estão presentes no mundo, o tempo todo. O que é passado ou
futuro para alguém está sempre presente no mundo. Para Merleau-Ponty, no mundo
objetivo, não há passagem de tempo: no mundo em si, sem a perspectiva de um
sujeito finito, “só podemos encontrar ‘agoras’”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 552)
Estes “agoras”, sem estar sob a perspectiva de ninguém, não poderiam suceder um
após o outro. Desta maneira, o tempo não seria uma sucessão de “agoras”; na
realidade, as coisas em si, existem agora e sempre. Merleau-Ponty ilustra muito bem
essa idéia quando exemplifica:
55
Esta mesa traz traços de minha vida passada, inscrevi nela as minhas iniciais, nela fiz manchas de tinta. Mas por si mesmos estes traços não remetem ao passado: eles são presentes; e, se encontro ali signos de algum acontecimento “anterior”, é porque tenho, por outras vias, o sentido do passado, é porque trago em mim essa significação. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 553)
Ou seja, o passado e o futuro não estão “nas” coisas; somos nós que damos
o significado, o sentido de passado ou futuro, pela intencionalidade específica com
que nos dirigimos a elas. Guardamos na memória a percepção que tivemos de um
evento anterior e a “revivemos” – sentimos a mesma percepção, porém, embora ela
seja presente, ela parece “enfraquecida” e, nela mesma, não existe nada que me
indique o sentido de passado: sou eu que lhe dou esse sentido. Mais contundente
ainda se mostra a ideia de porvir, pois, nesse caso, não existem percepções
guardadas na memória que pudessem ser retomadas e trazidas para o presente.
Segundo Merleau-Ponty, o sentido de porvir somente pode ser explicado da mesma
forma que se explica o sentido de passado. Na nossa percepção do presente,
vemos que ele está “passando”, que o instante atual já pode ser antecipado como
um instante passado e, desta maneira, Merleau-Ponty define que “o porvir é este
vazio que agora se forma adiante de meu presente.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
554) Nesse sentido, passado e porvir se apresentariam como uma “projeção”, mas,
de qualquer modo, para que fosse possível fazer uma projeção do porvir, é preciso
ter um sentido de porvir. Assim, no presente, sentimos a passagem tanto do
instante atual que está passando e se tornando passado, assim como do instante
que está chegando e se tornando presente.
Passado e porvir, então, não são conceitos que construiríamos para
denominar uma sucessão de “fatos psíquicos”: “Não digamos mais que o tempo é
um ‘dado da consciência’, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra
ou constitui o tempo.”9 (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 555)
_______________
9 Quanto à ideia de uma consciência que constitui o tempo, Eric Matthews faz uma observação importante: ela não poderia constituí-lo totalmente. Diz ele que a temporalidade “não está nos objetos em si mesmos”, como já dissemos acima e posteriormente completa: “Mas, igualmente, a consciência não tem o poder de constituir o tempo: ela é presa a um tempo que se move para a frente independente dela. A temporalidade é, dessa forma, um aspecto do que Merleau-Ponty chama de ‘ambiguidade’ da nossa existência – que tanto é parte do mundo quanto capaz de distanciar-se dele ou, ao menos, ‘afrouxar os laços que a ele nos prendem’. Essa ambiguidade fornece o pano de fundo para a visão de Merleau-Ponty sobre a liberdade humana.” (MATTHEWS, 2010, p. 129)
56
Segundo Merleau-Ponty, então, o tempo não é um “dado da consciência”, não
é um objeto a ser apreendido pela consciência; ele é a dimensão na qual a
consciência se desdobra. Quando tentamos abarcar o tempo como uma série de
antes e depois, apreendemos o “resultado de sua passagem” e não o seu “passar”.
Restringindo-se no “resultado de sua passagem”, o “antes” e o “depois” se
apresentam ao mesmo tempo no presente, perdendo o sentido de passado e porvir;
mas não é assim que percebemos o tempo. Ele é “passagem” contínua, é
movimento contínuo e, desta forma, ele nunca pode estar completamente
constituído. Moutinho explica essa constituição do tempo pela consciência, no
sentido de que esse “constituir” não significaria apreender o tempo como um objeto
imanente da consciência e sim um desdobramento de uma consciência situada no
tempo:
A consciência não pode dominar o tempo, nivelá-lo; só assim, em vez de lidar com um tempo constituído, que não é o próprio tempo, mas “seu registro final, o resultado de sua passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender” (PhP, 474, 556), só assim poderei dar conta da efetiva passagem, do trânsito do tempo em vez de caminhar livre e descompromissadamente por suas dimensões. É preciso, em suma – eis a conclusão que é preciso tirar contra o intelectualismo de tipo husserliano -, que a consciência se situe no tempo, pois, se a consciência constitui o tempo, se o tempo é um objeto imanente da consciência, então ela não está situada, ela o domina, e o tempo, para ela, não passa: se mergulho no para si, já não há ser no mundo, e não poder haver passagem do tempo. (MOUTINHO, 2006, p. 248)
Na explicação de Moutinho, é importante ressaltar que a consciência se situa
no tempo sendo o tempo, “fazendo-se”. O tempo se apresenta para nós “em ação”
e não como um ser; ele é a passagem e somos nós que fazemos essa passagem. O
ser do tempo em si, a sua síntese, é algo que não conseguimos apreender.
Segundo Merleau-Ponty, é sonho filosófico pensar uma eternidade que
supere os limites de nossa finitude, de nossa corruptibilidade. Assim, quando
tentamos apreender o tempo em sua totalidade, o destruímos. Para apreendermos o
tempo em si, teríamos que ser intemporais; como não somos intemporais, Merleau-
Ponty parte para a investigação do que nos é “possível” apreender do tempo, ou
seja, do tempo não como objeto, não como ser em si, mas sim como uma dimensão
do nosso ser.
57
2.2 O tempo como dimensão do nosso ser
Para iniciar a investigação do tempo como dimensão do nosso ser, Merleau-
Ponty parte do “campo de presença” do sujeito, denominação que ele dá ao
momento presente onde temos os sentidos de passado e futuro; explicando: mesmo
sem pensar propriamente nas atividades que realizei hoje pela manhã, eu as trago
comigo, assim como as coisas que farei à noite, embora ainda não tenham
acontecido. Como diz Merleau-Ponty, “’está ali’, como o verso de uma casa da qual
vejo a fachada, ou como o fundo sob a figura.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 557)
Ou seja, esses eventos não estão visíveis diante do sujeito, mas continuam
interligados ao sujeito por meio de, como diz o autor, “fios intencionais”. (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 558) Segundo Merleau-Ponty, esses sentidos intencionais de
passado e porvir são chamados por Husserl, de retenções e protensões; elas não
partiriam de um “Eu central”, mas do campo de percepção do sujeito. Husserl
elaborou um “gráfico” para mostrar como se comportariam essas retenções e
protensões:
Para Merleau-Ponty, essas retenções e protensões não estariam ordenadas
sucessivamente numa linha, como instantes isolados; não existiria uma ruptura entre
o instante anterior e o que chega, entre as retenções e as protensões, e sim uma
modificação contínua de um fluxo ininterrupto. É nesse sentido que Merleau-Ponty
diz que “O tempo não é uma linha, mas uma rede de intencionalidades.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 558)
No gráfico, o instante A não está separado de A’; eles estão interligados de
modo inteligível. Isto não quer dizer que os ordenamos e os concatenamos desta
maneira por uma operação intelectiva; quer dizer que A’ é uma continuidade de A,
que ele não seria se não fosse A e que essa conexão se dá porque eles têm um
sentido que forma uma unidade que consiste numa identidade em contínua
modificação. Como diz Merleau-Ponty: “Para ter um passado ou um porvir, não
58
precisamos reunir, por um ato intelectual, uma série de Abschattungen10, estes têm
como que uma unidade natural e primordial, e é o próprio passado ou o próprio
futuro que se anunciam através deles.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 561)
Os instantes A, B e C não são distintos entre si, nem são em sucessão; eles
se diferenciam uns dos outros: “Ali existe não uma multiplicidade de fenômenos
ligados, mas um só fenômeno de escoamento.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 562) É
pelo tempo que algo deixa de ser o que era para se tornar o que será. É por esta
razão que Merleau-Ponty diz que os instantes não estão interligados por uma
“síntese de identificação” e sim por uma “síntese de transição”: um instante não se
conecta ao outro como se fossem totalmente independentes; um instante se
“dissolve” no outro. O tempo é essa “passagem”: “como no tempo ser e passar são
sinônimos, tornando-se passado o acontecimento não deixa de ser.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 563)
O que acontece, segundo Merleau-Ponty, não é uma sucessão de “presentes”
e nem um presente de onde se teria “esboços” de passado e de porvir, seguido de
outro presente que teria outros esboços de passado e de porvir, onde a ligação entre
um “presente” e outro seria feita por alguém que ordenasse a sucessão. O que
existe é um tempo que funda o sentido de presente, passado e porvir num só
movimento. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 564) Desta maneira, não existe um
passado e um futuro em si mesmos: eles só existem mediante a perspectiva de um
sujeito que lhes dê esse sentido. É a partir do presente que explodimos vetores em
direção a um passado ou a um porvir. Somos nós que fazemos a passagem de um
momento ao outro, a modificação de seu sentido de presente para passado e este
fazer-se - pois que fazemos ao mesmo tempo em que sofremos essa passagem -
é o que implica em Merleau-Ponty afirmar que nós somos o tempo. O nosso ser é
contínuo poder de transformar-se; nossa existência consiste nesse movimento. Nós
não assistimos o tempo passar; somos nós que fazemos a passagem: nós somos o
tempo. Como diz Moutinho:
O tempo é o sujeito, quer dizer, ele é para si, porque cada parte vê as outras, porque as “conhece”, enquanto são partes internamente ligadas de um único todo. Sujeito se define aqui pela unidade autônoma – não objetivada diante de outra instância – consciente de si, cujo ser “coincide com o ser para si” (PhP, 483, 566) Mas então essa subjetividade não é intratemporal, ela não está no tempo porque ela própria é o tempo. (MOUTINHO, 2006, p. 257)
_______________
10 Abschattungen: Em alemão, perspectivas, esboços.
59
“Cada parte vê as outras” porque “são partes internamente ligadas”: isto
porque é o sujeito quem dá “a liga” a estas partes por meio do sentido que ele dá às
suas experiências como vividas no passado, concatenando-as com o presente e
projetando-as para o futuro. Como diz Matthews:
Como um ser ativo que forma intenções, carrego comigo no presente um senso do que passou, do que foi, assim como uma sensação do futuro apoiando-se sobre o presente. O passado, o presente e o futuro “não têm todos o mesmo sentido de ser” (MERLEAU-PONTY, 2002: 482); se o tivessem, o passado não seria diferente do presente e do futuro, de modo que o tempo não existiria em absoluto. Assim, a existência como sujeito necessariamente tem uma direção e um sentido (a palavra francesa sens pode ser traduzida das duas maneiras). (MATTHEWS, 2010, p. 128)
Para melhor explicitar essa ideia, suponhamos como exemplo um evento “A”
que corresponde à minha conclusão de curso do primeiro grau; um evento “B” que
corresponde à queda do muro de Berlim e um evento “C” que corresponde ao Brasil
sendo penta campeão na Copa de 2002. No momento presente do evento “A”,
enquanto comemoro a conclusão de meu curso, posso antever, imaginar o evento
“B” e ainda o evento “C” como posteriores, como o que virá. No momento presente
do evento “B”, enquanto está caindo o muro de Berlim, recordo o evento “A” (a
minha conclusão do primeiro grau) como estando no passado e antevejo o evento
“C” (a possibilidade de um dia o Brasil ser penta campeão), como estando no futuro.
Fazendo-se, porém, uma análise apenas dos eventos, atemporalmente, observamos
que os mesmos não se encontram em sucessão: existe um evento “A”, existe outro
evento “B”, assim como existe o evento “C”; porém, supondo-os como pertencentes
às “minhas memórias”, estes eventos não são “independentes” entre si e, ao mesmo
tempo, não podem ser considerados uma cadeia de fenômenos interligados (seriam
interligados “entre si” pelo que?). A concatenação de um evento ao outro se dá no
sentido que eu dou a esses eventos. Não há nesses eventos em si mesmos nada
que os “posicione” antes ou depois. A queda do muro de Berlim é presente no
momento em que ela está acontecendo diante de mim, enquanto é futuro em relação
à minha conclusão do primeiro grau e passado para o Brasil penta campeão, mas
isso para mim, naquele momento; a queda do muro de Berlim, em si mesma, é
sempre presente no mundo. O fato de um evento passar de futuro para presente e
de presente para passado não está no evento; não faz parte de determinado evento
pertencer a um ponto fixo numa linha cronológica temporal. Ao invés disso, o que
60
liga o passado, o presente e o futuro deste evento, essa síntese, é realizada pelo
sentido dado pela subjetividade.
Merleau-Ponty faz uma analogia para o melhor entendimento dessa síntese,
descrevendo como uma paisagem “passa” pela visão de um observador dentro de
um vagão de um trem: o observador sabe que não é a paisagem que está se
movendo; a paisagem é fixa, imóvel (sempre presente no mundo). Porém, o
observador tem a “sensação” (a rigor, a “percepção”) de que uma paisagem está
ficando para trás (passado), tão logo surge uma nova paisagem à frente (futuro).
Como ele diz: “A temporalidade se temporaliza como porvir-que-vai-para-o-passado-
vindo-para-o-presente.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 563) Nesse sentido, o tempo
se apresenta como escoamento de um instante a outro.
Aqui sim, a analogia com o rio heraclitiano pode fazer algum sentido, porém,
não no sentido de que o rio se escoa, mas na percepção que o escoar faz parte do
“ser do rio” que permanece sempre o mesmo; é intrínseco ao ser da temporalidade o
deixar-de-ser-para-vir-a-ser. O rio é sempre o mesmo mantendo a transição de suas
águas: o rio é sempre o mesmo e sempre outro. Assim é o tempo; como diz
Barbaras:
Le temps est bien “éternité existentielle”, l’absolue identité du même et de l’autre : toujours autre afin d’être le même, excédant toute station, tout étant, afin de s’accomplir comme Etre. Cette identité du même et de l’autre est elle-même une identité instable, qui ne peut, et pour lês mêmes raisons, se résoudre en un même ou en un autre : le temps est trop “autre” pour être le même, trop “même” pour être autre.11 (BARBARAS, 2001, P. 259)
Para Merleau-Ponty, o tempo surge quando uma subjetividade abre uma
perspectiva que “rompe a plenitude do ser em si”, introduzindo assim o “não-ser” no
mundo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 564) Desta maneira, a temporalidade é
entendida como um contínuo “escape de si”, um ek-stase. Da maneira como o tempo
é pensado no senso comum, ele parece ser alguma coisa concreta, um ser que
mantém a sua identidade enquanto flui de um instante a outro e o sujeito somente o
assistiria passar.
_______________
11 “O tempo é “eternidade existencial”, a identidade absoluta do mesmo e do outro: contudo, outro para ser o mesmo, excedendo toda “estação”, todo o ser, para se realizar como Ser. Esta identidade do mesmo e do outro é em si uma identidade instável, que não pode, e pelas mesmas razões, se converter em um mesmo ou em um outro: o tempo é em demasia “outro” para ser o mesmo, em demasia “mesmo” para ser outro.” (tradução nossa)
61
Porém, no pensamento de Merleau-Ponty ele é uma dimensão de nosso ser;
o tempo se faz na medida em que o sujeito se situa no mundo: sem o sujeito não
existiria tempo. Isto poderia ser compreendido como se o tempo fosse sempre “para
alguém”; mas, para o autor, o tempo não é “para alguém”, ele é alguém:
Dizemos que o tempo é alguém, quer dizer, que as dimensões temporais, enquanto se recobrem perpetuamente, se confirmam umas às outras, nunca fazem senão explicitar aquilo que estava implicado em cada uma, exprimem todas uma só dissolução ou um só ímpeto que é a própria subjetividade. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 565-566)
A subjetividade é temporal porque ela é o tempo. É preciso compreender que
se a consciência temporal devesse consistir numa sucessão de estados de
consciência, então deveria também existir uma consciência “anterior” que fosse
capaz de observar esses estados de consciência para ordenar essa sucessão; ou
seja, uma consciência primeira para ter consciência das demais e que deveria ser,
por força, intemporal. Porém, numa consciência intemporal, ocorreria a
simultaneidade dos tempos (passado, presente e futuro), um tempo nivelado que,
conseqüentemente, deixaria de ser tempo sem o sentido de antes e depois. Como
diz Merleau-Ponty: “O tempo se recomeça: ontem, hoje, amanhã, esse ritmo cíclico,
essa forma constante pode-nos dar a ilusão de possuí-lo por inteiro de uma só vez,
assim como o jato d’água nos dá um sentimento de eternidade.”12 (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 567)
Merleau-Ponty diz que o tempo “é o campo de presença no sentido amplo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 568); entendemos com isso que esse campo de
presença se abre para outros campos de presença possíveis. Estamos envolvidos
no tempo, de modo que nada se apresenta completamente dado; a cada instante
nos vemos envolvidos com todos os eventos anteriores que vivenciamos, ao mesmo
tempo em que se abre um horizonte de eventos possíveis que poderemos viver.
_______________
12 O “jato d’água” aqui se refere a uma analogia que Merleau-Ponty faz, anteriormente a este trecho, entre o jato d’água e o tempo: “Diz-se que existe um tempo, assim como se diz que existe um jato d’água: a água muda e o jato d’água permanece porque a forma se conserva: a forma se conserva porque cada onda sucessiva retoma as funções da precedente: onda impelente em relação àquela que impelia, ela se torna, por sua vez, onda impelida em relação a uma outra; e enfim exatamente isso provém do fato de que, desde a fonte até o jato, as ondas não são separadas: há um só ímpeto, uma única lacuna no fluxo bastaria para romper o jato.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 565)
62
Esse instante privilegiado é o “presente”: “Existe tempo para mim porque
tenho um presente [...] mas o presente (no sentido amplo, com seus horizontes de
passado e de porvir originários) tem todavia um privilégio porque ele é a zona em
que o ser e a consciência coincidem.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 568) Moutinho
explicita no que consiste esse “presente”, mostrando que ele não se restringe a um
“instante” entendido como um “átomo de tempo”:
Merleau-Ponty começa lembrando que é em meu “campo de presença” que eu me situo. É lá que “tomo contato com o tempo, que aprendo a conhecer o curso do tempo” (PhP, 475, 557). Mas trata-se de um campo, não de um presente instantâneo, não de um átomo de tempo, não de um agora, como se eu, no curso do tempo, passasse por uma série deles “dos quais eu conservaria a imagem e que, postos lado a lado, formariam uma linha” (PhP, 476, 558). Não, pois, afinal, é verdade que eu não percebo as coisas com limites definidos, teticamente postas, plenamente determinadas; instalado em um campo perceptivo, eu percebo totalidades fenomênicas, partes que anunciam outras como seus horizontes, de modo que, correlativamente, também não posso dizer que eu ponho teticamente o meu presente. (MOUTINHO, 2006, p. 249)
“Não ponho teticamente o meu presente” justamente porque ele é um campo
onde “ainda mordo” o meu passado enquanto já “vislumbro” o meu futuro; e é só por
ter assim interligados passado e futuro é que posso estar no presente, ou melhor,
ser consciente do meu presente. E como isso se daria?
Segundo Merleau-Ponty, quando nos recordamos de alguma experiência, ela
não se apresenta a nós como uma “representação”; nós trazemos essa “percepção”
que tivemos anteriormente para o presente, com sentido de passado, mas não como
uma representação (uma abstração) e sim como uma “percepção interior”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 568). A consciência, assim, não se apercebe a si
mesma como absoluta e eterna: a experiência que temos de nossas percepções
interiores nos faz “decair no tempo”; distinguimos em nossas percepções interiores,
aquelas que não são atuais das que são efetivamente presentes naquele momento.
É nesse sentido que Merleau-Ponty diz que ser e consciência se coincidem no
presente, pois no presente, os campos sensoriais do sujeito o fazem ter
consciência de estar situado no mundo. Estamos imersos no mundo e é o “dar-se
conta” disso que consiste em existência; “existir é ter consciência de estar presente
no mundo”. É essa “consciência de estar presente no mundo” que consiste no que
Merleau-Ponty chama de “presença”, ou seja, a “fusão” de “tempo presente” com
“consciência”. Dando conta de estarmos presentes no mundo, damo-nos conta de
nossa própria presença a nós mesmos. Como diz Merleau-Ponty: “É comunicando-
63
nos com o mundo que indubitavelmente nos comunicamos com nós mesmos. Nós
temos o tempo por inteiro e estamos presentes a nós mesmos porque estamos
presentes no mundo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 569)
No pensamento de Merleau-Ponty, para que essa consciência tenha
consciência de sua situação no mundo, para ela poder se manifestar, ela “precisa
desenvolver-se no múltiplo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 569) Para tanto, segundo
o autor, não devemos cindir a consciência em “interior” como uma pura atividade, e
“exterior” relativamente às suas manifestações: ela é os dois ao mesmo tempo, o
que o autor chama de um “projeto global”. Ela apreende a si mesma no próprio fluxo
de temporalização: “Reciprocamente, toda consciência enquanto projeto global se
perfila ou se manifesta a si mesma em atos, experiências, ‘fatos psíquicos’ em que
ela se reconhece. É aqui que a temporalidade ilumina a subjetividade.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 570)
É que no tempo, o movimento de passagem e a série de presentes formam
uma unidade, isto porque ele consiste nesse ek-stase: nessa transição contínua.
Esse ek-stase, esse “escape de si mesmo” em cada instante presente, segundo
Merleau-Ponty, é a subjetividade. Nela, o tempo manifesta-se a si mesmo, sem
precisar de uma consciência anterior para tomar consciência dele: “é essencial ao
tempo não ser apenas tempo efetivo ou que se escoa, mas ainda tempo que se
sabe, pois a explosão ou a deiscência do presente em direção a um porvir é o
arquétipo da relação de si a si e desenha uma interioridade ou uma ipseidade.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 571)
A unidade do fluxo se faz no “fazendo-se”; o fluxo detém a interligação dos
instantes e abre-se continuamente para um campo de possibilidades, porém
mantendo um sentido, uma razão. Nossas atitudes no presente não são
desvinculadas de nossas experiências passadas: agimos por este ou por aquele
motivo que dão um sentido às nossas ações. Esse “sentido” é o próprio fluxo
temporal. O sujeito, assim, constrói a sua identidade no contínuo movimento de
“escape de si mesmo”; é atirando-se a um outro que ele se modifica e é nesse
processo de saída e retomada de si que ele mantém uma ipseidade. Desta maneira,
o sujeito não é exclusivamente uma consciência que constitui o mundo, nem
também é constituído pela multiplicidade das experiências que vivencia. Ele é a
relação temporal dessas duas esferas (constituinte e constituído). É essa relação
64
que Merleau-Ponty irá chamar de “síntese passiva”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
572)
No que consiste exatamente essa “síntese passiva”? Para Merleau-Ponty,
nessa concepção, não se deve compreender o termo “síntese” como composição e
“passiva” como recepção de multiplicidade; como ele diz:
Falando em síntese passiva, queríamos dizer que o múltiplo é penetrado por nós e que, todavia, não somos nós que efetuamos sua síntese. Ora, a temporalização, por sua própria natureza, satisfaz a essas suas condições: com efeito, é visível que eu não sou o autor do tempo, assim como não sou autor dos batimentos de meu coração, não sou quem toma a iniciativa da temporalização; eu não escolhi nascer e, uma vez nascido, o tempo funde-se através de mim, o que quer que eu faça. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 572)
“Não sou o autor do tempo”: para Merleau-Ponty, devemos ressaltar sempre
que somos o tempo. Sendo o tempo, somos nós que, a partir do que éramos, nos
tornamos outra coisa. Nesse sentido, a passividade de que fala Merleau-Ponty, não
é alguma coisa que afeta o sujeito exteriormente como uma causa surtindo o seu
efeito: ela “é um investimento, um ser em situação antes do qual nós não existimos,
que recomeçamos perpetuamente e que é constitutivo de nós mesmos”.
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 572)
O sujeito é o tempo na medida em que ele se refaz continuamente a partir
daquilo que ele é e o que ele é está emaranhado com todas as suas experiências
anteriores. Todas as decisões que um sujeito toma no presente não se dão sem um
motivo e este motivo só tem sentido a partir das experiências que esse sujeito viveu.
Segundo Merleau-Ponty, é porque somos o tempo que temos o poder de ir além do
que somos no presente; é porque sendo tempo, abrimos continuamente campos de
presença que propiciam o deixar de ser para vir a ser. Desta maneira, temos o poder
de mudar, o que consistiria numa atividade espontânea do sujeito, ao mesmo tempo
em que somos passivos no sentido em que nos fazemos sempre estando dentro de
uma situação, sem jamais abarcarmos nossa completude. Segundo Merleau-Ponty,
essa atividade consiste na nossa individualidade e a passividade em nossa
generalidade; essas duas “dimensões” do sujeito não se alternariam entre si (como
nas concepções do empirismo e do intelectualismo), mas atuariam simultaneamente
de modo “completo” no campo de nossa experiência. Como ele diz: “Nós não somos,
de uma maneira incompreensível, uma atividade junto a uma passividade, um
automatismo dominado por uma vontade, uma percepção dominada por um juízo,
65
mas inteiramente ativos e inteiramente passivos, porque somos o surgimento do
tempo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 573) É o que explica Marilena Chauí quando
define no que consistiria a concepção de experiência para Merleau-Ponty:
Se o sair de si e o entrar em si definem o espírito, se o mundo é carne ou interioridade e a consciência está originariamente encarnada, a experiência já não pode ser o que era para o empirismo, isto é, passividade receptiva e resposta a estímulos sensoriais externos, mosaico de sensações que se associam mecanicamente para formar percepções, imagens e ideias; nem pode ser o que era para o intelectualismo, isto é, atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebida, doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo, a experiência será aquilo que ela sempre foi: iniciação aos mistérios do mundo. (CHAUÍ, 2008, p. 48)
Com base nessas concepções de atividade e de passividade do sujeito,
Merleau-Ponty procurará entrelaçar as perspectivas do idealismo e do realismo,
posto que com base em suas concepções (de Merleau-Ponty) não se pode conceber
que o sujeito seja somente atividade (a ideia de uma consciência constituinte do
idealismo), nem somente passividade (a ideia de uma consciência imersa num
mundo objetivo, “dado”), fazendo do mundo ou um objeto a ser alcançado pela
reflexão pura ou um objeto dado (em si) a ser explicado pela consciência. Merleau-
Ponty escapa dessas duas perspectivas mostrando o que ele denomina de
“presença”. Vejamos o que isso significa.
2.3 A presença
Segundo Merleau-Ponty, as perspectivas idealista e realista buscam, cada
uma a seu modo, compreender as relações entre consciência e natureza,
considerando que essas relações se estabelecem entre uma interioridade e uma
exterioridade; segundo o autor, na perspectiva idealista, o sentido de qualquer coisa
seria dado por uma “razão absoluta” e na realista pelo “encontro de fatos
independentes”. Procurando traçar um caminho do meio, a questão que Merleau-
Ponty coloca para estas duas perspectivas consistiria em compreender “qual é, em
nós e no mundo, a relação entre o sentido e o não-sentido.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 574) O que vem a ser o sentido e o não-sentido para Merleau-Ponty?
Para iniciar essa investigação, Merleau-Ponty parte da seguinte ideia de
“sentido”: “Diz-se que os acontecimentos têm um sentido quando eles nos aparecem
como a realização ou a expressão de uma visada única.” (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 574) Segundo Merleau-Ponty, no pensamento idealista, compreender alguma
66
coisa é construir a sua significação, refletindo; desta maneira, toda significação seria
dada partindo da consciência. Porém, com a concepção merleau-pontyana de “corpo
próprio”, vimos no capítulo anterior que a significação se dá na relação entre a coisa
e o sujeito: nessa relação o que ocorre é um “atirar-se em direção à coisa” por parte
do sujeito dentro de um campo perceptivo, onde a significação dessa coisa se dá
não apenas pela percepção presente, mas agregando toda a experiência de mundo
que existe no sujeito. No sujeito já se encontra uma “presença do mundo” e,
portanto, a atividade do sujeito não consiste em construir a síntese atual da coisa
percebida unicamente com base num ato de reflexão de uma consciência pura, mas
em dar uma significação nova, a partir das significações de mundo que ele já
carrega, acumuladas pelas experiências que ele já viveu nesse mundo. Como vimos
no capítulo anterior, antes da reflexão, existe uma “intencionalidade operante” que
nos faz apreender um sentido da coisa, antes de construir seu juízo. Como ilustra
Merleau-Ponty: “um ‘Logos do mundo estético’, uma ‘arte escondida nas
profundezas da alma humana’, e que, como toda arte, só se conhece em seus
resultados.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 575)
Merleau-Ponty explica a atividade da “intencionalidade operante” mostrando a
diferença entre a Gestalt de um círculo e a significação círculo: a significação do
círculo é dada por uma operação “pura” do entendimento, onde se define que um
círculo é uma forma com “lugar dos pontos equidistantes de um centro”; já pela
estrutura concebida pela Gestalt, o círculo é percebido dentro de um contexto como
uma forma circular por um sujeito que lhe dá esse sentido, estando imerso no
mundo.
A diferença crucial entre as duas formas de compreensão consiste na
atividade e na concepção de sujeito: na primeira, ele é uma consciência absoluta
que define as coisas por meio de uma operação puramente intelectiva; na segunda,
ele é um campo perceptivo a partir do qual, pelo ponto de vista propiciado pela sua
situação no mundo, ele dá um sentido às coisas percebidas.
Paulo Sérgio do Carmo faz uma análise esclarecedora a respeito:
À primeira vista, a obra de Merleau-Ponty sugere que há duas formas de consciência: a consciência filosófica (consciência ativa ou analítica), forma destacada tanto pela ciência quanto pela filosofia tradicional, e a consciência perceptiva (consciência passiva), que seria para ele o fundamento da primeira. Assim, haveria aquilo que é sentido e aquilo que é entendido, ou seja, sempre duas formas de visão, de audição, de tato e de olfato, que estariam interagindo. Na verdade, porém, o filósofo esclarece que “não há duas espécies de
67
conhecimento, mas dois diferentes graus de clarificação do mesmo fenômeno”. (PP.p.132) (CARMO, 2000, p. 39)
Merleau-Ponty irá mostrar que esse modo de dar sentido às coisas se aplica a
todas as formas de sentido: no “sentido que damos a uma obra de arte, no “sentido
de um córrego”, no “sentido de um tecido”, no “sentido de uma frase”, no “sentido da
visão”, “nós reconhecemos a mesma noção fundamental de um ser orientado ou
polarizado em direção àquilo que ele não é, e assim sempre somos levados à
concepção do sujeito como ek-stase e a uma relação de transcendência ativa entre
o sujeito e o mundo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 576) Desta maneira, Merleau-
Ponty acredita ter escapado de ter de escolher entre as alternativas “realismo e
idealismo, acaso e razão absoluta, não-sentido e sentido.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 576)
Esta nova noção de sentido aparece também na concepção merleau-
pontyana de temporalidade. O tempo:
só tem sentido para nós porque nós “o somos”. Nós só podemos colocar algo sob esta palavra porque estamos no passado, no presente e no porvir. Literalmente, ele é o sentido de nossa vida e, assim como o mundo, só é acessível àquele que está situado nele e esposa sua direção. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 577)
Segundo Merleau-Ponty, essa concepção de tempo faz com que o sujeito e o
objeto apareçam “como dois momentos abstratos de uma estrutura única que é a
presença.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 577) Vejamos o que isso significa.
Para Merleau-Ponty, o tempo concentra as duas dimensões, sujeito e objeto,
no sentido em que existiria então um “tempo sujeito”13 e um “tempo objeto” e é por
esta razão que ele (o tempo) se torna fundamental para se compreender as relações
entre sujeito e mundo. Para Sacrini, a subjetividade consistiria numa relação
dialética entre estas duas dimensões: o tempo sujeito que Sacrini irá chamar de
“tempo constituinte” e tempo objeto que ele irá denominar “tempo constituído”:
_______________
13 Este termo “tempo sujeito” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 577) usado por Merleau-Ponty se relaciona, no nosso entender, com o tempo subjetivo; segundo Eric Matthews, ele consistiria no que Merleau-Ponty também denomina tempo “histórico”: “Mesmo o tempo da natureza requer, portanto, uma base no tempo subjetivo ou, na expressão de Merleau-Ponty, no tempo ‘histórico’.” (MATTHEWS, 2010, p. 127); correlativamente, poderíamos relacionar o “tempo objeto” ao tempo natural.
68
È a fundação entre as dimensões da subjetividade que vigora entres os diferentes planos da temporalidade. Não se trata aqui de nenhuma coincidência. A subjetividade é apenas a expressão da dialética entre tempo constituído e tempo constituinte. As dimensões da consciência, indeclinável e situada, se referem às duas maneiras como a temporalidade se apresenta. (FERRAZ, 2006, p. 196)
No “tempo constituinte” se encontra a atividade da subjetividade no seu
contínuo movimento de “passagem”, no deixar de ser para vir a ser; no “tempo
constituído”, se encontra o sujeito em situação, sendo no mundo. A relação dialética
entre essas duas dimensões do tempo é o que permite a relação entre sujeito e
mundo. Sob esta perspectiva, Sacrini esclarece: “A consciência é identificada ao
ímpeto permanente de temporalização e a natureza, aos diversos instantes
constituídos.” (FERRAZ, 2006, p. 199)
Desta maneira, pode ser explicada, por exemplo, a relação entre alma e
corpo. No pensamento objetivo, a relação entre alma e corpo se daria de modo
causal; mas, com a concepção de temporalidade de Merleau-Ponty, essas duas
“esferas” se misturam uma vez que a alma passa a ser compreendida pelo contínuo
movimento de “passagem” de um si a outro si, o mundo passa a ser o “horizonte de
meu presente” e essa relação se estabelece por meio do “corpo próprio”: “a
existência efetiva de meu corpo é indispensável à existência de minha ‘consciência’”.
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 578)
Entendendo-se o “para si” (sujeito) como “deixar-de-ser-para-vir-a-ser”, o “em
si” (objeto) como “horizonte do presente” e o “entrelaçamento” dessas duas
dimensões no corpo próprio, como vimos acima, é possível compreender a função
da temporalidade para Merleau-Ponty como agente que permite, por meio da
intencionalidade, o movimento de passado para presente e de presente para porvir,
mas sempre de um ser no mundo. Dessa maneira, a noção de temporalidade de
Merleau-Ponty desfaz a ruptura entre o transcendental e o empírico. Como diz
Moutinho:
É a ruptura entre transcendental e empírico que deve aqui desaparecer: o transcendental é a unidade temporal, e o empírico nada mais são que as objetividades, as manifestações, as experiências, o múltiplo. Justamente porque o sujeito manifesta-se a si mesmo, torna-se possível discriminar uma multiplicidade sucessiva, isto é, uma série de manifestações distintas ou uma “série desenvolvida dos presentes” (PhP, 487, 571). (MOUTINHO, 2006, p. 263)
O desaparecimento da ruptura entre transcendental e empírico de que fala
Moutinho é possível pela concepção merleau-pontyana do “sujeito encarnado”, pois
69
nele se relacionam suas experiências no mundo e sua dimensão temporal – seu ser
tempo; é pela experiência do corpo próprio que nos damos conta da existência, da
presença do “para si” no mundo e o mundo somente tem um sentido se um sujeito
lhe der esse sentido.
Uma questão comum que se coloca com base nessa nova concepção de
“sentido” é: se algo somente existe quando um sujeito lhe dá um sentido, então,
antes de existir o homem, não existia o mundo? É preciso entender que nós somos o
“tempo” e não o mundo; nós somos o surgimento do tempo e isto não quer dizer que
nós constituímos o mundo. As eras pré-históricas (pré-humanidade) existem no
nosso passado porque nós lhes damos este sentido; e somente conseguimos dar
este sentido porque, “sendo no mundo”, nos apropriamos de significações nele
existentes estando em relação com outrem:
Na percepção de outrem, dizíamos, eu transponho em intenção a distância infinita que sempre separará minha subjetividade de uma outra, eu supero a impossibilidade conceitual de um outro para si para mim, porque constato um outro comportamento, uma outra presença no mundo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 579-580)
A partir da compreensão da noção de presença (de si a si mesmo e de si no
mundo), Merleau-Ponty mostra o sujeito como um ser engajado no mundo, um
sujeito em situação que consegue acessar outro sujeito a partir da percepção de
outro comportamento semelhante ao seu. É claro que o outro nunca será percebido
como ele mesmo (o sujeito); como diz Merleau-Ponty, “ele é sempre um irmão
menor” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 580). Porém, é desta maneira que o autor
dissolve a concepção de uma consciência isolada que não teria acesso a outra
consciência. Da mesma maneira que o sujeito acessa seu passado e seu porvir,
embora ele não os tenha efetivamente, ele também pode acessar outros sujeitos
(outras “temporalidades”) dando possibilidade a um “horizonte social”; é assim que o
sujeito se insere na “história coletiva”.
Procuraremos compreender agora o que vem a ser a concepção de história
de Merleau-Ponty.
70
Capítulo 3: A história
La Storia La storia non si snoda come una catena di anelli ininterrotta. In ogni caso molti anelli non tengono. La storia non contiene il prima e il dopo, nulla che in lei borbotti a lento fuoco. La storia non è prodotta da chi la pensa e neppure da chi l'ignora. La storia non si fa strada, si ostina, detesta il poco a poco, non procede né recede, si sposta di binario e la sua direzione non è nell'orario. La storia non giustifica e non deplora, la storia non è intrinseca perché è fuori. La storia non somministra carezze o colpi di frusta. La storia non è magistra di niente che ci riguardi. Accorgersene non serve a farla più vera e più giusta. La storia non è poi la devastante ruspa che si dice. Lascia sottopassaggi, cripte, buche e nascondigli. C'è chi sopravvive. La storia è anche benevola: distrugge quanto più può: se esagerasse, certo sarebbe meglio, ma la storia è a corto di notizie, non compie tutte le sue vendette. La storia gratta il fondo come una rete a strascico con qualche strappo e più di un pesce sfugge. Qualche volta s'incontra l'ectoplasma d'uno scampato e non sembra particolarmente felice. Ignora di essere fuori, nessuno glien'ha parlato. Gli altri, nel sacco, si credono più liberi di lui. (Eugenio Montale)
A História A história não se desenlaça como uma corrente de anéis ininterrupta. De qualquer maneira muitos anéis não resistem. A história não contém o antes e o depois, nada que nela borbulhe a fogo lento. A história não é produzida por quem a pensa e nem por quem a ignora. A história não traça seu caminho, se obstina, detesta o pouco a pouco, não avança, nem retrocede, muda de binário e a sua direção não está no horário (*). A história não justifica e não deplora, a história não é intrínseca porque é fora. A história não ministra carícias ou golpes de chicote. A história não é “magistra” (**) de nada que nos interesse. Dar-se conta não adianta para fazê-la mais verdadeira e mais justa. A história não é então a devastadora escavadeira que se diz. Deixa subpassagens, criptas, buracos e esconderijos. Tem quem sobrevive. A história é também benevolente: destrói o mais que pode: se exagerasse, certo seria melhor, mas a história é limitada a notícias, não cumpre todas as suas vinganças. A história arranha o fundo como uma rede de arrastão com algum rasgo e mais de um peixe escapa. De vez em quando se encontra o ectoplasma de um que escapou e não parece particularmente feliz. Ignora que está fora, ninguém lhe contou. Os outros, no saco, acreditam-se mais livres que ele. (Eugenio Montale - Prêmio Nobel de Literatura em 1975)
(*) no horário: como no horário dos trens
(**) referência ao provérbio em latim Historia Magistra Vitae (Cícero): a história seria mestra da vida,
pois seria cíclica, repetindo-se sempre.
71
A história não é um deus exterior, uma razão escondida de que só poderíamos registrar as conclusões; é o fato metafísico pelo qual a mesma vida, a nossa, corre em nós e fora de nós, em nosso presente e em nosso passado, de sorte que o mundo é um sistema com várias entradas, ou, se se quiser, a afirmação de que temos semelhantes. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 40)
O conceito de história de Merleau-Ponty não parece estar definido pelo autor
em um trecho específico ou de forma explícita na Fenomenologia da percepção; ele
vai aparecendo em meio às argumentações tecidas sobre outros elementos
fundamentais, a saber: nas ideias de relação (sujeito-mundo, sujeito-sujeito etc.), de
estrutura, de campo, de sedimentação e na sua concepção de tempo.
Para se entender a concepção de história em Merleau-Ponty, devemos nos
manter na mesma perspectiva na qual se desenvolve todo o pensamento do autor, a
fenomenológica. Assim, a história não poderá ser simplesmente considerada como
um objeto a ser investigado pela consciência, como se fosse exterior ao sujeito,
como fato dado e fechado. Devemos lembrar também que, em Merleau-Ponty, a
percepção é o esteio principal da interação entre sujeito e mundo e, sob esta
perspectiva, antes dos fatos históricos serem vistos como eventos que aconteceram
de modo sucessivo encadeados por uma linha causal, o autor dará primazia a como
eles são percebidos pelos sujeitos dentro de cada perspectiva individual, como eles
são vividos. Essa perspectiva vai depender de cada contexto histórico no qual o
sujeito está inserido e, ao mesmo tempo, será entrelaçada com a ideia comum e
coletiva de história que nasce da interação entre esses sujeitos.
A história se dá num mundo que não é constituído pelo sujeito, mas que
somente pode ser compreendido sob a perspectiva de um sujeito. Merleau-Ponty
diz:
A universalidade e o mundo se encontram no coração da individualidade e do sujeito. Nunca o compreendemos enquanto fizermos do mundo um objeto. Logo o compreendemos se o mundo é o campo de nossa experiência, e se nós somos apenas uma visão do mundo, pois agora a mais secreta vibração de nosso ser psicofísico já anuncia o mundo, a qualidade é o esboço de uma coisa, e a coisa é o esboço do mundo. Um mundo que nunca é, como o diz Malebranche, senão uma “obra inacabada”, ou que, segundo a expressão que Husserl aplica ao corpo, não está “nunca completamente constituído”, não exige e até mesmo exclui um sujeito constituinte.
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 544)
O mundo não é um objeto, mas o “campo de nossa experiência”. É nessa
“experiência” que se dá a existência, a relação sujeito-mundo e essa experiência
está sempre inacabada porque somos temporalidade. Portanto, o mundo, também
72
ele está sempre inacabado e igualmente a história do mundo também estará sempre
inacabada.
Nesse sentido, podemos dizer que, na perspectiva de Merleau-Ponty, jamais
alcançamos a totalidade da história; ela está sempre aberta, não somente por estar
sujeita a infinitas interpretações, mas principalmente pelo devir sempre em aberto
dos sujeitos que a vivem. Mesmo que pudéssemos supor a possibilidade de, em
algum momento, testemunhar o momento final da humanidade e, portanto, chegar
ao final da história da humanidade, mesmo que tivéssemos como apreender este
“todo”, ainda assim, ela poderia ser reinterpretada de infinitas maneiras, apontando
para inúmeros desfechos. Sempre se pode compreendê-la sob vários e novos
aspectos, da maneira como pôde ser vivenciada nas mais diversas culturas. De
qualquer maneira, como seres finitos, não conseguimos abarcar este “todo”; o que
vivemos é o nosso modo de ser que, antes de poder dar múltiplas interpretações
(ainda que pudessem ser múltiplas interpretações de uma história finita), propicia,
sendo temporalidade, a constante abertura para o novo. Aqui, já se vislumbram duas
dimensões da história: uma de ser suscetível a inúmeras interpretações e outra de
ser temporalmente aberta como história vivida. No texto A crise do entendimento,
Merleau-Ponty diz: “Os projetos se transformam de tal maneira durante o caminho
que o ensinamento dos fatos não pode ser recolhido, pois as gerações que fazem
seu balanço não são aquelas que instituíram a experiência deles.” (MERLEAU-
PONTY, 1980, p. 41)
Justamente pela história ter essas duas dimensões abertas, a interpretada e
a vivida, é que não se pode pensar em leis definidas e definitivas nem para a
história, nem para o mundo; ao invés disso, as leis é que acabam por ter um caráter
provisório, consoantes a determinado contexto histórico. Como diz Merleau-Ponty:
“O fato percebido e, de uma maneira geral, os eventos da história do mundo não
podem ser deduzidos de um certo número de leis que formariam a face permanente
do universo; inversamente, é a lei que é uma expressão aproximada do evento físico
e deixa subsistir sua opacidade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 7)
Um aspecto fundamental na concepção merleau-pontyana de história consiste
justamente nessa ideia da história continuamente vivida e inacabada, ou seja, o fato
da história ser vivida e, de certo modo, realizada pelo sujeito que, por sua vez, se
“alimenta” da história para existir. Vejamos, primeiramente, como podemos
73
compreender como se dá esse processo de contínua retomada das sedimentações
existentes e abertura ao novo.
3.1 A sedimentação
É pelo fato de estarmos imersos no mundo e somente por estarmos em
contínua interação com ele (“berço de todas as significações”) que temos condições
de ser (existir) e nos conhecer, usando, para tanto, as significações disponíveis
nesse mundo. Estas significações são continuamente transformadas dentro das
diversas culturas e nas relações que se estabelecem entre elas no decorrer da
história pelos sujeitos que as adquirem e, de posse delas, as utilizam para se
expressar, dando-lhes um novo sentido.
É por esta razão que, no “berço de todas as significações”, ou seja, no
mundo, a linguagem será privilegiada por Merleau-Ponty, dentre as demais
expressões, em primeiro lugar, por ser principalmente por meio dela que se dá, de
forma mais contundente, a interação e a compreensão entre sujeitos e, em segundo
lugar, porque a linguagem possibilita a reinterpretação, a transformação do que era
ao que será, por meio de novos significados. Merleau-Ponty diz:
A linguagem nos ultrapassa, não apenas porque o uso da fala sempre supõe um grande número de pensamentos que não são atuais e que cada palavra resume, mas ainda por uma outra razão, mais profunda: a saber, porque esses pensamentos, em sua atualidade, jamais foram “puros” pensamentos, porque neles já havia excesso do significado sobre o significante, e o mesmo esforço do pensamento pensado para igualar o pensamento pensante, a mesma junção provisória entre um e outro que faz todo o mistério da expressão. Aquilo que chamam de ideia está necessariamente ligado a um ato de expressão e lhe deve sua aparência de autonomia. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 521)
A linguagem possibilita a sedimentação do que foi expresso, tornando-se
elemento fundamental para que exista uma história; essa sedimentação é
compreendida na relação que Merleau-Ponty faz entre o significante e o significado.
No que consiste essa relação? Conforme vimos nos capítulos anteriores, o nosso
ser temporal efetua a dialética entre o significado existente e seu novo sentido,
incorporando-o na cultura e, consequentemente, na história. Esse novo sentido
recém dado ao significado preexistente integrará o “berço das significações” que é o
mundo, tornando-se base para uma nova significação, ou seja, o novo sentido será
“sedimentado” nesse berço, no mundo. Como diz Merleau-Ponty:
74
O que é verdadeiro é apenas que nossa existência aberta e pessoal repousa sobre uma primeira base de existência adquirida e imóvel. Mas não poderia ser de outra maneira se somos temporalidade, já que a dialética do adquirido e do porvir é constitutiva do tempo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 544)
No que consistiriam essa “primeira base de existência adquirida e imóvel” e
essa “dialética do adquirido e do porvir”?
Quando nascemos, surgimos imersos num mundo pleno de significações
construídas pela humanidade no decorrer da história; “pleno” não seria o termo
adequado, pois embora sempre tenhamos esse berço de significações do qual partir,
ele nunca está completo. Devemos considerar também que a linguagem somente é
possível enquanto relação com o outro, sendo ao mesmo tempo elemento
constituinte e também constituído pela intersubjetividade (veremos melhor como isso
se dá no capítulo 3.2); porém, segundo Merleau-Ponty, a linguagem não se restringe
a mero instrumento de expressão de uma ideia como se fosse sua representação ou
com simples finalidade de comunicação. Fenomenologicamente, tanto quanto nosso
corpo é nossa expressão no mundo, a linguagem seria como o “corpo do
significante”, ou seja, é exprimindo-se que a linguagem se faz; é “significando” que
se constitui a relação entre significante e significado e esta relação está sempre
aberta. Como diz Merleau-Ponty: “Os signos organizados tem seu sentido imanente,
e este não depende do ‘eu penso’, mas do ‘eu posso’ [...] A significação anima a
palavra, como o mundo anima meu corpo, graças a uma surda presença que
desperta minhas intenções, sem desdobrar-se diante delas.” (MERLEAU-PONTY,
1980, p. 133-134)
Merleau-Ponty explica como se dá essa relação entre o significante e o
significado, explicitando o que ele chama de “intenção significativa do sujeito
falante”; segundo ele, “para o sujeito falante, exprimir é tomar consciência; não
exprime somente para os outros, exprime para que ele próprio saiba o que visa.”
(MERLEAU-PONTY, 1980, p. 134) Enquanto o sujeito não se exprime, sua intenção
significativa, seu pensamento é “anônimo”; sua intenção significativa vai se
“encarnar” quando esse sujeito busca, no mundo, as significações disponíveis para
fazê-la existir nesse mundo. Ao expressar-se, o sujeito vai se utilizar de palavras
com sentidos já existentes no mundo, pertencentes a determinada cultura, para,
porém, introduzir “algum sentido a mais”. Alegoricamente, poderia se citar o velho
75
ditado: “Quem conta um conto, aumenta um ponto.” Merleau-Ponty dá como
exemplo a leitura filosófica:
Começamos a ler um filósofo dando o sentido “comum” aos vocábulos que emprega e, pouco a pouco, por uma reviravolta inicialmente insensível, sua palavra se assenhora de sua linguagem e é por seu emprego que acaba por afetá-los com uma significação nova e própria dele [...] As conseqüências da palavra, como as da percepção (e da percepção de outrem, em particular), ultrapassam sempre suas premissas. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 135)
Não somos possuidores de significações inatas, mas as adquirimos quando
nos apropriamos delas (enquanto “disponíveis no mundo”) para integrá-las numa
nova expressão correspondente à nossa “intenção significativa” – aquele “sentido
tácito” da nossa esfera pré-reflexiva, como vimos no capítulo 1. Temos a “impressão”
de que estas significações já estavam disponíveis, “acabadas, prontas” no mundo;
porém, segundo Merleau-Ponty, estas significações se constituem da própria relação
entre a nossa “intenção significativa muda” (em ato) e a sua incorporação na cultura
na qual estamos inseridos, potencializando-se assim em significação “disponível”,
sendo solo para novos sentidos de significação.
Segundo Merleau-Ponty, as significações sempre “ultrapassam” os objetos
que pretendem significar. Esse “excesso” concernente às significações que
permitem realizar essa ultrapassagem pode ser reafirmado por este trecho de
Merleau-Ponty em De Mauss a Claude Lévi-Strauss:
Para uma antropologia, não se trata de dar a razão do primitivo ou de lhe dar razão contra nós, e sim de instalar-se num terreno onde sejamos, uns e outros, inteligíveis, sem redução nem transposição temerária. Este espaço comum emerge quando se vê na função simbólica a fonte de toda razão e de toda irrazão, porque o número e a riqueza das significações de que o homem dispõe sempre excedem o círculo de objetos definidos que mereçam o nome de significados, porque a função simbólica deve sempre estar em avanço com relação ao seu objeto e só encontra o real adiantando-o no imaginário. A tarefa é, pois, alargar nossa razão para torná-la capaz de compreender aquilo que em nós e nos outros precede e excede a razão. (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 203)
Podemos interpretar aqui o que “precede” a razão como sendo a “primeira
base de existência adquirida” e o que “excede” a razão (no sentido de “adiantar-se
no imaginário”), a ação que potencializamos pelo nosso ser temporal, realizando “a
dialética do adquirido e do porvir”. Assim, podemos compreender “a primeira base de
existência adquirida e imóvel” e “a dialética do adquirido e do porvir”, ou seja: a
relação entre as significações disponíveis (“imóveis” enquanto preexistentes e
“adquiridas” quando nos apropriamos delas) e a nossa intenção significativa
76
(dialética do pensamento mudo em ato, que se potencializa quando adquire as
significações disponíveis, inserindo-lhes um novo sentido, apontando para o porvir).
É o que Merleau-Ponty irá chamar de “racionalidade alargada” e esse processo, “a
dialética do adquirido e do porvir”, se dá pelo nosso ser temporalidade.
Essa “circularidade”, no sentido de contínua retomada das significações
existentes no mundo, não invoca exatamente um retorno a um mesmo ponto
originário (aquilo que é constituído da própria coisa a qual constitui), mas sim o
retorno “uma oitava acima”, uma circularidade “espiral”. A ambiguidade do ser
temporal resulta do e no campo das múltiplas possibilidades de interpretações e
significações que se abrem a partir da dialética constitutiva do tempo (da relação
entre a nossa intenção significativa e o berço de significações preexistentes) e,
portanto, estas interpretações não são múltiplas interpretações de algo que já está
“completamente” dado, mas sim interpretações de algo que está continuamente
aberto ao porvir, o que faz da ambiguidade (aqui no sentido da possibilidade de
múltiplas interpretações e significações) um aspecto intrínseco ao próprio ser
humano, sua própria estrutura existencial. O sentido de cada ação humana carrega
uma ambiguidade em ato que consiste nessa capacidade de dar novas
significações, a partir das sedimentações existentes, fazendo com que a significação
tenha um excesso de sentido ou nas palavras de Merleau-Ponty, “a função simbólica
está avançada frente ao dado”:
Na medida em que a função simbólica está avançada frente ao dado, inevitavelmente o todo da ordem da cultura que ela carrega tende a embaralhar-se. A antítese entre a natureza e a cultura torna-se menos nítida [...] Ora, trata-se justamente de formas de cultura que possibilitaram o saber científico e uma vida acumulativa e progressiva. Nessas formas [...] a cultura seria antes uma transformação da natureza, uma série de mediações onde a estrutura nunca emerge de golpe como puro universal. Que nome dar a este meio onde uma forma prenhe de contingência, abre subitamente um ciclo de porvir e o comanda com a autoridade do instituído? Que nome, senão o de história? (*) (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 204-205)
No texto acima, Merleau-Ponty nos mostra o alcance da linguagem, sua
relevância em seu pertencimento ao mundo cultural trazendo o movimento dialético
entre o significado e o significante como aspecto fundante da relação entre o mundo
natural e o cultural, constituindo a história. A sedimentação do mundo cultural se
imiscui com o mundo natural, transformando-o ao mesmo tempo em que o incorpora,
tornando-se a nova base para novas significações. Marilena Chauí nos esclarece a
ideia de sedimentação de Merleau-Ponty, utilizando-se do exemplo de uma obra: _______________ (*) grifo nosso
77
A sedimentação é o modo de ser de uma idealidade ou o momento em que a instituição de um sentido se incorpora à cultura, tornando-se “disponível”, uma ideia da inteligência que usamos sem mais pensar em sua origem. Um sentido, porém, é vertical. É e está presente porque carrega consigo dimensões passadas e vindouras, significações que não estão atualmente dadas e de cuja ausência depende o prestígio absoluto de sua presença. (CHAUÍ, 2002, p. 34)
“Um sentido é vertical” porque com a retomada contínua das sedimentações e
doação de novas significações que delas partem, perfila-se uma unidade, um
sentido que poderia ser compreendido aqui como um “fluxo contínuo de ideias que
se articulam no passar do tempo”. A linguagem constituinte do mundo cultural
propicia assim a superação do mundo natural, uma vez que ela (a linguagem), não
sendo uma representação e sim um perene “fazendo-se”, jamais “fecha” o
sedimentado mantendo-o continuamente inacabado; a interrelação entre esses dois
mundos, cultural e natural, consiste na estrutura primordial da existência humana e,
consequentemente, da sua história. O “fazendo-se” na relação entre natural e
cultural dissolve a ideia de ser humano que teria a consciência como uma essência
(necessária) de um lado e, do outro lado, o seu corpo ou mesmo o mundo objetivo
como atributos (contingentes) representados nessa “mente pensante”. Consciência e
corpo, sujeito e mundo se misturam no processo de contínua retomada das
sedimentações; nesse processo, o “contingente sedimentado” se torna o “necessário
a ser retomado”. Como diz Merleau-Ponty:
Já que [...] todas as “funções” no homem, da sexualidade à motricidade e à inteligência, são rigorosamente solidárias, é impossível distinguir, no ser total do homem, uma organização corporal que trataríamos como um fato contingente, e outros predicados que lhe pertenceriam com necessidade. Tudo é necessidade no homem, e, por exemplo, não é por uma simples coincidência que o ser racional é também aquele que se mantém em pé ou possui um polegar oponível aos outros dedos; a mesma maneira de existir manifesta-se aqui e ali. Tudo é contingência no homem, no sentido em que esta maneira humana de existir não está garantida a toda criança humana por alguma essência que ela teria recebido em seu nascimento, e em que ela deve constantemente refazer-se nela através dos acasos do corpo objetivo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 235-236)
É com base na relação entre o natural e o cultural que Merleau-Ponty afirma
que “o homem é uma ideia histórica”; sob essa perspectiva, aquilo que é contingente
acaba por incorporar o necessário pelo contínuo processo de retomada das
sedimentações histórico-culturais. Nessa estrutura existencial, a ambiguidade
intrínseca à temporalidade do ser humano propicia a não determinação nem do
sujeito pelo mundo, nem do mundo pelo sujeito e sim um recíproco processo de
78
contínua retomada e abertura: os múltiplos sentidos advindos do sujeito são
expressos em infinitas significações, nutrindo continuamente as interações entre
sujeito e mundo, num processo dialético (entre adquirido e porvir). Trata-se da
dialética do “deixar-de-ser-para-vir-a-ser”, uma dialética de complementaridade,
uma vez que o que acaba de “deixar-de-ser” torna-se parte da sedimentação do “vir-
a-ser”. A concepção de dialética de Merleau-Ponty, assim, assume um caráter
diferenciado da concepção da dialética de Hegel no sentido em que a
complementaridade não implicaria necessariamente numa síntese de opostos.
Como diz Marilena Chauí:
Não se tratava de optar entre a dialética transcendental e a dialética como calvário do negativo ou do proletariado, entre o estudo das necessárias ilusões da razão e o caminho da reconciliação do absoluto consigo mesmo, mas sim de não perder de vista o risco que ronda toda dialética quando quer ser dialética imediatamente, tornando-se autônoma e virando cinismo formalista, isto é, quando acredita muito na síntese e se converte numa “nova posição”. (CHAUÍ, 2002, p. 8)
Apenas com o objetivo de esclarecer para o leitor as diferenciações entre os
pensamentos de Hegel e Merleau-Ponty, de onde advêm algumas críticas realizadas
por este ao primeiro em alguns trechos da Fenomenologia da percepção e sem
pretender nos aprofundar nas concepções hegelianas, apresentaremos aqui
brevemente o conceito de dialética de Hegel, na visão de Francisco Pereira da
Nóbrega.
Segundo Nóbrega, o “novo” ou em linguagem hegeliana, uma “realidade
nova” é deduzida da contradição entre opostos existentes numa realidade anterior; a
dialética hegeliana se constitui de Tese, Antítese e Síntese, onde a Tese consistiria
na afirmação, a Antítese na negação e a Síntese na negação da negação. Hegel
partiria do princípio que os opostos vêm de uma unidade e, desta maneira, a
afirmação já teria em si sua negação e a conciliação destes dois termos se daria na
síntese que, por sua vez, vai ser posta como uma nova tese e assim,
sucessivamente, se daria o movimento dialético numa contínua tensão e superação
entre os termos.
No pensamento de Hegel, segundo Nóbrega, o subjetivo consistiria numa
interioridade absoluta e o objetivo numa exterioridade absoluta; pela sua noção de
dialética, o espírito subjetivo se objetiva a partir do momento que se manifesta no
mundo, se exteriorizando por meio das instituições humanas (o contato com os
79
outros sujeitos). A síntese entre subjetivo e objetivo consistiria no que Hegel chama
de “Espírito Absoluto”, onde sujeito e objeto eliminariam suas oposições,
“coincidindo-se”: a consciência de si mesmo abarcaria o conhecimento do mundo
objetivo. Na objetividade encontraríamos a determinação absoluta e na
subjetividade, a liberdade absoluta (entendida como capacidade intrínseca do
espírito de se autodeterminar).
Sob essa perspectiva, haveria uma evolução do espírito que partiria
gradualmente do subjetivo em direção ao absoluto, numa crescente liberdade que
consistiria num processo de conscientização, de conhecimento de si. Desta maneira,
a história seria um processo de crescimento do espírito, no seu modo de objetivar-
se, manifestando-se no mundo, consistindo também num crescimento de liberdade.
Francisco Pereira Nóbrega indica:
Os fatos da História comprovam isto. Nas primeiras civilizações, apenas um era livre (o Faraó, por exemplo) e os demais escravos. Depois, vieram civilizações como a grega, a romana, em que alguns eram livres (as oligarquias privilegiadas, as aristocracias) e os demais, escravos. Finalmente, chegaremos a um estágio da História em que nenhum será mais escravo e todos serão realmente livres. (NÓBREGA, 2005, p. 70)
O “Espírito Absoluto”, único, manteria a identidade da humanidade e a história
consistiria no processo de objetivação desse “grande sujeito” que, ao final,
encontraria a si mesmo na síntese total entre subjetividade e objetividade,
coincidindo-se com toda a sua própria manifestação no mundo, alcançando a
liberdade máxima com o pleno conhecimento de si. Segundo Nóbrega, todo esse
processo se daria dedutivamente por meio de uma razão universal, de onde surge a
crítica a Hegel de ainda restringir-se à idealidade.
Para Merleau-Ponty, no entanto, o sujeito faz a história, fazendo a si próprio
por meio dela, no processo dialético de retomada e ultrapassamento do
sedimentado, não necessariamente entendido como negação do sedimentado, mas
tomando-o como base para lhe dar novos sentidos e significações que permanecem
sempre em aberto. Vimos que é nesse processo que ocorre a superação do mundo
natural, por meio do mundo cultural. Aqui, podemos retomar a ideia de que existem
duas concepções de história: uma da história percebida, vivida (fato) e outra da
história interpretada pela linguagem (conceito).
O fato histórico é percebido pelo sujeito que o vivencia enquanto ele está
acontecendo; com base em sua percepção do fato, esse sujeito vai interpretá-lo e,
80
posteriormente, narrá-lo sob a sua perspectiva pessoal, utilizando-se, para tanto, de
significações preexistentes, significações já sedimentadas na história. Assim, para
“contar” a história percebida, é preciso recorrer às significações de uma história
interpretada anteriormente, formando-se um círculo onde o que se percebe é
interpretado, usando-se, para tanto, significações que consistem em interpretações
de fatos anteriores. Esta circularidade, no entanto, não é apresentada como um
problema pelo autor e sim, como elemento constitutivo da história: é da própria
interação entre o percebido e o interpretado que se constitui a história. A base
sedimentada de interpretações que vai consistir no “conhecimento da história” vai
ser processada, reinterpretada para dar conta de um novo fato percebido. No texto
intitulado Merleau-Ponty e a História, Salma Tannus Muchail explicita esta
circularidade, citando inclusive alguns trechos esclarecedores do próprio autor:
Retomemos “a descoberta da história”. Situadas neste âmbito mais amplo, as relações entre a história e o conhecimento da história, provêm da mesma experiência da história como realidade, experiência que torna possíveis tanto a investigação do historiador quanto a reflexão filosófica sobre a história. Os homens – escreve Merleau-Ponty – não viveriam uma história se alguém não tivesse um dia falado de história [...] E, no entanto, começamos a falar de história em um certo momento, em um certo contexto histórico. É na história-realidade que aparece um dia a consciência da história [...] Uma realidade que é causa e efeito do conhecimento que dela temos: este círculo é a definição da história (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 205). É este círculo – entre a experiência e o conhecimento, entre o sensível e o conceitual – que cumpre ao filósofo tematizar e ao historiador, investigar. Ele tem como correlato ou complemento necessário, a não-linearidade do tempo histórico e a não-univocidade de seu sentido ou, numa palavra, o que podemos chamar de sinuosidades da história. (MUCHAIL, 2008)
Poderíamos, a partir da perspectiva acima, começar “talvez” a compreender a
“circularidade” de Merleau-Ponty, na realidade, como “dialética”. Quando pensamos
em circularidade, intrinsecamente, estamos inserindo a ideia do tempo cronológico,
ou seja, circular seria aquilo que “saindo do ponto de partida chega a um ponto de
chegada que novamente chega a um ponto de partida, sucessivamente”. Porém, se
compreendemos e aceitamos a noção de temporalidade de Merleau-Ponty, temos
que assumir a não sucessão de fatos numa linha causal, a “não linearidade do
tempo histórico” como escreve Muchail e, assim, admitir essa mútua constituição,
esse ser constituído por aquilo que ele constitui, como um processo dialético entre o
sedimentado e o novo.
Porém, esse processo dialético se distancia da ideia do absoluto de Hegel;
como diz Merleau-Ponty:
81
O que se chama de intemporal no pensamento é aquilo que, por ter retomado assim o passado e envolvido o futuro, é presuntivamente de todos os tempos e portanto não é de forma alguma transcendente ao tempo. O intemporal é o adquirido. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 525)
Assim, para Merleau-Ponty, o intemporal consistiria na “sedimentação” de que
falávamos há pouco: uma sedimentação que é a base adquirida, enquanto berço de
significações que entrelaçam passado e porvir, por meio da dialética temporal, na
mediação entre constituído e constituinte. Poderíamos dizer que o que Merleau-
Ponty chama de intemporal, portanto, consiste nessa sedimentação que, uma vez
que faz um tipo de consolidação entre as significações existentes e as novas
significações, passa “supostamente” a ter um caráter atemporal, enquanto tem a
capacidade de entrelaçar passado e futuro; porém, esse intemporal jamais pode ser
absoluto, pois está sempre inacabado. Aqui, fica clara uma divergência entre o
pensamento de Merleau-Ponty e a concepção de absoluto de Hegel: o absoluto, na
concepção hegeliana, abarcaria a totalidade e permaneceria na idealidade. Para
Merleau-Ponty, no entanto, a história que compartilhamos e da qual participamos
ativamente se dá no mundo vivido, pela percepção que dele temos, pelo modo que
interagimos com ele:
...por que nossos pensamentos errantes, os acontecimentos de nossa vida e os da história coletiva pelo menos em certos momentos adquirem um sentido e uma direção comuns e se deixam apreender sob uma ideia? Por que minha vida consegue retomar-se a si mesma e projetar-se em falas, em intenções, em atos? Este é o problema da racionalidade [...] A crença em um espírito absoluto ou em um mundo em si separado de nós é apenas uma racionalização desta fé primordial.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 548)
Para Merleau-Ponty, embora a história coletiva adquira “um sentido e uma
direção comuns”, não devemos idealizar a história como se ela tivesse um único
sentido, assim como não temos como admitir a plenitude de um absoluto que é
inalcançável ao sujeito temporal; só podemos viver a história pelo nosso ser
temporal, que por meio da presença (conforme vimos no capítulo 2.3), faz a síntese
da relação entre o sujeito transcendental e o mundo objetivo:
Estamos misturados ao mundo e aos outros em uma confusão inextricável. A ideia de situação exclui a liberdade absoluta na origem de nossos envolvimentos. Aliás, ela a exclui igualmente em seu termo. Nenhum envolvimento, e nem mesmo o envolvimento no Estado hegeliano, pode fazer-me ultrapassar todas as diferenças e tornar-me livre para tudo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 610)
Esta passagem aponta para uma questão fundamental neste nosso trabalho:
se estamos em contínua relação com o mundo, como sujeito do e com o mundo, é
82
impossível admitir a possibilidade de uma liberdade absoluta. Embora tenhamos a
contínua capacidade de dar novas significações e interpretações, apontando para
novos sentidos, não podemos fazer isto a partir do “nada”. Tanto quanto o mundo
depende de nós para ter um sentido, também nós dependemos do mundo para
existir e, portanto, nossa liberdade não poderia ser incondicional.
***
A concepção de história de Merleau-Ponty ainda deve ser analisada sob outro
ponto de vista: sob a perspectiva de Husserl. Utilizaremos para tanto a análise de
Ricoeur.
Na fenomenologia de Merleau-Ponty, a história não pode ser entendida como
evolução, como uma graduação do menor para o maior. A análise de Ricoeur
confirma também a ideia de Merleau-Ponty de que não se pode deduzir a história de
certas leis e sim o contrário: é da história que se podem construir certas leis. Sobre o
conceito de história em Husserl, Paul Ricoeur explicita:
O real-mundano é em relação à essência como o contingente em relação ao necessário: toda essência “tem” um campo de indivíduos que podem existir cá ou lá, agora ou em outro tempo [...] a história do espírito, da qual se tratará mais tarde, não será jamais uma gênese do sentido a partir do significante, uma evolução de estilo spenceriano. O desenvolvimento da ideia, que será implicado na história, será algo totalmente diferente da gênese do conceito. (RICOEUR, 2009, p. 22)
Segundo Ricoeur, na fenomenologia de Husserl, a “redução transcendental”
não abarca a totalidade da história, pois ao exercer-se efetivamente a redução
transcendental chega-se à consciência no sentido do “ver puro” do pensamento
husserliano que consiste na consciência como “doadora de sentido”; nesse “ver
puro”, ocorre simultaneamente a atitude natural, a sua redução e a sua constituição.
Segundo Ricoeur, nesse “estado”, a consciência que coloca “o mundo entre
parênteses” está, ao mesmo tempo, “fora”, como num sentido absoluto de auto-
criação para poder dar significados e “dentro” fenomenicamente do mundo da vida.
(RICOEUR, 2009, p. 23, 24)
Aqui se coloca o problema: “como compreender que, de um lado, o homem
histórico é constituído como uma consciência absoluta e que, do outro, o sentido
desenvolvido pela história engloba o homem fenomenólogo que opera essa
83
consciência? Parece que se anuncia uma difícil dialética do englobante-englobado,
entre o ego transcendental e o sentido que unifica a história.” (RICOEUR, 2009, p.
24)
Segundo Ricoeur, sob a perspectiva fenomenológica husserliana, o homem
seria definido como a fusão da “alma psicofisiológica” com a “pessoa psicossocial” e
com o “espírito como realidade histórica”. Pensando deste modo, a história não
passaria de um dos aspectos do homem que estaria incluído na “consciência
absoluta”: “o homem histórico é um momento, um grau da mundanidade, uma
‘camada’ do mundo constituído: neste sentido está ‘incluído’ como toda
‘transcendência’ na consciência absoluta.” (RICOEUR, 2009, p. 25)
Porém, essa consciência absoluta seria temporal. O tempo transcendental
não é constituído fora de nós; a história sim. O tempo transcendental não é
mundano; ele propicia o movimento do transcendente para o imanente se auto-
constituindo e constituindo o mundano (o tempo cósmico). Eis a consciência
absoluta temporal: “O tempo fenomenológico é, nesta perspectiva, o absoluto no
qual se constituem como objetos uma natureza, homens e culturas, uma história.”
(RICOEUR, 2009, p. 26)
Com base nesta concepção de tempo, no que consiste o sujeito husserliano?
Não é possível apreender o ego transcendental em si mesmo; somente é possível
alcançá-lo na medida em que ele se relaciona com algo ou outrem, ou seja, pela
sua intencionalidade. Deste modo, o ego transcendental se difere de sua pluralidade
mundana, porém, abarca uma pluralidade de consciências. É nessa pluralidade de
consciências que se pode vislumbrar um sentido para a história, porém, ainda assim,
segundo Ricoeur, teria que se admitir uma consciência única que abarcasse toda
essa pluralidade de consciências para se constituir uma história coletiva com um
único sentido – e aqui surge outro problema: no que consistiria essa “totalidade”
capaz de realizar esse sobrevôo? (RICOEUR, 2009, p. 27-28)
Ricoeur aponta a filosofia da história como a busca dessa totalidade, mas sob
o ponto de vista teleológico: “ela se mostra implicada por um tipo original de
estrutura racional que, precisamente, exige uma história. Não há reflexão direta
sobre a história como fluxo de acontecimentos, mas indireta como a vinda de um
sentido. Por esta, ela é uma função da razão, seu modo próprio de realização [...]
filosofia da história e teleologia são sinônimos” (RICOEUR, 2009, p. 29)
84
História e filosofia (filosofia entendida como ideia, consistindo em totalidade e
infinitude) se confundem, posto que se constituem mutuamente; seria impossível
haver filosofia sem história e a história paulatinamente aponta para a filosofia: “A
ideia da filosofia, eis a teleologia da história. Por isso, a filosofia da história é em
última instância a história da filosofia, indiscernível, ela mesma, da tomada de
consciência da filosofia.” (RICOEUR, 2009, p. 31)
A finalidade da história seria buscar a inacessível completude do ser: “Husserl
a chama (a filosofia/ideia) de um télos, um fim visado, ou seja, ela é o télos da
ciência do todo do ser.” (RICOEUR, 2009, p. 31)
A história proporia ao homem, por meio de sua teleologia (a busca da filosofia
/ ideia), um trilhar de tarefas infinitas; lança o homem para a infinitude, impossível de
ser abarcada por um só indivíduo. Essas tarefas para serem cumpridas deverão ir
além de cada indivíduo por meio da cultura. E aqui, segundo Ricoeur, se coloca a
tensão entre a reflexão filosófica e a interpretação histórica: Como refletir sobre a
história se estamos mergulhados nela, ou seja, como fazer esse “sobrevôo” se
somos elementos constitutivos da história? “Como a história é a nossa história, o
sentido da história é o nosso sentido” (RICOEUR, 2009, p. 34)
Ricoeur vai explicitar o que Husserl chama de Selbstbesinnung, que vem a
ser a “tomada de consciência”, ou seja, o processo pelo qual o homem se apreende
ao mesmo tempo reflexiva e historicamente. Segundo Ricoeur, essa tomada de
consciência, em Husserl, se dá sob a perspectiva de quatro “tarefas” da razão:
1) A razão, entendida não só como crítica do conhecimento, mas como tarefa
unificadora de “todas as atividades significantes: especulativas, éticas,
estéticas etc. [...] A razão constitui a própria essência do Menschentum14,
enquanto liga o sentido do homem ao sentido do mundo.” (RICOEUR,
2009, p. 37)
2) A razão como “devir racional” (e aqui talvez se possa vislumbrar um pouco
da concepção do sentido da história de Merleau-Ponty, no devir, que em
Merleau-Ponty, porém, não se restringiria à idealidade), é compreendida
dinamicamente, ela seria:
_______________ 14 Menschentum = humanidade significante (ou em compreensão) Menschenheit = humanidade enumerativa (ou em extensão) (RICOEUR, 2009, p. 40)
85
a vinda da razão a si mesma [...] É assim que se faz possível uma história, mas possível apenas como realização da razão. Ela não é uma evolução, o que equivaleria a uma derivação do sentido a partir do não sentido, nem uma pura aventura, o que resultaria em uma sucessão absurda de não sentidos. Ela é, sim, uma permanência em movimento, a autorrealização temporal de uma eterna e infinita identidade de sentido.” (RICOEUR, 2009, p. 38)
3) A razão, levando-se em conta seu aspecto ético implicaria na noção de
responsabilidade, que consistiria na própria tomada de consciência.
4) A razão com a tarefa também de caráter ético que implicaria em um
combate entre o transcendentalismo e o objetivismo: o combate travado na
“desproporção entre a Ideia e as possibilidades efetivas de um
conhecimento mundano privado ou comum”. (RICOEUR, 2009, p. 38)
As quatro tarefas da razão juntas, ou seja, a função unificadora (infinitude
da tarefa), o movimento de realização da razão (devir racional), a
responsabilidade do querer (tomada de consciência) e o combate entre o
transcendentalismo e o objetivismo iriam compor uma nova noção de homem:
“Não mais ‘eu, o homem’ que a redução fenomenológica atingia como uma realidade
mundana, constituída através de percepção, de simpatia, de relato histórico, de
indução sociológica, mas o homem como correlato de suas ideias infinitas.”
(RICOEUR, 2009, p. 39)
Deste modo, Ricoeur entende que “as considerações históricas de Husserl
não passam de uma projeção, no plano do devir coletivo, de uma filosofia reflexiva já
acabada no plano da interioridade: é compreendendo o movimento da história, como
história do espírito, que a consciência alcança o seu próprio sentido.” (RICOEUR,
2009, p. 42)
Mas é justamente dessa “interioridade” que escapa Merleau-Ponty; na noção
de presença, dissolve-se o interior e o exterior e as relações causais dessa
dualidade.
Merleau-Ponty faz, inclusive, uma leitura diferente de Husserl: segundo ele,
Husserl afirmava que não era apenas pela empiria que é possível se abarcar todos
os aspectos que compõe a história, como, por exemplo, “processo social” e “religião”
e que, para se compreender todos estes aspectos, faz-se necessário levar em
consideração também sua parte essencial (o retorno às coisas mesmas da
fenomenologia). Talvez, seja neste sentido que possamos entender o que vem a ser
a história sob o ponto de vista fenomenológico de Merleau-Ponty.
86
Primeiramente, lembremos que o fenômeno não é uma representação;
tampouco se restringe à essência ou à experiência, consistindo, na relação entre
sujeito e mundo. Deste modo, todos os aspectos que constituem a história, devem
ser compreendidos desta forma para se alcançar a história sob a perspectiva
fenomenológica.
No pensamento de Merleau-Ponty, se levarmos em consideração que em
toda e qualquer estrutura, seja social, política ou religiosa, não é somente o lado
ideal, nem somente o lado empírico que a pode esgotar, passaremos a ser menos
ingênuos quanto às análises que remetem a tudo o que é humano, não restringindo
nenhuma questão nem à subjetividade, nem à objetividade. Como diz Merleau-
Ponty:
Havia, pois, qualquer coisa de válido na ideia de Husserl, segundo a qual o contato com os fatos não é suficiente para determinar, por exemplo, se é possível fazer uma distinção entre a “religião como ideia e a religião como forma cultural”. A história nos mostra formas culturais às quais damos o nome de religiões; mas é possível que, da variedade, da confusão ou da incoerência dos fenômenos religiosos assim fornecidos pela história, deveríamos concluir que o fenômeno mesmo da religião não resiste à análise? Ou, pelo contrário, deveríamos reservar a possibilidade de uma outra experiência possível que seria religiosa e seria a religião pura? Nada disto pode ser determinado por simples exame dos fatos. É necessária uma reflexão sobre a essência da religião, e uma fenomenologia da história. (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 65)
O que Merleau-Ponty parece indicar é que não será fazendo a análise de
todos os tipos de manifestações humanas, seja na religião, na arte, na ciência ou no
âmbito político-social (mesmo porque isso seria impossível), que poderemos chegar
à universalidade ou à essência das coisas, ou seja, o que É a arte ou o que É a
religião; para tanto, é preciso refletir sobre estas manifestações.
A crítica que muito se faz a Husserl, como se sabe, é que ele se restringiu à
esfera da idealidade; porém, Merleau-Ponty não vê o pensamento husserliano
exatamente assim. Segundo Merleau-Ponty, a redução eidética de Husserl e a sua
busca por conceitos absolutos não significa um “não contato” com o mundo da vida.
Para Merleau-Ponty, no pensamento de Husserl, para que seja possível se fazer
uma crítica de um momento atual, de um fato no mundo, é necessário haver um
critério ideal pelo qual se parametrizar esses fatos que não sejam os próprios fatos,
que consistiriam em visões parciais, determinadas por esta ou aquela cultura. Assim,
a resposta a perguntas como “o que é arte?” não pode levar em consideração
somente os fatos observados de um tipo específico de arte, localizado em
87
determinado tempo e espaço; a arte não se restringe somente a um evento
localizado no tempo e no espaço. Do mesmo modo, isso vale para todos os
aspectos da história.
Desta maneira, segundo Merleau-Ponty, Husserl não nega que
individualmente, o filósofo deva pensar o seu tempo; porém, deve pensar o seu
tempo sob que critério? Isto não quer dizer também que Husserl considere que a
filosofia ou a história tenham uma existência absoluta, nem tampouco que estas
possam consistir numa totalidade. A questão que se coloca é que a reflexão não
deve ser colocada como oposição à prática. Mais uma vez, segundo Merleau-Ponty,
é preciso reinterpretar Husserl e compreender que ele não quis “parir” o mundo de
uma idealidade, de uma “verdade eterna”, mas, pela reflexão, alcançar “um devir
inteligível das ideias, uma ‘gênese do sentido’” (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 68).
Aqui, podemos perceber um sentido teleológico, tal como foi apontado por Ricoeur.
Merleau-Ponty traz um exemplo bastante esclarecedor quando explica que todas as
noções que trazemos como eternamente verdadeiras carregam consigo uma
“história sedimentada”:
...percebemos que, se a geometria euclidiana contém ideias certas, estas ideias têm uma data: a geometria do século XIX as retoma, mas as redefine diferentemente, considerando, afinal, o espaço euclidiano como um caso particular de um espaço mais geral. Isto significa que, a despeito de sua aparente limpidez e de seu ar de eternidade, o espaço euclidiano não era qualquer coisa e evidente; ele não existia até a época das geometrias não-euclidianas, inteiramente penetradas pelo espírito; comportava certo coeficiente de contingência; era, também ele, uma formação cultural que, possuindo algo de limitado e de “ingênuo”, se ligava a um determinado estado do saber, e que devia ser, não destruída ou desvalorizada posteriormente, é claro, mas ao menos completada, elaborada, aperfeiçoada pelas concepções geométricas ulteriores. Assim, mesmo quando refletimos sobre as noções geométricas, descobrimos seu devir. (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 68)
Podemos observar que, na perspectiva da fenomenologia, se forma um tipo
de conceito que “trança” o eterno com o mutável e, que neste entrelaçamento
podemos abarcar o “sentido”, mas apenas o “sentido” de totalidade, não a totalidade
em si.
Tudo está em constante modificação, porém, não há uma perda de
identidade; existe um fio condutor que “costura” o contínuo deixar-de-ser-para-vir-a-
ser; é assim que “vive” o ser humano:
Acha-se numa história que não se reduz à soma dos acontecimentos considerados de ponta a ponta, pois que a existência de uns exclui a de outros, numa história que seja pensável, compreensível, apresentando uma ordem, um sentido, que não suporto apenas, mas coloco
88
como perspectiva. Acha-se no que Husserl chama “história intencional” e que outros denominam dialética. (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 69)
Segundo Merleau-Ponty, é impossível fazer um diagnóstico do presente,
fazendo uma ruptura deste momento e deste espaço com o passado e com o resto
do mundo, pois, este presente é constituído de tudo aquilo que já aconteceu e não
só aqui neste local; da mesma forma, não pode estar desvinculado daquilo que
ocorrerá no mundo inteiro. E é nesse sentido que podemos ver a importância da
ideia de história vivida e refletida como fator indispensável para uma análise
filosófica da própria história, no pensamento husserliano. Segundo Husserl, na
leitura de Merleau-Ponty, poderíamos pensar que não seria necessário o contato
com culturas diferentes, bastando imaginar todas as possibilidades dentro de
determinado tema para alcançar sua essência, sua universalidade; mas, ainda
segundo o autor, o próprio filósofo admite ser essa uma tarefa impossível à
imaginação de um sujeito que, invariavelmente, está impregnado de sua própria
tradição.
Eis uma perspectiva de como pode ser vista a história por Merleau-Ponty,
com base no pensamento de Husserl:
...é preciso uma junção entre a antropologia como simples inventário dos fatos e a fenomenologia como simples pensamento das sociedades possíveis. É preciso que esta fenomenologia se dirija ao contato dos fatos, e realize, como o fez Levy-Brühl, uma ativação, uma organização destes fatos, fornecendo-os ao leitor tais como são vividos por aqueles que verdadeiramente estão naquele contexto. (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 72)
A história assim, para Merleau-Ponty, consistiria na contínua “transmissão
viva” de experiências, tais como elas são vividas pelos sujeitos (na
intersubjetividade), advinda da “rede de intencionalidades” constituída pelo tempo.
***
Das questões acima expostas, pudemos distinguir alguns aspectos
fundamentais, de onde se pôde vislumbrar elementos para esclarecer a concepção
da história em Merleau-Ponty; seriam eles: a) a distinção entre a história percebida
(fato) e a história significante (conceito); b) a história como “presença” intersubjetiva,
onde se dá a fusão entre o constituído e o constituinte, sem resultar propriamente
numa síntese, mas sustentando a tensão entre os dois elementos; c) a história
89
vivida, entrelaçada ao mundo, impossível de ser apreendida apenas pela idealidade;
d) a história inacabada; e) a discussão da perspectiva husserliana, para a qual a
história não tem caráter evolucionista, mas teleológico.
Porém, em Merleau-Ponty, fundamental em todos estes aspectos, é a
“encarnação” da história no mundo vivido, não se tratando apenas do ideal de um
devir coletivo, mas sim de ser efetivamente o movimento contínuo das relações
realizadas na intersubjetividade.
Diante destes aspectos, podemos muito resumidamente dizer que, para
Merleau-Ponty, a história consiste na experiência vivida pela intersubjetividade,
donde procede a sedimentação de significações no decorrer do tempo:
Ora, se é verdade que a história é impotente para terminar algo sem consciências que a retomem e que através disso a decidam, se por conseguinte ela nunca pode ser separada de nós, como uma potência estranha que disporia de nós para seus fins, justamente porque ela é sempre história vivida nós não podemos recusar-lhe um sentido pelo menos fragmentário. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 602)
O sentido da história é “pelo menos fragmentário” uma vez que ela está
sempre inacabada, sempre aberta ao devir, dependente da interrelação entre
sujeitos que existem na contínua e na ambígua situação de deixar-de-ser-para-vir-a-
ser.
Enfim, para compreender a história, segundo Merleau-Ponty, não podemos
nos restringir às “representações” dos fatos. É preciso, nas palavras do autor,
“reapoderar-se da intenção total”, ou seja, apreender o modo como se dá a
existência, pela maneira como ela se exprime no mundo, nas relações que se fazem
no mundo: “Essas (maneiras de pôr forma no mundo) são as dimensões da história.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 16) Em todas as dimensões do humano, não existe
nada que não tenha uma significação. E a cada significação expressa, se mostra um
sentido, uma “tomada de posição em relação à situação”. A história não pode ser
compreendida sob um único aspecto, sob uma única visão seja política ou religiosa,
por exemplo. Sua essência é o núcleo existencial de onde brotam todas as
expressões humanas. A história assim seria a expressão viva da humanidade em
todas as suas esferas. Como diz Merleau-Ponty: “É verdade, como diz Marx, que a
história não anda com a cabeça, mas também é verdade que ela não pensa com os
pés. Ou, antes, nós não devemos ocupar-nos nem de sua ‘cabeça’, nem de seus
‘pés’, mas de seu corpo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 17)
90
Vimos no capítulo 2 que nós somos o tempo, nas palavras do autor, “a rede
de intencionalidades”; essa rede imersa no mundo consiste na relação entre sujeitos
que, como vimos acima, vivem em contínua retomada do adquirido, da
sedimentação histórica, dando-lhe um novo sentido a partir de suas relações com
outros sujeitos; eis o que poderíamos chamar de “ser histórico”: o sujeito que, pela
intersubjetividade, se nutre das sedimentações preexistentes no mundo para dar-
lhes um novo sentido e constituir assim a história.
3.2 O ser histórico e a intersubjetividade
L’intersubjectivité est ce “champ de tous les champs”, qui n’est pas autre que ceux qu’il articule, l’élément en lequel s’annonce et
se diffère à la fois, s’annonce en se différant, l’unité des pôles charnels : elle est, en cela, synonyme de l’Historicité
fondamentale. (Renaud Barbaras)
Segundo Merleau-Ponty, não nos “damos conta” de nós mesmos enquanto
não interagimos com o outro:
Não há vida em grupo que nos livre do peso de nós mesmos, que nos dispense de ter uma opinião; e não existe vida “interior” que não seja como uma primeira experiência de nossas relações com o outro. Nesta situação ambígua na qual somos lançados porque temos um corpo e uma história pessoal e coletiva, não conseguimos encontrar repouso absoluto, precisamos lutar o tempo todo para reduzir nossas divergências, para explicar nossas palavras mal compreendidas, para manifestar nossos aspectos ocultos, para perceber o outro.
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50)
Novamente, faz-se necessário reforçar que o sujeito não é, portanto, o “eu
pensante” que tem consciência de si mesmo antes de estar imerso no mundo;
tampouco, os objetos podem ser conhecidos por uma consciência “vazia”, pois ela
depende de elementos (significações) para interpretar aquilo que está percebendo:
Sou eu que reconstituo o Cogito histórico, sou eu que leio o texto de Descartes, sou eu que reconheço ali uma verdade imperecível e, no final das contas, o Cogito cartesiano só tem sentido por meu próprio Cogito, eu nada pensaria dele se não tivesse em mim mesmo tudo aquilo que é preciso para inventá-lo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 496)
Para poder “interpretar” o mundo, como vimos nos capítulos anteriores, nos
utilizamos de significações que já se encontram nesse mundo para expressarmos o
sentido de nossas intenções vividas dentro de nossa situação nesse mundo. As
91
significações constantes no mundo, porém, não “brotaram” por si mesmas; alguém,
anteriormente a nós, colocou-as ali. Esse “alguém” não se trata de uma consciência
anterior a todas as outras, sabedora de todas as significações possíveis.
Suponhamos o nosso mundo primitivo, quando os homens ainda não tinham à sua
disposição palavras com significados em comum. Como surgiram as primeiras
significações? O ser humano ainda não tinha construído “organizadamente” a
linguagem, porém, já se expressava por gestos e sons, talvez não muito bem
articulados, mas, o principal, aquilo a que devemos “retornar” a nossa atenção é que
os homens se comunicavam, interagiam entre si. Para tanto, é bastante plausível
supor que comparavam seus próprios gestos e sons uns com outros até se
estabelecer um “acordo” entre esses gestos e sons. Quando um bebê ainda não
consegue falar ou não conhece o nome daquilo que deseja, simplesmente “aponta”
na direção do objeto; geralmente, de modo imediato, conduzimos nosso olhar na
direção do dedo apontado e pronunciamos a palavra que corresponde ao significado
do objeto e... “voilà”: o bebê adquiriu mais uma significação. Imaginamos, da mesma
maneira, um homem primitivo diante de uma pedra, tentando “dizê-la” para outro
homem e pronunciando um som qualquer a apontando com o dedo e com o olhar
(interessante imaginar como surgiram os primeiros significados, ou seja, que sons
foram inspirados pelos objetos ou pelas situações para estes serem nomeados pela
primeira vez). E então, sabe-se lá porque o homem emite o som “ita”. Num primeiro
momento, o outro homem pode estar confuso e não entende exatamente o que o
outro está expressando: seria “ita” o movimento do braço, o lugar onde estão, o chão
ou a pedra? Mas o primeiro homem insiste, vai em direção à pedra e a toca, a pega
com as mãos e repete “ita”. O outro homem tem a sensação de começar a
compreender e tenta emitir o mesmo som, fazendo o mesmo movimento: aproxima-
se da mesma pedra, a toca e balbucia tentando imitar o mesmo som, “ita”. Talvez, as
coisas não tenham sido bem assim, mas, tal como observamos o comportamento de
um bebê, podemos supor que é bem provável que a comunicação em linguagem
tenha se iniciado assim. Um homem sozinho no mundo, talvez, não teria ou não
sentiria a necessidade de nomear nada. Não adentraremos aqui na investigação de
nenhuma teoria da linguagem. O que nos interessa no momento é: o que nos mostra
esta estorinha? Que as significações surgem da relação entre sujeitos. A
consciência de um sujeito que vivesse sozinho, num mundo isolado, perceberia o
mundo circundante, “explodiria” para uma multiplicidade de sentidos direcionados a
92
esse mundo que os solicita; porém, esses sentidos permaneceriam “mudos”, como
vimos no capítulo 1, entendendo-se “mudos” como ainda isentos de significações se
não existissem outros sujeitos com os quais interagir e fazer surgir estas
significações. Daí então que as significações das quais o sujeito se utiliza até
mesmo para poder refletir sobre si mesmo, dependem da relação que esse sujeito
estabelece com o outro.
A consciência passa a ter, ambiguamente, caráter subjetivo e objetivo; para
saber o que sou no mundo me utilizo de significações objetivas:
Tudo o que “sou” graças à natureza ou à história – corcunda, belo ou judeu – nunca o sou inteiramente para mim mesmo, como o explicávamos há pouco. E sem dúvida eu o sou para outrem mas permaneço livre de pôr outrem como uma consciência cujas visões me alcançam até em meu ser, ou ao contrário como um simples objeto. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 582)
Esse caráter duplo da consciência, subjetivo e objetivo, fundamenta o
entrelaçamento entre o ser ante-predicativo (o sujeito pré-reflexivo) e aquilo que
podemos denominar o ser histórico (o sujeito imerso na intersubjetividade); o caráter
duplo da consciência nasce da relação que se dá pelo processo dialético entre
esses dois aspectos do sujeito: o pré-reflexivo e a intersubjetividade. Nessa relação,
a linguagem vai propiciar a sedimentação de significações que vai tecendo a história
vivida:
Nosso contato conosco sempre se faz por meio de uma cultura, pelo menos por meio de uma linguagem que recebemos de fora e que nos orienta para o conhecimento de nós mesmos. De modo que, afinal, o puro si-mesmo, o espírito, sem instrumentos e sem história, se é de fato como uma instância crítica que opomos à intrusão pura e simples das ideias que nos são sugeridas pelo meio, só se realiza, em liberdade de fato, por meio da linguagem e participando da vida do mundo. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 49)
A sedimentação nos remete à ideia de tempo passado; não somos apenas o
nosso presente. Também não podemos dizer que a memória que temos, mesmo de
nossa vida individual, seja exclusivamente feita pelas nossas percepções isoladas;
as percepções dos fatos de minha vida pessoal estão sedimentadas em mim por
meio de significações herdadas de todos os meus antecessores. Essas
significações, portanto, nunca são expressões restritas a um presente; também
carregam em si, toda a articulação que foi sendo construída no decorrer da história
por todos que viveram antes de mim. Então, somente é possível que eu tenha a
minha história pessoal porque estou imerso na história da humanidade que, por sua
vez, se faz também com a minha história. Merleau-Ponty diz:
93
Assim como meu presente vivo dá acesso a um passado que todavia eu não vivo mais e a um porvir que não vivo ainda, que talvez eu não viverei jamais, ele também pode dar acesso a temporalidades que eu não vivo e pode ter um horizonte social, de forma que meu mundo se acha ampliado na proporção da história coletiva que minha existência privada retoma e assume. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 580)
No trecho a seguir, Merleau-Ponty começa a explicar que um fato que envolve
uma coletividade somente se realiza porque ele já está como que “ocultamente”
sendo vivenciado por cada indivíduo, dentro de seu contexto, antes mesmo de ser
expresso. A intersubjetividade, a relação entre sujeitos se daria ainda na esfera
ante-predicativa, antes mesmo de ser expressa:
O movimento revolucionário, como o trabalho do artista, é uma intenção que cria ela mesma seus instrumentos e seus meios de expressão. O projeto revolucionário não é o resultado de um juízo deliberado, a posição explícita de um fim. Ele o é para o propagandista, porque o propagandista foi formado pelo intelectual, ou para o intelectual, porque ele pauta sua vida por pensamentos. Mas ele só deixa de ser a decisão abstrata de um pensador e se torna uma realidade histórica se se elabora nas relações inter-humanas e nas relações do homem com seu ofício. Portanto, é verdade que eu me reconheço como operário ou como burguês no dia em que me situo em relação a uma revolução possível e que essa tomada de posição não resulta, por uma causalidade mecânica, de meu estado civil operário ou burguês (é por isso que todas as classes têm seus traidores), mas ela também não é uma valorização gratuita, instantânea e imotivada, ela se prepara por um processo molecular, amadurece na coexistência antes de explodir em palavras e de se referir a fins objetivos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 597)
É, portanto, no expressar-se que se faz o que estamos denominando aqui de
ser histórico; nem a história pode ser deduzida do ser humano, nem o ser humano
pode ser deduzido da história porque é na relação intersubjetiva que ambos se
fazem.
As expressões humanas constituem um mundo cultural que vai além do
mundo natural; deparamo-nos com esse mundo “humano” todo o tempo. Em
Compreender Merleau-Ponty, Eric Matthews mostra um caráter primordial nas coisas
que constituem esse mundo “humano/cultural”. Matthews usa como exemplo os
diversos objetos disponíveis no nosso dia-a-dia, como garfos e facas. Estes objetos
podem ser descritos pela ciência como artefatos feitos de certo material, que têm
certo formato; porém, encontraremos uma infinidade de garfos e facas feitos de
outros materiais e com outros formatos, mas que ainda assim serão identificados
como garfos e facas, pelo seu uso. Matthews conclui:
94
O fato de serem definidos por sua utilização ou relevância humana indica algo mais acerca desses objetos. Seu uso é o uso feito deles por alguém, sua relevância é a importância que tem para alguém. Sua própria existência como entidades de relevância e utilização humanas depende de algum ser humano. (MATTHEWS, 2010, p. 150)
Esse “alguém” não é ninguém específico, é anônimo; o objeto passa a ter
uma vida objetiva, ou seja, não importa quem o fez ou quem o usará: ele encontra-
se disponível no mundo objetivamente porque compartilhamos o seu sentido e o
seu significado. Ser-no-mundo, portanto, como diz Matthews, “é ser-no-mundo-social
tanto quanto no natural ou físico.” Sob essa perspectiva, mesmo aquilo que
chamamos de natureza, é natureza para alguém, para nós. Esse ser-no-mundo-
social, portanto, não se relaciona com os outros seres como ele como se eles
fossem outros objetos numa relação causal. Para que ele seja social, é preciso que
ele compartilhe com outros esses significados. Não compartilho com o outro o seu
pensamento mudo ou suas emoções inexpressas; mas compartilho suas expressões
no mundo objetivo. Nosso acesso ao outro se dá pela expressão.
Desta maneira, o mundo social é constituído por meio da intersubjetividade,
ou seja, nossas relações com os outros, nas quais compartilhamos significados
interpretando diversas expressões mutuamente. A sociedade é um conjunto de
indivíduos; porém, Matthews observa: “Mas não é equivalente a nenhum conjunto de
indivíduos em particular, no sentido em que ‘este saco de batatas’, por exemplo, é
equivalente ao conjunto de batatas em particular que acontece de estar neste saco
no momento.” É que as sociedades duram muito mais que os indivíduos. Elas
mantêm sua identidade por um período maior do que duram os indivíduos que as
formam; porém, assim como a vida dos indivíduos, as sociedades também mudam
com o tempo: “E a maneira como muda, assim também como as vidas dos
indivíduos, é histórica.” (MATTHEWS, 2010, p. 156)
Uma sociedade muda de acordo com as mudanças de seus indivíduos; desta
maneira, poderíamos entender a sociedade como um “sujeito incorporado”, porém,
um sujeito incorporado que tem uma subjetividade objetiva, uma vez que a
sociedade se constitui de tudo o que seus indivíduos compartilham, tudo aquilo que
eles produzem e dividem, sejam objetos, instituições, valores, linguagem etc. Assim,
uma sociedade depende mais especificamente do mundo cultural, não tanto do
natural e, consequentemente, seu tempo não será o natural, mas o histórico, “no
95
qual o passado se torna presente, que por sua vez se abre para o futuro.”
(MATTHEWS, 2010, p. 157)
Matthews explicita o pensamento de Merleau-Ponty explicando que, no tempo
natural, a relação entre as coisas ou eventos seria do tipo causal; no tempo histórico,
entretanto, os eventos não são objetos separados, eles se desdobram no presente
que retoma o passado para se projetar ao futuro, concatenando esses momentos,
não de modo causal, mas de modo inteligível: há um sentido interno que articula
estes eventos dando-lhes uma “unidade” e não uma força exterior que faria com que
um evento causasse efeitos sobre o outro. Este “sentido” se faz pelas pessoas que,
com base em suas experiências passadas, resolvem tomar esta ou aquela atitude
em sua situação presente. Como diz Matthews:
Exatamente como acontece com um indivíduo, uma sociedade é o que é em virtude de sua história, ou melhor, em virtude do que seus membros fazem de sua história. A identidade de uma sociedade ou cultura é constituída pelo que ela foi e pela concepção que tem desse passado as pessoas que nela vivem; de forma que sua identidade presente está inteligivelmente ligada a seu passado E o futuro de qualquer sociedade ou cultura será o que seus membros decidirem que seja, à luz do que entendem que foi seu passado. (MATTHEWS, 2010, p. 158)
Podemos compreender então que, para Merleau-Ponty, da mesma forma que
acontece com o indivíduo, a sociedade é, de certo modo, determinada pelo seu
passado, pela sua história; porém, embora seu passado lhe coloque limites, seu
futuro não está determinado: na situação presente, seus indivíduos podem tomar
decisões que mantenham ou alterem a situação atual.
Nascemos dentro de um contexto, dentro de uma sociedade, de uma cultura
que não escolhemos; incorporamos sua história e, com base nela, interagindo
continuamente dentro dessa sociedade, fazemos nossa própria história. Isto não
quer dizer que somos determinados por essa história, mas que ela nos influencia no
sentido em que nos dá motivos para agir desta ou daquela maneira em cada
situação. Essa ideia foi bastante explorada por Marx que, segundo Matthews,
influencia o pensamento de Merleau-Ponty quando este encontra no marxismo sua
nova base política. É o que veremos a seguir.
96
3.3 A discussão com Marx
A posição política de Merleau-Ponty era de esquerda; desta maneira, assim
como outros filósofos de sua época, Merleau-Ponty buscou no marxismo sua base
política, porém, não no tipo de marxismo direcionado aos preceitos dos partidos
comunistas e sim no que se denomina de “materialismo histórico”.
Apenas para esclarecer o leitor quanto à ideia de marxismo, podemos dizer,
de modo sumário, que o marxismo ao qual Merleau-Ponty se opõe, na visão dele
(Merleau-Ponty), tendia a explicar as questões sociais pelo modelo científico, ou
seja, buscando leis que regulassem os movimentos sociais de maneira causal.
Matthews apresenta brevemente a interpretação do marxismo à qual se
oporia Merleau-Ponty: de posse de leis que regulassem os movimentos sociais, os
indivíduos poderiam melhor tomar decisões para mudar sua situação, uma vez que
conheceriam o funcionamento da sociedade. Os elementos principais da sociedade
que estariam sob a norma dessas leis seriam a capacidade humana de transformar
a natureza e os meios de produção. Da relação que os indivíduos teriam com esses
meios de produção se definiriam as classes sociais que poderiam ser classificadas
em dois grandes grupos: um dominante (com poder econômico, político e social – a
burguesia) e outro subordinado (sustentando a classe dominante – o proletariado).
Para defender seus próprios interesses, a tendência natural seria que, cada vez
mais, a classe dominante explorasse seus subordinados que, por sua vez, se veriam
sempre mais oprimidos até chegarem ao limite de se revoltar contra a classe
dominante e tirá-la do poder.
A partir do momento em que as classes subordinadas tomassem o poder,
segundo essa interpretação do marxismo, Marx previa a formação de um novo tipo
de sociedade, sem classes, onde não haveria a dominação de indivíduos sobre
outros: o comunismo. Neste sistema, sem classes, a sociedade dividiria igualmente
entre todos os indivíduos os frutos gerados pelos meios de produção como um todo,
não favorecendo apenas uma pequena parte, como a burguesia no capitalismo. Não
havendo diversas classes para serem geridas, também se tornaria desnecessária a
existência de um Estado que as governasse, fazendo com que os indivíduos
pudessem participar livremente das decisões necessárias para a manutenção dessa
sociedade.
97
Como podemos notar, para Merleau-Ponty, nessa concepção de marxismo, o
funcionamento da sociedade era previsível, correspondendo perfeitamente ao
modelo objetivista da ciência. Como diz Matthews: “Os seres humanos e as
sociedades são vistos como objetos pelo fato de que sua consciência subjetiva da
situação em que se encontram e a influência dessa subjetividade sobre seu
comportamento são negadas ou, pelo menos, desconsideradas.” (MATTHEWS,
2010, p. 165) Desta maneira, o comportamento dos seres humanos seria
determinado “pela ação de forças externas” a eles; entendido assim, o movimento de
classes seria visto sob o aspecto causal.
É neste ponto que Merleau-Ponty se contraporia ao marxismo; sob a
perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty, o comportamento humano, como
vimos nos capítulos anteriores, não pode ser explicado meramente pela objetividade,
numa relação causal. Porém, existem elementos no marxismo, os quais vão ao
encontro do pensamento merleau-pontyano, principalmente nas ideias do sujeito
encarnado, da relação desse sujeito com o mundo (e com outros sujeitos) e de seu
engajamento numa situação. Esse viés de pensamento se aproxima muito do tipo de
marxismo que, segundo Matthews, tem como cerne o “materialismo histórico”. No
“materialismo histórico”, ainda segundo Matthews, a história é feita pelos seres
humanos que agem de acordo com a situação na qual estão inseridos. Vivendo em
grupos, os seres humanos têm a necessidade de se organizar e teria sido por esta
razão que, com o passar do tempo, foram surgindo os diversos tipos de sociedades.
A evolução científica e cultural foi exigindo também mudanças e maior sofisticação
das organizações sociais. Em meio a essas mudanças, os indivíduos tomam
decisões segundo a situação que se apresenta. O “materialismo histórico” admite a
interrelação dos diversos âmbitos sociais no mundo vivido: economia, política,
filosofia etc. estão entrelaçados. Como diz Merleau-Ponty, em uma nota na
Fenomenologia da percepção acerca do “materialismo histórico”:
A economia na qual ele (o materialismo histórico) assenta a história não é, como na ciência clássica, um ciclo fechado de fenômenos objetivos, mas uma confrontação entre forças produtivas e formas de produção que só chega ao seu fim quando as primeiras saem do anonimato, tomam consciência de si mesmas e tornam-se assim capazes de por em forma o futuro. Ora, a tomada de consciência é evidentemente um fenômeno cultural e por aí podem introduzir-se na trama da história todas as motivações psicológicas [...] A economia acha-se integrada à história antes que a história reduzida à economia. O “materialismo histórico”, nos trabalhos que inspirou, frequentemente é apenas uma concepção concreta da história que leva em consideração, além de seu conteúdo manifesto – por exemplo, as relações oficiais entre os “cidadãos” em uma democracia -, o seu conteúdo latente, quer dizer, as relações
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inter-humanas tais como elas efetivamente se estabelecem na vida concreta. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 633)
Vemos que, para Merleau-Ponty, o sujeito não pode ser reduzido ao “cidadão”
ou ao “burguês; ele é o sujeito vivo onde todas essas esferas (política, econômica
etc.) encontram-se entrelaçadas. A crítica de Merleau-Ponty, aqui, é à interpretação
do “materialismo histórico” entendido como uma redução à “causalidade econômica”
para explicar o mundo vivido; na visão do autor, o “materialismo histórico” faz a
história “na maneira de existir e de coexistir, nas relações inter-humanas.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 634). Não existiria uma história política separada de
uma história econômica separada de uma história científica: a história é única e se
faz na existência social como um todo. Isso equivale a dizer também que nenhuma
dessas esferas está fechada em si mesma e mesmo os aspectos causais que
poderiam ser identificados, jamais são exclusivos a uma única esfera. Como diz
Merleau-Ponty: “Nesse sentido, nunca existe causalidade econômica pura, porque a
economia não é um sistema fechado e porque ela é parte da existência total e
concreta da sociedade. Mas uma concepção existencial da história não retira às
situações econômicas seu poder de motivação.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 635)
O que Merleau-Ponty parece querer mostrar é que o ser humano engajado numa
situação não tem como estar desvinculado de seu contexto histórico e isso inclui sua
situação econômica, assim como todas as outras, de onde se formam as motivações
dos sujeitos: “A concepção do direito, a moral, a religião, a estrutura econômica
significam-se umas às outras na Unidade do acontecimento social [...] e é impossível
reduzir a vida inter-humana seja às relações econômicas, seja às relações jurídicas
e morais pensadas pelos homens.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 635) Pelo fato de
tudo o que fazemos poder apontar sempre para vários sentidos, também não se
pode falar numa significação única para a história, vista aqui sob uma concepção
existencial; é nesse sentido que Merleau-Ponty traz sua interpretação do
“materialismo histórico”.
Esse foi o pensamento de Marx adotado por Merleau-Ponty, mais humanista,
entendendo o ser humano não como um produto histórico totalmente determinado
pelas prescrições de sua sociedade, mas com capacidade de tomar decisões a favor
ou contrárias a ela: o ser humano é parte ativa no processo histórico, estando imerso
nele como ser-no-mundo. É sob essa perspectiva que Merleau-Ponty vai considerar
a luta de classes.
99
Podemos dizer, de maneira geral, que a principal contribuição do pensamento
de Marx para a filosofia de Merleau-Ponty está na subversão do idealismo fazendo
com que o ser humano deixasse de ser um ser metafísico, não se tratando mais do
gênero “homem”, mas sim do indivíduo particular e, do mesmo modo, que a
sociedade deixasse de ser uma entidade abstrata para ser efetivamente realizada
ou, sob a perspectiva marxista, “produzida” pela ação desses indivíduos vivos.
***
“Abriremos um parêntese” aqui para sugerir que a distinção entre as ideias de
Marx às quais se opõe Merleau-Ponty e o marxismo que sustenta o “materialismo
histórico” do qual ele se aproxima, talvez aponte para uma das divergências que
iriam posteriormente causar a ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre, a partir do
momento em que Sartre se aproximará consideravelmente dos partidos comunistas,
engajando-se politicamente no movimento. Sartre se recusará a manter-se imparcial
nas questões políticas daquele período, envolvendo-se efetivamente, posicionando-
se a favor do comunismo, enquanto Merleau-Ponty se manterá no que ele considera
a posição do filósofo, o que exigiria um distanciamento perante os fatos e não um
envolvimento direto. Como explica Marilena Chauí:
Porque, para Sartre, a consciência é leve e insubstancial, pode aceitar o apelo de todos os fatos e de todos os acontecimentos: a consciência não se deixa impregnar por eles, conservando a soberania. É porque a consciência é encarnada num corpo e situada na intercorporeidade e na intersubjetividade que Merleau-Ponty não pode, para usarmos a expressão que emprega no Elogio da filosofia ao definir o filósofo, “dar o assentimento imediato e direto a todas as coisas, sem considerandos”, pois, como escreve em sua carta, “é preciso ser capaz de tomar distância para ser capaz de um engajamento verdadeiro, que é sempre também um engajamento na verdade.” (CHAUÍ, 2002, p. 275)
A crítica que Merleau-Ponty fará a Sartre, segundo Chauí, se baseia em dois
fatores principais: o primeiro é que, não tomando o devido distanciamento para
apurar mais profundamente os elementos envolvidos, esse engajamento se daria
meio às cegas e não proporcionaria uma compreensão verdadeira dos fatos (seria
como chegar sempre a uma nova conclusão ao final de cada batalha e não ter a
visão geral da guerra); o segundo fator, porém, é mais contundente, como explicita
Marilena Chauí:
100
É que, graças à soberania do Nada sobre o Ser, Sartre construiu, em pensamento e em imaginação, um futuro fixo, mantido em segredo, que regula clandestinamente o curso dos acontecimentos, aconteça o que acontecer. Sartre possui o futuro e a história em pensamento e em imaginação, sendo-lhe fácil opinar sobre tudo e tomar posição em tudo. (CHAUÍ, 2002, p. 278)
Marilena Chauí sustenta a afirmação de que “Sartre possui o futuro e a
história em pensamento e em imaginação” com base na concepção sartriana de que
o que move o sujeito é a sua intenção, mas no sentido de alcançar um fim que ele
é livre para determinar, como diz Sartre numa passagem em O ser e o nada, na
qual ele explicita sua concepção de motivo: “O mundo só dá conselhos se
interrogado, e só podemos interrogá-lo para um fim bem determinado. Portanto, o
motivo, longe de determinar a ação, só aparece no e pelo projeto de uma ação.” – e
mais adiante: “esta consciência posicional do motivo é, por princípio, consciência
não-tética de si enquanto projeto rumo a um fim.” (SARTRE, 1997, p. 554)
Segundo Marilena Chauí, Sartre, na visão de Merleau-Ponty, tomaria partido
dos comunistas naquele momento, não como um político que vive o comunismo,
mas como o intelectual que conhece secretamente o futuro e a história: “Sartre
possui o futuro e a história em pensamento e em imaginação, sendo-lhe fácil opinar
sobre tudo e tomar posição em tudo.” (CHAUÍ, 2002, p. 279) Para Merleau-Ponty, no
entanto, o futuro da história não é determinado, nem pelas condições objetivas, nem
pelas subjetivas; ele está sempre em aberto e vai se fazendo na medida em que os
sujeitos encarnados, vivam eles como políticos ou como filósofos, atuem mantendo
ou mudando sua situação não só no mundo, mas do e com o mundo. A postura
como filósofo de Merleau-Ponty, nesse sentido, sem se envolver na práxis política,
não seria um ato de abstenção, como ele mesmo diz na carta de 08 de julho de
1953 a Sartre : “Mesmo que ela não opte entre o comunismo e o anticomunismo, a
filosofia é uma atitude no mundo, não uma abstenção; não está reservada, em
absoluto, ao filósofo de profissão, e ele a manifesta fora dos livros que escreve.”
(CHAUÍ, 2002, p. 306) Não escolher entre o comunismo e o anticomunismo não
deixa de ser também uma posição política, mas, no caso de Merleau-Ponty, é acima
de tudo uma posição filosófica que, ao que nos parece, é coerente com o seu
pensamento fundamental: a superação das dicotomias. Na mesma carta, ele diz, a
respeito dos problemas políticos: “eu trato deles num plano em que não haja a
necessidade de ser comunista ou anti, na esperança de que ambas essas posições
venham a ser superadas pela evolução da política internacional.” Ou seja, a atitude
101
de Merleau-Ponty em relação à práxis, como filósofo, parece confirmar sua visão
sobre a história: um processo de superação de oposições, mas não no sentido de
negá-las e sim de estabelecer a contínua relação de complementaridade que jamais
se fecha, em oposição à ideia de uma totalização da história. Sua atitude de não
tomar partido a favor ou contra o comunismo para haver o justo distanciamento
exigido pela atitude filosófica não consistiria numa não tomada de posição; antes,
seria o posicionamento do engajamento como filósofo encarnado que, assim como
ele dirá: “efetua o vaivém entre o fato e o sentido, se realizando na história” (Texto A
crise da revolução, anexo à carta de 08 de julho de 1953, de Merleau-Ponty a
Sartre) Neste mesmo texto, Merleau-Ponty ainda dirá, fazendo referência a Marx:
A junção do real e do racional se faz pela existência mesma do proletariado, que é um efeito do capitalismo, mas também o início de uma subversão das relações com a natureza e com os homens; estão dados conjuntamente o problema e a solução, a revolução já está aí, o futuro no presente, a decisão já tomada, o “espectro do comunismo” (“Manifesto”) que ronda a Europa. A existência do proletariado, a conquista do poder por ele e, em perspectiva, o fim das classes “sociais” formam um único acontencimento-norma, que constitui a realização da filosofia e o regulador da política. Há, nesse sentido, um classicismo marxista: “destruir”, precisamente, para “realizar” (a filosofia). (CHAUÍ, 2002, p. 317)
Segundo Chauí, para Merleau-Ponty, Sartre teria negligenciado que o seu tipo
de engajamento o conduz a uma opinião subjetiva sobre os fatos, que, como
opinião é sempre contingente e não pode nem abarcar a totalidade da situação,
muito menos indicar as leis sob as quais se submeteriam esses fatos. Para Merleau-
Ponty, como já vimos, o caminho não é a escolha entre a práxis e a consciência e
sim o “entre”15 (os dois) que se dá na existência.
O que vem a ser esse “entre”? Para compreendê-lo, retornemos à
Fenomenologia da percepção e vejamos como se dá, por exemplo, a tomada de
consciência de classe, segundo Merleau-Ponty.
_______________
15 Em sua dissertação de mestrado Esboço para leitura merleaupontyana da história: experiência intelectual e experiência histórica nas Aventuras da dialética, Carrasco aponta para dois aspectos que podem nos auxiliar a compreender este “entre”; eles surgem da seguinte frase de Merleau-Ponty concluindo o prefácio das Aventuras da dialética: “Cada ato político engaja o todo da história, mas essa totalidade não nos fornece uma regra à qual poderíamos nos remeter, porque ela sempre é apenas opinião”. Segundo Carrasco: “Merleau-Ponty sugere ao menos dois aspectos; i) razão e entendimento tem uma relação mais difícil do que suporia a Aufhebung(*) hegeliana; ii) essa dificuldade pode começar a ser desenhada com os traços da opinião que, como tal, é contingente. Neste caso, uma conjunção aditiva (o e) é mais adequada que um nexo causal (um suposto porque).” (CARRASCO, 1999) (*) Em alemão: Revogação
102
Em primeiro lugar, Merleau-Ponty nos mostra que não é por meio de uma
introspecção que um indivíduo se auto-define como pertencente a esta ou aquela
classe; o fato de alguém se considerar “burguês” ou “operário” somente é possível
com um desdobramento desse sujeito para além de si mesmo, uma reflexão sobre o
contexto objetivo no qual se encontra, da realidade que ele vive. Sem considerar a
sua situação, esse sujeito poderia se qualificar livremente como “burguês” ou como
“operário”, sem uma razão para tal.
Dentro de si mesmo, como se pudesse estar “destacado” do mundo, esse
sujeito, na verdade, não teria como se auto-qualificar em classe alguma. Como diz o
autor:
Se me apreendo em minha absoluta concreção e tal como a reflexão me dá a mim mesmo, sou um fluxo anônimo e pré-humano que ainda não se qualificou, por exemplo, como “operário” ou como “burguês”. Se a seguir eu me penso como um homem entre os homens, um burguês entre os burgueses, isso só pode ser, ao que parece, uma visão secundária sobre mim mesmo, em meu centro eu nunca sou operário ou burguês, sou uma consciência que se valoriza livremente como consciência burguesa ou como consciência proletária. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 593)
Ao mesmo tempo, a posição objetiva na qual se encontra o sujeito não é
suficiente para que ele tome consciência de sua classe, para que então se
determine sua decisão para revogar ou manter sua condição. É da sua situação, ou
seja, do momento presente desse sujeito que trança seu passado vivido com o
mundo no momento atual, que se delineiam os limites e as possibilidades para que
ele tome sua decisão e é essa decisão que vai definir sua pertença a uma classe:
E, com efeito, minha posição objetiva no circuito de produção nunca basta para provocar a tomada de consciência de classe. Houve explorados muito antes de que houvesse revolucionários. Não é sempre em período de crise econômica que o movimento operário progride. A revolta não é então o produto das condições objetivas, inversamente é a decisão que o operário toma de querer a revolução que faz dele um proletário. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 593)
Portanto, para Merleau-Ponty, a decisão de um sujeito que pode ou não ir ao
encontro do movimento de um grupo de indivíduos não é uma conseqüência de sua
condição objetiva, como se esta pudesse ser sua causa: não é porque ele é um
proletário que ele necessariamente se revolta; é a sua decisão de se revoltar que o
define como proletário, no sentido dele se reconhecer como um dos explorados. A
decisão é sempre subjetiva e, embora ela seja tomada a partir da situação do sujeito
103
no mundo, numa história que imponha certas condições, ela é tomada por um
motivo racional (inteligível) que tem um sentido para esse sujeito e não por uma
causa exterior. A decisão se embasa nas experiências passadas desse sujeito, mas
é tomada tendo como objetivo um projeto futuro: o sentido intencional desse sujeito
entrelaçado a outros sujeitos que nutram o mesmo objetivo vai dar um novo sentido
à história. A história em si mesma não teria sentido; ela só tem sentido para alguém:
“A valorização do presente se faz pelo livre projeto do porvir, donde se poderia
concluir que por si mesma a história não tem sentido, ela tem aquele sentido que
nós lhe damos por nossa vontade.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 593)
Mas devemos lembrar que isso também não quer dizer que a história seria
relativa, ou seja, que teria um sentido para cada mente pensante, como se a
consciência existisse isoladamente do mundo, como se não existisse a
intersubjetividade que em Merleau-Ponty equivale a uma intercorporeidade.
Justamente é esse o esforço de Merleau-Ponty: escapar da abstração e da escolha
entre o “em si” e o “para si” para compreender essa relação como não causal. É
existindo no mundo corporalmente que o sujeito se comunica com outros sujeitos,
com sua sociedade. Antes de se qualificar como operário ou como burguês, o sujeito
existe, vive como operário ou como burguês, “sem que se possam deduzir os
primeiros dos segundos, nem os segundos dos primeiros”. (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 594)
Assim, o sujeito não é qualificado pela sociedade, tampouco atribui a si
mesmo alguma qualificação sem razão; essa qualificação surge da maneira como
esse sujeito vive, do modo como ele traz dentro de si o sentido destas qualificações
compartilhadas com outros sujeitos. Como diz Merleau-Ponty:
Não é a economia ou a sociedade consideradas como sistema de forças impessoais que me qualificam como proletário, é a sociedade ou a economia tais como eu as trago em mim, tais como eu as vivo – e também não é uma operação intelectual sem motivo, é minha maneira de ser no mundo neste quadro institucional. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 594)
O operário não decide tornar-se revolucionário deliberadamente sem nenhum
motivo, para então valorizar a sua condição como pertencente à classe do
proletariado; a razão pela qual ele toma essa decisão é o seu viver operário
mutuamente com outros sujeitos dos quais ele compartilha essa condição. Mesmo
alguém que não fosse efetivamente um operário, mas que, em algum momento, se
104
sentisse explorado pelo sistema capitalista, embora não compartilhasse de todos os
aspectos que envolvem o “ser operário”, o “viver operário”, se sentiria solidário à
revolta operária por compartilhar ao menos um aspecto (ser explorado); é no modo
de existir, de viver com outros, que se encontra o motivo pelo qual um sujeito
valoriza, se qualifica como pertencente a uma classe.
Desta maneira, não é uma “representação” da revolta que leva alguém a se
revoltar; a decisão vai sendo tomada na medida em que esse sujeito vai se
“revoltando”, enquanto compartilha o seu sentimento com outros que vivem a
mesma situação; a sua experiência pessoal se mistura com a experiência dos
demais. Como diz Merleau-Ponty: “Nem o fatum nem o ato livre que o destrói são
representados, eles são vividos na ambiguidade.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 597)
Segundo Merleau-Ponty, isto não significa que os sujeitos não tenham consciência
da decisão que estão tomando; mas que cada intenção individual, que acaba por se
tornar a decisão, vai se cristalizar de forma objetiva quando encontra na relação com
os demais, uma cumplicidade no modo de viver aquela situação e perceber
concretamente as dificuldades. A revolução, portanto, não decorre exclusivamente
de uma decisão subjetiva, mas também não é exclusivamente determinada pelas
condições objetivas; ela não acontece “por causa de”, mas sim “por meio de”: por
meio da relação entre sujeitos no mundo.
Na visão do pensamento objetivo, para Merleau-Ponty, o fato de
pertencermos à determinada classe social determinaria nossas ações de modo
causal: se pertenço à burguesia, por exemplo, vou agir de modo a preservar meus
interesses (que coincidiriam, claro, com os interesses da classe), ou seja, aumentar
o meu poder econômico. Numa visão radicalmente idealista, por outro lado, o
indivíduo tomaria decisões com base exclusivamente em sua racionalidade,
independentemente de sua situação material. No primeiro caso, na visão do
marxismo de concepção científica, o indivíduo é totalmente determinado pela
situação e seu pensamento individual não tem poder de interferir em sua decisão; no
segundo caso (pensamento idealista), a situação na qual o indivíduo está inserido
não tem nenhum peso em sua decisão, que seria puramente racional.
Para Merleau-Ponty, no entanto, nenhum dos dois pensamentos poderia ser
admitido, uma vez que ambos se pautam pela ideia de causalidade. Como vimos
nos capítulos anteriores, o sujeito situado no mundo realiza um contínuo processo
de retomada das sedimentações do contexto histórico no qual está inserido para, a
105
partir daí, dar-lhes uma nova significação que vá ao encontro do sentido de sua
perspectiva pessoal e tomar sua decisão, que pode manter a situação ou mudá-la.
Nesse sentido, nem as ideias tem força absoluta sobre, nem a sociedade pode
determinar completamente a decisão desse indivíduo. A situação disponibiliza os
limites impostos pela sociedade e pela sua história, assim como as
possibilidades de solução dos problemas que se apresentam, mas não
determina a decisão do sujeito. Isto quer dizer, como diz Matthews, que “as
condições objetivas em que nos encontramos não determinam nossas ideias.”
(Compreender Merleau-Ponty, 2010, p. 170) Não determinam nossas ideias, muito
menos nossas decisões. Como vimos acima, o que faz de alguém um operário é o
seu modo de existir (viver) operário e a decisão de se tornar um revolucionário se dá
mediante “um certo solo de coexistência”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 598)
A critica de Merleau-Ponty ao intelectualismo seria a de “só considerar
projetos intelectuais, em lugar de levar em conta o projeto existencial que é a
polarização de uma vida em direção a uma meta determinada-indeterminada da qual
ela não tem nenhuma representação e que só reconhece no momento de atingi-la.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 598) Segundo o autor, não levar em conta o projeto
existencial seria desvirtuar o sentido de intencionalidade, reduzindo a “consciência
de algo” àquilo que “colocamos nesse algo”, desprezando seu aspecto primordial: a
consciência está imersa na existência. Antes de se pensar a situação, ela é vivida e
é por isso que:
Fazer da consciência de classe o resultado de uma decisão e de uma escolha é dizer que os problemas são resolvidos no dia em que se colocam, que toda questão já contém a resposta que ela aguarda, em suma é retornar à imanência e renunciar a compreender a história. Na realidade, o projeto intelectual e a posição dos fins são o acabamento de um projeto existencial. Sou eu que dou um sentido e um porvir à minha vida, mas isso não quer dizer que esse sentido e esse porvir sejam concebidos, eles brotam de meu presente e de meu passado e, em particular, de meu modo de coexistência presente e passado. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 598-599)
O sentido e o porvir não são “concebidos”, eles “brotam do modo de
coexistência de meu presente e meu passado”; essa “coexistência presente e
passado” consiste na mediação entre as sedimentações históricas e a situação
atual. Essa mediação é compreendida pela “relação de motivação” na qual vão se
relacionar o passado individual e as circunstâncias objetivas, de onde vai “brotar” a
decisão. Podemos dizer então que a decisão não é “escolhida” entre uma alternativa
106
e outra deliberadamente, mas que ela é motivada pelo entrelaçamento inteligível
entre a história e a situação presente. Procuraremos esclarecer melhor esta ideia no
próximo capítulo.
3.4 O instante e a situação: a iniciativa
Como vimos, a decisão “brota” da relação de motivação que se estabelece
entre a história e a situação presente. Isto quer dizer que, com base nas suas
experiências vividas no mundo, o sujeito diante de uma situação, ou melhor, “dentro”
dela, toma uma decisão que pode manter a situação ou mudá-la; neste último caso,
poderíamos dizer que ele toma a iniciativa de fazer algo novo. O que vem a ser
essa iniciativa? Recolhido em Do texto à ação, Ricoeur escreve um pequeno ensaio
para esclarecer o que seja uma “iniciativa” que pode nos auxiliar a compreender no
que consistiria essa “tomada de decisão” do sujeito no pensamento de Merleau-
Ponty.
Logo no primeiro parágrafo, Ricoeur define: “a iniciativa é o presente vivo,
activo, operante, como réplica do presente visto, considerado, contemplado,
reflectido.” (RICOEUR, 1989, p. 259) Daí inicia sua reflexão sobre a iniciativa
considerando várias concepções de “presente” ao longo da história da filosofia,
colocando em relação algumas perspectivas concernentes ao tempo nas obras de
Agostinho, Kant, Husserl, Bergson e Heidegger. Estas perspectivas apontam para
alguns paradoxos que consistem basicamente na ideia do presente como oposição
ao passado e ao futuro ao mesmo tempo em que mostra o presente como
“passagem” e na ideia de oposição entre o presente e o instante; esta última
perspectiva, Ricoeur considera que nos conduz para uma consideração prática e é
basicamente a partir dela que o autor constrói sua concepção de iniciativa.
Esta perspectiva leva primordialmente em consideração o aspecto
intencional onde, no presente, temos como que ainda em nossas mãos o passado
que acabou de acontecer, assim como o futuro que está para acontecer, no sentido
das concepções husserlianas de retenção e protensão como vimos nos capítulos
anteriores. O presente, deste modo, não se mostra como um ponto numa cadeia de
instantes isolados alinhados sucessivamente; o presente se mostra “alinhavando”
passado e futuro continuamente. Nestes termos, a dialética temporal se realiza entre
passado e futuro entendidos como retenção e protensão.
107
Ricoeur denomina a retenção e a protensão respectivamente recência e
iminência e o instante, incidência; o presente consistiria na dialética entre a
incidência e a iminência-recência. Porém, segundo o autor, aqui se apresenta
novamente o paradoxo, como ele diz:
Enquanto a dialéctica iminência-recência-incidência é irrepresentável e apenas se diz obliquamente por ‘como se’, ‘de certa forma’, numa palavra, por metáforas, sem que nenhuma expressão literal possa ser fornecida relativamente àquilo de que a metáfora visivelmente se afastava, o instante é o único aspecto do tempo que, na circunstância, se deixa representar por um ponto sobre uma linha. (RICOEUR, 1989, p. 262)
Ricoeur observa que quando representamos o tempo, representamos um
período de tempo, ou seja, recortamos uma “parte” dele para nos referirmos a um
dia ou um ano, por exemplo; esta “parte” ou “período” tem um início e um fim que
são marcados por um instante onde esse período se inicia e outro instante onde ele
acaba. A ideia de uma “linha” sucessiva de instantes advém desse “recorte” que
fazemos do tempo, onde o instante seria representado por um ponto dentro dela;
esses pontos seriam isolados uns dos outros, com intervalos entre si, representando
interrupções entre um momento e outro. Segundo Ricoeur, essa ideia faz referência
ao movimento físico, onde poderíamos “pontuar” as mudanças que observamos;
essa correlação ao movimento físico nos faz pensar o instante como o “presente
vivo”, onde sentimos a espessura de iminência e de recência. Desta maneira,
segundo Ricoeur, se apresentam dois aspectos do tempo: “O primeiro é vivido
enquanto centrado-descentrado sobre o presente vivo, do qual dissemos que ele
tanto era passagem como origem, o segundo é representado como continuação de
‘agora’.” (RICOEUR, 1989, p. 262)
Ao primeiro, Ricoeur denomina “tempo fenomenológico” e ao segundo,
“tempo cosmológico. Isto na medida em que o primeiro é atingido reflexivamente e o
segundo objectivamente.” (RICOEUR, 1989, p. 263) Ricoeur irá explicar que este
“desdobramento é especulativamente instransponível”: é que o presente vivido
somente pode ser representado por meio da “linha de presentes” do tempo físico
que, por sua vez, depende do entendimento para ser organizado linearmente e “no
qual o instante é apenas um ponto”. Ricoeur então sustenta “esta polaridade entre o
presente vivo com as suas retenções e as suas protensões e o instante nascido da
interrupção pontual do movimento como especulativamente intransponível.”
(RICOEUR, 1989, p. 263)
108
Podemos correlacionar as concepções de “tempo fenomenológico” e de
“tempo cosmológico” de Ricoeur às concepções de “campo de presença” e de
“sucessão de agoras” de Merleau-Ponty: tanto na concepção de “tempo
fenomenológico” quanto na de “campo de presença”, se apresenta a ideia do tempo
como movimento de passagem realizado pelo sujeito, onde, no instante presente de
Merleau-Ponty (a incidência de Ricoeur), como dissemos no capítulo 2, ele ainda
“morde” seu passado recente e já vislumbra o seu futuro próximo (a iminência-
recência de Ricoeur); na ideia de “tempo cosmológico” (objetivo) de Ricoeur,
encontramos a ideia de “sucessão de agoras” de que fala Merleau-Ponty.
Para os dois filósofos, abarcamos a unidade do fluxo temporal pela ideia de
sucessão de instantes, instaurando o instante presente como um ponto na linha do
tempo. Assim, o tempo vivido (o fenomenológico de Ricoeur ou o campo de
presença de Merleau-Ponty) somente é representado objetivando-se no tempo do
mundo (cosmológico). (RICOEUR, 1989, p. 263)
Segundo Ricoeur, esses dois aspectos do tempo não se excluem um ao
outro: o tempo apreendido filosoficamente consistiria na relação de tensão entre
essas duas perspectivas, a do presente vivido (com sua iminência-recência) e o
instante pontual (incidência como interrupção). Segundo o autor, a noção de
iniciativa traz a solução que a prática oferece a este paradoxo especulativo, fazendo
uma síntese entre o presente vivo e o instante. Como se dá essa síntese?
Ricoeur inicia a sua argumentação para esclarecimento dessa síntese
apresentando a constituição de um “terceiro tempo”, o tempo calendário, como
sendo aquele no qual estabelecemos primeiramente um acontecimento que
inaugura uma nova era (como o nascimento de Cristo) e posteriormente a divisão
em “unidades de medida” relativas aos fenômenos cósmicos (dia, ano etc.). Nesse
terceiro tempo, entrelaçamos os dois primeiros com seus aspectos “físico” e
“fenomenológico”. No aspecto físico, encontramos a ideia do tempo linear, sendo
possível fazer recortes de períodos, sem a necessidade de uma “significação do
presente”; no aspecto fenomenológico, se insere o acontecimento como algo
significativo que deu origem a uma nova era. No terceiro tempo, encontramos a
possibilidade de “datar” o instante em que aconteceu um fato novo (significativo) que
deu início a uma nova era. Segundo Ricoeur, é no fenômeno de “datação” que
fazemos a síntese entre tempo cosmológico e fenomenológico: “De facto, pertence à
noção de data fazer coincidir um instante qualquer com um quase-presente, quer
109
dizer, um hoje virtual para o qual podemos transportar-nos pela imaginação.”
(RICOEUR, 1989, p. 265) Desta maneira, é possível fazer com que o instante do fato
significativo seja atrelado a uma posição objetiva no tempo cosmológico,
correspondendo a uma situação subjetiva que se relacione com esse acontecimento
no passado ou no futuro. Esta ideia remete novamente à concepção de
temporalidade de Merleau-Ponty, como vimos no capítulo 2: o tempo não se
encontra nem no acontecimento nem na data do calendário em si. A Independência
do Brasil está no nosso passado, não no passado do mundo, assim como, o dia
sete de setembro não é diferente do dia oito de setembro para os dias do calendário:
o dia sete de setembro é marcado como o início de uma nova era política na história
do Brasil a partir do momento em que alguém lhe dá esse significado, interpretando-
o e inscrevendo essa data como significativa na sucessão dos dias do calendário. É
nessa ideia de um “ponto”, um momento a partir do qual alguém dá um novo sentido
ao rumo dos acontecimentos, que Ricoeur irá desenvolver sua concepção de
iniciativa, tanto no plano individual como no plano coletivo.
Ricoeur diz que, no plano individual, quando nascemos se dá o início de uma
história, mas uma história para os outros; nascemos sem escolher como, quando ou
onde e, desta maneira, “acatamos” uma passividade ao nascer. Porém, a partir de
nosso nascimento, Ricoeur destaca duas “categorias” de nosso agir: ver e fazer. O
“ver” consistiria em “olhar para o passado”, enquanto que o “fazer” consistiria na
iniciativa que podemos tomar no presente:
É talvez porque o olhar para trás, para o passado, faz prevalecer a retrospecção, logo, a vista, a visão sobre o nosso ser afectado pela eficiência das coisas passadas que nós tendemos igualmente a pensar o presente em termos de visão, de expectação (spection). É absolutamente necessário revolucionar a ordem de prioridade entre ver e fazer, e pensar o começo como acto de começar. Já não o que acontece, mas o que fazemos acontecer. (RICOEUR, 1989, p. 267)
Nesse sentido, Ricoeur faz referência explícita ao “eu posso” de Merleau-
Ponty, pois na sua concepção de “corpo próprio” se dá a conjunção entre “ordem do
mundo e o curso do vivido”, fazendo a mediação entre “físico e psíquico, cósmico e
subjetivo”. (RICOEUR, 1989, p. 267) Na concepção merleau-pontyana de “corpo
próprio”, segundo Ricoeur, encontra-se o campo onde a iniciativa vai atuar: um
campo onde se apresentam o poder de agir ou não frente aos obstáculos
encontrados na situação presente. A iniciativa então pode ser compreendida como
110
o poder de fazer algo numa situação que se dá com a presença do ser no mundo
(por meio do “corpo próprio” no pensamento de Merleau-Ponty). Como dissemos nos
primeiros capítulos, segundo Merleau-Ponty, antes de dar significações, existimos,
vivemos em uma esfera pré-reflexiva numa “teia intencional”. “Entrelaçando” os dois
filósofos, poderíamos dizer que ao expressar minha intenção por meio do meu corpo
próprio, exerço o poder da iniciativa: irrompo, faço surgir um novo sentido, minha
intenção, porém num primeiro momento, para Merleau-Ponty, ainda isenta de
significações. Somente a partir de minha interação com o outro, na
intersubjetividade, num segundo momento, é que surgirão as significações que, daí
em diante, integrarão a sedimentação do mundo histórico.
Mostra-se aqui novamente, na concepção de corpo próprio de Merleau-Ponty,
uma ambigüidade desse corpo, uma vez que, de um lado ele é em parte
determinado pelo contexto no qual está inserido e, de outro lado, ele tem o poder de
irromper em meio a esse contexto, por meio de sua iniciativa e fazer surgir uma nova
situação. Esse modo de ser, que permite uma relação entre determinação e
situação, vai fundar a concepção de liberdade de Merleau-Ponty (o que veremos
mais detalhadamente no próximo capítulo).
Não somos totalmente livres, pois não somos somente iniciativa. Certamente,
a nossa liberdade consiste no poder da iniciativa; porém, somente exercemos esse
poder sob a condição de existirmos num mundo geral, onde essa nossa iniciativa
possa se destacar. Sobre esse “mundo geral”, diz Marcus Sacrini A. Ferraz:
A existência anônima não é inerte, ela não pode ser reduzida a uma coisa. Ela exprime a subjetividade em seus movimentos mais básicos, ela é condição necessária para a manifestação humana no mundo; porém, não é de modo algum suficiente [...] exige a participação dos projetos pessoais para se completar. (FERRAZ, 2006, p. 113)
Generalidade e individualidade se constituem reciprocamente, por meio do
corpo próprio e da temporalidade; essa relação gera a situação a partir da qual o
sujeito toma a sua decisão, toma a iniciativa de fazer algo. Nesse sentido, para
Ricoeur, vislumbra-se na concepção de iniciativa, a ideia de uma ação livre do
sujeito, no “poder fazer” algo novo com base na “circunstância” na qual está inserido,
indo ao encontro da ideia de Merleau-Ponty, do sujeito em situação que dá um novo
sentido ao curso dos acontecimentos a partir das sedimentações histórico-culturais
nas quais está inserido.
111
Esta concepção de iniciativa no plano individual é estendida, por Ricoeur, ao
plano coletivo, dando as mesmas perspectivas para a compreensão da história, ou
seja, um caráter de imprevisibilidade ao futuro histórico, de não determinação pelo
passado.
A cada instante, um sujeito inaugura, com sua iniciativa, um novo sentido no
e para o mundo. Esse movimento, essa ação não diz respeito somente à sua
história individual sobre a qual, a cada instante, se fecharia um ciclo e se começaria
um novo ciclo particular para esse sujeito: essa iniciativa abre também um novo
sentido para a história do mundo se misturando, interagindo com uma infinidade de
outras iniciativas anteriores e atuais. Diz Hélio S. Gentil quando explica a ação do
sujeito/agente de Ricoeur:
Podemos pensar que, considerando o terreno sedimentado ao longo do tempo pela história dos homens anterior ao nascimento desse sujeito/agente, há na realidade histórica que ele encontra, trilhas definidas, leitos mais marcados, escavados mais profundamente por inumeráveis pés que por aí seguiram, e que é sempre possível seguir por eles, deixar-se levar por esse sulcos – ainda que mesmo aqui haja uma decisão, um pôr-se em movimento, uma iniciativa de cuja responsabilidade o sujeito/agente não pode se eximir. Mas há também a possibilidade de transgredir esses veios historicamente marcados, fazer buracos nas paredes do labirinto ou saltar pelas cercas que delimitam esses caminhos já trilhados por nossos antecessores. (GENTIL, 2006, p. 45)
Desta maneira, a concepção de iniciativa de Ricoeur diz que ela brota da
relação entre sujeito e mundo, da mesma maneira que a concepção de decisão de
Merleau-Ponty: a situação advém da presença de um sujeito imerso num mundo que
consiste numa sedimentação histórica, cultural. A estrutura do sujeito comporta
estes dois momentos: num o sujeito dá sentido ao mundo e noutro ele se nutre dos
sentidos sedimentados no mundo. Não ocorre a primazia de uma interioridade que
“decide” sobre o exterior, nem a primazia de uma exterioridade que “determina” o
interior. Diz Merleau-Ponty:
O mundo está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído. Sob o primeiro aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua. Em particular, mesmo nossas iniciativas, mesmo as situações que escolhemos, uma vez assumidas, nos conduzem como que por benevolência. A generalidade do “papel” e da situação vem em auxílio da decisão e, nessa troca entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a “parte da situação” e a “parte da liberdade”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 608)
112
No meu modo de ser, certamente encontram-se aspectos culturais advindos
da sedimentação histórica que não me pertenciam; porém, aquém desses elementos
os quais adquiri, é inerente ao meu modo de ser fazer surgir algo novo, algo que
não estava ali. Certo, me utilizei da linguagem existente, vivi em determinados
contextos, experimentei, compartilhei, convivi num mundo para poder ser, existir.
Mas, para fazer surgir algo que ainda não existe e, admitindo-se que “nada vem do
nada”, é preciso que o sujeito tenha o poder de transformar o que já existe para se
ter algo novo. O poder de transformar do sujeito é fator primordial para a concepção
de liberdade de Merleau-Ponty: no seu modo de ser, encontra-se o poder de dar um
novo sentido ao que e do que ele se “nutre”. Nesse contínuo movimento de
retomada e de relançar-se, não se delimitaria a fronteira onde se iniciam e onde
terminam as ações de retomada e de relançamento, as duas coisas acontecem ao
mesmo tempo: a decisão brota do próprio ciclo retomada-relançamento, num só
movimento. Portanto, não decido entre uma coisa e outra: exerço a decisão
enquanto faço surgir esse ciclo dentro do campo fenomenal estando presente no
mundo por meio de meu corpo.
Com base no acima exposto e retomando a ideia de motivação, podemos
dizer que, como vimos no capítulo da temporalidade, Merleau-Ponty concebe o
sujeito como tempo, como campo de presença que entrelaça passado e futuro
estando presente no mundo; este entrelaçamento se dá, no pensamento de Ricoeur,
no plano especulativo, na relação entre o tempo fenomenológico (vivido) e o tempo
cosmológico estabelecida com a criação de um terceiro tempo, o do calendário, que
permite que os acontecimentos para o sujeito no mundo tenham um sentido
intencional, ou seja, no lugar da sucessão de eventos, estes se encontram
interligados inteligivelmente, e na prática, pela ação, pela iniciativa. Como
explicamos anteriormente, no tempo calendário, com base em um acontecimento,
damos um sentido a um instante qualquer que, a partir daí, será marcado como
ponto inicial de uma nova era. Esse ponto inicial, portanto, marca o começo de algo
novo, da mesma maneira como o nosso nascimento no mundo, dá início a algo
novo. A partir do nosso nascimento, temos continuamente o poder de transformar,
de dar um novo sentido às sedimentações preexistentes no mundo pela ação e essa
ação consiste no que Ricoeur denomina iniciativa.
Sob a perspectiva de Merleau-Ponty, na contínua relação entre sujeito e
mundo, o entrelaçamento do sentido das experiências pessoais vividas pelo sujeito
113
com o sentido que ele dá às sedimentações histórico-culturais nas quais está
inserido vai gerar as motivações que darão condição para o sujeito tomar suas
decisões. É nesse entrelaçamento, que ele (o sujeito) sob a perspectiva de Ricoeur,
toma a iniciativa, ou sob a perspectiva de Merleau-Ponty, exerce a sua liberdade.
114
Capítulo 4: A liberdade
Parecemos tão livres e estamos tão encadeados... (Robert Browning)
Toda a geração ridiculariza a moda antiga, mas segue religiosamente a nova...
(Henry David Thoreau)
Observei o anjo gravado no mármore, até que eu o libertasse. (Michelangelo Buonarroti)
Com base nas explanações dos capítulos anteriores, no nosso ver, Merleau-
Ponty constrói sua argumentação sobre a liberdade partindo principalmente dos
seguintes elementos:
1) o sujeito encarnado e engajado (ser-no-mundo);
2) a intencionalidade: sentido existente já na esfera pré-reflexiva que se
expressa em significações a partir da interação com o mundo;
3) a temporalidade: inserindo a ambiguidade do ser corporal no deixar-de-
ser-para-vir-a-ser;
4) a intersubjetividade: contínua construção do mundo social, histórico-
cultural;
5) a crítica à oposição “determinismo x liberdade”: não existiria nem
determinismo nem liberdade absolutos.
Antes, porém, de explanar como os elementos acima se relacionam no
capítulo sobre a liberdade na Fenomenologia da percepção, examinaremos a
oposição “determinismo x liberdade”, considerando a oposição “causalidade x
casualidade”.
4.1 Casualidade x causalidade
Merleau-Ponty procura dissolver a contraposição entre determinismo e
liberdade desfazendo a ideia de causalidade, indo de encontro à ideia de que a
causalidade levaria ao determinismo enquanto que a liberdade se daria com a
inserção do acaso. Sob essa última perspectiva, não haveria possibilidade de
liberdade a partir do momento em que se admitisse que, no mundo, todos os
eventos e os seres que deles participam encontram-se concatenados em uma
cadeia causal. Casualidade e causalidade, entendidas assim, seriam termos
115
excludentes entre si. Em Merleau-Ponty, porém, estes termos não se contrapõem
completamente; poderíamos dizer que, para o autor, não existiria nem uma
causalidade, nem uma casualidade absolutas. Os dois termos fariam parte da
estrutura existencial, relacionando-se de modo dialético, complementando-se
mutuamente. Como se daria essa relação?
Embora Merleau-Ponty afirme logo no início do capítulo sobre a liberdade na
Fenomenologia da percepção que “é evidente que não é concebível nenhuma
relação de causalidade entre o sujeito e seu corpo, seu mundo ou sua sociedade”, a
partir do momento em que, como vimos nos capítulos anteriores, efetuamos
continuamente um movimento de retomada das sedimentações histórico-culturais,
poderíamos nos propor a fazer um “exercício” de supor que esse movimento de
retomada poderia ser visto como um “aspecto causal”, se estas sedimentações
consistissem única e exclusivamente no fator que determinasse a decisão do sujeito.
Segundo Merleau-Ponty, para podermos expressar o “novo”, nos nutrimos dessas
sedimentações e, portanto, não podemos afirmar que esse “novo” é totalmente
original; aliás, é tendo como fundo as sedimentações, com base nelas que ele pode
ser chamado de “novo”. Assim, o que Merleau-Ponty talvez queira mostrar é que
uma coisa pode decorrer de outra, mas não de forma determinada, previsível. O
sujeito insere algo de “novo”, de inédito no mundo, mas, para tanto, ele se encontra
numa situação que possibilita o surgimento desse novo; de certa forma, a situação
poderia ser vista, ao menos em parte, como a “causa” da nova coisa que surgiu,
porém, não é que dessa situação possa se dizer que necessariamente surge
sempre especificamente essa coisa nova que surgiu. O “novo” é dado pelo sujeito,
mas de modo contingente: ele depende da situação para fazer surgir o novo.
Poderíamos entender então que onde o pensamento objetivo veria um aspecto de
causalidade, Merleau-Ponty vê nas sedimentações existentes no mundo uma
condição de possibilidades do sujeito em situação fazer surgir o novo. Sabemos que
sujeito e mundo existem a partir da relação que estabelecem entre si e esta relação
é revelada em cada situação; é, portanto, na ideia de situação que devemos nos
focar para compreender a relação entre casualidade e causalidade. Em toda
situação, sujeito e mundo se modificam; nem um nem outro, em nenhum momento,
estão completamente constituídos. É como diz Merleau-Ponty:
116
O acontecimento de meu nascimento não passou, não caiu no nada à maneira de um acontecimento do mundo objetivo, ele envolvia um porvir, não como a causa determina seu efeito, mas como uma situação, uma vez armada, chega inevitavelmente a algum desenlace. Doravante havia um novo “ambiente”, o mundo recebia uma nova camada de significação. Na casa onde nasce uma criança, todos os objetos mudam de sentido, eles se põem a esperar dela um tratamento ainda indeterminado, alguém diferente e alguém a mais está ali, uma nova história, breve ou longa, acaba de ser fundada, um novo registro está aberto. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 545)
Na situação, se mostra certa ambiguidade uma vez que se apresentam, ao
mesmo tempo, a atividade e a passividade do sujeito na maneira com a qual ele se
relaciona com o mundo. Sujeito e mundo jamais estão completamente constituídos:
De um lado, só se pode falar em mundo sob o ponto de vista de alguém; de outro
lado, o sujeito somente pode atuar (poderíamos dizer “ser”) se estiver inserido em
uma situação no mundo, de onde passivamente possa receber as sedimentações
existentes para ativamente transformá-las. A passividade e a atividade do sujeito
não se contrapõem, antes, se complementam para realizar essa mútua constituição
entre sujeito e mundo; desta maneira, na passividade do sujeito onde se poderia
vislumbrar certa determinação pelas sedimentações das quais se apropria e na sua
atividade, pela sua capacidade de fazer surgir o novo, causalidade e casualidade
não são excludentes, mas sim elementos constitutivos da e na situação. É o que
indica Merleau-Ponty quando diz que nunca somos totalmente coisa e nunca somos
totalmente consciência:
Nascer é ao mesmo tempo nascer do mundo e nascer no mundo. O mundo está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído. Sob o primeiro aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 608)
Em cada situação, ocorre uma tomada de posição do sujeito em relação a
ela e somente graças a ela; porém, a tomada de posição do sujeito dá um novo
sentido à situação. Com a tomada de posição do sujeito, surge uma nova situação e
o ciclo se repete; situação e tomada de posição se relacionam de modo dialético e
poderíamos dizer que essa relação consiste na complementaridade entre
causalidade e casualidade que constituem o ciclo. Desta maneira, na história, nada
acontece por acaso, mas também nada é determinado. Como diz Merleau-Ponty:
Em um acontecimento considerado de perto, no momento em que é vivido, tudo parece caminhar ao acaso: a ambição deste, tal encontro favorável, tal circunstância local parecem ter
117
sido decisivos. Mas os acasos se compensam e eis que essa poeira de fatos se aglomera, desenha certa maneira de tomar posição a respeito da situação humana, desenha um acontecimento cujos contornos são definidos e do qual se pode falar. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 17)
Assim, a relação entre causalidade e casualidade que permeia a relação entre
sujeito e mundo consiste na estrutura do acontecimento; porém, Merleau-Ponty vai
mostrar que essa relação se dá pela intencionalidade e é nela que se dissolve a
ideia de causalidade. Para tanto, o autor retorna ao exame da experiência
perceptiva, fazendo a distinção entre esta e o ato do entendimento:
...em relação ao entendimento, o “alto” e o “baixo” só têm um sentido relativo, e o entendimento não poderia chocar-se com a orientação da paisagem como se ela fosse um obstáculo absoluto. Diante do entendimento, um quadrado é sempre um quadrado, quer repouse em uma de suas bases ou em um de seus vértices. Para a percepção, no segundo caso dificilmente ele é reconhecível. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 77)
Segundo Merleau-Ponty, “há uma significação do percebido que não tem
equivalente no universo do entendimento” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 77) e isto
seria ignorado pelo intelectualismo que, segundo o autor, equivocadamente
consideraria “como dado o universo determinado da ciência”, cabendo ao juízo a
explicação dos fatos percebidos. Segundo Merleau-Ponty, a Gestalttheorie mostra
que a percepção “não passa pelo meandro de uma consciência expressa do corpo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 78), considerando, porém, que as impressões
corporais, “não sendo signos ou razões em nossa percepção [...] são causas dessa
percepção.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 78)
Para dissociar a percepção de uma concepção meramente causal, Merleau-
Ponty parte do seguinte exemplo: “Um paciente cujos músculos óculo-motores estão
paralisados vê os objetos se deslocarem para a esquerda.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 78) Segundo Merleau-Ponty, para a psicologia clássica isso se daria por um
“raciocínio” da percepção; porém, para o autor:
...a consciência não se limita a receber um fenômeno ilusório inteiramente acabado que causas fisiológicas fora dela engendrariam. Para que a ilusão se produza, é preciso que o paciente tenha tido a intenção de olhar para a esquerda, e que tenha pensado mover seu olho [...] Os movimentos do corpo próprio são naturalmente investidos de certa significação perceptiva, eles formam, com os fenômenos exteriores, um sistema tão bem ligado que a percepção externa “leva em conta” o deslocamento dos órgãos perceptivos, encontra neles, senão a explicação expressa, pelo menos o motivo das mudanças que intervieram no espetáculo, e assim pode compreendê-las imediatamente. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 78)
118
É deste modo que devemos compreender a concepção de motivação no
pensamento de Merleau-Ponty; sujeito e mundo encontram-se “conectados” pela
percepção e essa percepção não é nem meramente “causada” pela ação de objetos
exteriores, nem exclusivamente explicada pela razão. Como Merleau-Ponty diz no
trecho acima, “os movimentos do corpo próprio são naturalmente investidos de certa
significação perceptiva” o que vai ao encontro da ideia de consciência perceptiva,
como vimos no capítulo 1. Entendemos assim que no ato de perceber se manifesta a
intenção do sujeito que, antes de ser explicada pela razão, se dá por um motivo.
Ainda com referência ao exemplo dado, Merleau-Ponty diz: “A intenção de mover o
olho e a docilidade da paisagem a esse movimento não são mais premissas ou
razões da ilusão. Mas elas são seus motivos.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 79) E
mais adiante: “...não há nenhuma razão para que um campanário me pareça menor
e mais distante a partir do momento em que posso ver melhor em seu detalhe os
declives e os campos que dele me separam. Não há razão, mas há um motivo.”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 80)
Segundo Merleau-Ponty, o pensamento objetivo “só conhece noções
alternativas”, definindo, a partir da experiência, “conceitos puros que se excluem”
como: a noção de extensão (exterioridade absoluta) e a noção do pensamento
(absoluto em si mesmo), a noção de signo vocal (fenômeno físico) e a noção de
significação (como “pensamento claro a si”), a noção de causa (“como determinante
exterior de seu efeito”) e a noção de razão (“como a lei de constituição intrínseca do
fenômeno”). (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 81) Mas, para Merleau-Ponty, como já
vimos na sua concepção de corpo próprio, nos deparamos com “uma consciência
que não possui a plena determinação de seus objetos, a de uma lógica vivida que
não dá conta de si mesma, e a de uma significação imanente que não é para si clara
e se conhece apenas pela experiência de certos signos naturais.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 81) A consciência perceptiva vai se fazendo em meio à experiência
vivida, onde signo e significação se encontram entrelaçados. Segundo Merleau-
Ponty, no pensamento objetivo, esses “fenômenos” são ignorados, uma vez que
fundamentando suas concepções nas “’evidências’ da ciência e do mundo, só pode
escolher entre a razão e a causa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 81), não levando em
consideração a motivação.
O que vem a ser então a motivação? Em seu livro Experiência do
pensamento, Marilena Chauí, ao falar em “motivo central da filosofia para Merleau-
119
Ponty”, faz uma analogia bastante esclarecedora para compreendermos a
concepção de motivação:
Merleau-Ponty fala em motivo central de uma filosofia, e não em conceito central. Como numa tapeçaria, numa renda, num quadro ou numa fuga, nos quais o motivo puxa, separa, une, enlaça e cruza fios, traços ou sons, configura um desenho ou tema a cuja volta se distribuem os outros fios, traços ou sons, e orienta o trabalho do artesão e do artista, assim também o motivo central de uma filosofia é constelação de palavras e de ideias numa configuração de sentido. O motivo é o que vai surgir e, ao mesmo tempo, o que guia esse surgimento. Donde seu segundo sentido: o motivo como origem. Não como uma “causa” passada, mas como inquietação que motiva a obra, sustentando seu fazer-se no presente. (CHAUÍ, 2002, p. 22)
A explicação que Chauí dá para “motivo central de uma filosofia” serve para
nos auxiliar a compreender a concepção de motivação de Merleau-Ponty: no
entrelaçamento entre sujeito e mundo, na troca efetiva de sentidos que se dá na
intersubjetividade, vão surgindo os motivos, que não consistem em causas que
determinariam as ações dos sujeitos, mas no tecido intencional no qual se
constituem essas relações.
O entrelaçamento entre fenômenos não se dá de maneira “exterior” como se
daria a causalidade na natureza, de acordo com o pensamento objetivo: Um
fenômeno se envolve com outro “pelo sentido que ele oferece – há uma razão de ser
que orienta o fluxo dos fenômenos sem estar explicitamente posta em nenhum
deles, um tipo de razão operante”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 81)
Na noção de motivação, encontramos a relação interna que se dá entre
sujeito e mundo; é no contato direto, pré-reflexivo, que se estabelece primeiramente
a situação de onde o sentido surge em meio ao “fazendo-se”. Como diz Merleau-
Ponty:
À medida que o fenômeno motivado se realiza, sua relação interna ao fenômeno motivante aparece, e, em lugar de apenas sucedê-lo, ele o explicita e o faz compreender, de maneira que ele parece ter preexistido ao seu próprio motivo. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 81)
No cogito tácito, vimos que antes mesmo de se expressar, o sujeito é
solicitado pelo mundo que percebe e nessa relação, por meio de sua
intencionalidade, já aponta para um sentido. A motivação consistiria primeiramente
nessa relação tácita entre sujeito e mundo e ela se manifesta na tomada de posição
do sujeito diante da situação na qual está inserido, por meio da percepção. Vejamos
como podemos melhor compreender a noção de motivação.
120
Em Compreender Merleau-Ponty, Eric Matthews faz uma explanação
bastante esclarecedora acerca da ideia de causalidade, utilizando um exemplo
mostrado por Merleau-Ponty em A estrutura do comportamento. Nesse exemplo,
Merleau-Ponty supõe que está “num quarto escuro e um foco luminoso aparece e se
move pela parede”. Tomando como base este exemplo, Merleau-Ponty faz a
distinção entre a explicação científica e a concepção fenomenológica para este
evento. Sob o ponto de vista científico, para descrever esse evento, buscar-se-ia
uma lei geral, por meio de experimentos planejados, que identificaria os efeitos das
ondas luminosas sobre a retina, dando-lhe a correspondente explicação causal;
chegar-se-ia assim a uma lei universal, objetivamente válida para todos. Com base
neste tipo de análise, poderia se conceber que o comportamento humano poderia
ser totalmente explicado pela ciência objetiva e que, portanto, seria perfeitamente
previsível, uma vez que seria sempre determinado por leis de cunho causal. Para
Merleau-Ponty, porém, este tipo de análise não esgota, não dá conta de explicar o
comportamento de homens ou animais, como se fossem objetos inanimados. No
caso do foco luminoso, por exemplo, Merleau-Ponty não diria que está vendo “ondas
luminosas que agem sobre a retina”, ele não estaria captando movimentos
vibratórios explicados pela física; ele estaria sim seguindo a luz que percebe. Não
se trataria simplesmente da ação de um objeto sobre outro, causando um efeito: o
fato das ondas luminosas agirem sobre a retina não explica o porquê, o que leva
alguém a seguir o movimento da luz. O que leva alguém a seguir o movimento da
luz? A consciência não é capaz de perceber “movimentos vibratórios”; ela percebe a
luz que de algum modo a solicita, atrai a sua atenção. Cientificamente, a ação de
um objeto sobre outro não abarca o sentido de uma finalidade ou de uma intenção;
finalidade e intenção são aspectos subjetivos. E para dar conta de explicar o que
constatamos acontecer no mundo, não podemos desprezar essas noções.
Nossas intenções são expressas em significações que não conseguem ser
explicadas meramente pela causalidade. Como diz Matthews a respeito da
compreensão das palavras:
Suponhamos que alguém diga “tenho medo”. Isso envolve a emissão de vários sons e podemos dar uma explicação causal de sua emissão segundo os processos que tiveram lugar em seu cérebro e as vibrações de suas cordas vocais, que levaram à produção e à projeção desses sons pela boca. Mas essa descrição causal não nos diria o que a emissão sonora significa – seja o sentido das palavras em português, seja o sentido da experiência de medo que elas servem para expressar. (MATTHEWS, 2010, p. 95)
121
No exemplo acima, para podermos compreender os dois sentidos da
significação de “tenho medo”, precisamos primeiramente partilhar o mesmo idioma e
depois comungar da mesma experiência com o outro, a sensação de medo.
Cientificamente, pode-se analisar o que acontece dentro de um organismo quando
se sente medo e se estabelecer conexões causais entre impulsos elétricos e nervos.
Porém, essas conexões causais não irão explicar porque alguém sente medo. As
significações não podem ser explicadas pelo entendimento causal.
Na visão objetivista, a consciência obedece ao modelo cartesiano e está
destacada de seu corpo; sob essa perspectiva, a ciência só pode analisar o
comportamento humano examinando pura e simplesmente movimentos físicos
exteriores. Dentro de seus pressupostos, a ciência não tem como levar em
consideração a intenção dessa consciência. Porém, como vimos no capítulo 1, em
Merleau-Ponty, a consciência perceptiva faz com que o sujeito seja um sujeito
encarnado. Desta maneira, quando vemos uma criança jogando bola, não estamos
constatando uma série de movimentos mecânicos de um organismo agindo sobre
outro objeto fazendo com que este se mova; percebemos ali uma criança brincando.
Compreendemos a intenção da criança, interpretando seu comportamento,
independentemente de analisar as conexões causais dos movimentos que estamos
observando.
Podemos entender, portanto, que Merleau-Ponty não descarta a
causalidade do modelo objetivista; ela serve aos propósitos da ciência para explicar
determinados fenômenos. Porém, ela não abarca a complexidade do
comportamento humano: as ações humanas são carregadas de intenções e
propósitos nem sempre determinados por relações causais. Como vimos
anteriormente, o sujeito como consciência encarnada no mundo supera o ser natural
pela capacidade de expressar-se com significações; por meio delas, o sujeito
encarnado se mistura ao mundo cultural, no contínuo processo de retomada e de
doação de novo sentido aos significados existentes, a fim de expressar suas
intenções, a partir da situação na qual está inserido apontando para um novo sentido
e, portanto, de modo nem causal, nem casual.
122
4.2 A liberdade “condicionada”
Como vimos acima, Merleau-Ponty dissolve o conceito de causalidade nos
assuntos humanos, ao mesmo tempo em que não admite para eles uma casualidade
absoluta. É nestes termos que ele inicia a sua argumentação sobre a liberdade,
partindo do fundamento o qual ele considera não poder duvidar: a sua própria
experiência. Como se dá a experiência de nós mesmos? Segundo Merleau-Ponty,
fazendo um movimento de introspecção para se auto-descrever, o sujeito não
encontra em si mesmo nenhum “estado de consciência”, nem nenhuma “qualificação
de qualquer tipo”. Isto porque, como vimos nos capítulos anteriores, se o sujeito
tenta se auto-descrever, independente de sua situação no mundo, ele não tem
“elementos”, significações com as quais se qualificar. Só conseguimos dar algum
significado a quaisquer de nossas qualificações se temos um parâmetro para
comparação com outras qualificações. Para poder se qualificar desta ou daquela
maneira, o sujeito precisa ter uma visão objetiva de si mesmo e não subjetiva.
Subjetivamente, um sujeito é tudo e nada: tudo porque “antes” de interagir com o
mundo sua consciência consiste numa generalidade sem limites e nada porque
“antes” de interagir com o mundo essa generalidade ainda é anônima. Assim, o
sujeito só consegue adquirir qualificações a partir da objetividade, sendo no mundo.
Um sujeito isolado, sem estar presente num mundo, não poderia ser nem bonito,
nem feio, nem inteligente, nem estúpido. Somos qualificados como “alguma coisa”, a
partir do momento em que somos para alguém, para o mundo. Neste caso então,
seríamos determinados pelo mundo? Segundo Merleau-Ponty, para sermos
passíveis de ser determinados por alguém ou pelo mundo, teríamos que ser uma
coisa; porém, não somos uma coisa, pois não podemos negar a vivência que temos
de nossa própria experiência, ou seja, nossa intencionalidade, a nossa “consciência
de” algo. Como podemos ao mesmo tempo ter consciência de algo e ser uma coisa?
Segundo Merleau-Ponty, para sermos livres, sob o ponto de vista do
intelectualismo, seria preciso sustentar a nossa condição de consciência absoluta,
doadora de sentido a partir de leis do puro entendimento, pois, a partir do momento
em que esses sentidos fossem determinados por algo exterior, isso anularia o nosso
poder absoluto, o que equivale dizer que não seríamos livres. Desta maneira, na
visão do intelectualismo, não seria concebível ser livre em alguns momentos e em
outros não; também não seria concebível uma graduação da liberdade, como ser um
123
pouco mais ou um pouco menos livre: ou se é livre ou não se é. Assim, para se
admitir essa liberdade, que só poderia ser integral, nada exterior poderia conduzir as
nossas ações, nada “exterior” poderia nos compelir a uma direção ou outra; se
nossas escolhas fossem embasadas apenas em influências advindas do mundo
(“exteriores” a nós), seríamos obrigados a admitir que a escolha foi feita por este ou
por aquele motivo e, neste caso, quem nos levou a agir foi um motivo externo e não
a nossa escolha. Em suma, no intelectualismo (para Merleau-Ponty), ou existe uma
liberdade absoluta ou uma determinação absoluta.
Mas então, também a ideia de motivação deveria ser excluída porque a
escolha que fazemos seria justificada por algum motivo?
Merleau-Ponty refuta essa perspectiva de escolha-justificada da seguinte
forma: “O pretenso motivo não pesa em minha decisão, ao contrário é minha decisão
que lhe empresta sua força.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 582).
Vejamos como Merleau-Ponty explica essa afirmação.
Como vimos no capítulo 3, somos um ser que se faz numa história, a partir da
retomada de sedimentações do passado e da relação com os outros. Segundo
Merleau-Ponty, nessa relação com os outros, seríamos livres para colocar o outro
como uma consciência capaz de nos conceber como sujeito ou capaz de nos
conceber como coisa, da mesma maneira que podemos concebê-lo como outro
sujeito ou como coisa. Esta escolha (ou mesmo a justificação que damos para ver o
outro de certo modo) não é pré-reflexiva; não é uma consciência pura que faz a
distinção e, por assim dizer, “escolhe”. Para fazer esta escolha, já partiríamos de
alguns preconceitos, algumas significações que retiramos do mundo. Também não
se trataria de fazer uma análise dos motivos que nos levam a decidir se o outro é
sujeito ou coisa: Eu o percebo como sujeito e, a partir daí, justifico os motivos pelos
quais ele é um sujeito.
O equívoco, segundo Merleau-Ponty, consiste em achar que para fazermos
esta escolha, pensaríamos deliberar com base em certos motivos, quando, o que
ocorreria de fato, seria o oposto: seria da nossa decisão que se determinaria quais
os motivos mais fortes; seria a nossa decisão que justificaria os motivos. Como diz
Merleau-Ponty: “Na realidade, a deliberação decorre da decisão, é minha decisão
secreta que faz os motivos aparecerem e nem mesmo se conceberia o que pode ser
a força de um motivo sem uma decisão que ele confirma ou contraria.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 583) Segundo Merleau-Ponty, sob essa perspectiva, damos maior
124
ou menor força aos supostos motivos depois de já havermos tomado nossa decisão,
ou seja, determinamos quais motivos melhor se adéquam como justificação para a
nossa decisão, dando a estes, assim, maior força.
Merleau-Ponty dá como exemplo o momento em que renunciamos a um
projeto; enquanto não tomamos a decisão de renunciar a ele, os motivos para
mantê-lo são fortes, mas, a partir do momento que desistimos, eles perdem sua
força para dar lugar a outros motivos. Se quiséssemos mudar o valor que damos a
certos motivos em detrimentos de outros, deveríamos nos posicionar no tempo no
instante anterior ao qual a decisão ainda não estava tomada, mantê-lo em suspenso;
nesse momento, todas as justificativas, todos os motivos teriam igual peso. Porém,
no momento em que deliberamos, não efetuamos essa suspensão do tempo, na
qual todos os motivos flutuariam ali em aberto, como um mar de possibilidades; no
momento em que surge a decisão, ela se apresenta fechada e é a partir daí que
construímos o que teria sido a nossa deliberação, dando maior força a certos
motivos, dando-lhes significações coerentes que justifiquem a nossa decisão.
A decisão normalmente é entendida como um ato voluntário, onde
pesaríamos os prós e os contras para depois escolhermos livremente entre as
alternativas; porém, o ato voluntário, na verdade, no entendimento de Merleau-
Ponty, não é uma livre escolha entre motivos mais fortes e mais fracos; nós o
realizamos quando vamos contra uma tendência que se impõe: eis a nossa
verdadeira decisão.
A liberdade, portanto, não seria, como comumente se pensa, um ato
voluntário? Na compreensão de Merleau-Ponty, se a liberdade fosse um ato
voluntário, poderíamos “escolher”, por exemplo, o que gostaríamos de ser; como ele
exemplifica: posso ser guerreiro ou sedutor. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 584)
Porém, para poder efetuar essa escolha, eu teria que poder ser genuinamente
ambas as coisas, quando, na realidade, somos o que somos (o que fomos fazendo
de nós mesmos vivendo em relação com o mundo) e o ato voluntário só se
vislumbra na medida em que tentamos ir contra a decisão que já está tomada, ou
seja, o que somos. Ora, se somos a decisão, não fazemos escolhas; apenas
justificamos como escolhas aquilo que somos (e o que somos naquele momento,
uma vez que estamos sempre abertos ao porvir). O que Merleau-Ponty passa a
avaliar aqui, é que, entendida desse ponto de vista, seria a liberdade que imporia
seus próprios limites e esse seria o sentido de ser livre: ter estabelecido seus
125
próprios limites. Estabeleço meus próprios limites, quando me coloco com um
sentido no mundo e, nesse movimento, aponto aquilo que quero superar, quais são
os limites a serem transpostos. O sentido das coisas, do mundo, só existiria por meio
de um sujeito que se faz presente nele. Como diz Merleau-Ponty: “Como é ele que,
surgindo, faz aparecer sentido e valor nas coisas, e como nenhuma coisa pode
atingi-lo senão fazendo-se, por ele, sentido e valor, não existe ação das coisas sobre
o sujeito, só existe uma significação (no sentido ativo), uma Sinngebung16
centrífuga.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 584) Sendo somente a partir do sujeito
que se atribui sentido às coisas, não faria sentido a ideia de que as coisas agem
sobre o sujeito por elas mesmas independentemente; não faria sentido a plena
passividade do sujeito perante as coisas, já que é este sujeito que lhes dá sentido.
Portanto, o sentido do conceito de escolha como o resultado de uma
deliberação racional que tem como justificativa a causalidade, não seria coerente
com este sujeito consciente de si mesmo, consciente de determinar a sua própria
liberdade, que não poderia nunca ser absoluta como uma plenitude sem limites,
quando estes limites, ou estariam todos sob nosso controle ou então, nenhum
estaria. Nesta concepção, inclusive a ideia de escolha desapareceria e,
contraditoriamente, é na ideia de escolha que vislumbramos o sentido de liberdade:
poder escolher é poder exercer uma ação livre e isso só é possível dentro de uma
situação na qual a liberdade possa atuar. Uma liberdade que não precisa ser
exercida porque já está implícita no ser, ou seja, a consciência de que a cada
instante, em cada ação, temos a certeza de encontrar uma nova possibilidade de
liberdade, torna a liberdade algo sem sentido.
Porém, nenhum instante é fechado; um instante se entrelaça ao seu instante
anterior e ao seu instante seguinte que, por meio da temporalidade, por meio da
retomada do sentido anterior dentro da situação presente, aponta para um novo
sentido, fazendo com que o instante do porvir esteja sempre em aberto e é isso que
garante uma contínua renovação da liberdade. Mesmo quando fazemos um recorte
temporal, uma ruptura na “cadeia de instantes”, já no poder de interromper, está
intrínseco o poder de recomeçar. A liberdade só tem sentido se considerarmos um
porvir sempre em aberto. Mas, mais uma vez, Merleau-Ponty ressalta que não
devemos confundir essa liberdade como potencialidade de escolhas que
supostamente deliberamos fazer, dentro de um campo de possibilidades (esse seria
o modelo tradicional de liberdade); como ele diz: “a escolha verdadeira é a escolha _________________________
16 Sinngebung: Em alemão, doação, atribuição de sentido.
126
de nosso caráter inteiro e de nossa maneira de ser no mundo.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 587)
Essa escolha verdadeira, segundo Merleau-Ponty, ou seria fechada em si
mesma consistindo no próprio surgimento do nosso ser no mundo, o que
poderíamos chamar de destino, ou seria realmente uma escolha, no sentido de
fundarmos a nossa existência numa potencialidade de contínua renovação de si a
cada instante, porém sempre num fazendo-se a partir do mundo. Para Merleau-
Ponty, a liberdade consistiria nessa “troca efetiva”.
Para fundamentar esta “troca efetiva”, Merleau-Ponty vê a necessidade de
estabelecer uma Sinn-Gebung de duas mãos, na qual não só a consciência atribua
sentido às coisas, mas que, ao mesmo tempo, retire suas significações dessas
mesmas coisas. Todas as significações que damos ou retiramos do mundo advêm
de nossas percepções e Merleau-Ponty considera que mesmo que a percepção seja
ambígua e que às vezes nos revele uma face de uma coisa, outras vezes outra, isso
só reafirma a nossa capacidade de darmos diversas significações a uma mesma
coisa, por meio de nossa intencionalidade. Se fôssemos uma consciência absoluta,
esta não admitiria intenções as quais desconhecesse, do mesmo modo que uma
liberdade absoluta não poderia em nenhum momento escolher, pois “preferir” uma
possibilidade em detrimento de outras, seria restringir o próprio campo de
possibilidades, ou seja, uma liberdade absoluta não poderia impor nenhuma
restrição a si mesma.
Se somos nós que damos significado às coisas e a nós mesmos, seríamos
também nós que determinaríamos os limites da liberdade, suas fronteiras? Para
Merleau-Ponty, não, porque se assim fosse, estas fronteiras não poderiam ser
entendidas como obstáculos à liberdade, uma vez que fariam parte dela. Melhor
dizendo, se sou eu que determino meus limites, estes nunca poderão realmente ser
considerados limites para mim, uma vez que, a qualquer momento, posso mudá-los.
Para que alguém possa realizar uma ação livre, é necessário que existam limites a
serem superados, mas estes limites não podem ter sido colocados por esse alguém,
pois não seriam limites de fato e não haveria razão para se falar em ação livre. Esta
seria o que Merleau-Ponty chama de uma “liberdade (já) adquirida”:
Uma liberdade que não precisa realizar-se porque está adquirida não poderia engajar-se assim: ela sabe muito bem que o instante seguinte a encontrará, de qualquer maneira, igualmente livre, igualmente pouco fixada [...] Se a liberdade é liberdade de fazer, é preciso que aquilo que
127
ela faz não seja desfeito em seguida por uma liberdade nova. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 586)
Aqui se insere a concepção de temporalidade de Merleau-Ponty. O nosso ser
temporalidade faz com que, a cada novo instante, estejamos abertos ao porvir;
porém, o sentido de nossas ações só é apreensível porque cada instante não está
fechado e não é isolado: o fim de um instante já é o início do próximo de modo
inteligível. A cada novo instante se realiza um ato de liberdade, onde temos a
possibilidade de nos “desvencilhar” do projeto anterior e reabrir um novo projeto,
porém, sempre num sentido de transformação de algo que já está colocado pelo
modo de ser do sujeito que inclui o seu passado; não existe uma ruptura no sentido
e sim um desdobramento.
A liberdade não seria possível sem se admitir que existam situações em
aberto, um porvir não determinado onde ela possa acontecer. Portanto, a liberdade
somente é possível dentro de um campo que sirva de fundo, ou nas palavras do
autor: “...que para ela existam possíveis privilegiados ou realidades que tendem a
perseverar no ser.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 587) Dentro desse campo, se
delineiam os limites para essa liberdade que não são postos por ela; e são postos
por quem ou pelo que? Pelo mundo. Porém, não somos nós que damos sentido e
significado ao mundo? É por esta razão que Merleau-Ponty irá dizer que
“precisamos retomar a análise da Sinn-Gebung e mostrar como ela pode ser ao
mesmo tempo centrífuga e centrípeta.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 588)
Um fato pode ser considerado como um obstáculo para alguém e um
facilitador para outro alguém, em certo momento; o fato em si não é nem obstáculo,
nem facilitador para ninguém. É na perspectiva de um sujeito que toma um ou outro
sentido, em certa situação; no momento seguinte, na relação entre o sujeito e o
fato, ele pode passar de obstáculo a facilitador e vice-versa. A liberdade, portanto,
não se apresenta com o estabelecimento de limites que se “oponham” a ela; ela
apenas delineia o que se apresenta como obstáculo ou não, em determinada
situação para alguém. Portanto, sem um sujeito que dê sentido à situação, não
existiriam nem “lacunas”, nem “obstáculos”. Mas então, novamente, esses
obstáculos seriam colocados apenas pelo sujeito?
Merleau-Ponty vai responder essa questão estabelecendo uma distinção
entre o que ele chama de “intenções expressas” e “intenções gerais”. As intenções
expressas seriam as puramente subjetivas, tendo em vista apenas o ponto de vista
128
individual de um sujeito; já as intenções gerais são aquelas nas quais esses pontos
de vista individuais são compartilhados entre diversos sujeitos (na
intersubjetividade). Um cubo será percebido como um cubo, por qualquer sujeito, em
qualquer situação, mesmo que as percepções desse cubo para cada sujeito não
sejam as mesmas. Ao que Merleau-Ponty acrescenta:
É verdade que as estruturas perceptivas não se impõem sempre: algumas são ambíguas. Mas elas nos revelam melhor ainda a presença em nós de uma valorização espontânea: pois elas são figuras flutuantes que propõem alternadamente diferentes significações. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 590)
É como naquelas conhecidas figuras normalmente utilizadas para ilustrar a
ideia de Gestalt:
Observando a figura, conseguimos, nas palavras de Merleau-Ponty,
“desagregar uma forma olhando-a em sentido contrário”. (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 590) Isto não quer dizer que “escolhemos” qual figura olhar, como se tivéssemos a
priori a representação das duas figuras em nossa mente; o que temos é a
capacidade, o poder de “mudar o olhar” e percebê-las alternadamente: é desta
maneira que a liberdade se apresenta, ou seja, como um campo onde nossa decisão
possa atuar. Quando decido ver os rostos, dou maior força ao branco; quando
decido ver o cálice, dou maior força ao preto. Eu não vejo os rostos por causa do
branco, porque o branco seria mais forte, nem vice-versa no caso do preto. Sou eu
que dou mais força ao branco ou ao preto, dependendo da figura (cálice ou rostos) à
qual dirijo a minha atenção. E, ainda é preciso salientar: eu só consigo ver “rostos” e
“cálice” porque estes são significados que adquiri previamente no mundo; “rostos” e
129
“cálice” não são coisas das quais eu teria uma representação anterior à minha
experiência no mundo.
A figura como um todo se apresenta para mim como um campo; mas ela só
adquire um sentido por meio da minha intencionalidade. Para tanto, o sujeito não
permanece num estado suspenso (atemporal), como uma consciência absoluta que
pudesse apreender a figura como um todo. É percebendo-a (sensorialmente) que
ele lhe dá um sentido, em outras palavras, é sendo no mundo que isso se torna
possível. Como diz Merleau-Ponty:
Portanto, é verdade que não existem obstáculos em si, mas o eu que os qualifica como tais não é um sujeito acósmico, ele se precede a si mesmo junto às coisas para dar-lhes figura de coisas. Existe um sentido autóctone do mundo, que se constitui no comércio de nossa existência encarnada com ele, e que forma o solo de toda Sinngebung decisória. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 591)
Isto quer dizer que os diferentes significados não são dados nem somente
pelas coisas, nem somente pelo sujeito, mas da relação entre sujeito e mundo. O
exemplo da figura acima pode ser estendido por analogia a todas as outras
“valorizações” humanas. Porém, existe mais um fator importante a ser considerado
na decisão. Mantendo-se ainda no exemplo da figura acima, poderíamos imaginar
que, observando-a, um sujeito teria mais “propensão” a visualizar os rostos,
enquanto outro teria mais “propensão” a visualizar o cálice. Por que isso se daria?
Segundo Merleau-Ponty, é que “no modo de ser” de cada sujeito, no decorrer
de sua vida, vão se sedimentando certas “posturas” que o levam a confirmar cada
vez mais o seu modo de ser, dando maior probabilidade a certa atitude em
detrimento de outra. Expliquemos com um exemplo que Merleau-Ponty nos dá:
“Após ter construído nossa vida sobre um complexo de inferioridade continuamente
retomado durante vinte anos, é pouco provável que mudemos.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 592)
Segundo Merleau-Ponty, na visão do racionalismo, a probabilidade não é um
dado que corresponda a nenhum “acontecimento concreto”, uma vez que “provável”
não indica seguramente nada; o que conta para o racionalismo é o “sim” ou o “não”
para fins estatísticos. Com base no acúmulo de dados, poder-se-ia prever o que é
mais provável que aconteça, mas, enquanto provável, uma coisa não existiria, ou
seja, uma coisa que esteja num estado “provável”, não estaria em nenhum estado
definido. Por exemplo: “É provável que eu termine esta dissertação nos próximos
130
meses.” Isto não quer dizer nem que eu vá, nem que eu não vá terminar esta
dissertação nos próximos meses. Porém, na concepção de Merleau-Ponty, eu não
posso negar que essa é a minha situação atual: ela existe. Obedecendo às minhas
inclinações (à minha “bagagem” sedimentada), eu tendo a terminar a dissertação
dentro do prazo previsto, mas não é certo que algum obstáculo não possa se impor,
seja ele “aparentemente” subjetivo (eu posso não me sentir mais capaz de terminá-la
por ter esgotado meu potencial), seja ele “aparentemente” objetivo (um
acontecimento não previsto por mim pode me levar a adiar o projeto ou abortá-lo).
“Aparentemente”, porque, vale lembrar que nem o aspecto subjetivo, nem o objetivo
o são por inteiro: se não me sinto mais capaz, cheguei a esta conclusão pela minha
experiência vivida no mundo, do mesmo modo que o acontecimento que me leva a
adiar o projeto assim o é porque eu lhe dou esse significado e essa força por minha
decisão. É nesse sentido que Merleau-Ponty diz que: “Nossa liberdade não destrói
nossa situação, mas se engrena a ela: nossa situação, enquanto vivemos, é aberta,
o que implica ao mesmo tempo que ela reclama modos de resolução privilegiados e
que por si mesma ela é impotente para causar algum.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
593)
Segundo Merleau-Ponty, da mesma maneira se dão nossas relações com a
história. Um indivíduo não decide ser operário ou burguês; ele vive como operário
ou burguês e é mediante sua relação com o mundo objetivo que ele se identifica
com a primeira ou com a segunda classe. Sua vivência como operário ou como
burguês faz com que ele tenha acumulado (sedimentado) certo modo habitual de
viver e de ver as coisas, que fará com que haja maior probabilidade que ele tome
atitudes de acordo com a classe com a qual se identifica. Porém, isto não é garantia
para que ele afirme ou não essa tendência. Não é certo (no sentido de necessário,
“claro e distinto”) que um operário, identificando-se com o proletariado, se torne um
revolucionário. Por outro lado, isto também não se daria de modo casual.
Como vimos no capítulo 3, é no seu “vivendo” em relação com outros que um
sujeito irá identificar aspectos de sua vida que são compartilhados por outros.
Desses aspectos é que vai surgir um sentido em comum para que esses sujeitos
passem a vivenciar e compartilhar seus anseios individuais como um grupo.
Merleau-Ponty dá como exemplo a situação de operários, diaristas e pequenos
arrendatários que, relacionando-se socialmente, identificam sua condição de
“explorados”:
131
A classe se realiza, e dizemos que uma situação é revolucionária quando a conexão que existe objetivamente entre as partes do proletariado (quer dizer, em última análise, a conexão que um observador absoluto teria reconhecido entre elas) é enfim vivida na percepção de um obstáculo comum à existência de todos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 596)
Se fôssemos totalmente determinados pela “sedimentação” histórica,
nasceríamos e certamente morreríamos proletários ou burgueses, vivendo nossa
condição de ser no mundo de ponta a ponta, sem possibilidade de mudança: jamais
seria possível uma revolução. A revolução é um exemplo da abertura à nova
possibilidade: ela é provável. Somos livres para aceitar ou superar nossa situação no
mundo e isso não se dá por uma necessidade da razão: não é preciso que se tenha
a “representação” da revolução para concretizá-la; é preciso vivenciá-la. A
possibilidade de aceitação e de superação de nossa situação consiste no nosso
viver na ambiguidade: é muito provável que um proletário se torne um revolucionário,
mas isto não é garantido.
É nesse sentido que Merleau-Ponty dá primazia ao “projeto existencial”, de
onde adviria o “projeto intelectual” e não vice-versa, como já vimos no capítulo 3. É
vivendo que o indivíduo decide confirmar ou contrariar sua situação: “Minha
decisão retoma um sentido espontâneo de minha vida, que ela pode confirmar ou
infirmar, mas não anular.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 600) A decisão, assim,
surge do existir do sujeito no mundo, da relação entre ele e o mundo; o “sentido
espontâneo” não advém de uma doação de sentido por parte de uma consciência
pura como na concepção idealista, nem dos fatos do mundo como na visão do
pensamento objetivo. Segundo Merleau-Ponty, tanto o idealismo como o
pensamento objetivo “ignoram a relação de motivação”.
Quanto à concepção de motivação, Sacrini nos diz que:
Na esfera subjetiva, ela significa a assunção resoluta daquilo que o sujeito era apenas por acaso: suas particularidades corporais ou sua posição no meio social. A liberdade acaba então por “reunir (...) o mundo natural e humano” (MERLEAU-PONTY, 1997c, p. 520), dimensões do mesmo movimento de constituição da individualidade. (FERRAZ, 2006, p. 216)
132
Sacrini parece conceber a motivação como “a assunção resoluta” do que
seria o acaso das “particularidades corporais”17 ou da “posição no meio social”,
sendo a liberdade que reúne as duas dimensões, mundo natural e humano, quando
Merleau-Ponty diz: “Só posso deixar a liberdade escapar se procuro ultrapassar
minha situação natural e social recusando-me a em primeiro lugar assumi-la, em vez
de, através dela, encontrar o mundo natural e humano.” (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 611)
No nosso entender, a motivação de que fala Merleau-Ponty consistiria no
entrelaçamento entre o sentido dado pela experiência individual do sujeito com os
sentidos que ele encontra na intersubjetividade. Nesse entrelaçamento, as
vivências que esse indivíduo experimenta no decorrer de sua vida se “misturam”
com o contexto social e as experiências coletivas, motivando sua decisão.
Poderíamos questionar então se na concepção de motivação de Merleau-Ponty ela
poderia referir-se somente às “particularidades corporais” ou se, ao invés disso, ela
adviria dos sentidos da vivência do sujeito, seja na sua dimensão ainda pré-
reflexiva, seja na intersubjetividade. Além disso, parece-nos que a motivação de que
fala Merleau-Ponty se dá na relação entre sujeito e mundo, considerando mais
propriamente que as dimensões “natural” e “humana” já se misturaram de modo
indiscernível a partir do surgimento do ser no mundo. Essa motivação adviria,
portanto, do entrelaçamento dos sentidos trocados na intersubjetividade no mundo
social, histórico-cultural e esse mundo histórico-cultural consistiria, no nosso
entender do pensamento de Merleau-Ponty, na superação do mundo natural.
Em seu texto “Merleau-Ponty e Sartre: notas sobre o conceito de liberdade”,
Leandro Cardim afirma, na mesma direção em que entendemos:
São nas relações entre as pessoas e o mundo circundante que as relações de motivação se dão, as quais não têm nenhum parentesco com a causalidade física. Para Husserl, a motivação é puramente intencional. Pela motivação, um fenômeno suscita outro não pela eficácia objetiva que liga os acontecimentos da natureza, mas pelo sentido que o fenômeno oferece. (CARDIM, p. 8)
_______________
17 Lembramos aqui que, mesmo no cogito tácito, na esfera pré-reflexiva, já se encontra a “intencionalidade operante”, na qual toda percepção já é impregnada de um sentido; esse sentido, portanto, surge da relação entre sujeito e mundo pela intencionalidade. O que talvez podemos compreender quando Sacrini fala de “particularidades corporais” é que elas consistiram numa certa “configuração” do corpo próprio onde atuaria a intencionalidade operante.
133
Desta maneira, a liberdade, para Merleau-Ponty, consistiria no poder do
sujeito de transformar, de dar um novo sentido, de manter ou mudar a situação na
qual está inserido, a partir de suas motivações, sendo ela (a liberdade),
“considerada concretamente”.
A passagem do mundo natural ao cultural, em Merleau-Ponty, se faz pela
capacidade do ser humano em expressar-se em linguagem e com ela acumular, no
decorrer da história, as sedimentações das quais o sujeito vai se “nutrir” para
expressar suas experiências, criando novas significações que expressem
apropriadamente o sentido de sua intenção nova, singular. A motivação, assim, seria
como dissemos acima, o que daria sentido à decisão do sujeito com base na sua
experiência vivida intersubjetivamente. No nosso ver, se se pode falar em uma “parte
exclusivamente subjetiva” da motivação esta talvez pudesse ser vinculada àquela
ideia de uma “predisposição natural do corpo próprio” que falamos no capítulo 1, a
qual poderíamos sugerir advinda do nosso surgimento no mundo numa certa
“configuração” espaço-temporal e com “determinações corporais” as quais não
escolhemos. No âmbito objetivo, no contexto sócio-cultural, a motivação terá a
mesma função que assume na esfera subjetiva, dando sentido à história coletiva.
Retomando a “relação de motivação” que, segundo Merleau-Ponty, seria
ignorada tanto pelo idealismo quanto pelo pensamento objetivo, lembremos que,
como vimos nos capítulos anteriores, pelo lado do idealismo, como consciência pura
(o “para si”), o sujeito somente poderia se qualificar objetivamente colocando-se na
posição de outro sujeito (o “para outrem”). Porém, para se admitir isto, teria de haver
uma maneira pela qual um sujeito poderia reconhecer o outro como outro sujeito e
não como coisa. Nesse sentido, Merleau-Ponty diz:
é preciso que na reflexão mais radical eu já apreenda em torno de minha individualidade absoluta como que um halo de generalidade ou como que uma atmosfera de “sociabilidade” [...] É preciso que os Para Si – eu para mim mesmo e outrem para si mesmo – se destaquem sobre um fundo de Para Outrem – eu para outrem e outrem para mim. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 601)
Merleau-Ponty parece afirmar aqui que, no “campo de presença” (que é o
sujeito), já se apresenta como fundo o mundo sócio-cultural sobre o qual ele vai se
erigir, sem o que ele não teria como afirmar nem a si mesmo, nem a outros como
seus “iguais”. Lembremos que, sem a relação com outrem, o sujeito não tem como
se qualificar; é na intersubjetividade que se fazem os sentidos individuais e coletivos.
134
O sentido pessoal de minha vida vai se formando na minha existência entrelaçada
com a de outros sujeitos e é compartilhando os diversos sentidos pessoais que
surge um sentido para história. Se um sujeito pudesse escolher a priori o que ser no
mundo, liberdade seria algo sem sentido, assim como na história, “tudo poderia sair
de tudo”: se num momento um indivíduo pode ser burguês e no momento seguinte
pode ser operário, da mesma forma, uma democracia poderia se tornar uma ditadura
no momento seguinte, sem nenhum motivo para tal. Os acontecimentos se
sucederiam sem um sentido. Não é essa a idéia de Merleau-Ponty:
Aquilo que se chama de sentido dos acontecimentos não é uma ideia que os produza nem o resultado fortuito de seu agrupamento. É o projeto concreto de um porvir que se elabora na coexistência social e no Se antes de qualquer decisão pessoal. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 602)
Nós damos sentidos aos acontecimentos, porém, eles nos são propostos por
esses mesmos acontecimentos: “A Sinn-gebung não é apenas centrífuga e é por
isso que o sujeito da história não é o indivíduo.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 603)
Poderíamos dizer que o sujeito da história é a intersubjetividade.
A cada momento, se abre um instante “suspenso” (no sentido de aberto a um
campo de possibilidades) onde o sentido da situação pode ser mantido ou alterado;
e isto é válido tanto para o indivíduo, como para a história. Porém, devemos lembrar
que a liberdade de se manter ou de se alterar uma situação depende, antes de tudo,
de que exista essa situação onde essa liberdade possa atuar. Essa situação não é
exclusivamente colocada por nós, como sujeitos isolados, mas por nós em meio a
uma sociedade. Nossa relação com outrem nos mostra duas “faces” do sujeito: a
generalidade (de onde provem as qualificações do sujeito) e a individualidade (a
subjetividade pura) do sujeito; estas não seriam duas concepções de sujeito, mas
sim duas dimensões. Como diz Merleau-Ponty:
A generalidade e a individualidade do sujeito, a subjetividade qualificada e a subjetividade pura, o anonimato do Se e o anonimato da consciência não são duas concepções do sujeito entre as quais a filosofia teria de escolher, mas dois momentos de uma estrutura única que é o sujeito concreto. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 604)
Estes dois momentos do sujeito concreto estão misturados um no outro; como
vimos nos capítulos anteriores, o ser humano não se reduz nem a uma consciência
pura, nem a um produto da história. Tudo o que ele percebe já se apresenta
135
impregnado de sentido; todos os seus pensamentos são formados tomando como
base significações existentes no mundo sócio-cultural. Desta maneira, esse sujeito
se faz pela intermediação entre a sua experiência pessoal (não acessível a outros
sujeitos) e o campo de experiências coletivas (a generalidade) de onde ele recebe a
concreção de sua própria experiência. Em O transcendental e o existente em
Merleau-Ponty, Sacrini esclarece elementos importantes dessa relação:
Os sujeitos não se comunicam apenas pela estrutura inteligível do mundo, mas também quanto à experiência vivida; eles não se isolam somente por suas experiências perceptivas, pois igualmente o fazem pela generalidade do auto-reconhecimento que não aceita a pluralidade das consciências. Essa mistura de papéis entre os âmbitos vivido e conhecido revela uma circulação profunda entre tais dimensões. É a experiência concreta que apresenta as esferas subjetiva e pré-pessoal unidas. Ali o sujeito não se apreende primeiramente como um contato absoluto consigo próprio para então colocar-se em situação, não se concebe como uma experiência anônima reunida a um foco inteligível. (FERRAZ, 2006, p. 213)
Em Merleau-Ponty, o ser temporal, estabelecendo a relação entre imanência
e transcendência, se coloca na situação para a liberdade se realizar. Sacrini afirma
ainda que “a liberdade é a transformação do que é engajamento tácito, do que é
apenas vivido, em situação explicitamente reconhecida.” (FERRAZ, 2006, p. 214)
A afirmação de Sacrini confirma que para Merleau-Ponty, o sujeito não toma
consciência de ser um sujeito histórico e de sua situação por meio de uma operação
de sua consciência pura, voltada sobre si mesma; a liberdade, o poder de
transformar, de dar um novo sentido, se realiza na situação, no intercâmbio com o
mundo; como diz Merleau-Ponty:
Não precisamos perguntar-nos por que o sujeito pensante ou a consciência se apercebe como homem ou como sujeito encarnado ou como sujeito histórico, e não devemos tratar esta apercepção como uma operação segunda que ele efetuaria a partir de sua existência absoluta: o fluxo absoluto se perfila sob seu próprio olhar como “uma consciência” ou como homem ou como sujeito encarnado porque ele é um campo de presença – presença a si, presença a outrem e ao mundo – e porque esta presença o lança no mundo natural e cultural a partir do qual ele se compreende. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 605)
Merleau-Ponty retoma aqui o aspecto fundamental de sua concepção de
sujeito: ele é um campo de presença. Como vimos no capítulo sobre a
temporalidade, é no presente que se dá a tensão entre imanência e transcendência,
no entrelaçamento do instante anterior com o instante seguinte, onde se dá, nas
palavras do autor: “a retomada de cada subjetividade por si mesma e das
subjetividades umas pelas outras na generalidade de uma natureza, a coesão de
136
uma vida intersubjetiva e de um mundo. O presente efetua a mediação do Para Si e
do Para Outrem, da individualidade e da generalidade.” (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 606)
Como vimos nos capítulos anteriores, um sujeito não é senão com outros
sujeitos; é nesse sentido que Merleau-Ponty irá dizer que somos um “campo
intersubjetivo”. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 606) Se somos um campo
intersubjetivo, se somos somente enquanto em relação com outrem e com o mundo,
então não podemos admitir que decidimos, por uma iniciativa absoluta, o que ser
nesse mundo.18 Eu, isolado do mundo, não sou nada e estando no mundo, menos
ainda posso ser nada, como diz Merleau-Ponty: “Estamos sempre no pleno, no ser,
assim como um rosto, mesmo em repouso, mesmo morto, está sempre condenado a
exprimir algo (há mortos espantados, calmos, discretos), e assim como o silêncio
ainda é uma modalidade do mundo sonoro.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 606)
O silêncio é uma modalidade do mundo sonoro, assim como o nada é uma
modalidade do ser; podemos estender essa ideia, por analogia, para a existência.
Tomemos de novo o exemplo da melodia: ela é expressa e vai adquirindo sentido,
no desenrolar de suas notas. Para que cada nota se destaque, entre elas existe um
intervalo (um silêncio) que, porém, não interrompe o fluxo melódico, antes, faz a
ligação entre as notas, direcionando seu sentido. O sujeito poderia ser entendido
como esse “fluxo”; a cada instante ele tem o poder de mudar (como na melodia, na
alternação das notas), mas isto não quer dizer que ele perca o seu sentido: seja qual
for a sua decisão, em cada momento, ela estará entrelaçada com todo o passado
desse sujeito e com o mundo no qual está inserido e é por meio desse
entrelaçamento que ele pode decidir dar um novo sentido à sua “melodia”, à sua
vida: a liberdade está nesse poder.
_______________
18 Esta ideia nos reporta ao pensamento sartriano. Segundo Cox, em Sartre, o “nada” separa o sujeito de si mesmo; ele se apresenta para a consciência como o que ela “foi”, não o que ela é. A consciência presente, portanto, seria sempre vazia de ser, enquanto o ser-em-si (o mundo) seria pleno de ser. Nesse sentido, a consciência se apresentaria como possibilidade contínua de nulificação do mundo e de “escape” de si mesmo (o sentido de existência para Sartre) se identificando com a ideia de uma liberdade incondicionada; como ele diz na célebre frase: “Estou condenado a existir para sempre para-além de minha essência, para-além dos móbeis e motivos de meu ato: estou condenado a ser livre.” (SARTRE, 1997, p. 543) - Numa versão merleau-pontyana, talvez pudéssemos dizer que estamos condenados a ser na intersubjetividade. Ainda segundo Cox, para Sartre, a mudança de uma situação atual é sempre possível por meio de uma escolha ilimitada, uma vez que a consciência é absolutamente livre para anular (no sentido de “nadificar”) tudo, o tempo todo. Deste modo, os fatos do mundo seriam sempre determinados pela escolha do sujeito, pois eles teriam unicamente o sentido que o sujeito lhes dá. Sartre, assim, na visão de Merleau-Ponty, embora situe o sujeito e a liberdade no mundo, não escapa da ideia de uma consciência absoluta que não admite a intersubjetividade; como ele dirá em As aventuras da dialética: “Há, em Sartre, uma pluralidade de sujeitos, não há inter-subjetividade.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 238).
137
Como diz Merleau-Ponty: “Em lugar de pensar em minha dor, olho minhas
unhas, ou almoço, ou me ocupo de política. Longe de que minha liberdade seja
sempre solitária, ela nunca está sem cúmplice, e seu poder de arrancamento
perpétuo se apóia em meu envolvimento universal no mundo.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 607)
O sujeito não pode escolher o que ele é no mundo; o que ele é no mundo se
faz da sua relação com o mundo. Portanto, não é que a cada momento, ele possa
“escolher” o que ser ou deixar de ser: é dentro de sua situação, a partir das
circunstâncias que se apresentam que ele pode decidir confirmá-la ou não. O
momento da decisão não está desvinculado do momento anterior desse sujeito, nem
está desvinculado do momento que ele compartilha com todos os outros sujeitos no
mundo; nesse sentido, Merleau-Ponty vai falar do que ele chama de tempo natural
ou tempo generalizado: não se trata de um tempo puramente objetivo que se
passaria no mundo, independente do sujeito. Ele é contínuo (como a melodia), é um
fluxo no qual o instante presente já desliza para o passado e o instante que “chega”
se torna o presente, mas já efetuando o mesmo movimento caminha para um porvir
que nos aponta um sentido provável, mas não determinado.
O mesmo movimento (esse “fluxo”) acontece correlativamente no sujeito e no
mundo porque estão “misturados”. Como vimos nos capítulos anteriores, quando
surgimos no mundo, encontramos um mundo já constituído, mas não “fechado”,
porque está em contínua constituição, uma vez que somos nós que lhe damos
sentido. É por esta razão que nunca há nem determinismo, nem liberdade absoluta;
é que aquilo que poderia nos “determinar” (o mundo), está em contínua constituição
por nós mesmos: nossa decisão nasce da situação. Como diz Merleau-Ponty: “A
generalidade do ‘papel’ e da situação vem em auxílio da decisão e, nesta troca entre
a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a ‘parte da situação’ e a
‘parte da liberdade’.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 608)
O mundo está no sujeito e o sujeito está no mundo; é imerso na sua situação
no mundo que ele decide, tem a liberdade para mudar a direção de sua vida. Essa
liberdade, portanto, não surge do nada, nem é a escolha deliberada feita por um
sujeito para quem tudo seria possível; ela vai se delineando no meio da situação. A
situação é o resultado de todo o passado desse sujeito, entendido como todos os
eventos que ele viveu estando em relação com o mundo. Estes eventos/fatos, como
vimos anteriormente, não são “separados” uns dos outros e simplesmente
138
ordenados cronologicamente, nem são exteriores uns aos outros sendo relacionados
numa cadeia causal; eles estão entrelaçados inteligivelmente, fazendo com que a
vida desse sujeito aponte para um sentido que está sempre aberto e não se pode
dizer que esse sentido é dado nem somente pelo sujeito, nem somente pelo mundo.
É isso que faz com que Merleau-Ponty diga “Sou uma estrutura psicológica e
histórica” e explica:
Com a existência recebi uma maneira de existir, um estilo. Todos os meus pensamentos e minhas ações estão em relação com esta estrutura, e mesmo o pensamento de um filósofo não é senão uma maneira de explicitar seu poder sobre o mundo, aquilo que ele é. E todavia sou livre, não a despeito ou aquém dessas motivações, mas por seu meio. Pois esta vida significante, esta certa significação da natureza e da história que sou eu, não limita meu acesso ao mundo, ao contrário ela é meu meio de comunicar-me com ele. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 611)
A escolha que um indivíduo faz, então, não o priva da liberdade, no sentido
em que, ao tomar a decisão, ele “abriria mão de uma alternativa que lhe seria
possível”; ao contrário, é agindo assim que ele se liberta de uma tendência à qual
ele não tem mais motivo para dar força. Assim, motivo e decisão são dois
elementos da situação, como explica Merleau-Ponty:
O motivo é um antecedente que só age por seu sentido, e é preciso acrescentar que é a decisão que afirma esse sentido como válido e que lhe dá sua força e sua eficácia. Motivo e decisão são dois elementos de uma situação: o primeiro é a situação enquanto fato, o segundo a situação assumida. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 348)
Diante de uma mesma situação, eu posso tomar uma atitude, enquanto outra
pessoa toma outra completamente diferente e isso não quer dizer que temos a
liberdade de escolher diferente, mas que, tendo o poder de dar novos sentidos às
nossas motivações, temos a liberdade de ser diferentes.
139
CONCLUSÃO
A partir do estudo realizado nos capítulos desta dissertação, podemos
retomar a nossa questão: é possível um ser histórico ser livre?
Para se compreender no que consistiria esse “ser histórico” para Merleau-
Ponty, consideramos necessário examinar qual era a concepção de sujeito do autor.
Nos dois primeiros capítulos, a concepção de sujeito em Merleau-Ponty é mostrada
sob várias noções ou perspectivas; ele é: corpo próprio (p. 24), possibilidade de
situações (p. 40), campo de presença (p. 58), tempo (p. 63). Em todas estas noções
deve ser considerado um aspecto fundamental: a relação entre sujeito e mundo,
estando o sujeito “imerso”, “encarnado” nesse mundo. A relação entre sujeito e
mundo se dá primordialmente pela percepção e pela intencionalidade que se
encontram entrelaçados no “corpo próprio” fazendo com que a consciência consista
numa “consciência perceptiva”.
Como vimos no capítulo 2, a percepção que essa consciência tem do mundo
e de si mesma se desdobra na temporalidade, entendendo-se esta como uma
dimensão do ser, o modo de ser desse sujeito no mundo. Desta maneira, vimos que
os sentidos de passado e de porvir não se encontram nas coisas e sim no modo de
ser (temporal) do sujeito que lhes dá esses sentidos pela intencionalidade. Vimos
também que, “sendo no mundo”, o sujeito está em contínua relação com outros
sujeitos, fazendo com que o tempo consista, como diz Merleau-Ponty, numa “rede
de intencionalidades”. Essa rede de intencionalidades se expressa na
intersubjetividade, por meio dos vários tipos de manifestações humanas, mas
sobretudo, por meio da linguagem que propiciará a sedimentação cultural,
constituindo a história que, como dissemos no capítulo 3, vem a ser a “transmissão
viva” de experiências, tais como elas são vividas pelos sujeitos na intersubjetividade.
Com base nos três primeiros capítulos, pudemos compreender que a
concepção de liberdade de Merleau-Ponty, na Fenomenologia da percepção, é
construída basicamente sobre a sua concepção de temporalidade. No capítulo 2,
vimos que a ideia de sujeito concebido como tempo dissolveria, para Merleau-Ponty,
a separação entre imanência e transcendência, mostrando o entrelaçamento
indissolúvel entre sujeito e mundo; essa interdependência dissolveria igualmente a
ideia do sujeito como nada absoluto e do mundo como ser pleno (absoluto): o sujeito
como ser encarnado no mundo nasce dentro de um contexto que ele não escolheu,
140
mas a partir do qual ele se nutre de significações preexistentes para poder expressar
a si mesmo. Interagindo com o mundo, o sujeito adquire essas significações
sedimentadas ao longo da história para lhes dar um novo sentido. O sentido de algo,
portanto, é dado na experiência, na convivência intersubjetiva e só é possível pela
temporalidade, o movimento de deixar-de-ser-para-vir-a-ser realizado nas relações
entre sujeito e mundo por meio da corporeidade.
O sujeito existe no mundo e o mundo existe no sujeito e a síntese entre o
sujeito e o mundo se dá no presente. Porém, o sujeito não está só no mundo; não
sou só eu que dou sentido ao mundo. Eu dou sentido ao mundo a partir dos sentidos
que ele me dá, a partir dos sentidos dados pela rede de intencionalidades, sentidos
que encontramos nas obras da linguagem escrita, na comunicação visual, nas mais
variadas significações expressas pela arte, pela cultura; dou sentido ao mundo, a
partir do momento que entrelaço a minha história individual com a história do mundo.
Assim sendo, a história para Merleau-Ponty tem caráter existencial e somos livres
uma vez que estamos sempre em contínua transformação, em contínuo movimento
de superação no deixar-de-ser-para-vir-a-ser, em contínuo movimento de retomada
das sedimentações históricas e de abertura para lhes dar um novo sentido.
Deste modo, acreditamos ter chegado à resposta da nossa questão: a
liberdade para Merleau-Ponty consiste nesse poder que temos de dar um novo
sentido às significações sedimentadas no decorrer da história, fazendo com que a
liberdade não seja absoluta justamente por depender da situação do sujeito no
mundo, sendo essa situação o campo no qual ela pode atuar: é deste modo que
Merleau-Ponty concebe uma liberdade “condicionada”.
A partir destas concepções, surgem algumas questões relativas a certas
noções e afirmações do autor. A primeira delas se refere ao “cogito tácito” (como
vimos no capítulo 1.2.2): se sem as significações preexistentes no mundo, não
conseguimos nem mesmo expressar a nós mesmos, como pode ser explicada uma
intenção já ter um sentido na esfera pré-reflexiva? Que sentido é este que não é
“pensado”, uma vez que é pré-reflexivo? Se com o meu surgimento no mundo,
imediatamente se inicia o entrelaçamento entre o mundo natural e o mundo social,
histórico-cultural, minha percepção desse mundo já é impregnada de sentido
porque, segundo Merleau-Ponty, a consciência perceptiva (como vimos no capítulo
1.2) já admitiria uma “junção” do que é separado pelo intelectualismo, ou seja, o
pensamento como doação de sentido e a percepção como mero atributo do corpo.
141
Assim sendo, se o pensamento já se encontra entrelaçado à percepção, se o
pensamento se faz no “fazendo-se” da linguagem e se a linguagem surge na relação
com outrem, como posso ter uma intenção pré-reflexiva, como se fosse um “sentido
privado”?
Essa primeira questão nos leva a uma segunda: o que poderia ser
verdadeiramente indeclinável na subjetividade (capítulo 1.2.2), uma vez que o
sujeito somente é em relação com o mundo e com outrem? No que consistiria
exatamente essa apercepção de si mesmo? Merleau-Ponty diz: “é verdade que o
sujeito enquanto presença absoluta a si é rigorosamente indeclinável, e que nada
pode advir-lhe do qual ele não traga em si mesmo o esboço;” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 572) Que “esboços” poderiam ser esses que o sujeito já traz em si, dos
quais as significações existentes no mundo somente serviriam para “expressá-los”?
Desempenhariam esses “esboços” o “papel de um complexo inato” ao qual se refere
Merleau-Ponty? (ver capítulo 1.2.2)
O problema que se coloca nestas concepções é que, se o sujeito tem o poder
de aperceber-se de si mesmo com uma intenção ainda “muda” na esfera pré-
reflexiva, ou seja, uma intenção ainda não expressa em significações, este poder se
realizaria antes de adquirir as significações preexistentes no mundo para tal e, desta
maneira, o sujeito não dependeria do mundo para “dar-se conta” de si mesmo. Por
outro lado, Merleau-Ponty diz que o sujeito é indeclinável “enquanto presença
absoluta a si” e que isso não consistiria ainda na consciência de si; diz ele: “...é
verdade também que ele (o sujeito) se dá emblemas de si mesmo na sucessão e na
multiplicidade, e que esses emblemas são ele, já que sem aqueles ele seria como
um grito inarticulado e nem mesmo chegaria à consciência de si.” (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 572)
Ora, se não existe uma percepção independente da consciência e vice-versa
como nos mostra a concepção de “consciência perceptiva”, como se daria uma
apercepção de si mesmo que não chegaria à consciência de si?
Além dessa questão, a relação entre a história e a liberdade na
Fenomenologia da percepção nos leva a pensar num elemento que não aparece
explicitamente nas argumentações do autor: a imaginação.
Como vimos no capítulo sobre a liberdade, ela consiste no poder do sujeito de
dar um novo sentido a partir de uma situação na qual ele está inserido no mundo.
Essa situação surge da relação entre o sujeito e o mundo histórico-cultural, que vem
142
a ser a superação do mundo natural. Podemos entender assim que a liberdade se
encontra na capacidade do sujeito de superar a determinação da natureza, a partir
da constituição do mundo social, histórico-cultural, dando-lhe continuamente novos
sentidos, mantendo-o sempre aberto, inacabado. Merleau-Ponty não diz
explicitamente que essa capacidade de dar sentido e a consequente constituição de
um mundo histórico-cultural adviria da razão; parece-nos que relacionada à
capacidade de dar um novo sentido estaria a ideia de criação, que nos reporta
também à imaginação, talvez a grande ausente nas considerações de Merleau-
Ponty. O que seria dar um novo sentido senão “inventar” ou “criar”? No pensamento
do autor, a liberdade seria “condicionada” porque não criamos a partir do nada;
como diz Merleau-Ponty: “Não posso mais fingir ser um nada e me escolher
continuamente a partir de nada.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 606)
Mas então, poderíamos concluir que a liberdade, o poder de dar um novo
sentido se encontraria na razão, ou melhor, naquilo que “excede a razão” (ver pág.
75) que consistiria na capacidade de imaginar? Nesse sentido, poderíamos dizer
que os limites, os obstáculos para a liberdade seriam, em última análise, colocados
pelo mundo e a liberdade consistiria no poder da imaginação de superar estes
limites, criando um novo sentido para a situação na qual este sujeito está inserido a
partir de suas motivações?
Esperamos poder responder estas questões numa próxima pesquisa,
estudando o desenvolvimento do pensamento do autor em suas obras seguintes a
fim de examinar como Merleau-Ponty desenvolve a tarefa iniciada na
Fenomenologia da percepção.
143
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